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O ESSENCIAL SOBRE · 7 Prólogo No outono de 1615 dava‑se à estampa em Ma‑ drid a Segunda Parte del Ingenioso Cavallero Don Quixote de la Mancha, por Miguel de Cervantes Saavedra,

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O E S S E N C I A L S O B R E

Dom Quixote

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O E S S E N C I A L S O B R E

Dom QuixoteAntónio Mega Ferreira

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Índice

7 Prólogo

13 O nascimento de uma paixão

23 Quem é quem em Dom Quixote

33 D. Quixote e o mundo «entortado»

43 D. Quixote entre as mulheres

57 As duas odisseias

67 Última viagem

77 Bibliografia

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Prólogo

No outono de 1615 dava‑se à estampa em Ma‑drid a Segunda Parte del Ingenioso Cavallero Don Quixote de la Mancha, por Miguel de CervantesSaavedra, «autor de su primera parte». Ficavacompleta a obra monumental que mais havia demarcaraliteraturadoocidenteeuropeunossécu‑losseguintes.Estasegundapartedasaventurasdofidalgo manchego vinha responder a uma pressãodaprocura,certamente;masoseuinteressecríticofundamental é constituir a resposta a um apro‑veitamento oportunista do sucesso da primeiraparte, de que beneficiara um tal Alonso Fernán‑dez de Avellaneda, certamente um pseudónimo,que fizera publicar em Tarragona, em 1614, umacontinuação das façanhas do cavaleiro criado porCervantes.Essa«falsa»segundaparteeraacintosapara Cervantes, muito crítica da obra publicadaem 1605, e fortemente apoucadora da grandezada personagem então criada.

Cervantes não gostou do que leu nessa versãoapócrifa;e,segundoeleconta,D.Quixotetambém

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não.Vaidaí,oempreendedorfidalgolançou‑sedenovoàestradaparadaraoseuautormatériaparaescrever a segunda parte. O pretexto é elegantee retintamente literário, pelo menos no sentidoem que entendemos modernamente a palavraliteratura: fazer figurar numa obra de ficção acontestaçãoficcionaldeumaoutraobradeficçãoatravésdeumanarrativa«autêntica»éumartifíciobarrocoporexcelência.Cervantesnãohesitouemusá‑loefê‑locommestriaexemplar:paraanossasensibilidade contemporânea, por muito diver‑tida e estimulante que seja a primeira parte doDom Quixote, é a segunda que eleva o seu alcanceeestabeleceummodelo.Oromanceeuropeunasceaqui, em 1615.

Esta controvérsia propriamente literária teveorigem no sucesso sem precedentes com quefora acolhida a primeira parte do Dom Quixote,publicada dez anos antes: duas edições em Ma‑drid, duas edições piratas em Lisboa, duas emValência, antes mesmo que se acabasse o ano de1605; nova edição em Bruxelas, em 1607, seguidade outra, em Madrid, no ano seguinte; há notíciade edições em Bruxelas, Antuérpia e Barcelona,ainda antes da publicação da segunda parte; em1612 saía em Londres a primeira edição inglesae no ano seguinte representava‑se uma comédiade Shakespeare baseada num episódio narradopor Cervantes; em França, a primeira tradução éde 1614. Nas primeiras páginas da segunda parte,refere o autor do Dom Quixote que essa primeirapartevenderajá12000exemplares—emalpodiaimaginar que, até hoje, a sua obra se tornaria umdoslivrosmaisvendidosemtodoomundo.Enfim,

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conta a tradição que, por estes anos, assomandoao balcão do palácio o rei Filipe III, e tendo vistoum estudante que se rebolava a rir com a leiturade um livro que tinha nas mãos, comentou que orapaz ou estava louco ou estava a ler o Dom Qui‑xote. Ao que parece, o estudante estava mesmo aler o Dom Quixote.

Porém, o extraordinário sucesso da primeirapartedoDom Quixotenãosetraduziuempecúniagrossa,jáqueopagamentoaosautoresera,àépoca,amenordaspreocupaçõesdoseditores.Aomenos,Cervantes, que sempre ambicionara uma carreiraliterária, tirava desforço dos seus inúmeros rivaise estabelecia o seu nome como um escritor deprimeira linha, na Espanha filipina e na Europado seu tempo. Mas não viveu o tempo suficientepara beneficiar dos frutos da glória. Os outrostinham‑lhe escapado entre os dedos, ao longo detoda a vida.

MigueldeCervantesSaavedranasceraemAlca‑ládeHenares,pertodeMadrid,nooutonode1547,numa família da pequena nobreza empobrecida.Quando afamíliasemudouparaCórdova, naAn‑daluzia,Miguelfoimandadoinstruirpelosjesuítas.JáemMadrid,capitaldoReinodesde1551,Miguelpublicaosseusprimeirospoemas,em156�.Tinhaentão21anosesóduasdécadasdepoisregressaráà poesia. Tendo passado a Itália como soldado,achou‑senagrandearmadacomandadaporD.Joãode Áustria, que derrotou os turcos na batalha deLepanto, em 1571. Acontecimento grandioso queevocarádiversasvezesnasuaobra,Lepantoficarácomoumamarcainfelizmenteinesquecívelnasuavida: muito ferido na batalha, Cervantes perderá

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o uso do braço esquerdo, por causa de um «arca‑buzazo». Quatro anos depois, quando viajava deNápoles para Espanha em busca de um cargo ofi‑cial,foiaprisionadoporpirataselevadoparaArgel.As cartas de recomendação que levava no bolsoconvenceram os piratas de que se tratava de umapersonagemdegrandeimportância.Oresgatequelhefixarameradesproporcionadocomaqualidadepolíticadafigura,emboraprovavelmenteridículoquando comparado com o seu valor literário.

Cinco anos durou o cativeiro de Cervantes,não sem que ele tivesse tentado a fuga, em maisde uma oportunidade. Finalmente libertado noverão de 15�0, Cervantes voltou a Espanha, ondecontava obter um emprego na Corte, como pagados seus bons serviços. Mas, como tal não severificou, dedicou‑se à escrita de um romancepastoril,A Galateia,cujaprimeiraparteviriaaserpublicada em 15�5. Iniciara, entretanto, uma car‑reiradeautordeteatro,naqualnãoobtevegrandeêxito, porque a maneira nova de Lope de Vegamonopolizavaasatençõesdopúblicoeointeressedosempresários.Casou‑seemToledoetornou‑secobradordetributos,mas,nessaqualidade,ganhoua inimizade da Igreja, à qual pretendia aplicara mesma medida que aos pobres camponeses aquemtinhaquerequisitaroscereaiseoazeite.Foiexcomungado.Poucotempodepois,encontraram‑‑lhe discrepâncias nas contas e moveram‑lhe umprocesso por fraude. Mudou‑se para Sevilha, masnem isso o salvou de ser preso, no verão de 15�7,ficando encarcerado durante seis meses. De novolibertado, dissolveu‑se durante algum tempo noanonimato que Sevilha lhe proporcionava. Alvo

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constantedeinterrogatóriosdoTribunaldeContase das intrigas dos seus inimigos, mudou‑se com afamíliaparaValladolideaproveitouparacomeçaraescreverDom Quixote,cujomanuscritoentregouao editor em finais de 1604.

Quando o livro foi publicado, em princípiosde 1605, Cervantes tinha 5� anos de idade; a se‑gunda parte veio a lume em 1615, quase a atingiros70.Nessadécadafinal,deraàestampaamelhorparte da sua obra literária: as magníficas Novelas Exemplares em 1613; o poema Viaje del Parnaso,no ano seguinte; as Ocho comedias y ocho entre‑mezes, coletânea de textos teatrais, em 1615, omesmo ano em que faz publicar a Segunda Partedo Dom Quixote; e deixou pronto Los trabajos de Persiles y Sigismunda, que seria publicado postu‑mamente em 1617. Morreu em 1616, com poucassemanasdediferençadeShakespeare,notermodeuma vida atribulada e socialmente mal sucedida,masvotadaàglóriadaposteridadeporvirtudedoseu génio literário.1

1 Opresentelivrodacoleção«OEssencialsobre»temporbaseosensaiospublicadosnaminhacoletâneaPor D. Quixote, o litera‑to, o justiceiro e o amoroso,Lisboa,Assírio&Alvim,2006.

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O nascimento de uma paixão

Tudo começa com a publicação em Madrid,nos primeiros dias de 1605, daquela que virá aser a Primeira Parte de El Ingenioso Hidalgo Don Quixote (sic) de La Mancha, a que chamaremosapenas Dom Quixote2. Logo no início, à laia deproposição, aponta‑se a natureza e intenção dolivro: dá‑se conta, no prólogo (quem fala é Cer‑vantes) das dificuldades, renitências e escrúpulosque teve o autor em reduzir a escrito as façanhasde D. Quixote; e das dúvidas quanto à eficácia doque escrevesse, já que não caberia na narrativa oaparato crítico com que se costumavam alindarlivros semelhantes. O seu seria

«um livro seco como um esparto, isentode imaginação, mísero de estilo, pobre de

2 Todasascitaçõessãoextraídasdaediçãoportuguesa,comtra‑duçãodeJoséBento(v.«Bibliografia»).Usa‑senumeraçãoro‑manaparaidentificaraquepartedolivronosreferimos;enu‑meraçãoárabeparaocapítuloreferido.

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conceitos e falto de toda a erudição e dou‑trina, sem explicações nas margens e semanotações no fim do livro».

Porém,olivroquesevaidesdobrardiantedosolhosdoleitorétudoissoqueCervantesaborreciaoudiziafaltarnasuaescrita,comgenerosainter‑polaçãodemuitoromancepopular,muitanoveletaintercalada,muitosoneto,vilanceteecopla,muitoadágio e refrão, muita tradução e muita citação,muita apropriação e muito pastiche. Além dainserção, em registo intermédio, de um segundonarrador(alegadamente,onarradororiginário),ofamigerado Cide Hamete Benengeli, que apareceapenas no capítulo � (Cervantes refere‑lhe a pa‑ternidade do relato, logo no prólogo, mas este édefaturaposterioràconclusãodocorpodaobra),paranãomaisdesaparecer.Primeirareverênciaaogénerocavaleiresco:«umatalmise‑en‑scèneeraderigornosromancesdecavalaria»,escreveSalvadorde Madariaga. Avalizar, ainda que fingidamente,o relato com o recurso a uma fonte identificadaacrescentava veracidade ao relatado.

Estaconvençãonãoéapenasumaformadecre‑dibilizaranarrativa:é,comopodemosaperceber‑‑nos pela leitura, um elemento de composiçãosaturante,quevisadistanciaroautordanarrativa(é uma outra voz que narra), mas que ao mesmotempo constantemente o chama a intervir naarquitetura da narração: a sua voz é a do autor, omediadorúltimoentreotextoeoleitor.CervantesescreveoqueCideHametediz,ouoqueotradutorofazdizer:queD.Quixoteéloucoequegrandiosaseinauditassãoasfaçanhasquelhesãoinspiradas

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pela loucura, porque há uma desproporção evi‑dente entre o que a realidade mostra e o que eleimaginaquearealidadelheapresenta.Taiscoisas,asqueD.Quixotevê,dizCervantes,nãoexistemnavida real; no entanto, D. Quixote viu‑as em litera‑turaeéemliteraturaqueelasacontecemnotextoque Cervantes propõe. E por isso, tais coisas sãoreais, como matéria literária. Para Edward Baker,aosolhosdeD.QuixotearealidadeexterioréalgoqueoEngenhosoFidalgosópodecompreendersea abordar como se fosse um livro:

«NoDom Quixoteestamosperanteocasodeumleitorquepretenderomperoslimitesdasuabibliotecaconcebidacomorefúgio[àmaneira de Montaigne], transformando oespaçodoquotidianoocupadopelasrestan‑tes personagens em espaço de leitura.»

E, no mesmo sentido, escreve Marthe Robert:

«O ato quixotesco mais radical não éde todo a concretização de uma qualqueraspiraçãopessoal,mas,bempelocontrário,a imitação de um ideal fixado por uma tra‑dição,asaber,umaconvençãoliterária,des‑providoportantodequalqueroriginalidade.»

Mais: D. Quixote não vê a realidade com osolhos dos heróis que incensa; simplesmente, nãovêarealidade,porqueaprojetanumécrandepa‑lavras,deacordocomosepisódiosacumuladosnasua memória: de facto, relê a realidade de acordocom a letra dos livros que carrega dentro de si.

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É o fiel servidor de um pré‑guião que dispensa arealidadeaparente;D.Quixoteéumplatonistasemfilosofia,um«discípulodePlatãocobertocomummanto de loucura», como escreveu o equatorianoJuan Montalvo.

