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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HABILITAÇÃO EM JORNALISMO O Espiritismo por Bezerra de Menezes: a construção do espiritismo brasileiro JOÃO ROMÁRIO FERNANDES FILHO 1

O Espiritismo por Bezerra de Menezes Versão Capa Dura

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Page 1: O Espiritismo por Bezerra de Menezes Versão Capa Dura

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁCENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIALCURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

O Espiritismo por Bezerra de Menezes: a construção do espiritismo brasileiro

JOÃO ROMÁRIO FERNANDES FILHO

Fortaleza2007

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JOÃO ROMÁRIO FERNANDES FILHO

O Espiritismo por Bezerra de Menezes: a construção do espiritismo brasileiro

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, sob a orientação da Profª. Drª. Júlia Miranda.

Fortaleza

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2007

JOÃO ROMÁRIO FERNANDES FILHO

O Espiritismo por Bezerra de Menezes:A construção do espiritismo brasileiro

Esta monografia foi submetida ao Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel.

A citação de qualquer trecho desta monografia é permitida desde que feita de acordo com as normas da ética científica.  

Monografia apresentada à Banca Examinadora:

_________________________________________

Profª. Drª. Júlia Miranda (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará

_________________________________________

Prof. Dr. Gilmar de Carvalho (Membro)

Universidade Federal do Ceará

_________________________________________

Prof. Ms. Marcos José Diniz Silva (Membro)

Universidade Estadual do Ceará

 

Fortaleza

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2007

Agradecimentos

A Deus, pela oportunidade de exercitar nossas faculdades intelectuais na investigação de uma temática tão instigante.

Aos meus pais, pelo apoio e pela dedicação.

A Bruna, pelo estímulo e carinho imprescindíveis à consecução deste trabalho.

À Profª. Júlia Miranda, pela orientação segura e pelo rigor analítico, que foram fundamentais para a elaboração da presente monografia.

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“O Espiritismo será o que dele fizerem os homens”

Léon Denisin No invisível

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Paris, 1903

Resumo

Esta monografia investiga o papel desempenhado pela coluna O Espiritismo – Estudos Filosóficos, publicada no jornal O Paiz, dentro do processo de adaptação do espiritismo à cultura brasileira, particularmente à matriz católica que lhe caracteriza no final do século XIX. Trabalha com a idéia de que a palavra autorizada de que se via imbuído seu autor, o político cearense Adolfo Bezerra de Menezes, somada à apropriação de determinados elementos do habitus católico vigente em seu estilo discursivo, foram bastante significativas na consolidação desse processo. Discute a importância do jornal O Paiz naquele contexto e procura mostrar como a tiragem e a circulação do jornal somavam-se à localização da coluna no periódico para conferir-lhe uma condição favorável de visibilidade e leitura. PALAVRAS-CHAVE: Espiritismo, Bezerra de Menezes, Imprensa brasileira, O Paiz, Século XIX.

Abstract

This monograph investigates the role of the column O Espiritismo – Estudos Filosóficos, published in the newspaper O Paiz, within the process of Spiritism’s adaptation to Brazilian culture, particularly to its characteristic Catholic matrix in the XIX century. Develops the idea that the authorized speech owned by his author, the politician from Ceará, Adolfo Bezerra de Menezes, added to the appropriation of certain elements of the Catholic habitus in his discursive style, contributed significantly to the consolidation of this process. The work discusses yet the importance of the newspaper O Paiz in that context, trying to show how its circulation, added to the space occupied by the column, were favorable to the reading of Bezerra’s articles. KEYWORDS: Spiritism, Bezerra de Menezes, Brazilian Press, O Paiz, XIX Century.

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Sumário

João Romário Fernandes Filho..........................................................................................1Fortaleza....................................................................................................................1

João Romário Fernandes Filho.........................................................................................2João Romário Fernandes Filho..........................................................................................3Sumário..............................................................................................................................7Introdução..........................................................................................................................7O espiritismo: da França para o Brasil............................................................................12

1) Antecedentes históricos...........................................................................................122) O Espiritismo...........................................................................................................213) O Espiritismo no Brasil...........................................................................................33

Bezerra de Menezes: mediação e influência....................................................................441) Chico Xavier, Bezerra de Menezes e o catolicismo................................................442) De médico dos pobres a político liberal .................................................................463) O líder e mediador espírita......................................................................................524) Bezerra e o habitus católico....................................................................................57

O Espiritismo por Bezerra de Menezes...........................................................................641) A imprensa brasileira e o jornal O País no século XIX..........................................642) O Espiritismo: seu espaço e sua relevância.............................................................703) O Espiritismo segundo Bezerra de Menezes...........................................................72

Considerações Finais.......................................................................................................85Referências......................................................................................................................87

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Introdução

Este trabalho avalia, em linhas gerais, o processo de adaptação por que passou o

espiritismo – aqui compreendido como a doutrina sistematizada no século XIX pelo

pedagogo francês Denizard Rivail, sob o pseudônimo de Allan Kardec – quando de sua

chegada e difusão no Brasil. Nosso foco, contudo, se dirige para um componente que

consideramos central nesse fenômeno social, mas que ainda não tinha sido objeto de

uma investigação mais detida: a coluna dominical O Espiritismo – Estudos Filosóficos,

publicada de 1887 a 1894 no jornal carioca O Paiz1, sob a responsabilidade do médico e

político cearense Adolfo Bezerra de Menezes. Se é amplamente reconhecida entre os

pesquisadores, tanto acadêmicos quanto espíritas, a importância do autor à frente de

todo esse processo, muito pouco se discutiu até hoje, em ambos os meios, acerca desse

espaço privilegiado para a divulgação do espiritismo que foi a coluna semanal assinada

por ele, e veiculada em um dos principais jornais brasileiros do século XIX.

Esta investigação, portanto, consiste num recorte específico que fizemos dentro de uma

temática ampla e já discutida na Academia sob enfoques bastante variados, como

abordamos no final do primeiro capítulo. Nossa pretensão, com ela, é a um só tempo

satisfazer uma curiosidade pessoal, de melhor compreender como e por quais processos

deu-se a transposição do espiritismo da Europa para o Brasil, e oferecer a pesquisadores

e interessados em geral nossa contribuição particular para o enriquecimento das

instigantes discussões que se travam a esse respeito, já há muitas décadas nos círculos

espíritas e, mais recentemente, no âmbito acadêmico.

Os debates acerca dessa temática, que desde há muito fervilham no movimento espírita

brasileiro, ganham sentido, a nosso ver, quando se leva em conta o peculiar

entroncamento epistemológico, nas palavras da educadora brasileira Dora Incontri, em

que o espiritismo se propõe a estar2. Surgido num contexto de “crise de representação

do objeto ‘religião’”, como analisa o antropólogo brasileiro Bernardo Lewgoy3, que era

1 Recorremos à grafia original do nome do jornal apenas nesta primeira referência. Daqui para frente, ela só será utilizada em citações. De nossa parte, faremos uso da grafia atualizada, O País. 2 Cf. INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita, um Projeto Brasileiro e suas Raízes. Bragança Paulista, Comenius, 2004, p. 21.3 LEWGOY, Bernardo. Chico Xavier e a cultura popular brasileira. Centro Virtual de Antropologia, ed. 31, 2006. Disponível em: http://www.antropologia.com.br/entr/entr31.htm. Acessado em: 07/11/2006.

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o século XIX europeu, o espiritismo se propunha a oferecer uma proposta original de

compreensão da realidade mediante a integração entre elementos das três formas

clássicas de conhecimento: ciência, filosofia e religião. Apesar de vivenciado

religiosamente por muitos de seus adeptos ainda na Europa, havia no espiritismo um

forte apelo científico, caracterizado, entre outras coisas, pela necessidade de se

investigarem metodicamente os fenômenos considerados mediúnicos e pela importância

dada ao rigor metodológico no controle das informações oferecidas pelos espíritos

através dos médiuns.

Assim, graças a esse caráter progressivo, aberto à formulação de novos conceitos com

base nos diálogos com os espíritos e nos avanços científicos, o espiritismo apresentava-

se como uma alternativa bastante atraente para aqueles que, no auge do cientificismo e

do positivismo, procuravam manter algum tipo de vínculo com a espiritualidade sem

precisarem se submeter ao dogmatismo religioso. Era uma espécie de “religião da saída

da religião”, como avalia Lewgoy4 numa referência à fórmula utilizada pelo filósofo

francês Marcel Gauchet para explicar a condição singular do cristianismo de “religião

possível num mundo irreligioso5”.

Essa posição epistemológica peculiar, contudo, não parece ter encontrado uma boa

ressonância na cultura brasileira. Como dirá a antropóloga Maria Laura Viveiros de

Castro Cavalcanti, “a própria pressão do ambiente sócio-cultural brasileiro

soma-se (...) a essa característica doutrinária intrínseca, que foi e é

fonte de transformações, tensões e dissidências na dinâmica do

movimento espírita6”. Tão logo chegaram ao país, as idéias espíritas começaram a

ser gradativamente ressignificadas dentro de uma matriz católica que privilegiava

fortemente sua dimensão religiosa – imbuindo-a, inclusive, de novos significados – em

detrimento dos aspectos científico e filosófico que marcavam a originalidade do

espiritismo europeu. Só que, como nem todos os espíritas viam com bons olhos essa

tendência, naturalizada, que era, tanto quanto possível, no discurso de seus defensores,

4 LEWGOY, Bernardo. Op. Cit.5 GEIGER, Amir . “A conversão contramoderna de Alceu Amoroso Lima”, in Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, 2005, p. 55.6 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. “Vida e Morte no Espiritismo Kardecista” in Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 15, 2005. Disponível em: http://www.iser.org.br/publique/media/RS24-2_artigo_maria_viveiros.pdf . Acessado em: 17/10/2006.

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como uma evolução necessária do espiritismo, as disputas em torno do verdadeiro

caráter da doutrina marcaram as primeiras décadas de sua difusão no Brasil.

E, mesmo após o trabalho unificador empreendido por Bezerra de Menezes, que

resultou na hegemonia dos religiosos, mais conhecidos como místicos, sobre os espíritas

ditos científicos, estes, apesar de não possuírem a mesma legitimidade dos vencedores,

prosseguiram suscitando debates e questionando os rumos tomados pelo espiritismo

brasileiro. Tal conflito pode ser notado até hoje entre os espíritas, expressando-se numa

infinidade de matizes que vão da apologia irredutível a um espiritismo totalmente laico

à defesa ferrenha de um espiritismo religioso, cristão e fundamentado na Bíblia.

No que tange aos círculos acadêmicos, o espiritismo, que começa a ser investigado

dentro das Ciências Sociais na década de 60, passou cerca de 20 anos praticamente à

margem da produção científica. Segundo levantamento realizado pelo historiador

brasileiro Marcos Alexandre Capellari, de 1961 a 1981, apenas uma dissertação e um

livro científico sobre o espiritismo foram publicados no país7. Já nos 20 anos seguintes,

mais de 23 obras, entre teses, dissertações e livros, foram publicadas a respeito do tema.

A “explosão” inicial, nos anos 80, quando saíram seis trabalhos, pode ser atribuída,

segundo Capellari, a um “crescimento geral das pesquisas sobre religiões8”. Já o

incremento significativo do número de pesquisas na década de 90 pode ser

compreendido como reflexo, na Academia, do início de um amplo movimento de

inserção do espiritismo na mídia e na literatura brasileiras.

Segundo a antropóloga brasileira Sandra Jaqueline Stoll, “num momento em que a

inserção na mídia, em especial a televisão, se destaca como fator de divulgação

doutrinária, constituindo um novo campo de disputa no espaço público, o Espiritismo

vem alargando sua inserção social, especialmente entre os segmentos da classe média,

por meio do investimento no campo literário9”. Essa ampliação das áreas de influência

do espiritismo no Brasil, bem como de sua aceitação crescente como alternativa

espiritual complementar e não necessariamente excludente de uma identidade religiosa

7 CAPELLARI, Marcos Alexandre. Sob o olhar da razão: as religiões não católicas e as ciências humanas no Brasil (1900 -2000), São Paulo, USP:2002 (Dissertação de Mestrado em História Social), pp. 161 e 206 em diante.8 Idem, ibidem. p. 171.9 STOLL, Sandra Jacqueline. “Narrativas biográficas: a construção da identidade espírita no Brasil e sua fragmentação”, in Estudos Avançados, São Paulo, v. 52, p. 181-199, 2004.

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principal10, suscitou novas questões, impôs releituras e revisitações aos pesquisadores

que se debruçaram sobre o espiritismo nos últimos anos.

Assim, dedicamo-nos no primeiro capítulo a uma discussão sobre o espiritismo.

Pautados principalmente pela análise feita por Incontri em sua tese, procuramos

reconstruir o cenário particular que, no campo das práticas e das idéias, vigorava na

Europa do século XIX, com o objetivo de evidenciar a forma pela qual o espiritismo é

ao mesmo tempo profundamente influenciado por certos elementos daquele contexto e

se propõe a superar as limitações epistemológicas e os condicionamentos ideológicos do

pensamento então dominante. Reservamos ainda, para o fim do capítulo, uma análise a

respeito da chegada e dos primeiros passos do espiritismo no Brasil, quando já se

podem entrever marcas importantes do processo de adaptação cultural aqui discutido.

Já o segundo capítulo é voltado para a análise da figura de Bezerra de Menezes,

enfocando a legitimidade social que conquistou gradativamente e em diversos campos

ao longo de sua trajetória como médico e político. Legitimidade essa que fez dele tanto

um importante mediador dentro das disputas intestinas características do movimento

espírita brasileiro em fins do século XIX, quanto um eficiente propagador da doutrina

em todo o país. É nesse capítulo também que discutimos o conceito de habitus utilizado

por Lewgoy, delimitando-o claramente para explicitar que tipo de influência exerceu

Menezes sobre o espiritismo que lhe sucedeu.

O terceiro capítulo, por fim, procura contextualizar o jornal O País no âmbito da

imprensa brasileira e das discussões republicano-abolicionistas que tomavam conta dos

periódicos nos últimos anos antes da transição entre Império e República. Procuramos

enfatizar a importância d’O País naquele cenário, explicitando elementos distintivos do

jornal, como tiragem, circulação e orientação editorial, além de mostrar o modo

favorável por meio do qual a coluna O Espiritismo – Estudos Filosóficos se inseria nas

páginas do periódico. Concluímos o capítulo com uma análise textual do discurso

empregado nos dois primeiros anos de veiculação da coluna, no qual, como procuramos

10 Lewgoy destaca entre os fatores que favorecem a difusão do espiritismo o oferecimento, por parte das casas espíritas, de diversos serviços sem qualquer vinculação com a obrigatoriedade de assumir o beneficiado a identidade espírita, tampouco de abandonar aquela que já possui. (Cf. LEWGOY, Bernardo. Op. Cit.)

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demonstrar, se evidenciam concretamente certas marcas de elementos do habitus

católico no estilo discursivo de Bezerra.

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O espiritismo: da França para o Brasil

1) Antecedentes históricos

O espiritismo, aqui compreendido como a corrente de pensamento sistematizada na

segunda metade do século XIX pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail,

surge num momento conturbado da história das sociedades européias, que esboçamos

apenas em linhas gerais neste sub-capítulo, visando a evidenciar de que forma algumas

idéias e eventos marcantes desse período fomentaram as condições propícias ao

aparecimento do espiritismo naquele contexto.

Na transição do século XVIII para o XIX, a Europa se vê em meio ao advento de “três

revoluções que contribuíram decisivamente para o surgimento (...) [de uma] nova forma

de organização social11”: o Iluminismo, avesso ao absolutismo político, ao dogmatismo

religioso e ao imobilismo social; a Revolução Francesa, consolidação no campo social

dos ideais burgueses, humanistas e anti-clericais; e a Revolução Industrial, forte

propulsora do desenvolvimento técnico-científico e, por tabela, do modo de produção

capitalista. Juntas elas alteraram decisivamente o panorama político, econômico e

cultural em vigor até o século XVIII.

O Iluminismo começa a tomar forma, como “espírito novo, que questionava a

intolerância religiosa, os privilégios da nobreza, e o absolutismo de direito divino dos

reis e incentivava o conhecimento científico e filosófico12” notadamente na Holanda,

ainda no século XVII, graças ao ambiente de liberdade e estímulo ao comércio,

característico dos países calvinistas. Seus ideais, que deslocavam o centro das atenções

humanas de Deus para si mesmo13, imbuindo de um poder quase ilimitado a razão

humana, que deveria ser o móvel do progresso dos povos, da liberdade individual e do

domínio sobre a natureza, eram a própria teorização dos anseios da ascendente

burguesia. Os burgueses, já à época, formavam “a classe rica e culta que chegou a essa

posição por seus méritos e trabalho14”. Apesar disso, a influência crescente que

11 SIMÕES, Pedro & FEITAL, Renata. “A ‘questão social’ e suas alternativas”, in Em torno de Rivail. 1ª ed. Bragança Paulista: Lachâtre, 2004, p. 164.12 CÁCERES, Florival. História Geral. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 1996, p. 250.13 Apesar disso, reitera Cáceres (1996:251), “a maior parte dos iluminista era deísta, isto é, negava toda revelação divina (...) entretanto (...) acreditavam na existência de um ser supremo, ou um Deus, sem atributos intelectuais ou pessoais...” 14 CÁCERES, Florival. Op. Cit. 250.

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exerciam nos campos cultural e econômico não estava em consonância com seus

direitos, nem com a legitimidade social que possuíam. Cáceres afirma que:

Na maioria dos países europeus, ela [a burguesia] não tinha o prestígio social correspondente. Perante a justiça, os burgueses não gozavam de nenhum privilégio, sendo menosprezados pelos clérigos e nobres e tratados como qualquer camponês pobre e ignorante. 15

Os pensadores iluministas, por sua vez, avessos que eram ao absolutismo, ao monopólio

estatal e a toda forma de cerceamento da atividade intelectual, acabavam contribuindo

para legitimar socialmente as aspirações burguesas. Graças à apologia que faziam de

uma visão de mundo bastante peculiar à burguesia, os iluministas foram responsáveis

por emprestar-lhe um caráter de universalidade e primazia sobre outras perspectivas de

compreensão do real. Segundo Cáceres, “por meio dessas idéias, os burgueses

transformaram seus interesses particulares em interesses universais, pois liberdade e

igualdade jurídica também eram reivindicações populares naquela época de governos

absolutistas”.

Foi dessa forma que os ideais burgueses, sistematizados no pensamento iluminista,

ganharam espaço e força suficientes para pouco a pouco derrubarem a mentalidade que

dava suporte às aristocracias européias. Nesse sentido, “o modelo clássico da revolução

burguesa por seu alcance no mundo ocidental e por sua radicalidade16” costuma ser

apontado como a Revolução Francesa. Através dela, os anseios anti-absolutistas,

liberais e igualitários da burguesia saíram do mundo das idéias para o plano concreto

das ações e práticas nos terreno social, político e econômico. Assim resumem Simões e

Feital as transformações:

A nova sociedade que se formava, com a ultrapassagem do Antigo regime, possibilita o rompimento com a estrutura hierarquizada e funda sociedade de classes, possibilitando, segundo o pensamento liberal, a mobilidade social, na medida em que todos são cidadãos e, por isso, têm direitos de cidadania. 17

Numa análise comparativa do processo revolucionário desencadeado na França, Cáceres

acrescenta:

15 CÁCERES, Florival. Op. Cit., p. 250.16 Idem, Ibidem, p. 28217 SIMÕES, Pedro & FEITAL, Renata. Op. Cit. p. 165.

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As revoluções inglesas do século XVII, por exemplo, ficaram limitadas à Inglaterra, foram menos violentas, mantiveram a monarquia e levaram ao poder uma parcela da burguesia e da nobreza ligada aos interesses comerciais. (...) O movimento francês (...) foi mais radical porque a burguesia, liderando as massas populares, derrubou o absolutismo, acabou com os privilégios sociais do clero e da nobreza, tomou o poder político e implantou a igualdade de todos perante a lei, pondo fim aos privilégios de nascimento (...) A burguesia apossou-se do poder político e criou as condições para o desenvolvimento do capitalismo18.

Todo esse abalo causado na estrutura social que vigorara por séculos na Europa não só

foi profundamente influenciado pelos ideais burgueses/iluministas como também

fomentou novas idéias inspiradas nos valores da burguesia. O laicismo e o humanismo

iluministas, que colocavam em xeque a visão de mundo teocêntrica e baseada na fé,

suscitavam no homem um sentimento de profunda confiança em sua capacidade de agir

sobre o mundo, transformando-o para melhor e contribuindo para o “progresso” em

todas as dimensões. Os atores das transformações sociais, das decisões políticas e das

inovações culturais não seriam mais escolhidos pelo berço, pela linhagem ou por

casamentos arranjados, mas sim, pelo menos era o que preconizava a ideologia

burguesa, em função dos méritos individuais, dos esforços que os indivíduos se

mostrassem dispostos a empreender com vistas à própria ascensão social. Noutras

palavras, rompe-se com o estatismo que perpassava todos os campos das relações

sociais durante o Antigo Regime, atribuindo lugar certo para cada pessoa na sociedade,

em função de sua classe, para, ao menos em tese, acenar-se com a possibilidade de que

todos os indivíduos dispusessem de seus próprios destinos. Essa capacidade auto-

emancipadora que a ideologia burguesa atribuía a todos os homens foi, como explica

Cáceres, um forte elemento propagador de seus princípios por todas as camadas sociais

das sociedades européias:

Esse pensamento ajudou a burguesia revolucionária a conquistar apoio dos oprimidos em sua luta contra o poder sem limites do rei e os privilégios da nobreza na Europa (...) As idéias de liberdade, do direito inalienável de propriedade, de igualdade de todos perante a lei e outras ajudaram a construir o mundo burguês. 19

A supervalorização do potencial transformador humano, que tem por conseqüência uma

confiança extremada em um futuro melhor para a humanidade, resulta num conceito

presente de forma mais ou menos explícita em praticamente todas as correntes de

pensamento surgidas durante o século XIX: o evolucionismo. Incontri afirma que “o

evolucionismo é a idéia que explica e permeia todo o século XIX20”, esteja ele assentado 18 CÁCERES, Florival. Op. Cit, p. 282.19 Idem, Ibidem, p. 25120 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004, p. 42

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numa perspectiva materialista, a exemplo dos pensamentos marxista e comtiano21, ou

num viés espiritualista, como se pode depreender das obras de Hegel e Spencer22.

Abbagnano, ao comentar o evolucionismo, afirma que “a evolução é um progresso e,

além do mais, um progresso necessário que, no que se refere ao homem, terminará só

com ‘a maior perfeição e a mais completa felicidade’.23”.

Assim, para citar apenas alguns exemplos de como o evolucionismo se fazia presente de

forma concreta nos sistemas desenvolvidos pelos principais pensadores da época, para

Marx24 o fim a que a humanidade deveria aspirar seria a emersão do homem social, com

a substituição do modo de produção capitalista pelo comunista, enquanto para Comte25,

o estado positivo seria o cume do progresso do homem, individualmente, e da sociedade

como um todo, sobrepondo-se às fases teológica e metafísica; já para Hegel, o fim

último do movimento dialético a que se acha submetida a realidade, identificada com o

Espírito, é a encarnação do Espírito Absoluto numa sociedade plenamente desenvolvida.

Incontri sintetiza da seguinte forma a inserção do evolucionismo e seu significado no

panorama do pensamento europeu pós-Iluminista:

O que devemos reter aqui é que esta concepção introduz definitivamente na cosmovisão humana um devir permanente, uma dinâmica que rompe com o universo estático, pronto e, até certo ponto, abalado pela tragédia de uma queda inicial, proposta anteriormente pelas religiões cristãs. O mundo não é mais redimível, ele está num processo. As noções de movimento, historicidade, progresso e encadeamento impregnam-se na cultura, dando-lhe novo sentido. Qualquer idéia de evolução — mesmo a esvaziada de progresso, como se pretende o evolucionismo biológico do nosso século — é sempre uma idéia de significado, de inteligibilidade, portanto, um conceito racional que a teoria propõe, mas que pretende encontrar apoio na realidade26.

É em meio a esse “elã evolucionista [que] se delineia no século XVIII27”, mas se

consolida definitivamente apenas na próxima centúria, que tem lugar a terceira e

decisiva revolução reordenadora do panorama sócio-econômico e cultural da Europa no

século XIX: a Revolução Industrial. Profundamente confiante que se via em sua

21 INCONTRI, Dora. Para Entender Allan Kardec, Bragança Paulista: Lachâtre, 2004, p. 51.22 Idem, Ibidem, p. 51. 23 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Mestre Jou, 1986, p. 376 apud Idem, ibidem.24 MARX, Karl. Los fundamentos de la critica de la economia politica (Grundrisse...). Vol. 2 Trad. esp., Madrid: Comunicación, 1972. p. 227.25 COMTE, Auguste. Discurso Preliminar sobre o Espírito Positivo. Trad. Renato Barboza Rodrigues Pereira [on-line] (http://www.culturabrasil.org/espiritopositivo.htm#4)26 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 45-4627 Idem, Ibidem. p. 42

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capacidade de intervenção construtiva sobre o real, o homem empenhava-se em ampliar

cada vez mais sua habilidade para fazê-lo. O problema é que, já em princípios dos anos

de 1800, a revolução popular prometida pelo levante francês, teoricamente fomentadora

de condições universalmente igualitárias para que todas as classes pudessem trabalhar e

contribuir para o progresso, achava-se bem distante das condições reais oferecidas pela

sociedade burguesa. Dotados que eram, desde antes da queda do Antigo Regime, do

poderio econômico, os burgueses passaram, com a Revolução, à condição de detentores

também dos meios de produção (terras, matéria-prima, maquinário), promovendo

rapidamente o advento do modo de produção capitalista vigente até os dias de hoje. O

mercantilismo, que já vinha gradativamente sobrepujando o escambo feudal desde o

século XVI, domina a economia européia a partir de fins do século XVIII, e, somado à

crescente divisão do trabalho, à automação e à orientação da produção para a venda,

assumiu os contornos do capitalismo propriamente dito.

Com a Revolução Industrial, que substituiu o artesanato e a manufatura pela fábrica e

pela produção em série, a burguesia passa a concentrar suas atenções com particular

interesse no conhecimento científico e em seu “resultado prático”, nas palavras de

Incontri28: a tecnologia. Afinal, é por meio dela que essa classe se vê capaz de ampliar

seus lucros, de alargar seu domínio econômico, que termina por se estender também

para a esfera social. Máquinas mais eficientes implicam menos gastos com operários e

mais celeridade na produção, representando assim, um incontestável foco dos interesses

burgueses. E para atingi-lo, só com investimento pesado em ciência e tecnologia.

