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O ESTADO LAICO BRASILEIRO E OS SÍMBOLOS RELIGIOSOS NAS REPARTIÇÕES DO PODER PÚBLICO LAICO BRAZILIAN STATE AND RELIGIOUS SYMBOLS IN THE OFFICES OF THE PUBLIC POWER Jade Lorraine Santos Miranda 1 , Nayara Soares Santana 2 1 Aluna do Curso de Direito. 2 Professora especialista em Direito Público. Resumo: O Artigo tem como objetivo de pesquisa esclarecer e avaliar a legitimidade da utilização de símbolos religiosos nas repartições públicas diante da laicidade do Estado brasileiro. A Constituição Federal de 1988 determina o dever estatal de proteger a livre convicção religiosa de todos os indivíduos, sem nela interferir, e, paralelamente, veda o Poder Público de instituir religião oficial ou vincular-se aos fenômenos religiosos. Assim, impõe-lhe, uma posição de neutralidade em matéria religiosa. Desta maneira, o que se questiona é se o emprego de símbolos religiosos nos órgãos públicos configura uma afronta ao princípio constitucional da laicidade do Estado e à liberdade religiosa do indivíduo. Parte das decisões judiciais entende que a utilização dos símbolos nas dependências públicas agride ao princípio constitucional e a liberdade religiosa e, portanto, devem ser retirados; outra parte defende que, além de não ferir, constitui um traço cultural, não subsistindo motivos para retirá-los. De fato o Estado deve tratar todas as crenças ou descrenças com isonomia, mantendo-se imparcial. A discussão do tema é relevante, uma vez que diz respeito a matéria de ordem constitucional e por tratar da interação Estado e religião em um país democrático, republicano e laico. Palavras-chave: símbolos religiosos, repartições do poder público, Estado laico. Abstract: The article aims to clarify the research and assess the legitimacy of the use of religious symbols in public buildings on the secular nature of the Brazilian State. The 1988 Federal Constitution determines the state's duty to protect the free religious belief of all individuals without interfering in it, and at the same time seals the public power to institute official religion or be bound to religious phenomena. Thus imposes a position of neutrality in religious matters. Thus, what is questioned is whether the use of religious symbols in public institutions set an affront to the constitutional principle of secularity of the State and the religious freedom of the individual. The judicial decisions mean that the use of symbols in public facilities assaults the constitutional principle and freedom of religion and therefore should be removed; other party argues that in addition to not hurt, is a cultural trait, without there being reason to remove them. In fact the state should treat all beliefs or unbelief with equality, remaining impartial. The theme of the discussion is relevant, as regards the matter of constitutional order and deal with the state interaction and religion in a democratic, republican and secular. Keywords: religious symbols, public power agencies, secular state Sumário: Introdução. 1. Estado Laico: Conceito. 2. Estado Laico Brasileiro: abordagem histórica. 3. O Princípio da Laicidade e a Liberdade Religiosa no atual âmbito Constitucional brasileiro. 4. O Uso de Símbolos Religiosos nas Repartições do Poder Público. 4.1. Os símbolos oficiais do Brasil. 4.2. A questão do preâmbulo constitucional. 4.3. Laicidade, Democracia e Constitucionalismo. 4.4 O princípio da legalidade e da impessoalidade na administração pública. 4.5 Do posicionamento favorável à utilização de símbolos religiosos nas repartições

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O ESTADO LAICO BRASILEIRO E OS SÍMBOLOS RELIGIOSOS NAS

REPARTIÇÕES DO PODER PÚBLICO LAICO BRAZILIAN STATE AND RELIGIOUS SYMBOLS IN THE OFFICES OF THE PUBLIC POWER

Jade Lorraine Santos Miranda1, Nayara Soares Santana2

1 Aluna do Curso de Direito.

2 Professora especialista em Direito Público.

Resumo: O Artigo tem como objetivo de pesquisa esclarecer e avaliar a legitimidade da

utilização de símbolos religiosos nas repartições públicas diante da laicidade do Estado

brasileiro. A Constituição Federal de 1988 determina o dever estatal de proteger a livre

convicção religiosa de todos os indivíduos, sem nela interferir, e, paralelamente, veda o Poder

Público de instituir religião oficial ou vincular-se aos fenômenos religiosos. Assim, impõe-lhe,

uma posição de neutralidade em matéria religiosa. Desta maneira, o que se questiona é se o

emprego de símbolos religiosos nos órgãos públicos configura uma afronta ao princípio

constitucional da laicidade do Estado e à liberdade religiosa do indivíduo. Parte das decisões

judiciais entende que a utilização dos símbolos nas dependências públicas agride ao princípio

constitucional e a liberdade religiosa e, portanto, devem ser retirados; outra parte defende que,

além de não ferir, constitui um traço cultural, não subsistindo motivos para retirá-los. De fato o

Estado deve tratar todas as crenças ou descrenças com isonomia, mantendo-se imparcial. A

discussão do tema é relevante, uma vez que diz respeito a matéria de ordem constitucional e

por tratar da interação Estado e religião em um país democrático, republicano e laico.

Palavras-chave: símbolos religiosos, repartições do poder público, Estado laico.

Abstract: The article aims to clarify the research and assess the legitimacy of the use of

religious symbols in public buildings on the secular nature of the Brazilian State. The 1988

Federal Constitution determines the state's duty to protect the free religious belief of all

individuals without interfering in it, and at the same time seals the public power to institute

official religion or be bound to religious phenomena. Thus imposes a position of neutrality in

religious matters. Thus, what is questioned is whether the use of religious symbols in public

institutions set an affront to the constitutional principle of secularity of the State and the

religious freedom of the individual. The judicial decisions mean that the use of symbols in

public facilities assaults the constitutional principle and freedom of religion and therefore

should be removed; other party argues that in addition to not hurt, is a cultural trait, without

there being reason to remove them. In fact the state should treat all beliefs or unbelief with

equality, remaining impartial. The theme of the discussion is relevant, as regards the matter of

constitutional order and deal with the state interaction and religion in a democratic, republican

and secular.

Keywords: religious symbols, public power agencies, secular state

Sumário: Introdução. 1. Estado Laico: Conceito. 2. Estado Laico Brasileiro: abordagem

histórica. 3. O Princípio da Laicidade e a Liberdade Religiosa no atual âmbito Constitucional

brasileiro. 4. O Uso de Símbolos Religiosos nas Repartições do Poder Público. 4.1. Os símbolos

oficiais do Brasil. 4.2. A questão do preâmbulo constitucional. 4.3. Laicidade, Democracia e

Constitucionalismo. 4.4 O princípio da legalidade e da impessoalidade na administração

pública. 4.5 Do posicionamento favorável à utilização de símbolos religiosos nas repartições

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do poder público 4.6 Fundamentos contra a permanência de símbolos religiosos nas repartições

do poder público. Conclusão. Referencial Bibliográfico.

Introdução

No Brasil, a laicidade teve início no ano de 1890, com a edição do Decreto 119-A, sendo

corroborada nas Constituições posteriores e inclusive pela vigente Carta magna de 1988.

Estado laico é em essência, segundo o doutrinador Roberto Blancarte (2008, p. 25), “um

instrumento jurídico-político para a gestão das liberdades e direitos do conjunto de cidadãos”.

Pois, trata-se de um Estado que não vincula-se aos anseios religiosos e impõe a separação entre

poder público e fenômenos da religião para salvaguardar a autonomia do poder civil. Porém,

não quer dizer um Estado ateísta, mas sim um Estado que, não adota uma religião oficial e,

respeita todos os credos e sua exteriorização com isonomia. Desse modo, perfaz que o Estado

laico reveste-se de neutralidade, não apoiando ou se opondo a nenhuma religião. Essa

concepção refere-se à ideia de permitir a liberdade religiosa do cidadão, pois não cabe ao Estado

interferir na crença individual.