O próprio Cavaleiro almeja, desde o início,uma imortalidade em papel. Logo no capítulo 2,tendo saído ao campo montado em Rocinante, edando‑se conta de que não fora sequer armadocavaleiro «conforme lera nos livros que o tinhamposto naquele estado», o nosso fidalgo põe‑se aconversarcom os seusbotões: «Quemduvidaquenosfuturostempos,quandosairàluzaverdadeirahistória dos meus famosos feitos, o sábio que osescrever não ponha, quando contar esta minhaprimeira saída tão ao alvorecer, desta maneira.»Eencadeiacomumaexaltaçãohiperbólicadassuasprópriasfuturasglórias,quetresandaapastichedoestilocavaleiresco:«MaltinhaorubicundoApoloestendido pela face da vasta e espaçosa terra asdouradas fibras dos seus formosos cabelos…»; e,por aí fora, já que era assim que via o Sol que, aessa hora, pelos vistos, já começava a estorricar‑‑lhe os miolos. D. Quixote queima etapas: antesmesmo de sair a pelejar e a endireitar o mundoque tantas bossas e agravos apresenta, «imitandomuitosoutrosqueassimfizeram»,jácompõeprosaditirâmbica em seu próprio louvor. No mundo deD. Quixote, tudo o que existe ou acontece há deaparecer em letra de forma—porque foi em letrade forma que tudo aconteceu pela primeira vez.

Ora, de onde lhe viera esta sede literária, fontede todos os seus desvarios e desatinos? Da muita,excessiva,porfimabsorvente,leituradosromances

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decavalariaque,aotempoemqueCervantesescre‑ve, se bem que possivelmente já estivessem na suacurva criativa descendente, recolhiam ainda amplarecetividade entre o público mais e menos culto.Defacto,percebercomooDom Quixotefuncionaemrelação ao momento em que é escrito ajuda muitoa relativizar a intenção expressa pelo seu autor,quer no prólogo, quer nas páginas finais da obra.Um trânsito de dez anos medeia entre os dois mo‑mentosdeescrita:porém,nãomudamsensivelmenteas condições histórico‑culturais em que Cervantesescreve. Os romances de cavalaria tinham‑se tor‑nadoimensamentepopularesnosséculosxvexvi,sobretudoporinfluênciadasnarrativascavaleirescasde Chrétien de Troyes (finais do século xii), o ver‑dadeiro inventor do género, dando origem à cha‑mada «matéria da Bretanha», que foi terreno fértilondeosescritoresibéricosforamcolherinspiração.Os romances de Chrétien de Troyes retomavam aantigatradiçãobritânicaligadaaocultodoGraaleaomitodoreiArturedoscavaleirosdaTávolaRedonda.Nos séculos seguintes, os ibéricos reinventaram ogénero, criando novas personagens e engendrandosituações inovadoras. O eminente medievalistae cervantista Martín de Riquer define‑os assim:

«[...]narrativasemprosa,geralmentedegrande extensão, que relatam as heroicasaventuras de um homem extraordinário,o cavaleiro andante, que vai pelo mundosozinho, lutando contra toda a espécie depessoas ou monstros, contra seres normaisou mágicos, por terras as mais das vezesexóticas e fabulosas…»

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Oapogeudogénero,queseespalhapelaPenín‑sulacomomanchadeóleo,éoAmadís de Gaula,quejáseriaconhecido,porescritoouportradiçãooral,em finais do século xiv, mas cuja primeira ediçãoconhecidaéde150�,comotítuloLos cuatro de Ama‑dís de Gaula, vindo a ser reimprimida umas vintevezes ao longo do século xvi. Mas, à medida que afamadeAmadísedosseusepígonossetorna«viral»(comodiríamoshoje),osromancesdecavalariasãotomadoscomoalvopelaIgrejapós‑tridentina:gran‑departedoséculoxviespanholfoiconsumidaemquerelas,quehojenosparecemaberrantes,entreadoutrina oficial,que lança oanátema sobreemar‑ginaliza os romances de cavalaria como distraçãoimpeditivadamaisintensadedicaçãoaoserviçodeDeus,eosilencioso,sub‑reptíciopercursocomercialelúdicodosmesmoslivros,queconhecemreediçõessucessivasesãodoconhecimentogeneralizado,atédaquelesquenãosabemler,comoacontece,nolivrodeCervantes,comoestalajadeiro,quesustentacomocura(I,32)apaixonadocolóquiosobreamatériacavaleiresca,talcomolhechegavaregularmenteporleitura de terceiros.

De facto, e se quisermos olhar apenas para operíodo provável de gestação do Dom Quixote,publicam‑se manifestos, quase sempre de origemeclesiástica, reafirmando a condenação dos livrosdeletérios, em 15�� (frei Juan de Tolosa e freiFrancisco Ortiz Lúcio), em 15�3 (frei Francisco deRibera), em 15�5 (frei Marco António de Camòs),em 15�7 (Gaspar de Astete) e em 15�� (frei Luísde Granada, frei Pedro de la Vega e frei Juan de laCerda). Ao mesmo tempo, porém, reeditavam‑setrêsromancesdecavalariaquenãoapareciamdesde

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1563, nos quais se referia o marquês de Mântua,que D. Quixote também menciona enfaticamente(capítulos5e10daprimeiraparte).Porgrandequetivessesidoocombatedoutrinárioepolíticocontraosromancesdecavalaria,averdadeéque,comodizCésarVidal,«oséculoxviterminavaquasecomoha‑viacomeçado:chuvadecensurasemínguaderesul‑tados».Enosprimeirosanosdoséculoxvii,comasubidaaopoderdeFilipeIII,oambientedesanuviou‑‑se ainda mais: as restrições legais à impressão ecirculação dos livros malfadados, que fora timbredoreinadodeseupai,desapareceramporcompleto.

Quer dizer: Cervantes achou‑se, para levar acabooseuprojetoliterário,condicionadoporduaspressões de sinal diverso e oposto. Por um lado,a aceitação popular dos romances de cavalariaera o campo fértil ao qual, desejoso, como o seuCavaleiro, de «alcançar eterno renome e fama»,convinhalançarasementedoseugénio;maseradebom‑tomdoutrinário—e,portanto,erudito—des‑merecer dessa «literatura», que ignorava os maisaltosdesígniosdasobrasde«proveitoeexemplo».Importante distinção: Cervantes discute a maniacontrarreformista de esconjurar toda a literaturaprofana (poesia incluída) em exclusivo favor dasleituras devotas. Fá‑lo, ex professo, na dedicatóriadasegundapartepublicadaem1615;mas,jánopa‑ratextodaprimeiraediçãodasNovelas Exemplares,em1613,terçavaarmasporesseslivrosdeentrete‑nimentoaosquaisreconduziaasuaescrita,porque

«nem sempre se está nos templos, nemsempreseocupamosoratórios,nemsemprese trata de negócios, por qualificados quesejam: horas há de recreação, nas quais oespírito descanse».

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Em finais do século xvi, quando Cervantesinicia a composição deste Engenhoso Fidalgo,havia mais de cinquenta romances de cavalariade criação peninsular em circulação. O número éastronómico,paraaépoca:umabibliotecaprivadabem fornecida podia albergar uns cento e cin‑quenta volumes. E bem fornecida era a bibliotecade D. Quixote, pelo menos segundo o que dela sedepreende através do «engraçado e rigoroso es‑crutínio» a que a sujeitam o cura e o barbeiro, nocapítulovidaprimeiraparte:àfogueiravãopararLas sergas de EsplandiáneAmadís de Grecia,doisfilhosespúriosdoAmadísoriginal;Don Olivante de Laura,Florismarte de Hircania,oCaballero Platir,oCaballero de la Cruz, o Palmerín de Oliva,eumacaterva mais, cuja enumeração seria fastidiosa aoleitor,que,nãosendoD.Quixote,muitoprovavel‑mente nunca ouviu falar deles.

Masnemocura,nemobarbeirosedispensamde resgatar da razia uma meia‑dúzia de bons li‑vros, a começar pelo citado Amadís de Gaula, quevai ser o breviário de D. Quixote, continuandona Diana de Jorge de Montemor, no Palmeirim de Inglaterra, no Orlando Furioso de LudovicoAriosto, e, até, em A Galateia, romance pastorilque Cervantes publicara em 15�5, e do qual, atéà hora da morte, sempre prometeu continuação.Graciosa «assinatura» de Cervantes, que põe naboca do cura estas palavras:

«HámuitosanosqueégrandeamigomeuesseCervantes,eseiqueémaisversadoemdesditasqueemversos.Oseulivrotemalgodeboainvenção,propõealgoenãoconcluinada.»

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Por isso, não o condena ao fogo (do Inferno)nemosalvadefinitivamente(oParaíso):remete‑opara o limbo do Purgatório, onde esperará pela«misericórdia que agora se lhe nega».

Ora,duranteafunção,ocuraeobarbeiroescru‑tinamunstrintalivrosexistentesnabibliotecadofidalgo;maseste,porsimplesprosápiaoumaldis‑farçadoorgulho,dizqueporlátinhaunstrezentos,antesqueosencantadoresostivessemmandadoàfogueira.D.Quixote,diz‑nosCervantes,deraemlerlivrosdecavalaria,ecomtal«entusiasmoeprazer»se dedicara a essa atividade, que «levou para casatodos quantos conseguiu». À pala desta obsessão,esqueceu‑se de tudo o resto; e assim, «do poucodormir e do muito ler, secou‑se‑lhe o cérebro, demaneira que acabou por perder o juízo».

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Quem é quem em Dom Quixote

Quem era D. Quixote (ou, melhor, AlonsoQuixano,queéoseunomeverídico,quandooro‑mance começa)? Sabemos que era hidalgo, o que,naCasteladoseutempo,eradignidadepartilhadaporcercade10%dapopulação;equeerapobre(ouremediado), o que, na descrição dos especialistas,era a condição mais comum deste degrau menorda escala nobiliárquica. Sendo hidalgo, AlonsoQuixano estava excluído dos estratos superioresdasociedade,abaixodoscaballeros,queeramumaespécie de nobreza intermédia, e longe, muitolonge, dos detentores de títulos nobiliárquicos deelevado grau (duques, marqueses e condes), quenãochegavamacem,emboraentresipartilhassempatrimónio gigantesco.

Maspertenciaànobrezaeissodava‑lhecertosprivilégios,que,sabemo‑loporCervantes,nãolhepermitiamirmuitolonge—anãosernaimagina‑ção.LogonoiníciodoDom Quixotediz‑sequeeraele«umfidalgodosdelançaguardadanoarmeiro,adargaantiga,rocimfracoegalgoveloz».Queristodizerquenãoseilustraranaguerra,e,pormaioria

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derazão,quenãoestiveraemLepanto,comooseucriador;aúnicaatividadequeselhedepreendeéadacaça,porqueparaissodeviasero«galgoveloz».No resto, nem justas (que já não se praticavam),nem duelos (que começavam a tornar‑se moda),nem querelas de vizinhos que houvesse de terresolvidoàespadeirada.Etrabalhareracoisaqueestava excluída pela sua condição de nobre, comfazenda própria.

Defacto,sabemosqueoúnicocriadoquetinha«tanto selava o rocim como podava as árvores»; eque,porcausadovíciodeleituraemqueofidalgocaiu, «vendeu muitas fanegas de terra de semea‑dura para comprar livros de cavalaria para ler».A«loucuraliterária»deD.Quixotedevetercustadoumafortuna;masaverdadeéqueaindaficaracomalgumacoisadeseu,porque,quandodospreparati‑vosparaasegundasaída(I,7),«D.Quixoteprocu‑rouarranjardinheiroe,vendendoumacoisaeem‑penhandooutra,emalbaratandotodas,reuniuumaquantia considerável». Cabe ao próprio o rematedesteretratofragmentário,duranteacélebrecon‑versa que tem com Sancho Pança, no capítulo21,logo após a conquista do elmo de Mambrino:

«Ébemverdadequesoufidalgodesolarconhecido, de fidalguia comprovada, e comdireito a uma indemnização de quinhentossoldos por qualquer injustiça sofrida…»

Mas, ao tempo, esta antiga prerrogativa caírajá quase completamente em desuso.

Resumindo: era D. Quixote fidalgo com patri‑mónio, pelo menos antes de lhe dar a «loucura»

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das cavalarias; provavelmente, tê‑lo‑ia recebidoem herança, porque não se lhe conhece atividadeanterior justificativa; deveria viver remediado, jáque o que investiu na biblioteca era uma grossamaquia; e a sua nobreza era‑lhe reconhecida pelaCorte,quecomotallheatribuíra(ouàsuafamília),hámuitotempo,oprivilégioreferido.Era,podemosdizê‑lo, um «integrado».

