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MEMORIAL DO CONVENTO 1. Estrutura da obra – ação «Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vezIn Memorial do Convento Este resumo da obra, que aparece na contracapa do livro e que pertence ao autor, atualiza um conjunto de fios narrativos que vão sendo, ao longo da obra, desenvolvidos e entrelaçados pelo narrador. Assim, a intriga de Memorial do Convento, como o título indica, gira à volta da construção do Convento de Mafra e das personagens referenciais e/ou ficcionais ligadas a essa construção. A história começa por volta de 1711, sensivelmente três anos após o casamento do rei D. João V com D. Maria Ana Josefa de Áustria, e termina vinte e oito anos depois, em 1739, aquando da realização do auto de fé em que morreram António José da Silva e também Baltasar Mateus. Em Memorial do Convento, a História é recriada pela interação de personagens reais e fictícias, podendo afirmar-se que existem três grandes linhas temáticas que estruturam a ação do romance: A construção do Convento de Mafra, consequência de uma promessa feita pelo rei D. João V aos frades franciscanos para assegurar o nascimento de herdeiros para o trono; este acontecimento estruturante é pretexto para o escritor denunciar os comportamentos dos poderosos que provocam o sacrifício e a morte de muitos cidadãos obrigados a participar de um projeto que lhes é alheio, mas de que são os autores materiais. A construção da passarola voadora, símbolo do desejo ancestral do homem de voar, que se converte na afirmação de que o esforço e a vontade humanos tudo conseguem (vontades dos homens aprisionadas por Blimunda que constituem a energia que faz subir a passarola). O amor entre Baltasar (Sete-Sóis) e Blimunda (Sete-Luas), o par escolhido por Saramago para representar o povo anónimo. A sua vida e o seu trabalho diário representam 1

O essencial em "Memorial do Convento"

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Síntese dos aspetos mais importantes da obra de Saramago

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MEMORIAL DO CONVENTO1. Estrutura da obra ao

Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.

In Memorial do Convento

Este resumo da obra, que aparece na contracapa do livro e que pertence ao autor, atualiza um conjunto de fios narrativos que vo sendo, ao longo da obra, desenvolvidos e entrelaados pelo narrador.

Assim, a intriga de Memorial do Convento, como o ttulo indica, gira volta da construo do Convento de Mafra e das personagens referenciais e/ou ficcionais ligadas a essa construo.

A histria comea por volta de 1711, sensivelmente trs anos aps o casamento do rei D. Joo V com D. Maria Ana Josefa de ustria, e termina vinte e oito anos depois, em 1739, aquando da realizao do auto de f em que morreram Antnio Jos da Silva e tambm Baltasar Mateus.

Em Memorial do Convento, a Histria recriada pela interao de personagens reais e fictcias, podendo afirmar-se que existem trs grandes linhas temticas que estruturam a ao do romance:

A construo do Convento de Mafra, consequncia de uma promessa feita pelo rei D. Joo V aos frades franciscanos para assegurar o nascimento de herdeiros para o trono; este acontecimento estruturante pretexto para o escritor denunciar os comportamentos dos poderosos que provocam o sacrifcio e a morte de muitos cidados obrigados a participar de um projeto que lhes alheio, mas de que so os autores materiais.

A construo da passarola voadora, smbolo do desejo ancestral do homem de voar, que se converte na afirmao de que o esforo e a vontade humanos tudo conseguem (vontades dos homens aprisionadas por Blimunda que constituem a energia que faz subir a passarola).

O amor entre Baltasar (Sete-Sis) e Blimunda (Sete-Luas), o par escolhido por Saramago para representar o povo annimo. A sua vida e o seu trabalho dirio representam tambm a histria quotidiana de um pas; o seu esforo e os poderes mgicos de Blimunda ajudam o padre Bartolomeu de Gusmo a concretizar o seu sonho.

Assim, podemos distinguir trs partes, seguidas de um eplogo, na arquitetura do romance:

3.1 Captulos I VIII: (1711)

O rei engravida a rainha, promete construir o convento;

Os franciscanos ganham a guerra das influncias.

