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o Estado Numa Era de Reformas - Os Anos Fhc

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Parte 2

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Coleção Gestão PúblicaBrasília2002

Ministério do Planejamento, Orçamento e GestãoSecretaria de Gestão

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NORMALIZAÇÃO: DIBIB / CODIN / SPOA

Presidente da RepúblicaFERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão

GUILHERME GOMES DIAS

Secretário-ExecutivoSIMÃO CIRINEU DIAS

Secretário-Executivo AdjuntoPEDRO CÉSAR LIMA DE FARIAS

Secretária de Gestão

EVELYN LEVY

Secretário de Recursos HumanosLUIZ CARLOS DE ALMEIDA CAPELLA

Presidente da ENAPESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

REGINA PACHECO

Equipe Editorial:MARIANNE NASSUNO

CRISTÓVÃO DE MELO

CARLOS H. KNAPP

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO ORÇAMENTO E GESTÃOSECRETARIA DE GESTÃO

ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS, BLOCO K – 4º ANDARCEP: 70.040-906 – Brasília – DF

FONES: (61) 429-4905FAX: (61) 429-4917

www.planejamento.gov.brwww.gestaopublica.gov.br

E-MAIL: [email protected]

Coleção Gestão PúblicaVOLUME 7 - PARTE 2

O ESTADO NUMA ERA DE REFORMAS: OS ANOS FHC - Parte 2Organizadores: Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro

Revisão: Helena Jansen

É permitida a reprodução total ou parcial desde que citada a fonte.

O Estado Numa Era de Reformas: Os Anos FHC - Parte 2/ Organizadores:Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro. – Brasília : MP, SEGES,2002.316 p.

1. Reforma Administrativa 2. Administração Pública I. Abrucio,Fernando Luiz II. Loureiro, Maria Rita

CDU 35.08

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Em 1993, a Escola Nacional de Administração Pública/ENAP, encomendouum estudo ao Prof. Regis de Castro Andrade sobre a Administração PúblicaFederal. Da pesquisa resultou um diagnóstico consistente do funcionamen-to das organizações e uma caracterização ampla de sua burocracia1.

A importância daquele trabalho se fez sentir rapidamente quando, em1994, às vésperas das eleições presidenciais, ele serviu de orientação,aos diversos partidos em disputa, para que se posicionassem frente a umassunto tão estratégico. Aqueles volumes representaram, de fato, ummapa da burocracia federal, até então bastante remota em relação aorestante do país.

Por casualidade ou não, um dos pesquisadores envolvidos naqueleestudo, o cientista político Fernando Abrucio, teve, durante os dois man-datos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, uma participação ativano desenvolvimento da Reforma, acompanhando-a de perto, subsidian-do-a com uma série de pesquisas e colaborando na formação de muitosdos servidores de carreira concursados no período. Tornou-se assim umdos maiores especialistas desse tema, reconhecido no país e no exterior.

Ao lado da Profa. Maria Rita Garcia Loureiro, com quem colaborou eminúmeros desses trabalhos científicos, Abrucio articulou um grupo amplode cientistas políticos e economistas para a realização desse livro. Sãotodos excelentes pesquisadores, trabalhando em diferentes universida-des, situadas em diversas regiões do país, constituindo assim o núcleoinicial de uma rede de estudiosos do tema da Gestão Pública e suarelação com a conformação do Estado no Brasil.

Ao apoiar a realização desses ensaios, o Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão teve por objetivo estimular o debate das questões

APRESENTAÇÃOEVELYN LEVY

SECRETÁRIA DE GESTÃO

1 ENAP (1993): Estrutura e Organização do Poder Executivo, Administração Pública Brasileira, Vol.2,

Regis de Castro Andrade e Luciana Jaccoud (org.), Centro de Documentação, Informação e DifusãoGraciliano Ramos, ENAP, Brasília.

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referentes à Reforma do Estado na academia, entendendo que se faznecessário pensá-las de modo crítico, cada vez mais. É preciso criarcompetências internas que permitam tornar o Estado mais democrático eajustado às necessidades contemporâneas da sociedade brasileira.

Acreditamos que, em conjunto com as demais publicações que inte-gram a “Coleção Gestão Pública”2, essa coletânea dará aos leitores ele-mentos para dar continuidade ao aperfeiçoamento das instituições públi-cas do país.

2 A Coleção Gestão Pública é composta dos seguintes volumes: (1) Unidades de Atendimento Integra-

do: como implantar (versão português e espanhol); (2) Balanço da Reforma do Estado no Brasil: aNova Gestão Pública; (3) Cidadãos como parceiros: Manual da OCDE sobre Informação, Consulta eParticipação na Formulação de Políticas Públicas (OCDE tradução); (4) Liderança e Setor Público noSéculo 21 (OCDE tradução); (5) A Política de Recursos Humanos na Gestão FHC; (6) Responsabili-dade e Transparência no Setor Público (OCDE/OAS tradução); e (7) O Estado numa era de Reformasos anos: FHC (Fernando Abrúcio e Maria Rita Loureiro)

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A DINÂMICA INSTITUCIONAL DA REFORMA DO ESTADO: UM BALANÇO DO PERÍODO FHCValeriano Mendes Ferreira Costa 09

INCREMENTALISMO, NEGOCIAÇÃO E ACCOUNTABILITY: ANÁLISE DAS REFORMAS FISCAIS NO

BRASIL

Maria Rita Loureiro & Fernando Luiz Abrucio 57

A TRANSIÇÃO INCOMPLETA: A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO GOVERNO FHCMarcus André Melo 103

DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: LIÇÕES DOS ANOS FHCFernando Luiz Abrucio 143

AS AGÊNCIAS REGULATÓRIAS: GÊNESE, DESENHO INSTITUCIONAL E GOVERNANÇA

Marcus André Melo 247

CONCLUSÕES 307

SUMÁRIO

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A DINÂMICA INSTITUCIONAL DA

REFORMA DO ESTADO:UM BALANÇO DO PERÍODO FHC

Valeriano Mendes Ferreira Costa1

INTRODUÇÃO

O objetivo central desse texto é fazer um balanço das reformas da Admi-nistração Pública Federal durante os dois mandatos do presidente FernandoHenrique Cardoso (1995-1998 / 1999-2002). Alguns pressupostos orien-tam a análise. Primeiro distinguimos as reformas institucionais, isto é,aquelas que alteram o desenho organizacional da administração pública,das reformas gerenciais, as quais procuram mudar os procedimentos em-pregados pela burocracia para realizar seus objetivos. No entanto, reco-nhecemos que essa distinção é meramente analítica. As reformasinstitucionais e as reformas gerenciais estão profundamente imbricadas.

É fácil perceber porque, historicamente, as mudanças no desenhoorganizacional estão associadas a alterações nas práticas administrativas.O desenvolvimento de burocracias profissionais foi um fator crucial naexpansão e aumento da complexidade do aparelho estatal e está forte-mente associado à formação de grandes estruturas hierárquicas, constitu-ídas por ministérios e departamentos. As reformas gerenciais, por suavez, estão ligadas a um modelo organizacional caracterizado pela redu-ção dos níveis hierárquicos e compactação dos órgãos centrais, além daautonomização das entidades responsáveis pela implementação de políti-cas e a contratualização das suas relações com os órgãos centrais.

Dado o escopo geral do estudo, não podemos analisar as implicaçõesdas mudanças organizacionais na APF (Administração Pública Federal)brasileira sobre a eficiência e efetividade da gestão pública. Por isso, noslimitamos a descrever sistematicamente as mudanças macroestruturais,

1 Doutor em Sociologia pela USP, professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e

pesquisador do Cebrap. Fabrício Menardi, doutorando em Ciência Política na Unicamp, e RosângelaReis Machado, mestranda em Ciência Política na Unicamp, ajudaram na confecção deste trabalho.

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configuradas na legislação ordinária e administrativa. O grande volumede leis, Medidas Provisórias e, especialmente, decretos voltados para areestruturação de ministérios, autarquias, fundações e criação de agências(em geral, reguladoras), revela uma intensa atividade no âmbito da trans-formação organizacional. No entanto, essa atividade normativa nada nosdiz a respeito das efetivas alterações no funcionamento da APF.

Para remediar parcialmente essa limitação, realizamos um balanço dasatividades dos órgãos responsáveis pela implementação da reforma: oMARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado), durante o pri-meiro mandato de FHC (1995-1998); e a Secretaria de Gestão do Ministé-rio do Planejamento, Orçamento e Gestão, ao longo do segundo governo(1999-2002).

O texto está dividido em três partes. Na primeira, definimos algunsconceitos centrais para análise da mudança macroestrutural na administra-ção pública e apresentamos um breve balanço das discussões sobre alte-rações institucionais em países que realizaram, com graus variados desucesso, reformas inspiradas no modelo da Nova Gestão Pública (NGP).Na segunda parte, fazemos um breve histórico das mudanças namacroestrutura da Administração Pública Federal entre os anos 1930 e1994. Na terceira, descrevemos e analisamos as modificações introduzidaspelo governo Fernando Henrique Cardoso na macroestrutura da APF,procurando ressaltar as continuidades e rupturas entre os dois períodosde governo. Na conclusão, apresentamos uma breve agenda de mudan-ças necessárias à consolidação das reformas iniciadas pelo atual governo.

I - A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Um resultado paradoxal da ampla aceitação das reformas derivadas daNova Gestão Pública (NGP) é que essa abordagem perdeu suaespecificidade. De fato, todas as reformas recentes do setor público têmprocurado se legitimar reivindicando com maior ou menor intensidadesua filiação à NGP. O problema é que a versão “globalizada” dogerencialismo tende a obscurecer o fato de que as diferenças são muitomaiores do que as semelhanças entre as reformas implementadas emdiferentes países.

Um número crescente de pesquisadores tem demonstrado que a ter-minologia da NGP encobre processos de reformas administrativas dealcance e significado muito distintos (PREFORMS, 1998 e RHODES, 1999).

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Isto se explicaria pelo fato de que os países se organizam em torno deregimes político-administrativos e “tradições estatais” muito diversos.

Sinteticamente, a NGP consistiria em um núcleo de idéias que enfocamprioritariamente: a qualidade da gestão, a avaliação de desempenho; adesagregação das burocracias em agências que se relacionam em basescontratuais - e se possível monetárias (user pay basis) -; o uso de “quase-mercados” e terceirização para estimular a competição; redução de cus-tos e um estilo de gestão que enfatiza metas, contratos periódicos eautonomia gerencial. O consenso aparente em torno dessas medidas debom senso, no entanto, obscurece alguns aspectos centrais na avaliaçãodas reformas gerenciais das décadas de 80 e 90 (RHODES, 1999).

Estudos atuais identificam uma clara diferença entre as reformas nospaíses anglo-saxões e nos da Europa continental. Além disso, é fácilverificar que a tendência atual do reformismo não aponta para uma uni-formização das administrações públicas. Na Alemanha, por exemplo, ain-da persistem as marcas distintivas da burocracia clássica. Enquanto naGrã-Bretanha a NGP foi utilizada para reduzir o Estado, na Dinamarca elaserviu para reforçar suas características básicas.

Mais ainda, a linguagem comum da NGP obscureceu diferenças im-portantes. No Reino Unido, o gerencialismo corresponde essencialmenteà criação das agências executivas, enquanto que na Austrália ela impulsi-onou a “democratização” e a maior transparência da Administração Públi-ca Federal; ao passo que na França tal estratégia se resumiu a um proces-so de descentralização regional (RHODES, 1999).

Para concluir o argumento, vale mencionar o caso da Suécia, onde boaparte da agenda da NGP foi cumprida, especialmente no que se refere àredução do déficit fiscal, privatização, terceirização e descentralização deserviços sociais; mas os gastos totais permaneceram em seus níveis ante-riores. O que realmente mudou foi a distribuição das despesas entre osníveis central e regional/local. Enquanto na década de 60, o governocentral e os regionais/locais consumiam parcelas equivalentes do gastopúblico como proporção do PIB (8% para cada um), na década de 90, odispêndio público total havia quase dobrado - passando de 16% a 28% doPIB -, ao mesmo tempo em que a parcela dos recursos controlados pelosgovernos subnacionais chegava a 20% do PIB. A partir dessa transforma-ção radical, o Estado sueco foi caracterizado como uma “federação decomunidades de bem estar” (PREMFORS, 1998). Ou seja, o impacto dareforma gerencial aprofundou o desenho já bastante descentralizado da

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administração central, reduzindo o controle dos ministérios sobre o gastosocial.

Num balanço final, a Nova Gestão Pública não constituiria um corpoteórico integrado e consistente, mas uma frouxa coleção de doutrinas,muitas das quais conflitantes entre si. O principal problema seria a tensãoentre os dois princípios básicos da NGP: de um lado, o fortalecimentodos mecanismos de controle hierárquicos, voltados para a redução decustos e equilíbrio fiscal e, de outro, a redução de níveis hierárquicos efortalecimento da autonomia gerencial da burocracia (RHODES, 1999).

Para Christensen e Laergreid (1998), levadas a cabo de forma radical,as reformas propostas pela NGP resultariam em menor controle do go-verno sobre a administração pública, mas não numa administração públi-ca necessariamente melhor. Na verdade, ao trocar os incentivos institucionais“internos” da gestão burocrática, pelos incentivos materiais “externos” dogerencialismo, corre-se o risco de abandonar um modelo baseado naconfiança e na solidariedade entre os servidores, por outro que funcionabasicamente em torno de relações contratuais e sistemas detalhados deavaliação de desempenho que alimentam a mútua “desconfiança” entremandantes e agentes.

Por outro lado, a maior parte das propostas constantes nos planos deNGP não representaria, separadamente, inovações em relação aos pro-cessos de reforma anteriores. Afinal, avaliação de desempenho, sub-contratação, privatização, utilização de técnicas gerenciais privadas naadministração pública, são práticas recorrentemente tentadas em todas asondas reformistas desde o início do século passado. A novidade residiriana articulação dessas práticas em torno de um discurso forte, que atinge onúcleo dos problemas fiscais e administrativos das burocracias.

O problema é que não existe um “pacote” único de medidasconsensuais. As combinações variam em cada contexto nacional. A liçãobásica dos mais de vinte anos de ímpeto reformista é que a trajetóriainstitucional (path dependence) das burocracias importa. Além da tradi-ção estatal/constitucional e política de cada país, fatores como as caracte-rísticas organizacionais da administração pública, suas relações com ogoverno e a sociedade civil, são cruciais para compreender o sentido dasreformas tanto organizacionais como gerenciais.

Por mudança nas estruturas organizacionais das burocracias públicasentende-se, geralmente, a alocação e/ou realocação das funções entreunidades administrativas encarregadas de elaborar e/ou executar políti-

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cas de governo. Mais recentemente, com a ênfase da NGP em mudançasgerenciais, o conceito incluiu, também, alterações na organização internados órgãos, como realocações de funções entre secretarias, mas, especi-almente, transferências de atribuições para agências executivas, além da“publicização” ou privatização de organizações estatais (POLLITT, 1984).

Deve-se notar, também, que as burocracias modernas atuam dentro deestruturas em rede que abarcam desde as autoridades governamentais,lideranças políticas, passando pelos grupos de interesse, clientelas até osmeios de comunicação e a própria opinião pública (JORGENSEN et all,1998). Evidentemente, como os objetivos do texto são mais restritos,serão focalizados apenas os aspectos formais da dinâmica organizacionalna administração pública.

A importância da criação de burocracias profissionais para a formaçãodo Estado Moderno é um tema clássico nas ciências sociais (TILLY, 1975;SILBERMAN, 1993). No entanto, as motivações e as conseqüências dasmudanças organizacionais para o funcionamento das administrações pú-blicas são questões pouco estudadas atualmente. A preocupação com oimpacto da forma de organização administrativa na eficiência e efetividadeda ação governamental está claramente associada à “ciência da adminis-tração”, predominante até meados do século passado (GULICK, 1937,apud. PETERS, 1995).

Estudos mais recentes invertem a questão, procurando explicar a in-fluência do desenho organizacional das burocracias sobre as políticaspúblicas. No entanto, essa abordagem tem ocupado um lugar bastantesecundário na literatura internacional (EGEBERG, 1999). No Brasil, ambasas linhas de estudo têm sido praticamente ignoradas2.

A grande maioria dos estudos sobre mudanças organizacionais refere-se a países com sistemas parlamentaristas de origem inglesa, especial-mente o Reino Unido, o Canadá e a Austrália (DAVIS et all, 1999). Otermo clássico pelo qual os analistas desses países tratam a administraçãopública é sintomático da abordagem pragmática que informa tais estudos:the machinery of government, isto é, a “máquina de governo”. Por razõesque veremos a seguir, os Estados Unidos não partilham dessa preocupa-ção com as motivações e conseqüências das mudanças organizacionais naAdministração Pública Federal.

2 Os poucos trabalhos que tratam de aspectos organizacionais da APF brasileira têm um caráter

acentuadamente legalista. Os trabalhos mais conhecidos nesse campo são os de Beatriz Wahrlich(1979a, 1979b).

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Uma razão importante da abordagem pragmática da gestão pública é arelativa facilidade com que os governos encontram motivos para mudar aestrutura administrativa. Tal facilidade está associada certamente ao regi-me parlamentarista majoritário, que garante ao governo o controle maisou menos efetivo sobre o Parlamento e onde, em geral, o Judiciário temum perfil bastante discreto sobre os assuntos político-administrativos.

Uma comparação com os Estados Unidos, onde o presidencialismoresulta numa efetiva separação de poderes, ajuda a entender a questão.No regime norte-americano, a equipotência de Poderes no campo políti-co-administrativo tornou efetivamente muito difícil para o Presidente daRepública alterar a estrutura administrativa federal sem uma complexa edesgastante negociação com o Congresso. O resultado desse constrangi-mento institucional é que dificilmente se muda a estrutura ministerial(departamental) que é bastante “enxuta” - são apenas 14 ministérios, oúltimo tendo sido instituído em 1980. Estes, por sua vez, exercem poucocontrole sobre o grande número de agências independentes, muitas delascriadas por iniciativa do próprio Congresso na sua eterna disputa com aPresidência (KAUFMAN, 2001).

As implicações desse arranjo organizacional sobre as políticas públicassão relativamente bem conhecidas. Em geral, as agências estão inseridasem redes de interesses que envolvem as clientelas, outras burocraciasfederais e estaduais e membros dos comitês do Congresso que lidam comos assuntos relacionados com as atividades dessas agências. Não é poroutro motivo que dificilmente uma reforma administrativa proposta pelaPresidência ou pelo Congresso, isoladamente, interfere na estruturaorganizacional. Os interesses organizados em torno das agências bloque-iam qualquer mudança que possa afetar seus interesses.

É por isso que as reformas gerenciais na administração pública norte-americana limitam-se a medidas de reorganização interna das agências edepartamentos, geralmente voltadas para a racionalização, redução decustos e melhoria do desempenho. A National Performance Review,conduzida por Al Gore, vice do presidente Bill Clinton, em1993, é umexemplo claro dessa limitação da capacidade de ação da Presidênciasobre a burocracia federal. Enquanto a Grã-Bretanha implementava uma“revolução gerencial” que em pouco menos de dez anos (1988-1997)transferiu mais de 70% do Civil Service para as agências executivas, aNPR à americana se limitava a difundir princípios e práticas de “reinvenção”da cultura administrativa (HOGWOOD et al, 1999). O mais interessante é

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que o papel do Congresso, através do General Accounting Office, temsido central no acompanhamento e cobrança de resultados, pois é a partirdos performance reviews que os ministérios (Departments) e as agênciaspodem pleitear recursos orçamentários frente ao Congresso (HINCHMAN,1997).

Quais as implicações desses argumentos para a avaliação das mudan-ças organizacionais implementadas ao longo dos dois governos de FernandoHenrique Cardoso?

Constata-se, basicamente, que o foco analítico não pode se concentrarexclusivamente nos aspectos conceituais da reforma administrativa, suamaior ou menor coerência em relação às recomendações da Nova GestãoPública. Os aspectos cruciais a serem levados em conta são: a dinâmicainstitucional que condiciona as relações entre a APF e os poderes consti-tucionais - Executivo, Legislativo e Judiciário -, de um lado, e o padrão deinteração entre lideranças políticas (ministros, secretários, secretários-exe-cutivos e assessores da Presidência) e burocráticas responsáveis pelagestão da burocracia.