Quandoresolveudedicar‑seàcavalariaandante,deitou contas à vida e fez a lista daquilo que lhefaltavaparapoderemularosseusheróis:umnome,emprimeirolugar.EraAlonsoQuixano;tornou‑seD. Quixote. Precisava de um cavalo; foi ao rocimque lhe restava, aquilo a que poderíamos chamarumapileca,e,noseumuitoimaginar,achou‑odig‑nodosseusantepassados,oBucéfalodeAlexandreeoBabiecadoCid:chamou‑lheRocinante.Careciadeumadama,aquemdedicarosseustriunfoseasua glória, por cuja imagem se desse a matar e amorrer, como acontecia com os outros cavaleirosandantes;lembrou‑sede«umajovemlavradeira»,Aldonça Lourenço, por quem em tempos andaraenamorado:deu‑lhepornomeDulcineiadeTobo‑so.Imagina‑sequeestaDulcineiaé,naspalavrasdeD.Quixote,aquinta‑essênciadabeleza,dapurezae do ideal. Atravessa todo o romance como umaausênciamágica,àqualtodosdevemprestarvassa‑lagem,emboranãoaconheçam.Porém,quemére‑almenteomodelosobreoqualocavaleiroconstróiaimagemdasuaamadavirtual?SanchoPança,queapresentaremosjáaseguir,conhece‑aepodedizer:

«[...]ajogaratiraabarratãolongecomoozagalmaisvalentãodetodaaaldeia.Viva

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oCriador,queelaéumaraparigaesmerada,feitaedireitaedepelosnopeito,equepodetirar de apuros qualquer cavaleiro andan‑te, ou por andar, que a tiver por senhora!Ohfilhadamãe,quecorpanzilequevozei‑rão!Possodizerqueumdiasubiuaoaltodocampanáriodaaldeiaachamarunszagaisdesuacasaqueandavamnumalqueivedopai,eemboraestivessemàdistânciademaisdemeialégua,mesmoassimouviram‑nacomose estivessem ao pé da torre. E o melhorqueelateméquenãoénadadecerimónias,porquetemmuitodecortesã:comtodoselagoza e de tudo diz frases picantes e engra‑çadas.» [I, 25.]

Faltava‑lhe, enfim, após uma primeira saída,curta e mal sucedida, o escudeiro. Chamou umlavrador seu vizinho, «que tinha pouco sal namoleirinha», e tantas promessas lhe fez «que opobre aldeão decidiu ir com ele para lhe servirde escudeiro» (I, 7). A este não houve que mudaro nome: chamava‑se Sancho Pança, assim ficou.Mas Sancho vai assumir, na narrativa das aventurasdofidalgo,umpapeldecrescenteimportância:começapor lhe aturar as tinetas e os disparates; dá‑lhetroco e as «deixas» para os seus monólogos fan‑tásticos; mas, primeiro por cupidez (D. Quixotepromete‑lheumailhafabulosa),depois,pordevo‑ção, ser‑lhe‑á o amparo indispensável e o espelhodas suas fantasias. A «quixotização de Sancho»(Madariaga)começanocapítulo5dasegundapar‑te, quando o lavrador explica à mulher as razõespelas quais vai de novo partir com D. Quixote,

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«edizcoisastãosubtis»queotradutor«nãocon‑siderapossívelqueeleassoubesse».Esta«conver‑são»,queprosseguenaconversaentreoescudeiroeoCavaleirodosEspelhos,naqualelogiaabondadedo seu amo e lhe jura fidelidade (II, 13), e vai até àcena final, é selada pelo trato que o Cavaleiro lhepropõe, no muito célebre capítulo 41 da segundaparte,quando,enfimdesenganadodasuaempresa,D.QuixoteformulaaSanchoumatrocaquerevelatudo o que lhe vai na alma:

«Sancho, já que vós quereis que seacredite no que vistes no céu, quero queacrediteisnoqueeudissequevinacovadeMontesinos. E não vos digo mais.»

D.Quixotenãoacreditanoquevê,masacreditanoqueSanchodiztervisto,paraqueesteacrediteno que ele disse ver. É a quixotização das duaspersonagens; e, também, o princípio indissolúvelda credibilidade em que consiste o pacto entrequem escreve e quem lê: «a willing suspension of disbelief»,comodirá,lapidarmente,SamuelTaylorColeridge, cerca de dois séculos mais tarde.

Masnãoserádemaissublinharaquique,àqui‑xotizaçãodeSancho,correspondeumaprogressivasanchização de D. Quixote. Quando as aventurasdos dois começam, logo na segunda surtida doCavaleiro, o discurso deste é articulado, emborahiperbólico, fantasioso, visionário, aquilo a quechamaríamos um discurso literário, e com boarazão,porqueapersonagemdeD.Quixoteseerguedeummagmadereferênciascolhidasnatradiçãodoromancedecavalaria.Partedoseuencantore‑

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sideaí,nessedelicadoanacronismodassuasfalas,na sensível inadequação do que vê e conta com abrutarealidadecomqueseconfronta;oencantodeSanchoprovém‑lhejustamentedocontrário.Anal‑fabeto, genioso e loquaz, o agora feito escudeirofala por rifões e adágios, essa «filosofia do pobre»(Trapiello),justapondo‑osemininterruptacadeiadeassociações,asquaisnemsempretêmaplicaçãocerta. Porém, é esse catálogo quase interminávelde expressões do senso comum que constitui oelemento fundamental de composição da suapersonagem e a sua graça resulta dessa espéciede «sabedoria popular», que é tão desconcertantecomo o discurso fabuloso de D. Quixote. Ora, averdadeéque,poucoapouco,eespecialmentenasegunda parte do romance, à medida que as duaspersonagens confluem, o Cavaleiro vai adotandoexpressõesextraídasdovocabuláriodoescudeiro,primeiro citando‑o, mais tarde assumindo comosuas expressões do domínio comum, já usadaspor Sancho ou suscetíveis, pela sua natureza, defigurarem no seu discurso. Angus Fletcher (cita‑do por Harold Bloom) descreveu acertadamenteo método seguido por Cervantes para aproximarestas duas personagens, tão diferentes e, afinal,tão complementares:

«Onde Quixote e Sancho se cruzam énum certo tipo de animação, na vivacidadedas suas conversas. À medida que falam, eporvezesdiscutemardorosamente,vãoalar‑gandoocampodospensamentosdecadaumdeles.Nenhumpensamentodequalquerdoslados fica sem ser examinado ou criticado.

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Através sobretudo de desacordos corteses,tantomaiscortesesquantomaisagudamen‑te em conflito, os dois vão a pouco e poucoinstaurandoumaáreadejogolivre,naqualos pensamentos são postos em liberdadepara nós, leitores, neles ponderarmos.»

Está,assim,completooquadrodaspersonagensprincipais:D.Quixotesaiparaomundo,àcatadeaventuras,quelhepermitamendireitaroqueestá«torto»,istoé,foradolugardefinidopelosroman‑ces de cavalaria. E que aventuras! A dos moinhosdeventoqueeletomaporgigantes(possivelmente,o mais célebre de todos os episódios do livro); ado rebanho de carneiros que ele investe como sefosse um exército; a dos condenados às galés queele manda libertar, porque vão presos contra suavontade; a da bacia de barbeiro transfigurada emelmodeMambrino,referênciaaoOrlando FuriosodeAriosto;adoretábulodemestrePedroeosseusbonecos de pasta; e a famosa aventura dos leões(II, 17), que exige um olhar mais atento, porque édas poucas em que D. Quixote não se sai mal detodo.Porque,noresto,asaventurasdeD.Quixotesão,rigorosamente,desventuras:comoeletomaanuvemporJuno,investecontraanuvemesofreapunição que o seu engano propicia. Durante todoo livro, D. Quixote é uma espécie de saco de boxenoqualomundosevingadoseuarrojoeaudácia.

E o que é o mundo, na galeria de figuras ex‑traordináriascriadaspeloengenhodeCervantes?Ocuraeobarbeirodaaldeia,emprimeirolugar(seéqueasobrinhaeagovernantadoCavaleironão vêm primeiro): com eles muito se entreteve

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AlonsoQuixanosobreosromancesdecavalaria,antes de se decidir a ser D. Quixote; a eles cabea ingente tarefa de distinguir o trigo do joio nabem fornecida biblioteca do fidalgo (I, 6); elesse encarregam de tentar trazê‑lo de novo a casa(I, 27); intervêm na querela suscitada por causada bacia de barbeiro que D. Quixote julga ser oelmo de Mambrino (I, 45); ao cura cabe, enfim,papel de testemunha interventiva na cena final(II, 74).

Determinante para o destino de D. Quixote éo bacharel Sansão Carrasco, cujo aparecimento(II,3)desencadeiauma«conversaengraçadíssima»comoCavaleiro,naqualparticipatambémSanchoPança.ObacharelfingequeveneraD.Quixote(«noquedizrespeitoaboafamaebomnome…apenasvossa mercê leva a palma a todos os cavaleirosandantes»),mas,àsocapa,gizaumaestratégiaparatirardacabeçadeAlonsoQuixanoosfumoscava‑leirescos:oCavaleirosódesistiráseforderrotadocom as suas próprias armas, isto é, em combate eporpersonagemliteráriaqueelereconheçacomosendo da sua igualha. Surge‑lhe, por isso, comoCavaleiro dos Espelhos, mas falha no seu intento(II, 12‑15); e só perto do final (II, 64‑66), quandoencarna o Cavaleiro da Branca Lua, conseguederrotá‑lo e reconduzi‑lo a casa. Nas suas ficçõespós‑quixotescas, publicadas já no nosso século, oescritorAndrésTrapiellofá‑loherdeirointelectualde D. Quixote.

Outra personagem secundária que assumeespecial relevância no calvário de D. Quixote éAltisidora, a criada dos duques, que persegue oCavaleiro com propostas e declarações amorosas

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(II, 44, 47 e 6�), levando‑o a rejeitá‑la três vezese começando a convencê‑lo, finalmente, de queDulcineia de Toboso (a Mulher) é uma ilusão.Aestaperturbante«pretendente»,amaisagressivadasmulheresquerodeiamD.Quixote,dedicaremosmaisespaçoadiante,nocapítulo«D.Quixoteentreas mulheres». Mas Altisidora é a «mão armada»dos duques, verdadeira encarnação do desregra‑mentoedacrueldadedospoderosos,queacolhemD.Quixote e Sancho para com eles se divertirem.São eles que montam as armadilhas sucessivasem que fazem cair o Cavaleiro, e a eles se devea «oferta» da ilha de Baratária (a «ínsula» queD. Quixote prometera a Sancho), na qual o pobreescudeiro fará figura de néscio e se desenganaráda miragem do poder.

A breve aparição de Álvaro Tarfe, cavaleirogranadino, é, apesar do seu caráter pontual, deextrema importância como artifício literário.É que ele encontra‑se com D. Quixote em fasequase terminal do romance (II, 72) e, diantedo Cavaleiro, afirma‑se amigo dele, falando aténumas justas em Saragoça às quais o fidalgo deLa Mancha se teria comprometido. Momento deverdade: Álvaro Tarfe é uma personagem do falsoDom Quixote publicado em 1614. Encontram‑seassimaspersonagensdeduasficçõesdiferentesecabe a D. Quixote proclamar a sua autenticidade,desbancando«essedesgraçadoquequisusurparomeu nome e honrar‑se com os meus compromis‑sos.» César Vidal comenta, a propósito:

«Orecursoliteráriousadonesteepisódiopor Cervantes é de especial interesse, já

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queseservedaspersonagensquedialogamreferindo‑se à obra em que estão imersoscomo se lhes fosse alheia.»

Efeito mais barroco não há…E depois, Dom Quixote é um cortejo quase

interminável de personagens menores, mais oumenosinteressantes,mastodaselasfigurandonomundo«entortado»noqualsemoveafantasiadoCavaleiro:háestalajadeirosemoçosdeestrebaria,aias e marquesas, arrieiros e tendeiros, donzelase meretrizes, estudantes e bacharéis, caçadores egaleotes.Apropósito:duranteoepisódiodoscon‑denadosàsgalés,queD.Quixotelibertaporquevãopresos «contra a sua vontade» (I, 22), Cervantestrata com severidade um deles, um tal Ginés dePasamonte, o qual, mal‑agradecido, acabará, trêscapítulos depois, por roubar o burro que SanchoPança tem por montada. A crítica moderna (portodos, Riquer) tende a identificar este bandoleirocomoJerónimodePasamonte,queforacamaradade armas de Cervantes, e que, picado por estasreferênciasdesagradáveis,acabariaporseroverda‑deiro autor do falso Dom Quixote, sob o pseudó‑nimo de Alonso Fernández de Avellaneda.

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D. Quixote e o mundo «entortado»

E, de súbito, prisioneiro de um incontroláveldesejo de ação, o ocioso fidalgo resolve partir àaventura. Mais correto será dizer que confia aocavaloarotadaaventura,masnãodeixaaodeus‑‑dará a encenação da sua gesta heroica. Afastadodo mundo durante cinquenta anos, longe de tudoe, presumivelmente, ignorante do muito que sepassaranasúltimasdécadas,D.Quixotelança‑seaomundocomainocênciadeumacriança.Distinguo:ainocênciacomqueumacriançaselançaa«fazerumaaventura»érelativa,contém‑sedentrodosli‑mitesdecertasregrasqueelaadotacomosuas,ain‑daquemuitodiferentesdasdomundodosadultos.No seu apaixonante ensaio sobre o Dom Quixote,pelaprimeiravezpublicadoem1��4,GonzaloTor‑rente Ballester intui esta semelhança—«simplesreferência (que vale como recordação)»—, masusa‑a mais do que se poderia antecipar, emboa parte da sua leitura da obra de Cervantes:

«A criança que não tem brinquedos,que se vê obrigada a inventá‑los através

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de uma operação de bricolage, age comoD.Quixote:aquiloque,depertooudelonge,se assemelhe ao que pretende servir‑lhe‑ápara transmutar o real e criar assim ummundo em que possa brincar. Aponta paraumacadeiraediz: istoéumbarcoeeusouo comandante.»