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) exterioriza o caráter laico do Estado brasileiro

através da prescrição constante no artigo 19, inciso I e art. 5º, inciso VI, determinando a

separação da esfera pública do plano religioso, bem como a proteção da liberdade religiosa do

indivíduo. Nesse contexto, o direito à igualdade e à liberdade religiosa são assegurados na atual

carta magna como direitos fundamentais.

Contudo, apesar da proteção constitucional à liberdade de consciência e de crença e o caráter

laico do Estado brasileiro, é comum encontrar símbolos religiosos- crucifixos, cruz- afixados

em espaços eminentemente públicos, como salas de audiências, tribunais e no plenário do

Congresso Nacional, diversamente dos símbolos previstos no art. 13 da Constituição de 88.

Por esse cenário, a questão fundamental que se indaga na pesquisa é se a utilização de

símbolos religiosos em repartições públicas afronta o princípio da laicidade do Estado e a

liberdade religiosa do indivíduo. Diante disso, este artigo tem por escopo analisar a questão,

primordialmente, sob a ótica constitucional e, em que pese, as decisões jurisprudenciais e o

entendimento doutrinário.

Para tanto, de início, será explanado o conceito de Estado laico. Em seguida, será realizado

uma breve abordagem histórica quanto à consolidação da laicidade no Brasil, conjugado a

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notável atuação da Igreja Católica na formação do Estado brasileiro, afim de que se possa

conceber a figura do Estado laico existente no nosso ordenamento.

Num terceiro momento, far-se-á um diagnóstico do princípio da laicidade do Estado e da

liberdade religiosa, à luz da Constituição Federal de 1988. Para que se compreenda o alcance

normativo desses princípios na esfera pública, pelo qual reporta ao Estado limites e deveres no

que tange à religião.

Após, adentrar-se-á na problemática de pesquisa, pelo qual será feita interpretação dos

símbolos oficiais do Brasil, do preâmbulo constitucional, dos princípios da legalidade e da

impessoalidade na administração pública e, por fim, o posicionamento favorável e desfavorável

à utilização dos símbolos nas repartições públicas, atrelado ao entendimento judicial e

doutrinário.

Portanto, objetivo principal deste artigo é, justamente, esclarecer e avaliar a legitimidade da

utilização dos símbolos religiosos nos espaços públicos ante o dever de abstenção do Estado,

em vista do princípio da laicidade e da liberdade religiosa. Entretanto, embora essa questão seja

enfrentada no judiciário há quem minimize a importância do assunto, porém, como bem pontua

Daniel Sarmento (2007), citado por Roberto Lorea (2008, p. 196):

A questão [...] não é fútil, já que não versa sobre a melhor forma de se decorar

certos ambientes formais do poder público, mas sim sobre o modelo de relação

entre o Estado e religião mais compatível com o indeário republicano,

democrático e inclusivo, adotado pela Constituição de 88. Trata-se, em suma,

de uma questão de princípios, e não de uma discussão sobre meras

preferências estéticas.

Nessa mesma linha de raciocínio, entendo pela relevância do tema, uma vez estar em pauta

a efetividade dos princípios constitucionais e a interação Estado e religião num país

democrático, republicano e laico.

1. Estado Laico: Conceito

Desde a Idade Média percebia-se a influência da igreja na formação do Estado, pelo qual o

reportava abusos e privilégios consequentes de seu poderio. Contudo, com o surgimento das

Constituições e da democracia, houve-se a necessidade do apartamento do Estado face à Igreja.

Se por um lado, os Estados Teocráticos e Confessionais caracterizam-se, respectivamente,

pela fusão e união entre Estado e Igreja. De modo que no primeiro, a religião exerce total poder

sobre os rumos da nação e, no segundo, embora não haja confusão, possui religião oficial que

pode influir nos rumos politicos da nação, além de conceber privilégios próprios. Por outro

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lado, o Estado laico promove o ideal separatista entre Estado e igreja, pois, além de não

confessar religião alguma, respeita o pluralismo religioso existente na sociedade.

Carlos Cavasin Neto (2012, p.10) explica o Estado laico com os seguintes dizeres:

A laicidade diz respeito às instituições e às esferas de ação do Estado em vista

das Igrejas e do fenômeno religioso. Aqui, o Estado laico não interfere na

escolha das funções eclesiásticas, como bispos e pastores, nem a Igreja indica

governadores ou juízes. Além disso, o Estado laico não invoca elementos

religiosos para conferir legitimidade à sua atuação política. O Estado também

não favorece nenhuma religião em desfavor de outras; ele não incentiva nem

desencoraja a participação de seus cidadãos em cultos e organizações

religiosas; nem se manifesta favorável ou desfavoravelmente à existência de

deuses. Quem decide sobre essas questões é somente a consciência de cada

cidadão, pois o Estado laico garante o direito de liberdade religiosa.

Assim, laicidade deriva do termo Laico, de origem grega, que exprimi algo neutro, isto é,

um Estado imparcial no campo religioso. Pois, a laicidade estatal não se materializa apenas na

separação do Estado da igreja, mas também no respeito e na garantia de qualquer tipo de

manifestação de crença, sem contudo apoiar ou se opor. Nesse pensar, salienta Joana

Zylbersztajn (2012, p. 37):

A laicidade consiste na garantia da liberdade religiosa e da não submissão

pública a normas religiosas e rejeição da discriminação, compreendida em um

contexto em que a legitimação do Estado não se encontra mais no divino, mas

na legitimação democrática constitucional, garantidora de direitos

fundamentais.

Portanto, Estado Laico, também chamado de Estado leigo ou secular permite um espaço

livre das diferenças e de interesses restritos e assegura o pleno exercício da pluralidade

religiosa, isto é, ao mesmo passo que o Estado não deve conduzir sua atuação por dogmas da

religião, deve permitir e proteger a plena liberdade religiosa de todos de forma igualitária, sem

interferir nas escolhas individuais e sem manifestar nenhum sentimento religioso por qualquer

religião. Assim, evidencia-se a sua neutralidade.

Contudo, Estado laico não quer dizer Estado ateísta ou refratário a religião, mas sim, um

Estado neutro no campo religioso, que assegura a liberdade individual, desde que não ofenda à

ordem pública, e o distanciamento dos fenômenos religiosos do poder político para

salvaguardar a autonomia do povo.

Da mesma maneira, laicidade não se confunde com laicismo, visto esse ser uma ideologia

hostil, contra toda e qualquer manifestação religiosa, trata-se da postura estatal em preterir o

fenômeno religioso (SARLETE, 2015). No Estado laico, contrariamente, permite-se e respeita

o pluralismo religioso e sua exteriorização.

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2. Estado Laico Brasileiro: Abordagem histórica

No século XIX, mais precisamente na França1, criou-se uma política-filosófica em busca da

separação entre Estado e Igreja. A ideia era afastar a legitimidade do poder político de

concepções religiosas, tendo em vista a incisiva relação da religião e suas intituições na

formação do Estado moderno, o que de fato, acarretava regalias e privilégios aos fiéis da crença

predominante e segregação com as demais.

No Brasil, a participação da Igreja Católica foi contundente na composição do Estado

brasileiro, tanto que sua enorme influência fomentou o catolicismo como religião oficial do

Império. As outras crenças só eram permitidas em “cultos doméstico, ou particular em casas

para isso destinadas, sem forma exterior do templo”2, conforme determinava a Constituição

Federal de 1824. Além disso, somente se permitia a elegibilidade dos candidatos ao parlamento

que professassem a religião do Estado3, fator que comprovava a presença constante de padres

e bispos em mandatos políticos. Desse modo, imprimia-se ao ambiente público os valores e

interesses da Igreja, vigorando-se o sistema confessional.

Contudo, após a proclamação da República - e diante da onda liberal no cenário

internacional - foi editado por Rui Barbosa o Decreto 119-A de 1890 que determinou a

separação drástica entre Estado e Igreja, extinguindo-se, assim, o monopolismo da Igreja

Católica. A partir daí, iniciou-se uma evolução constitucional, proporcionando a formação de

um Estado laico.