Por sua vez, essas características tendem a variar de acordo com:a) o tipo de regime de governo, especialmente com a capacidade do

Executivo de exercer controle sobre o Legislativo, sobre o próprio minis-tério (ou gabinete) e sobre os cargos superiores na burocracia. Quantomaior a autonomia efetiva dos Poderes, mais difícil realizar as mudançasno desenho organizacional.

b) o grau de permeabilidade da administração pública a interferênciaspolíticas, isto é, quanto mais aberta a estrutura de cargos à entrada depessoas externas às carreiras ou, correlatamente, quanto maior a liberda-de das lideranças políticas (ministros, secretários e assessores ligados aogoverno) para nomear, transferir ou pressionar os escalões superiores(inclusive gerenciais), maior a possibilidade de conflitos político-adminis-trativos em torno do controle sobre as reformas.

Deste modo, em países com governos parlamentaristas de tipo majori-tário, por exemplo, as chances de sucesso e o escopo de uma reformaadministrativa são, em geral, maiores do que em países presidencialistas,especialmente, quando estes têm fortes características consociativas, comoé o caso do Brasil.

Em países presidencialistas, as perspectivas de reforma dependembastante da solidez da base de sustentação política do Executivo no Con-gresso. Diversas características do presidencialismo norte-americano, por

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exemplo, reduzem muito as chances de sucesso de reformas administra-tivas amplas. A forte autonomia do Legislativo, assim como a fragmenta-ção e elevada autonomia da burocracia descentralizada (Agências Inde-pendentes), praticamente inviabilizam a implementação de mudanças ra-dicais na macroestrutura da administração federal. Com exceção das épo-cas de crise, as reformas administrativas têm de ser negociadas e compar-tilhadas com o Congresso.

Ao lado dessas variáveis estruturais, fatores conjunturais também alte-ram as chances de sucesso de uma reforma. Podemos dividi-los em doistipos: os de natureza política, como a capacidade de liderança do Execu-tivo sobre a coalizão de governo e apoio na opinião pública para condu-zir a reforma; e os de natureza econômica, como a situação das contaspúblicas, ou seja, a maior ou menor folga fiscal para realizar mudançasinstitucionais não voltadas exclusivamente à redução de gastos com amáquina, e o grau de coordenação e cooperação entre a área econômicae a administrativa.

Além de tudo isso, o ritmo mais ou menos intenso de mudanças namacroestrutura, como criação/extinção de ministérios e realocação defunções entre órgãos, não resulta necessariamente de um forte empenhoreformista. Em muitos casos essas modificações fazem parte do jogo polí-tico cotidiano. Em alguns casos, visam a aumentar (ou a diminuir) a visibi-lidade de determinados assuntos ou funções. Em outros servem paraacomodar (ou enfraquecer) membros da coalizão de governo. Com muitafreqüência essas alterações organizacionais almejam apenas a redução decustos da burocracia, independentemente dos seus efeitos sobre a efici-ência ou a efetividade da ação governamental.

As duas principais motivações para qualquer governo implementaruma reforma administrativa de amplo escopo são: a necessidade de recu-perar ou aumentar a capacidade de controle sobre a burocracia e decoordenação sobre as atividades governamentais; e a necessidade defortalecer as bases políticas de sustentação do governo.

Em geral, o perfil das reformas resulta de um trade-off entre essasduas variáveis. Quando o apoio ao governo é instável e precisa sernegociado constantemente, as reformas se limitam a mudanças ad hoc namacroestrutura - como a criação/desdobramento de secretarias e ministé-rios - para ampliar a coalizão ou satisfazer demandas pontuais de aliados.Quando o apoio político é sólido, o governo encontra espaço para inves-tir no aumento da capacidade administrativa e, neste caso, as reformas

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podem resultar em amplas modificações na macroestrutura da burocraciaestatal, (p. ex. Grã Bretanha, Nova Zelândia).

II - MUDANÇAS NA MACROESTRUTURA ADMINISTRATIVA BRASILEIRA: BREVE HISTÓRICO

A reforma administrativa implementada nos últimos oito anos pode sercomparada, em termos de amplitude e impacto, às duas grandes reformasadministrativas da burocracia federal realizadas ao longo do século XX. Aanálise dessas duas experiências pode ser útil para percebermos a im-portância das variáveis institucionais e conjunturais, mencionadas anteri-ormente.

Nos dois casos anteriores, 1936 e 1967, as conjunturas política e eco-nômica eram favoráveis: havia alta legitimidade/controle do Executivosobre os outros Poderes e os gastos governamentais estavam em expan-são. Mesmo assim, características estruturais do sistema político limitaramou interromperam os processos de modernização e profissionalização daburocracia federal.

Embora não existam muitos estudos sobre as reformas administrativasno Brasil, um breve resumo da literatura disponível permite identificarum diagnóstico mais ou menos consensual. Como argumenta um trabalhorecente sobre as reformas administrativas no Brasil (LIMA JR., 1998),transcorridos quase 60 anos de tentativas de profissionalização sistemáti-ca da APF:

“o fato é que o Brasil nunca teve o modelo burocrático de administra-ção, ou qualquer outro, plenamente instalado. A nossa realidade adminis-trativa tem se caracterizado, independentemente da intencionalidade dasreformas e de seus eventuais êxitos e fracassos, pela convivência demodelos de administração incompletos, inconsistentes e superpostos”.

Mas, então, quais os objetivos das reformas e por que elas fracassa-ram? Essencialmente, os dois principais objetivos das reformas no Brasilforam: 1) aumentar ou recuperar a capacidade de controle e coordenaçãodos órgãos centrais da Presidência da República sobre as secretarias e osministérios, através da modernização e profissionalização da burocracia,e, 2) tornar mais eficiente e eficaz a implementação das políticas públi-cas através da criação de uma estrutura administrativa mais flexível edescentralizada, voltada prioritariamente para o desenvolvimento econô-mico do país.

Nos dois casos, os resultados foram: a segmentação da APF em um

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núcleo compacto de órgãos centrais controlados pelo presidente, maspouco institucionalizado; uma estrutura ministerial burocratizada, inchadae desarticulada; e um extenso e heterogêneo conjunto de autarquias,fundações e, principalmente, empresas públicas e sociedades de econo-mia mista.

A Revolução de 30 tinha um objetivo político-administrativo muitopreciso: “superar a fragmentação do arquipélago político nacional”(COUTO, 1993: 116), criando um Estado interventor, centralizado e sus-tentado por uma burocracia altamente profissional e insulada de interfe-rências políticas. A criação do DASP, o núcleo burocrático do novo Esta-do, diretamente vinculado ao Presidente da República, foi o passo decisi-vo para o sucesso da reforma. Ele criou regras rígidas de admissão depessoal, instituiu o concurso público e estabeleceu critérios meritocráticosde avaliação - entre outras inovações na administração do pessoal.

O modelo organizacional dessa reforma procurava aumentar a eficiên-cia na gestão administrativa, através do fortalecimento do braço adminis-trativo da Presidência da República - operado pelo DASP - e da criaçãode um Serviço Público profissional junto aos ministérios. Ao mesmo tem-po, procurava aumentar a eficácia na implementação das políticas, atra-vés de uma estrutura descentralizada, mas fortemente coordenada, com-posta de autarquias e institutos (LIMA JR, 1998).

Se o modelo daspiano foi capaz de implantar um núcleo burocráticoprofissional, a administração federal como um todo não ficou imune ao“contágio patrimonialista”, na expressão de Reis Velloso (Apud. COUTO,1993). Paralelamente à criação do DASP, em 1938, continuou existindouma grande quantidade de cargos comissionados e extranumerários (con-tratados temporariamente).

Após 1945, com a reativação do sistema eleitoral, o DASP foi perden-do a capacidade de controlar os recursos críticos para a gestão da admi-nistração federal, especialmente sobre o pessoal das empresas, autarquiase fundações e sobre o processo orçamentário. Com o passar do tempo,foi aumentando a distância entre a administração descentralizada, maisautônoma, ágil e eficiente, e os ministérios. Tornou-se forte a pressãopara que os próprios ministérios facilitassem a criação de empresas,autarquias e fundações.

Se levarmos em conta que essas empresas e autarquias já constituíamos pólos dinâmicos da administração, os setores que reuniam os servido-res mais qualificados e, portanto, melhor remunerados, perceberemos

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que o processo de descentralização descoordenado que caracteriza a APFencontra-se na própria origem da burocracia moderna no Brasil.

Combinando-se a dinâmica da “autarquização”, o alcance restrito daestrutura de carreiras e a distribuição política de cargos de direção dasentidades autônomas, acentuou-se a fragmentação institucional. Isto ex-plica, em parte, a perda de capacidade de coordenação e controle porparte dos órgãos centrais. Por sua vez, os ministérios freqüentementesubmetidos ao controle de grupos políticos e com poucos quadros decarreira qualificados, tinham pouca capacidade de produzir diretrizes paraos órgãos encarregados da execução de políticas, o que apenas contri-buía para acentuar a autonomia da administração descentralizada(GUERZONI, 1996: 42).

Esse quadro se agravou ao longo das décadas de 50 e 60, quando apressão pelo desenvolvimento econômico levou os governos Vargas eKubitschek a realizarem a modernização da administração sem recorrer auma reforma dos quadros profissionais. A estratégia foi a criação das“administrações paralelas”, grupos e comissões executivas e assessoriasad hoc que formulavam os planos e programas em articulação com técni-cos de associações empresariais, institutos e autarquias.

A segunda grande reforma, realizada trinta anos depois da primeira,tinha como diretriz tornar mais claro o desenho organizacional da APF,separando a administração direta (Presidência e Ministérios) da indireta(Autarquias, Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista). Com amodernização voltada “para o desenvolvimento” proposta pelo Decreto-Lei 200/67, o governo militar esperava criar condições para um cresci-mento do setor produtivo estatal sob o controle de uma forte estrutura decoordenação e planejamento, centralizada na Presidência da República(WAHRLICH, 1979).

Diante do quadro acima descrito, o Decreto-Lei 200/67 aparece comuma tentativa realista de introduzir um mínimo de organização na APF. Asimples listagem das diretrizes centrais do Decreto mostra a sua ambição(WAHRLICH, 1984, Apud. LIMA JR.1998: 13):

a) planejamento, descentralização, delegação de autoridade, coorde-nação e controle;

b) expansão das empresas estatais, de órgãos independentes (funda-ções) e semi-independentes (autarquias);

c) fortalecimento e expansão do sistema de mérito;d) diretrizes gerais para um novo plano de classificação de cargos;

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e) reagrupamento de departamentos, divisões e serviços em 16 minis-térios.

A principal conseqüência da implementação incompleta da reformaproposta pelo Decreto-Lei 200/67 foi a cristalização da divisão entre umaadministração direta burocrática e pouco qualificada e uma administraçãoindireta de perfil gerencial, ou melhor, empresarial. Em poucos anos,foram estabelecidas 267 empresas estatais e cerca de 68 autarquias efundações (LIMA JR., 1998).

Ao longo da década de 1970 e primeira metade dos anos 1980, espe-cialmente durante o governo do general Figueiredo, a perda de controlesobre a administração indireta agravou-se. Duas foram as causas desseagravamento do processo de descoordenação e fragmentação: de umlado, a baixa legitimidade política do seu governo impôs a troca decargos públicos por apoio político; de outro, a desorganização crescenteda economia, após a crise fiscal de 1982 e a aceleração do processoinflacionário, desarticularam os mecanismos de controle fiscal e gerencialsobre os órgãos públicos.

Os dez anos que antecedem o primeiro mandato de Fernando HenriqueCardoso foram de grande instabilidade política e econômica, e de formacorrelata, de grande instabilidade organizacional na Administração Públi-ca Federal. Todos os governos, durante esse período, utilizaram intensa-mente a mudança organizacional, mas por razões opostas: no governoSarney, para acomodar a ampla e heterogênea base de apoio no Con-gresso, e no governo Collor, para fortalecer a Presidência e sinalizarmudanças radicais que pretendia implementar e, finalmente, no governoItamar, para reconquistar o apoio político do Congresso. Dois dessespresidentes (Sarney e Collor) também procuraram implementar algumtipo de reforma administrativa e todas fracassaram, embora por motivosdiferentes.

Sarney adotou uma estratégia de acomodação reativa, criando ou eli-minando órgãos em função das oscilações na base de apoio político. Amotivação política das mudanças organizacionais desse período está bemdocumentada no relato de Piquet Carneiro (cf. COUTO, 1993):

“...em 1985, recriou-se o Ministério da Desburocratização apenas coma finalidade de acomodar no primeiro escalão uma corrente política doNordeste que apoiara Tancredo Neves(...) logo criou-se o Ministério daAdministração, conferindo status ministerial a um cargo até então consi-derado de assessoramento direto da Presidência, com o objetivo de aten-

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der a outra conveniência política circunstancial. Desaparecida a razãopolítica, extinguiu-se mais uma vez o Ministério da Desburocratização(...)Criou-se (...) o Ministério da Ciência e Tecnologia para servir de nichoàs forças nacionalistas de apoio ao governo; um pouco mais tarde, o novoministério foi extinto e suas funções em parte assimiladas novamentepelo Ministério da Indústria e do Comércio (...) foram fundidos,reemembrados e criados diversos órgãos e entidades, como o IBDF, aSEMA, a SUDEPE, a Secretaria de Assuntos Comunitários, etc. - semprecom o objetivo de compor situações políticas (e até pessoais) meramentecircunstanciais”.

Embora o depoimento expresse o desconforto de um servidor públicodiante da grande instabilidade administrativa, ele reconhece que essasmedidas eram racionais tanto do ponto de vista político como administra-tivo-: buscavam preservar a capacidade de governo, especialmente naárea econômica, isolando-a do assédio clientelista. No entanto, ao ofere-cer aos grupos políticos ministérios e secretarias em áreas não estratégi-cas, o governo também acentuava o insulamento do núcleo econômicoprofissionalizado, expondo outras áreas-fins (ou mesmo áreas-meio) àdesestruturação de seus núcleos de competência profissional e àdescontinuidade administrativa. Esse padrão “predatório” de reformainstitucional estava diretamente ligado às condições de instabilidade polí-tica do governo.

Mas, ao mesmo tempo em que estabelecia um amplo loteamento decargos públicos, o governo Sarney tentou implementar mais uma reformaadministrativa, através da criação de um Ministério Extraordinário paraAssuntos de Administração e mesmo uma Comissão Geral do Plano deReforma Administrativa. Como resultado dessa tentativa de reestruturação,o governo criou uma estrutura de gestão e modernização da máquinapública composta pela SEDAP (Secretaria de Administração Pública, emlugar do DASP e vinculada à Presidência da República), pela ENAP (Es-cola Nacional de Administração Pública) e pelo CEDAM (Centro de De-senvolvimento da Administração Pública), todos em 1986. Em 1987 vin-culou as fundações à administração direta (Lei 7586/87); e finalmente,em 1989, criou a carreira de Especialistas em Políticas Públicas e GestãoGovernamental (Lei 7834/89) que, se efetivamente implantada, constitui-ria um núcleo profissional e altamente qualificado para ocupar os cargosestratégicos da APF.

Repetindo a história das tentativas de reforma administrativa anterio-

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res, após intensa produção legislativa e administrativa, os órgãos estraté-gicos de gestão foram perdendo dinamismo e legitimidade. A Comissãoreformista não resistiu ao Plano Cruzado, tendo seus trabalhos interrompi-dos em 1986; em 1989, a SEDAP é extinta e suas atividades incorporadasà Secretaria de Planejamento e Coordenação e, finalmente, o plano deestruturação da carreira dos Gestores é interrompido, após o primeiroconcurso, também em 1989.

Apesar da grande legitimidade inicial, o governo de Collor de Melonão teve mais sucesso que seu antecessor. A política de desmontagem daburocracia, uma estratégia de “tabula rasa”, fracassou junto com a tentati-va de governar sem uma coalizão ampla no Congresso. A ambição demodernizar radicalmente a APF estava em contradição com as condiçõesinstitucionais de que dispunha para a implementação das medidas neces-sárias. Ao contrário do presidente anterior, ele ainda conseguiu produziruma verdadeira “revolução” na macroestrutura da burocracia federal.

Na gestão Collor, o número de ministérios foi reduzido de 18 para 12,enquanto os órgãos diretamente ligados à Presidência passaram de 9 para12. Os ministérios das Comunicações, Minas e Energia e Transportesforam fundidos num “superministério” da Infraestrutura. O Ministério daPrevidência e Assistência Social e o Ministério do Trabalho foram fundi-dos, dando origem ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. OMinistério da Fazenda, parte da Secretaria de Planejamento e o Ministériodo Desenvolvimento da Indústria e do Comércio formaram ao poderosoMinistério da Economia, Fazenda e Planejamento. Parte do Ministério daEducação e Cultura transformou-se na Secretaria dos Desportos, ligada àPresidência. O Ministério do Interior foi desmembrado em Ministério daAção Social, Secretaria do Meio Ambiente e Secretaria do Desenvolvi-mento Regional, ambas vinculadas diretamente à Presidência. O Ministé-rio da Ciência e Tecnologia foi transformado em Secretaria subordinada àPresidência, assim como o Ministério da Cultura. No nível central, ainda,Collor fundiu a Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional (SADEN)e o Serviço Nacional de Inteligência para formar a Secretaria de AssuntosEstratégicos. Também parte da antiga SEPLAN foi transformada na Secre-taria de Administração Federal. Por fim, o Gabinete Civil da Presidênciada República foi desmembrado em Gabinete Pessoal da Presidência daRepública e na Secretaria de Governo (COUTO, 1993).

As extensas mudanças na macroestrutura visavam ao fortalecimento daPresidência da República em dois sentidos. Primeiro, por meio do au-

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mento das áreas sobre os quais o presidente queria exercer sua marcapessoal, como meio-ambiente, desenvolvimento regional, ciência etecnologia, cultura e esportes. Depois, mediante uma drástica redução nonúmero de ministérios: de 20 para 12, concentrando enorme poder emtrês grandes ministérios - o da Economia, Fazenda e Planejamento (MEFP),o Infraestrutura (MINFRA) e o do Trabalho e Previdência Social (MTPS) -sob os quais também procurava exercer forte controle. Seu principalobjetivo, aqui, foi aumentar o poderio direto sobre assuntos importantesnas áreas econômica e social, reduzindo as possibilidades de conflitosintraministeriais. Finalmente, procurou fortalecer seu assessoramento di-reto, dividindo a Casa Civil em Gabinete Pessoal e Secretaria Geral, alémde consolidar os assuntos de segurança nacional na SAE e a gestão damáquina pública na SAF (Secretaria de Administração Federal).

Todas essas mudanças provocaram enorme instabilidade organizacional,perda de memória administrativa e desorganização em vários núcleos decompetência profissional, muitos dos quais já haviam sido afetados du-rante o governo Sarney. Mas, tal como antes, essas modificações tinhamdois objetivos politicamente racionais dentro da dinâmica institucional donosso presidencialismo: de um lado, fortalecer a Presidência, reduzindo oespaço para a barganha política com as forças do Congresso, de outro,aumentar a capacidade de coordenação dos órgãos centrais, através daconcentração de muito poder em poucos ministérios, controlados porpessoas diretamente escolhidas pelo presidente.

Refletindo o fracasso de sua estratégia inicial de confrontação, Colloriniciou, em 1992, o desmembramento dos grandes ministérios visando àrecomposição de sua base de apoio. Primeiro dividiu o Ministério doTrabalho e Previdência Social, criando o Ministério do Trabalho e daAdministração. Depois, dividiu o MINFRA em Ministério das Minas eEnergia e Ministério dos Transportes. Neste sentido, a paradoxal vinculaçãoda SAF (Secretaria de Administração Federal) ao Ministério do Trabalho,repetiu a trajetória da SEDAP, inclusive na gradativa perda de capacidadeinstitucional até transformar-se num simples balcão homologador de de-mandas da burocracia.

O governo de transição de Itamar Franco significou um retorno àdinâmica institucional do período Sarney: ampliar os cargos para gover-nar. O Gabinete Civil foi recomposto, a SAF voltou à condição de secre-taria diretamente vinculada à Presidência. Ressurgiram os ministérios daFazenda e da Indústria e Comércio (acrescido do Turismo). Novos minis-

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térios surgiram das secretarias da Ciência e Tecnologia, da Cultura e doMeio Ambiente. A fusão do Ministério da Ação Social com a Secretaria deDesenvolvimento Regional resultou no Ministério da Integração Regio-nal. O Ministério da Educação reincorporou a Secretaria de Desportos e oMinistério dos Transportes e das Comunicações foi redividido.