O interesse profundo devotado pela classe dominante ao desenvolvimento do

conhecimento científico teve como reflexo, no campo das idéias vigentes, um outro

conceito que, organicamente vinculado ao evolucionismo, permeou o pensamento

europeu durante o século XIX: o cientificismo. Segundo Incontri, “estreitamente

relacionada à idéia evolucionista está a crença irrestrita no poder da ciência de explicar

a realidade, para transformá-la. Por diversos nexos ligam-se as duas concepções — a

evolucionista e cientificista — tornando-as interdependentes29”.

28 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 4729 Idem, Ibidem.

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Assim, complementando a crença no progresso da humanidade, que implicava no mais

das vezes uma noção de previsibilidade da história, segundo leis consideradas

científicas30, estava o cientificismo propriamente dito, que, alimentado tanto pelos

interesses burgueses diretos – o incremento dos lucros – quanto pelos indiretos – a forte

indisposição com a Igreja Católica Romana, representante maior de uma postura

dogmática e anticientífica – atribuía ao conhecimento científico uma capacidade quase

absoluta de solucionar todos os problemas da humanidade. Como dirá o positivista

Ernest Renan, em meados do século XIX, representante convicto da crença cientificista:

“em nome do céu, concordai comigo que somente a ciência pode dar ao homem

verdades vitais, sem as quais a vida não seria suportável e a sociedade não seria

possível31”.

Essa perspectiva é sistematizada de formas bastante diversificadas ao longo daquele

século, ora assumindo características essencialmente conservadoras, como em Comte,

ora concorrendo para a elaboração de propostas declaradamente subversoras da ordem

estabelecida, como se pode depreender de Marx e Engels. Em todo caso, há um

elemento que parece comum à maior parte das doutrinas que à época bebiam da

concepção evolucionista-cientificista, influenciado também pelos pressupostos

iluministas: o materialismo. Como explica Nadja do Couto Valle:

O materialismo é um fenômeno recorrente na história do pensamento, remontando ao atomismo e epicurismo gregos, ao averroísmo medieval e ao mecanicismo moderno, mas atinge uma culminância no século XIX como movimento filosófico, e passa, no século XX, a movimento cultural de amplas proporções. É uma doutrina segundo a qual não existe outra substância no universo além da matéria, opondo-se ao espiritualismo, que tem no espírito a substância de toda a realidade. Materialismo e espiritualismo são doutrinas ontológicas sobre a natureza do ser ou da realidade. O materialismo rejeita a existência da alma e de Deus, recusa-se a considerar a especificidade do psíquico, atribuindo a existência e produção de uma idéia a uma reação físico-química do cérebro. 32

Confiança exacerbada no homem e na ciência, aversão ao imobilismo nas dimensões

cultural e social, repúdio ao dogmatismo religioso, ao absolutismo político e às

limitações impostas à liberdade de pensamento pela Igreja Católica durante séculos.

Todos esses fatores somados redundam numa aversão quase generalizada entre os

30 Idem, Para Entender Allan Kardec, p. 5131 RENAN, Ernest. L’avenir de la science – pensées de 1848. Paris, Calmann-Lévy, 1890, p. 38. apud INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 4832 VALLE, Nadja do Couto. “Materialismo e espiritualismo na filosofia: sínteses e culminâncias”, in Em torno de Rivail. 1ª ed. Bragança Paulista: Lachâtre, 2004, p. 208.

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pensadores da época à religião, sinônimo que era, naquele contexto, de Igreja Católica.

O afastar-se da Igreja, como explica Réné Rémond, que propicia sobremodo o

desenvolvimento das diversas posturas materialistas, é um movimento que remonta a

causas variadas de natureza social, cultural, política e ideológica, e se vincula

diretamente ao ideal “antiprogressista” que representava o catolicismo romano.

As tentativas de reaproximação entre a Igreja e o mundo moderno, os esforços para dissipar o mal-entendido ou para reconciliar os adversários resultam quase sempre em fracassos, que terminam por reforçar parte a parte os extremos, na sua intransigência. A Igreja condena inapelavelmente os erros do mundo moderno e o que se concebe ou se realiza de novo em quase todos os domínios é levado a se fazer fora de toda influência religiosa, quando não deliberadamente em sua oposição: sistemas filosóficos, teorias científicas, regimes políticos, forças sociais, instituições de toda sorte. O divórcio parece, já na segunda metade do século XIX, irrevogável entre dois universos, duas sociedades, duas mentalidades. A Igreja católica representa o passado, a tradição, a autoridade, o dogma, a coação. A razão, a liberdade, a ciência, o progresso, o futuro, a justiça estão no campo oposto. A vitória deste deve ser a derrota das forças conservadoras e reacionárias indissoluvelmente ligadas à religião33.

O domínio sócio-econômico burguês, e suas conseqüências, aqui já discutidas, no

campo das idéias, forçam o rompimento das amarras tradicionalistas com que a Igreja

procurava manter o status quo medieval durante a Idade Moderna. Mais do que isso,

esses fatores estimulam a retomada do sentimento anti-clerical, já conhecido em sua

forma organizada desde a Reforma Protestante, e de uma postura que, pretensamente

livre de toda e qualquer influência metafísica, decreta o fim da religião e de todo

fundamento transcendente da realidade. Conceitos como Deus, alma e transcendência

humana, pois considerados ultrapassados representantes de um passado a ser superado,

perdem lugar para um materialismo teleológico que ora preconiza a existência de uma

ordem natural, universal e irresistivelmente progressiva, alheia a qualquer divindade

(Comte), ora desconstrói a própria noção de “natureza humana”34, em detrimento de um

movimento irrefreável de luta entre classes sociais que condiciona a consciência dos

homens (Marx), ou ainda, como explica Valle, pode trabalhar com um conceito de

Espírito que termina por fundamentar visões de mundo materialistas (Hegel):

A experiência sensitiva e o método científico, alçados à categoria de critério de verdade, fundamentaram uma interpretação materialista do real, mas foi Hegel quem lhe deu o impulso decisivo ao eliminar a dicotomia entre espírito e matéria, a ao resolver toda a

33 RÉMOND, Réné. Le XIXe siècle. Paris, Seuil, 1974, p.200 apud INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 52/53.34 Essa é uma das grandes críticas que Marx dirige a Feuerbach, em suas Teses contra Feuerbach (1845), a de que faltou-lhe coragem para chegar à desconstrução da “natureza humana” ao fazer a crítica das religiões.

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realidade na história, esta tomada como realidade absoluta. Pode-se dizer então que o idealismo foi ‘convertido’ em materialismo por alguns dos discípulos do próprio Hegel, da esquerda, que proclamaram uma ‘reformulação’, assumindo uma concepção materialista da história, e com ela, de toda a realidade. Morreu a religião – a cristã ou qualquer outra – como adoração a Deus, e nasceu a nova religião como amor do homem35.

A despeito da existência também de “vários espiritualismos” à época no campo

filosófico, como o “de Ravaisson, Renouvier, Lachelier, Boutrox, Blondel, Maritain,

Lotze, Wundt, Dilthey (...), com nuanças mais ou menos sutis36”, eles, ainda que via de

regra evolucionistas, tendem ao conservadorismo sociopolítico e, o que os assemelha

aos vieses materialistas, a uma dissolução do homem. Particularmente, em perspectivas

panteístas. É Hegel, por exemplo, que associa o “Espírito” à “vida moral de um povo”,

colocando sua realização na “multiplicidade das consciências existentes” 37:

A substância do indivíduo, o próprio espírito do mundo, teve a paciência de percorrer essas formas na longa extensão do tempo e de empreender o gigantesco trabalho da história mundial, plasmando nela, em cada forma, na medida de sua capacidade, a totalidade de seu conteúdo; e nem poderia o espírito do mundo com menor trabalho obter a consciência sobre si mesmo. 38

Ou o idealista alemão Fichte, que, um pouco antes, fazendo uma releitura de Kant,

desenvolve o conceito do Eu absoluto. Cidade assim o avalia em contraposição a Kant,

a ao também idealista Schelling:

Na verdade, para Fichte, o Eu é um divino princípio universal, panteístico, que integra, ou melhor, identifica em seu devir, como sua parte inconsciente, mas tendendo a conscientificar-se, o não-Eu,. ou seja o nómeno concebido por seu Mestre Kant como diferente do Espírito, a ele inacessível, por ele revestido da aparência eno-ménica. A meditação de Schelling não vai até esta identificação: para ele Eu e não-Eu procedem, do Absoluto, que por detrás deles fica imóvel, por intermédio deles se ocultando e revelando. 39

Poderíamos citar ainda o espiritualismo absoluto de Ravaisson40 ou o peculiar Eu

lachelierano, que “se pinta e distinge-se, exalta-se e deprime-se; de contornos flexíveis

35 VALLE, Nadja do Couto. “Materialismo e espiritualismo na filosofia: sínteses e culminâncias”, in Em torno de Rivail. 1ª ed. Bragança Paulista: Lachâtre, 2004, p. 208.36 Idem, Ibidem, p. 207.37 HEGEL, Georg W. Die Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1985, ps. 324, 325, 329 apud INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 52/53.38 HEGEL, Georg W. Prefácio da Fenomenologia do Espírito. Trad. Grupo Acrópolis [on-line] http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/filosofia/livros/prefenom.htm Acessado em: 07/12/200639 CIDADE, Hernani. “O homem cartesiano e o homem kantiano”, in Revista da Faculdade de Letras do Porto. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1966, pag. 51 [on-line] http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo491.doc Acessado em: 08/12/200640 LALANDE, André. Vocabulario técnico y crítico de la filosofía, Librería El Ateneo, Buenos Aires 1953 Tomo 1 [on-line] http://www.filosofia.org/enc/vtc/espiritu.htm Acessado em: 08/12/2006.

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conquista e perde fronteiras dos seus domínios41”, invariavelmente convergentes, ao lado de

Hegel e Fichte, para uma dissolução do homem como ser individual e autônomo em Todos

Universais, consciências coletivas e conceitos correlatos. Tais leituras da realidade,

possuidoras que eram de um fundamento espiritualista, descambam, segundo Incontri,

no mesmo tipo de conseqüências que se podem depreender das leituras materialistas do

real propostas por Marx e Freud, apenas para citar dois dos principais expoentes do

materialismo no século XIX, que descentram o homem dotado de racionalidade e

consciência autônomas, em detrimento, respectivamente, de uma consciência coletiva,

forjada na luta de classes e por ela condicionada42, e de um inconsciente de desejos e

pulsões inacessível ao controle da razão43:

Vê-se pois que seja pelo inchaço irracional do espírito ou pela abolição pura e simples dessa categoria, o homem no século XIX, começa a se esvaziar de uma essência individual, restando-lhe uma dimensão meramente social e, portanto, coletiva. Ainda a dialética marxista guarda um lugar de emancipação humana e uma possibilidade de transcendência social. Mas o encadeamento das relações produtivas, a determinação de todos os fatores humanos — religião, arte, cultura, filosofia — pela simples infra-estrutura econômica enlaçam o ser individual num determinismo histórico e num esvair-se de todas as suas outras possíveis dimensões. 44

2) O Espiritismo

É nesse panorama que surge o espiritismo, aqui reitero45, compreendido como a corrente

de pensamento sistematizada pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail,

sob o pseudônimo de Allan Kardec. A respeito do autor, Giumbelli destaca as seguintes

peculiaridades:

Rivail formou-se como educador e está longe da imagem que, geralmente, temos dos fundadores religiosos. Nenhum grande acontecimento místico marca sua vida. Além disso, ele aproximou-se dos fenômenos associados ao espiritismo com uma curiosidade cética e insistiu em sustentar as credenciais científicas da doutrina a que chamou espiritismo46.

41 COIMBRA, Leonardo. “O problema da Indução”, in Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, nº. 1/2, 1920, pag. 142 MARX, Karl. A Ideologia Alemã . São Paulo: Hucitec, 1986, p. 51.43 FERNANDÉZ, Myriam Rodrigues. A prática da psicanálise lacaniana em Centros de Saúde: psicanálise e saúde pública , [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001, p. 162.44 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 60.45 A insistência em delimitar dessa forma o objeto espiritismo deve-se à polissemia que esse termo assumiu desde que as idéias espíritas se disseminaram no Brasil. Mesmo dentro do meio acadêmico brasileiro, como discutiremos rapidamente a seguir, podem-se notar fortes discrepâncias a esse respeito. Assim, julgamos oportuno reforçar exatamente o a que nos referimos quando nos propomos a falar sobre o tema.46 KANASHIRO, Marta. A interação dos discursos científico e religioso, Com Ciência – Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, Atualizado em 10/07/2004, Disponível em

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Assim, todo o contexto histórico esboçado até agora fornecerá o pano de fundo

adequado para que se evidenciem as características essenciais dessa doutrina, que surge,

pelo menos em sua forma codificada47, a 18 de abril de 1857, data do lançamento de O

livro dos Espíritos. Trata-se da obra fundamental do espiritismo, a primeira das

chamadas obras básicas da doutrina, a que se juntam ainda O livro dos médiuns ou

Guia dos médiuns e dos evocadores (1861), O Evangelho segundo o Espiritismo (1863),

O céu e o inferno ou A justiça divina segundo o Espiritismo (1865) e A Gênese, os

milagres e as predições segundo o Espiritismo (1867).

Uma particularidade do espiritismo apontada por Incontri, e que está diretamente ligada

à proposta epistemológica singular que ele sugere, evidencia-se na própria metodologia

de elaboração de O livro dos Espíritos. Sem ser o resultado puro e simples das

observações empreendidas por Kardec em relação aos chamados fenômenos espíritas ou

mediúnicos, amplamente disseminados nos Estados Unidos e na Europa a partir de

meados do século XIX48, o livro é o resultado de diálogos – e é nesse formato que ele se

constitui, o de 1018 perguntas e respostas – estabelecidos entre ele e o que considerava

tratarem-se de espíritos – almas de pessoas falecidas – expressando-se através de “mais

de dez médiuns [que] prestaram concurso para esse trabalho49”.

A mediunidade é compreendida nesse âmbito como mecanismo natural de comunicação

entre homens e Espíritos, que ocorreria de forma espontânea desde as mais remotas

épocas da humanidade, fosse através da fala, da escrita ou de efeitos físicos, e para cuja

realização todos os homens seriam capacitados em maior ou menor grau50. Segundo

Incontri, “um dado interessante é que a maioria das respostas de O livro dos Espíritos

http://www.comciencia.br/200407/reportagens/06.shtml, Acessado em 20/11/2006.47 “O Espiritismo é uma doutrina que, segundo seus adeptos, foi codificada — o que vale dizer, organizada, sistematizada, porém não inventada — por Allan Kardec”. (INCONTRI, 2004a, p. 17) 48 O jornal francês L’Illustration, em 14 de maio de 1853, chega a declarar a esse respeito que “a Europa inteira, que digo, a Europa? Nesse momento, o mundo inteiro tem o espírito perturbado por uma experiência que consiste em fazer girar as mesas. Galileu fez menos barulho quando provou que era a terra que girava em torno do sol”. (INCONTRI, Op. Cit, 2004a, p. 28)49 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Trad. de Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro, FEB, 2005, p. 33050 Kardec sintetiza da seguinte forma o ser médium: “Todo aquele que sente, num grau qualquer, a influência dos Espíritos é, por esse fato, médium. Essa faculdade é inerente ao homem; não constitui, portanto, um privilégio exclusivo. Por isso mesmo, raras são as pessoas que dela não possuam alguns

rudimentos. Pode, pois, dizer-se que todos são, mais ou menos, médiuns. Todavia, usualmente, assim só se qualificam aqueles em quem a faculdade mediúnica se mostra bem caracterizada e se traduz por efeitos patentes, de certa intensidade, o que então depende de uma organização mais ou menos sensitiva. (KARDEC, Allan. O livro dos médiuns, Rio de Janeiro, FEB, 1995, p. 203).

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foram obtidas por intermédio das meninas Boudin, de 14 e 16 anos51”, às quais se

somou, de acordo com Kardec, no processo de revisão final da primeira edição da obra,

a também médium francesa Celine Japhet, de 18 anos52. Kardec mantinha contato,

segundo se pode depreender da Revista Espírita, periódico mensal que ele publicou de

1º de janeiro de 1858 até sua morte, em março de 1869, com grupos espíritas de dezenas

de países, em quatro continentes. Por meio desses contatos, e submetendo novos

questionamentos de ordem filosófica, científica, moral, religiosa aos grupos mediúnicos

com que se comunicava, Kardec reelaborou O livro dos Espíritos, expandindo os 550

itens da primeira edição para os atuais 1018, quando do lançamento da segunda e quase

definitiva edição em 30 de março de 186053.

Ressalto inicialmente a particularidade da metodologia de elaboração de O livro dos

Espíritos por julgá-la emblemática para a compreensão da visão de mundo proposta nas

obras de Kardec, que constituem até hoje, apesar do aspecto multifacetado e por vezes

contraditório que assumiu o espiritismo ao longo do século XX, importante referencial

para a maioria daqueles que se afirmam espíritas.

Bebendo da herança burguesa-iluminista, com seus pressupostos racionalistas,

evolucionistas e cientificistas, o espiritismo incorpora fortemente esses três referenciais

em seu corpo de idéias. Dísticos como “Fé inabalável é só aquela que pode encarar a

razão face a face em todas as épocas da humanidade54”, “Nascer, morrer, renascer ainda

e progredir sempre, tal é a Lei55” e “Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo

jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em

erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto56”, evidenciam o valor

atribuído por Kardec à racionalidade, compreendida como variável “imanente em todos

seres humanos, que está capacitada a julgar por si mesma fatos e teorias57” e à ciência, a 51 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 6252 KARDEC, Allan. Op. Cit, p. 330.53 Segundo notícia veiculada no site da Federação Espírita Brasileira, houve ainda “alguns acréscimos, supressões e modificações feitos pelo próprio Allan Kardec: na 4a edição, de 1860; na 5a edição, de 1861; na 6a edição, de 1862; na 10a edição, de 1863; e na 12a edição, de 1864” (Notícia publicada em 28/11/2006 e acessada em 14/12/2006. Disponível em: http://www.febnet.org.br/file/2621.doc)54 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o Espiritismo, Rio de Janeiro, FEB, 1996, Frontispício.55 Frase esculpida em 1870 no túmulo de Allan Kardec, de autoria desconhecida, apesar de freqüentemente atribuída ao codificador do espiritismo. Tal fenômeno se deve, muito provavelmente, à síntese que tal máxima representa da influência evolucionista no pensamento kardequiano.56 KARDEC, Allan. A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, Rio de Janeiro, FEB, 1995, p. 44/45.57 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, p. 63

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que ele denomina de “alavanca da inteligência humana” que “revela as leis do mundo

material58”, bem como deixam transparecer a otimismo confiante do educador francês

na evolução humana e social.

Só que essas máximas permitem entrever também um outro aspecto da proposta

espírita, que se distancia sensivelmente do pensamento dominante nos círculos

burgueses de então. Anti-clerical, sem ser laico, espiritualista, sem incidir no panteísmo,

racionalista, sem descurar de outras possibilidades de se compreender o real que não a

mediada pela razão pura, e cientificista, sem se furtar de fazer uma crítica da ciência, o

espiritismo é decisivamente influenciado pelas idéias em voga à época e, ao mesmo

tempo, critica-as em aspectos que julga apriorísticos e/ou inconsistentes, nomeadamente

o materialismo e o dogmatismo científico, com a declarada pretensão de superá-los.

É assim que Kardec se propõe a oferecer uma fundamentação consistente a conceitos

essenciais à tradição classificada por Incontri como a “mais representativa, levando-se

em conta os últimos dois milênios59” entre as tradições ocidentais. Trata-se de uma linha

de pensamento que remonta ao espiritualismo moral de Sócrates/Platão, passa por uma

leitura libertária do papel exercido por Jesus de Nazaré nos campos social e espiritual,

ganha contornos pedagógicos com Jan Amos Comenius, o pai da pedagogia moderna, é

enriquecida com os conceitos rousseaunianos de religiosidade natural e homem

essencialmente bom, recebe aplicação prática mediante a pedagogia do amor de Johann

Heinrich Pestalozzi, e desemboca em Denizard Rivail, educador por vocação, discípulo

de Pestalozzi e sistematizador do espiritismo.

Toda essa tradição assenta-se sobre uma ontologia particular, que entende o homem

antes de tudo como alma imortal, individualidade inteligente que transcende a morte do

corpo, independente que é dele, e traz consigo o potencial para realizar-se e para

transformar o meio à sua volta60. E foi justamente pela importância desse conceito para

a tradição a que se filiara Kardec, então Rivail, ao longo de 30 anos de intensa atividade

didática e pedagógica na França, que, tão logo se deparou com os fenômenos das mesas

girantes e da escrita coletiva por meio de lápis fincados em cestos de vime, lançou-se

com afinco a sua investigação, freqüentando regularmente, durante os anos de 1855 e

58 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o Espiritismo, Ed. Cit, p. 57. 59 INCONTRI, Dora. Op. Cit, 2004a, pp. 22/2360 Idem, Ibidem, p. 110

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1856, algumas das reuniões familiares em que comumente produziam-se tais

fenômenos. Assim descreve Kardec seu interesse pelo tema e sua atitude diante das

possibilidades que a novidade lhe suscitava na mente:

Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método experimental; nunca elaborei teorias preconcebidas; observava cuidadosamente, comparava, deduzia conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos. Compreendi, antes de tudo, a gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma, toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar com a maior circunspeção e não levianamente; ser positivista e não idealista, para não me deixar iludir. 61

Por meio da investigação que pessoalmente conduziu, e secundado pela opinião de

pesquisadores renomados à época62, Kardec concluiu que certas ocorrências ligadas a

tais fenômenos, principalmente aquelas denominadas “manifestações inteligentes63”,

não poderiam explicar-se de outra forma que não pela intervenção de “inteligências que

(...) estão (...) fora da Humanidade64”, ou seja, de espíritos de pessoas que, tendo

passado pela condição humana, já não mais se achavam entre os homens. Essa

possibilidade que abraçou fez com que Kardec entrevisse na chamada fenomenologia

mediúnica a chave para dar suporte à espiritualidade humana numa época de laicismo,

cientificismo e materialismo dominantes. Conceitos-chave da referida tradição

espiritualista, como o de espírito e o de transcendência humana, poderiam e, mais do

que isso, qual defendia Kardec, deveriam ser submetidos à investigação experimental,

de forma a que pudessem gozar da legitimidade que só os fenômenos empiricamente

verificáveis possuíam naquele contexto particular. Nesse sentido, dizia Kardec que “as

ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o

método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável

61 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Ed. Cit. p. 327/328.62 Incontri esboça a seguinte relação dos “homens de ciência, que se dedicaram a estudar os chamados ‘fenômenos espíritas ou psíquicos’, aplicando metodologia experimental: William Crookes, Oliver Lodge, Gustave Geley, Alfred Russel Wallace, Friedrich Zöllner, Aleksander Aksakof, Paul Gibier, Ernesto Bozzano e Cesare Lombroso, apenas para citar alguns” (INCONTRI, 2004a, p. 19/20).63 Kardec assim resume o conceito de manifestação inteligente, em contraposição ao de manifestação física: “Para uma manifestação ser inteligente (...) basta que prove ser um ato livre e voluntário, exprimindo uma intenção, ou respondendo a um pensamento. Decerto, quando uma ventoinha se move, toda gente sabe que apenas obedece a uma impulsão mecânica: à do vento; mas, se se reconhecessem nos seus movimentos sinais de serem eles intencionais, se ela girasse (...) conforme se lhe ordenasse, forçoso seria admitir-se, não que a ventoinha era inteligente, porém, que obedecia a uma inteligência. Isso o que se deu com a mesa.” (KARDEC, O livro dos médiuns, Ed. Cit., p. 87) .64 KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Rio de Janeiro, FEB, 1995, p. 22.

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à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas65”. Por essa pretensão, Incontri

afirma ser o espiritismo um “infrator do postulado kantiano de que a razão não tem

acesso aos problemas transcendentes”, pretendendo não só o acesso da razão à

dimensão transcendental, como da própria investigação empírica. Assim, não se tratava

simplesmente de submeter o conhecimento religioso à racionalidade filosófica, de forma

a despir-lhe das “crendices e superstições”, mas de colocá-lo também em diálogo com o

próprio conhecimento científico e sua característica preocupação com o exame

experimental da realidade. Ainda a esse respeito, Lewgoy acrescenta:

O seu ideal de ciência aplicado à religião é profundamente marcado pelo positivismo: a importância transcendental do método, a ontologia naturalista, a unicidade da verdade garantida através da concordância intersubjetiva dos experimentos, a exposição didática das respostas. Nesse primeiro sentido, Kardec foi um homem das Luzes, que criou uma religião altamente relacionada com os ideais de sua época: a laicidade, o progresso e o espírito científico. Por isso, o espiritismo atraiu tanto os cientistas e literatos num primeiro momento66.

Já Pesoli faz a seguinte avaliação acerca da situação em que se colocava o espiritismo

no relacionamento entre ciência e religião:

In questo contesto, lo spiritismo poteva apparire, per chi pencolava tra fede e adesione alla scienza, più moderno delle religione rivelate e al contempo più comprensibile e popolare delle dottrine scientifiche: un giusto compromesso tra bisogno di spiritualità e di trascendente da una parte, e adeguazione alla nuova immagine della natura e del mondo dall’altra67.

Tratava-se de uma busca declarada por salvaguardar aquilo que o pedagogo considerava

o fundo de verdade que repousaria nas bases de todos os sistemas religiosos, busca essa

que facultaria “a explicação de certa ordem de fenômenos incompreendidos” até então,

destruindo-se assim “o que ainda restava do domínio do maravilhoso68” nas religiões. Se

a religião possuía uma porção da Verdade consigo, e quanto a isso Kardec não possuía

dúvidas, ela deveria evidenciar-se pelo exame experimental, como todas as “verdades”

demonstradas pela ciência. É o que explica Kardec no tópico O sobrenatural e as

religiões, de sua última obra publicada em vida, A gênese:

65 Idem, A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, Ed. Cit. p. 20.66 LEWGOY, Bernardo. Chico Xavier e a cultura popular brasileira. Centro Virtual de Antropologia, ed. 31, 2006. Disponível em: http://www.antropologia.com.br/. Acessado em: 07/11/200667 PESOLI, Fabrizio. Aspetti della ricerca scientifica sullo spiritismo in Italia (1870–1915). Tesi di Laurea in Filosofia. Milão:Università degli studi di Milano, 1999, p. 23.68 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo, Rio de Janeiro, FEB, 1995, p. 320.