Com efeito, as Constituições seguintes determinaram expressamente o apartamento entre

Estado e igreja, não filiando-se a uma religião oficial. E, principalmente, a decretação de

mecanismos capazes de permitir a liberdade de religião dos cidadãos.

Nesse viés, a primeira Constituição republicana de 1891 representou o marco da laicidade

no Brasil, pois, engajou a mais radical separação entre o ambiente público e igreja, assegurando

1 Segundo Ari Pedro Oro “laicidade é um neologismo francês que aparece na segunda metade do século XIX,

mais precisamente em 1871, no contexto do ideal republicano da liberdade de expressão- na qual está inserida a

noção de liberdade religiosa- do reconhecimento e aceitação de diferentes confissões religiosas”. ORO, Ari Pedro.

A laicidade na América Latina: uma apreciação antropológica. In Roberto Arruda Lorea (org.) Em defesa das

liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 81.

2 Art. 5º da Constituição Federal de 1824. “Art. 5º. A Religião Cathólica Apostólica Romana continuará a ser a

Religião oficial do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em

casas para isso destinadas, sem forma exterior do templo”. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/

Constituicao/Constituicao24.htm 3 Art. 95, III da Constituição Federal de 1824. “Art. 95. Todos os que podem ser eleitores, abeis para serem

Deputadas. Exceptuam-se: III. Os que não professarem a religião do Estado”. – Disponível:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao24.htm

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de todo modo a liberdade de crença, de culto e de organização religiosa sem a mínima

intervenção do Estado. Naturalmente, ao longo do tempo, as demais Constituições criadas

apreciaram essas diretrizes de várias maneiras - à guisa de exemplo, a possível cooperação

entre Estado e igreja, previsto na Constituição de 1934, ou lacunas, no que tange o Estado

manter “relação de dependência ou aliança” com cultos e igrejas, ocorrido na Constituição de

1937 e, além das inovações constitucionais, como a imunidade tributária conferida aos templos

religiosos, na Constituição de 1946. Porém, em todas denotava-se o distanciamento do poder

público da esfera religiosa, de modo que o ordenamento jurídico construía-se por premissas

republicanas e pela determinação do Decreto 119-A de 1890, que preconizava:

Artigo 1º. É proibido a autoridade federal, assim como a dos Estados

federados, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo

alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país,

ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivos de crenças, ou

opiniões filosóficas, ou religiosas”. (BRASIL, 1890)

Portanto, desde então, o Estado brasileiro tornou-se laico, mantendo-se neutro face ao

fenômeno religioso, sem estabelecer, subvencionar, embaraçar ou associar-se a qualquer

exercício religioso4, garantindo, por conseguinte, a liberdade religiosa dos cidadãos. Na mesma

linha seguiu a Constituição Federal de 1988, haja vista, tenha se delineado um Estado

democrático de direito, que promove a liberdade e igualdade como garantias fundamentais de

seus cidadãos e proíbe a união entre Estado e instituições religiosas. Fatores estes, que

solidificaram o princípio da laicidade na atual conjuntura.

3. O Princípio da Laicidade e a Liberdade Religiosa no atual âmbito

Constitucional Brasileiro

Antes de tudo, afigura-se necessário observar que não se vislumbra, aqui, pormenorizar as

disposições constitucionais acerca dos pontos de contato entre Estado e religião. Diversamente,

objetiva-se compreender o alcance normativo dos princípios constitucionais da laicidade do

Estado e da liberdade religiosa, à luz da Constituição de 88, de forma a evidenciar os limites e

deveres do Estado no que tange à religião.

A Lei Maior de 88 não dispôs de um dispositivo que afirme o Brasil ser um Estado laico, e

nem tão pouco seu significado, porém, o princípio da laicidade do Estado está intrinsicamente

ligado aos preceitos constitucionais existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

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Todas as constituições, desde 1891, expressamente vedaram os entes federativos de estabelecer, subvencionar,

embaraçar, bem como manter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja. Constituições

disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao

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Além de se constituir um Estado pelo qual sua legitimidade fundamenta-se nos anseios

populares, e não em dogmas confessionais, a atual Constituição corrobora o princípio da

laicidade do Estado através do artigo 19, inciso I, ao impor ao Estado o dever jurídico de abster-

se da religião e de não interferir nas convicções intimas do cidadão. A esse dever, corresponde

um direito fundamental e subjetivo que os cidadãos dispõem: a liberdade religiosa, devidamente

assegurada na atual Carta Magna.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o

funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de

dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse

público; [...] (BRASIL, 1988)

Por esse dispositivo, a menção do termo estabelecer, infere que o Estado não pode ter uma

religião oficial ou criar religiões, bem como entabular práticas de liturgia.

No mesmo viés, o dispositivo veda os entes federativos de subvencionar, ou seja, patrocinar

com dinheiro ou bens o exercício religioso. No entanto, vale ressaltar que a imunidade

tributária5 conferida as instituições religiosas não caracteriza forma de subvenção estatal, pois,

sua finalidade é evitar que se atravanque o funcionamento dos estabelecimentos religiosos

tendo por base a via financeira (STERNICK, 2007). Nesse diapasão, a Constituição veda

qualquer ação estatal que vise embaraçar, limitar, dificultar ou restringir a prática de atividades

religiosas.

Por fim, a proibição de relações de dependência ou aliança, traduz a necessidade de Estado

e instituições religiosas manter-se independentes e autónomos, de forma que um não se sujeite

ao outro fomentando influências. Por outro lado, a ressalva prevista no artigo prever a

possiblidade de colaboração entre ambos, desde que em prol do interesse público. Isto é, os

entes federativos podem incentivar o desenvolvimento de obras ou serviços sociais promovidos

por estabelecimentos religiosos. Pois, segundo Paulo Vecchiatti (2008):

[...]essa colaboração não significa em momento nenhum que o Estado

concorda, depende ou se alia com a fé religiosa respectiva. O que importa para

essa cooperação é o interesse público consistente no desenvolvimento, pela

instituição, de uma atividade considerada útil pelo Estado para atingir um fim

pretendido pela coletividade, sem nenhuma relação com a crença religiosa.

Portanto, a proibição refere ao incentivo por parte do Estado à atividade religiosa em si.

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Art. 150, IV, b, da CF/88. “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado

União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: IV. Utilizar imposto sobre: b) templos de qualquer

culto”. BRASIL, Constituição da República Federativa do. 1988.

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Diante disso, o art. 19, I impõe ao Poder Público o dever jurídico de não vincular-se aos

dogmas da religião e de não obstar a manifestação religiosa do cidadão. Trazendo limites à

atuação do Estado no campo religioso e impondo-lhe uma posição de neutralidade. De forma,

que se permita e proteja as diversas convicções religiosas, sem, contudo, diretamente nelas

interferir. Assim, “o Estado não está autorizado a adotar uma religião oficial, nem impor

qualquer crença, devendo respeitar e tratar todos os indivíduos igualmente” (KARAM, 2009,

p.5). Nesse pensar, o doutrinador Jónatas Machado (1996, p. 347) salienta que o princípio da

laicidade do Estado

[...]não indica nenhuma má-vontade do constituinte em relação ao fenômeno

religioso, mas antes exprime a radical hostilidade constitucional para com a

coerção e discriminação em matéria religiosa, ao tempo em que afirma o

princípio da igual dignidade e liberdade de todos os cidadãos.

Portanto, pelo princípio da laicidade é proibido o emparelhamento entre Estado e religião e

a adoção de uma religião oficial, bem como fica protegida as diversas confissões religiosas de

possíveis intervenções abusivas do Estado. Dessa maneira, por um lado, o princípio da laicidade

do Estado representa a separação entre os órgãos públicos e as instituições religiosas, de modo

que a esfera pública mantenha-se autônoma e independente, sem que se sofra influências

indevidas provenientes da seara religiosa.