Um balanço dos resultados das reformas administrativas tentadas aolongo do século XX mostra que a dinâmica institucional do presidencialis-mo de coalizão condicionou, decisivamente, o modo como se organizoua administração pública no Brasil (ABRANCHES, 1988).

Devido às características consociativas do presidencialismo de coalizão,a base política de apoio ao governo no Congresso pressiona por se fazerrepresentar no Ministério. Neste sentido, o nosso presidencialismo se apro-xima de um regime parlamentarista. Mas, diferentemente dos regimes par-lamentaristas europeus, no presidencialismo brasileiro não existe uma claraseparação entre funções políticas e funções administrativas. De fato, prati-camente todos os cargos de alto escalão e mesmo os de nível gerencial daAPF podem ser ocupados por pessoas de fora da burocracia profissional decarreira. E mesmo quando tais postos funções são ocupados majoritaria-mente por servidores públicos, a dinâmica de comissionamento representauma efetiva “politização” da alta administração pública3.

O sucesso das reformas administrativas no Brasil depende, portanto,de duas condições institucionais básicas: uma base de sustentação políticaampla e coesa no Congresso e, concomitantemente, a capacidade dogoverno de imprimir diretrizes político-administrativas claras e consisten-tes aos órgãos centrais da Presidência e exercer coordenação firme juntoaos Ministérios e aos órgãos da administração indireta.

Reformas de amplo escopo, como as concebidas pelo Plano Diretorde Reforma do Aparelho do Estado, têm de enfrentar um desafio: comoconciliar a necessidade de tornar mais eficiente e efetivo o controle e acoordenação sobre o setor público, especialmente em conjunturas deforte restrição fiscal, com a desconcentração organizacional e aflexibilização gerencial.

3 Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil nem de países ditos subdesenvolvidos. Nos Estados Unidos

o Presidente pode nomear cerca de 7.000 cargos na administração federal, embora a maior partedesses cargos tenha que ser submetido à aprovação do Senado, no caso de funções politicamentedelicadas, e ao OPM (Office of Personnel Management), no caso de postos que exigem certa qualifi-cação profissional ou experiência prévia. Na Espanha e na Grécia, de forma semelhante ao queocorreu no Brasil, a politização da administração pública central foi um “efeito perverso” daredemocratização (cf. ALBA, 1998).

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III - REFORMAS ORGANIZACIONAIS NOS ANOS FHC

Nesta parte analisamos as iniciativas do governo Fernando Henrique Car-doso que tinham como objetivo reformar o aparelho estatal. Procuramosresponder uma questão básica: até que ponto as dificuldades encontradaspara a implementação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho doEstado decorreram de falhas de concepção e/ou implementação, ou en-tão podem ser explicadas como conseqüência dos obstáculos institucionaisapontados anteriormente?

Estudo recente discute a hipótese de que haveria uma tendência de“falhas seqüenciais” em todas as reformas inspiradas na Nova GestãoPública (REZENDE, 2002). O argumento é central para a compreensãodos obstáculos enfrentados pelas reformas tentadas pelo governo FernandoHenrique Cardoso. O problema básico das reformas atuais seria a tentativade resolver, simultaneamente, dois problemas com sentidos opostos: au-mentar a racionalidade na gestão financeira e fiscal do Estado, e promoverreformas institucionais nas estruturas de controle, gestão e delegação entreas diversas partes do sistema burocrático”(REZENDE: 2002: 51).

A falha resultaria da falta de cooperação “espontânea” por parte deatores estratégicos. Enquanto os que estão situados nos órgãos centrais dogoverno, especialmente os encarregados das áreas financeira, fiscal eorçamentária, empenham-se em melhorar o controle sobre o gasto públi-co, visando à redução do custo do funcionamento da máquina pública, osdemais, localizados nos órgãos setoriais (ministérios e agências) estãointeressados em preservar ou aumentar a autonomia sobre seus gastos.Em resumo, as falhas seqüenciais ocorreriam porque as reformas atuaisexigiriam, contraditoriamente, mais controle fiscal e menos controlegerencial; este seria o “dilema do controle”.

Tal dilema não se vincula apenas às atuais reformas administrativas,mas deriva da própria gestão rotineira das burocracias, inclusive as dasempresas privadas. A instituições efetivamente importam, e mais, sãoresistentes às mudanças que implicam em rupturas nos arranjos de poderalcançados à custa de muito conflito e negociação. A trajetória de constru-ção das burocracias modernas ao longo dos dois séculos anteriores mostraque o “dilema do controle” não se restringe às questões presentes.

O que importa analisar é a relação entre os diferentes arranjosinstitucionais que articulam sistema político e burocracia em cada país eos objetivos propostos por cada programa de reforma. Certamente, em

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todos os casos existirá um trade-off entre controle fiscal e flexibilizaçãogerencial. Mas, em cada contexto nacional, o dilema se põe de formadiversa. No caso britânico, tratava-se de “desverticalizar” as grandes es-truturas ministeriais resultantes da dinâmica concentradora de poder domodelo Westminster. No norte-americano, não estava em questão umareforma organizacional, mas apenas a difusão de práticas gerenciais vol-tadas à redução de custos operacionais e maior efetividade e accountabilitydo setor público. Nos países escandinavos, Suécia, Dinamarca, Noruega,onde a implementação das políticas é fortemente descentralizada, busca-va aperfeiçoar os mecanismos de controle verticais (políticos) e horizon-tais (sociais) e aumentar a efetividade do gasto. Na França, por outrolado, a modernização da administração praticamente se resumiu àdescentralização territorial.

O balanço das reformas inspiradas na Nova Gestão Pública não seresume a uma série monótona de “falhas seqüenciais”. Cada “tradiçãoestatal” produz um arranjo institucional diferente e, portanto, formas di-versas de lidar com o “dilema do controle” Enfim, não podemos confun-dir as expectativas “revolucionárias”, presentes no discurso da NGP, comos processos efetivos de reforma. Com exceção de Grã-Bretanha e NovaZelândia, em nenhum outro país estava em questão uma aplicação orto-doxa do receituário gerencial. De fato, as exceções configuram a regra,no caso da onda de reformas atuais.

Como vimos na parte II, o problema histórico da administração públicano Brasil não é o excesso de controle e centralização administrativa, mas,ao contrário, a incapacidade do governo central em coordenar de formacontínua e consistente as ações de uma burocracia fragmentada e hetero-gênea. Era esse o problema central que o governo Fernando HenriqueCardoso tinha de enfrentar, tanto do ponto de vista fiscal como gerencial.Assim, não se tratava de um “dilema do controle”, e sim, a coordenaçãode uma complexa agenda de reformas: consolidar o ajuste fiscal, atravésda introdução de instrumentos de planejamento, orçamento, gestão econtrole; concluir a profissionalização da administração pública, estruturandoas carreiras, especialmente nos níveis gerenciais, introduzindo simultane-amente mecanismos mais eficientes e eficazes de gestão.

A complexidade dessa agenda exigia do governo uma elevada capaci-dade de coordenação interministerial, além da cooperação “espontânea”da burocracia. A construção dessa capacidade dependia não apenas devontade política, mas de condições políticas e administrativas favoráveis.

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Um estudo comparado (JANN e REICHARD, 2002) sobre os “países re-formistas” conclui que:

“em quase todos os casos as reformas parecem ser mais bem-sucedi-das se forem coordenadas e implementadas por atores centrais relevan-tes, isto é, em geral pelos ministérios da área financeira ou, ainda melhor,pelo governo central. Uma estratégia clara de reforma e comunicação,que demonstre aos participantes e observadores que a modernizaçãoadministrativa é prioritária na agenda política e que atores políticos rele-vantes se importam com ela... Mas isso obviamente não vale para todosos países, e nem é uma estratégia facilmente transferível para a Alema-nha, com seu sistema político-administrativo altamente fragmentado,legalista e voltado para o consenso” (JANN e REICHARD, 2002: 31).

Assim, constatar que a necessidade de ajuste fiscal subordinou todo oresto da agenda de reformas é importante, mas não suficiente. Em todosos casos o problema central das reformas sempre foi o de coordenarredução de gastos e mudanças institucionais, porém, em cada caso, al-gum tipo de “equilíbrio”, sempre instável, foi alcançado. O importante écompreender a estrutura de incentivos e constrangimentos à mudança decada sistema político.

Uma resposta a essa questão, no caso brasileiro, implica a análise dareforma sob duas perspectivas complementares. Em primeiro lugar, dis-cuto o papel da reforma do Estado no programa de governo e a trajetóriado órgão encarregado de executá-lo durante o primeiro mandato, o MARE(1995-1998), e faço um balanço da implementação das três principaispropostas de reforma institucional contidas no Plano Diretor: areestruturação do núcleo estratégico, especialmente, o Programa deReestruturação e Qualidade; a criação de agências executivas e de orga-nizações sociais. Em segundo, procuro explicar as razões da extinção doMARE, sua substituição pela SEGES (Secretaria de Gestão do Ministériodo Planejamento, Orçamento e Gestão) e as conseqüências dadescontinuidade administrativa para a dinâmica institucional da reformaao longo do segundo mandato (1999-2002).

As condições institucionais para a implementação de mudanças estru-turais na Administração Pública Federal durante os dois mandatos deFernando Henrique Cardoso foram em geral bastante favoráveis. Apoiadono sucesso do Plano Real, FHC pôde montar uma grande coalizão eleito-ral e de governo. Isto explica a grande estabilidade da base política dogoverno no Congresso, fato inédito em nossa história. Além disso, o

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Executivo contou com grande apoio na opinião pública e prestígio inter-nacional. Aproveitando-se do amplo consenso em torno da necessidadede combater a inflação, o presidente teve condições de iniciar uma am-pla reforma do Estado.

Em parte, essa agenda era a mesma que Collor tentou implementar, noentanto, o novo presidente iniciou seu primeiro período de governo comuma grande vantagem: a inflação, variável crítica do ajuste fiscal, já esta-va sob controle. Partindo dessa base superior, Fernando Henrique tinhacondições institucionais para ampliar seu escopo de ação. A agenda deCollor, baseada no desmonte do Estado, foi substituída por uma agendade reestruturação do Estado. Para além da concepção da primeira rodadade reformas - como a abertura comercial e a privatização - incluiu-se acriação de um setor regulador para os serviços públicos concedidos àiniciativa privada e um processo de requalificação da administração pú-blica.

No entanto, quando Fernando Henrique Cardoso tomou posse, emjaneiro de 1995, não havia uma percepção clara do escopo da reformaadministrativa. O próprio programa de governo não tratou este temacomo prioritário. A meta principal do governo era o ajuste fiscal, visandoà manutenção da inflação em níveis baixos. Esse talvez tenha sido oprincipal obstáculo enfrentado pelas reformas propostas por Bresser. Omaior compromisso do governo Fernando Henrique, desde suas origens,sempre foi com a manutenção a qualquer custo do Plano Real.

Além disso, o futuro ministro Bresser não pertencia ao núcleo centraldo governo. Foi incorporado tardiamente sem que tivesse qualquer pro-grama consolidado para a reforma do Estado. O desenho do Plano Diretorda Reforma do Aparelho de Estado foi concluído durante o primeiro anoe foi recebido pela equipe econômica com certa frieza e desconfiança,apesar do esforço de Bresser para demonstrar que sua proposta não eraincompatível com o esforço de ajuste fiscal, mas sim complementar a ele.

Em resumo, a estratégia de reforma institucional de Bresser foi construídapor fora do núcleo do governo e sua concepção não se enquadravafacilmente nas linhas de ação prioritárias. As medidas mais importantesdo primeiro mês da nova administração apontavam para o fortalecimentoda capacidade de controle e coordenação dos órgãos centrais sobre mi-nistérios e autarquias e, em última análise, buscavam dotar o Executivode instrumentos administrativos para aprofundar e consolidar o ajustefiscal.

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A primeira medida do novo governo (Medida Provisória 813 de 1º dejaneiro de 1995), que reorganizou a Presidência e os ministérios, visouprincipalmente ao fortalecimento da capacidade de controle e coordena-ção dos órgãos da Presidência sobre os ministérios.

O papel de coordenação e a integração das ações governamentais, asrelações com o Congresso Nacional, com os demais níveis da Administra-ção Pública e com a sociedade couberam à Casa Civil da Presidência daRepública. A Secretaria Geral, também saiu fortalecida, pois foi encarre-gada da coordenação interna dos órgãos da Presidência. A Secretaria deAssuntos Estratégicos também teve fortalecidas suas atribuições de “pro-mover estudos, elaborar, coordenar e controlar planos, programas e pro-jetos de natureza estratégica (...), inclusive no tocante a informações e aomacrozoneamento geopolítico e econômico, assim como assessorar oConselho de Defesa Nacional”.

Além disso, foi reforçado o papel do Conselho de Governo, responsá-vel por assessorar o presidente na formulação de diretrizes da ação go-vernamental, composto pelos titulares dos órgãos essenciais da Presidên-cia da República. O Conselho passava a contar com uma estrutura deformulação de políticas interministeriais: as Câmaras de políticas setoriais(regionais, sociais, econômicas), compostas pelos Ministros das áreas en-volvidas e presididas pelo Ministro da Casa Civil. Cada Câmara teria umórgão operacional, o Comitê Executivo, integrado pelos Secretários-Exe-cutivos dos Ministérios envolvidos e pelo Subchefe-Executivo da CasaCivil da Presidência da República. Apenas os Ministros da Fazenda e doPlanejamento e Orçamento participavam de todas as Câmaras.

Outras medidas reforçaram a estrutura de coordenação e controle daPresidência, como a transformação dos secretários-executivos em ele-mentos de ligação informal entre a Presidência da República e os minis-térios e, finalmente, a organização de sistemas de controle interno e deplanejamento e orçamento, sob o controle dos Ministérios da Fazenda edo Planejamento e Orçamento (MP 839, de 19.01.1995)4.

O fortalecimento da capacidade de coordenação e controle dos órgãoscentrais da Presidência da República procurava também contrabalançar

4 Esses controles sistêmicos seriam consolidados na Lei 10.180 de 6 de fevereiro de 2001.

Organiza e disciplina os Sistemas de Planejamento e de Orçamento Federal, de AdministraçãoFinanceira Federal, de Contabilidade Federal e de Controle Interno do Poder Executivo Federal, e dáoutras providências.

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tendências centrífugas resultantes da distribuição de parte dos ministériosentre os partidos do bloco governista.

Dessa perspectiva, no entanto, a transformação da Secretaria da Admi-nistração Federal (SAF) no Ministério da Administração e Reforma doEstado (MARE), mostrava que a reforma não era uma prioridade governa-mental. Como órgão responsável por atividades-meio, o MARE não pos-suía densidade própria, não representava interesses sociais relevantes,não atraía a atenção da opinião pública e, pelo contrário, tendia a enfren-tar resistências generalizadas da burocracia federal, especialmente nosministérios maiores, ciosos de sua autonomia. Sem a vinculação direta àPresidência da República, o MARE seria apenas um pequeno ministériosem recursos, procurando definir seu lugar entre os cerca de vinte minis-térios.

Apenas a competência e o dinamismo de Bresser permitiram superar,temporariamente, os limites impostos pela situação marginal do MARE eda reforma administrativa dentro do governo. Ao longo de todo o ano de1995, Bresser lutou para incorporar a reforma entre as prioridades daagenda, promovendo seminários internacionais, debatendo, escrevendoou dando entrevistas.

Em sua estratégia argumentativa, a reforma administrativa seria umelemento essencial de mediação entre o ajuste fiscal e o novo modelo dedesenvolvimento econômico, baseado num aparelho de Estadoreestruturado, ágil, flexível, capaz de articular desenvolvimento econô-mico e social, mercado e sociedade civil. Para concretizar essa transfor-mação, Bresser propunha:

a) a flexibilização da Administração através de uma reforma constituci-onal e da criação de novas organizações mais autônomas e eficazes;

b) a descentralização dos serviços sociais do Estado através das organi-zações sociais;

c) e a profissionalização dos administradores públicos, estruturandocarreiras de médio e alto administradores com perfis generalistas paraocuparem todos os Ministérios.

Apesar da capacidade empreendedora de Bresser, ele não conseguiucontrolar um espaço decisório imprescindível para o sucesso da reforma.A Câmara de Reforma do Estado (criada através do decreto n.º 1526/95),órgão responsável pela definição das diretrizes da reforma, era controla-da pelo Ministro-Chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho. Isto explica, emparte, a adoção de um Plano Diretor como instrumento orientador das

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reformas, e não uma Lei Orgânica da Administração Pública ou um con-junto de decretos. Essas duas alternativas poderiam ser bloqueadas dentroda Câmara de Reforma do Estado. O Plano Diretor, aprovado pela CRE,representava uma “carta de crédito” a Bresser que teria de lutar paratorná-lo operacional.

Vejamos como se desenvolveram as principais linhas de ação do MAREao longo de primeiro mandato (1995-1998).

IV - DA REFORMA INSTITUCIONAL À REFORMA GERENCIAL: A TRAJETÓRIA INCERTA

DO PLANO DIRETOR

O diagnóstico do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado eraque a Administração Pública Federal encontrava-se numa acentuada de-cadência institucional devido ao esgotamento do modelo burocrático, agra-vado pela crise fiscal provocada pelo Estado Desenvolvimentista. Assim,a única estratégia social e politicamente viável para a superação da criseera articular o ajuste fiscal, inescapável, com uma profunda reconfiguraçãoda burocracia federal.

Deste modo, o Plano Diretor propunha, simultaneamente, a reorgani-zação das estruturas e da forma de gestão do Aparelho de Estado. Reco-nhecendo a heterogeneidade do setor público, as ações do Plano Diretoreram orientadas pelos seguintes objetivos:

1- Fortalecer o núcleo estratégico: neste setor deveriam ser mantidas emesmo fortalecidas as características básicas da administração burocráti-ca, visando ao resgate da sua capacidade formuladora, reguladora e ava-liadora em relação às políticas públicas, além da incorporação de novosinstrumentos - a exemplo dos contratos de gestão - para o aprimoramentodo controle e da avaliação sobre as outras entidades estatais.

2. Revitalizar as autarquias e fundações, na forma de Agências: nosetor de atividades exclusivas de Estado, deveriam ser introduzidas asAgências como novo modelo institucional, na forma de Agências Executi-vas e Agências Reguladoras, que revitalizariam as autarquias e funda-ções, resgatando a sua autonomia administrativa e assimilando novos ins-trumentos e mecanismos de gestão voltados para a administração gerencial,por meio da introdução da avaliação de desempenho, do controle porresultados, da busca da satisfação do usuário e do controle de custos.

3. Publicizar as atividades não-exclusivas de Estado: no setor de ativi-dades não-exclusivas de Estado, deveriam ser disseminadas as Organiza-

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ções Sociais, como forma de propriedade pública não-estatal, nas quais asociedade, mediante conselhos, administraria serviços cuja relevância so-cial não recomenda a sua privatização estrita e torna indispensável oaporte de recursos orçamentários e de bens e equipamentos pelo Estado.

4. Privatizar a produção de bens e serviços para o mercado: em rela-ção a este setor, a produção deveria ser em princípio realizada pelo setorprivado, com base no pressuposto de que as empresas serão mais efici-entes se controladas pelo mercado e administradas privadamente, caben-do ao Estado um papel regulador e transferidor de recursos, e não deexecução.

A cada uma das metas propostas correspondia uma linha de atuaçãodo Ministério: a primeira resultou no Programa de Reestruturação e Qua-lidade (PRQ), voltado para a qualificação dos ministérios para o exercíciodo seu papel formulador de políticas; o segundo, nos projetos de qualifi-cação de autarquias e fundações como Agências Executivas (decretos2487 e 2488 ambos de fevereiro de 1998), o terceiro, na criação dasOrganizações Sociais, que ganharam estatuto legal com a lei 9.637/98; ea última linha de ação foi incorporada para reforçar a associação entre areforma institucional e o esforço de redução dos gastos, pois era controla-da pela área econômica do governo.