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Pretender-se que o sobrenatural é o fundamento de toda religião (...) é sustentar perigosa tese. Assentar exclusivamente as verdades do Cristianismo sobre a base do maravilhoso é dar-lhe fraco alicerce, cujas pedras facilmente se soltam. (...) O Espiritismo considera de um ponto mais elevado a religião cristã; dá-lhe base mais sólida do que a dos milagres: as imutáveis leis de Deus, a que obedecem assim o princípio espiritual, como o princípio material. Essa base desafia o tempo e a Ciência, pois que o tempo e a Ciência virão sancioná-la69.

Apesar da preocupação notoriamente cientificista, que emprestava um valor bastante

especial à “Ciência” na averiguação da “Verdade”, Kardec atribuía papéis também

importantes e pouco habituais para os padrões da época à racionalidade filosófica, e

particularmente, à revelação espiritual nesse processo. Ambas deveriam entrar, ao lado

da investigação experimental, como elementos auxiliares no processo de compreensão

da realidade, de forma a evitarem-se excessos de parte a parte e de contornarem-se as

limitações inerentes a cada uma delas.

Definido o espiritismo como uma “filosofia racional sem os prejuízos do espírito de

sistema70”, por seu caráter progressivo e sempre aberto a novas descobertas, sua

dimensão filosófica baseava-se na livre reflexão realizada a partir das conclusões a que

conduzia a investigação experimental dos fenômenos. Trata-se, portanto, de uma

filosofia espiritualista, por reconhecer a preponderância de um princípio espiritual

como fundamento da realidade, e racionalista, por atribuir à razão a condição de

parâmetro válido e essencial, ainda que não único, para a compreensão do real. Segundo

Incontri, “Kardec faz o caminho inverso da escolástica medieval, que pretendia

justificar a fé pela razão e submetia a razão à fé71”, na medida em que “faz a crítica da

fé, a partir da razão72”.

Essa crítica, contudo, não se faz, e é aqui que entra um elemento de originalidade do

trato espírita sobre a questão, de forma a destituir a fé de legitimidade como método de

apreensão da realidade. Por meio da mediunidade, os espíritos têm voz para propor,

sugerir, ponderar, discutir, enfim, suscitar novas idéias, que, é bem verdade, deverão ser

referendadas, na medida do possível, pelos outros dois critérios, o racional e o empírico.

Só que, o simples fato de sugerir uma perspectiva dialógica de relação com o elemento

espiritual, transcendente, consiste numa postura bastante singular de Kardec, tanto em

69 Idem. A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, Rio de Janeiro, FEB, 1995, p. 270.70 KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Ed. Cit, p. 49.71 INCONTRI, Dora, Op. Cit., 2004b, p. 72. 72 Idem, Ibidem, p. 72.

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relação ao pensamento teológico da época, que vê esse elemento como algo sagrado,

divino e inacessível por vias ordinárias, quanto no tocante ao pensamento positivista,

que nem considera a existência dessa dimensão transcendente, nem atribui valor ao

diálogo como metodologia válida para se chegar à Verdade. Como explica Incontri:

Vê-se que ciência, filosofia e religião, encaradas numa perspectiva original, complementam-se para a obtenção de um conhecimento integrado, em que cada um desses métodos de acesso à realidade exerce um controle recíproco sobre os resultados obtidos. A doutrina espírita não se pretende portanto uma filosofia fechada, porque a revelação é contínua e democrática — qualquer um pode ter acesso a um médium — e a ciência pode obter novas facetas dos fenômenos observados. Outros desdobramentos filosóficos podem surgir a partir das bases lançadas por Kardec. (...) Trata-se de um conhecimento em constante construção. Não há a sacralidade do religioso dogmático, embora as pedras angulares postas por Kardec dentro da metodologia descrita, sejam consideradas sólidas pelos adeptos e tomadas como fundamentos para outros desenvolvimentos doutrinários73.

E é numa perspectiva relacional, dialógica, que se constrói toda a proposta espírita de

compreensão da realidade. É no diálogo entre o elemento humano e o elemento

espiritual, através da mediunidade, e por meio do diálogo entre os conhecimentos

científico, filosófico e religioso, que se constroem as verdades espíritas. Sempre com o

objetivo de superarem-se as limitações de cada um desses elementos.

Dessa forma, num sistema de pensamento que faz de homens e espíritos seres

essencialmente idênticos, separados apenas pela condição momentânea de estarem os

primeiros encarnados, ou seja, ligados a uma organização biológica, e os segundos

desencarnados, o que quer dizer desvinculados de um corpo físico, Kardec pretende

contornar a possibilidade sempre presente de a revelação espiritual conter erros,

enganos ou mentiras por meio do diálogo com a racionalidade humana. Revelação e

Razão, uma que propõe e a outra que controla, uma que suscita e a outra que avalia,

complementam-se dialogicamente, de forma que nem seja necessário desabilitar a

primeira como forma válida de acesso à Verdade, nem seja preciso limitar-se o homem

às possibilidades da segunda de atribuir sentido ao Real. Ao ter voz ativa no processo de

construção de conhecimento, a revelação passa a ter legitimidade também para filosofar,

levar à pauta matérias para discussão, lançar teorias e formular hipóteses. A respeito

dessa proposta metodológica, o pedagogo faz a seguinte ponderação:

Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os Espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a

73 INCONTRI, Dora, Op. Cit., 2004a, p. 35.

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ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal. Reconhecida desde o princípio, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por um ou alguns deles. (...) Vi logo que cada Espírito, em virtude da sua posição pessoal e de seus conhecimentos, me desvendava uma face daquele mundo, do mesmo modo que se chega a conhecer o estado de um país, interrogando habitantes seus de todas as classes, não podendo um só, individualmente, informar-nos de tudo. Compete ao observador formar o conjunto, por meio dos documentos colhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e comparados uns com outros. Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados.74 (grifos nossos)

De modo análogo, e como em toda essa valorização do método dialógico, pode-se ler o

olhar de um pedagogo75 na formulação da proposta de se pensar a realidade a partir do

diálogo entre ciência, filosofia e religião. Busca-se eliminar o conflito, então já secular,

entre ciência e religião, propondo a cada uma que se abra à crítica da outra, de forma a

permitir, a religião, o controle experimental da ciência, e esta, a abertura a uma

dimensão intuitiva e mais sensível, característica daquela. A filosofia entra nessa

metodologia tanto como elemento mediador entra as outras duas formas de

conhecimento, propiciando a articulação necessária à efetivação de diálogo tão pouco

explorado naquele contexto, quanto na condição de forma de acesso ao real que “não

pode ser deixada apenas por sua própria conta, para não virar especulação desconectada

dos fatos e das pessoas76”. Incontri avalia da seguinte forma essa pretensão de Kardec:

O controle de uma área de conhecimento sobre as outras garante um grau de confiabilidade (...) O espírito de observação científica não permite que a filosofia se perca e sistemas sem sentido e impede a fabulação religiosa, ma as religião não permite que a ciência se resseque, perca a ética, distancie-se da verdade espiritual77.

Foi essa, em linhas bem gerais, a corrente de pensamento que fundamentou em toda a

Europa, mas especialmente nos países latinos, durante a segunda metade do século XIX,

um braço de importância fundamental dentro do amplo e heterogêneo movimento

espiritualista, conhecido também como neo-espiritualista ou moderno-espiritualista,

para distinguir-se da tradição filosófica homônima. Trata-se de corrente que assumia

feições mais religiosas em certas regiões e mais científico-filosóficas em outras, mas

74 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Ed. Cit., p. 328/329.75 Incontri afirma que Kardec “como educador, tinha o espírito científico de observação empírica (...) Como educador, tinha a articulação filosófica necessária à formulação de uma doutrina, sem os excessos sistemáticos de muitas escolas” e sem perder “a conexão prática com a realidade”. Acrescenta ainda que “Como educador, tinha essa reverência religiosa diante do ser humano e da natureza das coisas” (INCONTRI, Op. Cit. 2004b, pp. 30/31).76 INCONTRI, Dora, Op. Cit. 2004b, p. 109.77 Idem, Ibidem, p. 110.

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que recebe o nome genérico de espírita, pela defesa comum a todas as vertentes do

conceito de espírito como individualidade moral e inteligente que sobrevive à morte do

corpo, ascende por seus próprios esforços a uma condição de perfeição intelecto-moral,

ao longo de sucessivas existências físicas, e é capaz de comunicar-se ordinariamente

com os homens através da mediunidade. Sobre o panorama geral do movimento

espiritualista europeu e norte-americano, dentro do qual se acha inserido o espiritismo,

Moura Silva faz a seguinte análise:

O movimento espiritualista colocou-se como uma revolução do pensamento de sua época, num século que aboliu os preconceitos e perseguições religiosas e teve na ciência um avanço intelectual, um aliado valioso. Este movimento aplicou a ciência nas comunicações com os mortos, investigou os fenômenos na sua lógica e veracidade mas, também, combateu o materialismo simplista e lançou bases para pensar as verdades religiosas, antes dominadas pelo dogmatismo da religião tradicional. Começou como ciência do mundo espiritual, da sobrevivência da alma, uma fé racional encarando os fatos sobrenaturais à luz da razão, sob princípios éticos e de veracidade comprovada, sem negação ou aceitação sistemática para, alguns anos mais tarde, transformar-se em um movimento religioso e filosófico específico. Uma ciência que virou religião e uma religião que virou ciência78

O espiritismo destaca-se nesse cenário espiritualista por preconizar a existência da

reencarnação, não nos moldes da metempsicose oriental79, mas segundo uma concepção

progressiva e sempre ascendente, em que é apresentada como o mecanismo natural de

aperfeiçoamento dos espíritos, criados indistintamente “simples e ignorantes80”, e

destinados à auto-realização por meio de seus próprios esforços, ao longo de sucessivas

ligações com a matéria. Diversamente da concepção cármica característica do

hinduísmo, contudo, o espiritismo atribui um papel eminentemente pedagógico ao

processo reencarnatório, visto antes como oportunidade incessante de aprendizado

intelecto-moral do que como processo de pagamento de dívidas morais. Além disso,

conquanto defensora de uma proposta espiritualista de cunho universalista, a doutrina

espírita assenta sua dimensão religiosa em uma releitura do cristianismo tradicional,

procurando dele resgatar características de uma religiosidade natural81, “destituída de

78 MOURA SILVA, Eliane. Reflexões teóricas e históricas sobre o Espiritualismo entre 1850-1930. Campinas, Unicamp:1997, p. 11. Disponível em http://www.unicamp.br/~elmoura/O%20Espiritualismo%20nos%20S%E9c.%20XIX%20e %20XX.doc. Acessado em 11/12/2006.79 A doutrina da metempsicose remonta aos textos sagrados do hinduísmo, e admite a transmigração das almas entre corpos humanos, animais, vegetais e mesmo inanimados. 80 KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, Rio de Janeiro, FEB, 1995, p. 95.81 Incontri identifica em Rousseau e Pestalozzi a origem dessa concepção bastante presente no espiritismo: “Já Rousseau e Pestalozzi, que certamente influenciaram Kardec neste sentido, haviam proclamado uma religião natural, emancipada de rituais, hierarquias e dogmas. Princípios universais, imanentes à natureza humana, como a crença em Deus, na imortalidade da alma, na prática do bem constituiriam o fundamento de uma religião sem nome, individual, e muito mais orientada para a ética do

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poderes temporais, de cultos externos (a adoração em espírito e verdade a que se referia

o Cristo), de organização institucional, de sacerdócio e intermediações entre Deus e o

homem82”. Jesus é percebido como um mestre, um “educador de almas”, cuja

importância decorre de seus ensinamentos de amor e abnegação e, acima de tudo, de sua

exemplificação moral. Por sua conduta, compreendida pelos espíritas, em linhas gerais,

segundo os relatos contidos nos evangelhos canônicos, eventualmente acrescidos de

algumas contribuições dos evangelhos apócrifos, Jesus é descrito por Kardec como “o

tipo da perfeição moral a que a Humanidade pode aspirar na Terra83”. A respeito dessa

dimensão moral do espiritismo no século XIX, Moura Silva chega a afirmar que:

O Espiritismo era o Cristianismo no seu aspecto de ensino moral, na prática moral dos ensinamentos evangélicos, fundada numa rigorosa justiça divina que permitia aos homens alcançar a felicidade futura. O Espiritismo reviu a moral cristã à luz dos ensinamentos dos Espíritos, fundamentando a lei evangélica na relação permanente entre os vivos e os habitantes do mundo invisível. (...) As instruções dos Espíritos, contudo, vieram falar de uma aliança entre a Ciência e a Religião, as duas alavancas da inteligência humana, a inauguração de uma Nova Era, na qual os ensinamentos de Cristo seriam completados, sobretudo em relação à vida futura. Se no Cristianismo esta era uma questão de fé, com o Espiritismo transformou-se numa realidade material, demonstrada pelos fatos das comunicações espíritas84.

Pode-se perceber no espiritismo uma ênfase em aspectos essenciais da moral cristã, a

exemplo do amor, entendido como “sol interior que condensa e reúne em seu ardente

foco todas as aspirações e todas as revelações sobre-humanas85” e como elemento

mediador fundamental nas relações humanas; da consciência, vista como a própria

presença do Criador na criatura, verdadeira “sentinela da probidade interior86”; e da

humildade, percebida como a divina antítese do orgulho, como “o sentimento que nivela

os homens, dizendo-lhes que todos são irmãos, que se devem auxiliar mutuamente, e os

induz ao bem87”. Essa aproximação com a moral cristã, ainda que se processe segundo

uma leitura não-ortodoxa de cristianismo, influenciada tanto pelo racionalismo

iluminista quanto pelo espiritualismo humanista de Comenius, Rousseau e Pestalozzi,

torna possível ao espiritismo, mais do que ao espiritualismo, fenomênico, empirista,

disseminar-se com relativa facilidade pela tradicionalmente católica porção latina da

que para o culto” (INCONTRI, 2004a, pp. 71/72).82 INCONTRI, Dora, Op. Cit., 2004a, p. 75.83 KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, Ed. Cit., p. 308.84 MOURA SILVA, Eliane. Op. Cit. , p. 23.85 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo, Ed. Cit., p. 186.86 Idem, ibidem, p. 278.87 Idem. Ibidem, p. 139.

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Europa e da América88, que, àquela altura, já estava também decisivamente influenciada

pelos pressupostos da ideologia burguesa.

Ainda em 1861, apenas quatro anos após o lançamento de O Livro dos Espíritos, um

carregamento de 300 obras espíritas encomendadas pelo livreiro francês Maurice

Lâchatre, refugiado na Espanha da perseguição do governo de Napoleão III, foi

apreendido e queimado em praça pública pelo bispo de Barcelona, sob a justificativa de

que “a Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo

não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países89”. A

reação católica à difusão das idéias espíritas, que causou forte repercussão na imprensa

espanhola e evidencia o incômodo já causado pelo espiritismo à Igreja naquela época,

ficou conhecida como Auto de fé de Barcelona e acabou servindo como forte propulsor

à disseminação do espiritismo no país. De acordo com Bejarano90, entre 1867 e 1876

“surgem inumeráveis centros espíritas” na Espanha, bem como dezenas de periódicos, a

exemplo do El Espiritismo, editado em Sevilha, pela Sociedad Espiritista, da Revista

Espiritista, publicada pela Sociedad Barcelonesa de Estudios Psicológicos, da revista

La Revelación, de Alicante, do El Progreso Espiritista, fundado pelo então ministro da

Guerra, General D. Joaquín Bassols, e do El Espiritualismo, na Ciuddad Real. Leyva

afirma que, à época, “eran varias las ciudades latinoamericanas con revistas espíritas:

Montevideo, Santiago de Chile, La Habana, Argentina, Bogotá y, por supuesto, México.

La voz de los muertos intrepaba a la ciencia dura y lo hacía con cierta periodicidad91”.

Na Itália, também, durante as décadas de 50 e 60 daquele século, espalham-se por todo

o país instituições e publicações espíritas, dentre as quais se podem destacar92: Annali

dello Spiritismo in Italia, o principal periódico do gênero no país, Lo Spiritismo,

veiculado pela Società Spirituale di Napoli, Società Spirtista di Palermo, jornal

homônimo do grupo que o editava, e La Voce di Dio, “folha inteiramente constituída de

88 PESOLI, Fabrizio. Op. Cit, p. 2289 KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos 1861. Instituto de Difusão Espírita, Araras:1994, p. 97.90 BEJARANO, Mario Méndez. Historia de la filosofía en España hasta el siglo XX, Biblioteca Filosofia em español, Oviedo: 2000. Disponível em: http://www.filosofia.org/aut/mmb/hfe1714.htm. Acessado em: 12/08/2006.91 LEYVA, José Mariano. “La ciencia de los muertos: Espiritismo en México en el siglo XIX”, in Correo del Maestro nº 126, novembro de 2006, Uribe y Ferrari Ediciones, México. D.F. Disponível em: http://www.correodelmaestro.com/anteriores/2006/noviembre/anteaula126.htm. Acessado em: 10/12/2006.92 PESOLI, Fabrizio. Op. Cit, p. 63.

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ditados mediúnicos93” sob a responsabilidade da Società di Scordia. Segundo Giumbelli,

“em 1887, só na França, existiam 13 periódicos em circulação; na Espanha, o número

atingia a 36. Em 1890, são registrados 88 periódicos circulando por toda a Europa94”.

Destacamos, por fim, a título de amostra da relevância adquirida pelo espiritismo nos

países latinos, a seguinte proposta apresentada em 26 de agosto de 1873 às Cortes

Constitucionais da Espanha, sobre uma reforma nacional na área da educação:

Los diputados que suscriben, conociendo que la causa primera del desconcierto que por desventura reina en la nación española en la esfera de la inteligencia, en la región del sentimiento y en el campo de las obras, es la falta de fe racional, es la carencia en el ser humano de un criterio científico a que ajustar sus relaciones con el mundo invisible, relaciones hondamente perturbadas por la fatal influencia de las religiones positivas, tienen el honor de someter a la aprobación de las Cortes Constituyentes la siguiente enmienda al proyecto de ley sobre reforma de la 2ª Enseñanza y de las facultades de Filosofía y Letras y de Ciencias. El párrafo 3º del artículo 30, Título II, se redactará del siguiente modo: Tercero. Espiritismo 95 . (grifo nosso)

O espiritismo, que é assunto de destaque no capítulo que Bejarano dedica ao Século das

Luzes em sua obra sobre a Filosofia na Espanha, chegou a ter sua inclusão proposta

como disciplina integrante do currículo regular nos Ensinos Médio e Superior

espanhóis. D. José Navarrete, contudo, deputado encarregado, entre os cinco

proponentes, de fazer a defesa da proposta, foi impedido de levar a cabo o intento, em

função do golpe de estado comandado pelo General Manuel Pavía em 3 de janeiro de

1874, que pôs fim à Primeira República Espanhola96.

3) O Espiritismo no Brasil

Evidenciada a difusão do espiritismo nos países latinos, através de breves referências

pinçadas da Espanha, da Itália e da América Latina, centramo-nos, em face do objetivo

de investigar a coluna de Bezerra de Menezes, no processo de adaptação do espiritismo

à cultura brasileira. É a ele que dedicamos este último tópico do presente capítulo.

É preciso salientar, antes de tudo, que se trata de tema controverso e já submetido a

análises bastante distintas entre si no meio acadêmico. Cândido Procópio Camargo e

Roger Bastide parecem ter sido os primeiros a se debruçarem sobre ele dentro de uma

93 Idem, Ibidem.94 GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e da legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, p. 59.95 BEJARANO, Mario Méndez. Op. Cit.96 Idem, Ibidem.

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perspectiva sócio-antropológica, procurando contextualizar o espiritismo, ao lado do

Pentecostalismo e das tradições afro-brasileiras97, no âmbito da difusão da religiosidade

popular no Brasil em fins do século XIX e início do século XX, período caracterizado

pela aceleração do crescimento urbano brasileiro. Nesses primeiros estudos, que

influenciaram decisivamente boa parte da produção acadêmica sobre o tema nas

décadas de 60 e 7098, já se postulava uma idéia que viria a se tornar quase consensual

em todos os estudos acadêmicos acerca do espiritismo. Camargo sintetiza-a destacando

que “a ênfase no aspecto religioso da obra de Kardec constitui (...) o traço distintivo do

Espiritismo brasileiro e, talvez, seja a causa de seu sucesso entre nós99”. Apontando a

tradição cultural brasileira como fator condicionante dessa ênfase no religioso que

caracteriza o espiritismo no Brasil, ele acrescenta que “no Brasil o aspecto religioso

torna-se preponderante, em contraposição ao filosófico e científico100”.

Bastide, por sua vez, enfatiza a segmentação social presente nessa reinterpretação do

espiritismo. Os segmentos mais abastados, segundo ele, eram mais voltados para o

espiritismo experimental, científico, enquanto a classe média tendia a vivenciar a

doutrina espírita religiosamente, associando-a a práticas curandeirísticas. Afirma

Bastide que “aqui [...] o caráter médico do espiritismo continua, tanto mais que a

tradição do curador, da magia curativa, de definição da doença pela ação mística de

feiticeiros ou da vingança dos mortos, permanece a base da mentalidade primitiva101”.

Um traço comum a ambas as linhas de pesquisa, de acordo com Stoll102, que acabou

disseminado por outros trabalhos brasileiros e estrangeiros, é o conceito de distorção,

segundo o qual o espiritismo teria sido adulterado mediante a releitura que dele se fez

no Brasil. Stoll discorda desse conceito, argumentando que “toda versão, toda

reinterpretação é sempre um ato criativo103”.

97 STOLL, Sandra Jacqueline. “Religião, ciência ou auto-ajuda? Trajetos do Espiritismo no Brasil” in Rev. Antropol.,  São Paulo,  v. 45,  n. 2,  2002, p. 365.  Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ra/v45n2/a03v45n2.pdf . Acessado em: 21/07/2006.98 Idem, Ibidem.99 CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira. Kardecismo e umbanda. São Paulo, Pioneira, 1961, p. 4. apud STOLL, Op. Cit.100 Idem, Católicos, espíritas e protestantes, Petrópolis, Vozes, 1973, p. 162 apud STOLL, Op. Cit.101 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, São Paulo, Pioneira, 1985, p. 433 apud STOLL, Op. Cit.102 STOLL. Op. Cit.103 Idem, Ibidem, p. 367.

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Trata-se de reinterpretação, isto é, de uma particularização cultural e histórica de idéias e práticas concebidas com pretensão de universalidade. Nesse sentido, o Espiritismo à brasileira seria uma versão original e não um produto menor, adulterado ou desviante104.

Essa originalidade, para a maior parte dos pesquisadores105, teria se constituído no

diálogo com as tradições afro-brasileiras, o que enquadraria o espiritismo no âmbito das

religiões mediúnicas ou dos cultos de possessão, seja formando com elas um continuum

(Camargo), seja constituindo-se por oposição a elas (Ortiz). Apesar de reconhecer a

relevância dessa interlocução para o processo de estruturação do espiritismo brasileiro,

Stoll critica a falta de atenção dada ao diálogo espiritismo-catolicismo.

Como o Islamismo na Indonésia, o Espiritismo é uma religião importada, que se difunde no país confrontando-se com uma cultura religiosa já consolidada, hegemônica e, portanto, conformadora do ethos nacional. Sua difusão, como postulam certos autores, foi em parte favorecida pelo fato das práticas mediúnicas já estarem socialmente disseminadas, de longa data, no âmbito das religiões de tradição afro. No entanto, em contraposição a estas o Espiritismo define sua identidade, elegendo sinais diacríticos elementos do universo católico (...) O Espiritismo brasileiro assume um “matiz perceptivelmente católico” na medida em que incorpora à sua prática um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade106.

Entre os autores que estudaram o espiritismo até a década de 90 do século passado, fora

Stoll, apenas Aubrée e Laplantine parecem ocupar-se dessa questão, sem, contudo,

aprofundá-la107. O trabalho de Stoll, publicado em 1999, não só foi o primeiro a fazer da

interação espiritismo-catolicismo um argumento central de sua pesquisa, defendendo

que o médium Chico Xavier teve um papel fundamental nesse processo de construção

de uma tradição espírita brasileira, “cuja marca consiste na síntese com o

Catolicismo108”, como abriu caminho para outras pesquisas que, trabalhando dentro

dessa perspectiva, sobressaem-se nesta primeira década do século XX. Nesse sentido,

destacamos Lewgoy (2000), que nos serve também de base à investigação sobre o

panorama que oferece condições para o surgimento da coluna O Espiritismo - Estudos

Filosóficos em fins do século XIX.

104 Idem, Ibidem.105 Idem, Ibidem, p. 368.106 Idem, Entre Dois Mundos: o Espiritismo entre a França e o Brasil, São Paulo, USP, 1999, p. 48. (tese de doutorado)107 LAPLANTINE, François e AUBRÉE, Marion. La Table, le livre et lês esprits - Naissance, évolution et actualité du mouvement social spirite entre France et Brésil. Paris, Ed. Lattès, 1990, p.85 apud STOLL. Op. Cit.108 STOLL. Religião, ciência ou auto-ajuda? Trajetos do Espiritismo no Brasil, p. 369.

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Esclarecidos os principais referencias teóricos norteadores dessa linha argumentativa

que privilegia o diálogo entre o espiritismo e a religião dominante no Brasil, na

construção da identidade espírita brasileira, tracemos um breve percurso histórico da

chegada e difusão da doutrina espírita no país, no qual se evidencia desde logo sua

aproximação com o catolicismo.

Considerando-se que a França, particularmente no que se refere aos séculos XIX e

primeira metade do XX, é um país cuja “irradiação cultural alcança quase sempre os

países latinos, entre eles e, sobretudo, o Brasil109” mal começara Allan Kardec seu

trabalho de codificação do espiritismo e, já em 1860, sai do prelo a primeira obra em

português sobre o tema: Os tempos são chegados, do educador francês radicado no país

Casimir Lieutaud110. Em 1862, poucos meses após o lançamento da brochura Le

Spiritisme à sa plus simple expression, por Kardec, Alexandre Canu, colaborador da

Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, traduz a obra para o português, imprimindo-a

em Paris sob o título O espiritismo em sua mais simples expressão e colocando-a a

venda em Lisboa e no Rio de Janeiro111. Tal celeridade na chegada e na difusão das

idéias espíritas em solo brasileiro, que faz do assunto tema de artigo publicado em 23 de

setembro de 1863, na seção Crônicas de Paris, d’O Jornal do Commercio112, rendeu

comentários de Kardec na Revista Espírita de julho de 1864. Após breves considerações

acerca do artigo, cujo autor, segundo Kardec, se não demonstra conhecimentos

aprofundados sobre o tema, “pelo menos não julga pelo que não sabe”, o pedagogo faz a

primeira referência ao desenvolvimento da doutrina no país:

Verificamos, com satisfação que a idéia espírita faz progressos sensíveis no Rio de Janeiro, onde ela conta com numerosos representantes, fervorosos e devotados. A pequena brochura "Le Spiritisme à sa plus simple expression", publicada em língua portuguesa, contribuiu, não pouco, para ali espalhar os verdadeiros princípios da Doutrina113.