Por outro lado, o princípio da laicidade do Estado intimamente relaciona-se aos direitos

fundamentais da liberdade e igualdade religiosa, por tratar de mecanismos abeis a compor um

ambiente que garanta os sentimentos religiosos do indivíduo em face do Estado e da própria

pluralidade de confissões existentes na sociedade, de modo que um não imponha suas

convicções sobre o outro - isso também no que tange ao Estado - e seja possível o trato

isonômico entre todos. Pois, a laicidade permite a todo o indivíduo o direito de perfilhar uma

convicção, de não assumir convicção nenhuma, como também, de muda-la.

Nesse viés, a proteção da liberdade religiosa do indivíduo, que pressupõe a atuação do

Estado em não interferir na esfera íntima do cidadão, como também de proteger o seu livre

exercício religioso, é devidamente assegurada pela vigente Constituição Federal, dentre vários

dispositivos, especialmente, através do inciso VI do art. 5º:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]:

VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o

livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção

aos locais de culto e a suas liturgias; [...]. (BRASIL, 1988)

À vista dos contornos do dispositivo supra citado, é possível notar que seu alcance

normativo abrange a liberdade de crer, bem como a liberdade para não crer, isto é o exercício

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do ateísmo ou agnosticismo. Assim, percebe-se que fica garantida, como direitos subjetivos, a

liberdade de crença, isto é, a liberdade de foro íntimo que envolve o direito de escolher, adotar,

cultivar e mudar de credo, bem como a liberdade de consciência do indivíduo, em não admitir

crença alguma. Da mesma forma, fica assegurada a liberdade de culto, que é “a garantia dada

pelo Estado de que os grupos religiosos possam exercer práticas ritualísticas no interior da

sociedade” (CAVASIN NETO, 2012, p. 21). Implicitamente, esses direitos alcançam o direto à

proteção contra coação oriunda do particular ou do Estado. Nesse sentindo, Maria Lúcia Karam

(2009, p.3) ressalta:

livre, o indivíduo, naturalmente, deve poder pensar e acreditar naquilo que

quiser. É esse o campo da liberdade de pensamento, de consciência e de

crença. É um campo que diz respeito somente ao indivíduo, não podendo

sofrer qualquer interferência do Estado. É um campo essencialmente ligado à

própria idéia existente de democracia, pois sem um pensamento livre não

existe a possibilidade de escolha que está na base dessa ideia.

Assim, a liberdade de crença e de consciência do indivíduo, atua, num primeiro momento,

contra o Estado, isto é, reporta o dever de não condicionar os cidadãos à determinada religião

ou sancioná-los por sua convicção. Nesse pensar, reforça o autor André Tavares (2008, p. 586)

com os seguintes dizeres:

O direito à liberdade religiosa se erige, primeiramente, contra o Estado, o qual,

por conseguinte, está impossibilitado de impor, uma religião oficial, relegando

as demais à marginalidade e, tampouco, desrespeitar ou tolher o exercício de

qualquer religião, da consciência e crença individual ou perseguir certas

religiões ou praticantes (há outras limitações derivadas desta concepção, como

a impossibilidade de o Estado promover guerras santas). Significa [ainda] que

a pessoa não pode ser forçada a abandonar sua opção religiosa, sua fé.

Portanto, a liberdade religiosa, plasmada no art. 5º, VI da CF/88, garantidora da

inviolabilidade de crença e consciência, revela que as razões de credo religioso detidos pelo

indivíduo não podem sofrer interferência estatal. Pois, segundo o juiz Ingo Sarlet (2015), tais

liberdades, enquanto elementos fundamentais da ordem jurídico-estatal objetiva, fundamentam

a neutralidade religiosa e ideológica do Estado, como alcance de um processo político livre e

como base do Estado Democrático de Direito.

Esse direito de inviolabilidade não coaduna, somente, à liberdade de crer em qualquer

divindade, mas também a liberdade de não crer. O autor Alexandre de Moraes (2002) explica

que o Estado deve respeito ao ateísmo, pois a liberdade de crença abrange também o direito de

não aceitar ou não preconizar nenhuma fé.

Assim, abrange-se o direito de proteção aos ateístas, agnósticos, ou àqueles que possuem

posição étnica não propriamente religiosa, pois, a Constituição assegura igualmente esse direto

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para todos os cidadãos. Nesse diapasão, a Carta Magna veda, no art. 19, III, os entes da

federação “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Portanto, teístas ou

ateístas possuem o mesmo direito e devem ser tratados igualitariamente.

Nesse diapasão, urge salientar os dizeres de Jónatas Machado (1996, p.229):

A liberdade religiosa situa-se no discurso jurídico-constitucional tendo como

premissa o valor da igual dignidade e liberdade de todos os cidadãos,

procurando apresentar um conceito de religião e de liberdade religiosa dotado

de um grau de inclusividade compatível com aquele valor, que afaste dos

domínios das opções de fé e da vivência religiosa qualquer forma de coerção

e discriminação jurídica ou social.

Desta forma, prima-se a isonomia entre a diversidade religiosa existente na sociedade.

Portanto, a vigente Constituição delineia o dever do Estado em manter-se absolutamente

neutro no campo religioso, de modo, a não dirigir suas ações por dogmas confessionais e nem

vincular-se à eles, ao mesmo passo, deve assegurar e salvaguardar a inviolabilidade da liberdade

religiosa das diversas confissões, proporcionando-as um trato isonômico. De toda forma, a

legislação brasileira proscreve a intolerância religiosa.

Dada a importância desse direito fundamental do cidadão, vale salientar que a liberdade

religiosa não se configura como absoluta, no sentindo que a externação da crença deve conviver

em harmonia com os demais direitos fundamentais, à guisa de exemplo, o direito à vida e à

dignidade da pessoa humana.

4. O Uso de Símbolos religiosos nas Repartições do Poder Público

Na estrutura estatal é comumente encontrado símbolos religiosos afixados nas paredes dos

prédios públicos. Nas salas de audiências, nos Tribunais, Assembleias Legislativas, Câmaras

Legislativas municipais, repartições da Administração Pública e, até mesmo nos órgãos de nível

nacional, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal de Justiça, nos deparamos com a

ostentação de crucifixos e cruzes em suas instalações.

Ocorre, que a utilização desses símbolos nas repartições públicas, não parece coadunar com

o dever jurídico do Estado de neutralidade no campo religioso. Uma vez que o Estado deve

ostentar expressões simbólicas que traduzam um coeficiente comum a todos os indivíduos

integrantes da sociedade, justamente para coibir interesses do sectarismo religioso e assegurar

o livre exercício da pluralidade religiosa.

Nessa linha, dentro do aspecto laico, republicano e democrático constitucional, inflige

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reconhecer que a demasiada utilização de crucifixos nas repartições públicas transparece a

simpatia do Estado à determinada orientação religiosa. O que por vez refuta o caráter agregador,

não imunizando o sentimento religioso das minorias, ainda que indiscutível a inspiração

católica/cristã no seio da sociedade brasileira, representando seus fiéis a maioria. Certo é, para

que o sentimento de todos os cidadãos seja respeitado o Estado deve abster-se de manifestar

qualquer forma de religiosidade.

Diante disso, o uso de símbolos religiosos pelo Estado, de pronto revela tamanha

problemática, vez que trava-se o impasse entre: se o modelo institucional brasileiro não permite

o Estado manifestar sua preferência por determinada confissão religiosa em repartições

eminentemente públicas, e se, por si só, as raízes históricas e culturais do país e o predomínio

da religião católica é capaz de justificar a utilização de crucifixos ou cruzes nas salas de

audiências e nos tribunais do país.

Com vistas a esse dilema, para o prosseguimento do exame da legitimidade e

constitucionalidade da ostentação de símbolos religiosos nos prédios públicos, se faz

indispensável o estudo dos tópicos seguintes.