Esta proposta era convergente com os objetivos do Decreto Lei 200/67, já que também procurava distinguir as funções de formulação e su-pervisão, que ficariam, respectivamente, a cargo do núcleo estratégico edas Agências Executivas e Organizações Sociais. A grande diferença es-tava na concepção gerencial do Plano Diretor, que buscava fortalecer acapacidade de controle dos órgãos superiores apoiando-se nacontratualização das atividades governamentais. O contrato de gestão é oprincipal instrumento de implementação da Nova Gestão Pública e fun-damenta-se na avaliação de desempenho baseada em metas e indicado-res previamente definidos.

Embora a concepção geral do Plano Diretor fosse clara, a suaimplementação não dependia apenas da capacidade empreendedora doministro Bresser ou da eficácia operacional do MARE. Devido à sua posi-ção marginal em relação ao núcleo governamental e ao pequeno peso doMARE no conjunto dos ministérios, o sucesso do Plano dependia da “boavontade” desses atores. Em termos concretos, era preciso convencer onúcleo “duro” do governo da compatibilidade entre as mudanças propos-tas e o ajuste fiscal e, ao mesmo tempo, encontrar ministérios dispostos a

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servir como “cobaia” para os seus programas e assim comprovar a viabi-lidade da reforma. Na verdade, as duas estratégias estavam fortementevinculadas, pois na medida em que fosse bem sucedido na implementaçãodos programas, ganharia a confiança dos órgãos centrais.

A primeira parte da estratégia foi relativamente bem sucedida enquan-to esteve associada à reorganização da macroestrutura governamental,implementada através da MP no. 813 de janeiro de 19955. No entanto, oobjetivo da Medida Provisória, no que se refere aos ministérios, era aredução de custos e a racionalização de estruturas ministeriais limitando-se a propor a fusão, a extinção e a privatização de órgãos. Logo tornar-se-ia evidente que o desenho da reforma institucional proposta por Bresseria muito além da racionalização administrativa.

V - O PROGRAMA DE REESTRUTURAÇÃO DOS MINISTÉRIOS: AVANÇOS E OBSTÁCULOS

A concepção do Programa de Reestruturação e Qualidade dos Ministérios(PRQ) era bastante ambiciosa. Lançado em 1997 dentro do Programa deModernização do Poder Executivo Federal (PMPEF), que contava comfinanciamento do BID, o PRQ era complementado por dois outros pro-gramas voltados para a racionalização de gastos e dos serviços adminis-trativos dos ministérios nos estados6.

A principal qualidade do PRQ era associar as reformas institucional egerencial a uma preocupação permanente com a redução dos custosoperacionais da burocracia federal. Mas, por isso mesmo, ele implicavaem profundas alterações na estrutura organizacional dos ministérios. Umbreve resumo dos procedimentos previstos para a implementação doprograma ajuda a perceber as a razão das resistências que teria de en-frentar.

O programa deveria funcionar de forma voluntária, mas uma vez inici-ada a sua implementação, havia uma série de procedimentos obrigatóri-os. A principal etapa era a reavaliação crítica do papel do ministério,tendo como marcos referenciais a legislação, as concepções do Plano

5 Consolidada, posteriormente, na Lei 9.649 de 27 de maio de1998.

6 O primeiro Programa de Apuração de Gastos Governamentais (Contabilidade Gerencial), tinha

como objetivo introduzir a apuração de custos das atividades/programas/projetos dos órgãos e enti-dades do Governo Federal. O segundo, denominado Programa de Racionalização das UnidadesDescentralizadas do Governo Federal, visava à racionalização da ação governamental e das ativida-des administrativas nos estados (delegacias dos Ministérios nos estados).

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Diretor, o orçamento e os programas governamentais relacionados comas atividades do órgão. A redefinição da situação do Ministério dentro daestrutura legal e administrativa do Governo Federal poderia implicar trans-ferência de funções para outros níveis de governo, para outros ministéri-os, para entidades vinculadas ou mesmo a simples eliminação de fun-ções. Apenas a partir daí seria possível discutir o planejamento estratégi-co do ministério, enfocando sua missão, a visão de futuro e os objetivosestratégicos.

Essas definições gerais orientariam o desenvolvimento dos aspectosoperacionais do programa, como a identificação de macroprocessos setoriaisdentro dos quais deveria atuar o Ministério. Um refinamento importantedessa etapa seria a proposta de arranjo institucional do setor, isto é, quaisfunções deveriam ser exercidas pelo Governo Federal e quais tipos deorganização seriam mais adequados para cada uma destas funções. Combase nessas macrodefinições, seria possível desdobrar os macroprocessosem processos de cada organização, chegando-se a uma definição preli-minar da estrutura organizacional, das necessidades de recursos huma-nos, assim como das propostas de melhoria de gestão. Finalmente, essasorientações de mudança deveriam ser consolidadas num Plano deReestruturação e Melhoria da Gestão dos Ministérios, contendo metas eindicadores que pudessem ser avaliados7.

A principal característica do programa era sua coerência com as dire-trizes do Plano Diretor e seu potencial de impacto sobre a organização dosetor público federal. Além disso, ele integrava de forma explícita areestruturação dos ministérios com os novos modelos organizacionais pro-postos pelo ideário de Bresser: as Agências Executivas e as Organiza-ções Sociais. Essas mudanças na macroestrutura eram coerentes, ainda,com a concentração das funções de formulação e supervisão nos ministé-rios, enquanto Agências e Organizações Sociais ficariam encarregadas daimplementação das políticas. O elo entre ministérios e agências e organi-zações sociais seriam os contratos de gestão, que definiriam metas dedesempenho e indicadores de qualidade e que poderiam ser acompanha-dos e cobrados não apenas pelo órgão supervisor, mas por ONGs e pelaimprensa.

Apesar do caráter voluntário do Programa, o MARE sabia que teria dese mobilizar para incentivar adesões. Para quebrar resistências generali-

7 Programa de Reestruturação e Qualidade dos Ministérios, Cadernos do MARE 12, Brasília, 1998.

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zadas às profundas mudanças propostas era preciso conseguir implementa-lo em ministérios importantes. Cinco foram os Ministérios que, em princí-pio, aderiram: além do próprio MARE, os da Saúde, do Trabalho, daAgricultura e dos Transporte. Outros foram procurados, mas recusaram o“convite”.

Um balanço do Programa até o final do primeiro mandato, quando oMARE foi extinto, mostra as dificuldades de se introduzir mudanças estru-turais na administração pública. De todos os ministérios envolvidos naprimeira fase do Programa, apenas o próprio MARE concluiu suaimplementação! É certo que a experiência não foi inútil, resultando emaprendizado para as equipes do MARE e algumas iniciativas isoladas demodernização nos ministérios participantes. No entanto, do ponto devista da consolidação do Programa de Reestruturação e Qualidade, pilarbásico da reforma, os resultados foram desastrosos.

Um dos problemas que afetou a consolidação do PRQ foi adescontinuidade administrativa resultante de mudanças nos escalões su-periores e que, geralmente, atingem também as funções gerenciais. Essefoi o caso em dois ministérios importantes, Saúde e Trabalho, onde amudança de ministros afetou a continuidade do Programa. O próprioMARE, posteriormente, seria vítima desse problema grave na administra-ção pública brasileira.

Os outros dois Ministérios, dos Transportes e de Minas e Energia, quesimplesmente não aderiram ao Programa, seriam dois importantes exem-plos da viabilidade do Programa. Os dois estavam passando por importan-tes mudanças em função do programa de privatização e seriam ótimosmodelos (benchmarks) da reestruturação organizacional proposta pelo MARE.

Esses exemplos deixam claro que sem o suporte político da Presidên-cia da República o Programa não sairia do papel. O aperfeiçoamento dacoordenação interministerial foi uma das prioridades na reorganizaçãoadministrativa no início do governo. No entanto, isto não eliminava osconflitos entre o núcleo presidencial, responsável pela coordenação, e osMinistérios. Obviamente, o Programa de Reestruturação e Qualidade dosMinistérios não poderia ser gerido como uma política setorial entre outras.

A partir de 1997/1998, as dificuldades de implementação do Progra-ma levaram o MARE a um recuo estratégico. Em vez de tentar implementarreformas setoriais, envolvendo ministérios e órgãos vinculados, passou aatuar de forma segmentada e reativa, atendendo a demandas pontuais.Afinal, era mais fácil alterar os métodos de gestão sem alterar a

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macroestrutura, pois, nesse caso, o processo de mudança se mantinhasobre o controle da burocracia do órgão a ser reformado. Modificaçõesque afetam simultaneamente a estrutura organizacional e os métodos degestão só têm sucesso quando conquistam o consenso da burocracia emtorno das medidas propostas e estão apoiadas numa clara linha de co-mando e legitimidade dos órgãos responsáveis pela sua implementação.

A perda de dinamismo da reforma foi inevitável, pois o fracasso doPRQ resultou na fragmentação das linhas de ação do Ministério, eliminan-do a sinergia entre os novos modelos organizacionais propostos. Na con-cepção original, a reorganização de cada Ministério resultaria necessaria-mente num “plano diretor” setorial, dentro do qual seriam definidos quaisdos novos formatos organizacionais seriam mais adequados às novas fun-ções das entidades vinculadas. A viabilidade do modelo de AgênciasExecutivas e Organizações Sociais dependia em grande medida do su-cesso da reestruturação dos ministérios.

A partir desse momento, a reforma desenvolveu-se em linhas de açãoparalelas e descoordenadas. A Secretaria de Reforma do Estado do MAREcontinuou oferecendo assessoria a ministérios e órgãos, mas restringiusua atuação a projetos de revisão de processos administrativos e medidaspontuais de reorganização.

O caso mais importante nessa fase foi a inclusão da Presidência daRepública no programa de reestruturação. Apesar de positivos, os resul-tados não parecem ter alcançado repercussão além dos limites da Presi-dência da República. A situação é paradoxal, pois os dois órgãos quepassaram por reorganizações profundas, a Presidência e o MARE, pareci-am ter visões bastante distantes com relação aos caminhos da reforma.De novo, problemas de coordenação política estavam na origem daslimitações impostas a uma reforma de amplo escopo.

As outras duas linhas de reforma institucional, sem o suporte do PRQ,seguiram trajetórias incertas, extremamente dependentes do interesse deministérios e autarquias isolados. O projeto das Agências Executivas, alémda necessidade de aperfeiçoamento institucional, sofreu uma inesperadaconcorrência por parte do modelo de Agências Reguladoras. O modelode Organizações Sociais teve uma trajetória paradoxal, pois, se de umlado foi fortemente questionada por uma Ação de Inconstitucionalidade(Adin) da oposição, por outro, avançou mais porque foi implementado,de forma independente, pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e doMeio Ambiente. Vejamos um breve balanço das duas linhas de ação.

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VI - AS AGÊNCIAS EXECUTIVAS

A maior inovação do PDRAE eram as Agências Executivas. Inspiradas nomodelo britânico do Next Steps, elas seriam as “cabeças-de-ponte” donovo desenho organizacional da administração pública. Por um lado, seri-am autônomas, ágeis e flexíveis, fornecendo as condições institucionaispara o desenvolvimento da nova cultura gerencial proposta pelo PlanoDiretor. Por outro, seriam controladas de forma precisa e objetiva porcontratos de gestão que definiriam a missão de cada Agência, seus obje-tivos de médio e longo prazo, assim como os critérios de avaliação dodesempenho. Seus diretores, espécie de CEOs do setor público, seriamos responsáveis frente aos ministérios pelo cumprimento dos contratos.

No entanto, entre 1996 e 2002, apenas uma Agência Executiva, oINMETRO, foi instituída. Num período pouco maior (1988-1997) foramcriadas quase 140 agências next steps, envolvendo mais de 70% do CivilService britânico (HOGWOOD, 1999). Antes de desqualificar a compara-ção, lembro que os ministérios britânicos têm uma longa tradição decentralização e que mais de 40 dessas agências eram órgãos do Ministé-rio da Defesa. Mesmo se nos limitarmos a uma comparação com o de-sempenho das agências reguladoras no Brasil, a diferença continua sendomuito grande. Isto não somente pelo número de Agências criadas nomesmo período, mas pela relevância dos setores que elas procuram re-gular: telecomunicações (ANATEL), petróleo (ANP), energia elétrica(ANEEL), vigilância sanitária (ANVISA), saúde complementar (ANS), Águas(ANA), transportes terrestres e aquáticos (ANTT e ANTAQ).

Não se trata, obviamente, de propor a aplicação do modelo das Agên-cias Reguladoras ao resto do setor público. Mas é preciso reconhecer queo sucesso do modelo reside na simplicidade do formato e clareza deobjetivos e, principalmente, na autonomia financeira. O relativo sucessodas primeiras Agências (ANEEL, ANATEL e ANP) atraiu o interesse dosdemais ministérios. As seguintes (ANVISA e ANS) abriram o caminhopara a criação de Agências Reguladoras em diversas áreas nas quais nãoestava claro se haveria a necessidade de um marco regulatório.

Outros tipos de Agência, não previstos no Plano Diretor, também sedesenvolveram a partir do modelo das Reguladoras: as de fomento, comoa ADENE (Agência de Desenvolvimento do Nordeste), a ADA (Agênciade Desenvolvimento da Amazônia), criadas para substituir a SUDENE e aSUDAM e a ANCINE (Agência Nacional de Cinema), criada para apoiar o

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desenvolvimento da indústria cinematográfica; e as Agências especiais,como a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e a AEB (AgênciaEspacial Brasileira), inspiradas na experiência norte-americana.

O problema é que o modelo das Agências Reguladoras não pode serutilizado como substituto generalizado das Agências Executivas. Estasvisam a revitalizar autarquias, fundações e empresas que perderam suaautonomia e seu foco operacional, por terem sido reabsorvidas em partepela administração direta a partir da Constituição de 1988. Além disso,muitas secretarias nos ministérios executam funções que poderiam sertransferidas para Agências. Não se pode imaginar que todas essas ativida-des sejam adequadamente executadas dentro de um modelo de autonomiapensado para a regulação de atividades sob o risco de monopolização.

Embora o crescimento imprevisto de agências autônomas possa serinterpretado como um sinal de dinamismo na administração pública, afalta de coordenação e, principalmente, a falta de uma concepção maisabrangente de regulação, colocam questões que precisam ser respondi-das. A mais importante refere-se às condições efetivas de autonomia dasagências, tanto em relação ao governo como em relação aos interesseseconômicos a serem regulados. A marginalização da ANEEL durante arecente crise energética e a situação delicada em que se encontra aANATEL diante da crítica situação financeira das empresas de telecomu-nicações, mostram que não se trata de riscos hipotéticos.

Além da rápida difusão das Agências Reguladoras, o MARE encontroumuitas dificuldades para definir as bases legais para a criação das Agênci-as Executivas. Somente no início de 1998, através de dois decretos (2.487e 2.488), foram definidos os critérios para elaboração e avaliação doscontratos de gestão e os procedimentos para qualificar autarquias e fun-dações públicas como Agências Executivas. Na verdade, as difíceis nego-ciações para a criação da primeira agência mostraram que ainda persisti-am muitas dúvidas a respeito do modelo.

O principal ponto de conflito era a regularidade na transferência derecursos para a Agência Executiva por parte do Ministério da Fazenda.Ora, sem o controle do seu orçamento, a autonomia seria mera formalida-de. Talvez esta seja a principal diferença entre os dois modelos. AsAgências Reguladoras possuem uma base regular e independente definanciamento, baseada na cobrança de taxas dos setores regulados. En-quanto isso, as Agências Executivas, assim como as velhas autarquias efundações, estão sujeitas ao contingenciamento. Quando atentamos para

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o fato de que o controle do repasse de recursos é um dos principaisinstrumentos de atuação da área econômica, começamos a entender aprincipal razão para a diferença de desempenho entre os dois modelos.

Enfim, o fracasso na criação de um novo modelo organizacional para aadministração indireta aponta para uma questão central na dinâmicainstitucional da reforma administrativa no Brasil. A heterogeneidade e afragmentação do setor público, além da trajetória histórica de descontrolefinanceiro e administrativo, consolidaram comportamentos “defensivos”nos órgãos centrais, especialmente no Ministério da Fazenda. Os princi-pais meios de controle tornaram-se os cortes lineares de despesa e aadministração na “boca do caixa”. Deste modo, todo tipo de autonomiainstitucional que requisite autonomia financeira é vista com ressalvaspelos “guardiões do cofre”.

O caso das Agências Executivas é exemplar dessa dinâmica, pois, aomesmo tempo em que impedem mudanças amplas na estruturaorganizacional, os controles ad hoc impostos pelos órgãos centrais nãosão capazes de impedir alterações pontuais, não planejadas, que aumen-tam a fragmentação e a heterogeneidade do setor público.

VII - ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

As Organizações Sociais (OS) são um modelo institucional para o setor deatividades não-exclusivas do Estado. Instituições híbridas entre Estado esociedade, voltadas à prestação de serviços na área social, as OS seriamcriadas através da extinção de entidades públicas e subseqüente absorçãode suas atividades por entidade pública não-estatal.

A Lei no. 9637, de 15 de maio de 1998, estabeleceu o marco legal dasOrganizações Sociais, definindo suas áreas de atuação: ensino, pesquisacientífica, desenvolvimento tecnológico, preservação e proteção do meioambiente, cultura e saúde. As OS podem administrar as instalações eequipamentos dos órgãos e entidades extintos e receber recursos orça-mentários para a execução de atividades acordadas em contrato de ges-tão com o Ministério supervisor, na sua área de atuação.

Atualmente, estão em funcionamento as seguintes OS: a AssociaçãoBrasileira de Tecnologia de Luz Síncroton (ABTluS), a Associação deComunicação Educativa Roquete Pinto (ACERP), a Associação Brasileirapara o uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (BIOAMAZÔNIA),a Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), o Instituto de

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Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) e o Instituto de Matemá-tica Pura e Aplicada (IMPA).

Embora em menor escala, o modelo das Organizações Sociais tambémenfrentou muitas dificuldades para se consolidar como alternativa de ges-tão de atividades públicas não estatais. O maior problema era a ambigüi-dade do processo de “publicização”. Afinal de contas, tratava-se de trans-ferir a gestão de instituições públicas para grupos da sociedade civil oude apoiar de forma sistemática a criação de organizações da sociedadecivil para a gestão de atividades científicas, educacionais, artísticas emédicas? No primeiro caso, teríamos uma tentativa de retomada domodelo original das fundações; no segundo, uma transferência efetivada titularidade do Estado para a sociedade civil, com menor grau decontrole.

A indefinição quanto aos fundamentos do modelo representou meno-res obstáculos para a implantação de OS por duas razões específicas:num caso, pelo interesse do Ministério das Comunicações em se livrar deuma instituição problemática, a TVE do Rio (Fundação Roquette Pinto) e,no outro, pela maior proximidade do modelo OS com a tradição deautonomia de gestão das instituições científicas subordinadas ao Ministé-rio da Ciência e Tecnologia. De fato, somente a diferença de “culturaburocrática” pode explicar porque várias instituições científicas vincula-das ao MCT tornaram-se OS - ABTluS, IMPA, RNP, Mamirauá e Bioamazônia-, enquanto as universidades e escolas/colégios técnicos e agrícolas, vin-culados ao Ministério da Educação, mobilizaram-se fortemente contra a“publicização”.

O que fica claro no caso das OS é que os ministérios são agentesestratégicos para a implantação do modelo. Não se trata, na verdade, deuma escolha doutrinária entre um formato mais ou menos comunitário,mas da adequação do arranjo em relação ao tipo de atividade exercidapela instituição e os vínculos que existem com a sociedade civil e ogoverno. Na área de ciência e tecnologia existe uma tradição de autono-mia operacional das instituições de pesquisa e uma rede de relações comagências de fomento, redes de associações profissionais e, em algunscasos, com o próprio mercado.

Em outros setores existe autonomia, mas nenhum tipo de relaçãoinstitucionalizada com redes informais de suporte na sociedade civil ouno mercado - é o caso das universidades e escolas técnicas. Nestesúltimos, a conversão para o modelo OS implicaria num risco de isolamen-

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to e decadência institucional, a não ser que esses órgãos realizassemgrandes mudanças organizacionais e culturais.

Por fim, a maior parte das fundações vinculadas ao setor público éinteiramente dependente dos recursos federais, são operadas por servi-dores públicos e mantém relações pouco institucionalizadas com organi-zações da sociedade civil. Neste contexto, não existem incentivos para atransformação em OS, a não ser que o governo garanta um repasseregular de recursos. Mas, neste caso, a tendência é retornar ao mesmomodelo burocratizado das fundações.