A próxima oportunidade em que o espiritismo ocupa as páginas de jornal brasileiras,

porém, não consiste em reflexões nada elogiosas a seu respeito. Veiculados nos dias 26

e 27 de setembro, e 6 de outubro de 1865, no Diário da Bahia, os artigos intitulados,

109 INCONTRI, Dora. Op. Cit. 2004a, p. 28.110 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit., p. 31.111 WANTUIL, Zeus e THIESEN, Francisco. Allan Kardec vol. 3, FEB, Rio de Janeiro: 1980, pp. 18/176/353/354.112 Idem, Ibidem, p. 333/334.113 KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1864, São Paulo, Edicel, 1969, p. 210.

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respectivamente, Doutrina Espirítica I, II e III, que são na verdade traduções de textos

publicados pelo autor do Dictionaire des sciences médicales, Amedée Déchambre, no

periódico francês Gazette hebdomadaire de médecine, ainda em 1859, tratam o

espiritismo como “desvario”, “extremo do supernaturalismo religioso”, “seita”,

“incurável fraqueza da razão, quando não é loucura”, entre outros epítetos

semelhantes114. A reação, desta feita, veio não só do codificador, que lamentou as

“limitações da erudição do médico115”, mas também de um grupo de espíritas brasileiros

liderado pelo baiano Luís Olímpio Teles de Menezes, que, dias antes, a 17 de setembro,

fundara em Salvador o Grupo Familiar do Espiritismo, considerado unanimemente

pelos pesquisadores como o primeiro grupo espírita a funcionar regularmente no

Brasil116.

Publicada algum tempo depois117, a longa refutação deixa entrever traços importantes da

aproximação com o catolicismo que já nesses momentos iniciais da difusão do

espiritismo no Brasil ganhava corpo. Ao analisar a figura de Teles de Menezes,

Fernandes faz as seguintes ponderações:

No período em que Luiz Olympio iniciou a edição dos textos espíritas, a religião do Estado era o catolicismo, portanto não se permitia no país, por lei, a adesão a outras crenças. O divulgador da doutrina de Allan Kardec – talvez, por isso mesmo – não deixava de afirmar em seus pronunciamentos ser um “católico apostólico romano”. Pelo espiritismo, ele dizia estar defendendo a necessidade de renovação dos preceitos cristãos, promovidos pela Igreja Católica. Esse argumento ocorreu quando a discussão sobre espiritismo e catolicismo estava em efervescência118.

114 FERNANDES, Magali Oliveira. Vozes do Céu – Os Primeiros Momentos do Impresso Kardecista no Brasil. Trabalho apresentado no NP04 – Núcleo de Pesquisa Produção Editorial, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05 de setembro de 2002, pp.4/5.115 WANTUIL, Zeus e THIESEN, Francisco. Op. Cit., pp. 334/335.116 COSTA, Flamarion Laba da. O espiritismo em Guarapuva: um levantamento de fontes. Trabalho apresentado no XXIII Simpósio Nacional de História, Londrina/PR, 2005.117 A respeito da data exata em que se publicou a resposta dos espíritas baianos ao artigo, encontramos uma discrepância significativa. Wantuil e Thiesen (Op. Cit.), em acordo com Abreu (Op. Cit.), afirmam que ela se deu ainda no dia 28 de setembro, nas próprias páginas do Diário da Bahia, sendo importante lembrar que nenhum deles faz qualquer referência ao artigo do dia 6 de outubro. Já Fernandes (Op. Cit.), que nada escreve acerca da tal resposta, fala numa réplica que teria sido lançada “em Salvador, em fevereiro de 1866”, enfatizando o lapso de tempo de “quase seis meses depois do artigo de Déchambre”, mas dando a entender que se tratava de um livro. Wantuil e Thiesen, agora em consonância com Fernandes, fazem descrições extremamente assemelhadas do teor das publicações a que se referem, caracterizado pela tradução de um “extrato, bastante extenso, da introdução de O Livro dos Espíritos” (WANTUIL e THIESEN, Op. Cit. p. 336). Pela riqueza de detalhes oferecida na análise de Fernandes, tendemos a considerar mais exata sua datação mas, impossibilitados de recorrer presentemente às fontes primárias, deixamos em aberto a questão. 118 FERNANDES, Magali Oliveira. Op. Cit., pp. 3/4.

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A isso, Colombo acrescenta: “Apesar de sua filiação ao pensamento de Kardec,

Olympio demonstra ainda forte apego ao Catolicismo. É evidente que num Brasil, onde

a religião católica era a oficial e servira de raiz a toda a nossa cultura, não era fácil se

subtrair a essa influência119”. A própria Revista Espírita, que, conforme já exposto nos

comentários de Kardec, via com bons olhos a disseminação do espiritismo no país,

chegou a criticar polidamente a forma como se dava a interlocução dos espíritas

brasileiros com a religião dominante, especialmente após o lançamento d’ O Eco de

Além-Túmulo – Monitor do Espiritismo no Brasil, primeiro periódico espírita do Brasil,

que circulou bimestralmente de 1869 a 1871 sob a direção de Teles de Menezes. Numa

análise geral sobre o tema, Incontri faz as seguintes considerações:

Uma vez que começou a entranhar-se em nossa cultura, logo ressaltou-se o aspecto religioso [do espiritismo], pela ausência de uma tradição científica e filosófica em nosso país. E, mesmo esse aspecto religioso, ainda bastante arraigado às tradições católicas. O primeiro jornal espírita, fundado por Olympio Teles de Menezes, na Bahia, em 1869, mereceu até uma crítica da Revista Espírita de Paris, que aconselhou permanecesse “como uma filosofia tolerante e progressiva” (...) O mais antigo órgão espírita [brasileiro], até hoje em funcionamento, O Reformador, já levava o subtítulo “mensário religioso do Espiritismo cristão”, bem diferente do subtítulo da Revista Espírita de Kardec: “Jornal de Estudos Psicológicos120”.

Naquele contexto, o debate já havia assumido contornos de “discussão pública sobre

espiritismo121”, envolvendo o arcebispo da Bahia, setores da imprensa, e os espíritas.

Sem recursos que não aqueles angariados do próprio bolso, e sob forte pressão da Igreja,

não tardou Menezes a extinguir o periódico que fundara, certo, porém, de que “seu

projeto editorial, (...) teria servido como um primeiro passo, incentivando outros

projetos desse teor122”. De fato, traduzidos ao longo das edições do jornal diversos

trechos das obras de Kardec para o português, e abrangendo sua circulação várias

províncias brasileiras, o espiritismo ganhou razoável impulso no Brasil com a iniciativa

do jornalista baiano. Em princípios daquela década de 70, O espiritismo em sua mais

simples expressão já circulava na cidade de São Paulo123, enquanto Lieutaud “trabalhava

ativamente na divulgação dos ideais espíritas na Corte do Rio de Janeiro124”.

119 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Idéias sociais espíritas. São Paulo, Comenius, 1998, p. 54.120 INCONTRI, Dora. Op. Cit., 2004a, pp. 203/204.121 FERNANDES, Magali Oliveira. Op. Cit., p. 8.122 Idem, Ibidem, p. 13.123 WANTUIL, Zêus. Grandes Espíritas do Brasil. FEB, 1ª edição. RJ, p. 157.124 Idem, Ibidem.

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É nessa onda impulsionada pelo Eco de Além Túmulo que surge, em 1873, na capital

imperial, o Grupo Confúcio, primeira instituição espírita juridicamente constituída no

país, reunindo figuras da Corte e homens que tiveram papel fundamental nesses

primeiros anos do espiritismo no Brasil. Da primeira diretoria, destacamos, por serem

particularmente importantes para a análise de nosso objeto, o vice-presidente Joaquim

Carlos Travassos, o tesoureiro Bittencourt Sampaio, e o 3º secretário, já citado neste

trabalho, professor Lieutaud. Se este teve o mérito de escrever a primeira obra

declaradamente espírita em língua portuguesa, propagando o espiritismo em seu círculo

de influências e colocando trechos da obra de Kardec no prefácio das obras que

publicava125, Travassos destaca-se como o primeiro tradutor de uma versão integral de

Le livre des esprits para o português, sob o pseudônimo Fortúnio. A empreitada deu-se

em 1875, e contou com o apoio da Livraria Garnier, que, interessada no filão que se

insinuava por trás das fortes contendas suscitadas publicamente em torno do tema126,

responsabilizou-se não só pela publicação de O livro dos espíritos, como também das

três obras básicas do espiritismo subseqüentes, traduzidas por Travassos127. Uma

particularidade a que fazemos referência apenas superficial neste momento, para

discuti-la melhor no segundo capítulo, é que, tão logo saiu a primeira edição de O livro

dos espíritos, Travassos ofereceu um exemplar ao deputado cearense, que já há alguns

anos morava no Rio, Adolfo Bezerra de Menezes. O interesse profundo que a leitura da

obra despertou no político foi fundamental para sua conversão à doutrina, anunciada

oficialmente apenas 11 anos mais tarde.

O Grupo Confúcio, como o Eco de Além-Túmulo, teve duração efêmera, de apenas três

anos, e isso se deveu, sobretudo, às divergências internas entre seus integrantes, que

refletiam o amplo e divergente espectro de leituras que os espíritas brasileiros faziam já

à época da doutrina sistematizada por Allan Kardec128. Araia, em análise sintética,

125 Segundo Wantuil, “em 1866, saía a lume um livrinho de sua autoria: ‘Legado de um mestre aos seus discípulos’, composto de contos morais, de algumas poesias em francês e de um excerto de J. J. Rousseau sobre os deveres das moças. Pois bem! o «'Prefácio» dessa  obra era uma bela página extraída e traduzida da 1ª edição francesa de «O Evangelho segundo o Espiritismo». (Idem, Ibidem).126 Fernandes observa que “é importante perceber o significado de um livreiro e editor como o francês Garnier assumir as traduções dos livros de Allan Kardec, independente de sua crença ou não na doutrina dos espíritos. Há um empenho profissional evidente – bem distinto daquele do espírita baiano [Teles de Menezes] – visando resultados positivos no mercado do livro, diante de uma demanda receptiva que se demonstrava favorável”. (FERNANDES, Magali Oliveira. Op. Cit., p. 16).127 Ao que parecem indicar as referências biográficas a Travassos, ele não traduziu A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, última das obras básicas escritas por Kardec, incumbência que ficou a cargo da Sociedade Acadêmica, discutida mais à frente, em 1882. 128 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. p. 39.

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esboça a seguinte classificação a respeito das diferentes linhas interpretativas que se

reuniam sob a identidade espírita naquele contexto:

Uma linha era constituída pelos “científicos”, que se interessavam fundamentalmente pela fenomenologia. A segunda corrente englobava os chamados “Espíritas puros” – pessoas que aceitavam as partes científica e filosófica do espiritismo, mas recusavam sua faceta religiosa. Os “místicos” por sua vez, enfatizavam exatamente o lado evangélico da doutrina, e, embora considerassem toda a obra de Kardec, propunham como item básico a leitura de “O evangelho segundo o espiritismo”..129

Pelas análises a que tivemos acesso, contudo, a exemplo de Abreu130 e Quintella131,

parece que o tipo puramente científico não chegou a representar uma força expressiva

dentro das disputas hegemônicas que marcaram as primeiras décadas do movimento

espírita brasileiro. Seus partidários possivelmente debandavam para o estudo da

metapsíquica, que posteriormente daria origem à parapsicologia, ou acabavam

mesclando-se àqueles que Araia denomina Espíritas puros, os científicos que, de fato,

foram bastante representativos. Baseavam sua concepção de espiritismo nas duas obras

de cunho marcadamente filosófico-científico de Kardec (O livro dos espíritos e O livro

dos médiuns), concebendo-o, assim, estritamente como uma ciência filosófica, ou, o que

era bastante coerente com o pensamento positivista da época, como uma filosofia

científica. Enfatizavam a necessidade do rigor na análise dos fenômenos, com o objetivo

de garantir que, se novas idéias viessem a ser incorporadas ao espiritismo, elas o fossem

por vias metodologicamente adequadas e coerentes com a proposta de Kardec. Essa

vertente encontrou, durante as duas últimas décadas do século XIX, no auge da

militância espírita de Bezerra de Menezes, seu representante mais emblemático na

figura de Afonso Angeli Torteroli, cuja conflituosa relação com Bezerra é discutida no

segundo capítulo.

Em contraposição a esta linha de pensamento, os místicos defendiam a preponderância

de um viés religioso em sua concepção do espiritismo. Demonstravam, de modo geral,

respeito pelas obras de Kardec, mas faziam questão de frisar que a doutrina não era

dele, e sim dos espíritos, cabendo, portanto, a estes “ditar” ou “revelar” as “novas

129 ARAIA, Eduardo. Espiritismo: doutrina de fé e ciência. São Paulo:Ática, 1996, pp. 103/104 apud CAPELLARI, Marcos Alexandre. Sob o olhar da razão: as religiões não católicas e as ciências humanas no Brasil (1900-  2000), São Paulo, USP:2002 (Dissertação de Mestrado em História Social), p. 65. 130 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit.131 QUINTELLA, Mauro. Breve história sobre a unificação. Disponível em http://www.universoespirita.org.br/NOVA_ERA/BREVE_HISTORIA.htm. Acessado em 10/12/2006.

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verdades espíritas”. Essa postura, que rompia declaradamente com a proposta

metodológica elaborada por Kardec já discutida neste trabalho, facilitava aos místicos

não só a legitimação, como a difusão de suas crenças dentro do movimento espírita.

Estas eram marcadamente influenciadas pelo catolicismo, incluindo, apenas para citar

alguns pontos centrais, uma deferência quase divina à figura de Jesus, ainda que ele

jamais fosse declarado ontologicamente igual a Deus, a atribuição de certa “autoridade

espiritual” a Maria, e a insistência em buscar legitimação bíblica para as idéias espíritas.

Entre estes, especificamente, fazia grande número de adeptos uma obra intitulada Les

quatre évangiles – révélation de la révélation, organizada pelo advogado francês Jean-

Baptiste Roustaing em 1866 e atribuída aos espíritos dos “Evangelistas, assistidos pelos

Apóstolos e Moisés”, por meio da psicografia da médium Émilie Collignon. Tratava-se

de uma obra que pretendia fornecer uma releitura “em Espírito e Verdade” dos

evangelhos canônicos, orientada pelos próprios autores originais. Sua idéia mais

controvertida, particularmente naquele contexto, mas que causa algumas divergências

entre os espíritas até os dias atuais, era a de que Jesus, “a maior essência espiritual

depois de Deus132”, “espírito de pureza perfeita e imaculada133”, “que nunca faliu e

infalível por se achar em relação direta com a divindade134”, justamente em face dessa

superioridade absoluta em relação aos seres humanos, não teria podido encarnar num

“corpo de lama135” como o dos homens normais, tendo se utilizado, portanto, de um

“corpo fluídico136”, especialmente composto por ele mesmo para que pudesse dar a

impressão de ser um homem quando de sua passagem pela Terra.

Tal idéia decorre ao mesmo tempo de uma conceituação punitiva a respeito do processo

de encarnação dos espíritos e de uma visão divinizada da figura de Jesus, elementos

que caracterizam fortemente a obra de Roustaing. Como já abordado no primeiro

capítulo137, a reencarnação apresenta-se no espiritismo francês como mecanismo de

aperfeiçoamento necessário a todos os seres da Criação, que, por meio dela, têm

132 ROUSTAING, Jean-Baptiste. Os quatro evangelhos – Revelação da revelação. Tomo I, 5ª edição, Rio de Janeiro, FEB:1971, p. 302.133 Idem, Ibidem, p. 282.134 Idem, Ibidem, p. 302.135 Idem, Ibidem, p. 274.136 Segundo assinalam os textos atribuídos aos evangelistas, “Jesus houvera podido, unicamente por ato exclusivo da sua vontade, atraindo a si os fluidos ambientes necessários, constituir o perispírito ou corpo fluídico tangível que vestiu para surgir no vosso mundo sob o aspecto de uma criancinha”. (ROUSTAING, Jean-Baptiste. Op. Cit. p. 161)137 Ver p. 31.

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oportunidade de se aprimorarem nas dimensões intelectual, moral, estética etc. Já para a

doutrina de Roustaing, seu caráter é o de “uma punição, um castigo que [os espíritos]

teriam podido evitar138”, caso tivessem permanecido “dóceis aos incumbidos de os guiar

e desenvolver139”. Além disso, enquanto Kardec atribui a Jesus a condição de Mestre,

Espírito Puro encarnado na Terra para ensinar pelo exemplo até onde pode ir o ser

humano, Roustaing, segundo se pode depreender das explicações transcritas no

parágrafo anterior, chega tão próximo quanto possível de considerá-lo o próprio Deus

sem que haja o estabelecimento de uma identidade ontológica entre ambos. Por fim,

como decorrência natural da idéia de que Jesus não era um ser humano encarnado,

ressalta-se a crença na concepção virginal de Maria, que teria tido uma gravidez

“simplesmente aparente e fluídica (...) sob a influência magneto-espírita (...) dos

Espíritos elevados140”.

Destacamos esses pontos-chave da doutrina de Roustaing por julgá-la bastante

significativa para a compreensão de qual espiritismo estava em jogo nas disputas aqui

analisadas, e qual leitura da doutrina espírita, mais adaptável ao catolicismo do que a

ortodoxa, fundamenta os discursos de Bezerra de Menezes e dos místicos declarados,

em suas obras e nos embates que se travavam entre os diferentes tipos de espíritas da

época. Apesar de a obra em questão só ter ganhado uma tradução completa para o

português nos primeiros anos do século XX, já a partir de 1870, por meio de Teles de

Menezes, Casimir Lieutaud, Joaquim Travassos, e outros, ela era estudada de forma

mais ou menos sistemática em alguns círculos espíritas brasileiros, fosse diretamente no

original francês, fosse por meio de traduções pontuais de páginas ou capítulos141.

Tamanhas divergências doutrinárias, como as que se evidenciam do quadro aqui

esboçado, terminaram por levar os freqüentadores do Grupo Confúcio a deixarem a

instituição, que fechou suas portas em 1876, dando origem, no mesmo ano, à Sociedade

Espírita Deus, Cristo e Caridade, onde os místicos, liderados pelo roustanguista

Bittencourt Sampaio, pretendiam dedicar-se com mais liberdade ao estudo prioritário de

O evangelho segundo o espiritismo e da Bíblia. A despeito dessa pretensão, porém, os

138 ROUSTAING, Jean-Baptiste. Op. Cit. p. 323.139 Idem, Ibidem.140 Idem, Ibidem, p. 199.141 MARTINS, Jorge Damas. Jean Baptiste Roustaing - Apóstolo do Espiritismo. Casa de Recuperação e Benefícios Bezerra de Menezes, Rio de Janeiro:2005, pp. 470 e seguintes.

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científicos foram se integrando gradualmente ao grupo, de forma que, em 1879,

liderados por Siqueira Dias, Lima e Cirne e Pinheiro Guedes, conseguiram mudar o

nome da instituição para Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade, procurando

emprestar-lhe um ar mais coerente com suas idéias. A mudança, que sinalizava o

predomínio dos científicos na instituição, levou os místicos a nova debanda, desta vez

para a criação do Grupo Espírita Fraternidade, em 1880, novamente sob a liderança de

Sampaio, agora ladeado por Antônio Sayão.

A essa altura, começam a organizar-se de parte a parte instituições com a pretensão de

congregar todos os grupos espíritas do Brasil. Os científicos, após a realização do 1º

Congresso Espírita do país, fundam em 1881 o Centro da União Espírita do Brasil, sob

a direção de Torteroli que, sem conseguir atingir seus propósitos, daria lugar, anos mais

tarde, em 1894, ao Centro da União Espírita de Propaganda do Brasil.

Em uma posição menos clara diante dos embates doutrinários, o editor do periódico O

Reformador, Augusto Elias da Silva, reunindo-se, em 1883, com doze de seus parceiros

de trabalho editorial espírita, resolve criar um outro centro congregador, que, a 1º de

janeiro de 1884, é fundado sob o nome de Federação Espírita Brasileira. Numa busca

por apaziguar os embates, sem assumir-se por nenhum dos lados envolvidos, a

Federação, formada majoritariamente por místicos, chega inclusive a convidar

científicos, como Torteroli e Joaquim Távora, a se cadastrarem como sócios-

fundadores.

É pouco após a fundação da FEB que começa a participação efetiva de Adolfo Bezerra

de Menezes na história do espiritismo brasileiro, assumindo a singular posição de

mediador das disputas entre místicos e científicos, ao mesmo tempo em que, a pouco e

pouco, foi desenvolvendo forte inclinação para os posicionamentos doutrinários

defendidos pelo primeiro grupo.

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Bezerra de Menezes: mediação e influência

1) Chico Xavier, Bezerra de Menezes e o catolicismo

Dentro do processo que investigamos neste trabalho, de construção da identidade

espírita brasileira, marcada pela influência do catolicismo, avultam várias

personalidades importantes que, declaradamente ou não, contribuíram para essa

adaptação do espiritismo ao terreno religioso brasileiro. Dois dos principais trabalhos

recentes voltados para o tema, o de Stoll142 e o de Lewgoy143, apontam o médium

mineiro Francisco Cândido Xavier como figura emblemática e ratificadora desse

processo, já em meados do século XX. Lewgoy, a esse respeito afirma que:

Em qualquer leitura, trata-se de um personagem cercado de uma aura paradigmática, depositário e modelo biográfico de uma proposta religiosa de alta ressonância na sociedade brasileira, além de ter cumprido um papel central na criação de um espiritismo "à brasileira". Maior protagonista da história do kardecismo no Brasil moderno, sua trajetória ilustra os dilemas enfrentados por esta alternativa religiosa ao longo do século XX, principalmente no que tange ao sincretismo de sua proposta com a "cultura católica brasileira" e com um certo modelo de Estado-Nação144.

Desenvolvendo melhor os conceitos que pincela nessa análise, Lewgoy contextualiza o

processo de reapropriação dos conceitos espíritas dentro de uma matriz católico-

brasileira a partir de discussão proposta por Pierre Sanchis acerca do conceito de

sincretismo:

142 STOLL, Sandra Jacqueline. Entre Dois Mundos: o Espiritismo entre a França e o Brasil, São Paulo, USP, 1999 (tese de doutorado).143 LEWGOY, Bernardo. Chico Xavier e a cultura brasileira. Rev. Antropol., 2001, vol.44, no.1, p.53-116. ISSN 0034-7701.144 Idem, Ibidem, p. 55.

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A idéia de uma cultura "católico-brasileira" foi desenvolvida por Pierre Sanchis145 (1994). É também neste autor que vou me basear ao falar de sincretismo, especialmente quando ele propõe a dessubstantivação deste conceito, inspirada na discussão de Lévi-Strauss sobre o totemismo (Sanchis, 1994). Para Sanchis, o sincretismo é uma tendência conceitual abstrata do pensamento humano, resultante da influência que costumes, sistemas simbólicos e estruturas do pensamento alheias exercem sobre os seus vizinhos. A implantação social do espiritismo no Brasil não é alheia a esse fenômeno, mas não há um reconhecimento explícito da influência católica, a não ser da parte de críticos e dissidentes do movimento espírita. Ora, o fenômeno Chico Xavier mostra-nos que o espiritismo kardecista está longe de ser apenas uma tendência européia, branca e de classe média ou uma mera matriz de religiosidades vividas em nosso país. Ao contrário, a dominante cultura católica brasileira impregnou os diferentes espaços sociais, tradições e atores que vivenciam o espiritismo no cotidiano das grandes cidades brasileiras, operando-se de uma síntese original de catolicismo e de kardecismo, que ganha uma definitiva referência nacional na vida e na obra do médium mineiro146.

Por suas atitudes, tidas pelos espíritas como modelo exemplar de conduta cristã, e, por

conseguinte, espírita, somada a sua vasta produção mediúnica, que é encarada pela

maior parte dos espíritas de hoje como complementação natural da obra de Allan

Kardec, Chico Xavier foi capaz de consolidar um modelo próprio de espiritismo, ainda

que não possuísse qualquer intenção declarada nesse sentido. Stoll, em concordância

com Lewgoy, afirma que:

A liderança de Chico Xavier no meio espírita se consolidou em torno dos anos de 1940 e 1950, pouco mais de meio século depois da constituição dos primeiros grupos responsáveis pela difusão da doutrina no país. Até então raros eram os nomes de destaque nesse universo religioso oriundos das classes populares. Chico Xavier constitui uma exceção. Mas sua importância (...) extravasa esse detalhe. Como pretendo demonstrar a seguir, a imagem de "homem-santo" não traduz uma apropriação indébita. Ao contrário, reflete o processo cultural de inserção do Espiritismo no campo religioso brasileiro por meio de um diálogo intenso, muitas vezes conflituoso, com a religião dominante no país: o Catolicismo. Apreenderemos as bases dessa construção a partir da narrativa de sua história de vida e carreira religiosa.

Apesar da importância do papel desempenhado por Chico Xavier nesse processo

durante o século XX, ambos os pesquisadores reconhecem em Adolfo Bezerra de

Menezes uma figura de destaque análogo no panorama espírita brasileiro do século

XIX. O caráter mediador de ambas as personagens sobressai de seus respectivos

contextos de disputas em torno do espiritismo, sendo que Xavier trabalhou mais

especificamente na legitimação do espiritismo como religião cristã em meio aos

embates entre catolicismo e pentecostalismo que vigoravam em meados do século XX,

enquanto Bezerra dedicou-se com mais afinco à tarefa de mediação das divergências

internas entre espíritas místicos e científicos, propiciando a Chico Xavier, décadas mais

145 SANCHIS, Pierre. “Pra não dizer que não falei de sincretismo”, Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, vol. 45: 4-11 apud Idem, Ibidem, p. 105.146 LEWGOY, Bernardo. Op. Cit. p. 105.

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tarde, um meio espírita menos heterogêneo e já influenciado pelo catolicismo para

harmonizar com o panorama religioso do século passado.

