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o Espetaculoso Mundo Do Eu

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  • O ESPETACULOSO MUNDO DO EU: UMA ANLISE DO SENTIDO DO PARADOXO DA PRIVACIDADE

    Tas Carvalho Silva1

    Sumrio: 1 INTRODUO; 2 O ESPETACULOSO MUNDO DO EU; 3 O PARADOXO DA PRIVACIDADE; 3.1 A LGICA DO SENTIDO DE DELEUZE; 3.2 O SENTIDO DO PARADOXO DA PRIVACIDADE; 4 CONSIDERAES METODOLGICAS; 5 CONSIDERAES FINAIS; REFERNCIAS.

    RESUMO O presente artigo tem por objetivo analisar o fenmeno de exibio da privacidade nas mdias sociais por meio da noo contempornea do eu e da ideia de sentido proposta por Gilles Deleuze na obra Lgica do Sentido. PALAVRAS-CHAVE: DIREITO PRIVACIDADE; MDIAS SOCIAIS; SENTIDO; GILLES DELEUZE 1 INTRODUO

    curioso como no sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas no posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar no s no exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

    Clarice Lispector

    A ideia de preservao da privacidade remonta Antiguidade. No sculo IV a.C.,

    Aristteles j defendia a separao da esfera poltica (polis) da privada. Em meados

    do sculo XVI, Michel de Montaigne, em seus Ensaios, tambm sustentava haver

    uma esfera privada do indivduo inviolvel pelo poder pblico. Mas no Iluminismo

    que a tutela da privacidade ganhou os contornos atuais. Um de seus principais

    1 Mestranda em Direito das Relaes Sociais e Novos Direitos na Universidade Federal da Bahia - UFBA; Professora de Direito Civil e Direito Empresarial; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Politcnica de Madri UPM Espanha (2010); Bacharela em Direito pela Universidade Catlica do Salvador UCSAL (2006); Advogada.

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    expoentes, John Locke, na obra Dois Tratados sobre o Governo, afirmava que o

    poder provinha dos indivduos, os quais, por conseguinte, tinham o direito de se ver

    resguardados contra ingerncias do poder pblico.

    H pouco mais de um sculo, dois juristas americanos, Samuel Warren e Louis

    Brandeis, publicaram um estudo (The Right to Privacy) considerado um marco

    histrico no direito moderno, no qual propunham a criao de um novo direito

    fundamental, o direito de ser deixado s ou simplesmente direito privacidade.

    uma realidade, porm, que, na contramo dessa busca pela preservao da

    privacidade, eclodiu um surto de exposio gratuita e irrestrita da privacidade. o

    que observa Roxana Cardoso Brasileiro Borges: Embora se busquem cada vez

    mais critrios que garantam a no-intromisso na vida privada das pessoas, h, por

    outro lado, pessoas que parecem desejar o oposto: a exposio da vida privada para

    o pblico em geral2.

    Com efeito, no obstante o direito tenha evoludo no sentido de resguardar a

    privacidade, os prprios tutelados tm buscado mecanismos de exibio de sua

    privacidade.

    o chamado paradoxo da privacidade, isto , quando a violao da privacidade se

    d pela vontade da prpria vtima3.