4.1 Os símbolos oficiais do Brasil

Elza Galdino (2006, p. 36), a partir do dicionário de Houaiss (2001), elucida os símbolos

como:

Aquilo que por um princípio de analogia ou de outra natureza, substitui ou

sugere algo. Aquilo que, num contexto cultural, possui valor evocativo,

mágico ou místico. Aquilo que, por pura convenção, representa ou substitui

outra coisa. Representação convencional de algo, emblema, insígnia.

De toda forma, nenhum símbolo é inócuo, seja de qual ordem for possuem significados e

transmitem aquilo que lhes são conferidos. Nesse passo, no que tange aos símbolos religiosos,

o crucifixo, em especial, ilustra a imagem de Jesus Cristo crucificado. No mesmo sentindo, a

cruz representa a síntese da vida cristã, interligada a história de sofrimento e humilhação na

morte de Cristo no calvário. Assim, tais símbolos transmitem, indissociavelmente, as ideias e

valores cristãos, pelo qual formam associação mental imediata a símbolos de ordem religiosa.

O crucifixo possui conotação simbólica haja vista ter sido adotado pela igreja Católica

Apostólica Romana como representativo do catolicismo, uma vez que a construção de seus

princípios foi baseada na biografia de Jesus Cristo. Portanto, é inegável a associação mental

entre o crucifixo e a religião católica.

12

Nesse viés, tendo os símbolos por finalidade representar, transmitir, caracterizar ou

identificar algo, faz necessário salientar que a vigente Constituição Federal expressamente

apresenta os símbolos do país em seu art. 13, §1º:

Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do

Brasil. § 1º São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino,

as armas e o selo nacionais. (BRASIL, 1988)

Assim, a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais representam, transmitem e

caracterizam o Estado brasileiro, o que parece tão distante de se transmitir à nação valores

religiosos. Desta maneira, pela expressa prescrição constitucional, perfaz-se que não há

margem de se representar o Brasil por outras simbologias. Contudo, é notório, que a

Constituição assegura aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal a escolha de outros

símbolos (§ 2º), porém, não inclui a ostentação de signos religiosos, pois seria de um tanto

contraditório, se a própria Constituição determina o apartamento entre Estado e instituições

religiosas e garante a liberdade religiosa do indivíduo, que faz sugerir o dever do Estado em

respeitar a convicção particular.

4.2 A questão da invocação de Deus no preâmbulo constitucional

Em razão da expressa menção à Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 88, impõe-

se esclarecer sobre a força normativa do texto preambular, em virtude de eventuais argumentos

que correlacionam tal menção à laicidade do Brasil e à consequente utilização de símbolos

religiosos no poder público.

Hans Kelsen (1969, apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2009. p. 30), brilhantemente,

em sua clássica Teoria Geral do Direito e do Estado, nos ensina que:

O preâmbulo é uma introdução solene, que expressa as ideias políticas, morais

e religiosas que a Constituição tende a promover; que o seu caráter não

sinaliza nenhuma norma definida em relação à conduta humana, carecendo,

por isso, de um conteúdo juridicamente relevante; que possui caráter mais

ideológico do que jurídico, razão por que, se vier a ser suprimido, isso não

mudará em nada o significado real da Constituição [...].

Nesse viés, o Supremo Tribunal Federal (STF) instado sobre a locução “sob a proteção de

Deus”, presente no preâmbulo da Constituição Federal, julgou improcedente a ação direta de

inconstitucionalidade movida pelo Partido Social Liberal, pelo qual pleiteava a inclusão de tal

locução na Constituição do Acre, uma vez que, segundo o proponente, esta era a única

Constituição estadual que não a possuía e que, assim, os acreanos estavam privados da proteção

13

de Deus. No entanto, o STF firmou entendimento que o preâmbulo constitucional não possui

força normativa, não sendo norma de reprodução obrigatória nas Constituições estaduais.

Para este estudo, vale destacar o voto do relator ministro Carlos Velloso, ao salientar que a

inclusão da invocação de Deus no preâmbulo da Constituição Federal “reflete, simplesmente,

um sentimento deísta e religioso, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque

o Estado brasileiro é laico” 6. No mesmo diapasão, o ex-ministro Sepúlveda Pertence entende

que a expressão “sob a proteção de Deus” “não é norma jurídica, até porque não se teria a

pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato jactanciosa

e pretensiosa, talvez, de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do país” 7.

De todo modo, a locução não possui eficácia jurídica.

Assim, tendo por base a pacífica jurisprudência e a corrente majoritária, é inequívoco que a

menção à divindade carece de força normativa, razão pelo qual não descaracteriza a laicidade

do Estado, mas tão somente expressa um indício teísta do poder constituinte. Além do mais, a

locução é de conteúdo ideológico, não estando reafirmada nas normas constitucionais. Em

verdade, o que se encontra firmado na Lei Maior é a liberdade de crença, inclusive de descrença.

Não sendo, assim, plausível ostentar símbolos religiosos em órgãos públicos baseando-se na

concepção de que toda a nação brasileira é fundada em Deus, tendo em vista a famigerada

expressão do preâmbulo constitucional.

4.3 Laicidade, Democracia e Constitucionalismo

Tem-se por democracia a forma de participação do povo, em que a maioria orienta a

máquina estatal conforme suas convicções. Porém, a técnica jurídica do constitucionalismo,

garante o exercício dos direitos individuais pelos cidadãos, ao mesmo passo que impõe ao

Estado condições de não os poder violar. Nesse pensar, a Constituição abarca diretrizes

fundamentais que devem ser sempre observadas.

Assim, um Estado Democrático de Direito - plasmado na CF/88, art. 1ª - que se compromete

a garantir os direitos e liberdades civis através de instrumentos jurídicos, consequentemente,

deve respeitar as liberdades individuais das minorias para que se consubstancie uma sociedade

livre, justa, solidaria e sem formas de opressão. O constitucionalismo atrelado ao Estado de

6

Supremo Tribunal Federal. ADI por omissão nº 2.076-5/AC, p. 6. Disponível em: http://redir.stf.jus.br

/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=375324 7

Supremo Tribunal Federal. ADI por omissão nº 2.076-5/AC, p. 7. Disponível em: http://redir.stf.jus.br

/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=375324

14

Direito impedi eventuais arbítrios do governo da maioria. Desta forma, Joana Zylbersztajn

(2012, p. 81), pontifica que:

A democracia constitucional não permite a discriminação de uma parte dos

cidadãos que a compõe, ainda que essa vontade seja da maioria da sociedade-

ou em última instância, da maioria dos representantes políticos daquele

momento.

Nesse pensar, ainda que a laicidade fundamenta-se na vontade popular e haja uma grande

concentração de fieis que professem determinada religião na sociedade, diante da democracia

constitucional, não é admitido que a vontade majoritária se sobreponha aos princípios

constitucionais básicos, de modo que os anseios da maioria violem direitos fundamentais da

minoria, pois, a religião predominante não pode impor-se àqueles que não professam a mesma

crença.

O ideário constitucional dos direitos fundamentais, justamente, protege o indivíduo do

predomínio irrestrito dos anseios da maioria. Assim, ainda que a maioria da população brasileira

seja cristã e, eventualmente, apoie manifestações simbólicas por parte do Estado ante a todos

os cidadãos, tal circunstância não é bastante para materializar a democracia. Isto porque a

democracia não se resume somente no governo da maioria, mas antes tudo respeito aos direitos

fundamentais que protegem a minoria. Os poderes estatais devem exercer em favor do povo

com a devida observância às normas constitucionais, às minorias, aos direitos fundamentais,

para que se exerça em favor de todos.

Ressalta Sarmento (2007, p.13) que “a proteção constitucional destes direitos, ao impor

limites para as maiorias, não é incompatível com a democracia, mas antes garante os

pressupostos necessários para o seu bom funcionamento”.

Portanto, a laicidade do Estado é princípio constitucional, no Direito brasileiro, diretamente

ligado aos direitos fundamentais à liberdade e igualdade religiosa, o que torna imprescindível

proscrever a intolerância, devendo haver respeito ao pluralismo religioso e sua forma de

expressão.