Sobre Bezerra de Menezes, Stoll afirma que “a literatura espírita e acadêmica sustenta

ter sido Bezerra de Meneses, fundador e primeiro presidente da Federação Espírita

Brasileira, um dos principais responsáveis pela institucionalização da feição religiosa de

que se revestiu o Espiritismo no Brasil147”. Já Lewgoy, ao analisar o trabalho de

popularização do espiritismo desenvolvido por Chico Xavier, define a concepção

espírita por ele difundida como uma “elaboração sincrética (...) tanto com o catolicismo

popular quanto com tendências corporativas do catolicismo institucional148”,

salientando, contudo, que “esta atitude não surge com Chico, mas já estava presente

com os chamados ‘místicos’, desde Bezerra de Menezes e a ascensão do

‘rustanguismo’, um espiritismo influenciado pelo catolicismo na Federação Espírita

Brasileira149”. Numa avaliação mais detida sobre o político cearense, em que fica

patente o papel central que desempenhou no processo aqui discutido, Lewgoy resume:

Bezerra sintetiza em si os elementos que não cessarão de se articular no espiritismo posterior: a influência do habitus católico na formulação do estilo discursivo e reflexivo, a disciplina militar, a piedade católica, a retórica dos bacharéis, a idéia de que os médicos e militares são missionários do progresso, a especialização do trabalho religioso na formação de médiuns, a intensificação do assistencialismo e da prática da caridade. 150

É à discussão de determinados elementos dessa síntese representada por Bezerra de

Menezes, particularmente da “influência do habitus católico na formulação do estilo

discursivo e reflexivo” que dedicamos este capítulo. Para melhor compreendê-la,

façamos uma breve reconstrução biográfica de sua trajetória, como médico e político até

chegar à condição de espírita dotado de prestígio, capaz de influenciar decisivamente

nos rumos tomados pela doutrina no Brasil.

147 STOLL, Sandra Jacqueline.Op. Cit., 2002. p. 394.148 LEWGOY, Bernardo. Op. Cit. p. 71.149 Idem, Ibidem, p. 107.150 LEWGOY, Bernardo. Chico Xavier e a cultura popular brasileira. Centro Virtual de Antropologia, ed. 31, 2006. Disponível em: http://www.antropologia.com.br/. Acessado em: 07/11/2006

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2) De médico dos pobres a político liberal151

Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti nasceu em 1831, na freguesia do Riacho do

Sangue, hoje pertencente ao município cearense de Jaguaretama. Após quatro anos

morando na província do Rio Grande do Norte, onde iniciou os estudos no latim, voltou

em 1846, para morar em Fortaleza e estudar no Liceu do Ceará. Aos vinte anos, rumou

para o Rio de Janeiro, com o objetivo de doutorar-se na Escola de Medicina. De lá,

nunca mais voltou ao Ceará, apesar de ter permanecido “sempre informado dos

problemas e dificuldades enfrentados pelos seus conterrâneos152”.

Em 1856, após a defesa da tese Diagnóstico do Cancro, abre consultório com um

colega, empreitada que não lhe ofereceu o desejado retorno financeiro. Paralelamente,

dava início, em sua própria residência, à atividade que lhe renderia a alcunha sempre

rememorada entre os espíritas, de médico dos pobres: atendia, em boa parte de seu

tempo livre, todos aqueles que não possuíam condições para pagar. Em 1857, passa a

integrar o Corpo de Saúde do Exército, tornando-se também membro da Academia

Imperial de Medicina. O ano seguinte reservava-lhe a “vaga de lente substituto da seção

de cirurgia da faculdade de medicina153”, que permitiu assumisse, no Exército, o posto

de segundo cirurgião-tenente. Ainda em 1858, casou-se pela primeira vez, com Maria

Cândida de Lacerda. Todas essas ocupações, contudo, não lhe suprimiam o tempo

dedicado aos clientes pobres. Segundo Abreu, o médico “ganhava aqui [nos trabalhos

remunerados] para despender lá [na ocupação voluntária] ‘tão exatamente que, ao

chegar o fim de ano, o balanço acusava grande lucro, mas o cofre estava tísico’154”. Em

texto que o mesmo Abreu lhe atribui, Bezerra assim descreve sua visão missionária

acerca da profissão médica:

O médico verdadeiro é isto: não tem o direito de acabar a refeição, escolher a hora, de inquirir-se se é longe ou perto... O que não acode por estar com visitas, por ter trabalhado muito a achar-se fatigado, ou por ser alta noite, mau o caminho ou o tempo, ficar longe, ou no morro; o que sobretudo pede um carro a quem não tem como pagar a receita, ou diz a quem lhe chora à porta que procure outro – esse não é médico, é negociante de medicina, que trabalha para recolher capital e juros dos gastos da formatura. Esse é um desgraçado, que manda para outro o anjo da caridade, que lhe veio fazer uma visita e lhe trazia a única

151 Os traços biográficos apresentados neste tópico do 2º capítulo foram extraídos de duas fontes: KLEIN FILHO, Luciano (Org.). Bezerra de Menezes – Fatos e Documentos, 2ª ed, Lachâtre, Niterói:2001 e ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. 152 KLEIN FILHO, Luciano. Op. Cit., p. 43.153 Idem, Ibidem, p. 146.154 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. p. 22.

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espórula que podia saciar a sede de riqueza do seu espírito, a única que jamais se perderá nos vaivéns da vida155.

A dedicação a essa tarefa que se impunha somava-se a uma outra atividade paralela que

desenvolvia, conferindo-lhe prestígio em meio à população carioca de diversos

segmentos sociais. Se o trabalho junto às camadas pobres auferia-lhe reconhecimento

entre os menos favorecidos, a atividade como colaborador da Revista da Sociedade

Físico-Química e como redator oficial dos Anais Brasilienses de Medicina tornava-o

conhecido e bem conceituado nos círculos científicos e literários, clássicos redutos da

burguesia e da aristocracia brasileiras no século XIX. O reconhecimento público ao

trabalho que desempenhava em diversas frentes, potencializado por uma personalidade

carismática e comunicativa156, trouxe consigo os convites para entrar na política. “Pela

insistência dos moradores da freguesia de São Cristóvão157” e também por estímulo de

“um dos chefes cariocas158” da ala liberal, candidata-se em 1860 a vereador do Rio de

Janeiro pelo partido. No ano seguinte, eleito, é obrigado a pedir baixa de suas ocupações

militares para assumir o cargo, em face da ameaça de impugnação por parte do chefe do

Partido Conservador, Haddock Lobo.

É durante esse primeiro mandato que morre sua primeira esposa, deixando-lhe dois

filhos pequenos para criar. Apesar do abatimento pela perda da companheira e da forte

oposição da ala conservadora, Bezerra reelege-se vereador em 1864, defendendo a

bandeira da valorização da municipalidade na estrutura sociopolítica brasileira159. No

ano seguinte, casa-se com sua segunda e última esposa, e, em 1867, é eleito deputado

geral pelo Rio de Janeiro, cargo que ocupa até 1868, quando os conservadores assumem

o poder e dissolvem a Câmara dos Deputados.

Durante os quatro anos em que passa fora do poder, permanece na oposição,

combatendo o Governo através de artigos publicados no órgão do Partido Liberal, A

Reforma, e no periódico semanal Sentinela da Liberdade. Publica também, em 1869,

um estudo intitulado A Escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para

extingui-la sem dano para a nação, evidenciando sua postura favorável ao

155 Idem, Ibidem, p. 23.156 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit., p. 19.157 KLEIN FILHO, Luciano. Op. Cit., p. 147.158 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit., p. 23.159 A esse respeito, dizia Bezerra: “(...) o elemento municipal é a célula geradora da verdadeira liberdade e da sábia direção dos povos (...)”. (ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. p. 26)

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abolicionismo, que já se insinuava à época como movimento organizado. Reeleito em

1873, volta a ser vereador, após ter sido diretor da Companhia Arquitetônica, e

exercendo também a presidência da Companhia Carris Urbanos de São Cristóvão. É

durante esse mandato que recebe, em 1875, do amigo Joaquim Travassos, a primeira

tradução para o português de O livro dos espíritos, feita, como já discutido no segundo

capítulo, pelo próprio Travassos. A respeito do episódio, Bezerra faz as seguintes

considerações:

Deu-mo [O livro dos espíritos] na cidade, e eu morava na Tijuca, a uma hora de viagem de bonde. Embarquei com o livro, e, não tendo distração para a longa e fastidiosa viagem, disse comigo: ora, adeus! Não hei de ir para o inferno por ler isto; e, depois, é ridículo confessar-me ignorante de uma filosofia, quando tenho estudado todas as escolas filosóficas. Pensando assim, abri o livro e prendi-me a ele (...) Lia, mas não encontrava nada que fosse novo para o meu espírito, e entretanto tudo aquilo era novo para mim! (...) Eu já tinha lido e ouvido tudo o que se acha em O Livro dos Espíritos, mas eu tinha a certeza de nunca haver lido obra alguma espírita, e, portanto, me era impossível descobrir onde e quando me fora dado o conhecimento de semelhantes idéias! Preocupei-me seriamente com este fato que me era maravilhoso e a mim mesmo dizia: parece que eu era espírita inconsciente, ou, como se diz vulgarmente, de nascença...160

A profunda impressão deixada pela leitura da obra levou Bezerra a buscar experiências

concretas no campo mediúnico, com o fito de ver confirmados os preceitos teóricos

expostos em O livro dos espíritos. Entre os diversos casos que relata, destacamos

aquele em que, aproveitando o ensejo de uma dispepsia que por longos anos o

acometera, e a qual nenhum médico da capital conseguia curar, foi pedir ajuda a um

médium receitista, em 1882. Tratava-se de figura pouco comum na Europa, mas

extremamente difundida nos primórdios do espiritismo no Brasil, e que se achava em

indissociável ligação com a homeopatia, que já desde a década de 40 daquele século se

fazia presente no país161.

Munindo-se da presença de um amigo, também médico, incumbido de acompanhar o

trabalho de psicografia162 do médium, que só recebia sobre o paciente um papel com o

primeiro nome e a idade, Bezerra afirma ter ficado abalado com o resultado da

consulta. O espírito que assinava a mensagem falava sobre a “elevada posição social”

do consulente e de “sua proficiência médica”, ao que se somava ainda, segundo

160 KLEIN FILHO, Luciano. Op. Cit., p. 82.161 Cf. WEBER, Beatriz Teixeira. Homeopatia e Medicina - Relações Sociais entre Práticas de Cura em Porto Alegre, Início do Século XX. Trabalho apresentado na 6ª Conferência da Associação de Estudos Brasileiros de Atlanta, EUA. 4 a 6 de abril de 2002. p 5. 162 Tipo de mediunidade caracterizado, grosso modo, pela expressão escrita de um espírito, através da mão do médium.

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Menezes, “uma descrição minuciosa de meus sofrimentos e suas causas

determinantes163”. Em menos de um ano estava curado da doença.

Nesse meio tempo, escrevera o ensaio Breves considerações sobre as secas do Norte

(1877), enfocando o problema crítico de sua terra natal, fora presidente interino e

efetivo da Câmara Municipal da Corte (1877/78), reelegera-se deputado pelo estado do

Rio de Janeiro (1878), e tivera o nome incluído nas listas senatoriais do Ceará (1878) e

do Rio (1885). Contudo, em 1885, ainda ocupando as funções de vereador e deputado,

retira-se da vida política, para dedicar-se definitivamente ao espiritismo.

Diante de todo o quadro referente a sua vida como homem público, que aqui

reconstruímos apenas em seus pontos-chave, parece-nos adequado – no que diz respeito

a sua conversão ao espiritismo, ocorrida no ano seguinte, e à repercussão dentro e fora

do meio espírita desse fato – atribuir a Bezerra de Menezes a condição de indivíduo

detentor da palavra autorizada. Especialmente na sociedade carioca e, de forma menos

intensa, em outras províncias do Império, as quais, no campo cultural, ocupavam uma

posição periférica em relação ao centro que era a capital imperial.

Expliquemo-nos melhor, antes de prosseguir: por palavra autorizada, entendemos a

capacidade de que é dotada uma pessoa ou instituição, dentro de determinado contexto,

de se expressar com legitimidade para ser ouvida e/ou seguido, em função do capital

simbólico de que dispõe. Essa definição baseia-se na concepção de Bourdieu segundo a

qual as “relações de comunicação são de modo inseparável, sempre, relações de poder

que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou do capital simbólico

acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos164”. O conceito de capital

simbólico, dentro dessa perspectiva, engloba tanto o capital econômico propriamente

dito – dinheiro, terras, imóveis, metais preciosos – como o capital cultural e social –

títulos acadêmicos, cargos políticos, liderança de movimentos e/ou instituições – que

fazem de um agente social, seja ele individual ou coletivo, detentor de legitimidade

para ter aceito seu discurso por determinados grupos dentro de uma sociedade. Como

explica Bourdieu:

163 KLEIN FILHO, Luciano. Op. Cit., p. 85.164 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006, p. 11.

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O poder simbólico, como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (...) O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é de competência das palavras165 (grifos nossos).

A palavra autorizada, contudo, não é conseqüência imediata da posse do capital

simbólico por um agente social. Não basta ocupar posições de destaque ou possuir

poder aquisitivo para ter sua fala legitimada pelos interlocutores. Estão em jogo

também interesses de cunho individual, coletivo e de classe, a que a comunicóloga

brasileira Inesita Araújo denomina contexto existencial166; o histórico do

relacionamento interno e externo de uma instituição, assim como as formas de

mediação discursiva estabelecidas ao longo do tempo entre ela e seus interlocutores

(contexto situacional167); além de outros fatores de maior ou menor importância, a

depender do contexto de que se trata. A esse respeito, Araújo afirma:

As relações de poder entre interlocutores são, assim, determinadas pela forma como os dispositivos de enunciação são reconhecidos e consumidos. Ao reconhecer-se no enunciado de um texto, ao sentir-se identificado com a cultura ali expressa, ao acatar as imagens que o emissor lhe propõe, o receptor aceita as regras do jogo e fica sob o poder do texto. Podemos, então, dizer que o poder concerne aos “efeitos discursivos”, diz respeito às gramáticas de reconhecimento, ao “consumo discursivo”. Pode ser apreendido na análise dos processos de circulação, negociação e consumo dos discursos (em outros termos, nos processos de recepção) 168.

Sem pretender adentrar o complexo campo dos estudos de recepção, destacamos da

análise de Araújo, para discuti-lo mais detidamente no terceiro capítulo, o conceito de

dispositivos de enunciação, que ela define como “a forma particular pela qual um

locutor marca sua posição discursiva, tanto em relação à língua e ao dizer como em

relação ao seu interlocutor169” e que, acreditamos, possa servir como orientação para o

desenvolvimento do conceito enunciado por Lewgoy de estrutura discursiva, citado no

final do tópico anterior170. Além disso, parece-nos bastante adequada à investigação que

empreendemos neste trabalho a idéia de a identificação do receptor com a cultura e as 165 Idem, ibidem, pp. 14/15.166 ARAÚJO, Inesita. Mediações e poder. Texto apresentado ao GT Estudos da Recepção, no ALAIC 2000, em abril de 2000, Santiago do Chile, p. 3. Disponível em http://www.eca.usp.br/alaic/chile2000/5%20GT%202000Recepción/ Inesita Araujo.doc . Acessado em: 12/12/2006.167 Idem, Ibidem.168 Idem, Ibidem.169 Idem, Ibidem.170 Ver p. 47.

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imagens expressas em um enunciado ser, ao lado do capital simbólico de que dispõe o

emissor, uma condição essencial para sua submissão ao poder do texto. O poder do

texto, segundo Araújo, faz parte da luta pelo poder, que é também uma disputa por

fazer valerem certas formas de percepção do real sobre as outras, um processo mediado,

via de regra, por discursos. Na medida em que o homem constrói sua visão de mundo a

partir dos discursos que lê e elabora acerca do real, ganha sentido o conceito de poder

do texto, que consiste na capacidade inerente ao texto de, sob certas condições, impor

determinadas formas de perceber a realidade como válidas ou verdadeiras.

Assim, a importância da idéia a que nos referimos para a presente investigação liga-se

ao fato de Bezerra de Menezes, dono de uma personalidade forte e carismática, detentor

de significativo capital social e cultural dentro daquele contexto específico, e dotado de

ampla experiência na prática da elaboração de discursos escritos e falados para

receptores dos mais diversos segmentos sociais, reunir em si alguns dos principais

atributos necessários para ter seu discurso legitimado por agentes de diferentes classes

e posições sociais. Tais atributos ficam, a nosso ver, patentes, quando do

pronunciamento oficial de sua conversão ao espiritismo, que teve lugar no salão da

Guarda Velha, na capital, a 16 de agosto de 1886. Ao simples anúncio de um ato

público para declarar sua adesão à doutrina espírita, mais de 1.500 pessoas,

majoritariamente pertencentes à burguesia e à aristocracia, acorreram ao auditório para

ouvir suas palavras. Segundo Abreu, “a imprensa registrara o acontecimento como um

sinal de tempos novos. O telégrafo transmitiu a notícia aos Estados. As livrarias

venderam maior número de livros espíritas. A Federação [Espírita Brasileira, já com

dois anos à época] cresceu em adesões171”. Esse momento marca o início de uma

intensa militância pela causa espírita por Bezerra de Menezes, que, trabalhando em

múltiplas frentes, passa a canalizar toda a sua experiência política, jornalística, médica

e literária para a resolução das disputas internas do movimento espírita brasileiro e para

a divulgação das idéias espiritistas em todo o país.

3) O líder e mediador espírita

Nesse primeiro ano de atividade dentro do movimento espírita, não encontramos

registro de filiação de Bezerra de Menezes a nenhuma instituição específica, tampouco

171 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. p. 47.

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descobrimos referências a publicações de qualquer natureza assinadas pelo político. Seu

grande foco, nesse momento inicial, parece ter sido o de responder em particular ao

“círculo católico” que, representado pelo irmão mais velho de Menezes, Manoel Soares

da Silva Bezerra, endereçou-lhe ainda, em 1886, uma cara de repúdio por sua adesão ao

espiritismo. Em mais de cem folhas de papel almaço enviadas no formato de carta ao

irmão, Bezerra escreve uma longa dissertação acerca do espiritismo, “uma verdadeira

profissão de fé espiritista em cerrada argumentação de confronto com a dogmática do

catolicismo fervorosamente partilhado por seu irmão172”, que viria a ser publicada na

íntegra só em 1920, nas páginas d’O Reformador. Já em fins de 1887, aponta Abreu173

que a coluna O Espiritismo – Estudos Filosóficos, publicada de outubro daquele ano até

dezembro de 1894 no jornal O País, foi uma incumbência dada a Bezerra pela

Comissão de Propaganda do Centro da União Espírita do Brasil, que já conseguira o

espaço algumas semanas antes por meio de acordo com Quintino Bocaiúva, diretor do

periódico. Essa questão, contudo, será devidamente aprofundada no terceiro capítulo.

Interessa-nos, por ora, o fato de se tratar a publicação de um convite feito ao político, e

por ele prontamente aceito, pelo principal reduto dos científicos à época, o que, a nosso

ver, evidencia certa aproximação inicial de Bezerra com essa linha de pensamento

espírita. Contudo, ao longo dos anos, os fortes desentendimentos a ala levou-o a cerrar

ombros declaradamente com os místicos, combatendo os científicos e “usando para isso

de uma violência inusitada nos arraiais espíritas174”, como dirá Abreu.

Cada vez mais envolvido com o cindido movimento espírita, em 1889 torna-se Bezerra

de Menezes o segundo presidente da Federação Espírita Brasileira. Tanto Abreu quanto

Quintella reconhecem na escolha do médico dos pobres para ocupar o cargo uma

estratégia adotada pela instituição para amenizar as divergências entre as facções que

disputavam a hegemonia do espiritismo no Brasil. O primeiro afirma que “urgia que

aparecesse alguém com prestígio maior do que o de todos, capaz de fazer em volta de si

um partido dominante175”, enquanto o segundo defende que “a intenção dos febianos

era colocar um elemento de grande prestígio e força moral na presidência, a fim de

fortalecer o processo de unificação176”.

172 KLEIN FILHO, Luciano. Op. Cit. p. 99. 173 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. p. 49.174 Idem, Ibidem, p. 40.175 Idem, Ibidem, p. 50.176 QUINTELLA, Mauro. Op. Cit.

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Uma vez à frente da instituição, ele procura utilizar-se de seus atributos para promover

a união dos espíritas em torno de um centro congregador. Curiosamente, sua proposta,

ao reunir num congresso representantes de 34 casas espíritas cariocas, foi a de criar um

outro Centro federativo, que não fosse a própria FEB. Procurando adotar uma postura

“neutra”, Bezerra de Menezes não conseguiu lograr sucesso nessa primeira empreitada.

Por ser pouco atraente para os místicos a idéia de dividir o mesmo espaço com os

científicos, e, para estes, pouco motivadora a possibilidade de ter que fazer qualquer

tipo de concessão aos místicos, uma parcela mínima das instituições que, num primeiro

momento, mostraram-se dispostas a aderir à idéia movimentaram concretamente suas

ações no sentido de fortalecer o projeto. A falta de apoio foi um golpe duro, que acabou

por arrefecer o ânimo de Bezerra. Tanto que, no fim de 1889, entrega a presidência da

FEB, para dedicar-se à coluna d’O País e ao Centro Fraternidade, que, a despeito da

falta de suporte das outras casas, fundara, pelo menos como instituição espírita regular.

Em 1890, com a promulgação do Novo Código Penal e a inclusão da palavra

Espiritismo no artigo 157, que versava sobre abuso da credulidade pública177, ocorre

certa mobilização de espíritas e instituições dos mais diversos matizes contra o texto.

Enquanto a Federação envia uma Carta Aberta ao Ministro da Justiça, no que é apoiada

pelo Centro de Bezerra, a União Espírita envia uma representação ao Chefe do Governo

Provisório. Segundo Abreu, “a grita coletiva foi tão grande, que o autor do Novo

Código Penal (...) Dr. Antonio Batista Pereira, teve que vir, em folhetim do Jornal do

Comércio, de janeiro de 1891, rebater os (...) argumentos dos espíritas”. Afirmava o

jurista que a referência presente no Código não se ligava ao “Espiritismo filosófico”,

mas sim ao “baixo Espiritismo”, postura que já mostrava indícios das intermináveis

disputas em torno da definição do termo cunhado por Allan Kardec178, que tiveram

lugar tanto na Europa quanto no Brasil. Como não cabe em nossa análise aprofundar

177 Segundo Quintella, a redação do artigo possuía os seguintes trechos: “É crime praticar o Espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancia (...), inculcar curas de moléstias (...) e subjugar a credulidade pública. Pena: prisão celular de 1 a 6 meses e multa de 100 a 500 $” (QUINTELLA, Mauro. Op. Cit.) 178 A palavra Spiritisme surge como um neologismo criado por Allan Kardec para nomear o conjunto de princípios de ordem filosófica, moral e religiosa expressos em O livro dos espíritos. Contudo, ao mesmo tempo, assenta também Kardec os princípios do espiritismo na crença na existência dos espíritos e na possibilidade de se comunicar com eles, oferecendo uma definição tão ampla que poderia se coadunar com diversos tipos de crenças e tradições. Essa é uma aparente tensão no pensamento de Kardec que pretendemos explorar num trabalho futuro.

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essa discussão, limitamo-nos a apontar o trabalho de Giumbelli179 como referência para

a investigação do tema.

Apesar da garantia de Pereira de que o movimento espírita nada sofreria com a nova

redação do Código Penal, assevera Abreu que a repressão policial atingiu também as

instituições espíritas a partir de 1891. Até o Reformador teve sua publicação

interrompida no fim daquele ano, para voltar só em 1894, deixando, nesse meio tempo,

a coluna O Espiritismo – Estudos Filosóficos como a única publicação espírita regular

de ampla tiragem180.

Bezerra de Menezes, após ter deixado a presidência da FEB, passara a freqüentar com

assiduidade alguns redutos dos místicos, onde teve oportunidade de conhecer e se

aprofundar na obra de Roustaing. Essa aproximação com a outra vertente majoritária

das disputas espíritas fez com que, em 1895, quando já havia deixado O País para

publicar sua coluna no Jornal do Brasil, ele fosse convidado novamente para assumir o

posto maior da Federação. Dessa vez, somada ao seu prestígio pessoal, vinha a

preocupação dos dirigentes da entidade com o crescente poder dos científicos. É que

num momento de desagregação temporária do movimento espírita, como foram os

primeiros anos daquela década de 90, os científicos, apoiados pelo sucesso “nas rodas

cultas brasileiras” das experiências realizadas por Charles Richet181 e Cesare

Lombroso182 na Itália, com a médium Eusapia Palladino183, tornaram-se maioria não só

na Federação como também no Centro Espírita Fraternidade, o mais antigo ainda em

atividade, que foi transformado em Sociedade Psicológica Fraternidade. O presidente

da FEB, à época, era Dias da Cruz, que procurava manter a neutralidade daqueles que,

tendentes aos místicos, preferiam deixar de lado as diferenças para dialogar com todos.

179 GIUMBELLI, Emerson. Op. Cit.180 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. pp. 65/66.181 Charles Robert Richet (1850 - 1935) foi um fisiologista francês, ganhador do Nobel de 1913, por ter descoberto a anafilaxia. Dedicou-se por longos anos ao estudo de fenômenos extra-sensoriais, que o levou, em 1905, à criação da metapsíquica, posteriormente transformada na parapsicologia.182 Cesare Lombroso (1835 - 1909) foi um criminologista italiano, fundador da Escola Italiana de Criminologia Positivista. Sua teoria caracteriza-se pelo determinismo biológico na avaliação sobre a tendência à criminalidade no ser humano. Tornou-se espiritualista após investigar os fenômenos produzidos pela médium Eusapia Palladino.183 Eusapia Palladino (1854 - 1918) foi uma famosa médium de efeitos físicos napolitana. Submeteu-se à investigação de pesquisadores e intelectuais como Henri Bérgson e Giovanni Schiaparelli, além dos já citados Richet e Lombroso, que deram parecer favorável à autenticidade dos fenômenos por ela produzidos.

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Em 1894 criara-se, liderado por Angeli Torteroli, uma dissidência da Federação, o

Centro da União Espírita de Propaganda do Brasil, como nova tentativa de formar um

órgão centralizador do espiritismo declaradamente científico. Bezerra de Menezes, sem

vinculação direta à FEB, assume a direção da nova entidade, mas uma série de

divergências com o perfil majoritário dos espíritas do Centro, num momento em que

Bezerra já se via fortemente inclinado aos místicos, fê-lo romper com a instituição, para

assumir, em 1895 a presidência da Federação, posição que ocuparia até sua morte, em

1900. Segundo Quintella, “é assim que, no dia 3 de agosto de 1895, Adolfo Bezerra de

Menezes Cavalcanti assume novamente a direção da FEB, numa assembléia em que os

estatutos da instituição foram reformados para concederem amplos poderes ao novo

presidente e tornarem obrigatório o estudo de J.B. Roustaing (artigo 4º, 1º parágrafo)”.