    Nesse passo, as mdias sociais tm revolucionado as formas de comunicao,

    democratizando os espaos pblicos e proporcionado a interatividade e a

    2 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada . 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2007, p. 164. 3 Entre os annimos, a violao da privacidade no raro realizada pela prpria vtima. o que se poderia chamar de paradoxo da privacidade: todos os dias, as mesmas pessoas que se afligem por estar vulnerveis espionagem digital desvelam sua intimidade on-line, ao permitir que desconhecidos tenham acesso a seu computador, em redes de troca de arquivos, mas, sobretudo, ao aderir a sites como Orkut, Facebook, YouTube e Twitter, nos quais revelam uma larga fatia de sua vida em fotos, vdeos e depoimentos. Compreender os impulsos que levam algum e principalmente os jovens a se expor na internet tem ocupado psiclogos, socilogos, antroplogos, juristas. Parte da explicao est na simples disponibilidade da tecnologia. As pessoas fazem o que fazem porque as ferramentas esto ao seu alcance. Pela primeira vez na histria, praticamente qualquer um pode divulgar informaes para o mundo todo. Alguns aproveitam essa possibilidade de maneira sensata, outros no, diz a antroploga Anne Kirah, ex-chefe de pesquisas da Microsoft. (GRAIEB, Carlos. Vida digital: Quando no h mais segredos. Veja. So Paulo, edio 2125, ano 42, n 32, p. 78-84, 12 ago. 2009, p. 80-81).

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    possibilidade de todos e qualquer um se tornarem produtores e no meramente

    consumidores de informao.

    O objetivo deste artigo analisar qual o sentido desse fenmeno de exibio

    miditica da privacidade, tomando por base a noo de sentido trabalhada por Gilles

    Deleuze na obra Lgica do Sentido.

    Em um primeiro momento, tratar-se- dos elementos que caracterizam este

    fenmeno, descrevendo o processo de democratizao dos espaos pblicos e,

    consequente, publicizao da vida privada e delineando o sentido contemporneo

    do eu.

    Em seguida, far-se- uma breve reviso da literatura de Gilles Deleuze para

    relacion-la ao paradoxo da privacidade com a finalidade de identificar seu sentido.

    Depois, sero considerados alguns aspectos extrados de autores da Metodologia

    da Pesquisa que orientaram este estudo. Por fim, apresentar-se- uma breve

    concluso.

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    2 O ESPETACULOSO MUNDO DO EU

    No final do ano de 2006, a revista Time elegeu como personalidade do ano voc.

    Isto mesmo, voc, eu, ns foram escolhidos personalidades do ano por estarem

    revolucionando a era da informao, produzindo contedos criativos na internet,

    promovendo a democracia digital e destacando-se no cenrio miditico global4.

    Essa notcia denota claramente o fenmeno que tem se desenvolvido na sociedade

    contempornea: o paradoxo da privacidade.

    De fato, as mdias sociais viabilizaram o compartilhamento de informaes pessoais

    sem fronteiras e a exposio da vida privada.

    A expresso mdias sociais tem sido tradicionalmente definida como a produo de

    muitos para muitos, ou seja, a criao de contedos de modo descentralizado e sem

    o controle editorial das mdias tradicionais.

    No obstante seu conceito anteceda o advento da rede mundial de computadores

    internet, a expresso mdias sociais (social media) passou a ser cunhada a partir

    do surgimento desta nova ferramenta tecnolgica, que possibilitou a expanso do

    alcance dessa produo.

    Desse modo, mdias sociais, em seu sentido atual, podem ser definidas como

    sistemas on-line usados por pessoas para a produo de contedos de forma

    descentralizada, provocando a interao social a partir do compartilhamento de

    informaes, opinies, conhecimentos e perspectivas, exteriorizados por meio de

    textos, imagens, vdeos e udios5.

    Nessa medida, redes sociais so espcies do gnero mdias sociais e significam

    as interaes sociais em forma de rede mediadas pela internet.

    4 GROSSMAN, Lev. Times person of the year: you. In: Time, vol. 168, n. 26. 25 dez. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 26 nov. 2010. 5 Cf. RECUERO, Raquel. O que mdia social? Social Media, 02 out. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 08 nov. 2011; TERRA, Carolina. Universo corporativo. In: BRAMBILLA, Ana (org.). Para entender as mdias sociais . Licena cretive commons, 2011. Disponvel em: . Acesso em: 20 nov. 2011, p. 86.

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    No entanto, ao mesmo passo que se avana para a democratizao dos espaos

    pblicos, cresce a publicizao da vida privada.

    Porm, quais so as razes que levam uma pessoa a abrir mo de sua privacidade

    e divulg-la ao pblico em geral? Quais so os motivos para essa exibio do eu?