4.4 O princípio da legalidade e da impessoalidade na Administração Pública

Tendo em vista que a ostentação de símbolos religiosos ocorre em órgãos públicos, urge

salientar que estes pertencem ao Estado e, por assim, devem atuar em conformidade com os

princípios que regem a Administração Pública, dentre eles o da legalidade e impessoalidade,

conforme determinação expressa da vigente Constituição Federal.

15

O princípio da impessoalidade entrelaça-se ao princípio da isonomia, visto que a atuação

dos administradores deve servir indistintamente a todos os administrados, sem que se suscite

favoritismos ou discriminações. Assim, convicções pessoais, filosóficas, políticas ou

ideológicas não podem interferir na atuação administrativa.

Além do mais, o princípio da impessoalidade apregoa que a Administração Pública deve

voltar-se ao interesse público, de modo que os administradores atuem em nome do Estado,

sendo-lhes vedado agir por interesse particular. Desta forma, é incabível que se exteriorize

convicções, crenças, simpatias religiosas nos órgãos públicos, pois, conforme Blancarte (2008,

p. 27), “legisladores e funcionários públicos não estão em seus cargos a título pessoal e devem,

mesmo que ainda tenham direito a ter suas próprias convicções, primar pelo interesse público

em suas funções e responsabilidades”.

De acordo com o princípio da legalidade ao agente público só é permitido fazer aquilo que

está previsto em lei, o que de fato diferencia-se do particular, pois lhe é permitido fazer tudo o

que a lei não veda. Assim, tal princípio impõe ao administrador estrita subordinação à lei, pelo

qual deve pautar qualquer atividade naquilo que a norma autoriza. (DI PIETRO, 2005, p.68).

Ocorre que ao analisarmos o caso das simbologias religiosas fixadas nos prédios públicos,

percebe-se que inexiste legislação que preveja ou disponha sobre a presença de tais símbolos

nesses locais, porém, em virtude do princípio da legalidade, não se poderia justificar a

ostentação de símbolos religiosos por ausência de vedação legal, tendo em vista a necessária

conduta pautada em lei.

4.5 Do posicionamento favorável à utilização de símbolos religiosos nas

repartições do poder público

A partir das considerações supracitadas se faz necessário a análise dos principais

argumentos utilizados por aqueles que defendem a permanência dos símbolos religiosos nos

prédios públicos. Tendo em vista a ausência de jurisprudência sobre o tema, nos basearemos

em alguns casos referenciais para a discussão.

Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em resposta a quatro Pedidos de

Providência que objetivavam a retirada de crucifixos das repartições do judiciário, defendeu

que o uso de tais símbolos constitui um traço da cultura brasileira, não incidindo ofensa à

sociedade e nem a laicidade do Estado, além da inexistência de legislação que proíba a sua

utilização.

16

Esse posicionamento se deu em razão do voto do Conselheiro Oscar Argollo, que fora

seguido pelos demais conselheiros, ao defender o caráter representativo da cultura e da tradição

brasileira, de modo, que a ostentação de um crucifixo não ofende a sociedade, pois está

amparado no interesse individual culturalmente solidificado na ordem constitucional.

A exposição de tal símbolo não ofende o interesse público primário (a

sociedade), ao contrário, preserva-o, garantindo interesses individuais

culturalmente solidificados e amparados na ordem constitucional, como é o

caso deste costume, que representa as tradições de nossa sociedade. (Rel.

Cons. Oscar Argollo – 14ª Sessão Extraordinária – j. 06.06.2007 – Parte do

voto do relator, p. 3). 8

Nesse pensar, Argollo infere que a cultura e a tradição brasileira travam um convívio

pacífico com o crucifixo. Sendo o costume o alicerce para sua ostentação, fundamentado no

uso geral, permanente e notório do símbolo. Tornando-se sua veiculação nos órgãos públicos

uma “necessidade jurídica”, em razão do elo existente entre ele e a paz, de maneira, que a sua

representação ultrapassa o significado cristão e passa a refletir princípios éticos e o devido

respeito ao ambiente público, bem como fonte de inspiração para os agentes públicos atuarem

de maneira justa.

Por outro lado, Argollo teceu argumentos a respeito da legalidade do ato, advogando que

além de não violar o art. 19, I da Constituição, por ausência de vedação sobre o tema no

dispositivo, na seara administrativa não há legislação que determine a colocação dos símbolos

religiosos e nem que proíba. Assim defende, que não há uma apropriação do espaço público por

interesse privado, mas sim a prevalência do princípio do interesse público de garantir direitos

individuais e coletivos consolidados no costume. Concluindo, por estas razões, inexistir

inconstitucionalidade ou ilegalidade na ostentação de símbolos religiosos nos órgãos do

judiciário.

Conforme essa linha de raciocínio, a Juíza Maria Lúcia Lencastre Ursaia, no julgamento da

Ação Civil Pública nº 2009.61.00.017604-0 movida pelo Ministério Público Federal, pautou-

se pela inexistência de vedação legal, acrescentando também, a ausência de ofensa à liberdade

de crença, tendo em vista as raízes históricas da sociedade brasileira, razão em que o crucifixo

tornou-se um símbolo comum.

Em um país que teve formação histórico-cultural cristã é natural a presença de

símbolos religiosos em espaços públicos, sem qualquer ofensa à liberdade de

8

CNJ – Pedidos de Providência: 1344, 1345, 1346 e 1362 – Rel. Cons. Oscar Argollo – 14ª Sessão Extraordinária

– j. 06.06.2007 – DJU 21.06.2007. Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio%20Adm%

201/Downloads/1346___Declara%C3%A7%C3%A3o%20de%20Voto%20do%20Cons.%20Oscar%20Argollo.p

df

17

crença, garantia constitucional, eis que para os agnósticos ou que professam

crença diferenciada, aquele símbolo nada representa assemelhando-se a um

quadro ou escultura, adereços decorativos. (Ação Civil Pública nº

2009.61.00.017604-0. Decisão em caráter Liminar, p. 3). 9

Com efeito, as forças que se posicionam nesse sentido assumem o crucifixo como elemento

cívico e cultural, representativo da tradição do país. Tradição essa, nos dizeres do professor

Roberto Nogueira (2009), oriunda da fundação do Estado na doutrina humanista cristã, que

concebe toda a cultura ocidental. E, por isso, em especial, o crucifixo seria um símbolo

ecumênico que transborda valores universais.

Além disso, é veemente defendido que a retirada de crucifixos ou cruzes dos prédios

públicos seria um ato de intolerância e desrespeito à liberdade religiosa da maioria dos

brasileiros coalescendo ofensa à democracia. Nesse pensar, o doutrinador Fernando Capez

(2009, p. 4) preconiza:

Cabe ao Estado e à sociedade em geral não encorajar manifestações de

intolerância daqueles que se sintam ofendidos pela livre expressão da fé

alheia. A retirada de símbolos já instalados, mesmo que em repartições

públicas, leva à alteração de uma situação já consolidada em um país

composto por uma quase totalidade de adeptos da fé cristã, e agride

desnecessariamente os sentimentos de milhões de brasileiros, apenas para

contentar a intolerância e a supremacia da vontade de um restrito grupo de

pessoas.

Por essas razões, compreendem também a tentativa de retirada dos símbolos religiosos

como ato de repudio à liberdade e ao exercício religioso, significando uma postura laicista, isto

é, intolerante e hostil. Aqueles que se posicionam nesse sentido, afirmam que há uma confusão

entre laico e laicismo, onde o conteúdo da laicidade vem sendo deturbado por tentativas

antagônicas à religião, na qual a fé é substituída pelo racionalismo profano. Capez (2000, p.4),

nesse diapasão, afirma que “trata-se de uma volta ao movimento iluminista do final do século

XVIII, em que a soberba do antropocentrismo e o egoísmo individualista suplanta a crença em

dogmas absolutos pré-constituídos”. Assim, para eles, a expressão máxima da laicidade se

revela com a tolerância aos símbolos e não com sua retirada.