Frei Antnio de S. Jos diz a D. Joo V que s ter um filho da rainha, D. Maria Ana Josefa, que viera da ustria havia mais de dois anos para conceder infantes para a coroa portuguesa, se o rei mandar construir um convento em Mafra. (Cap. I, pp. 13-14)

O desejo de D. Maria Ana Josefa e de D. Joo V realiza-se finalmente: a rainha encontra-se grvida da futura princesa D. Maria Xavier Francisca Leonor Brbara. (Cap. III, p. 31)

Apresentao de Baltasar Sete-Sis, mutilado, dirigindo-se para Lisboa, soldado numa guerra de sucesso. (Cap. IV, pp. 35, 38, 39, 40)

Em dia de auto de f, o dia em que Sebastiana Maria de Jesus condenada ao degredo para Angola, sua filha, Blimunda, conhece Baltasar Sete-Sis. (Cap. V, pp. 53-57)

O padre Bartolomeu Loureno pergunta a Baltasar se este o quer ajudar a construir a passarola; Baltasar responde afirmativamente. Entretanto, dado que o padre no tem dinheiro para comprar manes de que necessita para continuar a obra, Baltasar vai trabalhar num aougue. (Cap. VI-VII, pp. 63-69)

A rainha d luz uma menina: Maria Xavier Francisca Leonor Brbara. (Cap. VII, pp. 73-74)

Nasce o segundo filho do casal real, o infante D. Pedro, que morrer com dois anos de idade. (Cap. VIII, p. 86)

D. Joo V cumpre a sua palavra e, apesar da morte de Frei Antnio de S. Jos, vai a Mafra escolher o local onde ser construdo o convento. (Cap. VIII, p. 86)3.2 Captulos IX XVI: (1713-1722)

Construo da passarola

Construo do convento (secundria)

Bartolomeu fora (X XII): a famlia Mateus entra em contacto direto com a construo do convento;

Captulo XVI: voo da passarola, sobrevoando o convento em construo.

Baltasar e Blimunda vo viver para S. Sebastio da Pedreira, para que o primeiro possa trabalhar na passarola do padre Bartolomeu Loureno. (Cap. IX, p. 88)

O padre Bartolomeu parte para a Holanda, na esperana de conseguir ter para que a passarola possa voar; Blimunda e Baltasar vo para Mafra (p. 100) e instalam-se em casa dos pais deste: Jao Francisco Sete-Sis e Marta Maria. (Cap. X, pp. 101-104)

O padre regressa passados trs anos (Cap. XI, p. 115) e, antes de ir para Coimbra, dirige-se a Mafra e pede a Baltasar e a Blimunda que voltem a Lisboa, para continuarem a construo da mquina voadora, na quinta abandonada, em S. Sebastio da Pedreira (pp. 119, 121, 123-125).

O rei D. Joo V procede inaugurao do incio da construo do convento, colocando a primeira pedra nos alicerces do edifcio (17 de novembro de 1717). Os festejos duram uma semana (Cap. XII, pp. 130, 132-137).

O padre vai para Coimbra, para se formar em cnones, enquanto Blimunda recolhe vontades (p. 143) e Baltasar constri a passarola (cap. XIII, p. 145).

O padre Bartolomeu regressa de Coimbra, j doutor em cnones (Cap. XIV, p. 159); Domenico Scarlatti associa-se ao projeto com a sua msica (p. 171). Blimunda, a pedido do padre, vai recolher as vontades de moribundos num frasco para que depois as possa transferir para as esferas da passarola, de modo a que esta possa voar; Baltasar acompanha-a. (Cap. XV, pp. 178-179)

Blimunda adoece (Cap. XV, pp. 183-184). Domenico Scarlatti toca cravo e, ouvindo a sua msica, Blimunda sente-se melhor at que se restabelece. (Cap. XV, p. 185)

A passarola est concluda e pronta a voar (cap. XVI, p. 191). Mas, certo dia, o padre Bartolomeu anuncia a Baltasar e a Blimunda que tm de fugir, pois o Tribunal do Santo Ofcio anda sua procura (Cap. XVI, p. 193). Decidem, ento, utilizar a mquina voadora (pp. 195-196); sobrevoam Lisboa (p. 197), passam por Mafra (p. 201) e aterram na serra do Barregudo (p. 203), perto de Monte Junto (Cap. XVI, p. 207). O padre tenta incendiar a passarola mas Baltasar impede-o de o fazer (p. 205); o padre Bartolomeu desaparece (p. 206).