    Quais so as causas que levam as pessoas a buscarem essas relaes?

    A pesquisadora Paula Sibilia, em seu livro O Show do Eu, relata que a relao das

    pessoas com a privacidade evoluiu da inexistncia forada abolio espontnea,

    com a repentina exaltao do banal e a inslita promoo do eu:

    Voltando queles eu e voc que esto se convertendo nas personalidades do momento, retorna a pergunta inicial: como algum se torna o que ? Neste caso, pelo menos, a internet parece ter ajudado bastante. Ao longo da ltima dcada, a rede mundial de computadores tem dado luz um amplo leque de prticas que poderamos denominar confessionais. Milhes de usurios de todo o planeta gente comum, precisamente como eu ou voc tm se apropriado das diversas ferramentas disponveis on-line, que no cessam de surgir e se expandir, e as utilizam para expor publicamente a sua intimidade. Gerou-se, assim, um verdadeiro festival de vidas privadas, que se oferecem despudoradamente aos olhares do mundo inteiro. As confisses dirias de voc, eu e todos ns esto a, em palavras e imagens, disposio de quem quiser bisbilhot-las; basta apenas um clique do mouse. E, de fato, tanto voc como eu e todos ns

    costumamos dar esse clique6.

    A clebre pergunta quem sou eu? inscrita na rede de relacionamentos Orkut ilustra

    muito bem essa atual conjuntura.

    A preocupao com o eu, com o que os outros pensam sobre o eu, em dizer quem

    sou, foi retratada em 1888 por Nietzsche na controversa obra Ecce Homo:

    [...] Parece-me indispensvel dizer quem eu sou. No fundo, todos o deviam saber: no deixei, com efeito, de dar testemunho de mim. Mas a incongruncia entre a grandeza da minha tarefa e a pequenez dos meus contemporneos expressou-se no fato de que no me ouviram, nem

    tambm me viram7.

    Muito embora a polmica obra outrora tenha sido interpretada como um assombro

    de megalomania e loucura, hodiernamente, o eu supera a tradicional acepo

    6 SIBILIA, Paula. O show do eu : A intimidade como espetculo. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 26. 7 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo : como algum se torna o que . Traduzido por Artur Moro. Covilh: Lusosofia, 2008, p. 7. Disponvel em: . Acesso em: 05 dez. 2010.

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    intrnseca de identidade proposta pelo eu penso de Descartes para uma

    concepo plrima de um eu coletivo inventado pelo prprio indivduo:

    Nesse sentido, a noo de EU ultrapassa a questo da identidade, enquanto conceito puramente subjetivo, ou a idia que o sujeito faz de si mesmo, e dos EUs exteriores a ele na alteridade, partindo de seu Eu interior. Nesse caso pode-se levantar a questo da possibilidade de o EU ser algo criado pelo prprio individuo dentro do contexto lingstico coletivo.

    O EU deixa de ser uma realidade singular e abre-se para a multiplicidade de

    possibilidades diversas de ser8.

    Relacionando a concepo de eu e as novas formas de comunicao miditica,

    surge um questionamento acerca da natureza deste eu:

    Os usos confessionais da internet parecem se enquadrar nessa definio: seriam, portanto, manifestaes renovadas dos velhos gneros autobiogrficos. O eu que fala e se mostra incansavelmente na web costuma ser trplice: ao mesmo tempo autor, narrador e personagem. Alm disso, porm, no deixa de ser uma fico; pois, apesar de sua contundente auto-evidncia, sempre frgil o estatuto do eu. Embora se apresente como o mais insubstituvel dos seres e a mais real, em aparncia, das realidades, o eu de cada um de ns uma entidade complexa e vacilante. Uma unidade ilusria construda na linguagem, a partir do fluxo catico e mltiplo de cada experincia individual. Mas se o eu uma fico gramatical, um centro de gravidade narrativa, um eixo mvel e instvel onde convergem todos os relatos de si, tambm inegvel que se trata de um tipo muito especial de fico. Pois, alm de desprender do magma real da prpria existncia acaba provocando um forte efeito no mundo: nada menos que eu, um efeito-sujeito. uma fico necessria, pois somos feitos desses relatos: eles so a matria que nos constitui enquanto sujeitos. A linguagem nos d consistncia e relevos prprios, pessoais, singulares, e a substncia que resulta desse cruzamento de

    narrativas de (auto)denomina eu9.