Ou seja: juego, jogo, fingimento, faz‑de‑conta,mas não necessariamente um divertimento semregras.Ballesterentendequetodaaartenarrativado Dom Quixote está nessa duplicidade entre oque o fidalgo quer ver e aquilo que vê realmente.Harold Bloom, inspirando‑se em Huizinga, vaiainda mais longe:

«D. Quixote não é louco nem tolo, masalguémquejogaousediverteasercavaleiroandante. O jogo é uma atividade voluntária,aocontráriodaloucuraedatolice.»

Ou seja: D. Quixote vê realmente o que dizver—oumentecomoumacriançateimosanasuafantasiaenomóbildasuaaventura,queé«alcan‑çar eterno renome e fama»?

Para o que nos interessa aqui, cabe admitirque D. Quixote não se lança ao mundo em estadodedisponibilidadevirginal.Láporquenãoseregepelas leis do seu tempo, não quer dizer que nãoconformeasuaatuaçãocomdeterminadosprecei‑tos, regras e convenções. Quais são? Os preceitos,rituais e formalidades não justificados (isto é, eparaoqueaquinosimporta,nãocaucionadospeloDireitovigente)dacavalariaandante,elespróprios

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carentesdefixaçãoescritaconvencional,istoé,nãoreduzidosaletradelei.Ondeseencontramentãoesses preceitos? Avulsamente, nos romances decavalaria que o fidalgo devorou enquanto consu‑mia a fazenda. D. Quixote é o produto acabado deumaordemaquechamaríamosmetajurídica,quetem as suas «normas» e os seus «códigos»—mastodos de origem literária: nem aquelas nem estesestãosujeitosaocrivodafiscalização,atualizaçãoecongruênciacomarealidadesocial,quepresidemaqualquerordenamentojurídico.Decadavezqueéconfrontadocomasobrigaçõesdecorrentesdavidasocial, sejam pecuniárias, sejam morais, o fidalgoargumenta não ter ouvido, ou lido, ou sabido deque tais coisas tenham acontecido aos cavaleirosandantes,cujomodelopretendeseguir,emimitatioquase mimética (como na sua nunca por demaisencarecida colagem a Amadis de Gaula). Numextremo de desassombro, chega mesmo a avisarSanchodeque«nemtuquererásmudaromundonem tirar a cavalaria andante das suas normas»(I,10).E,emprovocaçãoevidente:«Ondevistetuou leste que algum cavaleiro fosse para a cadeiapor mais homicídios que cometesse?». Não viuem parte nenhuma: os romances de cavalaria sãomagnânimosparaoscavaleirosqueospovoam—osvilões são os outros e a questão é resolvida à lan‑çada, o que muito devia aliviar as prisões...

Nocapítuloseguinte,sobaformadeumaevo‑cação da «idade de ouro», D. Quixote tece estasjudiciosas considerações sobre a justiça:

«[Nesse tempo] não havia a fraude, oengano nem a maldade misturados com a

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verdadeeasinceridade.Ajustiçaestavanaletradasleis,semqueousassemperturbá‑lanem molestá‑la as do favor e as do lucro,quetantoagoraamenoscabam, perturbameperseguem.Aresoluçãoarbitráriadainter‑pretaçãodaleiaindanãoseapossaradainte‑ligênciadosjuízes,porqueentãonadahaviaparajulgar,nemquemfossejulgado.»[I,11.]

Atransparênciadalei,asuaabsolutacongruên‑cia com o mundo a que se destina, não é possívelno quadro de um ordenamento jurídico escrito;D.Quixoterefere‑seaumaidadeideal(umaidadedainocência),masdesdeCaimeAbelsabemosquesemprehouve«quemfossejulgado»,desdesemprehouvealgoparajulgar.AcríticadeD.Quixotenãosedirige,assim,àexistênciadalei,abstratamenteconsiderada, mas à «resolução arbitrária da in‑terpretação da lei», e nisto não se pode deixar dever uma velada crítica de Cervantes aos agentesjudiciáriosdoseutempo,queotinhamcondenado,uma e outra vez, com pretextos discutíveis.

Esta conceção está mais próxima de S. Tomásdo que de Jean Bodin, mais próxima do primadodo direito divino e da lei humana como revelaçãodojus,doquedasupremaciadalex,comotraduçãoda soberania do monarca, que o filósofo francêsdefendia.ParaS.Tomás,«arazãohumananãopodeparticiparplenamentenoditamedarazãodivina,anãoserdeformaimperfeitaesegundoasuacapa‑cidade e condição humana». As leis humanas sãoassim a simples tradução da lei natural, pela quala lei eterna de origem divina se revela na criaturahumana.Aconceçãotomistadasociedadenãoestá

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longedaqueladescriçãoarrebatadaqueD.Quixotefazda«idadedeouro»:paraopensadormedieval,«a companhia de muitos será tanto mais perfeita,quantomaissuficientesejaparasebastardetudooqueénecessário».EoqueénecessárioéoBemComum,queéapróprialeieternadeDeusparaogoverno dos homens.

A atuação de D. Quixote é totalmente desin‑teressada; nela não há venalidade nem busca debenefício próprio. Ele não contorna a lei nem atransgride em proveito próprio. A sua violência émais filha da irascibilidade do que de inclinaçãocriminosa;nãoéummeioparaatingirumfim,masuma forma de expressão. As suas armas são tãoineficazesquebemsepodedizerqueasuamelhorarmaéapalavra,quemanejacomelegânciaerigor.Enfim,quandoarremetecontraaordemestabele‑cida,éporqueelanãoseconformacomosvaloreseregrasqueelefezsuas.Emesmoquandodeitamãoaoalheio,éporterinvestidooobjetoapropriadodeumacargasimbólicaqueotransformadecoisatan‑gível em bem inapreciável na sua intangibilidade.

A justiça de D. Quixote é imediata. Arremetecontra o que lhe parece fora do sítio (os «entuer‑tos» de que o mundo está cheio), antes ainda deconhecer razões e argumentos. A sua missão cor‑respondeàfunçãoque,naordemjurídicamedieval,competia ao rei:

«Fazer justiça é um dever de amploconteúdoqueincluiapaz do rei,aproibiçãodasvinganças,arepressãodosmalfeitores,ocastigodasinjustiçasoutortos (ocontráriode direito).» [Marcello Caetano.]

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Por isso, D. Quixote não avalia, castiga; nãojulga, executa. Mas, sempre que quer fazer justi‑ça a bem, sai‑se mal. No capítulo 22 da primeiraparte, este seu confronto com a ordem jurídicaprevalecentetorna‑semaisclaro—eaeficácia(ouineficácia)daideiaqueeletemdajustiçatambém.Dá‑seocasodeiremD.QuixoteeSanchoemame‑na cavaqueira, quando o primeiro viu

«que pelo caminho por onde eles seguiamvinhamunsdozehomensapé,enfiadospelopescoçocomocontasnumagrandecorrentede ferro, e todos algemados».

O fidalgo nem quis saber qual a razão daqueledesaforo: bastou‑lhe perceber que «estes ho‑mens, embora os levem, vão forçados e não porsua vontade», para logo intimar os guardas a quelibertassem os condenados às galeras pela justiçareal. Pouco lhe interessa saber os motivos de tãodurapunição.Oumelhor,emborasabendo‑os,fazdelesumaleituradeprimeironível,odalinguagemcifradaeeufemísticaquecadaumdoscondenadosutilizaparadescreveroseucrime.Nãoosentendea outro nível: quer dizer, não é capaz de avaliar eponderaragravidadedoscrimesnemdeaquilatarda justiça ou injustiça relativa da pena (Ballesterdiria que ele não quer saber). Para o EngenhosoFidalgo são tais as circunstâncias atenuantes queé impossível julgar em consciência:

«[...]poderiaacontecerqueapoucacora‑gemqueaqueleteveaosertorturado,afaltadedinheirodeste,apoucaajudadooutro,efinal‑

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menteoparcialjulgamentodojuiz,tivessemsidocausadavossaperdiçãoedesenãovosterconcedidoajustiçaaquetínheisdireito».

D. Quixote volta ao ponto de onde partiu: écontra a sua vontade que estes homens são leva‑dos.Exortaosguardasqueconduzemosforçadosa libertarem‑nos, porque eles «nada cometeramcontra vós». E faz doutrina:

«No além cada um se avenha com seuspecados; há Deus no céu, que não deixa decastigaromaunemdepremiarobom,enãoébemqueoshomenshonradossejamcarras‑cosdosoutroshomens,nadatendocomisso.»

Acenaterminacomoseimagina:fogemospri‑sioneiros,comaajudadeD.QuixoteedeSancho;mas correm o fidalgo à pedrada, por o tomarempor louco e impertinente.

Talcomocastigadeimediato,tambémimedia‑tamentesofreoEngenhosoFidalgoasconsequên‑ciasdasuaação.FranciscoAyalafaznotarque,seD. Quixote é punido, não é porque as suas açõescomportemqualquertransgressãodaordemdivi‑na na terra, isto é, não é porque elas configuremtransgressão dolosa da norma, mas porque são

«erro de conduta, erro quixotesco de certomodo, próximo de todos os restantes errosde julgamento, os quais, em Cervantes,comportam sempre a sua própria sanção,como se para ele o pecado não fosse maisque uma espécie particular de erro».

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A consequência mais visível desta bévue, quepressupõeengano,masnãomalícia,éumaespéciede inimputabilidade genérica que envolve a açãodo fidalgo e que não está longe da humanizaçãodolouconassociedadesrenascentistas.Absolvido, isto é, não culpado, é‑o D. Quixote, não tanto pelanatureza do seu ministério (que mal se conformacom a realidade fáctica e jurídica), mas pela auraderetidãoebondadequenimbaassuasações.Nãoera ele conhecido como Alonso Quixano, o Bom,antesquelhefervessenasmeningesocombustívelda fantasia e da glória? A loucura de D. Quixote,sefosseverdadeira,eraderaizerasmistaeaferidapelabitoladamaisradicalhumanidade,umaformahumana de projetar sonhos, ilusões e fantasiassobre uma realidade desconcertada.

QueD.Quixotepõeemcausaofundamentodajustiça «positiva» parece resultar claro do citadoepisódio dos condenados às galés: não havendocorrelação entre o sujeito passivo do delito e oexecutor da pena, não há lugar a esta; e, implici‑tamente,nãohálegitimidadeparajulgaremquemnãofoiobjetodapráticadelituosa.Certoscríticoschamaram a atenção para a aparente contradiçãoentre esta atraente doutrina e a prática do Enge‑nhoso Fidalgo, que não se coíbe de fazer justiçapor mãos próprias, mesmo quando o assunto nãotem que ver diretamente com ele. Mas a verdadeé que, vendo‑se a si próprio como um cavaleiroandante, D. Quixote está acima da doutrina queapregoa: ele pertence a uma ordem (literária,notemos) à qual não são aplicáveis os ditames dajustiça social. D. Quixote é um adepto da justiçadiretaepersonalizada:castigaepassaadiante;não

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conhece cárceres nem degredos; basta‑lhe a defe‑sa da honra ou a legítima resistência à agressão.Enuncalheocorreprivaralguémdasualiberdadeporcausadeofensa,realouimaginada.Comoumacriança, corre ao tabefe um importuno que lheveio estragar a brincadeira: alguém ouviu falar deaçãointerpostaporumacriançacomestemotivo,alegando danos materiais ou morais?

«Salteador de caminhos» lhe chamou o qua‑drilheiro da Santa Irmandade, que o reconheceucomooimpertinentequetinhadadoliberdadeaosprisioneiros. E D. Quixote, rindo‑se:

«Assaltar caminhos chamais a dar li‑berdade aos acorrentados, soltar os presos,socorrer os pobres, levantar os caídos, darremédio aos necessitados?»

E ser «salteador» o que é, para D. Quixote?Afortuna(ouapenadeCervantes)coloca‑lhe,nocaminhodeBarcelona,umaquadrilhadebandole‑ros asério,queconstituiasuaúnicaexperiênciadogénero, em todo o romance. Quando se encontracomobandodeRoqueGuinart(II,60),D.Quixotedá‑lhecontadasuacondiçãodecavaleiroandantee,peranteofingidoarrependimentodosalteador,exorta‑o a seguir o seu exemplo, com o qual nãodeixará de obter a remissão dos seus pecados.