Portanto, em suma, os defensores da permanência de símbolos religiosos nas repartições

públicas elucidam como relevante a presença da simbologia religiosa, pois são símbolos

essencialmente culturais e de representação cívica, necessários para que a harmonia social e a

9

Ação Civil Pública nº 2009.61.00.017604-0 - Decisão em caráter Liminar- MMº Juíza Dr.ª Maria Lucia

Lencastre Ursaia- j. 18.08.2009. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/

NUCS/decisões /2009/090820Simbolos.pdf

18

ordem pública sejam mantidas. De todo modo, defendem rigorosamente a ausência de violação

aos princípios constitucionais da laicidade e da liberdade religiosa.

4.6 Fundamentos contra a permanência de símbolos religiosos nas

repartições do poder público

Conforme estudado anteriormente, a laicidade Estatal demanda uma postura de neutralidade

no campo religioso. Para tanto, o Estado deve abster-se completamente de exprimir qualquer

sentimento religioso para que se consubstancie o respeito pleno e idêntico à pluralidade de

religiões existentes na sociedade.

A Corte Constitucional Alemã, refutando a tese de que o crucifixo ultrapassa o significado

cristão e que, por força da tradição, deveria ser ostentado em órgãos público, dispôs:

A cruz representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do

Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência. Para os fiéis

cristãos, a cruz é, por isso, de modos diversos, objeto de reverência e de

devoção. A decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é

entendida até hoje como alta confissão do proprietário para com a fé cristã.

Para os não cristãos ou ateus, a cruz se torna, justamente em razão de seu

significado, que o Cristianismo lhe deu e que teve durante a história, a

expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e o símbolo de sua

propagação missionária. Seria uma profanação da cruz, contrária ao auto-

entendimento do Cristianismo e das igrejas cristãs, se se quisesse nela

enxergar, como as decisões impugnadas, somente uma expressão da tradição

ocidental ou como símbolo de culto sem específica referência religiosa.

(BVerfGE 91, 1 (1995).

Desse modo, os doutrinadores a favor da retirada dos signos religiosos, argumentam ser

intangível conceber um caráter não-religioso ao crucifixo ou a cruz, pois, sobretudo, são

símbolos que manifestam a fé e os fundamentos da religião cristã. Sendo elementos que

transcendem o valor cultural e, jamais, meros adornos utilizados apenas para enfeitar o

ambiente. Assim, consideram, que expô-los em edifícios públicos, não transmite a devida

neutralidade estatal, vez que há associação imediata do órgão à religião.

Por essas razões, eles defendem que o argumento da tradição se deflagra em meio ao

conteúdo religioso intricado na relação, pois, ainda que sejam símbolos que agreguem o valor

histórico e cultural do país, continuarão representando a fé de um grupo específico e excluindo

os demais e, por conseguinte, violando a determinação constitucional da laicidade e da

isonomia. Além do mais, salienta-se, que em um Estado democrático de direito, não cabe ao

Estado ser arauto da cultura, mas sobretudo, o instrumento da justa defesa das minorias sociais,

do pluralismo e das diferenças (TIMO; REIS, 2009).

19

Assim, tais doutrinadores concordam que a tradição Católica sedimentou a construção do

Estado e representa grande parte dos civis no mosaico social. Entretanto, salientam que as

tradições se modificam com o tempo, e nem tudo que é cultura e tradição é devidamente

aceitável -à guisa de exemplo a sociedade patriarcal, a submissão da mulher como mera

reprodutora ou, o próprio julgamento do Conselho Nacional de Justiça que proibiu a prática do

nepotismo, bastante enraizado e tradicional na sociedade brasileira (CAVASIN NETO, 2012).

Desta forma, defendem que o caráter tradicional dos símbolos religiosos não anula sua

contrariedade à Constituição. Em exato pensar, Sarmento (2007, p. 13) destaca:

Não há dúvida de que o Direito, como fenômeno social, tem conexões com as

tradições e valores dominantes em uma dada sociedade. Contudo, não é certo

conceber prescritivamente a ordem jurídica como uma mera instância de

afirmação das práticas sociais hegemônicas, já que muitas vezes o papel do

Direito é exatamente o de combater e transformar hábitos e tradições

enraizados, desempenhando um papel emancipador.

Aqueles que defendem a permanência de símbolos religiosos nas repartições do poder

público buscam fundamentos na crença hegemônica no contexto social. Porém, como bem

assenta a corrente desfavorável, a discussão não se revela na livre expressão da fé alheia, mas

na postura que deve ser assumida pelo Estado. Ao indivíduo é, constitucionalmente, assegurado

o pleno exercício da liberdade religiosa, seja de decidir por quais símbolos religiosos por ele

serão adorados, seja por quais por ele serão rejeitados. O que não se confunde com o Estado.

Haja vista, que a liberdade religiosa não garante ao indivíduo ou às instituições religiosas, o

direito de ter a sua fé apoiada pelo ente estatal, em verdade, o art.5º, VI da CF/88 requer que o

Estado mantenha-se neutro no capo religioso, justamente para que a liberdade religiosa de cada

indivíduo seja garantida. Nesse diapasão, o professor Sarmento (2007, p. 11), salienta:

No que tange aos jurisdicionados cristãos, a sua liberdade de religião não

abrange qualquer direito de verem a sua fé publicamente apoiada pelo Estado.

Portanto, está fora do perímetro de proteção da liberdade religiosa qualquer

expectativa concernente à exposição pelos poderes públicos de símbolos

associados a qualquer confissão.

Nessa linha de raciocínio, ressalta-se que o Estado não se confunde com pessoas físicas e

nem com aquelas que exercem o poder em seu nome. Os agentes públicos dispõem do mesmo

direito à liberdade religiosa que os demais, entretanto, os espaços públicos não os pertencem,

mas sim ao Estado, estando, portanto, submetidos à cobertura do princípio da laicidade. Nesse

pensar, o Ministro José Celso de Mello (2012, p. 1), reitera:

[...]grupos religiosos não podem apropriar-se do aparelho estatal,

transformando o Estado em refém de princípios teológicos, em ordem a

conformar e a condicionar, à luz desses mesmos postulados, a formação da

vontade oficial nas diversas instâncias de poder.

20

Por outra perspectiva, ainda que o número de cristãos represente a maioria da população

brasileira em razão das raízes históricas do país, não se pode negar a pluralidade de doutrinas e

símbolos religiosos presentes na sociedade. Sendo assim, o Estado deve tratar as diversas

formas de religiosidade com isonomia, corolário da liberdade religiosa e do princípio

constitucional da laicidade, o qual impõe a não confessionalidade por parte do Estado (art. 19,

I). Nesse diapasão, o Desembargador Cláudio Baldino Maciel, em resposta ao pleito de retirada

de símbolos expostos no poder público, afirmou que:

O cidadão judeu, o muçulmano, o ateu, ou seja, o não cristão, é tão brasileiro

e detentor de direitos quanto os cristãos. Tem ele o mesmo direito

constitucionalmente assegurado de não se sentir discriminado pela ostentação,

em local estatal e por determinação do administrador público, de expressivo

símbolo de uma outra religião, ainda que majoritária, que não é a sua.

(Conselho da Magistratura. Processo nº 0139-11/000348-0, Porto Alegre- RS.

Relatório: Des. Claudio Baldino Maciel, p. 5). 10

Essas razões são fruto dos preceitos constitucionais que se objetiva promover o bem de

todos sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, CF/88). Da mesma forma, não há que se

falar em atentado à democracia, pois como já debatido anteriormente, não se pode coibir direito

fundamental da minoria em virtude dos anseios da maioria.