    Assim, percebe-se uma forte influncia da linguagem na formao deste fenmeno

    contemporneo.

    3. O PARADOXO DA PRIVACIDADE 3.1 A LGICA DO SENTIDO DE DELEUZE

    Deleuze estrutura sua teoria do sentido numa srie de paradoxos que esto

    intimamente ligados ao no-senso. O autor busca fundar sua teoria a partir da obra

    8 SOARES, Ediane. A questo do eu em filosofia e literatura : a inveno do eu, como produto da linguagem e a literatura de Fernando Pessoa. Filopoesia. 09 dez. 2008. Disponvel em: . Acesso em: 08 dez. 2010. 9 SIBILIA, op. cit., p. 31.

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    de Lewis Carroll (pseudnimo adotado pelo matemtico ingls cujo nome verdadeiro

    era Charles Lutwidge Dodgson).

    Deleuze destaca, ainda, a relevante contribuio dos Esticos que romperam com

    os pr-socrticos, os socrticos e os platnicos para a criao de uma nova

    imagem do filsofo, intimamente ligada formao paradoxal da teoria do sentido.

    inerente aos acontecimentos serem expressos ou exprimveis em proposies. A

    questo do sentido est diretamente ligada proposio.

    A doutrina si conceber 3 (trs) dimenses a essas proposies: designao ou

    indicao, manifestao e significao.

    Deleuze, contudo, observa que o sentido no nem o objeto fsico, nem a

    representao mental, nem os conceitos universais, mas sim a quarta dimenso da

    proposio, que os Esticos denominam acontecimento. Desse modo, o sentido o

    exprimvel ou o expresso da proposio e o atributo do estado de coisas. Assim, o

    acontecimento o prprio sentido e ele pertence essencialmente linguagem10.

    Para Deleuze, sentido e no-sentido tm uma relao especfica que no pode ser

    extrada de uma relao de excluso, de verdadeiro-falso. O non-sense no uma

    simples falta de sentido, mas uma negao, um no-sentido. E como uma negao

    remete a uma afirmao, provando a existncia do sentido paradoxalmente.

    O paradoxo, por sua vez, o oposto doxa, o que destri o bom senso (direo)

    como sentido nico e, em seguida, destri o senso comum como designao de uma

    identidade fixa.

    Logo, o paradoxo o devir-louco, a afirmao dos dois sentidos ao mesmo tempo e

    em duas direes ao mesmo tempo. O paradoxo no abandonar o bom senso e

    tomar o lado oposto dele, pois se assim o fizesse, estaria optando por um, entre os

    dois e, portanto, fazendo a mesma coisa. O paradoxo correr para os dois lados ao

    mesmo tempo, assumir os dois sentidos ao mesmo tempo e isso destri a idia de

    10 DELEUZE, Gilles. Lgica do sentido . So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 23.

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    sentido nico do bom senso e instaura uma identidade infinita que destri a idia de

    uma identidade fixa (senso comum)11.

    Deleuze prope, ento, uma ciso causal: os acontecimentos nunca so causa uns

    dos outros, mas entram em relaes de quase-causalidade, causalidade real e

    fantasmagrica que no cessa de assumir os dois sentidos12.

    Desse modo, conclui-se que as proposies que designam objetos contraditrios

    tm fundamento e, logo, sentido. Da se opera a doao de sentido.

    3.2 O SENTIDO DO PARADOXO DA PRIVACIDADE

    A partir da anlise das obras de Lewis Carroll feita por Gilles Deleuze em Lgica do

    Sentido possvel tecer um paralelo com as novas prticas de exibio miditica.