Mas, para o que nos interessa, é elucidativoo diálogo, porque D. Quixote não lhe propõe queregresse ao quadro da lei que tão rude e constan‑temente ele infringe, antes que se coloque sob aalçada do código cavaleiresco, porque, na vida decavaleiro andante, «se passam tantos tormentos

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e desventuras que, considerando‑os penitência,logo o porão no céu». Os motivos de D. Quixo‑te, constantemente invocados ao longo do livro,afinam‑se nesta fórmula: obedecer ao código dacavalaria (isto é, repetir e imitar os romances decavalaria)éexaltaçãopelapenitência,salvaçãopelosofrimento, caminho infalível para o Céu. O queinteressa D.Quixote não é o fundamento mítico eantropológicodosromancesdecavalaria,digamos,o sentido da busca, mas a sua eficácia como meioparaatingiroperdãodivinoe,adivinha‑se,acon‑sagraçãonoParaíso.EstainjunçãoaRoqueGuinartcompletaeclarificaosentidodaaçãocavaleiresca:a prática do bem, único móbil que D. Quixote lhereconhece, é o critério supremo da salvação emDeus,comoeratradiçãonosromancesdecavalaria,desdequenelesseinsinuouaretóricacristã,visíveljánoPerceval deChrétiendeTroyes.Assimsendo,as ações de D. Quixote, vistas uma a uma, são so‑cialmentegratuitas,eticamenteinfundamentadas,politicamente ineficazes. Que é como quem diz:não se medem nem pela norma social, nem pelaéticaterrena,nempelaeficáciapolítica.Ofidalgonão é um rebelde, é um cavaleiro andante; não éum marginal, é um justiceiro do seu ideal, que éapenas aquilo em que acredita. E, à sua maneira,um Cavaleiro de Cristo, como o fora Inácio deLoyola cinquenta anos antes, em paralelismo queos cervantistas (e sobretudo, Unamuno, o menoscervantistadelestodos)nãodeixaramdeassinalar.Mesmo que acredite no inacreditável. Ou, talvez,por isso mesmo.

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D. Quixote entre as mulheres

Malsaidassaias(salvoseja)dagovernantaQui‑téria e da sobrinha Antónia, D. Quixote mergulhanummundoondeacrueldadedoshomenssótemparalelo na perfídia das mulheres. Pelo menos, aunseaoutras,éassimqueoCavaleiroosvê.Comotantos críticos do Dom Quixote não deixaram deassinalar, o romance cervantino transborda demulheres belíssimas, reais ou imaginadas, emenigmáticocontraste,porventuraapenasaparente,comouniversoderepresentaçõesmasculinasquedominaanarrativa.Namaisaudaciosaeinovadoradas leituras recentes do Dom Quixote, o imprevi‑sívelcervantistaDavidQuintpropõemesmoumainterpretação centrada na relação de D. Quixotecom as mulheres: a primeira parte «arruma‑se»em torno de duas figuras femininas, Dulcineia ea princesa Micomicoa, e tudo se reconduz—navisão do autor americano—a estes dois núcleosde objetos de desejo. Na sua tese, que seria ali‑ciante discutir, pelas violentas entorses ao textoque impõe, Quint acha que, enquanto Dulcineia éo símbolo do desejo cavaleiresco, desinteressado

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e fatal, Micomicoa se assume como objeto dodesejo cúpido, e que, assim, é da transição entredois modelos de comportamento social (o feudaleomonetarista)quefalaDom Quixote.Estacons‑truçãocríticaé,nomínimo,artificial,epressupõeque o processo de criação de Cervantes é inteira‑mente programático, linear e racionalista, o que,de acordo com a minha leitura, está longe de sercomprovável.

O meu ponto, que seguidamente desenvolve‑rei, é que, em grande parte, é o desejo que moveo Engenhoso Fidalgo, na sua busca malograda deum outro corpo, de um outro desejo. A aventuraexiste, porque não há coincidência entre o desejodeumeodesejodoOutro,etalvezRuthElSaffar,umadasmaisdestacadasrepresentantesdamuitomoderna crítica «feminista» do Dom Quixote, te‑nha razão ao dizer que «a história do desejo nãosatisfeito é a própria substância da ficção». Numartigopublicadoemsetembrode2005noEl País,Alfredo Fierro, que nem é cervantista encartado,faz‑seecodestaprevalênciadeErosnumasentençairrevogável: «Dom Quixote é a elegia do amor nãocorrespondido».Sê‑lo‑á?Vejamoscomoamiragemde Dulcineia se constrói e onde ela aparece, naeconomia da novela cervantina.

A primeira referência à dama que o há deacompanharemespíritosurgequandoocavaleirosedecideapartiràlançadapelomundofora:apósterescolhidoebatizadooseurocimetomadoparasionomedeD.Quixote,concluiu«quesólhefal‑tavaprocurarumadamadequemseenamorasse».Eporquê?«Porqueocavaleiroandantesemamoreseraumaárvoresemfolhasesemfruto,eumcorpo

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semalma».Seomóbilprincipaldocavaleiroéodealcançar«eternorenomeefama»,oprimeirodes‑tinatáriodasnovasdassuasproezasvindourasterádeserumamulher,poisaelasehãodeapresentartodososquesetenhamcruzadocomD.Quixote,nopercurso das suas memoráveis façanhas. E assimserá, ao longo da narrativa, pois, a propósito e adespropósito,épelopadrãodeDulcineia,aímpar,a de beleza indisputável e méritos sem igual, queD. Quixote julga o que vê e o que vence.

O primeiro passo na construção do objetoamadoédadoporD.Quixote,extemporaneamente,logo quando sai para a sua primeira jornada:

«Oh princesa Dulcineia, senhora destedolorido coração! Muitos sofrimentosme causaste ao fazer que eu partisse ecensurando‑me com a cruel insistência deme ordenar que não aparecesse diante davossa formosura.» [Itálico meu.]

De um golpe, o fidalgo inverte a ordem dosfatores, imputando à inexistente Dulcineia a res‑ponsabilidade de o ter feito partir e a recusa emdeixarqueeleavisse.E,porassimdizer,colocanasmãosdelaoseudestino,nissoseconformandoaomodelodosromancesdecavalariaquelhetinhamensaboado o juízo: o amador submete‑se à «coisaamada», que passa a ser a força diretora da suavida e dos seus gestos.

Ora, se é certo que Cervantes nos informa,logo de início, qual é a «verdade» da personagemidealizadaporD.Quixote(oseumodeloéAldonçaLourenço), poder‑se‑ia esperar que esta informa‑

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ção ficasse reservada a uma espécie de pacto desilêncio entre o narrador e o leitor, como simplesformadedaramedidada«loucura»dofidalgo.Seassimfosse,areferênciaaAldonçacairianorestoda narrativa, já que a esta importaria, sobretudo,odevaneiopoéticoquefaziaD.QuixoteverDulci‑neiacomoaverdadeiraprojeçãoamorosadosseussonhosdegrandeza.Ora,nãoéissoqueacontece,bempelocontrário.Cervantesdiscuteminuciosaeabundantementeaaparência,estatutoecostumesde Aldonça Lourenço; ou, se quisermos pôr istoem termos literários, esta persistência do modeloatravés da narrativa é, para mim, estranha e, nãopoucasvezes,supérflua.Mais:essadiscussãovemao rés da terra, porque o fidalgo confidencia aomuito rude Sancho Pança que a «sua» DulcineianãoéoutraqueaconhecidaAldonça,a que nunca foi sua. Passa‑se este colóquio no capítulo 25 daprimeiraparte,logodepoisdoepisódiodadisputacomCardénio.D.QuixotecomunicaaSanchoasuaintenção de se retirar em penitência para as pro‑fundezas da Serra Morena, a exemplo de Amadisde Gaula, exilado por Oriana, que o julgava infiel;e aí dar muitos saltos e cabriolas, a exemplo deOrlando, que assim exorcizava a infidelidade deAngélica. É claro que Sancho não vê na realida‑de motivo para tamanho sacrifício: não está emcausa a fidelidade de D. Quixote a Dulcineia, nemhá sinal de que ela lhe tenha sido, por sua vez,infiel «com um mouro ou um cristão». Pois tantomaiorvalortemapenitência,porquesemmotivo,contesta o fidalgo. E logo lhe anuncia a carta queelehádelevaraDulcineia,paraqueestasaibadomuitoqueporelatempenado.Deumaassentada,

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D.QuixotedáaSanchotodaainformaçãoquenosinteressa:

«Epoucoimportaaocasoquesejaescri‑ta por mão alheia, porque, pelo que possolembrar‑me, Dulcineia não sabe escrevernemler,eemtodaasuavidanuncaviuletraminha nem carta minha, porque os meusamores e os seus foram sempre platónicos,sem passar além de um honesto olhar. E mesmo isto tão raramente, que ousareijurar com verdade que durante doze anosem que a amo mais do que à luz dos meusolhosqueaterrahádecomer,nãoaviqua‑trovezes;eatépoderáserquenestasquatrovezes não tivesse ela reparado uma sequerqueeuestavaaolhá‑la;taléorecolhimentocomqueseupai,LourençoCorticinha,esuamãe, Aldonça Nogueiras, a criaram.»

Sanchoconhece‑a,éclaro,comojáacimavimos(e é possível suspeitar que D. Quixote sabia queele a conhecia): «Oh filha da mãe, que corpanzile que vozeirão!»

Por muito menos do que isto já D. Quixotequisera fazer com que clérigos, vilões e galeotesexperimentassem a extremidade romba da sualança.Mas,comSancho,apósouvirpacientementeas desaforadas considerações do escudeiro sobreaquelaaquemele,momentosantes,chamara«diada minha noite, prazer da minha mágoa, nortede meus caminhos, estrela da minha ventura»,D.Quixote procede com inusual cordura, como seesperassejásemelhantediscurso.E,filosoficamen‑

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te, conclui: «Para o que eu quero Dulcineia, tantomeserveelacomoamaisaltaprincesadaTerra».E, especificando:

«Porque tens de ficar a saber, Sancho,se não o sabes, que só duas coisas incitamaamarmaisdoqueoutras;quesãoamuitaformosura e a boa reputação, e estas duasacham‑secomperfeiçãoemDulcineia,por‑que em ser formosa ninguém se lhe igualae na boa reputação, poucas lhe chegam. E para concluir com tudo, imagino que tudo o que digo é assim, sem que sobre nem faltenada,e pinto‑a na minha imaginação como a desejo,tantonabelezacomonanobreza[…]»[Os itálicos são meus.]

Semprejuízodeosentidoadivinhável,nocon‑textodaépocadeCervantes,daexpressão«pinto‑anaminhaimaginaçãocomoadesejo»,estarsegura‑mentemuitolongedaquelequehojelhepodemosatribuir, é inequívoca a ideia de que D. Quixotepintaoobjetodasuafantasiadeacordocomoquenelaprojeta:oseudesejo,diríamoshoje,comtodasas conotações contemporâneas da palavra; a suavontade, que é, quase decerteza,o queCervantesqueria significar. Porém, com lentes contemporâ‑neas, Dulcineia é aqui identificada como fantasia sexual permanente de D. Quixote, e essa fantasiavaifuncionar,aolongodanovela,simultaneamentecomoaguilhãoqueoinstigaaagirecomoforçadebloqueio da sua energia sexual.

Sabemos a razão pela qual o fidalgo se sentiuobrigadoainventarDulcineiadeToboso:cavaleiro

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andante sem mulher amada não o é verdadeira‑mente. Mas esta razão é puramente instrumental(é ela que compõe a figura literária do cavaleiroandante)epoderia,sefosseapenasisso,funcionarcomo uma referência longínqua, a atestar ideal‑mente o seu estatuto de cavaleiro. Em certo sen‑tido,Dulcineiadevefuncionarcomoum«espelhodevirtudes»capazderefletir,engrandecendo‑a,aimagemprojetadapelasfaçanhasdoCavaleiroquese diz seu. Porém, a amada de D. Quixote é mais,muito mais: Dulcineia é o horizonte do «renomee fama» que o Cavaleiro procura, ao lançar‑se aomundo.Querdizer:Dulcineiafazparteintegranteda ontologia do Cavaleiro, pelo que bem se podedizer que, sem Dulcineia, não haveria razão nemobjetivo para as aventuras a que se lança, e a suaodisseiaficariasemporquê.Comoemtodoopro‑cessodemiúrgico,criadorecriaturasãoduplosumdooutro,metadesdamesmaunidade.D.QuixoteéAlonsoQuixanomaisDulcineia;e,semDulcineia,D.QuixotenãoseriamaisdoqueAlonsoQuixano.Um pobre diabo, evidentemente.

Mas, fosse ela viva, de carne e osso, o efeitoseria o mesmo. Veja‑se o parágrafo final da cartaque D. Quixote entrega a Sancho para que ele aleve a Dulcineia, em Toboso:

«Omeubomescudeirodar‑te‑ácontadetudo,ohbelaingrata,amadainimigaminha!,do modo como fico por tua causa:seteagradasocorrer‑me, sou teu; e se não, faz o que teder mais prazer; que com acabar a minha vida terei satisfeito a tua crueldade e o meu desejo.» [Itálicos meus.]