Assim como no caso das Agências Executivas, sem um suporteinstitucional mais amplo, isto é, sem uma coordenação entre as váriaslinhas de ação da reforma institucional, o destino do modelo OS é incerto.Pode se consolidar em determinados ministérios, como parece estar ocor-rendo nos Ministério de Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente; pode,também, se transformar numa “solução” para entidades problemáticas,como aconteceu com a Fundação Roquette Pinto. Contudo, não pareceser uma alternativa para uma vasta rede de entidades cujas atividadesestão identificadas com a “tradição estatal” brasileira, como as universida-des, escolas e colégios técnicos federais, vinculados ao Ministério daEducação. Por outro lado, Museus e fundações ligadas ao Ministério daCultura seriam candidatas “naturais” à transformação em OS.

VIII - A REFORMA ADMINISTRATIVA NO SEGUNDO MANDATO: O DIFÍCIL RECOMEÇO

O período de transição entre o primeiro e o segundo mandato de FernandoHenrique Cardoso foi caracterizado por muitas mudanças no nível minis-terial. A mais importante no que se refere à reforma administrativa foi aextinção do MARE.

Embora possa ser interpretada como uma clara derrota da concepçãode reforma institucional defendida por Bresser, o próprio ex-ministroconsiderou o fato uma decorrência “natural” da fragilidade do MAREfrente à extensão de sua missão. Certamente, a decisão de alocar a gestãoadministrativa e de pessoal em outro Ministério, e não numa secretariavinculada à Presidência da República, reduziu as chances de sucesso dareforma. Pior: a decisão de incorporar as secretarias do MARE ao Ministé-rio do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) não pode ser conside-rada um sinal de valorização do Plano Diretor.

A forma como o MARE foi desmembrado e incorporado ao MPOG

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mostra que se tratava de subordinar a concepção de reforma institucional,consubstanciada no Plano Diretor, à visão pragmática das áreas de plane-jamento e orçamento. Embora o Plano Diretor não separasse as duasdimensões, o simples fato de enfatizar a sinergia entre as reformasinstitucionais e gerenciais situava-o em rota de colisão com a concepçãodominante no Ministério do Planejamento e Orçamento, expressa clara-mente no conceito de “Gestão Pública Empreendedora”. Essa concepçãoera marcada pela preocupação com as deficiências da gestão orçamentá-ria. Para os dirigentes da área, todo os problemas do setor público seresolveriam através da difusão de uma concepção de gestão públicaorientada por programas e metas.

Estas diferenças ficaram claras no momento de alocação das antigassecretarias do ex-MARE. Enquanto as secretarias “operacionais” dePatrimônio, Recursos Humanos e Logística e Tecnologia da Informaçãoficaram subordinadas à recém criada Secretaria de Estado da Administra-ção e Patrimônio (SEAP), sob o comando da ex-Secretária-Executiva doMARE, Cláudia Costin, a estratégica Secretaria de Reforma do Estado foiimediatamente incorporada à Secretaria de Gestão (MARTINS, 2002).

Neste novo contexto, perdeu-se o dinamismo da reforma. Além dasperdas resultantes da saída das principais lideranças associadas à re-forma e do rebaixamento de nível hierárquico, houve também a perdade memória administrativa, conhecimento e experiência acumuladospelas equipes anteriores, assim como a diminuição drástica de sinergiaentre a secretaria formuladora (SRE) e as secretarias operacionais.Tudo isso pode ser contabilizado como conseqüência da extinção doMARE.

A posterior desmontagem da SEAP e subordinação direta das secretari-as originárias do MARE à Secretaria Executiva do MPOG foi o ponto maisbaixo na trajetória da reforma administrativa. Ao longo do período deindefinição e isolamento da SEGES dentro do Ministério, que durou atémeados de 2001, a reforma prosseguiu basicamente em duas linhas para-lelas. De um lado, o Programa de Gestão Pública Empreendedora tornou-se a marca registrada da reforma e o Plano Diretor foi deslocado para umplano secundário. A PGPE procurava basicamente adaptar a organizaçãodos ministérios à estrutura matricial do PPA. Tudo girava em torno daeficiência operacional e da autonomia dos gerentes responsáveis pelosprojetos do Avança Brasil (depois, Brasil em Ação). A segunda linha deatuação da SEGES resumia-se a atender as solicitações dos ministérios

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para autorização de mudanças administrativas sobre as quais o órgãotinha pouco o que dizer.

Neste momento, as concepções do Plano Diretor, sintetizadas no Pro-grama de Reestruturação e Qualidade dos Ministérios, e a do Programade Gestão Pública Empreendedora, pareciam antagônicas. A cultura “em-preendedora” permeou todas as linhas de atuação do antigo MARE, privi-legiando as ações de caráter gerencial, especialmente os Programas deDesburocratização e de Qualidade e Produtividade (MARTINS, 2002).

Deste modo, os princípios consolidados no PRQ deram lugar a umaatuação extremamente pragmática da SEGES junto aos ministérios. O focode intervenção foi bastante heterogêneo, o que não deixou de represen-tar acumulação de experiência e conquista de confiança junto aos minis-térios assistidos. Em geral, o objetivo das intervenções nesse período eraa racionalização de processos, visando à maior eficiência dos órgãos jáexistentes. Os casos mais conhecidos foram o DENATRAN - do Ministé-rio da Justiça -, o INCRA - do Ministério do Desenvolvimento Agrário -, oPrograma Bolsa Escola - do Ministério da Educação -, a Secretaria deEstado de Assistência Social (SEAS) - do Ministério da Previdência e As-sistência - e a AGU (Advocacia Geral da União).

Intervenções de caráter estrutural na definição de missão, planejamen-to estratégico e reestruturação organizacional restringiram-se a três Minis-térios: Meio Ambiente, Cultura e Defesa.

No primeiro caso, o foco foi a reorganização das áreas de intervenção, afim de melhorar a integração das ações do Ministério com os demais, asONGs, os estados e municípios. Embora o Meio Ambiente não tenha sidoassistido diretamente, ele incorporou os resultados do planejamento estra-tégico realizado no IBAMA. Isto mostra que a linha de ação “difusionista”adotada pela SEGES pode ter efetividade por meio do efeito demonstração.

No segundo, a proposta de reestruturação buscou aperfeiçoar o focode atuação setorial do Ministério, com ênfase no desenvolvimento demodelos de gestão do patrimônio histórico (IPHAN) e museus.

Finalmente, a intervenção no recém criado Ministério da Defesa, em-bora abrangente, focalizou exclusivamente o Gabinete do Ministro, queherdou as atribuições administrativas do EMFA, deixando de fora as ativi-dades-fins. O diagnóstico da consultoria contratada propôs que as áreasem que se dividia o Gabinete deixassem de executar funções, passandoapenas a gerenciá-las, o que possibilitaria a redução do número de servi-dores, porém ficar-se-ia com os de maior capacitação.

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Elaborou-se, também, um modelo de gestão orientado para resultados,envolvendo, ainda, um projeto de desenvolvimento tecnológico e umamaior interação entre o Gabinete e as outras áreas do Ministério da Defe-sa. Foi proposta um estudo do perfil dos cargos necessários e apontada anecessidade de criação de uma carreira própria. Todos esses objetivosseriam alcançados através de planos de ação continuada, operados pelospróprios servidores do Ministério treinados para isso8.

A partir de meados de 2001, depois de mais uma reorganizaçãoinstitucional da SEGES, iniciou-se um processo de revalorização do PlanoDiretor. Na verdade, a mudança começou com a posse na recém criadaSecretaria-Executiva Adjunta do MPOG, do antigo titular da Secretaria deReforma do Estado, também responsável pelo PRQ. Com esse aliadoimportante, a nova Secretária de Gestão retomou uma discussão sistemá-tica sobre a revisão dos modelos institucionais e sua necessária articula-ção com o programa de requalificação dos ministérios para o exercíciode funções formuladoras e supervisoras.

Ainda nessa linha, a SEGES procurou articular os Programas deDesburocratização, de Qualidade no Serviço Público e de Valorização doServidor ao Programa de Reestruturação e Qualidade, de forma a aumen-tar a sinergia entre as mudanças gerenciais e as organizacionais. Emborasejam poucos os ministérios envolvidos em processos de reestruturação,muitos órgãos estão envolvidos em atividades de reorganização, de defi-nição de foco e de racionalização de procedimentos.

O balanço final das atividades da SEGES, no que diz respeito àreestruturação de organizações, ou criação de novas entidades, baseadasnos modelos organizacionais propostos pelo Plano Diretor, mostra umaconsiderável recuperação do papel pró-ativo do órgão a partir de 2001.A mudança é mais evidente no caso das Agências Reguladoras, nas quaisa participação do órgão era secundária. No total, a SEGES participou dasdiscussões para implantação de quatro novas agências: Agência Nacionalde Águas (ANA), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT),Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e Agência Naci-onal de Cinema (ANCINE). Além disso, continua envolvida na participa-ção de mais duas: Agência Nacional da Concorrência (ANC) e Agência

8 “Novo Modelo de Gestão para a Administração Interna do Ministério da Defesa”. Balanço dos

resultados do projeto desenvolvido pelo Consórcio Booz Allen - Logos, formado pelas empresas BoozAllen & Hamilton do Brasil Consultores Ltda. e Logos Engenharia S.A., realizado entre março de 2000e julho de 2001.

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Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico para o SUS/MS(ANAPSUS).

A Secretaria também atuou no desenvolvimento do modelo de Agên-cias de Fomento, em substituição às Superintendências de Desenvolvi-mento do Nordeste e da Amazônia, que resultou na criação da Agênciade Desenvolvimento do Nordeste (ADENE) e da Agência de Desenvolvi-mento da Amazônia (ADA), além da formatação de uma nova Agência deDesenvolvimento voltada para a Região Centro-Oeste (CENTROESTE).

Outra linha de atuação da SEGES na reforma institucional consistiu nacriação de novas autarquias, como o Departamento Nacional da Infra-Estrutura de Transportes (DENIT) e o Instituto Nacional de Tecnologia daInformação (INTI).

Finalmente, a Secretaria participou na criação das três novas Organiza-ções Sociais vinculadas ao Ministério da Ciência e Tecnologia: o Institutode Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, o Instituto de MatemáticaPura e Aplicada (IMPA) e a Rede Nacional de Pesquisa (RNP). Numa açãomais importante, participou na concepção da segunda Agência Executi-va, a Agência de Prevenção e Controle de Doenças (APEC).

Além da participação no processo de implantação dos novos modelosinstitucionais, a SEGES também reforçou sua atuação na outra dimensãoessencial da reforma: o desenvolvimento e acompanhamento da avalia-ção dos contratos de gestão que devem regular a relação entre os órgãossupervisores e as novas agências. A secretaria atendeu principalmente asOrganizações Sociais - ABTLuS, ACERP, Bioamazônia, IMPA e IDSMamirauá-, mas também participou da comissão de avaliação da única AgênciaExecutiva, o INMETRO.

A estratégia low profile da SEGES parece estar sendo bem sucedidaem difundir alguns aspectos da “cultura gerencial”. Os sinais ainda sãodiscretos e são poucos os casos onde se pode afirmar que está consolida-do um processo auto-sustentado de aperfeiçoamento gerencial; todavia,as barreiras parecem estar caindo. Embora tardia, a mudança de foco naatuação da SEGES representou uma estratégia aparentemente bem suce-dida de integração das dimensões institucional e gerencial da reforma.

A recomposição parcial da concepção do Plano Diretor e a acomoda-ção da reforma institucional num ambiente relativamente hostil foramresultado da rearticulação dos quadros formados na Secretaria de Reformade Estado. Isto mostra a importância de duas características essenciais aosprocessos de mudança institucional: a existência de lideranças compro-

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metidas e competentes e a continuidade administrativa nos níveisgerenciais, o que permite a acumulação de experiência e do aprendizadonecessários à contínua avaliação e correção das estratégias reformistas.Embora a reforma tenha contado com lideranças importantes, adescontinuidade organizacional e de pessoal afetou o andamento da re-forma.

CONCLUSÃO

Ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, o desenhoorganizacional foi discutido e minuciosamente detalhado, resultando emextensa lista de leis, Medidas Provisórias e decretos. O modeloorganizacional proposto pelo Plano Diretor previa uma ampla reestruturaçãoe qualificação das secretarias da Presidência e dos ministérios para cum-prirem suas funções precípuas de formulação, coordenação e supervisãodas ações governamentais, enquanto as Agências (executivas, regulado-ras, de fomento) e as Organizações Sociais seriam criadas para operarpolíticas específicas e desenvolver atividades de interesse público.

No entanto, após oito anos de intensos esforços para aprovar mudan-ças na Constituição e na legislação ordinária e administrativa, não se podedizer que o novo desenho institucional e as novas práticas gerenciaisestejam consolidados no setor público. Além disso, inovações importan-tes, como as Agências Reguladoras e o Programa de Gestão Pública Em-preendedora, que não faziam parte da concepção original do Plano Dire-tor, adquiriram uma dimensão inesperada.

Ainda é cedo para avaliar se o modelo de gestão pública orientada porprogramas e as Agências Reguladoras serão compatíveis com o fortaleci-mento do núcleo estratégico (os ministérios) ou se os modelos de Agên-cias Executivas e Organizações Sociais sobreviverão às incertezas jurídi-cas e operacionais. O risco de uma implementação descoordenada e deum aumento da fragmentação são possibilidades sempre presentes, dadaa dinâmica institucional que descrevemos na parte II.

Também parece claro que as condições institucionais para o desenvol-vimento de uma reforma estrutural da administração não são ideais. Umasecretaria pequena, dentro de um Ministério poderoso, mas orientadopara questões operacionais e por uma mentalidade relativamente fiscalista,não pode garantir plenas condições para o desenvolvimento de umacultura de mudança institucional na Administração Pública Federal.

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Evidentemente, não se trata de impor uma reforma estrutural de cimapara baixo. Mesmo nas condições favoráveis do caso britânico, a lideran-ça reformista negociou bastante com setores estratégicos do Civil Servicepara alcançar um mínimo de consenso em torno da necessidade de refor-mas e como implementá-las. Mas, uma vez iniciado o processo, é precisocontrolar e coordenar as mudanças para evitar distorções e comporta-mentos oportunistas.

Por outro lado, não podemos deixar de notar que nunca as condiçõesinstitucionais foram tão favoráveis para a implementação de reformasestruturais na APF em contextos democráticos. Houve o fortalecimentode carreiras estratégicas, como a dos Especialistas em Políticas Públicas eGestão Governamental - de onde, aliás, saíram quadros estratégicos paraa formulação e implementação da reforma - dos Analistas de Orçamentoe Finanças e outras. Foi enorme a modernização dos sistemas de informa-ção e gestão de pessoal, dos sistemas de controle interno, e de orçamen-to e finanças. Estas duas mudanças capacitaram a Administração PúblicaFederal para a implementação de alterações organizacionais. Essas condi-ções não existiam há dez anos, como revela um estudo feito pela ENAP epelo Cedec (ANDRADE e JACCOUD, 1993).

Lista-se, a seguir, uma agenda com as principais mudanças institucionaisque dariam suporte a uma reforma estrutural na APF:

1) O fortalecimento institucional da Secretaria de Gestão, seja dentrodo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, seja como secretariaespecial vinculada à Presidência da República;

2) A consolidação da Carreira dos Especialistas em Políticas Públicas eGestão Governamental, por meio de um plano de alocação dos seusquadros em áreas estratégicas ao desenvolvimento das reformasorganizacionais e gerenciais, isto é, na própria Secretaria de Gestão e nasdemais responsáveis pela gestão de meios; em áreas correspondentesnos órgãos centrais da Presidência e nos cargos gerenciais das áreas finsdos ministérios;

3) O fortalecimento da Escola Nacional de Administração Pública, paraexercer um papel pró-ativo de mobilização, junto com a comunidadecientífica, pela reforma do Estado;

4) A consolidação das iniciativas de profissionalização e estabilizaçãodas carreiras gerenciais, tornando mais clara a distinção entre cargos denatureza política, responsáveis pela formulação geral, e cargos estratégi-cos, responsáveis pela gestão das políticas públicas.

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ANEXO IQUADRO 1: ESTRUTURA LEGAL DA REFORMA INSTITUCIONAL AUTARQUIAS, AGÊNCI-AS REGULADORAS, AGÊNCIAS EXECUTIVAS E ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (1995-2002).

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ANEXO IIESTRUTURA LEGAL DA REORGANIZAÇÃO MINISTERIAL NOS GOVERNOS DE FHC

(1995-2002)

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INCREMENTALISMO, NEGOCIAÇÃO EACCOUNTABILITY: ANÁLISE DAS

REFORMAS FISCAIS NO BRASIL1

Maria Rita Loureiro2

Fernando Luiz Abrucio3

INTRODUÇÃO

A reforma do Estado tornou-se tema central na maioria dos países capita-listas, desenvolvidos e em desenvolvimento, a partir da grande crise queatingiu suas economias nos anos 1980. A despeito da divergência entreas interpretações, há razoável consenso de que o aparelho estatal deveser reestruturado em sua dinâmica interna e em suas relações com asociedade e o mercado. Nesta nova agenda, a dimensão fiscal tem enor-me relevância, tanto no debate da literatura como nos processos efetivosde reformulação da máquina governamental. A discussão deste tema temsido dominada por economistas e, em menor medida, por cientistas polí-ticos, que norteiam suas análises pelo foco do desempenho econômico eda governabilidade. Procura-se aqui conjugar estes aspectos com outraquestão que não é antípoda às anteriores: a importância da negociação eda accountability democrática para o sucesso das reformas fiscais.

De modo geral, a boa gestão fiscal é tida como condição básica paraque o Estado estabeleça fundamentos macroeconômicos saudáveis e, as-sim, consiga favorecer a obtenção de um crescimento econômico susten-tável. É este o pressuposto - correto, diga-se de passagem - que orientaparcela considerável da literatura e dos principais atores políticos. Muitosaspectos influenciam a administração das finanças públicas, como os vetoresinternacionais, as condições econômicas internas e a história do aparelho

1 Este texto utiliza-se de pesquisa realizada junto ao Núcleo de Publicações e Pesquisas (NPP) da

EAESP-FGV, ao qual agradecemos pelo auxílio.

3 Doutor em Ciência Política pela USP, Professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e da PUC-SP.

2 Doutora em Sociologia pela USP, professora da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e Faculdade

de Economia da USP.

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estatal em cada país. Todavia, estas variáveis dependem de mecanismospolíticos de formulação e implementação, os quais, num regime demo-crático, são ainda mais importantes e não comportam respostas únicas elineares.

A variável democrática é duplamente afetada pela questão do ajustefiscal. De um lado, há os desafios para a governabilidade, uma vez queos governantes em uma ordem democrática, sendo sensíveis às deman-das sociais, terão dificuldades de impor o equilíbrio das contas públicasaos seus eleitores: cortes de gastos públicos e/ou elevações de tributosimplicam custos políticos elevados e normalmente concentrados, masbenefícios difusos, incertos e de longo prazo (SCHICK, 1993; MELO,2002). Tais dificuldades parecem ser ainda mais agravadas em algunssistemas políticos, como o modelo brasileiro de presidencialismo de coa-lizão (ABRANCHES,1987). Nele, existem vários pontos de veto no pro-cesso decisório (o bicameralismo e o poder dos governos subnacionais,por exemplo), além de ser difícil montar a base de apoio governamentalnum cenário de fragmentação partidária. Tais características centrífugas,contudo, convivem com fatores centrípetos, como o grande poder doExecutivo no âmbito legislativo e no processo orçamentário, a capacida-de de interferir nas carreiras dos políticos pela distribuição de cargos, oalto grau de insulamento burocrático em diversas políticas públicas e,ainda, o papel destacado da figura presidencial no sistema político (LOU-REIRO & ABRUCIO, 1999; FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999).

O enfoque da governabilidade é o mais comum entre os estudos quejuntam política e economia no entendimento das reformas do Estado. Apreocupação básica desta linha é avaliar os efeitos de diferentes dese-nhos institucionais sobre a governabilidade, ou seja, sobre a capacidadedos governos de levar a cabo, ou não, suas políticas públicas em geral,ou seus programas de austeridade fiscal, em particular (WEAVER &ROCKMAN, 1993; SCHICK, 1993; LAVER & SHELPSE, 1994; ALESINA,ROUBINI E COHEN, 1997; SHUGART & MAINWARING, 1997; HAGGARD& McCUBBINS, 2001).