    A celeridade do mundo ps-moderno tem provocado uma frieza, um distanciamento

    entre as pessoas e, em decorrncia disso, vive-se uma carncia de relacionamentos

    e uma permanente necessidade de aparecer, de ser visto. As redes sociais

    surgem, ento, como uma ferramenta que possibilita a aproximao e o

    afastamento, a conexo e a desconexo ao sabor da vontade do indivduo, sem

    maiores envolvimentos e consequncias13.

    Quanto mais ateno humana e esforo de aprendizado forem absorvidos pela variedade virtual de proximidade, menos tempo se dedicar aquisio e ao exerccio das habilidades que o outro tipo de proximidade, no-virtual, exige. Essas habilidades caem em desuso so esquecidas, nem chegam a ser aprendidas, so evitadas ou a elas se recorrer, se isso chega a acontecer, com relutncia. Seu desenvolvimento, se requerido, pode apresentar um desafio incmodo, talvez at insupervel. Isso aumenta os

    encantos da proximidade virtual14.

    11 Ibid., p. 79. 12 Ibid., p. 36. 13 PRYSTHON, Angela; FONTANELLA, Fernando Israel; FONSECA FILHO, Zadoque Alves da Fonseca. O maravilhoso pas do orkut : sobre jogos, racionalidade, nonsense e frivolidades. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grade do Sul UFRGS, v. 2, n. 17, p. 1-13, jul/dez 2007, p. 9. Disponvel em: . Acesso em: 12 nov. 2010. 14 BAUMAN, Zygmunt. Amor lquido . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 84.

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    Nessa medida, o querer mostrar-se, o querer exibir seu eu para o outro, atitudes

    aparentemente paradoxais em face do direito privacidade, no so atos

    desprovidos de sentido. No se exibe a privacidade pelo simples desejo de

    exposio. A doao de sentido provm justamente da ideia de criar personagens,

    personalidades capazes de despertar a ateno alheia e assim conquistar seu

    interesse.

    Quando falamos em consolidar personalidades no nos referimos apenas construo de fiis descries pessoais (condizentes com as personalidades do mundo extravirtual) nas pginas das redes de relacionamentos. Pensamos, pelo contrrio, numa negociao entre o que somos no mundo concreto (fora da internet) e no que somos no dito maravilhoso pas do Orkut. A consolidao dessa negociao parece afigurar-se como indispensvel para os indivduos da contemporaneidade. O que dizer de indivduos aparentemente no-fictcios que estabelecem contato com personagens propositadamente construdos ficcionalmente? Curioso que grande parte das personagens fictcias do Orkut conseguem angariar muitos amigos e fs, chegando a ultrapassar sua cota de amigos, e recebendo vrios depoimentos ou recados que os ajudam numa construo

    coletiva de suas identidades15.

    Com efeito, as fbulas, o ldico, a frivolidade sempre suscitaram a curiosidade das

    pessoas. A criao de personagens com elementos reais e imaginrios serve

    justamente para promover esse interesse alheio.

    [...] Ademais, as fbulas fazem imaginar como possveis muitos acontecimentos que no o so, e at mesmo as histrias mais verossmeis, se no mudam nem alteram o valor das coisas para torn-las mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase sempre as circunstncias mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto no parece tal qual , e que aqueles que norteiam seus hbitos pelos exemplos que deles tiram esto sujeitos a cair nas extravagncias dos heris de nossos romances e a conceber propsitos que superam suas

    foras.16

    Conforme Habermas o conhecimento produzido e dirigido por interesses. O

    interesse comunicativo dessas novas ferramentas tecnolgicas construir uma

    personalidade alterdirigida17, fluida, com o intuito de simplesmente tornar-se visvel.