Além disso, quando o poder público ostenta símbolos religiosos em suas repartições,

intencionalmente ou não, manifesta endosso a tal crença e, consequente, rechaço à situação

jurídica de igualdade entre os diversos credos. Nessa linha de raciocínio, em 2012, a justiça do

Rio Grande do Sul acatou o pedido de retirada de crucifixos e símbolos religiosos de todas as

salas do poder judiciário do Estado, sob os argumentos de que a presença de tais símbolos não

se coaduna com o princípio constitucional da impessoalidade na Administração Pública e com

a laicidade do Estado. Para tanto, o relator elucidou as seguintes ponderações:

Ora, o Estado não tem religião. É laico. Assim sendo, independentemente do

credo ou da crença pessoal do administrador, o espaço das salas de sessões ou

audiências, corredores e saguões de prédios do Poder Judiciário não podem

ostentar quaisquer símbolos religiosos, já que qualquer um deles representa

nada mais do que a crença de uma parcela da sociedade, circunstância que

demonstra preferência ou simpatia pessoal incompatível com os princípios da

impessoalidade e da isonomia que devem nortear a administração pública. (Conselho da Magistratura. Processo nº 0139-11/000348-0, Porto Alegre- RS.

Relatório: Des. Claudio Baldino Maciel, p. 3). 11

10

Conselho da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul. Processo nº 0139-11/000348-0, Porto Alegre-

RS. Relatório: Des. Claudio Baldino Maciel- j. 6.3.2012. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/voto-relator-

materia-conselho.pdf 11

Conselho da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul. Op. Cit.

21

Em arrimo, se não existe legislação que proíba a presença de símbolos religiosos nos órgãos

públicos, o contrário também é verdade, não há legislação que obrigue sua existência

(CAVASIN NETO, 2012). Contudo, o Desembargador Claudio Maciel (2012) afirma que a

Constituição implicitamente veda a ostentação de signos religiosos por decorrência lógica do

princípio da laicidade, da impessoalidade, da isonomia, da legalidade e do direito à liberdade

religiosa de todos que possam se fazer presentes naqueles locais. No mais, a Constituição

explicita em seu art. 13, § 1º que são símbolos da república federativa do Brasil o hino, a

bandeira, as armas e os selos nacionais.

Demais disso, quando o Estado emparelha-se à religião mediante o uso de símbolos

religiosos produz consequências simbólicas significativas relacionadas a sua legitimidade de

atuação. Essa associação pode comprometer a percepção da imparcialidade do judiciário,

principalmente, quando se envolve grandes questões políticas e sociais em que a crença

favorecida tenha posicionamento resistente, como em casos envolvendo direitos sexuais e

reprodutivos (STERNICK, 2007). Por assim pensar, o relator Claudio Maciel (2012), afirmou

em seu voto que o julgamento feito em uma sala de tribunal sob expressivo símbolo religioso

não é a melhor forma de mostrar que o julgador está “equidistante” dos valores em conflito.

Portanto, a corrente que defende a retirada dos símbolos religiosos das repartições públicas

pauta-se primordialmente na determinação constitucional. De modo, que o profano e o sagrado

devem ser separados no âmbito estatal, para que a justiça, no desempenho do seu papel no

Estado democrático de Direito, seja para todos. Desta maneira, defendem veemente que

somente a retirada de todo e qualquer símbolo religioso dos órgãos públicos garantirá o Estado

laico, a liberdade religiosa, bem como a observância da igualdade e da impessoalidade na

administração pública.

E reafirmam, que tal retirada não caracteriza atitude laicista ou de repúdio a fé, pois, como

já analisado, a fé ou a fata dela é de foro íntimo do indivíduo no exercício de sua liberdade

religiosa e não objeto de política pública. Em verdade, a retirada de tais símbolos significa o

devido cumprimento ao princípio da laicidade, pois, conforme pontifica o professor Sarmento

(2007, p. 15),

[...] certas medidas que impliquem em algum tipo de suporte estatal à religião

podem ser consideradas constitucionalmente legítimas, se forem justificáveis

a partir de razões não-religiosas, relacionadas à proteção de outros bens

jurídicos também acolhidos pela Constituição, cujo peso, no caso concreto,

sobrepuje a tutela constitucional da laicidade.

22

Consideram, assim, o raciocínio cabível à manutenção do Cristo Redentor, igrejas barrocas,

pontos turísticos com conotação religiosa, em que a ação do Estado decorre do dever de

preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural e paisagístico. Todavia, defendem, não

ser o caso dos símbolos religiosos, pois não se vislumbra qualquer bem jurídico de competência

constitucional ou mesmo legal que seja suscitado com a veiculação de símbolos religiosos nas

repartições do poder público.

Conclusão

O tema mostra-se bastante polêmico e divergente. Contudo, não se pode olvidar a natureza

eminentemente constitucional da laicidade no Estado brasileiro, o qual estabelece a necessária

separação institucional entre Poder Público e instituições religiosas.

A postura laica atua como pressuposto essencial para o livre exercício da liberdade religiosa

de cada indivíduo, o qual os fornece subsídios para um tratamento isonômico entre a pluralidade

de religiões existentes na sociedade. Sendo-lhes assegurando o direito de confessar ou não

qualquer crença. Entretanto, ao Estado, a laicidade impõe a neutralidade, devendo ser apartado

da res pública todo tipo de sectarismo religioso.

Desta forma, é certo que laicidade e liberdade religiosa se complementam, mas, jamais, se

confundem. O dever de ser laico é do Estado, assim, como o direito de manifestar qualquer

credo é de foro íntimo do indivíduo, não podendo aqui, o Estado interferir e nem exercer. Isto

é, não cabe ao ente estatal manifestar preferência por uma ou outra religião, ou ser arauto da

crença predominante na sociedade, mas, sobretudo, deve-se dispensar tratamento igualitário à

todas as crenças religiosas, sem adotar religião oficial.

Assim, à luz da Constituição Federal, infere-se que o Estado deve ostentar expressões

simbólicas que traduzam elementos comuns à todos os membros da sociedade, coibindo

qualquer ato de discriminação e mantendo-se devidamente neutro no campo religioso.

Exatamente nesse liame, para a real discussão da presença de símbolos religiosos nas

repartições públicas, o sentimento religioso do indivíduo deve ser afastado, sobressaindo-se os

preceitos constitucionais e o posicionamento enquanto operador do Direito. Isso porque a

discussão pousa na postura do Estado e não do indivíduo.

A manutenção de elementos religiosos em prédios públicos representa, ainda que velada, a

influência institucional católica no âmbito público, o que deflagra a determinação

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constitucional da separação entre Estado e religião. Do mesmo modo, ainda que seja uma

prática tradicional, cabe ao Estado de direito submeter suas ações às atuais garantias de direitos

fundamentais, não suportando-se, desse modo, o argumento da maioria em detrimento da

minoria.

Além do mais, o Estado, enquanto ente abstrato, não é pessoa capaz de professar fé, assim,

os administradores públicos que atuam em seu nome, devem agir em conformidade aos

princípios básicos da Administração Pública- impessoalidade e legalidade, pois não lhes é

conferido “o poder” de emparelhar o Estado a convicções religiosas pessoais.

Contudo, vale enfatizar que o direito à liberdade religiosa dos agentes públicos não é ceifado

no desempenho de suas funções, pois trata-se de uma questão de razoabilidade. A utilização de

símbolos religiosos por agente público em seu gabinete pessoal, por exemplo, não caracterizaria

afronta a laicidade, mas sim o exercício de um direito constitucionalmente assegurado ao

cidadão.

De todo modo, deve prevalecer os princípios da laicidade, da impessoalidade e da isonomia,

sem que ocorra privilégios a qualquer denominação religiosa, pois, é intangível manter

símbolos religiosos de específica religião e consubstanciar igualdade entre todos os credos.

Portanto, a partir da investigação traçada no presente trabalho, a conclusão que se atinge

manifesta a inconstitucionalidade da presença de símbolos religiosos nas repartições do poder

público. Sendo forçoso concluir que somente a retirada de todo e qualquer símbolo religioso irá

materializar a devida observância à laicidade do Estado, à liberdade religiosa, bem como ao

princípio da igualdade e da impessoalidade na Administração Pública.

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