3.3 Captulos XVII XXIV: 1723-1730:

Baltasar na construo do convento;

Morte de Bartolomeu anunciada pelo compositor, em 1724; Desaparecimento de Baltasar na passarola (1730).

Baltasar e Blimunda vo viver para Mafra, na casa paterna (Cap. XVII, p. 210); Baltasar trabalha na construo do convento (pp. 212-213) e, quando pode, vai ao Monte Junto ver a mquina que l deixara coberta de ramagens secas (pp. 222, 224, 265-266). Scarlatti desloca-se a Mafra para anunciar a morte de Bartolomeu em Toledo para onde fugira para escapar ao Santo Ofcio (p. 224).

D. Joo V diz a Joo Frederico Ludovice que quer ampliar o convento de oitenta para trezentos frades (Cap. XXI, p. 281), ordenando que todos os homens sejam enviados para Mafra, independentemente da sua vontade, para participarem na construo do convento (p. 291). Receoso de morrer antes da concluso da obra, D. Joo V anuncia a sua sagrao no dia 22 de outubro de 1730 (p. 291).

Cortejo real e casamento dos prncipes portugueses, D. Maria Brbara e D. Jos com os infantes espanhis, D. Fernando VI e Mariana Vitria. (Cap. XXII, pp. 300, 308)

Baltasar vai ver a passarola ao Monte Junto (Cap. XXIII, pp. 333-334). Est dentro dela quando, inesperadamente, esta sobe no ar (p. 335).

Blimunda vai serra do Barregudo procurar Baltasar, que no regressara. Encontra o lugar deserto (Cap. XXIV, pp. 340-341), mata um frade que tenta violent-la (p. 345), e regressa a Mafra que se prepara para a sagrao (p. 347).

Em Mafra, no dia 22 de outubro de 1730, data do quadragsimo primeiro aniversrio do rei, faz-se a sagrao do convento (Cap. XXIV, p. 350) cujos festejos duram oito dias (p. 352).

3.4Captulo XXV eplogo: errncia de Blimunda at encontrar Baltasar no auto de f final.

Blimunda procura Baltasar, de terra em terra, durante nove anos. Finalmente, encontra-o em Lisboa, quando ali passa pela stima vez: ardia na fogueira do Santo Ofcio durante a realizao de um auto de f, juntamente com outros supliciados, entre os quais Antnio Jos da Silva. (Cap. XXV, pp. 356-357)

2. Personagens

As personagens da obra dividem-se em referenciais e ficcionais. As referenciais so aquelas que pertenceram efetivamente Histria. Representantes da classe dominante e do alto clero, so, no entanto, objeto da stira do autor. As ficcionais so aquelas criadas pelo autor e que, no caso presente, tm relevo superior.

2.1.D. Joo VD. Joo V representa o poder real que, de forma absoluta, condena a nao a servir a sua religiosidade fantica e a sua vaidade. Cumpridor dos seus deveres de marido e de rei, assume apenas o papel gerativo de um filho e de um convento, numa dimenso procriadora, da qual a intimidade e o amor se encontram ausentes (pp. 11-12).

Amante dos prazeres humanos, a figura real construda atravs do olhar crtico do narrador, de forma multifacetada: o devoto fantico que submete o pas inteiro ao cumprimento de uma promessa pessoal, feita para garantir a sucesso, e que assiste aos autos de f (p. 51); o marido que no evidencia qualquer sentimento amoroso pela rainha, apresentando nesta relao uma faceta quase animalesca, enfatizada pela utilizao de vocbulos que remetem para esta ideia (pp. 114-115); o megalmano que desvia as riquezas nacionais para manter uma corte dominada pelo luxo, pela corrupo e pelo excesso; o rei vaidoso que se equipara a Deus nas suas relaes com as religiosas (p. 158); o curioso que se interessa pelas invenes do padre Bartolomeu de Gusmo (p. 162); o esteta que convida Domenico Scarlatti a permanecer em Portugal; o homem que teme a morte (pp. 290-291) e que antecipa a sua imortalidade atravs da sagrao do convento no dia do seu quadragsimo primeiro aniversrio (p. 352).