    Nesta cultura das aparncias, do espetculo e da visibilidade, j no parece haver motivos para mergulhar naquelas sondagens em busca dos sentidos abissais perdidos dentro de si mesmo. Em lugar disso, tendncias exibicionistas e performticas alimentam a procura de um efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e, sobretudo, o cobiado trofu de ser

    15 PRYSTHON, Angela; FONTANELLA, Fernando Israel; FONSECA FILHO, Zadoque Alves da Fonseca, op. cit., p. 9-10. 16 DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo Verso eletrnica. S/d: Acropolis, s/d, p. 4. Disponvel em: . Acesso em: 20 nov. 2010. 17 DEBORD, Guy. La sociedad del espetculo . Buenos Aires: La Marca, 1995, passim.

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    visto. Cada vez mais, preciso aparecer para ser. Pois tudo aquilo que permanecer oculto, fora do campo da visibilidade seja dentro de si, trancado no lar ou no interior do quarto prprio corre o triste risco de no ser interceptado por olho algum. E, de acordo com as premissas bsicas da sociedade do espetculo e da moral da visibilidade, se ningum v alguma coisa bem provvel que essa coisa no exista. Como bem descobrira Guy Debord h quatro dcadas, o espetculo se apresenta como uma enorme positividade indiscutvel, pois seus meios so ao mesmo tempo seus fins e sua justificativa tautolgica: O que aparece bom, e o que bom aparece. Nesse monoplio da aparncia, tudo o que ficar do lado de fora

    simplesmente no 18.

    Percebe-se, assim, que o ldico utilizado como um instrumento para atribuir

    visibilidade ao eu.

    4 CONSIDERAES METODOLGICAS

    Finalmente, cumpre analisar alguns aspectos metodolgicos que nortearam este

    estudo.

    Essas novas formas de comunicao so um produto esttico da sociedade

    contempornea exteriorizado pela linguagem.

    Como apontado no segundo Captulo supra, esses novos modos de comunicao

    so uma fico necessria que tomam consistncia por meio da linguagem e a

    confrontao dessas narrativas d origem ao que se entende por eu19.

    Verificou-se que o eu o narrador que se narra e deve ser compreendido alm da

    noo intrnseca de identidade, [...] porque tanto o eu quanto seus enunciados so

    heterogneos: para alm de qualquer iluso de identidade, eles sempre estaro

    habitados pela alteridade20.

    Os relatos confessionais, os jogos de linguagem dos agentes comunicativos

    tratados neste artigo se aproximam das ideias de Feyerabend na medida em que

    este filsofo concebe a atividade ldica, presente no mundo virtual, como um pr-

    18 SIBILIA, op. cit., p. 112. 19 Ibid., p. 31. 20 SIBILIA, op. cit., p. 32.

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    requisito essencial para o ato de compreenso e defende o princpio de que para se

    chegar ao conhecimento tudo vale21.

    Igualmente, pode-se fazer uma relao com Jacques Derrida porque para a

    compreenso do fenmeno em anlise imperioso apreender a percepo de

    desconstruo do autor. Realmente, para se chegar compreenso da natureza do

    eu exibicionista e necessrio desconstruir e reconstruir pr-concepes do eu22.

    Cumpre observar tambm os pensamentos de Boaventura de Sousa Santos acerca

    do conhecimento cientfico ps-moderno:

    A concepo humanstica das cincias sociais enquanto agente catalisador da progressiva fuso das cincias naturais e cincias sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrrio das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. No h natureza humana porque toda a natureza humana. pois necessrio descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as fronteiras em que a cincia moderna dividiu e encerrou a realidade. A cincia ps-moderna uma cincia assumidamente analgica que conhece o que conhece por atravs do que conhece melhor. J mencionei a analogia textual e julgo que tanto a analogia ldica como a analogia dramtica, como ainda a analogia biogrfica, figuraro entre a s categorias matriciais do paradigma emergente: o mundo, que hoj e natural ou social e amanh ser ambos, visto como um texto, co mo um jogo, como um palco ou ainda como autobiografia . [...] Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo comunicao e por isso a lgic a existencial da cincia ps-moderna promover a situao comunica tiva tal como Habermas a concebe . Nessa situao confluem sentidos e constelaes de sentido vindos, tal qual rios, das nascentes das nossas prticas locais e arrastando consigo as areias dos nossos percursos moleculares, individuais, comunitrios, sociais e planetrios. No se trata de uma amlgama de sentido (que no seria sentido mas rudo), mas antes de interaes e de intertextualidades organizadas em torno de projetos locais de conhecimento indiviso. Daqui decorre a segunda caracterstica do conhecimento cientfico