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O que aconteceria se, por um passe de mágica(um«encantamento»),Dulcineiasematerializasseali mesmo, em frente de D. Quixote? A carta deD.Quixotenãoédirigidaao modelo, mas àperso‑nagem,nãoéparaAldonça,masparaDulcineia—eé a própria impossibilidade material desta quealimenta o modo como D. Quixote fica por causa dela:valente,justiceiro,indomável,enlouquecido.ÉqueD.Quixotesóexistepornãosatisfazeroseudesejo e a simples hipótese de o satisfazer seriacondição de dissolução da sua própria existênciaenquantopersonagemliterária.Paraqueanarrati‑vaavanceénecessárioqueDulcineianãoexista—eque D. Quixote continue a nomeá‑la como motorda sua aventura.

Esta hipótese de leitura encontra ainda apoiono insucesso sistemático de D. Quixote com asoutrasmulheres.Naverdade,omitodeDulcineiafunciona sempre como uma espécie de «cinto decastidade»deD.Quixote,nassuasrelaçõescomas(outras)mulheres.Vainestesentidoainterpreta‑çãodeTorrenteBallester,aoproporparaDulcineia«uma nova missão: a de servir a D. Quixote depretexto para rechaçar as mulheres que, segundopensa,selheoferecem».Umacoisaéaimagem de Dulcineia,queelecompõeatravésdaretóricacomque,umavezapósoutra,apinta,compõeeadorna,emevidenteparódiacervantinadofigurinopetrar‑quista;outra,bemdiferente,éodesejo de mulher,que aflora ou irrompe, mesmo quando nada oautoriza a interpretar os gestos alheios comosinais de uma qualquer promessa de intimidade.

É isso que acontece logo no capítulo 16 daprimeira parte, quando o Cavaleiro e Sancho

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Pança chegam a uma das estalagens que servemde«auberge espagnol»àinventivacervantesca.Aí,encontramaasturianaMaritornes,quenãoédifícilreconhecercomoumadeclinaçãodoarquétipoAl‑donçaLourenço;eD.Quixote,nosilênciodanoite,põe‑seaimaginarqueafilhadoestalajadeiro,queavistara no pátio, era uma castelã que «dele se ti‑nhaenamoradoeprometidoquenaquelanoite,àsescondidas dos pais, viria gozar com ele um bombocado». A fantasia sexual de D.Quixote—que édissoquesetrata—estáàbeiradeconcretizar‑se,embora por ínvios caminhos. É que Maritornescombinara vir passar a noite com o arrieiro quedormia no quarto do Cavaleiro; e, mal chegouà porta do quarto, «logo D. Quixote a ouviu, e,sentando‑se na cama, apesar dos emplastros e dador nas costelas, estendeu os braços para recebera sua formosa donzela.» Que D. Quixote a puxoupara si e com as mãos lhe percorreu o corpo e oscabelos, sabemo‑lo pela descrição de Cervantes.E, depois de lhe ter esquadrinhado as formas,em reconhecimento das indescritíveis belezas daputativa castelã, é que lhe debita o discurso darecusa:a«prometidafidelidadequedeiàsemparDulcineia de Toboso» impede‑o de se aproveitarda«venturosaocasiãoqueavossagrandebondademe concedeu.»

O desastroso desenlace do arroubo eróticonão o impede de ceder, muito mais tarde, no ca‑pítulo 43, às manobras de sedução que a mesmaMaritornes e a filha do estalajadeiro (a «castelãenamorada») lhe montam, para o levar a dar‑lhes«umadassuasformosasmãosparapoderdesabafarcom ela o grande desejo» que as trouxe até ele.

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Lisonjeado,D.Quixote,quemantémasuafantasiaintacta,oferece‑lhesamão«quenuncafoitocadapor nenhuma outra mulher, nem sequer pela da‑quelaquetemapossetotaldetodoomeucorpo.»E logo acrescenta:

«Não vo‑la dou para que a beijeis, maspara que olheis a contextura dos seus ner‑vos, a armação dos seus músculos, a largu‑ra e a capacidade das suas veias; de ondededuzireis como será a força do braço quetem essa mão.»

O Cavaleiro cede assim à contemplação a mãoquelhepedem;masnãoéamãoemsimesma,an‑tes,apartequepermiteimaginarotodo,oqueelemostraàsuaansiosaenamorada.E,nadescriçãodobraço,vaiumaprosápiaexibicionistaquenãodeixade sugerir que D. Quixote se dá em espetáculo,como qualquer macho se oferece à contemplaçãodafêmeaqueodeseja.Poracaso,éamãoqueelasresolvem aprisionar, deixando‑o dependurado deuma janela durante toda a noite, como se a pagade tanta ostentação não pudesse ser outra que asimbólicacastraçãodoinstrumentoqueporelasemanifesta.Porummomento(enãoseráoúnico),nanarrativadasaventurasdeD.Quixote,asuges‑tão do belo corresponde à intensidade do desejoda outra parte; as mais das vezes, o belo é umefeito retórico no discurso do próprio D. Quixotee refere‑se ao objeto do seu desejo.

A dialética do desejo e da sua (in)satisfaçãoatingeoseupontomaisaltonosepisódiosdeAlti‑sidora,jánasegundapartedoromance.D.Quixote

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é acolhido pelos duques, que resolvem fazer deleo objeto da sua chacota. Retirando‑se D. Quixoteparaoseuquarto,dá‑seentãoomemorávelepisó‑dio das malhas na meia, que suscita ao Cavaleirouma desolada meditação sobre a sua indigência,quandoumavozmaviosaseergue,vindadojardim(II, 44): é Altisidora, a aia da duquesa, que lheenvia,acompanhadapor«umaharpasuavíssima»,umromancedeamor.«Ouveumatristedonzela,/bem crescida e mal‑amada,/ que na luz dos teusdoissóis/senteabrasar‑se‑lheaalma»,cantaela;eD.Quixote,queselamentapornãohaverdonzelaque dele não se enamore, exclama, de si para si,embora pareça querer abarcar toda a incómodacorte das suas múltiplas apaixonadas: «Olhai,caterva enamorada, que para a só Dulcineia soude massa de açúcar e para todas as outras sou depederneira…» E, ignorando Altisidora, fecha derepente a janela, pondo entre si e a tentação asegura distância do silêncio.

Mas a malícia é mais constante do que a ino‑cência. Logo na manhã seguinte, Altisidora voltaàcarga,desmaiandoàvistadoperplexoCavaleiro.E promete D. Quixote retribuir‑lhe o romance davéspera, ao menos para lhe dar por palavras oconsoloaqueoseucorposenega.Magroconsoloacabariaporser,porqueofidalgorepisanaideiadeque«DulcineiadeToboso/daalmanatábuarasa/tenhopintadademodo/quenãosepodeapagá‑la.»Edão‑lhe,comopagadestarejeiçãoreiterada,umsaco de gatos, em chinfrim que lhe provoca aluci‑naçõesdeencantadoresenãopequenodanofísico.

DenovohádeoDemónio,feitomulhernocor‑poenonomedeAltisidora,voltaratentá‑lo.Como

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as sereias que procuram distrair Ulisses da rotacerta, também a expedita aia lhe sai ao caminhoumaterceiravez,estáD.Quixoteprestesadespedir‑‑se do duque e da duquesa, pronto a lançar‑se aocaminho em direção a Barcelona (II, 57). É denovo pelo canto que Altisidora tenta enlear oEngenhoso Fidalgo: «Tu levas, levar cruel!,/emtuas garras horrendas/as entranhas de umahumilde,/como enamorada, terna.» E o lamentotransforma‑se em maldição, à mistura com adenúncia de um furto insignificante que o impe‑nitente Sancho não deixou de praticar.

Masofidalgoparte,convencidodeestarenfimliberto «dos galanteios de Altisidora». Puro enga‑no: quase no final da sua deambulação, quandoregressadeBarcelonaaoseulugardeLaMancha,vencido e obrigado a exilar‑se do mundo no seupróprio reduto familiar, D. Quixote antevê na sualonga e insaciada paixão por Dulcineia o própriosinaldamortequeseavizinha.Nummomentodepausa,oudefraqueza,queparaocasoéomesmo,ergue um plangente queixume, pelo qual a suaalmacomeçaadespedir‑sedeDulcineia,istoé,davida, isto é, da sua vida de personagem de novela,que é a única que realmente conta: «Tal o viverme mata/que a morte me torna a dar vida.» E éamorte,ouoseusimulacro,oquepelaúltimavezlheaparece,nofingimentoamorosodeAltisidora,quando, ao acaso dos passos de Rocinante, dá denovo com o castelo dos duques. Aí, Altisidorasurge‑lhe,comomorta,numcatafalco,esugerem‑‑lhe como razão da sua morte a cruel recusa deD.Quixotecorresponderaoseuamor.Aabstinênciado fidalgo persegue‑o, como uma falha que lhe é

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constantementelembrada;eosacrifíciodeSancho,aodeixar‑seaçoitarpararessuscitarAltisidora,dá‑‑lheamedidadoencantamentoemquejazperdidaa sua Dulcineia. Rediviva, Altisidora aparece‑lheno quarto «vestindo uma túnica de tafetá brancocomfloresdeouroesparsas»;«comasuapresença,perturbadoeconfuso,eleencolheu‑seecobriu‑sequase todo com os lençóis e colchas da cama».E, tendo‑a rejeitado uma última vez, em nomeda sua amada («eu nasci para ser de Dulcineia deToboso»),D.Quixotevê‑seinsultado(«umfocinhotãofeioemelindroso»),emtermosquenãodeixa‑rão de o apressar na partida rumo ao seu refúgionatural:entreassaiasfamiliareséqueelesesenteprotegido, tanto das investidas do mundo quantodas tentações da carne corporizadas no «eternofeminino».

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As duas odisseias

AsaventurasdeD.Quixoteacontecemdurantetrêssurtidas,deduraçãodiferente:aprimeira(osprimeiroscincocapítulos)duratrêsdias;asegunda(docapítulo7atéaofimdaprimeiraparte)estende‑‑se por três semanas; a terceira, cuja narrativaocupa toda a segunda parte do romance, ocupatrês meses da vida do Cavaleiro.

AprimeirapartedeDom QuixoteéumaespéciedecovadeMontesinos,repositóriodemaravilhase peripécias, onde vai parar muito do que Cer‑vantes presumivelmente acumulara em papéisdispersos, nos vinte anos que mediaram entrea publicação de A Galateia e a do Dom Quixote.O escritor Francisco Ayala, num dos seus pene‑trantes ensaios técnico‑literários sobre o Dom Quixote, vê nesta diversidade «âmbitos imagina‑tivos diferentes e aparentemente inconciliáveis»,maspareceavaliaroprocessocomoumaestratégiaestilística deliberada:

«E foi sem dúvida essa arte barroca daestrutura,aqualconsenteautonomia,den‑

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trodoretábuloapinhado,acadaumdesseselementos, o que mais levou a que fossemconsideradas como peças independentesessas novelas ou relatos...»

Éverdadequeoromancecervantinoestálongede seguir um percurso linear, e que, no seu fazer‑‑se,prestajustiçaàfórmulasucintacomqueJoséAntónio Maravall caraterizou a arte a que hojechamamos barroca:

«Mobilidade,mudança,inconstância:to‑dasascoisassãomóveisepassageiras;tudonos escapa e muda; tudo se move, sobe oubaixa,tudomudadelugar,tudoseacumuladesordenadamente.»

Mas, em Cervantes (como em quase todos osoutroscriadoresdaidadebarroca),issoéumefeito,maisqueumprograma.Nãoéporqueaobratenhaque refletir essa visão do real que o seu autor,deliberadamente, a constrói dessa forma: antes,é a forma como a realidade, coletiva e individual(incluindo as circunstâncias da sua própria vida«quotidianaetributável»),épercecionadaevividaquedeterminaamecânicaquepresideàcomposi‑ção.Acriaçãoé,nessestemposderápidamudançaedescobertadaquiloaquechamamosamoderni‑dade (a emergência do eu pensante cartesiano, odescentramento da visão medieval do Universo edo lugar que o Homem nele ocupa), menos livree arbitrária do que pode parecer.

Possivelmente,essadiversidade,essaaparênciafinaldeobjetoheteróclitoqueaprimeirapartedo

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livro oferece, tem mais que ver com outras duascoisas,ambasrelativasaomododecomposição:porum lado, a necessidade sentida por Cervantes deacrescentardivertimentoàquelelivro«secocomoum esparto», de que o próprio autor fala, desdeo prólogo da obra, de forma a ir ao encontro dogostodosleitores;poroutro,aquiloaquesepodechamara«angústiadafolhaembranco»,quemo‑dernamente reconhecemos como um sobressaltopresente em quase todos os escritores: será quevou conseguir escrever, depois de escrever estelivro? E mais se consolida esta convicção porqueumgrandenúmerodesseselementosdedispersão(como as duas longas novelas interpoladas, a doCurioso ImpertinenteeadoCapitão Cativo)parececonvergiremfunilnaretafinaldoprimeirovolu‑me,queatéfechacomumagirândoladesonetoseepitáfios,comoqueasinalizaroesgotamento,pelomenosdemomento,daveiacriadoradeCervantesemrelaçãoaoCavaleiro.Aqui,tudoacodeàescrita,porque é como se Cervantes tivesse medo de nãovoltaraescreverdepoisdedaràestampaorelatodas aventuras do engenhoso fidalgo.