2.2.D. Maria Ana JosefaCasada com D. Joo V para procriar (pp. 11, 16-17), a rainha representa a mulher que s atravs do sonho se liberta da sua condio aristocrtica para assumir a sua feminilidade. Passiva, insatisfeita, vive um casamento baseado na aparncia, na sexualidade reprimida e num falso cdigo tico, moral e religioso. A transgresso onrica a nica expresso da rainha que sucumbe, posteriormente, ao sentimento de culpa. A pecaminosa atrao incestuosa que sente por D. Francisco (p. 32), seu cunhado, conduzem-na a uma busca constante de redeno atravs da orao e da confisso. A rainha vive num ambiente repressivo, cujas proibies regem a sua existncia e para a qual no h fuga possvel, a no ser atravs do sonho (p. 116), onde pode explorar a sua sensualidade. Consciente da virilidade e da infidelidade do marido (abundam os filhos bastardos), assume uma atitude de passividade e de infelicidade perante a vida.

2.3.Baltasar Sete-SisBaltasar Mateus um dos membros do casal protagonista da narrativa e representa a crtica do narrador desumanidade da guerra, uma vez que participa na Guerra de sucesso (1704-1712) e, depois de perder a mo esquerda (p. 35), banido do exrcito.

Personagem construda enquanto arqutipo da condio humana, Baltasar Sete-Sis um homem pragmtico e simples, que assume o papel de demiurgo na construo da passarola, ao realizar o sonho de Bartolomeu de Gusmo (p. 69). Participa na construo do convento (pp. 242-243) e partilha, atravs do silncio, a vida de Blimunda Sete-Luas (p. 56). Sucumbe s mos da Inquisio (p. 359).

2.4.Blimunda Sete-LuasBlimunda o segundo membro do casal protagonista da narrativa (pp. 55-56). Sensual e inteligente, Blimunda vive sem subterfgios, sem regras que a condicionem e escravizem. Dotada de poderes invulgares (pp. 79-80), como a me, escolhe Baltasar para partilhar a sua vida, numa existncia de amor pleno, de liberdade, sem compromissos e sem culpa (p. 53).

Blimunda representa o transcendente e a inquietao constante do ser humano em relao morte (pp. 129-131), ao amor (p. 141), ao pecado e existncia de Deus. O seu dom particular transfigura esta personagem, aproximando-a da espiritualidade da msica de Scarlatti (p. 187) e do sonho de Bartolomeu de Gusmo. Ao visualizar a essncia dos que a rodeiam, Blimunda transgride os cdigos existentes e perceciona a hipocrisia e a mentira que subjazem aos comportamentos estereotipados, condicionados pelos dogmas estabelecidos que corporizam os falsos conceitos morais.

2.5.Bartolomeu de GusmoBartolomeu de Gusmo representa as novas ideias que causavam estranheza na inculta sociedade portuguesa. Estrangeirado, torna-se um alvo apetecido da chacota da corte e da Inquisio, apesar da proteo real.

Homem curioso e grande orador sacro a sua fama aproxima-o do Padre Antnio Vieira (p. 93), evidencia, ao longo da obra, uma profunda crise de f a que as leituras diversificadas e a postura antidogmtica no so alheias, numa busca incessante de saber (pp. 61-62).

A sua personagem risvel era conhecido por Voador (p. 61) torna-o elemento catalisador do voo da passarola, conjuntamente com Baltasar e Blimunda. Esta trade (pp. 146-147) corporiza o sonho e o empenho tornados realidade (pp. 197-198), a par da desgraa, tambm ela partilhada: loucura e morte, em Toledo, de Bartolomeu de Gusmo (p. 226), morte de Baltasar no auto de f e solido de Blimunda.

2.6.Domenico ScarlattiScarlatti personifica a arte (pp. 162-163) que, aliada ao sonho, permite a cura de Blimunda (pp. 186-187) e possibilita a concluso e o voo da passarola (p. 173).

2.7.Povo O verdadeiro protagonista de Memorial do Convento o povo trabalhador. Espoliado, rude, violento, o povo atravessa toda a narrativa numa construo de figuras que, embora corporizadas por Baltasar e Blimunda, tipificam a massa coletiva e annima que construiu, de facto, o convento (pp. 244-245).

A crtica e o olhar mordaz do narrador enfatizam a escravido a que foram sujeitos quarenta mil portugueses (pp. 293-295), para alimentar o sonho de um rei megalmano ao qual se atribui a edificao do Convento de Mafra. A necessidade de individualizar personagens que representam a fora motriz que erigiu o palcio-convento, sob um regime opressivo, a verdadeira elegia de Saramago para todos aqueles que, embora ficcionais, traduzem a essncia de ser portugus (pp. 255-256).