Acreditamos ser bastante emblemática da nova postura que Bezerra assumiria nesse

segundo mandato a implantação do estudo da obra de Roustaing como item obrigatório

do roteiro semanal de atividades da FEB, principalmente se levarmos em conta que a

mesma medida havia sido tomada pelo médico dos pobres em relação a O livro dos

espíritos em seu primeiro mandato. Se, naquela experiência inicial era sobre uma

leitura kardequiana de espiritismo que Bezerra fundamentava seu discurso, seu

argumento nessa segunda e derradeira oportunidade à frente da Federação será, quando

não declaradamente pautado pela leitura roustanguista de espiritismo, evidentemente

inspirado nela. E isso se soma a amplos poderes estatutariamente conferidos, em caráter

extraordinário, ao presidente da instituição, que Quintella chega a chamar de

discricionários. Assim, via-se Bezerra imbuído não só da legitimidade que seu capital

simbólico e sua habilidade para se fazer compreendido dotavam-no, mas também da

legalidade para fazer o que julgasse necessário com vistas à desejada unificação do

movimento espírita. E foi o que fez.

Com esse objetivo, Bezerra de Menezes terminou por envolver-se em diversas

discussões com o grande líder dos científicos, Angeli Torteroli, dentre as quais

Quintella destaca uma de especial interesse para a análise que empreendemos no

terceiro capítulo: trata-se de uma ocasião em que o científico afirmou publicamente que

“Jesus não era seu senhor - e sim seu irmão e seu igual184”. Diante de tal assertiva,

Bezerra publica dura crítica a Torteroli no Reformador e convoca os espíritas a

184 QUINTELA, Mauro. Op Cit.

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escolherem entre a Federação e o Centro da União. Nas páginas do periódico oficial da

FEB, entre 1895 e 1897, diversos artigos assinados pelo presidente da instituição

tinham como foco a crítica ferrenha aos científicos, suas instituições e suas práticas.

Criticou, ainda, a montagem da peça O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, em

reunião do Centro da União, escreveu os artigos Falsos profetas e Pelo fruto se conhece

a árvore, sobre os científicos, publicou aviso oficial de que a FEB não guardava

nenhuma relação com o Centro da União, contestou o lema Amor, Deus e Liberdade da

União, “afirmando que quem não segue Jesus, não pode invocar o nome de Deus185”.

Para além de tantas e reiteradas críticas que faz o médico cearense ao longo das páginas

do Reformador aos científicos, ao Centro e a Torteroli, destacamos da postura assumida

por Bezerra o forte viés religioso que passa a caracterizar suas ações e seus discursos

nesse segundo mandato à frente da Federação. Definitivamente decidido por um dos

lados da disputa, ele não se empenha tão somente em mediar as divergências existentes,

mas sim em impor a hegemonia de uma vertente pela força de seus discursos falados e

escritos. E logra significativo êxito nesse embate quando, em 1897, após uma saída em

massa de membros de sua diretoria, o Centro da União Espírita de Propaganda do

Brasil fecha as portas. Como dirá Abreu, na última frase de sua obra, “era a fase dos

místicos186, que dura até hoje187”.

4) Bezerra e o habitus católico

Antes de empreendermos a análise da coluna O Espiritismo – Estudos Filosóficos, faz-

se necessário realizemos uma breve discussão sobre um conceito-chave da nossa

investigação: o de habitus católico, que, como avaliamos neste trabalho, influenciou o

185 Idem, Ibidem.186 Trata-se, a nosso ver, de frase que merece uma análise mais detida, na medida em que, com a ascensão dos místicos à época, e, tendo o espiritismo que se deparar com novos desafios no campo das disputas religiosas brasileiras durante o século XX, as tipificações de espíritas que talvez fossem válidas para aquele contexto tendem a tornar-se obsoletas ou impróprias para os dias atuais. A esse respeito, D’Andréa fala em três tendências no espiritismo brasileiro contemporâneo: uma voltada para uma síntese com as tradições afro-brasileiras, outra que se concentra numa busca mais secular e paracientífica, e outra que se propõe a diálogos diversos no campo religioso, notadamente com os representantes da Nova Era. (D'ANDREA, Antony. O self perfeito e a nova era. Individualismo e reflexividade em religiosidades pós-tradicionais. São Paulo, Loyola, 2000). Em todo caso, como já discutido no início do tópico Espiritismo no Brasil, é consensual entre os pesquisadores que a dimensão religiosa, tão cara aos místicos das primeiras décadas do espiritismo no Brasil, mantém um predomínio inabalável até hoje entre os espíritas do país. 187 ABREU, Silvino Canuto. Op. Cit. p. 104.

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estilo discursivo do espiritismo posterior a Bezerra, graças à ação deste em diversos

campos, mas particularmente no espaço que estamos discutindo.

O conceito de habitus remonta, segundo o sociólogo francês Loïc Wacquant, à noção

aristotélica de hexis, que remetia a “um estado adquirido e firmemente estabelecido do

carácter moral que orienta os nossos sentimentos e desejos numa situação e, como tal, a

nossa conduta188”. Traduzido por Tomás de Aquino, no século XIII, o hexis tornou-se

habitus, e adquiriu “o sentido acrescentado de capacidade para crescer através da

actividade, ou disposição durável suspensa a meio caminho entre potência e acção

propositada189”. O habitus permaneceu sem maiores acréscimos de significação por

muito tempo, tendo sido utilizado discretamente por sociólogos da geração clássica, da

transição entre os séculos XIX e XX, como Émile Dürkheim, Marcel Mauss, Max

Weber, e Thorstein Veblen190. Foi ainda discutido superficialmente por outros

intelectuais durante a primeira metade do século passado, mas ganhou um papel central

apenas no pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu.

É por meio de Bourdieu que o habitus assume uma função de conceito mediador nas

relações entre indivíduo e sociedade, explicitando o modo pelo qual esta se faz presente

nas pessoas através do estabelecimento de disposições duráveis ou condicionamentos

comportamentais “para pensar, sentir e agir de modos determinados, que

então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e

solicitações do seu meio social existente191”. A enunciação clássica do

conceito propõe a superação da dicotomia indivíduo/sociedade e das

análises sociológicas que privilegiam ora a dimensão micro, ora a

macro das relações sociais. A educadora e socióloga Ana Maria

Fonseca de Almeida explica que as primeiras tendem a “considerar as

interações entre os agentes sociais pelo seu valor de face e, por outro lado, a

desconsiderar as relações de classe que definem a posição social dos interlocutores e

estruturam as interações como relações de poder (opressão e submissão) 192”, enquanto a 188 WACQUANT, Loïc. “Esclarecer o habitus”, in Sociologia, 14, 2004. p. 35.189 Idem, ibidem.190 Cf. Idem, ibidem, pp.35/36.191 Idem, ibidem, p. 36.192 ALMEIDA, Ana Maria Fonseca de. “Notas sobre a sociologia do poder: a linguagem e o sistema de ensino”, in Horizontes, Bragança Paulista, v. 20, jan./dez. 2002, p 19. Disponível em: http://www.saofrancisco.edu.br/edusf/revistas/horizontes/Horizontes-2002/horizontes-6.pdf. Acessado em: 01/01/2007.

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tendência das segundas é a menosprezar “a parcela de autonomia de que dispõem os

agentes sociais e, assim fazendo, não permitem o estudo sistemático das maneiras como

as estruturas realizam-se na prática cotidiana dos agentes193”.

Dessa forma, Bourdieu defende que a prática, sem ser um resultado

mecânico dos impositivos da estrutura social, nem a conseqüência

pura da busca intencional das pessoas por atingirem seus objetivos

particulares, é:

(...) o produto de uma relação dialética entre a situação e o habitus, entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e acções e torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, graças à transferência analógica de esquemas adquiridos numa prática anterior. 194

Noutras palavras, o habitus se expressa em disposições e comportamentos preferenciais

adotados pelos indivíduos, que se forjam no contato estabelecido entre estes e a

sociedade, e aos quais, sem que se dêem conta, eles recorrem para reagir às

contingências cotidianas. São elementos que se elaboram “sob o nível da consciência195”

preferencialmente na infância, e que se constituem na forma de a sociedade fazer-se

presente na estrutura cognitiva dos indivíduos, propiciando-lhes o instrumental

adequado para lidar com as diversas situações e vivenciar as várias dimensões presentes

no dia-a-dia do homem. A elaboração de tal arcabouço predisposicional e

comportamental, segundo Bourdieu196, baseia-se fortemente nas experiências da

infância. A esse respeito, o sociólogo irlandês Karen Andersen afirma que “é crucial

entender que é através da socialização da criança dentro das crenças e das disposições

da sociedade que o comportamento individual, os pensamentos e as atitudes recebem

forma e direcionamento197”. Destaca, contudo, que, por ser o comportamento humano

estratégico, e as situações do dia-a-dia imprevisíveis, o habitus, na verdade,

proporciona ao indivíduo uma “predisposição para o jogo”: não sendo capaz de

193 Idem, ibidem.194 BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. Precedido de três estudos de etnologia Kabila. Oeiras: Celta, 2002, p. 261. apud Idem, ibidem.195 WACQUANT, Loïc. Op. Cit. p. 37.196 BOURDIEU, Pierrre. The Logic of Practice. Cambridge: Polity Press, 1990 apud ANDERSEN, Karen. Religious Socialisation and Habitus Change in Irish Society, University College Dublin, Irish Research Council for the Humanities and Social Sciences, abril de 2006, p. 2. Disponível em: http://www.ucd.ie/sociology/research/ccs001andersonapril2006.pdf.197 ANDERSEN, Karen. Op. Cit. p. 2.

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estabelecer regras rígidas e precisas para guiar as ações individuais ante cada

contingência diária, ele oferece ao ser humano uma percepção ampla de “como o jogo

pode ser melhor jogado”, quais opções encontram-se a sua disposição e o que ele deve

fazer para atingir da forma mais eficaz os resultados a que se propõe.

Explicitando melhor suas intenções ao reelaborar o conceito de habitus, processo em

que procurou manter, em linhas gerais, e, ao mesmo tempo, superar, as idéias expressas

pelo conceito em seus formuladores clássicos198, Bourdieu afirma que:

(...) eu desejava pôr em evidência as capacidades “criadoras”, activas, inventivas, do habitus e do agente (que a palavra hábito não diz), embora chamando a atenção para a ideia de que este poder gerador não é o de um espírito universal, de uma natureza ou de uma razão humana, como em Chomsky – o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural –, mas sim o de um agente em acção (...) 199

A educadora brasileira Maria da Graça Jacintho Setton destaca no habitus seu potencial

de explicar o presente por meio da análise de um sistema formulado no passado, mas

ainda assim, integrado num processo dinâmico, em constante transformação:

Trata-se de um conceito que, embora seja visto como um sistema engendrado no passado e orientando para uma ação no presente, ainda é um sistema em constante reformulação. Habitus não é destino. Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente. Habitus como uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas. Embora controvertida, creio que a teoria do habitus me habilita a pensar o processo de constituição das identidades sociais no mundo contemporâneo200.

O habitus, como dirá Wacquant, é ao mesmo tempo um princípio de sociação e de

individuação, um elemento estruturado e estruturante. Como princípio de sociação,

permite que os indivíduos em geral submetidos a condições semelhantes de socialização

– religiosos de uma mesma tradição, estudantes de uma mesma época, homens de uma

mesma classe social – compartilhem “categorias de juízo e de acção201”. É, dentro dessa

198 Bourdieu faz uma dura crítica à “procura da originalidade a todo custo”, que faz muitos pesquisadores inventarem neologismos ou tentarem associar seu nome a “novos” conceitos. Freqüentemente, segundo ele, não passam de reelaborações de noções já bem antigas, cuja existência se teria afigurado clara ao investigador caso tivesse se dedicado a um estudo mais rigoroso, ou mais bem-intencionado, do “conjunto dos conhecimentos adquiridos, dispersos e pouco formalizados, da disciplina”. Cf. BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. pp. 62-64.199 Idem, ibidem, p. 61.200 SETTON, Maria da Graça Jacintho. “A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea”, in Revista Brasileira de Educação, Maio/Jun/Jul/Ago 2002 Nº 20, p. 61. Disponível em: http://www.anped.org.br/rbe20/anped-20-04.pdf. Acessado em: 17/12/2006.201 WACQUANT, Loïc. Op. Cit. p. 38.

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perspectiva, um elemento estruturado pelo meio social em que acha inserido o

indivíduo. Por sua vez, como princípio de individuação, permite que cada sujeito,

realizando ao longo de sua existência uma trajetória absolutamente única, caracterizada

por um conjunto por excelência particular de experiências, possa “internalizar uma

combinação incomparável de esquemas202”, dentre aqueles possíveis

dentro da estrutura social. Dessa forma, o habitus é também

elemento estruturante das ações e relações estabelecidas pelo

homem com o meio.

Para a nossa investigação, do amplo universo abrangido por esse “conjunto dinâmico de

disposições sobrepostas em camadas que grava, armazena e prolonga a influência dos

diversos ambientes sucessivamente encontrados na vida de uma pessoa203”, que é o

habitus, pinçamos um elemento específico que, particularmente no contexto social em

que se insere nossa análise, ganha um relevo excepcional: as crenças e disposições

religiosas, nomeadamente aquelas ligadas ao universo católico. Como afirma o

antropólogo brasileiro Aldo Litaiff, na medida em que procura desvelar

condicionamentos sociais a que se acha submetido o indivíduo em sua ação criativa

sobre o meio, “a noção de ‘habitus’ de Pierre Bourdieu tem importância central para a

compreensão da questão das crenças e das ações humanas204” (grifo nosso),

acrescentando ainda que nela repousa “o fundamento das crenças que sustentam o

sentido da realidade social ou o senso comum205” (grifo nosso).

Cremos ser possível, no contexto que analisamos, falar de um senso comum religioso e,

mais especificamente, como faz o sociólogo Antônio Flávio Pierucci206, de um senso

comum católico, que integra a visão de mundo católica aos juízos de ação e de valor da

maior parte da população. É imprescindível, contudo, esclarecer inicialmente de que

catolicismo estamos falando. Falamos de um catolicismo que vive na transição do

Império para a República, livre há apenas algumas décadas para receber as bulas e 202 Idem, ibidem.203 Idem, ibidem.204 LITAIFF, Aldo. “Antropologia e Linguagem: uma abordagem Neo-pragmatista”, in Linguagem em Discurso, Tubarão, v. 3, n. 1, p. 225-272, 2002. Disponível em: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0301/09.htm. Acessado em 12/12/2006.205 Idem, ibidem.206 PIERUCCI, Antônio Flávio. “Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido”, in Rev. bras. Ci. Soc.,  São Paulo,  v. 13,  n. 37,  1998.  Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000200003&lng=en&nrm=iso. Acessado em: 05/01/2007

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documentos da Santa Sé sem necessitar do placet do imperador, apesar de ainda viver

sob o regime do Padroado, que possibilitava ao imperador intervir nas nomeações e

ordenações eclesiásticas. Um catolicismo que, na década de 70 daquele século, entrara

em embate direto com a Coroa por tentar pôr em prática a recomendação do Vaticano

de empreender uma luta anti-maçônica dentro de um império cheio de maçons ilustres e

influentes. A romanização e a clericalização estavam em alta, e havia uma tentativa por

hegemonizar-se o discurso católico a partir das orientações papais, minorando tanto

quanto possível os desvios do catolicismo popular e suas aproximações com o

coronelismo do sertão207. Como explica o historiador Márcio de Souza Porto:

Mais notadamente a partir da segunda metade do século XIX, o episcopado brasileiro passou a adotar uma posição clara no sentido de desvincular a Igreja da intervenção do Estado, e colocá-la sob as ordens diretas do epicentro da ortodoxia da fé católica: Roma. Os principais discursos e práticas dos bispos reformadores voltavam-se para dois objetivos principais: o disciplinamento do clero e dos fiéis. (...) Quanto ao (...) objetivo (...) de disciplinar o povo cristão, a estratégia esboçada tinha como meio principal a desqualificação do catolicismo laico, luso-brasileiro, exteriorizado nas festas, nas devoções e muito pouco sacramental. 208

Trata-se de uma sociedade em que, como dirá a socióloga irlandesa Teresa Dowling, “é

quase natural ser católico209”. A busca pela homogeneização do discurso, somada ao

ímpeto romanizador que se evidencia desde o advento da Questão Religiosa, faz com

que a cosmovisão católica seja um elemento extremamente presente no cotidiano das

pessoas, e que a disposição reverente para com as coisas sagradas, característica da

piedade católica, seja um fator marcante em sua relação com tudo quanto se ligue a

questões espirituais.

Nesse quadro específico, o compartilhamento de crenças apresenta-se também como um

elemento essencial, na medida em que elas, ao lado das normas, são “culturais mais do

que pessoais210” e possibilitam ao indivíduo integrar-se ao meio com mais facilidade.

207 Cf. MIRANDA, Júlia. O poder e a fé: discurso e prática católicos. Fortaleza, Ediões UFC, 1987, pp. 28 e seguintes. 208 PORTO, Márcio de Souza. “Catolicismo laico e catolicismo romanizado no Ceará: tensões, conflitos e resistências, na transição do século XIX para o século XX (esse estranho Felismino)”, in Mneme – Revista de Humanidades, v. 7, nº 17, pp. 219/219.209 DOWLING, Teresa. “Young Catholic Adults in Ireland” in J Fulton, A. M. Abela, I. Borowik, T. Dowling, P. L. Marler and Luigi Tomasi (eds) Young Catholics at the New Millennium: The Religion and Morality of Young Adults in Western Countries. Dublin: University College Dublin Press, 2000, p. 55 apud ANDERSEN, Karen. Op. Cit. p. 4.210 PARSONS, Talcott. The Social System. London: Routledge and Kegan Paul, 1951, p. 12 apud Idem, ibidem.

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Ora, que elementos compunham o quadro relativamente homogêneo de crenças e

disposições característicos do habitus católico brasileiro naquele contexto? Poderíamos

citar, grosso modo, a crença monoteísta trinitária, num Deus único que se manifesta em

Três Pessoas, a idéia de salvação por meio da fé na Igreja e do recebimento dos

sacramentos; a confiança absoluta e irrestrita na Bíblia, segundo a interpretação que

dela fazia a Igreja; a marcante devoção aos santos do catolicismo popular; a disposição

reverente e submissa diante do sagrado, ou seja, de tudo o que se relacionasse ao divino,

ao espiritual.

Destacamos, contudo, dentre uma ampla gama de caracteres, alguns aspectos

importantes dessa dimensão religiosa do habitus que se podem entrever de modo mais

marcante no texto assinado por Bezerra de Menezes. Em suas páginas, decerto não se

poderão encontrar apologias declaradas a dogmas da Igreja ou à visão de mundo por ela

preconizada, mesmo porque Bezerra acreditava ser a “igreja romana” o mais

“formidável inimigo” do cristianismo e também o mais “prestimoso aliado” do

materialismo211. A questão repousa não propriamente na recorrência consciente do

médico a elementos do habitus católico para a elaboração de seu discurso sobre o

espiritismo, conquanto certas analogias e metáforas muito provavelmente o sejam, mas,

justamente pela natureza já discutida do habitus, de arcabouço inconsciente de crenças,

pendores e disposições para se relacionar com a sociedade, na utilização não-intencional

de elementos desse habitus em sua construção discursiva.

É assim que Bezerra 1) demonstra uma reverência particular pelas figuras de Jesus, que

se aproxima em muitos aspectos, no discurso da coluna, do Cristo de Deus, de

Roustaing; e de Maria, que, praticamente ignorada no espiritismo francês, ganha

significativo relevo na versão brasileira, para o que contou bastante o discurso do

médico dos pobres; 2) procura referências bíblicas para legitimar seu discurso,

dedicando dezenas de colunas à proposta de evidenciar a fundamentação bíblica para

algumas idéias centrais da doutrina espírita, a partir de uma releitura das Escrituras.

Essa é uma tendência que, em certa medida, basicamente no que tange a questões

morais e à exemplificação de conceitos importantes do espiritismo, como a

reencarnação e a mediunidade, já se pode notar em Kardec, mas que nos parece ganhar

211 KLEIN, Luciano. Op. Cit. p. 92.

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um destaque muito maior com Bezerra; 3) recorre a dispositivos de enunciação212

inspirados naqueles utilizados pelo linguajar católico, incluindo-se terminologias,

analogias e imagens próprios daquele universo religioso; e 4) incorpora a postura de

submissão e deferência que caracteriza a relação católica com o espiritual.

Esclarecido esse ponto de nossa investigação, partamos para a análise da coluna

propriamente dita.

212 Ver p. 52.

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O Espiritismo por Bezerra de Menezes

1) A imprensa brasileira e o jornal O País no século XIX

A fim de tornar mais claras e compreensíveis as características da coluna Espiritismo –

Estudos Filosóficos, façamos uma breve incursão nas particularidades da imprensa

brasileira naquele contexto. É no século XIX que surge a imprensa no Brasil. Os

primeiros jornais, a exemplo dos pioneiros Gazeta do Rio de Janeiro e Correio

Braziliense, eram ainda muito distantes do cotidiano brasileiro. Mantinham-se voltados

para questões burocráticas, administrativas ou internacionais. Segundo Mariani, “o

discurso jornalístico do Correio Braziliense e da Gazeta do Rio de Janeiro se insere no

imaginário europeu. As vozes veiculadas são procedentes do Velho Mundo,

desempenhando um papel importante na organização da memória histórica. O brasileiro

não fala nestes jornais, ele é falado pelo europeu213”.

Se com a Independência, em 1822, a imprensa começa a ocupar a função de espaço

consolidado para a discussão pública em substituição aos pregões, cartazes e às leituras

em roda214, é só nos idos de 1840 que ela passa a servir de palco para a busca pela

elaboração de uma identidade nacional, desvinculada da metropolitana. Aí ganha lugar

a aproximação entre jornalismo e literatura, que por quase um século marcaria ainda a

prática jornalística brasileira, fortemente caracterizada pela ausência de fronteiras claras

entre textos opinativos e noticiosos215 e pela publicação gradual de livros em formato

folhetinesco216. Na década de 70, estimulados pela ascensão dos ideais abolicionistas,

213 MARIANI. Bethânia. Os primórdios da imprensa no Brasil ou: de como o discurso jornalístico constrói memória. In: Orlandi, P. E. (org.). Discurso Fundador – a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas, SP: Pontes, 2001 apud FERREIRA, Lucia M. A. “Construindo identidades femininas no início do século XIX: o papel da imprensa”. In: I Simpósio internacional de Análise de Discurso Crítica; VII Encontro Nacional de Interação em Linguagem Verbal e Não-Verbal, 2005, Brasília. I Simpósio internacional de Análise de Discurso Crítica; VII Encontro Nacional de Interação em Linguagem Verbal e Não-Verbal, 2004. v. 1. p. 1.214 FERREIRA, Lucia M. A. Op. Cit. p. 6.215 PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo, São Paulo, Contexto, 2005, p.45216 CRUZ FERREIRA, Tania Maria Tavares Bessone da. “O Que liam os cariocas no século XIX?”, NP IV-Produção Editorial no XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2005.

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pelo lançamento do Manifesto Republicano e do Clube homônimo – ambos em 1870 –

surgem diversos jornais em todo o país. A imprensa, nesse período, dedicava-se a

combater a aura de sacralidade que revestia instituições como a monarquia, o latifúndio

e a escravidão217, assumindo uma postura declaradamente liberal, em contraposição às

ideologias que procuravam legitimar o status quo. Segundo Azêdo, a militância da

imprensa foi “um elemento decisivo para a difusão e vitória das idéias republicanas218”.

Siqueira acrescenta ainda que, já em 1890, “o historiador francês Ernest Lavisse

publica La Vie Politique à L’ Étranger, em que afirma a importância da colaboração

dos redatores do Diário de Notícias e de O Paiz para o resultado de novembro de

1889219”.

Esses grandes jornais, contudo, e aqui nosso interesse começa a se voltar

particularmente para O País, não eram panfletariamente republicanos, como uma

leitura apressada poderia sugerir. Seu aparecimento, conforme avalia Siqueira, se dá

num momento de crescente percepção, por parte dos empresários, de que o jornal

poderia servir não só à propaganda e à discussão políticas, mas também era capaz de

funcionar como empreendimento rentável do ponto de vista econômico220. Assim, ainda

que fossem escritos por jornalistas republicanos e tivessem donos que partilhassem da

mesma posição política, tais periódicos procuravam assumir uma postura oficialmente

neutra. Essa postura objetivava, a uma só tempo, contornar as dificuldades crescentes

enfrentadas pelo jornalismo puramente político e garantir a sobrevivência dos jornais

num contexto marcado pelo fervilhar de efêmeras publicações que levantavam a

bandeira republicana e rapidamente saíam de circulação, diante da repressão

governamental e da falta de anunciantes221. Por isso, até conhecidos monarquistas,

como Joaquim Nabuco, tiveram espaço garantido para a veiculação de seus artigos nas

217 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4a. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.218 AZÊDO, Maria de Nazareth. A imprensa republicana antes do 15 de novembro. Niterói, UFF (dissertação de mestrado), 1975. p. 115. apud SIQUEIRA, Carla Vieira de. A imprensa comemora a República: O 15 de Novembro nos jornais cariocas - 1890/1922. Texto apresentado ao GT Estudos da Recepção, no ALAIC 2000, em abril de 2000, Santiago do Chile, p. 3. Disponível em: http://www.eca.usp.br/alaic/Congreso1999/14gt/Carla%20Vieira%20de%20Siqueira.rtf. 219 SIQUEIRA, Carla Vieira de. Op. Cit. p. 3.220 Cf. Idem, Ibidem. p.4.221 Cf. Idem, Ibidem.

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páginas de O País, quando da campanha abolicionista222. A respeito dessa situação

dúbia e de suas implicações Sobrinho faz a seguinte análise:

Não havia, é verdade, jornais que se declarassem publicamente republicanos ou era reduzida a influência dos que assim se proclamassem. Mas também não era grande o número dos que fizessem questão de demonstrar o seu entusiasmo pela Monarquia. O que se ia tornando frequente era tomar atitudes cômodas em face da controvérsia essencial. Era o que mostravam os jornais de circulação mais extensa ou de popularidade mais definida, como a Gazeta de Notícias e O Paiz, que abriam espaço para colunas republicanas, conservando o seu direito de discordar ou de se opôr aos pronunciamentos desse partido. Embora se soubesse que a redação dos jornais era composta de jornalistas, na sua quase totalidade, partidários ou entusiastas da causa republicana, a direção achava mais fácil não abrir mão de sua posição de neutralidade, pelo menos aparente, mesmo quando à sua frente estivessem republicanos notórios como Quintino Bocaiúva ou Ferreira de Araújo223.