Além disso, é na sedução dos seus inúmerosdesvios que se encontra um dos mais poderososefeitos de modernidade que o texto mágico deCervantes provoca, quatro séculos depois da suapublicação. Esta primeira parte do Dom QuixoteéummonumentalpalimpsestoemqueCervantesvaidescarregandomateriaisqueforaacumulandoao longo da sua acidentada vida literária e pro‑fissional. Não estivera ele vinte anos sem publi‑car? Discretamente, Cervantes deu mais tarde ajustificação para tão prolongado silêncio: «Andei

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ocupado com outras coisas». Algumas delas, asliterárias,aparecem,comoquemnãoqueracoisa,nesta primeira parte, publicada em 1605.

Mascomasegundaparte,queveioalumedezanosmaistarde,ocasomudadefigura.Sequisés‑semos(comalgumsimplismo,écerto)caraterizaras duas partes do Dom Quixote na sua relaçãointerna diríamos que, na primeira, Cervantesdiz ao leitor: «vejam como ele é»; na segunda,propõe que se veja «aquilo que ele se tornou».Ou, para usarmos uma sugestiva analogia com opoema homérico, na Odisseia que é a primeiraparte,D.QuixoteéNinguém;nasegunda,jáéDom Quixote. Entre uma e a outra medeia a fama querodeia a personagem por causa da publicação daprimeira parte da obra.

Nãoéimpossívelqueaescritadasegundapartetenhacomeçadopoucotempodepoisdapublicaçãodaprimeira;masémaisseguroconsiderarquesócomeçouaganharconsistênciaapartirde1610;eéseguroqueosúltimosquinzecapítulossãoposte‑rioresaoverãode1614,particularmentecruelparaa carreira literária de Cervantes. É que por essaalturaforapublicadaemTarragonaumaediçãodacontinuaçãodasaventurasdeD.Quixote,assinadapor um tal Avellaneda, de cuja existência não háregisto,mashabitualmenteatribuídaaalgumrivalougrupoderivais,aoqualnãoseriaestranhaamãode Lope de Vega, que aborrecia o Dom Quixote,e cujo sucesso teatral Cervantes invejava. Aliás,no mesmo ano em que dava à estampa a segundaparte do Dom Quixote, Cervantes publicaria umacoletâneadecomédiaseentremezes,comosquaistentavaemularoenormerenomedeLopedeVega,

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que era o comediógrafo do momento. Cervantesrefere‑se detidamente ao falso Dom Quixote nocapítulo5�dasegundaparte,emaisseisvezesatéaofimdolivro,oquedeixaentreverquenoverãode 1614 já levava a sua escrita muito adiantada.

Mas o aparecimento deste falso Dom Quixoteacaba por ter influência decisiva na forma comoa segunda parte aparece estruturada. Para lá dasreferênciascitadas,Cervantesfaladelanoprólogoenosprimeiroscapítulos,escritosa posteriori,pelomenos em parte, já em 1615:

«Valha‑meDeus,ecomquantaimpaciên‑ciadevesestaràesperaagora,leitorilustreou talvez plebeu, deste prólogo, crendoachar nele vinganças, rixas e insultos aoautordosegundoDom Quixote,digodaquelequedizemqueseconcebeuemTordesilhase nasceu em Tarragona.»

E, recusando‑se a entrar nesse jogo, vai ajogo: «Quererias tu que eu lhe chamasse asno,mentecapto e atrevido; mas não me passa pelopensamento». Pronto, já está: chamou‑lhe o quequeriachamar‑lhe,dizendoqueserecusaafazê‑lo.Cervantesexercita‑seaquinafiguradaironia,florderetóricaarriscadapelaqualseganhavantagemnegandoavontadedeafirmaroqueefetivamentesediz.Ora,estetomdedenegaçãoémuitocervan‑tino; tanto, que julgo não o podermos dispensar,quando nos metemos a conjeturar acerca daquiloem que Cervantes realmente acreditava, ou noquefoiacreditando,àmedidaqueiaescrevendooDom Quixote.Àsvezes,Cervantesacreditanaquilo

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quediz;outras,provavelmente,crêocontráriodoque escreve.

AverdadeéqueasombradofalsoDom Quixo‑te paira sobre os primeiros capítulos da segundaparte,detalformaquetodaelaacabaporsecons‑truir como um work in progress, que, ainda queindiretamente, é feito para o desmentir, corrigire ridicularizar. Dissemos que, na primeira parte,D.Quixoteagedeacordocomosarquétiposliterá‑rios que lhe povoam a imaginação; nesse sentido,aprimeiraparteéumlivrodelivros,umaresenhacomentada e reencenada de numerosas fontese processos literários, um «diálogo de géneros»,como lhe chamou Cláudio Guillén. Digamos quea primeira parte é, grosso modo, uma lição dehistória da literatura. Mas esta segunda parte vaiserumademonstraçãopráticadecomosefazumlivro—ou a sua continuação. É um exercício decomposição literária—ou de escrita criativa, sequisermosseguirumaexpressãoquepareceestarna moda. Lapidarmente, diz o escritor mexicanoCarlos Fuentes:

«D. Quixote deixa para trás as suaspróprias leituras e é perseguido pelo seupróprio livro. No final, o livro alcança‑o etransforma‑se nele. A personagem D. Qui‑xote transforma‑se no livro Dom Quixote.»

Logo no segundo capítulo, Sancho revela aD.Quixote a existência do falso Dom Quixote, pu‑blicadoemTarragona,enosseguinteséobacharelSansãoCarrasco,figuramaiordestasegundaparte,que, com larga cópia de pormenores, descreve ao

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engenhoso fidalgo tudo o que lá vem, bem e malescrito. D. Quixote começa por se envaidecer:

«Uma das coisas que mais deve dar con‑tentamentoaumhomemvirtuosoeeminenteéver‑se,aindaduranteasuavida,andarcombomnomepelaslínguasdasgentes,impressoeilustrado.Eudissebom nome,porque,sendoaocontrário,nenhumamorteselheigualará.»

O problema é que é mesmo o contrário: oCavaleiro vai ouvir, da boca do bacharel, o relatodas difamações, calúnias e provocações que sobreele e os seus próximos bolsa o falso Dom QuixoteimpressoemTarragona.Dá‑seentãoumadaquelastransformações do génio quixotesco, que, na eco‑nomiadolivro,éumapiruetagenialdeCervantes:D. Quixote, que havia um mês repousava das suasdesditas da primeira parte, é acometido de umaincontrolável fúria de ação, porque é mister quese continue a separar o trigo do joio e há que darseguimentoànarrativadobomDom Quixote,oqueforatraduzidoporCervantesdo«original»deCideHamete Benengeli e publicado em 1605. Passa‑seistonocapítulo4,porqueD.Quixoteéinformadoque o autor da primeira parte, esgotada a fontede onde jorrava a sua informação, «quando eleacharqueachouahistória,queandaabuscarcomextraordináriasdiligências,amandaráimprimir».Eassimsedecideasairdenovoemcatadeaven‑turas,paraalimentar,comasfaçanhasqueconsigacometer, a veia criadora do seu criador.

Todaasegundaparteassentanestepressupostodeleitura,quecertamentesóocorreuaCervantes

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emfasetardiadaescrita,espicaçadopelofalsoDom Quixote de Tarragona. Mas o propósito polémico(odedarcombateaofalsoDom Quixote)cruza‑seharmoniosamente com o renome do Cavaleiro: éque, nesta segunda parte, a fama precede o apa‑recimento de D. Quixote. Na realidade, todos osque com ele se cruzam conhecem‑no já, não sópor terem ouvido falar dele, como acontecia noscapítulos finais da primeira parte, mas tambémporque leram a crónica das suas aventuras. Comeste artifício, junta Cervantes à biblioteca de ro‑mances de cavalaria que constituíam a fonte deinspiração da primeira parte o próprio livro quedera à estampa em 1605; pelo que inscreve a suaobra no cânone que começara a erguer naquelelongínquo capítulo 6, o da queima dos livros, emque o cura e o barbeiro destinam à fogueira umaparte da biblioteca do fidalgo, mas salvam daschamas uma boa meia dúzia deles, certamente osque correspondem à melhor valoração crítica deCervantes. Mas, ironicamente, concede ao falsoDom QuixotepublicadoemTarragonaoestatutodeobra«verdadeira»,fazendosaltardassuaspáginasumadasúltimaspersonagenscomqueD.Quixotese encontra, na sua jornada de regresso à terraonde nasceu: é D. Álvaro Tarfe, que o Cavaleiroreconhece por ter estado «a folhear a tal Segunda partedaminhahistória»(II,72).Querdizer:todosreconhecemD. Quixote porteremlido aprimeiraparte(autêntica)dasuaobra;D.Quixotereconhecea autenticidade da segunda parte (falsa), incor‑porando na segunda parte (verdadeira) não só acríticadaquelacomopersonagensporelainventa‑das. Como o falso Dom Quixote existia realmente

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(isto é, materialmente), é como se Cervantes seservisse de uma mentira repetida mil vezes paraafirmar a veracidade de uma narrativa por si in‑ventada.Aperturbanteconsequênciadestaespéciede strange loop narrativo (as personagens leem olivro que estão a construir), como bem intuiu oescritor argentino Jorge Luis Borges, num curtoensaio incluído na sua recolha Novas Inquirições,éque«seaspersonagensdeumaficçãopodemserleitoresouespetadores,nósmesmos,seusleitorese espetadores, podemos ser fictícios». O que nãodeixa de ser inquietante…

Nesta segunda parte, portanto, o livro que sevai escrever diante dos olhos do leitor aparececomo uma narrativa presente dos factos, dandopara isso um salto temporal de nove anos: é umaespécie de diário de D. Quixote nesta sua últimasaída pelo mundo. As referências temporais (navéspera, dois dias depois, passada uma semana…)intensificam‑se, e a narrativa vai deslizando paraotemporealdasuacomposição,comodemonstraeloquentemente a carta de Sancho Pança parasua mulher, mal toma conhecimento de que vaiser governador da ilha a fingir que os duques lheoutorgaram. A carta surge no capítulo 36, a meioda segunda parte, e está datada de 20 de julho de1614,possivelmenteodiaemqueCervantesescre‑veu o capítulo. Inicia‑se aqui, com a burla da ilhadeBaratária,osuplícioparalelodeD.QuixoteedeSancho, que se estende por quase todo o resto dolivro: às mãos dos duques cruéis e enganadores,umeooutrovãoviveraexperiênciadodesengano.Sancho descobrirá na própria pele quanto custao sapateiro ir além da chinela; D. Quixote, enle‑

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ado pelo canto de sereia de Altisidora, sente pelaprimeiravezamordeduradaquiloaqueNabokovchamou«aserpentedadúvida,aconsciêncianebu‑losadequeasuaempresaéilusória».Eespecificaoescritorrusso:«Ainsinuaçãointerior,asuspeitavelada de que Dulcineia poderia não existir, sai àluzdodiaporcontrastecomoumamelodiareal,avoz real» de Altisidora. É como se a Ulisses tives‑sem anunciado que Penélope já não esperava porele: que sentido teria continuar a viagem?

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Última viagem

Nofinaldaprimeiraparte,deixámosD.Quixote,transitoriamente aquietado, em convalescença dedoençamelancólicaporventuraassacadapelosseusaosmaustratosquelevara(Cervantessóreconhe‑ce a melancolia do fidalgo nas páginas finais doromance), e entregue aos cuidados da governantaQuitéria, da sobrinha Antónia, e dos seus amigos,o cura e o barbeiro. As suas duas saídas ficaramlonge de ser um sucesso, embora D. Quixote, pri‑sioneirodasuafantasia,nãotenhadúvidasdequeaaçãodoscavaleirosandanteséquehádecorrigiro desconcerto do mundo:

«QueoutracoisanãoháafazersenãoSuaMajestade mandar apregoar publicamenteparaquesejuntemnacortenumdiamarcadotodososcavaleirosandantesqueandemporEspanha,que,emboranãoviessemmaisquemeiadúzia,umpoderiavirentreelesquesóporsichegasseparadestruirtodoopoderdoTurco.» [II, 1.]