2.8.Clero A crtica subjacente a todo o discurso narrativo enfatiza a hipocrisia e a violncia dos representantes do espiritualismo convencional, da religiosidade vazia, baseada em rituais que, ao invs de elevarem o esprito, originam o desregramento, a corrupo e a degradao moral ( relevante, neste contexto, o papel da Inquisio).

3. Dimenso simblica das personagens

3.1.Baltasar Sete-Sis / Blimunda Sete-Luas O discurso ficcional de Saramago evidencia a perspetiva histrica do narrador, enfatizando a ironia e a crtica social que advm de um retrato fiel, porm subjetivo, da realidade portuguesa, em pleno sculo XVIII.

A narrativa fundamenta-se numa estrutura polidrica que reflete as vrias e sucessivas imagens que se ligam entre si numa relao interdinmica de continuidade e de completude.

Ao nvel das personagens, mencionemos os heroicos Baltasar e Blimunda: soldado regressado da frente da batalha, apresenta uma deformidade fsica que, em termos simblicos, o une a Blimunda, diferente dos outros pela sua capacidade de olhar para dentro das pessoas. Com efeito, a diairese de Baltasar marca a sua entrada num universo saturnino e infernal do qual s sair aps a concluso do seu percurso ascensional, conquistando, atravs do voo, a assuno da sua identidade.

Enquanto heri, Baltasar revela caractersticas picarescas que o tornam simptico para o leitor e grado ao narrador.

A sua condio de homem simples e pragmtico, aliada incapacidade de questionar os dogmas estabelecidos, faz dele o demiurgo, por excelncia, aquele que cria a passarola, partindo do esquema informe do padre Bartolomeu, conferindo-lhe a forma que, simbolicamente, a une liberdade e morte. De facto, podemos considerar que Baltasar, qual caro, ousou aproximar-se demasiado do sol sofrendo a queda definitiva que o conduziu morte na fogueira. Se esta personagem evidencia contornos que a tornam elo de ligao entre o universo simblico e o universo judaico-cristo (no esqueamos que Baltasar participa na criao da passarola e na construo do convento), funciona tambm como elemento catalisador da loucura de Bartolomeu de Gusmo e da aceitao tcita de Blimunda. A sua relao amorosa baseada no silncio, no consentimento mtuo e implcito de ambos numa vida em comum, num insofismvel querer ser, isto , a relao de completude que os une torna-os imunes ao meio que os rodeia, defende-os das supersties, fortalece-os contra medos e temores que se recusam a aceitar, mais por galhardia que por receio.

Baltasar Sete-Sis e Blimunda Sete-Luas simbolizam a dualidade cclica que, harmonicamente, realiza a cosmogonia universal (o dia e a noite) e representam o andrgino primordial. De facto, se pensarmos nas personagens e nos nomes que as representam, podemos constatar que a complementaridade Sol/Lua, dia/noite, luz/sombra enfatiza a alternncia do mundo, numa clara aceo de essncia dicotmica que une os opostos, nomeadamente, o universo divino e o universo humano.

3.2.Padre Bartolomeu Loureno de GusmoPadre oratoriano, Bartolomeu representa simbolicamente um ser fragmentrio, dividido entre a religio e a alquimia. Simboliza, ao longo dos dezoito captulos, o conflito interior motivado pela constante demanda de um saber que o levar subverso dos dogmas religiosos e, posteriormente, morte. Assumindo na verdadeira aceo da palavra o mito prometeico, revela o seu pensamento dialtico no plano da passarola que congrega em si o princpio de um barco e o princpio da ave que voa. A busca incessante do meio que far voar a passarola leva o padre a enveredar pelo estudo das antigas teorias medievais da fsica, unindo-as s novas descobertas cientficas que impregnam a Europa.