    ps-moderno23 (grifos acrescentados).

    Por fim, note-se que a compreenso do paradoxo da privacidade perpassa pelas

    lies de Gadamer (e de certa forma Heidegger)24. De fato, Gadamer entende a

    hermenutica como uma relao entre o intrprete e o texto e a linguagem como um

    21 FEYERABEND, Paul K. Contra o mtodo . Traduzido por Cezar Augusto Mortari. So Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 40, 43. 22 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferena . Trad. Maria Beatriz Marques. 2 ed. So Paulo: Perspectiva, 1995, passim. 23 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as cincias na transio para uma cincia ps-moderna. Estudos avanados. v. 2, n. 2, 1988, p. 63-64. 24 GADEMER, Hans-Georg. Verdade e mtodo . Traduzido por Flvio Paul Meurer. 3.ed. Petrpolis:Vozes, 1999, passim.

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    mecanismo para a compreenso do ser no mundo e para se alcanar o objetivo

    deste artigo foi necessrio fazer uma interpretao plrima do eu na coletividade.

    5 CONSIDERAES FINAIS

    De acordo com a anlise desenvolvida neste artigo, as seguintes concluses podem

    ser enumeradas:

    1. Muito embora o direito tenha evoludo no sentido de resguardar a privacidade,

    os prprios tutelados tm buscado mecanismos de exibio de sua privacidade.

    o chamado paradoxo da privacidade, isto , quando a violao da privacidade

    se d pela vontade da prpria vtima.

    2. As mdias sociais revolucionaram o paradigma de comunicao, promovendo a

    democratizao dos espaos pblicos, e a consequente publicizao da vida

    privada, e possibilitando a todos e a qualquer um se tornarem produtores e no

    meramente consumidores de informao.

    3. A celeridade do mundo ps-moderno tem provocado uma frieza, um

    distanciamento entre as pessoas e, em decorrncia disso, vive-se uma carncia

    de relacionamentos e uma necessidade de aparecer, de ser visto.

    4. O querer mostrar-se, o querer exibir seu eu para o outro, atitudes

    aparentemente paradoxais em face do direito privacidade, no so atos

    desprovidos de sentido. No se exibe a privacidade pelo simples desejo de

    exposio.

    5. A doao de sentido se opera com a utilizao do ldico para a criao de

    personagens, personalidades capazes de despertar a ateno alheia e assim

    atribuir visibilidade ao eu.

    6. Em relao aos aspectos metodolgicos, conclui-se que essas novas

    ferramentas de comunicao so um produto esttico da sociedade

    contempornea exteriorizado pela linguagem. Nesse passo, verifica-se que a

    temtica abordada se aproxima das obras de: Paul Feyerabend (a atividade

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    ldica como pr-requisito essencial para o ato de compreenso); Jacques

    Derrida (desconstruo); Boaventura de Sousa Santos (conhecimento cientfico

    ps-moderno); Habermas (conhecimento dirigido por interesses); e Heidegger e

    Gadamer (a linguagem como um mecanismo para a compreenso do ser no

    mundo).

    O presente artigo versou sobre o sentido do paradoxo da personalidade, decorrente

    da exibio da privacidade em mdias. Ao analisar o tema, este artigo buscou, por

    meio de conceitos extrados da obra Lgica do Sentido de Gilles Deleuze, estudar a

    aparente paradoxalidade para atribuir sentido a este fenmeno.

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