A imprensa, desse modo, mesmo sem que haja uma intenção clara dos jornais nesse

sentido, acaba por se tornar, nas últimas décadas do século XIX, um espaço privilegiado

de discussão pública ou, como quer Siqueira, uma comunidade argumentativa, em que

os mesmos jornalistas e intelectuais dedicam-se a escrever em periódicos das mais

diversas tendências políticas, e os jornais, independente de sua linha editorial, abrigam

textos dos mais variados matizes ideológicos. Com isso, começa a elaborar-se a imagem

do jornal como expressão e meio de formação da opinião pública, conforme analisa

Siqueira:

A imprensa ora se apresenta como expressão da opinião pública, ora como sua formadora e guia. Em ambos os casos, afirma-se como mediadora entre os cidadãos e o governo, e, portanto, como peça fundamental do funcionamento do regime. Constrói um reconhecimento social do jornal enquanto espaço de criação de verdades e de conceitos universais. Sua função pedagógica vem respaldada pela afirmação do caráter científico da atividade intelectual que marca o século XIX. A imprensa teria a patriótica missão de guiar a opinião pública. O momento comemorativo potencializa esta ação pedagógica224.

Trazendo a discussão para o campo que nos interessa especificamente no presente

trabalho, destaca-se O País nesse cenário por ser o jornal carioca mais importante do

período, ao lado da Gazeta de Notícias225. Lançado em 1º de outubro de 1884, pelo

português João José dos Reis Júnior, depois Conde de São Salvador de Matosinhos, o

222 Siqueira afirma que “a presença de monarquistas em O Paiz (...) demonstra que, durante a campanha abolicionista, monarquistas e republicanos inimigos da escravidão lutaram juntos” (Idem, Ibidem).223 SOBRINHO, Barbosa Lima, Prefácio de JARDIM, Antonio da Silva. Propaganda republicana (1888-1889). Rio de Janeiro, MEC/Fundação Casa de Rui Barbosa / Conselho Federal de Cultura, 1978. p. 19-20 apud SIQUEIRA, Carla Vieira de. Op. Cit. pp. 4/5.224 SIQUEIRA, Carla Vieira de. Op. Cit. pp. 5/6.225 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1983. p. 246 apud SIQUEIRA. Op. Cit. p. 4.

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periódico possuía circulação nacional e tiragem superior a 32 mil exemplares diários em

1890226. Em 1900, a publicação circulava com a epígrafe “O PAIZ é a folha de maior

tiragem e de maior circulação da América do Sul”, sem que, contudo, nem uma nem a

outra fosse especificada na primeira folha227. Nos exemplares microfilmados a que

tivemos acesso, que são todos de domingo, dos anos de 1887 e 1888, o jornal possui

oito, no caso do primeiro ano, ou seis páginas, no caso do segundo, divididas em oito

colunas, que versam sobre os mais diversificados temas. Os textos quase sempre se

dispõem verticalmente, dentro das colunas, só passando a ocupar a seguinte quando

findado o espaço disponível naquela em que se iniciou.

A primeira e/ou a segunda coluna da capa, talvez como resquício ainda da

sobrevalorização dada nos primeiros tempos da imprensa brasileira aos acontecimentos

internacionais, abrigava(m) a seção Telegrammas, com material enviado pela agência

francesa Havas, a primeira agência de notícias do mundo, ou conseguido por meio de

correspondentes em várias partes do país. Curiosamente, a fonte utilizada no texto dessa

seção é um pouco maior e mais nítida do que aquela utilizada no resto do jornal, o que,

a nosso ver, vem reforçar a idéia de se tratar de uma questão de privilégio, ainda em

voga no fim do Império, das informações sobre o exterior.

Nas outras colunas da primeira página, distribuem-se a seção fixa Noticiario, contendo

pequenos textos sobre o cotidiano político, social e cultural da Corte, e textos avulsos,

maiores e com títulos próprios, abordando assuntos específicos que vão desde notícias

sobre S. M. O Imperador, que na época encontrava-se em tratamento de saúde na

Europa228, à Necrologia, com relatos dos falecimentos ocorridos recentemente229,

226 Essa informação pode ser encontrada em SIQUEIRA, Idem. Já nos exemplares de 1887 e 1888 a que tivemos acesso, consta uma tiragem de 25 mil exemplares, o que pode ser tomado como evidência de estar o jornal em franco crescimento.227 Encontramos duas capas d’O País de 1900 microfilmadas na obra que utilizamos de Klein Filho (pp. 207 e 210), ambas apresentando a referida inscrição. Além disso, Maria Angélica Lopes faz referência semelhante na apresentação que escreveu para a obra A Luta, de Carmem Dolores, lançada pela Ed. Mulheres. (DOLORES, Carmem. A luta. Florianópolis: Mulheres, 2001). A apresentação está disponível em http://www.editoramulheres.com.br/apresenta23.htm. 228 Nas edições de que dispomos, pode-se acompanhar um pouco do dia-a-dia de D. Pedro II no Velho Mundo. O País de 23 de outubro 1887 relata o seguinte: “Paris, 22 de outubro (à tarde). Consta que o Imperador Dom Pedro tenciona fazer uma viagem a Palestina. É provável que Sua Majestade parta só depois de ter descansado alguns dias na cidade de Cannes. Agência Havas”. Já em 30 de outubro, apesar de ilegível o texto propriamente dito, lêem-se as palavras iniciais “CANNES, 29 (...) Sua Majestade (...) sua comitiva chegaram hontem a tarde a esta cidade...”. Na edição de 13 de maio de 1888, há vários telegrammas que relatam o estado de saúde do imperador, que se achava à época na cidade de Milão.229 O País, 30 de outubro de 1887

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passando pelo aniversário do Marquez de Pombal230 e por notícias sobre roubos231,

suicídios232, vaccina animal233 e exames de preparatórios234. O interior do jornal abriga

ainda poemas, receitas, folhetins – às vezes mais de um na mesma edição235 –

transcrição de documentos oficiais ou atas recém-assinadas, eventos culturais, e muitas

propagandas, que eventualmente ocupam páginas inteiras do periódico. Apesar de os

textos noticiosos que se distribuem de forma irregular pelas páginas do jornal não

possuírem propriamente uma preocupação com os ideais de neutralidade e objetividade

que imperam desde meados do século XX no jornalismo brasileiro236, o espaço por

excelência para a veiculação de textos opinativos é a Secção Livre. Nela expõem-se com

certa liberdade idéias por vezes até mesmo divergentes daquelas defendidas pelo

próprio periódico, geralmente assinadas por seus respectivos autores e escritas em

formato de artigo. De acordo com Siqueira, “as seções livres dos jornais muitas vezes

reproduzem editoriais de linha discordante, sob encomenda, incrementando o debate e a

potencialidade da imprensa como formadora de um ‘espaço público comunicativo’”,

tomando de empréstimo expressão empregada por Maria Alice de Carvalho237.

De fato, podem-se encontrar na Secção Livre d’O País textos fundamentados nas mais

diversas ideologias vigentes, e abordando assuntos tão variados quanto críticas à

campanha de vacinação animal em vigor na época238, uma nota sobre um concurso de

230 Idem, 13 de maio de 1888, p. 1.231 Idem, 25 de dezembro de 1887, p. 1.232 Idem, ibidem233 Idem, 23 de outubro de 1887, p. 1.234 Idem, Ibidem.235 A edição de 23 de outubro traz, ao final da página 2, perpassando as oito colunas, o sexto e o sétimo capítulos do folhetim O Remorso de um Anjo, assinado por A. d’Ennery, pseudônimo do escritos francês Adolphe d’Ennery; ao final da página seguinte, disposto da mesma forma, o 17º capítulo do folhetim O Charlatão, assinado pelo também francês Élie Berthet.236 O modelo que se caracteriza pelo uso da pirâmide invertida na hierarquização das informações e preconiza a objetividade como a marca maior da legitimidade de que se deve imbuir o texto jornalístico ainda não havia se disseminado de forma intensa no Brasil em fins do século XIX. Contudo, sua presença já se fazia sentir, e incomodava muitos jornalistas, que discordavam frontalmente do ideal de neutralidade aplicado ao jornalismo. Siqueira, ao analisar uma crítica a esse modelo feita no Diário de Notícias de 19/11/1890 pelo jornalista Emanuel Carneiro, faz o comentário que se segue “A questão da objetividade, que veio a tornar-se um dos pilares sobre os quais a legitimidade da atividade jornalística foi afirmada, é tangenciada pela crítica que Emanuel Carneiro faz à imprensa que se pretende neutra. No entendimento do jornalista, a imprensa teria a patriótica missão de guiar a opinião pública. Assim, a capacidade de apontar a almejada verdade dos fatos estaria relacionada não a um posicionamento neutro, mas justamente a uma tomada de partido, no sentido de uma atitude considerada patriótica, cívica” (SIQUEIRA. Op. Cit. p. 8)237 CARVALHO, Maria Alice de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994. p.41 apud SIQUEIRA Op. Cit. pp. 6/7.238 O País, 23 de outubro de 1887, p. 4.

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tiro ao alvo239, análises das relações econômicas entre o Brasil e as Repúblicas

Platinas240, exortações à necessidade de crescimento da indústria brasileira241, críticas à

campanha republicana242, e, é claro, os artigos de Bezerra em defesa do espiritismo.

Trata-se, portanto, de um espaço plural, que, acreditamos, justamente por tal

pluralidade, atraía uma vasta gama de leitores, de perfis bastante diferenciados, fossem

eles interessados em artigos de opinião sobre as discussões mais recentes, em ofertas de

produtos, em crônicas ou no tema que, como já discutido no tópico O Espiritismo no

Brasil, fazia-se presente em muitas rodas intelectuais brasileiras naquele período: o

espiritismo.

2) O Espiritismo: seu espaço e sua relevância

Inserida nesse espaço caracterizado pela multiplicidade de interesses que concentrava,

em função de seu conteúdo, e despertava, numa ampla fatia de público, a coluna O

Espiritismo – Estudos Filosóficos apresenta-se, a nosso ver, como lugar privilegiado

para divulgação do espiritismo durante o século XIX. Nenhum outro espaço onde o

espiritismo foi discutido naquele período, pelo menos que tenhamos conseguido

encontrar em nossa pesquisa, reunia em si tantos atributos importantes quanto alta

tiragem, circulação nacional e ampla diversidade de assuntos abordados, suscitando a

atenção de diversos públicos. E especificamente no que diz respeito à localização da

coluna, há ainda alguns outros fatores que nos parecem contribuir para o fortalecimento

dessa idéia.

Dos onze exemplares da coluna a que tivemos acesso para a elaboração deste trabalho,

seis apresentam-na localizada em páginas ímpares, sendo um deles, inclusive, na própria

capa da publicação. Segundo Lopez e Dittrich, “as páginas ímpares, como é o caso, são

mais valorizadas porque mais destacadas pelo olho humano na leitura de um jornal

239 Idem, ibidem240 Idem, 18 de novembro de 1887, p. 4.241 Idem, 242 Siqueira afirma que “Barbosa Lima Sobrinho (...) comenta que a coluna Campo Neutro, de Joaquim Nabuco em O Paiz, nasceu de seu desejo de responder à campanha republicana e foi possibilitada por sua amizade com os proprietários da folha, que teriam visto aí uma prova da suposta isenção do periódico” (Op. Cit. p. 5).

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Page 71: O Espiritismo por Bezerra de Menezes Versão Capa Dura

impresso243”. Além disso, em sete exemplares, o texto assinado por Max244 se acha nas

três primeiras colunas ocupadas pela Secção Livre, o que faz dele um texto mais

facilmente visualizável. E por três vezes, ainda, a coluna abre a Secção, incluída aí a

oportunidade em que ela esteve na capa do periódico. Por ser o nome da seção escrito

em fonte maior e mais chamativa, recai também com mais facilidade a atenção do leitor

sobre o título do primeiro artigo, no caso, Espiritismo.

Ressaltamos esses aspectos todos por julgá-los não só pertinentes, mas também

concorrentes para evidenciar-se a importância de que se via imbuído o espaço que era a

coluna O Espiritismo – Estudos Filosóficos. De tal forma que, potencializada pela

palavra autorizada de seu autor, reúne em si várias características que nos permitem

qualificá-la como uma peça relevante dentro do processo já discutido de adaptação do

espiritismo à cultura brasileira.

Para a análise textual da coluna de Bezerra, recorremos a uma compilação feita pela

Editora Fraternidade Assistencial Esperança, em 2001, em comemoração aos 170 anos

do nascimento de Adolfo Bezerra de Menezes, sempre que possível, em conjunto com

os originais de que dispomos em microfilme, a fim de aferir a correção das transcrições

textuais contidas no livro. O exemplar de que dispomos traz os 106 primeiros textos

publicados na coluna, que vão de 23 de outubro de 1887 a 27 de outubro de 1889,

perfazendo quase rigorosamente dois anos. Acrescemos ainda, eventualmente, citações

feitas por terceiros de trechos posteriores da coluna, quando nos parecer pertinente para

reforçar as nossas hipóteses de trabalho. Contudo, limitamo-nos fundamentalmente a

esse período por julgá-lo suficiente para evidenciar o que quer que seja em termos da

influência do habitus católico no discurso de Bezerra. Isso porque, como já discutido no

tópico O líder e mediador espírita, trata-se aqui do período inicial de militância do

243 LOPEZ, Debora e DITTRICH, Ivo José. Ironia e refutação como estratégias argumentativas no jornalismo interpretativo, Biblioteca On-Line de Ciências da Comunicação, 2004, p. 3. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/lopez-debora-ivo-ironia-refutacao.pdf. Acessado em 20/12/2006.244 Max é o pseudônimo utilizado por Bezerra de Menezes nos textos veiculados na coluna. O fato de recorrer a um pseudônimo, a nosso ver, não invalida a palavra autorizada do autor, na medida em que o movimento espírita à época era restrito o suficiente, em termos quantitativos, para que fosse do conhecimento de todos os seus integrantes a atividade de Menezes nesse espaço privilegiado da imprensa carioca para se falar de espiritismo. Além disso, nos círculos não-espíritas da Corte, como já discutido, a notícia da conversão de Bezerra à doutrina causara tão grande repercussão que julgamos pouco provável que sua militância e suas atividades voltadas para a propagação do espiritismo fossem desconhecidas do público em geral. Por fim, o uso de pseudônimos, ao que pudemos avaliar, não se prestava propriamente naquele contexto a garantir o anonimato do autor de um texto, mas se caracterizava, antes, como prática de cunho artístico ou militante comum, estabelecida entre literatos e articulistas em geral.

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Page 72: O Espiritismo por Bezerra de Menezes Versão Capa Dura

médico cearense nas lides espíritas, momento em que sua postura é de tal neutralidade

diante das disputas entre espíritas místicos e científicos, que chega mesmo a incomodar

muitos místicos e, ao mesmo tempo, atrair a simpatia da vertente científica. Se nesse

período, como analisamos a seguir, ele já dedica uma porção majoritária de seu espaço

n’O País a discussões teológicas com representantes do catolicismo, a comparações

entre a cosmogonia católica e a espírita, e à análise de trechos bíblicos, nos anos

seguintes, com o fim de seu primeiro mandato à frente da FEB, e conseqüente

afastamento da linha de frente do movimento espírita para recolher-se aos estudos

centrados em Roustaing realizados em grupos místicos, os elementos marcantes do

habitus católicos que aqui analisamos só tendem somente a se fortalecer, ganhando,

como se poderá depreender de um trecho pinçado já do ano de 1894, contornos cada vez

mais evidentes.

Portanto, nossa investigação limita-se basicamente aos dois primeiros anos da coluna, e

não pretende fazer uma vasta análise do discurso de Bezerra. Para que fique claro, em

boa parte de seus textos, Max se apropria de idéias, argumentos e raciocínios

empregados fartamente por Allan Kardec nas obras básicas do espiritismo e ao longo

das edições da Revista Espírita. Tanto pela proximidade discursiva, quanto pela

dedicação pessoal em prol da difusão e da consolidação do espiritismo no Brasil, não é

difícil compreender-se por que ele ficou conhecido como o Kardec brasileiro entre os

espíritas do país. Mas, para além desses traços óbvios da influência exercida pela

retórica kardequiana no discurso de Menezes, o que nos interessa aqui, por pouco

explorado, tanto entre pesquisadores espíritas quanto acadêmicos, é a influência dos

elementos do habitus católico que já apontamos na elaboração desse discurso.

Feitas as necessárias delimitações, analisemos, a partir de agora, detidamente, algumas

peculiaridades desse espiritismo que vaza das páginas escritas pelo médico cearense e

em que pontos ele permite entrever a “influência do habitus católico na formulação do

estilo discursivo e reflexivo” do espiritismo posterior, a que se refere Lewgoy.

3) O Espiritismo segundo Bezerra de Menezes

Com o objetivo de sistematizar nossa investigação, dividimos os textos publicados na

coluna em quatro categorias: 1) os teológicos, preponderantes numericamente, em que o

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Page 73: O Espiritismo por Bezerra de Menezes Versão Capa Dura

autor promove discussões acerca das cosmogonias católica e espírita, e/ou procura

evidenciar biblicamente certas idéias centrais do pensamento espírita; 2) os científicos,

em que o foco se mantém na descrição de experiências próprias ou realizadas por

pesquisadores europeus, que, segundo o autor, vêm a oferecer evidências experimentais

para a fundamentação de diversos conceitos espíritas; 3) os filosóficos, majoritariamente

voltados para discussões sobre a lógica da reencarnação e sobre a existência de

espíritos; e 4) as respostas, que consistem em diálogos que Max estabelece não com

idéias, mas com interlocutores vivos, geralmente da sociedade carioca, que se

expressaram publicamente acerca do espiritismo.

Interessam-nos particularmente a primeira e, em menor escala, a última categorias, tanto

por serem maioria, quando somadas, quanto por trazerem em sua estrutura marcas mais

evidentes da influência que analisamos aqui. Nas outras duas categorias, o que

encontramos são fiéis adaptações de certos argumentos e raciocínios desenvolvidos por

Allan Kardec, que basicamente atualizam os dados acerca de pesquisas científicas mais

recentes e são acrescidas de relatos de experiências próprias. Portanto, nosso olhar se

detém com mais atenção daqui para frente nos tipos de texto 1 e 4 indicados.

Max dá início a sua coluna elaborando textos dos tipos 2 e 3 durante os meses de

outubro e novembro que pouco nos interessariam, não fosse a presença entre eles, de um

texto do tipo 1, publicado no quarto domingo de veiculação do espaço. Nele, o autor

começa a reelaborar sutilmente a imagem do Jesus espírita em detrimento de um Jesus

característico da tradição religiosa dominante. O processo aqui é ainda discreto, mas é

emblemática a utilização de epítetos que fazem concessões, ainda que aparentemente só

nominais, ao Jesus da ortodoxia, como se refere constantemente Bezerra à opinião da

Igreja sobre todas as coisas. “O Espiritismo, trazendo aquela simples Verdade,

deslocando-se apenas a base da cosmogonia, torna inexpugnável a sublime Doutrina do

Redentor, e estabelece, por estreitíssimos laços, a união da Religião e da Ciência245” (os

grifos em negrito serão sempre nossos), afirma Max. Segundo pudemos averiguar em

pesquisa on-line à quase totalidade dos textos escritos por Kardec acerca do espiritismo,

reduzem-se basicamente a dois os epítetos que ele utiliza em referência a Jesus: Mestre

e Cristo, sendo o primeiro ligado ao significado fortemente pedagógico de que imbui

245 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Espiritismo, Estudos Filosóficos – Vol. 1, São Paulo: Edições FAE, 2001, p. 29.

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Kardec as ações e as palavras de Jesus, e o segundo, vinculado ao caráter missionário

que o espiritismo atribui a sua vida, uma missão educativa e não salvífica.

Ao chamar Jesus de Redentor, Max não está incorporando a seu discurso a noção de

Redenção pelo Sangue de Cristo, como se pode depreender de suas próprias palavras:

“nem a Razão, nem a Consciência podem aceitar a missão do Cristo nos termos que lhe

assinala a Igreja246”. Contudo, está fazendo concessões de natureza poética ou estilística

que, a pouco e pouco, vão se naturalizando em seu próprio discurso, o qual, nesse

aspecto, distancia-se gradualmente daquele empregado por Kardec para aproximar-se do

estilo discursivo católico. E assim que na segunda coluna de janeiro de 88, ao comparar

o que chama de “plano atribuído a Deus” pela Igreja e pelo espiritismo, ele assim se

refere a Jesus: “entretanto, quer um, quer outro se modelam pela palavra do Verbo

encarnado”, para acrescentar, em seguida:

O Espiritismo diz: eu sou o Espírito de Verdade, prometido por Jesus, para os tempos em que a humanidade pudesse compreender aquilo que Ele, em seu tempo, não pôde ensinar (...) ensinar o que Ele próprio declarou que não era oportuno (...) É que a Igreja recebeu a lição do Mestre dada aos ignorantes, e não quer ouvir a que Ele veio das aos ilustrados247.

Vemos aqui não só a apropriação de nova metáfora bíblica por parte de Bezerra para

identificar Jesus, mas também a capitalização das iniciais de todos os pronomes

utilizados em referência a ele, o que se configura em uma constante na maior parte dos

textos que chamo aqui de teológicos. Acreditamos ser essa uma marca importante do

processo de catolicização do discurso espírita, por fomentar uma identificação

semântica não-declarada entre as figuras de Jesus e do próprio Deus, que

tradicionalmente é referido por palavras e partículas capitalizadas. Se, como já

afirmamos, tal identificação não se dá propriamente em nível conceitual, já que, pelo

menos nos textos analisados, o autor é enfático em afirmar que um e outro possuem

identidades próprias que não devem ser confundidas, ela concorre para alçar Jesus a um

patamar diferenciado em relação aos homens. Afinal, nenhum deles é referido da

mesma forma que Ele. E Ele, somente Ele, além de Deus, faz-se merecedor de tal

deferência. Noutras palavras, se Jesus não é Deus, como dizia Kardec, também não é

equiparável aos homens, como impunha o habitus católico. Com isso, tende-se a

deslocar sua autoridade de uma dimensão pragmática, ligada, no espiritismo francês, à

246 Idem, Ibidem, p. 133.247 Idem, ibidem, pp. 59/60/61.

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grandeza moral de sua mensagem e de sua conduta, para assentá-la antes sobre uma

supremacia espiritual que lhe seria imanente.

Dentre os diversos epítetos a que recorre Max, evidenciando de forma mais contundente

essa tendência, destacamos ainda: “Assim, como Jesus modificou a lei, tanto quanto lhe

permitiu o estado da humanidade, assim, o Espiritismo limpa o trigo do joio, que o

Divino Redentor não pôde joeirar248”; “A Igreja comemora, na semana que hoje

termina, a paixão do Redentor da Humanidade249”; “Deu saúde aos doentes, deu vida

aos mortos e, morrendo na cruz, pediu perdão para seus algozes! Se tudo isto não se

revelasse no filho do pobre e obscuro carpinteiro o filho dileto do Eterno, Mensageiro

de Sua Luz, bastaria para reconhecê-Lo sua santa Doutrina (...) Um simples mortal,

eivado das paixões humanas, jamais poderia arrancar de sua fraqueza tão superior

ditame. Ele é superior, se não contrário, à natureza humana (...) No dia em que a

cristandade festeja a ressurreição, o triunfo do Mestre e Redentor (...) seja-nos

permitido curvar, publicamente, o joelho diante de Sua Divina Majestade...250”; “Em

ambos os casos, Cristo é o sublime reformador da Humanidade, o seu eterno

modelo...251”; “O Espiritismo, impugnado em nome do Cristo tão estólida pretensão,

ensina: que são chegados os tempos de cada um adorar a Deus por si, como foi

prometido pelo Mártir do Gólgota252”; “A despeito do emperramento daquele

sacerdócio, as novas idéias trazidas do Céu à Terra pelo Filho do Altíssimo, vingaram e

esmagaram as víboras que se lhe opuseram253”.

E, para arrematar, pinçamos do texto da coluna publicada em 21 de abril de 1889 uma

série de expressões utilizadas para fazer referência a Jesus que, somadas às citações já

destacadas, dificilmente poderiam evidenciar melhor a influência aqui estudada no

discurso de Max:

E, porque, no Velho Testamento, estando previstos os tempos messiânicos, não foi perdoado aos hebreus desconhecerem o Enviado do Senhor, pelo mesmo modo não terá perdão o clero, que desconhece o Consolador, prometido por Nosso Senhor Jesus Cristo, apesar de ser o seu ensinamento corroborado por todos os sagrados autores que temos aqui citado (...) Ora, se a Igreja tem mais Razão para abraçar o dogma espírita, com os livros

248 Idem, ibidem, p. 94.249 Idem, ibidem, p. 107.250 Idem, ibidem, p. 110.251 Idem, ibidem, p. 123.252 Idem, ibidem, p. 203.253 Idem, ibidem, p. 214.

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canônicos em mão, estudando-os sem preconceitos, nem interesses puramente humanos, maior Razão tem para aceitá-lo, desde que lhe foi dito pelo Salvador, que em tempo viria o Espírito de Verdade ensinar Verdades que Ele não podia ensinar, por não poder a Humanidade de seu tempo suportá-las254.

Aqui a identificação de Jesus com Deus não se limita à capitalização de pronomes a ele

relacionados no discurso, mas, reconhecendo no filho de Maria a condição de Enviado

do Senhor, semelhante à significação atribuída pelo espiritismo francês à passagem de

Jesus pela Terra, Bezerra chama-o a seguir, na mesma frase, de Nosso Senhor, tal e qual

se podia encontrar no discurso oficial do Catolicismo à época255. Acrescenta ainda,

reiterando essa nova carga de significação à figura de Jesus, que não dá pistas de

pretender substituir aquela já consagrada nos textos de Kardec, mas vem a acrescer-lhe

novas possibilidades, outro epíteto característico do Cristianismo tradicional, Salvador,

ao que emenda ainda um pronome Ele capitalizado. Tais particularidades do discurso

empregado na coluna parecem coexistir pacificamente com a defesa firme do Jesus

Mestre, Educador de Almas, que vaza das páginas kardequianas, em detrimento do

Jesus Deus encarnado da doutrina católica. Por isso afirmamos tratar-se o emprego de

tais epítetos, praticamente inexistentes no espiritismo francês, de uma apropriação em

certa medida estilística, poética, mas que termina por incorporar novos significados à

figura de Jesus no espiritismo brasileiro, graças à recorrência desse uso nos textos e aos

fatores extremamente favoráveis à leitura da coluna que discutimos há pouco.