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Perantetãobombásticadeclaraçãodesesperamtodos os que lhe são próximos. Afinal, a corduraaparentedeD.Quixoteéapenasacapasobaqualseesconde,vulcânica,aantigapaixãocavaleiresca.O bacharel Sansão Carrasco, que tem um planopara desenganar definitivamente o fidalgo, traz‑‑lhe notícias (hiperbolizadas) do sucesso do livroverdadeiroquenarraassuasaventuras(II,3),bemcomodaexistênciadoDom QuixotedeTarragona,que muito o difama, e encoraja‑o a voltar a partirpelomundoàcatadeaventuras(II,7).D.Quixoteresolve‑se a uma terceira saída, até para corrigir,com as suas façanhas, as infâmias dadas à estam‑pa pelo falso Dom Quixote. Partem D. Quixote eSancho, desta vez em direção a Toboso, porque oCavaleiro quer ir ali preitear Dulcineia, emboraninguémsejacapazdelhedizerondeficaopaláciodabelapretendida.Memorávelé,então,oepisódioemqueSancho,«quixotizando‑se»,querconvenceroseuamodequeumgrupoderudeslavradorasqueencontrampelocaminhoéescoltadaincomparávelDulcineiaequeumadelaséaprópriaamadaidealde D. Quixote (II, 10). Desenganado o Cavaleiro,quenãovêDulcineia,masapenasafeiarealidade,vão para um bosque aquietar‑se do sobressalto.Encontram‑se aí com o Cavaleiro dos Espelhos,que é Sansão Carrasco disfarçado, e que desafia ofidalgoparaumajusta:oseuobjetivoéderrotá‑lopelas armas e impor‑lhe o regresso a casa. MasD.Quixote, por artes de Rocinante, vence‑o emcombate (II, 14) e impõe‑lhe que se desloque aToboso,paraprestarhomenagemaDulcineiaelhedarcontadaqueleseusucesso.VaioCavaleiroàsuavida,queéandaràcatadeaventurasquedeemao

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seuautormatériaparaumnovovolume,algumasdas quais fomos referindo ao longo deste texto.Amaiordelasseráoencontrocomosduques(II,30),pela catadupa de consequências desafortunadasqueacabarãopordesiludirD.Quixoteeconvencê‑‑lo da inutilidade da sua empresa.

SansãoCarrascoregressaacasa,inconformadocomofracassodasuaprimeiratentativa.Aparecede novo a D. Quixote três meses depois, na praiadeBarcelona,destavezcomoCavaleirodaBrancaLua(II,64),erepta‑opondoemcausaaformosurada «nobre Dulcineia»; derrota‑o e impõe‑lhe «oafastamentodograndeD.Quixoteparaasuaaldeiadurante um ano»; e o fidalgo aceita a injunção«como cavaleiro cumpridor e fiel à verdade.»

«AosairdeBarcelona,voltouD.Quixotea olhar o sítio onde caíra e disse:

—Aqui foi Troia! Aqui a minha desdita,e não a minha cobardia, levou as glóriaspor mim alcançadas; aqui a fortuna usoucomigo as suas voltas e reviravoltas; aquise obscureceram as minhas façanhas; aqui,finalmente, caiu a minha ventura para nãomais se levantar!» [II, 66.]

Ocorre‑lhe, então, que, privado do uso dasarmas por imposição do seu vencedor, bem podededicar‑se à vida pastoril adotando o nome deQuixotiz e dando a Sancho o de Pancino. Estanovainvençãoinquietaagovernantaeasobrinha(II, 72 e 73), mas não chega a concretizar‑se por‑que o fidalgo se sente mal, cai à cama e aí padecedurante seis dias. E, depois de ouvir o veredicto

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do médico, entra num sono de seis horas do qualacorda como que ressuscitado.

Leia‑seocapítulo74,oúltimo,oda«conversão»de D. Quixote, com a reserva com que se assisteaos moribundos:

«—Bendito seja o poderoso Deus, quetanto bem me fez! Enfim, as suas misericór‑dias não têm limite, nem as diminuem nemimpedem os pecados dos homens. […] Eu játenho o juízo livre e claro, sem as sombrasescurasemedonhasdaignorância,quesobreelepôsaminhaamargaecontínualeituradosabomináveislivrosdascavalarias.Agorareco‑nheçoosseusdisparateseosseusembustes,enãomecustasenãoqueestedesenganotenhachegado tão tarde, pois não me deixa tempopara fazer alguma reparação, lendo outrosque sejam luz da alma. Sinto‑me, sobrinha,no momento da morte: queria prepará‑la detal modo que fizesse ver que não foi muitomá a minha vida, e eu não deixasse famade louco; que, embora eu o tenha sido, nãogostariadeconfirmarestaverdadenaminhamorte […] que eu já não sou D. Quixote, masAlonso Quixano, a quem os meus costumesderamocognomedeBom.JásouinimigodeAmadis de Gaula e de toda a infinita catervadasuadescendência;jámesãoodiosastodasashistóriasprofanasdacavalariaandante; járeconheço a minha ignorância e o perigo emquemepuseramtê‑laslido;já,pormisericór‑diadeDeus,advertidoeensinadopelaminhaprópriacabeça,asabomino.»

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Tãoinsólitalhespareciaesta«conversão»,quetodos os que o rodeavam, e que são os principaisfigurantes desta tragicomédia, «acreditaram, semdúvida,quealgumanovaloucurasetinhaapossadodele». Assim lhe diz o bacharel Sansão Carrasco,que o havia por fim derrotado e trazido paracasa: «Cale‑se, por sua vida, anime‑se e deixe‑sede histórias». Deixe‑se de histórias, é a exortaçãodo bacharel; «déjese de cuentos» no original. Esteé o triunfo de D. Quixote: instaurada uma novaordem, exclusivamente assente na sua fabulosaimaginaçãoememória,pedem‑lheagoraquenãoaperturbecomum excesso de ficção,ou—oquevemadarnomesmo—comumescrúpulo de realidade suscetível de pôr em causa o equilíbrio ficcionaltão duramente conquistado. Porque a verdade éque,aochegarmosaestepontodahistória,quan‑do ela está prestes a terminar, os seus figurantestornaram‑separceirosdojogodeD.Quixote,estãojádentrodouniversoderepresentaçõesfantásticas(o enredo) construído por D. Quixote, e, menospara se agradarem do que para lhe agradarem(e, por essa via, para o manterem na sua compa‑nhia), estão prontos a ceder‑lhe o privilégio dedefiniçãodoqueérealedoqueonãoé—ouseja,estão dispostos a entregar‑lhe o poder de decidir.E assim está o leitor, rendido ao heroísmo hu‑manista do seu Cavaleiro. Que ideia a dele, a derenunciar a tudo aquilo em que nos quis fazeracreditar!

Mas persiste D. Quixote no seu intento anti‑cavaleiresco; e acaba a pedir desculpa ao «autorque dizem que escreveu uma história que andaporaícomotítulodeSegunda Parte das Façanhas

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de D. Quixote… [pelo] ensejo que sem eu ter essaintenção lhe dei de escrever tantos e tão grandesdisparates como nela escreve». E finou‑se, con‑vencido desta sua última verdade, magnânimo noperdãoenopedidodedesculpas;masestepedidodedesculpasaoautordofalsoDom Quixotesópodeser ironia de autor e última verrina de Cervantescontra o embusteiro de Tarragona, sobretudoporque a seguir se menciona expressamente o«verdadeiro» autor, o tal Cide Hamete Benengeli.OautorempíricodotextocomeçaporserCervan‑tes;oautormodelocomeçaporparecerCervantes,mas em breve descobrimos que é Cide HameteBenengeli, de que Cervantes (I, �) se diz tradutor(tradittore?), e que D. Quixote indica como o seu«autorizado» criador.

Mas não é descabido juntar a estas duas cate‑gorias,enunciadas,entreoutros,porUmbertoEco,uma terceira, puramente ficcional (não crítica), ade«autorfantasma»,queemergenasegundaparteda narrativa: D. Quixote. Dom Quixote torna‑se,então, uma narrativa fantasmática, um onirismode segundo nível, em que o fazer e o contar seencontramcerzidoscomtaljustezaque,porvezes,parecem não se distinguir. Os longos monólogosnarrativosdoEngenhosoFidalgoláestãoaindiciá‑‑lo. E, assim, entende‑se a ambiguidade essencialda «confissão» terminal do autor modelo (ou doautor empírico?), quando diz à sua pena: «Sópara mim nasceu D. Quixote, e eu para ele; elesoube agir, e eu escrever, os dois somos só um.»Quem fala? Cide Hamete ou Cervantes? Subtil eadmirável artifício, pelo qual Cervantes reconduzD. Quixote à literatura de onde o fez brotar—e à

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suaverdadeessencial,adainseparabilidadeentreo autor e a sua personagem, a da sublime equiva‑lência entre a realidade e a ficção.

SeénoslivrosquesedeveprocuraraorigemdaloucuradeD.Quixote,étambémnelesquesedevebuscarumaoutraexaltantedimensãodoromancede Cervantes, já que é como discurso (literário)sobreaquiloaquehojechamamosliteraturaqueolivromonumentalganhaoutradimensão,adeumjogoqueédispositivodeinterrogaçãodomundoedoestatutoqueneleadquireaficção:«olivrotodoé um jogo, no qual a loucura [a ideia fixa da cava‑lariaandante]setornaridícula,quandoexpostaaumarealidadebemfundamentada»,escreveErichAuerbach.OgéniodeCervantesestáemlevar‑nosa tomar o partido da loucura, de cada vez que arealidade desmancha o prazer que a loucura deD.Quixote nos proporciona.

Dom Quixote, é claro, não pode ser tomadoa sério; por que razão deveríamos levar mais asério o seu criador? Por isso, levanta dúvidas atese de que a intenção de Cervantes, ao escrevereste livro (ou, pelo menos, no momento em queo terminou), tenha sido tão linearmente críticados romances de cavalaria como durante muitotempo academicamente se pensou e escreveu, naesteira, aliás, da pista «falsa» que ele próprio dei‑tou ao caminho. A hipótese partilhada por algunsdoscomentadoresmodernosdoDom Quixote (portodos, Marthe Robert: «Depois de ter queimadosimbolicamente a obra cavaleiresca da qual nãoconseguelibertar‑se,Cervantesrecomeça‑aemor‑re escrevendo o último romance de cavalaria») éque,semquerer,ouquerendo‑osembemosaber,

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Cervanteslevouafórmuladoromancedecavalariaàs suas últimas consequências—o que quer dizerque escreveu realmente um romance de cavala‑ria, embora fazendo‑o implodir pela saturaçãode referências paródicas ao modelo tradicional.Nesse gesto, como é comummente aceite, matoudefinitivamente o romance medieval e fundou oromance ocidental moderno: o texto é de umagenerosaaberturaaomundoeaoleitor,e,porisso,preserva uma margem de indeterminação (o nãodito, o indizível), que é o traço inaugural da nar‑rativa moderna. Mais: Dom Quixote não dispensaa cumplicidade de quem lê para fazer valer a suaverdade, que é feita de todas as verdades que láqueiramos encontrar.

Esãomuitasas«verdades»que,aolongodestesquatroséculos,unseoutrosdescobriramnolivrodeCervantes,porqueele«apresentaacadaépocaque nele acha prazer um novo rosto» (Auerbach).A«verdade»deMigueldeUnamuno,porexemplo,éumadasmaiscélebresecontestadas,porquenelaparece que se encontra mais de Unamuno do quedeD.Quixote.Asua«leitura»daobradeCervantesé menos uma «explicação» que um apaixonadocomentário e elucubração sobre as façanhas edesventuras do Quixote cervantino: «é uma livreepessoalexegesedoDom Quixote,naqualoautornão pretende descobrir o sentido que Cervanteslhe terá dado, mas o que ele lhe dá, e nem sequerse trata de um erudito estudo histórico»—diz opróprio Unamuno. Mas é também, tanto pelasomissões como pelas arrebatadas extrapolações,uma recriação da figura inventada por Cervantes(o livro é «o Novo Testamento de D. Quixote»,

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comodissesugestivamenteTeixeiradePascoaes),erguendo‑se das franjas do arquétipo um outroD.Quixote,maisquixotescoainda—masumtudonada menos apaixonante—que o original. Numaobservação adequada, Alberto Navarro sublinhaque, no livro de Unamuno,

«ressalta o carácter voluntarista, universal,agressivoevagodaloucaféquixotesca,eosanseios irreprimíveis de imortalidade e deverressuscitarumDeussepultadocapazdeno‑la garantir».

No extremo oposto do espetro crítico situa‑‑se a «verdade» de Gonzalo Torrente Ballester,para quem Dom Quixote é, antes e acima de tudo,«umaparódiadosromancesdecavalaria»,naqualCervantes procede à «anulação do extraordinárioe sua substituição pelo quotidiano, pelo que podeexperimentar‑se e verificar‑se». Esta operação de«destravestimento» da realidade, de «limpeza»do material de toda a ganga idealista, conduz oescritor galego a concluir:

«A criação de D. Quixote, as suas aven‑turas e desventuras, são um assunto estri‑tamente temporal, secular, histórico, semnada que ver com a eternidade nem com asalvação.Serpersonagemliteráriapodeserum modo secular de alcançar a eternidade;mas, sendo secular, é um modo relativo.»

Porém,essaeternidaderelativadapersonagemD. Quixote dura há quatro séculos. Ao Cavaleiro

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da Triste Figura não o consumiu o tempo nem odeitouparatrásdascostasamemóriadoshomens.É bom sinal: o Engenhoso Fidalgo continua a serum horizonte de projeção, ou, ao menos, de en‑cantamento de todos nós.

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