Humanista, procura aliar o pensamento cientfico realidade religiosa que conhece e ser na Holanda que os seus princpios escolsticos desaparecero definitivamente (atravs da desmistificao da quinta essncia, o ter), para dar lugar ao elemento espiritual divino, isto , a vontade humana. Ao aplicar os conhecimentos mecanicistas da razo e da tcnica, ultrapassa a poca a que pertence e evidencia, apesar da diferena temporal de dois sculos, os princpios do existencialismo defendidos por Nietzsche e Heidegger. Com efeito, Bartolomeu simboliza a aspirao humana que est subjacente ao voo da passarola atravs das vontades que, numa perspetiva sociolgica, substituem o dogmatismo religioso, e a sua atitude est na gnese da evoluo da humanidade. Ao substituir a vontade divina pela vontade humana, Bartolomeu humaniza a ao, conferindo sacralidade ao ato humano de construir e de sonhar.

3.3.Domenico ScarlattiScarlatti representa simbolicamente o transcendente que advm da msica e que, ligado clarividncia de Blimunda, instaura o domnio do maravilhoso na obra Memorial do Convento.

Duplo especular de Bartolomeu de Gusmo, simboliza a ascenso do homem atravs da msica, numa clara unio entre a ao e o pensamento. , alis, esta capacidade que lhe permite compreender o sonho de Bartolomeu e aceitar o par Blimunda /Baltasar. Pela sensibilidade criadora e pela tcnica de execuo, esta personagem liga-se ao mito rfico e contribui para a criao do universo encantatrio que cura Blimunda. Com efeito, partilhar o sonho do trio e morrer, metaforicamente, aps o voo da passarola, uma vez que destri o cravo que o ligava explicitamente trade construtora e, implicitamente, ao interdito, isto , ao sonho de voar.

Tornando-se ele prprio a melodia que executa, Scarlatti acompanhar espiritualmente o voo da passarola e assistir reinstalao de uma realidade representada pela autoridade real e pelo poder da Inquisio.4. Elementos simblicos

4.1.SeteRepresentando simbolicamente a totalidade do universo em movimento, o sete o somatrio dos quatro pontos cardeais com a trindade divina. A sua presena, no nome das personagens Baltasar e Blimunda, tem um significado dual, uma vez que se liga mudana de um ciclo e renovao positiva, cujo resultado ser a construo da passarola. Com efeito, o par representa a alteridade cclica que subjaz harmonia cosmognica (o dia e a noite); assim, a sua unio perfeita simboliza o acesso a um outro Poder que representa, metaforicamente, a Totalidade.

4.2.Nove O nove representa, simbolicamente, a gestao, a renovao e o renascimento.

Se atentarmos no percurso de Blimunda, podemos constatar que esta procura Baltasar durante nove anos. A sua separao de Baltasar originou a fragmentao da unidade representada pelo par. Assim, a sua demanda pela completude corresponde no a um perodo de gestao, mas a um perodo de redeno, findo o qual ser restabelecida a ordem csmica e a Unidade a ela que pertence a vontade de Baltasar no momento em que morre, queimado na fogueira da Inquisio.

4.3.PassarolaConcebida como uma barca voadora, a passarola simboliza o elo de ligao entre o Cu e a Terra. Smbolo dual, a passarola encerra, na sua conceo, o valor de dois smbolos que, aparentemente, se opem: a barca e a ave. Todavia, se pensarmos que a barca remete para a viagem e a ave remete para a liberdade, conclumos que a passarola, pelo seu movimento ascensional, representa metaforicamente a alma humana que ascende aos cus, numa nsia de realizao que a liberta do universo cannico e dogmtico dos homens.

Assim, a passarola simboliza a libertao do esprito e a passagem a um outro estado da existncia.

5. Narrador O narrador assume a funo de relatar os acontecimentos e , geralmente, exterior histria. Surge normalmente na terceira pessoa, podendo, por vezes, assumir a primeira pessoa do plural, identificando-se ento com as outras personagens. Ex: Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados de S. Sebastio da Pedreira, o msico foi tocar duas, trs horas, at que Blimunda teve foras para levantar-se, sentava-se ao p do cravo, plida ainda, rodeada de msica como se mergulhasse num profundo mar, diremos ns, que ela nunca por a navegou, o seu naufrgio foi outro. Depois, a sade voltou depressa, se realmente faltara. p.185

Por vezes, a voz do narrador confunde-se com o pensamento de outra personagem (p. 36).