Em várias ocasiões, as reformas econômicas e os programas de ajustefiscal podem comprometer princípios democráticos, em especial os deaccountability, pois, para se obter governabilidade, certos processos degestão macroeconômica acabam enfraquecendo os mecanismos deresponsabilização dos governantes. Isso se dá com a criação de agênciasinsuladas e protegidas das pressões do restante do sistema político, para

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as quais são indicados agentes não eleitos (burocratas de carreira, acadê-micos ou profissionais do mercado) que são pouco ou nada constrangidosa prestar contas de seus atos ou omissões ante os cidadãos. Na verdade, aperspectiva da accountability democrática tem sido ainda muito poucodesenvolvida na literatura4. O presente estudo pretende contribuir para oavanço desse enfoque teórico por meio da análise das transformaçõespolítico-institucionais recentes na área fiscal no Brasil, estudando-as nãosó pelo ângulo de sua consistência macroeconômica e da efetividade desuas políticas, mas igualmente pelo prisma da accountability democrática.

Entende-se por accountability ou responsabilização um processoinstitucionalizado de controle político estendido no tempo (eleição e man-dato) e no qual devem participar, de um modo ou de outro, os cidadãosorganizados politicamente. Para tanto, são necessárias regras e arenas nasquais a accountability é exercida, além de práticas de negociação ampli-adas entre os atores, para tornar mais públicas e legítimas as decisões.

À noção de responsabilização política, o artigo incorpora a deincrementalismo. Ao invés de uma concepção exclusivamente totalizadorade reforma, que supõe a necessidade de uma alteração total do status quoe a um só tempo, a concepção incrementalista reconhece que mudançasimportantes se dão gradualmente e que cada medida tomada e/ou apro-vada influencia, em maior ou menor medida, o caminho posterior - é achamada path dependence, ou histerese, para adequar o sentido originala uma palavra em português. Ocorre algo como uma sedimentação por“camadas geológicas”. Nesta mesma linha, Gerald Caiden constatou queas reformas administrativas pelo mundo afora foram realizadas menos poresquemas grandiosos de transformações completas, mas, sobretudo, me-diante aperfeiçoamento e melhorias substantivas incrementais (CAIDEN,1991: 87)5.

A ênfase no caráter incremental das reformas leva em conta não só asua recorrência empírica, como o estudo de Caiden constata para a áreaadministrativa, mas também pressupõe que este modelo possa conjugar

5 Mesmo não aderindo completamente às suas formulações teóricas, cabe lembrar que Douglas North

indica que as mudanças institucionais se processam predominantemente de forma incremental (Vera respeito, NORTH, 1981 e 1990).

4 São poucos os estudos que procuram examinar como o desenho institucional afeta os mecanismos

de responsabilização dos governantes. Vale a pena mencionar aqui a importante coletânea organi-zada por Przeworski, Stokes e Manin (1999), reunindo ensaios teóricos e estudos empíricos sobre otema. E ainda o trabalho bastante interessante de Stark e Brustz (1998), sobre as reformas econômi-cas nos países do Leste Europeu, no pós-socialismo.

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melhor os ângulos do desempenho e da democratização das políticas. Oincrementalismo pode ser visto como uma contraposição analítica enormativa em relação à visão totalizadora de mudança, fundada numaconcepção tecnocrática e insulada de reforma. Ao contrário do que supõeesta concepção, a prática incrementalista, ao incluir mais atores e esten-der no tempo o processo de transformação, não reduz necessariamente acoerência e a consistência dos projetos. Na verdade, ao abrir mais espaçosde discussão e fazer as alterações aos poucos, pode-se aprender mais comos possíveis erros de implementação (variável do desempenho) e tornar asdecisões mais responsivas e responsáveis (variável democrática).

Um bom exemplo dessa argumentação está no trabalho de Stark &Brustz (1998). Examinando as bases institucionais da coerência das políti-cas públicas colocadas em prática no Leste Europeu no pós-socialismo,os autores indicam que a capacidade de elaborar e implementar progra-mas de reforma pode ser aumentada (e não reduzida, como se afirmamais freqüentemente) quando o Poder Executivo é menos concentrado,ou seja, é mais constrangido a prestar contas de suas decisões às diversasforças políticas no Parlamento e na sociedade organizada. Assim, respon-sabilizando-se politicamente não só no momento eleitoral, mas continua-mente ao longo de seu mandato, os governos não se tornam necessaria-mente mais fracos. E mais: ao debater e negociar suas propostas comoutros atores, eles aumentam a compreensão dos problemas envolvidos,ampliam a capacidade de obter informações críticas, corrigindo erros decálculo que, na ausência deste processo, só apareceriam posteriormenteno momento da implementação e, portanto, com menor possibilidade decorreção. Isto encoraja, ainda, os formuladores a pensar vários passos àfrente nos jogos estratégicos da política de reforma.

Tomando como base esta perspectiva teórico-metodológica e anali-sando a experiência brasileira, pode-se sintetizar o argumento central dotexto do seguinte modo: observou-se que os pontos bem sucedidos detransformação das finanças públicas brasileiras, desde a redemocratização,obedeceram a uma lógica basicamente incrementalista, orientada por avan-ços e recuos nas propostas inicialmente estabelecidas e por negociaçõescom diferentes atores políticos. A cada reformulação realizada, ademais,alterava-se o patamar das discussões posteriores, criando uma relação depath dependence. Defendemos que este modelo incrementalista é o maiscompatível com democracias de tipo consensual, como o sistemapresidencialista de coalizão existente no Brasil.

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O incrementalismo requer, por um lado, grande capacidade degovernança, ou seja, forte competência técnica e articulação gerencial daburocracia governamental, tornando-a capaz de implementar de formaefetiva a agenda do governo. Por outro lado, ele é a expressão de umarranjo institucional no qual o Executivo é politicamente limitado ou cons-trangido, sendo forçado institucionalmente a levar em conta e negociarcontinuamente com outros atores políticos no legislativo e nos governossubnacionais, e mesmo com grupos organizados na sociedade.

O enfoque incrementalista do processo decisório é bastante pertinen-te ao estudo do caso brasileiro, cujo sistema político se caracteriza peloconsociativismo, para usar expressão de Lipjhart (1999). Presidencialista,multipartidário, federativo, marcado por uma sociedade bem heterogê-nea, o sistema de poder no Brasil ganha maior legitimidade quanto maisconsegue lidar democrática e eficazmente com a sua fragmentação intrín-seca. Essa visão se diferencia da maioria da literatura sobre o Brasil, quevê em tais fatores limites à governabilidade e propõe, além do mais, umalógica mais majoritária de decisão - ou mais centrípeta. Pretendemosmostrar, pela análise das reformas fiscais, que é possível - e desejável -compatibilizar um Executivo forte do ponto de vista da governança ecapaz de responder às demandas da maioria com formas mais negociadase partilhadas de formulação de políticas públicas.

O histórico recente das políticas econômicas brasileiras revela que namaior parte dos casos nos quais o incrementalismo não fora adotadocomo padrão decisório e de implementação, os resultados acabaram porser ruins tanto para o desempenho econômico como para a accountabilitydemocrática. Exemplos paradigmáticos são os planos econômicos hetero-doxos, como o Cruzado ou o Collor I, que misturavam insulamento buro-crático, hiperatividade decisória e, em certos casos, condução presidenci-al personalista, com conseqüências distantes tanto da responsabilizaçãopolítica como da eficácia. Exatamente por fugir desse modelo que oPlano Real deu certo. Sua novidade estava na mistura de policy learning,pois muitos dos técnicos haviam participado e aprendido com os planosanteriores, com uma visão antípoda à do choque, já que por cinco meses,da implantação da URV à respectiva criação da nova moeda, a estabiliza-ção monetária foi implantada aos poucos, sem surpresas ou rompimentosde contratos. Gradualmente os atores sociais adaptavam-se à transforma-ção da realidade econômica e sinalizavam suas preferências ao GovernoFederal, que podia assim testar melhor o desempenho da política e corri-

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gi-la, caso fosse necessário (LOUREIRO, 1997; COUTO & ABRUCIO,1999).

Por fim, é preciso deixar claro que a ênfase aqui atribuída à perspec-tiva incrementalista não implica desconsiderar a existência de “conjuntu-ras críticas” que geram pontos de inflexão nos processos de mudançapolítica (PIERSON, 2000). São momentos históricos decisivos ou“maquiavelianos”, para utilizar a expressão de Pocock (1975), nos quais aposição relativa dos atores, em termos de poder e preferências, é modi-ficada. Com isso, novos parâmetros orientadores das ações coletivas sãointroduzidos. No caso brasileiro, podemos citar o Plano Real como umaconjuntura crítica (SOLA & KUGELMAS: 2002), a partir da qual o grupoliderado por Fernando Henrique Cardoso - primeiro como ministro, de-pois como presidente - conseguiu aumentar seu poderio e, desse modo,derrubou alguns obstáculos que impediam a realização de certas refor-mas, como a variável federativa no caso da renegociação das dívidasestaduais.

A junção dessas duas perspectivas, a incrementalista e a da “criticaljunctures”, é pertinente com o observado na literatura internacional sobrereforma do Estado. Diferentemente do que pensam autores como LaurenceWhitehead (1993), os dois aspectos não são pólos opostos de uma escala.Isto porque se referem a questões distintas do processo social e quepodem ser combinadas de diversas formas. A postura incremental dizrespeito às modificações graduais e por “camadas” nas policies, ao passoque a conjuntura crítica associa-se às alterações nas posições relativas dosatores, isto é, na dinâmica da politics. A separação delas, de fato, podegerar péssimos resultados: a obtenção de maior poder nos momentos“maquivelianos” não garante a efetividade das reformas, ao passo que omero gradualismo pode encontrar pela frente obstáculos duradouros queimpossibilitam o bom desempenho. Assim, a experiência comparada temressaltado que a virtù reformadora é aquela que soma os ganhos deautoridade com as capacidades negociadora e de aprendizado. No Brasilnão foi diferente, como mostraremos ao longo do artigo.

O presente texto está estruturado em três partes. Na primeira, analisa-mos inicialmente o sentido da reforma do Estado, mais especificamenteno campo das Finanças Públicas. Na parte II, apresentamos o contextoeconômico e político no qual se processam as transformações na ordemfiscal no Brasil ao longo das duas últimas décadas e, mais particularmen-te, como se define o papel central do ajuste fiscal na agenda do governo

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FHC. Na parte III, examinamos o quadro geral de tais mudanças sob oprisma da problemática da accountability, observando mais especifica-mente duas áreas relevantes: a que abarca as novas regras relativas aoendividamento público, criadas pelo Senado Federal, e a Lei de Respon-sabilidade Fiscal (LRF).

I - O CONTEXTO GERAL DA REFORMA DO ESTADO6

O tema da reforma do Estado surge com força ao final da década de 70,quando entra em crise o modelo estatal montado no pós-guerra, o qualtinha sido o agente fundamental de uma era de gigantesca prosperidadedas economias capitalistas, centrais e periféricas. Neste primeiro momen-to, o impulso para a mudança veio da crise fiscal, iniciada com os cho-ques do petróleo e com efeitos por toda a década de 80.

Diante disso, as primeiras propostas de reforma do Estado no mundodesenvolvido articulavam-se em torno da redução da dimensão e dosgastos do aparelho estatal. As vitórias dos conservadores na Grã-Bretanhae nos Estados Unidos iniciaram este processo, mas sua evolução adquiriucontornos particulares segundo as forças políticas de cada país. Passadasquase duas décadas de reformas, ao contrário do que muitas vezes seargumenta, os resultados gerais não apontaram para a constituição de umEstado mínimo, mas sim para a reconstrução da forma de intervenção egestão do aparelho estatal7.

Primeiramente, procurou-se reduzir o escopo de atuação direta doEstado, por meio de privatizações, concessões ou parcerias. Isto nãosignificou a criação de um Estado mínimo, mas sim a redefinição dopapel do Estado, reforçando suas funções indutoras e regulatórias, emdetrimento do seu aspecto executor. Outra tendência importante é aadoção de políticas mais rígidas de controle orçamentário e de medidaspara aumentar a eficiência da administração pública, revelando que aquestão do equilíbrio fiscal transformou-se em preocupação permanente.Cabe também frisar que a obtenção da eficiência não significou, namaioria dos casos, a diminuição dos gastos em relação ao PIB, e sim aotimização dos recursos à disposição dos governos. Se no primeiro mo-

7 Ver o Relatório do Banco Mundial, O Estado num mundo em Transformação (1997), e o artigo de

Flávio Rezende presente neste mesmo livro.

6 Esta parte do artigo é baseada em Abrucio (1999).

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mento o debate esteve marcado pelo aspecto meramente econômico -“administração de cortes” - , a ênfase seguinte foi dada à eficiência(NUMBERG, 1998). Neste sentido, políticas de downsizing ou baseadasem programas contínuos de demissão voluntária, como assinalou Schiavo-Campo (1996), podem resultar em serviços públicos enxutos, mas nãomenos ineficientes, insatisfatórios aos usuários ou até corruptos.

No mundo desenvolvido, os gastos governamentais em relação ao PIBnão foram substancialmente elevados, mas tampouco fortemente reduzi-dos. Como mostram os dados da tabela abaixo, os países da OCDE, emmédia, mesmo depois da reestruturação do setor público ocorrida nasduas últimas décadas, não diminuíram suas despesas: o gasto públicomédio dos países desenvolvidos alcançou algo em torno de 44,5% do PIBem 1998, próximo à situação da década passada.

Mesmo países que realizaram políticas paradigmáticas para aumentara eficiência da máquina administrativa não tiveram, no geral, a reduçãodrástica dos gastos públicos como norma, como demonstra a análise deNorman Flynn e Franz Strehl acerca de oito países europeus que reali-zaram reformas administrativas (Suécia, Grã-Bretanha, Holanda, França,Alemanha, Áustria e Suíça). De 1989 a 1996, em seis desses casoshouve elevação dos gastos públicos em relação ao PIB, sendo a Grã-Bretanha e a Holanda as únicas exceções à regra (FLYNN & STREHL,1996: 2). Tal diagnóstico vale igualmente para a política de diminuiçãode funcionários públicos. Em vez de se adotar o receituário radicalproposto no começo dos anos 80, a tendência dominante foi o corte depessoal no Poder Central e o crescimento no número de servidores nonível local, especialmente para a prestação de serviços sociais básicos(saúde, educação e assistência social). Disto resultou que o númeromédio de funcionários públicos no âmbito da OCDE manteve-se emtorno de 8% da população, próximo ao da década anterior (SCHIAVO-CAMPO, 1996).

Na verdade, a principal conclusão a respeito do quadro burocráticoestá menos no seu tamanho e mais na sua localização dentro das agênciasgovernamentais, isto é, está havendo um enorme processo dedescentralização em todo o mundo, refletindo-se na prestação de servi-ços e na alocação de pessoal. Nem os países mais centralizados da Euro-pa, como a França, fogem desta regra. Nesta nação, 56,3 % dos servido-res públicos trabalhavam para o Poder Central em 1985; praticamentedez anos depois, em 1994, este número caíra para 48,7%, ocorrendo,

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concomitantemente, uma elevação dos funcionários nos níveis subnacionais(OCDE, 1997: 37)8.

Estas transformações no aparelho estatal levaram a políticas deflexibilização e democratização da gestão pública, a fim de torná-la maiságil, descentralizada, eficiente e aberta às parcerias e/ou controle dasociedade. Neste sentido, por exemplo, a prestação dos serviços públi-cos está sendo cada vez mais orientada ao cidadão-cliente. Para tanto,não apenas medidas gerenciais foram propostas. O aspecto decisivo aquié o aumento da participação dos usuários e da comunidade na avaliaçãoe mesmo na co-gestão dos serviços públicos, fenômeno observado nàosó nos Estados Unidos (OSBORNE & GAEBLER, 1992) mas também atéem países com burocracia mais rígida, como a França (TROSA, 1995).

Mais do que um mero instrumento administrativo, a gestão públicaorientada pela lógica do cidadão-cliente colocou o tema da accountability

8 Sobre a descentralização no plano internacional, ver o capítulo de Fernando Abrucio neste livro.

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definitivamente na agenda de reformas. Isto foi impulsionado por doisfatores: o crescimento das demandas por participação e/ou por controledas políticas públicas e, sobretudo, a necessidade do Estado aumentar sualegitimidade, já que vem perdendo parte de seu poder, o que o obriga aaproximar-se mais da sociedade.(OSZLAK, 1998: 9). A reforma do Esta-do, portanto, deve ultrapassar a concepção calcada apenas e tão-somentena reordenação administrativa e se enquadrar num contexto de redefiniçãodo espaço público, das relações entre o Estado e a sociedade9.

Resumindo, as reformas no mundo desenvolvido têm buscado concili-ar a atuação regulatória do governo na economia, o equilíbrio fiscal, aeficiência e efetividade das políticas, a democratização do Poder públicoe a redefinição de suas relações com a sociedade, tudo isso ancorado namudança do perfil do Estado e não em seu desmantelamento. É bemverdade que a compatibilização destes objetivos por vezes é tensa, le-vando cada país a acentuar um ou outro ponto de acordo com suaspeculiaridades históricas, o que inviabiliza a adoção de um blueprintcomo paradigma geral de reforma. Nada mais longe, portanto, do modeloneoliberal ou neo-utilitarista proposto pelos políticos conservadores eintelectuais vinculados ao Public Choice.

Nos países periféricos, a reforma do Estado levou à risca um receituá-rio mais liberal que, paradoxalmente, não fora adotado pelos países cen-trais. Na América Latina, a dramaticidade da crise econômica, refletidanos problemas da dívida e da inflação persistente, também foi outro fatorque impulsionou o processo reformista e o tornou mais intenso, no quese refere ao número de mudanças e ao tempo em que foi realizado. Hádiferenças nesta região, contudo. Os programas de liberalização eprivatização brasileiros foram bem menos intensos e pró-mercado do quenas experiências da Argentina e do México. Além do mais, as transforma-ções do Estado no Brasil foram muito mais negociadas e vinculadas àdemocratização do que no restante das nações latino-americanas(PALERMO, 1999).

A seguir, iremos focar a dimensão fiscal da reforma do Estado noBrasil, analisando-a, como indicado anteriormente, a partir dos vínculosentre a ótica macroeconômica e a accountability democrática.

9 Para tanto, o desafio atual é encontrar “(...) um espaço virtuoso entre o incremento dos poderes do

Estado e o incremento do controle sobre o Estado, para permitir ao governo que governe e aosgovernados que controlem o governo” (PRZEWORSKI, 1998: 36).

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II - CONTEXTO MACROECONÔMICO E POLÍTICO DAS TRANSFORMAÇÕES FISCAIS NO BRASIL: DOS

ANOS 80 ÀS MUDANÇAS DA ERA FHC

1. Antecedentes das mudanças fiscais: da crise dos anos 80 à estabilizaçãomonetária em 1994Antes de analisarmos as mudanças mais importantes ocorridas na área fiscaldurante o governo de Fernando Henrique Cardoso, é importante retomar,ainda que rapidamente, os antecedentes do processo de ordenamento dasfinanças governamentais, que se inicia nos anos 1980, no bojo da crise dadívida externa. A grande crise que atinge as economias capitalistas nos anos1970 e 1980, desencadeadas pelo choque dos preços do petróleo, repercu-tiram no Brasil, como em vários outros países periféricos, sob a forma deuma grave crise de dívida externa que levou ao esgotamento do modelo dedesenvolvimento econômico.

Devido à elevação das taxas de juros internacionais no início dos anos 80e à moratória do México (setembro de 1982), tornou-se insustentável oprocesso de financiamento externo da economia brasileira: o pagamento dejuros atingiu US$ 13 bilhões em 1982, o que eqüivalia a 82% das exporta-ções e o déficit em conta corrente representava mais de 5% do PIB. Asreservas internacionais reduziram-se, os influxos financeiros externos cessa-ram e os investimentos diretos declinaram. A partir daí iniciou-se um longo edifícil processo de renegociação da dívida externa que só foi finalizado em1994. Em 1983, o governo brasileiro também estabeleceu, em conjunto como Fundo Monetário Internacional, programa de estabilização que foi bemsucedido no equilíbrio do balanço de pagamentos, mas fracassou no controleda inflação (OCDE- Brasil,2001; BRESSER-PEREIRA, 1993).