Voltando nosso olhar rapidamente para a figura de Maria, encontramos dentro do

período escolhido poucas, mas significativas referências a ela. Foram escritas por

Bezerra já em meados de 1889, durante a última seqüência de estudos voltados para

demonstrar a fundamentação bíblica do espiritismo, e nem chegam a se deter numa

análise voltada especificamente para a mãe de Jesus. Limitam-se a citá-la: “Permita o

leitor que transcrevamos aqui alguns trechos de uma comunicação256 de Maria, a

Santíssima Virgem, a qual nos parece explicar por que quem maldiz o diabo maldiz a

254 Idem, ibidem, pp. 331/333.255 Apenas a título de exemplificação, encontramos o seguinte texto na Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro de 1890, atribuído, no documento, a “um pio escritor contemporâneo” : “ não é o Deus vago e frio das filosofias, que elas se comprazem em deixar lá bem longe nas regiões hiperbóreas de uma eternidade deserta; é o Deus vivo e pessoal, o Deus bom, o Deus que se revelou ao mundo e que habita no meio de nós no Sacramento do altar, na adorável pessoa do Nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus que fez a Igreja” (Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro de 1890. “Separação entre Igreja e Estado e Liberdade de Cultos”, in Revista Permanência, Ed. Permanência:2001. Disponível em: http://www.permanencia.org.br/revista/quemsomos/nossahistoria.htm. Acessado em 21/12/2006) 256 Por comunicação, entre os espíritas, entende-se um contato mediúnico, nesse caso, especificamente, por meio da psicografia.

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alma; ou antes, vem explicar que não existe diabo pessoal, mas sim sentimentos

diabólicos...”. A coluna do domingo seguinte, 15 de setembro, começa com nova

citação: “A comunicação de Maria Santíssima, recebida em Lérida, lembra que o

demônio não precisava inventar o Espiritismo para laçar almas, quando tinha a Doutrina

da Igreja, deturpação do Evangelho da Redenção, que serve maravilhosamente, a seus

fins”. Nesses trechos apenas insinua-se a profunda devoção que os biógrafos assinalam

na personalidade do médico dos pobres a Maria. Devoção essa que se soma a diversos

outros sinais de influência do habitus católico neste trecho que pinçamos especialmente

já de meados de 1894, por julgá-lo sobremaneira emblemático de tudo o que aqui

analisamos:

O que é fora de questão é que repugna à razão o fato de um Espírito divino tomar a carne dos pecadores, e que a concepção espírita de ser fluídico o corpo de Jesus, não somente fala à razão e remove aquela repugnância invencível, como ainda explica, de acordo com as leis naturais, todos os fenômenos da vida do Redentor e, principalmente, sua concepção no ventre puríssimo de Maria Santíssima e seu nascimento, sem que a Mãe deixasse de ser Virgem257.

Aqui não se tratam simplesmente de citações reverentes ou figuras de linguagem.

Bezerra não só elabora em seu discurso um Jesus quase divino, como ainda se apropria

sem receio da perspectiva roustanguista, chamada por Lewgoy de “espiritismo

influenciado pelo catolicismo258”, de um Jesus tão incomparavelmente superior aos

homens que só poderia ser dotado de um corpo fluídico, mais “depurado”, “etéreo”,

condizente com sua supremacia espiritual, e ainda capaz de se fazer passar, aos olhos

dos homens, por um corpo comum. Dentro dessa visão, torna-se ainda possível, e aqui a

piedade católica, particularmente no que tange à devoção pela Virgem, se faz sentir de

forma mais patente no discurso de Max, justificar “espiritamente” a virgindade de Maria

postulada pela doutrina católica. Trata-se de concessão que é notável, a nosso ver, por

ultrapassar a dimensão cultural impressa no habitus, para se configurar em uma forma

de apropriação de elemento doutrinário do catolicismo. Contudo, pelo que pudemos

avaliar, deparamo-nos neste ponto antes com uma exceção do que com regra, na medida

em que se evidencia de forma mais clara nos textos que analisamos a aproximação ou

apropriação de elementos marcadamente discursivos, ligados às crenças e disposições

do habitus católico, do que as assimilações doutrinárias.

257 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Espiritismo – Estudos Filosóficos, 1ª ed. FEB, vol. III, p. 353 apud MARTINS, Jorge Damas. Ponte Evangélica, FEB:1979, p. 5. 258 Ver p. 42.

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Assim, destacamos um elemento importante que se evidencia a cada texto publicado na

coluna, que pode ser apontado como fator condicionante da aproximação com o estilo

discursivo católico: o insistente diálogo com o catolicismo e seus representantes ao

longo das páginas publicadas n’O País. Mais de 70% dos textos por nós analisados

consistem no tipo 1, sempre voltados para críticas à doutrina católica e/ou à análise

comparativa de ambas as doutrinas, ou no tipo 4, majoritariamente dedicados a réplicas

a discursos de representantes do clero sobre o espiritismo. É assim, por exemplo, que

Max dedica mais de seis meses da coluna, em 1888, a um estudo comparativo entre as

cosmogonias católica e espírita e, em 1889, cerca de oito meses à “missão de

evangelizador do clero259”, como ele mesmo descreve suas intenções ao publicar uma

seqüência quase ininterrupta de 33 colunas focadas na análise de dezenas de trechos do

Velho e do Novo Testamento que, segundo ele, legitimariam o espiritismo como

doutrina cristã.

Na primeira série de artigos, Max, segundo nossa avaliação, se mostra pouco afeito à

idéia de fundamentar biblicamente o espiritismo. Os versículos citados no discurso de

Bezerra servem, na maior parte dos casos, para mostrar uma incompatibilidade entre a

cosmogonia bíblica e o conhecimento científico. Apesar disso, evidenciam-se já

algumas concessões notáveis. Destacamos duas delas, a fim de exemplificar uma das

conseqüências mais relevantes das apropriações estilísticas empreendidas pelo autor. A

primeira ocorre ainda no preâmbulo da série de estudos sobre as cosmogonias:

Assim como o Espiritismo cura pelo amor de Jesus Cristo, os possessos desses danados, que dizem que foram viventes como nós, assim também curou o próprio Cristo os possessos de seu tempo, que não eram perseguidos por espíritos de natureza diversa.

A segunda tem lugar bem no meio da série de artigos, quando o autor se dedica à

análise da cosmogonia católica:

Jesus veio remir os pecados do homem, ensina o Espiritismo; mas veio fazê-lo, não abrindo as portas do Céu, que sempre estiveram abertas, não limpando a Humanidade do pecado original, que é um mito; porém, ensinando, com a palavra e com o exemplo, novas verdades, que esclareceram os horizontes da Humanidade, e lhe deram mais força e virtude para ascender a seu destino260.

259 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 311. 260 Idem, ibidem, p. 125.

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Tratam-se, ambos os casos, de aproximações conceituais vagas, eminentemente

metafóricas, que só evidenciam a busca, por parte do autor, pela utilização de

dispositivos de enunciação apropriados a um leitor católico ou pelo menos

condicionado pelo habitus católico. Como já discutido no capítulo anterior261 os

dispositivos de enunciação nada mais são do que o modo específico por meio do qual o

locutor marca uma posição discursiva diante da língua e de seus interlocutores. É seu

modo particular de se expressar e construir o discurso em relação a esses outros

elementos do processo comunicativo, que são a linguagem utilizada e aquele(s) com

quem se interage. E, como também já discutido262, dispositivos de enunciação capazes

de causar uma identificação do público com o discurso, com as imagens que evoca e

com a “cultura” que manifesta, tendem a envolver e convencer os interlocutores de

forma mais eficiente.

É dessa forma que, seja pela intencionalidade do autor de falar a língua do seu público,

seja por um processo inconsciente de apropriação discursiva, Menezes parece

incorporar a seu discurso dispositivos de enunciação que encontram pouca ou nenhuma

ressonância na elaboração discursiva de Kardec, mas que se aproximam sobremaneira

do linguajar católico daquele contexto. Blasfêmia e blasfemar, a título de exemplo, são

termos fortemente relacionados à piedade católica263 a que recorre o autor dos textos em

cerca de dez oportunidades diferentes, via de regra para se referir a dogmas e princípios

preconizados pela Igreja que ele defende estarem em frontal discordância com a Razão

e com os perfeitos atributos da Divindade. Chamamos a atenção também para a

seguinte passagem, que denota uma apropriação que parece ir além da dimensão

propriamente terminológica:

E assim como se dá com o selvagem, ocorre também com todos os que vivem arredios das Verdades Eternas, por terem sido criados no meio das religiões anticristãs. Acontecerá isto com o selvagem americano, com o cafre, com o hotentote, com o samideano, assim como maometano, com o masdeísta, com o brâmane264.

261 Ver p. 52.262 Idem.263 A piedade, grosso modo, engloba um conjunto de valores e disposições que estimulam o crente ao amor e à reverência diante de tudo quanto se ligue à dimensão espiritual, religiosa, que é envolto em um ar de sacralidade. No caso da piedade católica brasileira, nota-se ainda uma particular tendência à devoção mariana. (Cf. CÂMARA NETO, Isnard de Albuquerque. “Religiosidade Popular e Catolicismo Oficial: o Eterno Contraponto”, in Revistas Ciências Humanas UNITAU – Vol. 9, nº 1, I Semestre 2003. Disponível em: http://www.unitau.br/prppg/publica/humanas/download/religiosidadepopular-N1-2003.pdf. Acessado em: 23/12/2006) 264 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 130.

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Nesse discurso, religiões não-cristãs transformam-se em religiões anticristãs, pois

“arredias” das “Verdades Eternas” próprias do cristianismo. A leitura particularista que

associa não diretamente o espiritismo à Verdade, mas o faz por intermédio do

cristianismo, do qual o espiritismo, segundo Bezerra, é o fac-símile, não só sugere ser a

doutrina cristã a única detentora de uma certa “Verdade Eterna”, como coloca as outras

doutrinas religiosas em posição de opositoras suas. Aqui, mais uma vez, o autor recorre

a estruturas mais próximas do discurso exclusivista do catolicismo, particularmente de

um que já começava a perder sua hegemonia na sociedade brasileira, em face do avanço

do republicanismo, do positivismo e de doutrinas heréticas, como o espiritismo, do que

da proposta de cunho universalista sistematizada por Allan Kardec, defensora inclusive

da possibilidade de adeptos de todas as crenças reunirem-se sob sua bandeira sem a

necessidade de abdicarem de suas identidades religiosas265.

Fenômeno semelhante pode ainda ser identificado em dispositivos de enunciação como

“angélicas virtudes266”, para referir-se ao estado moral dos Espíritos Puros, e

“miraculosa transformação267”, para designar a ascensão dos estados mais primitivos às

condições de perfeição intelecto-moral a que, segundo o espiritismo, todos os seres

estariam submetidos, ambos marcados pelo uso de empréstimo de expressões do campo

semântico católico. Destacamos, ainda a esse respeito, a seguinte seqüência de

comparações utilizadas pelo autor – onde é explícito e declarado o uso metafórico de

imagens do imaginário católico – para falar sobre os mundos primitivos e os mundos de

provas e expiações, que segundo o espiritismo, seriam os dois tipos mais elementares de

moradas dos espíritos encarnados. A Terra, dentro dessa perspectiva, seria um mundo de

provas e expiações, “onde domina o mal” sobre o bem: “No segundo círculo, que

265 Duas afirmações de Kardec, baseadas em seus contatos com grupos espíritas de mais de 30 países, parecem exemplificar bem essa idéia. A primeira, proferida pelo educador em uma conferência aos espíritas de Lyon, consiste no seguinte: “Não é, pois [o espiritismo], assim como alguns o pretendem, sempre porque não o conhecem, uma religião nova, uma seita que se forma às expensas de suas irmãs mais velhas: é uma doutrina puramente moral que não se ocupa, de nenhum modo, dos dogmas e deixa a cada um inteira liberdade de suas crenças, uma vez que não se impõe a ninguém; e a prova disso é que tem adeptos em todas, entre os mais fervorosos católicos, como entre os protestantes, entre os judeus e os muçulmanos”. (“Discurso do Sr. Allan Kardec no banquete de Lyon” in Revista Espírita Quarto Ano, outubro de 1861, IDE:1993, p. 263) A segunda, que estende ainda mais esse caráter multiconfessional do espiritismo, encontra-se numa de suas obras introdutórias ao espiritismo: “Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência, e não de uma religião. A prova disso é que conta entre seus adeptos homens de todas as crenças e que não renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que deixam de cumprir com os deveres de seu culto (quando não são expulsos pela Igreja), protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos, e até mesmo budistas e brâmanes (O que é o espiritismo, São Paulo:LAKE, 1998, pp. 98/99). 266 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 169.267 Idem, ibidem.

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podemos chamar purgatório, como o da iniciação pode ser chamado inferno,

atendendo-se, unicamente, à dureza das condições de vida, os espíritos despedem de si

novas faculdades, que lhes dão para desenvolverem sua responsabilidade e sua

perfectibilidade em um meio muito mais vasto e complicado”.

Já na segunda seqüência de estudos teológicos a que nos referimos, a postura do autor

em relação à autoridade bíblica ganha nova orientação.

Resta-nos ainda analisar a adequação do discurso de Bezerra a certas disposições do

habitus católico em questão. Selecionamos, para esse fim, a ênfase no sofrimento e na

dor como formas de depuração da alma e a reverência submissa às coisas espirituais,

tanto por tais disposições estarem fortemente presentes nesse discurso, quanto por

marcarem contrapontos interessantes com o pensamento de Kardec. No primeiro caso,

vale frisar, a utilidade da dor como um dos mecanismos que servem à gradual auto-

elaboração do Ser é parte integrante da doutrina sistematizada pelo pedagogo francês.

Mas, como na maior parte das diferenças entre os espiritismos brasileiro e francês, trata-

se de uma questão de ênfase especial dada a certas questões que aqui ganham maior

relevo e intensidade do que possuíam lá, e de apropriação de elementos do habitus

católico que dialogam com as idéias espíritas e acabam dando novos contornos a estas

últimas. Já no segundo, há uma influência que nos parece bastante clara da piedade

católica, com sua reverência às coisas sagradas, no discurso de Bezerra, que se distancia

em mais esse ponto do kardequiano.

Dessa forma, é na coluna de 22 de julho de 1888 que Max começa a debruçar-se sobre a

primeira questão. Frisamos a seguinte passagem:

Ninguém, porém, pode fugir a seu destino, e esses endurecidos, ou reconhecem sua impotência para lutarem com Deus, ou se convencem da falsidade do ensinamento da Igreja, ou, por outro qualquer motivo, dobram o joelho, e pedem graças. Fazem tão livremente este ato de contrição, como foram livres em seu endurecimento, e o Pai é tão pronto em acolher o arrependido, como é inflexível em punir o endurecido. Desde aquele momento, sai a alma do inferno e vai para o purgatório.

Além de mais uma vez recorrer a imagens do ideário católico para explicar conceitos

espíritas, o autor fala da inflexibilidade do Pai para punir o endurecido. O que nos

parece se sobressair aqui, distanciando-se de certa forma do pensamento kardequiano, é

a ênfase na punição pessoal e inflexível imposta pela própria Divindade. Apesar de ser

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possível depreender também dos textos de Kardec essa noção, a ênfase dada, até pela

própria proposta espírita de racionalizar e cientificizar a religião e a moral, é num

conceito de punição natural como conseqüência da transgressão de Leis Universais, que

pode ser resumida na seguinte explicação contida em O livro dos espíritos:

“Indubitavelmente, quando um homem comete um excesso qualquer, Deus não profere

contra ele um julgamento, dizendo-lhe, por exemplo: Foste guloso, vou punir-te. Ele

traçou um limite; as enfermidades e muitas vezes a morte são a conseqüência dos

excessos. Eis aí a punição; é o resultado da infração da lei. Assim em tudo268”. Essa

perspectiva objetivadora das retribuições morais termina por aproximar o espiritismo

francês, de forma mais patente, daquilo que Weber denominou “cosmos ininterrupto de

retribuição ética269”, ao estudar o budismo. Contudo, essa perspectiva impessoal das

recompensas morais convive, na formulação espírita européia, com uma possibilidade

sempre presente de ocorrer a intervenção divina em favor do indivíduo arrependido e

sinceramente disposto a rever sua conduta. Como se pode depreender da seguinte

comparação feita por Kardec, a inflexibilidade não faria parte dos atributos divinos:

Seria lógico dizer-se, de um soberano, que é muito bom, muito magnânimo, muito indulgente, que só quer a felicidade dos que o cercam, mas que ao mesmo tempo é cioso, vingativo, de inflexível rigor e que pune com o castigo extremo as três quartas partes dos seus súditos, por uma ofensa, ou uma infração de suas leis, mesmo quando praticada pelos que não as conheciam? Não haveria aí contradição? Ora, pode Deus ser menos bom do que o seria um homem?270

No discurso de Max o que vemos é não só uma ênfase na irrevogabilidade das punições

impostas àqueles que erram, mas também uma aplicação pelo menos nominalmente

pessoal do próprio Deus de tais punições. Exemplificam ainda essas disposições textos

como: “Deus é misericordioso, mas é também justo; contudo, os que pugnam pela

expiação no espaço, querem a alta misericórdia, evidentemente não a justiça de

Deus271”; “Deus não seria Deus, se, impondo um preceito à sua criatura, não tivesse

estabelecido a repressão a toda e qualquer forma de desobediência272; “Deus (...)

não permite que fique impune a mínima falta, e não dá acesso, na escala do

progresso, que leva à felicidade, senão a quem tiver pago toda a sua dívida, senão a

quem se tiver lavado de todas as impurezas273”.268 KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Ed. Cit, p. 447.269 WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1994, p. 323.270 Idem, ibidem, p. 469.271 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 180.272 Idem, ibidem, p. 194.273 Idem, ibidem. p. 187.

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Por impurezas, e aqui mais uma vez nota-se o habitus católico perpassando o discurso

do autor, Bezerra entende a própria condição humana, na medida em que considera que

só “passa pelas vicissitudes a que chamamos natureza humana274” aquele Ser que “peca”

e “cria o Mal em seu espírito275”. Como já discutido no segundo capítulo276, o processo

de encarnação e reencarnação dos espíritos, a que Kardec atribui um significado

eminentemente pedagógico, de meio por excelência para o auto-aperfeiçoamento de

todas as criaturas, é visto por Bezerra – numa espécie de reapropriação da leitura

pecaminosa que faz o catolicismo da condição dos homens, por oposição à pureza

imaculada do divino – como o processo punitivo por excelência para todos aqueles que,

“desobedientes”, se desviaram da “linha reta” traçada por Deus. O discurso de Max, a

esse respeito, chega inclusive a extrapolar o postulado kardequiano de que “a severidade

do castigo é proporcionada à gravidade da falta277”, quando afirma que:

Aquele que desfaleceu, logo, ao sair do estado de ignorância, que supõe, forçosamente, o de inocência, criou o Mal, em que seu espírito se embebe mais ou menos, e com o qual tem de gastar forças, que são destinadas à sua evolução. Esse, para livra-se da lepra que lhe entorpece a macha ascendente para o Bem, que dá a felicidade, precisa de longo tempo, de multiplicados esforços, de um tratamento, que lhe faz sofrer tanto ou mais que o próprio Mal. 278

Essa perspectiva teocêntrica que suprime o homem diante de Deus, atribuindo a tudo

quanto se vincule ao primeiro caracteres de inferioridade e degeneração, enquanto ao

segundo ligam-se atributos de supremacia e pureza perfeitas e insondáveis279, se

expressa também no discurso de Max por meio de um profundo desprezo pelos gozos

da vida. A atitude do homem enquanto transita por esse estado punitivo e reparador que

é a encarnação, segundo depreendemos do material analisado, deve ser antes grave e

sacrificial, com vistas ao “pagamento” das próprias “dívidas morais”. Os “gozos

materiais”, por exemplo, são, de acordo com o texto da coluna de 29 de julho de 1888,

“as delícias de Sodoma”, que se seguem a uma “chuva de fogo” que “calcinará” o

homem que a eles se entrega280. Já o mau que, na vida, se “delicia com venturas”, “há de

274 Idem, ibidem, p. 194275 Idem, ibidem.276 Ver p. 31.277 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o Espiritismo, Ed. Cit. p. 380.278 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 195.279 Cf. Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro de 1890. Op. Cit.280 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 179.

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pagar em lágrimas o gozo que tem, porque é um infeliz que falhou à missão que

trouxe281”.

É, aliás, dentro dessa disposição dicotômica, desabonadora do humano e das

contingências que lhe são características em detrimento de um espiritual puro e

idealizado, que julgamos melhor se pode compreender o último aspecto que nos

propomos a analisar no presente trabalho. Como já referido no primeiro capítulo282, um

dos aspectos mais peculiares da proposta de compreensão da realidade sistematizada por

Allan Kardec reside na idéia de que o relacionamento a ser estabelecido entre homens e

espíritos deve dar-se de igual para igual, sem deferências particulares daqueles para

com estes, a fim de que o conhecimento espírita elabore-se de forma dialógica,

relacional, e não simplesmente revelada. É assim que os espíritos deixam de lado, ou

pelo menos o têm minimizado em Kardec, o papel de reveladores, para assumirem a

função de interlocutores dentro do singular processo de comunicação preconizado pelo

pedagogo.

Na coluna Espiritismo – Estudos Filosóficos, talvez pela ênfase que devota o autor ao

diálogo com o catolicismo, abordando prioritariamente questões de cunho teológico e

religioso, essa dimensão mais metodológica do espiritismo é pouquíssimo discutida por

Menezes. Encontramo-la basicamente reduzida a algumas referências no artigo de 18 de

dezembro de 1887, que denotam, a nosso ver, a adaptação do relacionamento

humano/espiritual existente no espiritismo francês à disposição reverente do homem

para com o divino característica da piedade e do habitus católicos. Afirma Max:

As lições dos espíritos têm, pois, um alcance que não pode ser comparado ao das lições dos nossos sábios terrenos: primus, porque eles falam o que vêem; sécundus, porque os sábios da Terra falam do que conjecturam (...) A palavra dos espíritos tem, portanto, tanta ou maior autoridade sobre as coisas da outra vida, como tem a do sábio sobre as coisas da Ciência que professa283.

Nesse discurso, passam os espíritos a serem dotados de uma palavra autorizada para

dar seu parecer e revelarem suas verdades para os homens. Enquanto estes nada podem

fazer além de conjecturas, aqueles, porque vêem, estão habilitados a prestar depoimento

legítimo sobre as Verdades do Espírito. Reforçando o caráter notoriamente revelador

281 Idem, ibidem.282 Ver pp. 28/29.283 MENEZES, Adolfo Bezerra de. Op. Cit. p. 48.

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que assumem os espíritos nessa nova formulação sobre sua autoridade, Bezerra

acrescenta:

Nessa Doutrina [o espiritismo], firmada no ensino dos espíritos reveladores, está o princípio da pluralidade das existências, sem a qual, como foi demonstrado no princípio desta exposição, nada se pode explicar da vida humana, sem se ferirem os divinos atributos. Daí, vem-nos um valioso testemunho, uníssono e autorizado pela superioridade dos espíritos que o deram284.

Acreditamos que a supremacia dos espíritos, reveladores, sobre os homens, recebedores

das verdades reveladas, evidencia-se aqui de forma clara, na medida em que se desloca

a autoridade do espiritismo de uma proposta metodológica própria, elaborada por

Kardec com o fito de atribuir-lhe a necessária legitimidade no contexto racionalista e

cientificista europeu do século XIX, para assentá-la na superioridade imanente que o

catolicismo atribui ao elemento espiritual.

Considerações Finais

Partindo de um ponto consensual entre a maior parte dos pesquisadores acadêmicos e/ou

espíritas que se debruçaram sobre a transposição do espiritismo da França para o Brasil

284 Idem, ibidem.

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– que é o importante papel exercido por Adolfo Bezerra de Menezes durante as últimas

décadas do século XIX para a conformação da doutrina sistematizada por Allan Kardec

à cultura brasileira – detivemo-nos naquele que julgamos tratar-se do meio mais eficaz

por que o político cearense pôde exercer em âmbito nacional esse papel: a coluna O

Espiritismo – Estudos Filosóficos. Acreditamos ter podido, por meio desse recorte,

oferecer aos pesquisadores e interessados em geral subsídios ainda inexplorados para a

investigação dessa fascinante temática que é o espiritismo e, particularmente, da

controversa questão que é seu processo de transposição da Europa para o Brasil.

Bezerra de Menezes, segundo depreendemos da análise realizada, elabora em seu

discurso uma síntese que, se não é de todo própria, pois recorre a diversos elementos de

outra realizada anteriormente por Jean-Baptiste Roustaing, é extremamente importante

para a reconfiguração particular assumida pelo espiritismo no país. Isso porque a obra

do contemporâneo de Kardec só viria a ganhar uma tradução completa para o português

no início do século XX, e sua leitura, mesmo após a conclusão da versão vernácula,

restringia-se basicamente aos espíritas, e, entre estes ainda, preferencialmente aos

místicos. Já os quase 400 textos escritos por Max e veiculados ao longo de mais de sete

anos n’O País fizeram-se presentes semanal e pioneiramente nas casas de dezenas de

milhares de brasileiros ainda no século XIX. Além disso, seu discurso, seja pela

incorporação de elementos do habitus católico, seja pela habilidade retórica do autor, ou

ainda pela palavra autorizada de que ele dispunha, afinava-se sobremaneira com o

público leitor brasileiro, propiciando-lhe uma maior identificação com as idéias e com

os dispositivos de enunciação utilizados por Menezes do que com aqueles que se podem

encontrar na obra de Roustaing.

Desse modo, com ou sem intencionalidade, Bezerra recorre a certos elementos do

habitus católico em sua elaboração discursiva – particularmente a crenças e disposições

que lhe são características – que conferem a ela um caráter peculiar em relação ao

discurso empregado por Kardec. Tanto se aproxima do discurso católico, que chega

mesmo a transpor a dimensão cultural, como no caso do dogma da concepção virginal

de Maria, para conformar um ponto central da doutrina católica ao espiritismo. O

trabalho desenvolvido pelo médico dos pobres em diversas frentes de ação concorreu de

forma marcante para imprimir certa homogeneidade ao espiritismo brasileiro nas

últimas décadas daquele século. Se destacamos dentre as várias vertentes de ação de

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Menezes seu discurso escrito publicado sistematicamente na imprensa, é porque

tratamos de uma “religião de letrados”, como conceitua Lewgoy o espiritismo285, na

qual o texto escrito possui significativa preponderância sobre a oralidade.

Esperamos ter conseguido, com este trabalho, oferecer uma contribuição consistente à

questão do papel exercido por Bezerra de Menezes no amplo processo de

ressignificação por que passou o espiritismo no Brasil, ajudando a desconstruir o viés

naturalizador que impera entre os espíritas a respeito do tema, e propiciando a futuras

pesquisas acadêmicas alguns subsídios úteis para se pensar de forma concreta esse

processo que marca a originalidade do espiritismo brasileiro.

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