Noutros momentos, ainda, a voz do narrador junta-se de outras personagens, em substituio do discurso direto (p. 90).6. Linguagem e estilo 6.1.Figuras de estilo

6.1.1.A metfora:

mas esta cidade, mais que todas, uma boca que mastiga (p. 27)

olharem-se era a casa de ambos (p. 111)

6.1.2.A ironia (p. 11), (pp. 15-16), (p. 153)

Em determinados momentos, a viso crtica do narrador acompanhada de uma ironia que perpassa todo o relato (auto-de-f ou procisses)

6.1.3.A enumerao, a anfora e a comparao6.2.Utilizao do registo de lngua familiar e popular (com sentido irnico e crtico ou como forma de traduo do estrato social da personagem) Emprenhar, safo, vossemec (pp. 11, 38, 40)6.3.Oposies sugeridas por vocbulos antnimos para sugerir as diferenas entre os ricos e os pobres (p. 27)

6.4.Formas verbais

O gerndio (p. 50)

O presente do indicativo (p. 39) transporta o leitor para o tempo da narrativa

O modo imperativo, numa reminiscncia da oratria barroca (p. 308).

6.5.Construo frsica Frases longas que surgem numa aproximao ao discurso oral ou como traduo do monlogo interior e da celeridade de pensamento (pp. 94, 131)

Paralelismo de construo (p. 26)

Polissndeto (p. 99 e pp. 112-113)

A enumerao (p. 335)

Ausncia de sinais grficos indicadores de dilogo: a vrgula que separa as falas das personagens e desaparecem os pontos de exclamao e de interrogao.

Hibridismo de tipologias discursivas: utiliza o discurso direto, indireto e indireto livre, mas sem proceder s demarcaes tradicionais ao nvel grfico (dois pontos seguidos de travesso) e lexical (verbos como perguntar, responder, declarar,)7. Intertextualidade So inmeras referncias a outros textos da literatura, evidenciando a condio do autor enquanto leitor de mltiplos textos, tais como : Quadras populares: "Aqui me traz minha pena com bastante sobressalto, porque quer voar mais alto, a mais queda se condena" (p. 104).

Bblia: porventura em memria dos trinta dinheiros (p.135).

Contos tradicionais: "Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido em palcio..." (p. 260).

Os Lusadas, de Lus de Cames,: "O homem, bicho da terra" (p. 65). daria para um gigante, Adamastor ou outro (p.133).

Sermo de Santo Antnio aos Peixes, de Padre Antnio Vieira,: "Esto parados diante do ltimo pano da histria de Tobias, aquele onde o amargo fel do peixe restitui a vista ao cego, A amargura o olhar dos videntes, senhor Domenico Scarlatti,..." (p. 173).

Mensagem , de Fernando Pessoa,: "Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite. solido, tem aos seus ps o mar novo e as mortas eras, o nico imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mo, este tal foi o infante D. Henrique, consoante o louvar o poeta por ora ainda no nascido... (p. 233).

ou ainda do barroco: "Parece apenas um gracioso jogo de palavras, um brincar com os sentidos que elas tm, como nesta poca se usa, sem que extrema mente importe o entendimento ou propositadamente o escurecendo." (p. 172). Pcaro personagem dos romances espanhis que se caracteriza pela astcia, aparentando por vezes um aspeto ridculo ou estranho.

Filho de Ddalo, foi aprisionado, com o pai, no labirinto de Creta. Ddalo fabricou asas com penas unidas por cera para que pudessem escapar. Antes do incio do voo, Ddalo recomendou a caro que no se aproximasse do Sol. Todavia, ao sentir a liberdade do voo, esqueceu o aviso paterno e subiu cada vez mais; os raios solares derreteram a cera e provocaram a sua queda no mar Egeu.

Agente que acelera ou retarda uma reao qumica.

Unio do elemento masculino (andro) com o feminino (gino). De acordo com a Teogonia, de Hesodo, o andrgino primordial uma figurao da unidade fundamental que congrega em si os opostos, simbolizando assim a totalidade e a perfeio espiritual.

Prometeu representa, simbolicamente, a criao evolutiva, isto , a assuno da conscincia. Mitologicamente, remete para a figura que roubou a Zeus o fogo sagrado (smbolo do conhecimento e da vida), para o dar aos homens de barro que havia moldado. Castigado por Zeus, Prometeu, acorrentado a um rochedo, sentia, diariamente, o seu fgado ser devorado por uma guia. O ato de Prometeu simboliza a revolta do esprito que, procurando igualar-se ao esprito divino, triunfa numa nova fase evolutiva, atravs da vontade individual.