As pressões dos organismos internacionais e a séria escassez de recur-sos impulsionaram os primeiros movimentos de ordenamento das finan-ças públicas no país e de reforma do sistema financeiro nacional. Elesforam efetuados por um grupo da burocracia governamental organizadono COMOR (Comitê de Acompanhamento da Execução dos OrçamentosPúblicos), criado em 1983, e posteriormente na Comissão deReordenamento das Finanças Públicas, instituída em 1984. As principaismudanças implantadas em decorrência dos trabalhos destas comissõesforam: fechamento da conta movimento do Banco do Brasil, a extinçãodo chamado orçamento monetário e a criação da Secretaria do TesouroNacional, dentro do Ministério da Fazenda, com o objetivo de centralizaro controle das contas públicas (GOUVEA, 1994).

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A profundidade destas mudanças é melhor compreendida ao se acom-panhar o processo político de criação do Banco Central no Brasil (BC ouBACEN) e os impactos de tal modelo sobre as contas públicas. Quando oBC foi criado, em 1964, o Banco de Brasil (BB) exercia funções de umbanco central e era agência extremamente forte na estrutura de poder dopaís. Detinha uma autoridade que a levava a reter parcela considerávelde atribuições de política econômica, gerando assim uma situação esdrúxulade duas autoridades monetárias em concorrência (BC versus BB) e deausência de controle efetivo da política monetária. E, o mais importante, oBanco do Brasil passou a ser o titular da chamada “conta-movimento”,concebida para processar o nivelamento das reservas com o BACEN. Trata-va-se de um passivo do BB em relação ao BACEN, inventado para suprir aausência de recursos financeiros iniciais, necessários à formação da infra-estrutura administrativa e técnica da instituição então recém criada.

Concebida apenas para vigorar no momento de transição institucional,a “conta-movimento” acabou sendo mantida durante muitos anos. A moti-vação estava em seu forte impacto político, uma vez que ela facilitava aliberação de empréstimos e financiamentos sem que estes constassem doorçamento do governo. Em outras palavras, a “conta-movimento” permi-tia ao BB sacar sem limites contra o Tesouro, inviabilizando qualquercontrole fiscal. Além disso, na ausência de uma secretaria do Tesouro, oExecutivo não tinha meios de saber, de fato, como andavam suas contas.

Paralelamente a esta situação de dupla autoridade monetária existenteentre BB e BACEN, o poder do Congresso Nacional de legislar sobrequestões financeiras foi transferido, durante o período militar, para umórgão da burocracia governamental, o Conselho Monetário Nacional (CMN).Este tinha total poder para administrar a dívida mobiliária sem que asoperações transitassem pelo Orçamento Geral da União (OGU). Comoconseqüência do descrédito do OGU, que não tinha capacidade paraimpor limites e restrições à política fiscal, observou-se o surgimento deorçamentos paralelos que eram submetidos apenas ao Poder Executivo,como, por exemplo, o Orçamento Monetário. Ao longo da década de1970, na verdade, as finanças do setor público brasileiro eram norteadaspor uma grande multiplicidade orçamentária. Além do OGU e do Orça-mento Monetário, havia a conta da dívida e ainda o Orçamento das em-presas estatais.

O Orçamento Monetário funcionava como uma ferramenta de controledo passivo monetário e não-monetário que era utilizado para a política

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cambial, para autorizar subsídios e linhas de crédito a diferentes setoresde atividade econômica e outros programas. Cada orçamento era aprova-do por uma autoridade pública diferente e em momentos também distin-tos, o que causava total desarticulação entre as políticas econômicasimplementadas pelo governo. O Orçamento Monetário era uma espéciede ralo por onde vazavam os recursos do Tesouro, tais como créditoagrícola e às exportações. E ainda, a partir da crise da dívida externa,abriu-se outro ralo: o do aval da União a qualquer empréstimo externoaos estados, municípios e empresas estatais, honrados pelo BB, por meioigualmente do Orçamento Monetário. Depois de 1982, aportes de recur-sos aos bancos estaduais passaram também a ser supridos pela “conta-movimento”.

Como se não bastasse, existia a conta da dívida que, a partir do inícioda década de 1970, funcionou de forma autônoma e garantiu a coberturados juros e amortizações (serviço da dívida), sempre pela emissão denovos títulos. Esse processo ficou conhecido como o “giro da dívidainterna”. Assim, o débito público crescia em função de diversos fatores,do seu próprio serviço e do financiamento de gastos extra-orçamentários,nunca se sabendo, ao certo, o quanto era devido a cada fator.

Finalmente, havia ainda a estratégia adotada pelo governo de utiliza-ção das autoridades monetárias como bancos de fomento do desenvolvi-mento econômico, de modo a atender a meta de “crescimento comendividamento”. Grandes volumes de recursos eram levantados sem ele-var a carga tributária, ou seja, sem desestabilizar politicamente o regimemilitar vigente. A contrapartida era sempre a expansão monetária ou aelevação da dívida mobiliária (OCDE, 2001).

Foi neste contexto caótico que o Brasil enfrentou a crise da dívidaexterna em 1982. É interessante notar que a desorganização das finançaspúblicas brasileiras foi acentuada pelo caráter autoritário do regime mili-tar, dado que não havia controle público democrático das decisões alta-mente insuladas que eram tomadas pela tecnocracia econômica. Destaca-mos essa situação histórica para reforçar o argumento central do artigo deque a qualidade democrática do processo decisório tem efeitos positivossobre o desempenho das políticas macroeconômicas. Dito de outro modo:se a democracia não é condição suficiente para o sucesso econômico, elaé, porém, condição necessária.

Com a redemocratização, várias pequenas reformas foram feitas, im-primindo um caráter incremental à transformação das finanças públicas. A

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extinção da “conta-movimento” e do Orçamento Monetário, bem como acriação da Secretaria do Tesouro Nacional, enquadram-se neste processo,favorecendo não só o ordenamento das contas públicas no país, masigualmente a centralização da autoridade monetária no Banco Central.

Os importantes efeitos de tais mudanças institucionais nas finanças pú-blicas foram, no entanto, razoavelmente neutralizadas por dois fatores prin-cipais: o processo superinflacionário, que durou até 1994, com a promul-gação do Plano Real; e o contexto de relações financeiras predatórias entreUnião e governos subnacionais. O quadro a seguir permite visualizar, deforma sintética, as principais variáveis macroeconômicas deste período.

Do ponto de vista das relações financeiras intergovernamentais, osgovernos subnacionais fortaleceram-se ao longo da redemocratização dopaís, conquistando uma nova posição quanto à repartição de recursos e àautonomia tributária (ABRUCIO,1998). A Constituição de 1988 é o coroláriodesse processo. Só que essa mudança não foi acompanhada pela criaçãode uma responsabilidade federativa no campo fiscal. Estados e municípi-os endividaram-se com a certeza de que a União socorreria a todos e, defato, estes débitos foram sistematicamente renegociados. De 1988 a 1997,houve sete acordos de negociação das dívidas entre o Governo Federal eos governos estaduais, os quais, na maioria dos casos, não eram cumpri-dos. O pior de tudo é que não havia punição para aqueles quedescumpriam tais contratos, muito menos recompensas para os que se-guiam à risca as regras (WERNECK, 1998).

Estabeleceu-se, portanto, uma situação de moral hazard no relaciona-mento entre a União e os governos subnacionais. Três artifícios derambase a este comportamento por parte de estados e municípios:

a) receitas extraordinárias geradas pelo chamado “imposto inflacioná-

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rio”, oriundo tanto de reajustes da folha de pessoal em níveis inferiores àtaxa de inflação quanto do prolongamento dos prazos de pagamento decredores10;

b) uso dos bancos estaduais como mecanismo (não legal) de “quase-emissão” de moeda, pela prática reiterada de o governo não saldar asdívidas contraídas com essas agências financeiras, cujos dirigentes eramnomeados (e, portanto, controlados) pelos próprios governadores;

c) por fim, a já mencionada renegociação continuada do pagamentodas dívidas com a União, o que na prática significava sua postergaçãoindefinida. Cabe observar que o uso irregular dos bancos estaduais porparte dos governadores contou durante muito tempo com a complacênciado Banco Central. Afinal, o Governo Federal várias vezes apelava aosgovernadores para pressionarem as bancadas estaduais, a fim de aprovarcertas medidas no Congresso Nacional11.

A transformação deste cenário foi iniciada com o Plano Real (1994) eseu sucesso na estabilização monetária, que afetou significativamente aárea fiscal no Brasil, em particular no que se refere às relações financei-ras intergovernamentais. Primeiro, porque a redução drástica da inflaçãopraticamente acabou com o floating que os governos subnacionais obti-nham antes, bem como com a principal forma de alavancagem dos ban-cos estaduais. O resultado é que, sem o quadro superinflacionário pre-sente anteriormente, as contas públicas estaduais desnudaram-se, reve-lando uma situação quase falimentar. A partir dessa fragilidade financeira,os governadores perderam poder vis-à-vis à União e foram, pouco apouco, perdendo as “torneirinhas” financeiras que utilizaram maciçamen-te desde 1982, em especial as instituições financeiras estaduais12.

A estabilização monetária brasileira, ademais, teve na âncora cambialum elemento-chave. Para tanto, era necessário atrair capitais externos, nomais das vezes por meio da elevação da taxa de juros. O efeito perverso

11 Pode-se citar, como exemplo, a ajuda do Governo Federal, em 1994, aos bancos estaduais para

obter apoio no Congresso e facilitar a articulação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso àPresidência da República. Nessa época, a União comprou títulos dos bancos estaduais, considerados“podres” pelo mercado, no valor de cinco bilhões de dólares, ou seja, mais do que o dobro do que foiinjetado em todas as instituições financeiras nos seis anos anteriores (conforme dados publicados emO Estado de S. Paulo, 23/10/1994, Apud ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998: 47).12

Para uma análise mais aprofundada acerca das mudanças no federalismo brasileiro a partir de 1994,ver artigo de Abrucio neste mesmo livro e também o trabalho de ABRUCIO & FERREIRA COSTA (1998).

10 Segundo estimativas do Banco Central, o imposto inflacionário representava cerca de 2% a 2.5% do

PIB no período anterior ao Plano Real (ver, no Site do Banco Central, “Dívida Líquida e Necessidadede Financiamento do Setor Público no Brasil”).

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deste mecanismo é bem conhecido: o crescimento exponencial doestoque da dívida pública, que passou de cerca de R$60 bilhões dereais em 1994 para mais de R$624 bilhões no final de 2001. O total dadívida pública, que representava 35.8% do PIB no início de 1998,alcançou quase 50% no final de 1999 e girou em torno de 60% aolongo de 2002.

Para evitar equívocos, cabe lembrar que, se a elevação da taxa dejuros teve impacto enorme no crescimento do estoque da dívida pública,seus demais componentes são também decisivos. Segundo dados oficiais,do estoque total de R$ 624 bilhões, cerca de R$ 330 bilhões (portanto,mais de 50%) referem-se às dívidas refinanciadas e federalizadas dosestados e municípios. Mais de R$ 87 bilhões são os chamados “esquele-tos” (dívidas antigas) reconhecidos pelo governo. Também a depreciaçãosignificativa do real sobre o estoque da dívida mobiliária indexada emdólares tem respondido pelo aumento da dívida líquida do setor público.

O peso dos juros altos atingiu ainda mais os governos subnacionais,por conta de sua irresponsabilidade passada e fragilidade financeira atu-al. Neste cenário, a negociação de um novo modelo de relaçõesintergovernamentais se tornou questão de vida e morte para os estados,numa situação de inferioridade para estes, sobretudo com a maior con-centração de poder nas mãos da autoridade monetária do Banco Central.Boa parte do reordenamento das finanças públicas na Era FHC teve estecenário como pano de fundo.

2. Mudanças pós-94: a estabilização monetária e a construção de novasinstituições fiscaisA estabilização monetária alcançada pelo Plano Real fortaleceu o presi-dente Fernando Henrique Cardoso, que pôde, principalmente no seuprimeiro mandato, montar uma engenharia institucional que julgava ade-quada para modificar o cenário macroeconômico. Neste sentido, conta-ram bastante a efetiva concentração da autoridade monetária no BancoCentral (SOLA, GARMAN e MARQUES, 2002) e o grande poder conferi-do ao Ministério da Fazenda, especialmente às suas Secretarias da Recei-ta Federal e do Tesouro Nacional (LOUREIRO e ABRUCIO, 1999). Aolongo dos dois mandatos de FHC, o peso da Secretaria da Receita Federalfoi variável-chave para o aperfeiçoamento da máquina arrecadatória e,de algum modo, para o crescimento da carga tributária no país, quepassou de 22% do PIB em 1994 para cerca de 34% em 2002, o patamar

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mais elevado da história brasileira, com o reforço da participação daUnião no conjunto do bolo tributário.

Para além de sua importância tradicional em qualquer Estado contem-porâneo, especialmente em tempos de dificuldades financeiras, o Minis-tério da Fazenda fortaleceu-se de modo particular no governo FernandoHenrique. Basicamente, esse poderio foi exercido por meio da liberaçãoou retenção de recursos orçamentários por parte da Secretaria do TesouroNacional (STN), que determinava, assim, o ritmo da implementação daspolíticas definidas por outros ministérios, de acordo com as necessidadesdo ajuste fiscal13. Igualmente por meio dos técnicos do Tesouro, a Fazen-da atuou politicamente como mecanismo de controle dos outros ministé-rios nos quais os titulares foram nomeados como resultado das negocia-ções para obter apoio no Congresso, fazendo com que eles se ajustassemàs necessidades de controle das contas públicas (LOUREIRO & ABRUCIO,1999)14. Finalmente, a STN, que centraliza a gestão de toda a dívidapública, também teve papel estratégico no processo de renegociação dadívida dos governos subnacionais, por conta da federalização desses dé-bitos, detendo conseqüentemente informações sobre a situação das fi-nanças de todos os entes da Federação.

Ainda no que tange ao papel da burocracia econômica, é essencialdestacar que houve um processo de aprendizado incremental em relaçãoàs mudanças e aos erros cometidos ao longo da redemocratização. Muitosdos integrantes do staff da Fazenda, mesmo os que não eram de carreira,já tinham tido experiência em governos anteriores, participado de refor-mas importantes (como a criação da STN) e conhecido os limites político-econômicos postos ao reordenamento fiscal do país. Aqui, incrementalismotem a ver com gradualismo, mas também com learning organization, traçodistintivo não só dos grupos burocráticos estáveis, mas também dos altosfuncionários que vêm de fora da administração pública.

13 É importante relembrar que no Brasil o orçamento aprovado pelo Legislativo é apenas autorizativo,

cabendo ao Executivo decidir sobre o ritmo e a quantidade de recursos a serem liberados ou nãoem cada item aprovado, em função das disposições do caixa e das necessidades de ajuste fiscal.Portanto, o Poder Executivo, através da STN, detém grande espaço de poder na execução orçamen-tária e, em inúmeras circunstâncias, o utiliza politicamente para garantir apoio dos congressistas(GOMES, 1999)14

No primeiro governo FHC, a orientação fiscalista do ministério da Fazenda foi também difundidapara os demais ministérios de modo informal, por intermédio da influência sobre o processo denomeação de grande número de altos funcionários em outros ministérios, especialmente seus secre-tários executivos (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999).

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O reforço do núcleo econômico e sua capacidade de aproveitar oscaminhos abertos anteriormente, a prioridade dada à estabilização mone-tária e a força política oriunda do sucesso do Plano Real favoreceram oGoverno Federal a realizar várias reformas político institucionais no âm-bito das finanças públicas. Destaque inicial para as que atingiram a ques-tão federativa, cuja motivação vinculou-se ainda à crise financeira dosestados. Uma dessas medidas foi a aprovação de uma ampla renegociaçãodas dívidas subnacionais, sob um contrato com maiores garantias deenforcement. Vinte e cinco estados assinaram um novo acordo com aUnião, amparado pela Lei 9496. O valor total do refinanciamento foi de132 bilhões de reais (MORA, 2002: 31). Para tanto, os governos estaduaistiveram de assumir uma série de compromissos, incluindo a obtenção desuperávit primário, aumento da arrecadação, privatização de empresas e/ou bancos, além de penalidades mais claras e efetivas, como a retençãodos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) - o que recebeuo aval constitucional do Supremo Tribunal Federal. Em todo este proces-so, a Secretaria do Tesouro Nacional, com delegação obtida pela leiaprovada no Senado, negociou e construiu os contratos de cada estado.

Os bancos estaduais também foram atingidos pelas transformaçõesfederativas. Houve extinções, privatizações e, sobretudo, o fim dos so-corros compulsórios que marcaram o período anterior. Como resultadodeste processo, dez bancos estaduais foram liquidados ou extintos,dezesseis foram transformados em agências de fomento, dez foramprivatizados e quatro estão em processo de privatização. Para financiareste processo, o PROES (Programa de Incentivo à Redução do SetorPúblico na Atividade Bancária) desembolsou, até março de 2002, umpouco mais de 70 bilhões de reais (MORA, 2002: 53).

Duas mudanças na estrutura financeira da Federação merecem desta-que especial: a aprovação de novas regras referentes ao endividamentopúblico e a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Pela suaimportância, vale a pena examiná-las em separado.

3. Restrições mais severas ao endividamento público: o papel do Congresso edo SenadoO núcleo das mudanças na área fiscal no Brasil originou-se no PoderExecutivo. Mas o Legislativo brasileiro também teve papel decisivo noprocesso. Embora este aspecto tenha sido pouco marcado nos estudossobre o tema, pode-se observar que, desde o início dos anos 1990, o

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Congresso e, em particular, o Senado Federal - que tem a prerrogativaconstitucional para estabelecer regras e limites ao endividamento público- vêm criando grande número de leis relativas a esta matéria. Em 1993, aEmenda Constitucional 3 já restringira o endividamento público, só per-mitindo emissão de títulos para pagamentos de precatórios judiciais, ouseja, dívidas de particulares contra o Poder público, decididas em juízo.Como emitir títulos públicos para pagar precatórios significava, na práti-ca, criar uma dívida nova, essa foi a única brecha deixada pela legislaçãopara o financiamento dos governos subnacionais. Ela foi usada, ao máxi-mo, como fonte “adicional” de financiamento público. E permitiu, inclusive,muitas irregularidades, objeto de farta cobertura da imprensa, levando àinstalação de Comissão Parlamentar de Inquérito(CPI) em novembro de 1996.

Os escândalos acerca da emissão irregular de precatórios mostraram aprofunda crise financeira em que se encontravam muitos governossubnacionais. Todavia, é preciso reconhecer que estes puderam agir as-sim porque sabiam que a elevada inflação dificultava sua percepção efiscalização, bem como contavam com a conivência das autoridades en-carregadas do controle do endividamento. O próprio relatório da CPIindicou que os Tribunais de Contas dos Estados, o Banco Central e oSenado não estavam exigindo, como condição prévia para autorizar emis-são de um novo título, a comprovação do valor da parcelas efetivamentepagas de títulos precatórios, e tampouco controlavam o índice de corre-ção monetária aplicados aos mesmos.

Apesar de a CPI não ter resultado, pelo menos até o momento, napunição judicial dos envolvidos na emissão irregular de títulos precatórios,ela teve um efeito importante para disciplinar as finanças públicas nopaís: gerou a produção de regras cada vez mais restritivas para o controledo endividamento público. Assim, em setembro de 1997, foi sancionada alei 9.496/97, pela qual se estabeleceu um conjunto de critérios rígidos derefinanciamento da dívida pública mobiliária dos Estados e do Distrito Fe-deral. Em julho de 1998, o Senado baixou a Resolução 78/98, ainda maisrigorosa, que se tornou um marco de referência na consolidação das condi-ções institucionais para o controle do endividamento público no país.

Dentre as modificações mais importantes trazidas pela resolução 78/98, cabe destacar:

a) o Banco Central não mais encaminhará ao Senado Federal pedidode autorização de endividamento de governo que possua resultado pri-mário negativo;

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b) os estados ficam impedidos de conceder isenção fiscal sobre oICMS se pretendem pedir autorização para financiamento;

c) ficam proibidas as operações ARO (Antecipação de Receita Orça-mentária) no último ano de mandato;

d) também foi vedada a emissão de novos títulos públicos por partedos governos subnacionais que tiverem sua dívida mobiliária refinanciadapela União.

e) foram ainda estabelecidas medidas com objetivo de dar maior trans-parência às operações de crédito, tais como exigências de leilões eletrô-nicos na contratação de ARO e ampla divulgação pelo Banco Central dosleilões para colocação dos títulos estaduais no mercado.

Em dezembro de 2001, o Senado elabora duas novas Resoluções, a40/01 e a 43/01, que mantêm as condições da anterior (78/98), mastransferem do Banco Central para a Secretaria do Tesouro Nacional opoder de decidir sobre os pedidos de endividamento dos governossubnacionais. Antes de examinarmos o significado político desta delega-ção de poder e suas implicações para a accountability democrática, éimportante marcar o caráter excessivamente rigoroso destas resoluçõesque proíbem, por exemplo, a emissão de títulos públicos por mais dedez anos (até 2010). Segundo alguns autores, a expansão do mercadoprimário de títulos estaduais e municipais, tal como ocorre nos EstadosUnidos, poderia ser uma fonte alternativa importante para o financiamen-to do setor público, pois não elevaria a já muito onerosa carga tributáriado país (TONETO JR. E GREMAUD, 2000). Mas, apostou-se mais no fatode que a falta de uma cultura de restrição orçamentária forte inviabiliza,no curto prazo, uma forma mais competitiva e responsável de os gover-nos subnacionais se financiarem.

Considerando os efeitos das resoluções do Senado, cabe apontar que,mesmo não havendo uma redução imediata no total de suas autorizaçõespara endividamento, constata-se que, especialmente a partir de 1997, umnúmero significativo destas ocorreu como parte do Programa de Apoio àReestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados e no bojo do processo denegociação das dívidas entre União e estados. Dentro deste programa, oSenado colaborou com o Executivo federal, autorizando a renegociaçãodas dívidas antigas dos estados, condicionada à privatização dos bancosestaduais e das empresas estatais. Como se indicou antes, a privatizaçãodos bancos estaduais foi prioritária na agenda de ajuste fiscal do GovernoFederal, na medida em que aqueles bancos eram usados como alternativa

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de financiamento dos governos estaduais. Suprimir esta fonte significava,portanto, preencher uma condição fundamental para o ajuste das contaspúblicas.

De acordo com números colhidos na Base de Dados da LegislaçãoBrasileira, o Senado aprovou 18 autorizações em 1996, dentro do pro-grama mencionado; em 1997, foram 24, representando mais de 30% dototal de autorizações concedidas para os governos estaduais. Em 1998,houve 16 autorizações que se enquadravam nesta situação,correspondendo a 28%. Assim, as restrições legais começavam a serefetivamente cumpridas, sob condições políticas específicas: a negocia-ção entre a União e os governos estaduais, o que levou à federalizaçãodas dívidas e à imposição de determinadas exigências aos entessubnacionais.

Para reforçar a argumentação, citamos outro indicador: as restriçõese limites impostos pela Resolução 78 sobre as operações ARO fize-ram com que o número delas caísse drasticamente. Conforme dadosdo Banco Central, foram autorizadas nos anos de 1996 e de 1997,respectivamente, 1.330 e 1682 operações ARO para estados e muni-cípios. Só no primeiro semestre de 1998, antes da Resolução 78, onúmero chegou a 1.227. A partir do segundo semestre de 1998, sob avigência da nova regra, tais operações despencaram para 46 e emtodo o ano de 1999 elas não passaram de 128 (LOUREIRO, 2001).

Estes dados são significativos, pois permitem analisar o comporta-mento do Congresso, particularmente do Senado, em perspectiva am-pliada. Mesmo sensível à pressões vindas dos governos estaduais (po-liticamente inevitáveis), esta Casa foi se comprometendo cada vezmais, ao longo do mandato de FHC, com medidas pró ajuste fiscal(LOUREIRO,2001). Muitos senadores - a maioria, diga-se de passagem- optou por uma nova “cultura de responsabilidade fiscal”, como seconstatou nos discursos dos representantes estaduais não só do gover-no como da oposição, em consonância com o que ocorria na opiniãopública.

O apoio à agenda da responsabilidade fiscal não significou mera sub-missão do Senado ao Executivo, envolvendo relações de negociação ebarganha bem claras entre senadores, governadores estaduais e União. Adelegação de poder ao Banco Central, por exemplo, ocorreu no bojo dasnegociações relativas à privatização dos bancos estaduais que criaram oPROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na

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Atividade Bancária), cujo custo para o Governo Federal já ultrapassou acasa dos 70 bilhões de reais15.

Parte da literatura mais recente sobre o sistema político brasileiro indi-ca que há condições institucionais que fortalecem o Executivo, gerandomaior governabilidade (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999). Só que esteprocesso não resulta de uma mera usurpação do poder ou de uma sub-missão completa do Legislativo; sua dinâmica envolve negociação conti-nuada entre presidente e Congresso, permitindo construir e manter umacoalizão relativamente forte, necessária à efetivação de sua agenda dereformas econômicas (LOUREIRO e ABRUCIO, 1999; PALERMO, 2000).

4. Mudanças nas políticas econômicas pós-99 e a Lei de de ResponsabilidadeFiscal (LRF)A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completa o ciclo dasprincipais mudanças institucionais nas finanças públicas durante a Era FHC.O sucesso nesta empreitada se deveu a três fatores básicos. O primeiro foi ofortalecimento da União perante os governos subnacionais, como mostradoanteriormente, e, neste novo cenário, o Governo Federal comandou as trans-formações nas relações financeiras federativas tendo como leitmotiv o fimdos mecanismos predatórios de endividamento dos estados e municípios.

Em segundo lugar, instalou-se uma cultura política de responsabilidadefiscal tanto na opinião pública como nos atores políticos, como se viu nocaso dos senadores. Por mais que tal clima de opinião dependa de institui-ções que solidifiquem este novo padrão, é mister dizer que será difícil, nospróximos anos, a adoção de uma prática populista e irresponsável peranteas contas públicas tal qual ocorrera ao longo da redemocratização.

Alguns fatores podem ter influenciado a formação deste consenso emtorno da responsabilidade fiscal. Além do sucesso inicial do Plano Real edas pressões do mercado, exigindo maior “confiabilidade” para os inves-tidores externos, também atuaram nesta direção a emergência de umamaior intolerância em relação à corrupção e de uma consciência maisclara dos danos que a insolvência dos governos geram à sociedade, taisquais as conseqüências do não pagamento de salários a funcionáriospúblicos (médicos, professores, policiais), greves, insegurança nas cida-des, deterioração dos serviços públicos etc. Nesta linha contribuíram de-cisivamente os episódios dos precatórios, com grande repercussão em

15 Descrição bem detalhada destas negociações encontra-se em Abrucio (2000).

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Pernambuco, Santa Catarina, Alagoas e São Paulo, e o da Máfia dos Fis-cais, envolvendo a Prefeitura paulistana, os quais revelaram os resultadosda irresponsabilidade fiscal em larga escala.

A pressão externa também teve grande impacto. Ela derivou de umconjunto de crises financeiras ocorridas neste período - México (1995),Ásia (1997) e a Rússia (1998) -, como também da turbulenta desvaloriza-ção cambial, em janeiro de 1999. A crise russa já tinha levado o Congres-so Nacional a aprovar um amplo programa de cortes orçamentários nofinal do primeiro período FHC, pois dizia-se que ou se fazia isso, ou oBrasil entrava em bancarrota. O empréstimo articulado pelo FMI, institui-ções multilaterais e pelos EUA, na casa dos 40 bilhões de dólares, simbo-lizava tal pressão. O modo como aconteceu a desvalorização da moeda,ademais, reforçava a necessidade de aprofundamento do ajuste fiscal.

O ano de 1999 tornou-se, assim, ponto de inflexão importante não sóna política cambial e monetária, mas também na área fiscal, com a adoçãode uma forte restrição orçamentária e busca por superávits primárioscrescentes e sucessivos, acordados com o FMI. Em 2001, o superávitprimário chegou à casa dos 3.5% do PIB. Mesmo com esse resultadoexpressivo, a vulnerabilidade externa do país, fruto da aventura cambiale da aposta equivocada de que o mundo nos financiaria ad infinitum,ainda nos obrigará a muitos anos de sacrifício fiscal.

É neste contexto de grandes constrangimentos externos que a LRF éapresentada ao Congresso e aprovada, em maio de 2000, com rápidatramitação e sem grandes modificações no projeto original encaminhadopelo Executivo. Cabe realçar que ela obteve elevado índice de votosfavoráveis: 385 votos a favor, 86 contra e quatro abstenções.

A LRF procura estabelecer regras claras e precisas aplicadas às finan-ças de todas as esferas de governo. Trata principalmente da gestão dareceita e da despesa governamentais, do aumento da transparência finan-ceira, obrigando os governantes a prestarem contas regularmente, e pro-cura inculcar, com mais solidez, o planejamento como prática rotineira daadministração fiscal. Entre os principais pontos da Lei de Responsabilida-de Fiscal, merecem destaque:

a) Limitação de gastos com pessoal, estabelecendo não somente oquanto pode ser gasto por cada nível de governo em relação à receitalíquida, mas também - e aí está a sua novidade - o percentual equivalentea cada um dos Poderes, eliminando assim a distorção existente anterior-mente, especialmente nos governos estaduais.

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b) Reafirmação dos limites mais rígidos para o endividamento públicoestabelecidos pelo Senado Federal, indicando que o não cumprimentoserá punido igualmente com mais rigor. O principal mecanismo deenforcement não é o judicial, como se destacou na imprensa, mas sim aretenção de transferências constitucionais e a proibição de obtenção deempréstimos e de convênios com o Governo Federal.

c) Definição de metas fiscais anuais e a exigência de apresentação derelatórios trimestrais de acompanhamento. Foram criados também outrosmecanismos de transparência, como o Conselho de Gestão Fiscal - a serainda constituído.

d) Estabelecimento de mecanismos de controle das finanças públicasem anos eleitorais.

e) Por fim, e mais importante, proibição de socorro financeiro entre osníveis de governo, reduzindo o risco moral entre agentes públicos edestes com os privados.

Várias das normas produzidas pelo Senado ao longo dos últimos anosserviram de base para a LRF, tida como marco no ajuste fiscal do país. Seusobjetivos são prevenir déficits imoderados e reiterados, limitar a dívidapública a níveis prudentes, preservar o patrimônio líquido, limitar o gastopúblico continuado, estabelecer uma administração prudente dos riscosfiscais e oferecer amplo acesso das informações sobre as contas públicas àsociedade. Todos estes mecanismos estão atrelados a dois tipos de puni-ção: um de cunho administrativo, limitando a ação do governante quandonão cumprir adequadamente as regras; e outro de natureza político-jurídi-ca, cujo objetivo é punir no âmbito político, com retirada de direitos políti-cos ou do governante do próprio cargo, procurando também estabelecerpenas cíveis e criminais aos que desrespeitarem à LRF.

Um balanço ainda preliminar de dois anos e meio de vigência da LRFindica que, em grande medida, ela está sendo cumprida. Segundo infor-mações oficiais, o total das despesas com pessoal dos Executivos estadu-ais no Brasil reduziu-se em termos reais em torno de 2,6%. Isso ocorreuem função de um esforço de reestruturação do funcionalismo, do fim dopagamento de horas extras etc.. Ainda no que se refere aos governossubnacionais, o esforço de redução de gastos tem permitindo que osestados apresentem superávits primários crescentes a partir de 1999.Mesmo com esse esforço fiscal, dados da STN mostram que o crescimen-to das despesas na área social acompanhou a elevação das receitas (emmédia 7% ao ano nos estados), já que tais gastos estão, em sua maioria,

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constitucionalizados. Em outras palavras, não ocorreu uma redução dosWelfares locais por conta do cumprimento da LRF. Onde houve cortes foina rubrica de investimentos, com impacto muito alto em infra-estrutura esaneamento básico, principalmente.

Indo além do quadro geral da Federação, observa-se que a LRF foiimplementada diferentemente em função de variações regionais, estadu-ais e partidárias. As tabelas a seguir, construídas com dados sistematiza-dos por Moraes (2002), trazem informações interessantes relativas aosdois primeiros anos de vigência da LRF.

A distribuição regional dos municípios que apresentaram déficits (ta-bela III) indica que o Sudeste apresentou o maior número de municípioscom resultado primário negativo (689) em 2000, com destaque para Mi-nas Gerais, com 392 municípios deficitários. Já no ano seguinte, a RegiãoNordeste lidera o ranking, com 604 governos municipais em situação dedéficit. O Sul destaca-se pela excelente melhora nas contas públicaslocais, uma vez que 370 prefeituras conseguiram se ajustar no período de2000/2001.

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A tabela acima nos mostra a situação dos municípios que não têmconseguido apresentar regulamente os relatórios de gestão fiscal, tal comoexige a LRF. Se somarmos os dados do Norte e Nordeste, podemosobservar que essas Regiões concentram 40% de todos os municípiosbrasileiros. Porém, a existência de governos municipais irregulares chegaaí a 89% do total em 2000, caindo um pouco em 2001 (75%). Pior:constata-se que 88% dessas municipalidades não entregaram os relatóriosnos dois anos consecutivos (2000/2001).

Por outro lado, a Região Sul é a que tem as condições mais positivas.Mesmo possuindo 21% de todos os municípios brasileiros, apenas 2% em2000 e 4% em 2001 não encaminharam seus relatórios. Além disso, noSul também não houve nenhum caso de governo local que tenha deixadode apresentar relatórios nos dois anos consecutivos.

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A distribuição por estado revela uma extrema concentração de proble-mas em quatro deles: Bahia, Maranhão, Pará e Piauí. Se neles há apenas18% do total de municípios brasileiros, observa-se, por contraste, que aporcentagem de governos municipais irregulares atinge aí mais de 62%no ano de 2000. Em 2001 e no conjunto de 2000/2001, esses númerosforam de 39,2% e 62,4%, respectivamente.

Os problemas nos municípios destes estados podem ser explicadospor fenômenos administrativos e, sobretudo, políticos - clientelismo eausência de controles institucionais, por exemplo -, que se tornam assimobstáculos à consecução dos objetivos da LRF16. Não será, portanto, amera promulgação da lei ou a vontade de técnicos em Brasília que pro-duzirá automaticamente os resultados fiscais esperados no conjunto dosgovernos locais. Mudanças na burocracia e no sistema político subnacionalsão medidas essenciais para garantir a efetividade mais ampla dessa le-gislação, tendo em conta a diversidade do país.

No que se refere à dimensão partidária, observa-se na tabela VI quetodos os partidos melhoraram o desempenho fiscal de seus governos,independentemente da posição em relação ao Governo Federal (situaçãoversus oposição), em particular no que tange ao cumprimento dos limitesde gastos com pessoal (DP) frente à receita corrente líquida (RCL). Taisinformações dão indícios de que está se formando uma cultura de res-ponsabilidade fiscal entre os políticos no país. Chama a atenção, todavia,o fato de que o PT, maior partido de oposição, apresentou o maiorcrescimento do superávit primário entre 2000 e 2001, superando bastan-

16 A capacidade de fiscalização e aplicação de sanções por parte dos Tribunais de Contas (TCs) desses

estados revela um grande obstáculo à implantação do novo modelo fiscal. Pesquisa efetuada naInternet indicou que o site do TC do Pará está inacessível. Os dos demais estados estão desatualizadosou não disponibilizam as informações sobre as contas municipais. Além da não publicação dosresultados fiscais dos governos subnacionais, a falta de pessoal qualificado e bem treinado nosTribunais de Contas é outro agravante.

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te o desempenho do conjunto dos municípios brasileiros e, inclusive, odos governados pelo PSDB, partido do presidente da República.

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Sintetizando o conjunto de transformações político-institucionais ocor-ridas na área fiscal, pode-se dizer que o Brasil viveu um duplo movimen-to no campo das finanças públicas ao longo da redemocratização. Por umlado, a partir do esgotamento do padrão de financiamento do Estadonacional desenvolvimentista e do início da redemocratização, configurou-se uma situação de crise fiscal estrutural, com causas provenientes doantigo modelo de intervenção estatal, das relações federativas, das dívi-das interna e externa e da persistente inflação. Por outro, como processopouco percebido, importantes transformações reordenaram e disciplina-ram aos poucos as finanças públicas, especialmente no nível federal.Tais modificações formaram uma nova “camada geológica”, que permitiuavanços posteriores.

A ênfase no caráter incremental das mudanças não deixa de reconhe-cer a existência de momentos de inflexão ou conjunturas críticas, comosublinha o quadro apresentado mais adiante. Apenas ressaltamos que asalterações não se processam de forma abrupta e total, já que diversasreformas resultaram de um aprendizado com os erros anteriores e atémesmo da utilização de estruturas criadas, quase que imperceptivelmen-te, ao longo da redemocratização. De fato, as conjunturas críticas podempermitir a abertura de canais que o incrementalismo não teve forças paratal; não obstante, o sucesso das inovações depende da percepção de queo reformismo é um processo.

Sob este pano de fundo, ocorreram transformações no frontintergovernamental, com a extinção ou privatização dos bancos estadu-ais, a renegociação das dívidas dos estados e a instituição de novas regrasrelativas ao endividamento público, ações voltadas contra o modelo pre-datório anterior, além de ter havido um fortalecimento das instituiçõeseconômicas do Executivo, como o Banco Central e o Ministério da Fazen-da, as quais puderam coordenar melhor o funcionamento das finançaspúblicas federais, segundo os objetivos definidos pelos técnicos e apro-vados politicamente pelo presidente da República.

Entretanto, permaneceram ainda obstáculos sérios à sustentabilidadeda política fiscal, tais como a não aprovação de aspectos essenciais daReforma Previdenciária, que permitiriam a redução de seu déficit cres-cente; o aumento da carga tributária sem uma verdadeira racionalizaçãono campo das despesas; a centralização arrecadatória baseada em tributosde péssima qualidade, pois oneram demasiadamente a produção (Contri-buições Sociais, primordialmente); e, sobretudo, uma política desequili-

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brada de juros, responsável, como já indicado, por parte considerável daelevação do estoque da dívida pública no país. O quadro a seguir permi-te visualizar as variáveis que influenciaram o quadro fiscal nos últimosvinte anos.

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III - MUDANÇAS NAS INSTITUIÇÕES FISCAIS E ACCOUNTABILITY DEMOCRÁTICA

Nesta seção, procuraremos examinar as mudanças institucionais na áreafiscal à luz da problemática de accountability democrática, enfocando emparticular o desenho institucional produzido pelas resoluções do Senadodestinadas a controlar o endividamento público e pela LRF.

1. Regras legais de controle do endividamento público e accountabilitydemocráticaA partir da Resolução 78, de julho de 1998, o Senado criou restriçõesmais severas ao endividamento público no país e concedeu ao BancoCentral o poder de emitir parecer conclusivo sobre os pedidos deendividamento de todos os entes da Federação. Em outras palavras, eleautorizou o BACEN a não lhe encaminhar os pedidos que não se enqua-drem nas exigências legais. Configura-se assim uma clara delegação depoder, pela qual os senadores abriram mão da prerrogativa que o artigo52 da Constituição Federal de1998 lhes outorga, de forma exclusiva, deautorizar operações financeiras para União, estados, municípios e empre-sas estatais, como também de estabelecer as condições de financiamentointerno e externo e de fixar os limites de endividamento para todos osníveis de governo.

Em dezembro de 2001, novas resoluções do Senado (40 e 43) transfe-rem esta delegação de poder das mãos do Banco Central para a Secreta-ria do Tesouro Nacional (STN). Na opinião de alguns técnicos, a transfe-rência para a STN justifica-se pela necessidade de centralizar neste órgãoo controle das finanças públicas e de manter o Banco Central concentra-do em suas atribuições específicas de gestor da política monetária, espe-cialmente em uma eventual situação de formalização de sua autonomiaoperacional e política17.

Interessa-nos aqui avaliar o significado político desta delegação. Parase entender sua lógica política, é preciso considerar a complexidade dasrelações entre política e economia, ou, no caso específico, entre políticae constrangimentos fiscais. De um lado, na condição de representante deseu estado na arena política nacional e percorrendo uma carreira que

17 Entende-se por autonomia política do BACEN a capacidade de decidir sobre as metas da política

monetária, enquanto autonomia operacional implica apenas a capacidade de gerir os instrumentosnecessários para se alcançar os objetivos definidos pelas autoridades eleitas (SOLA, KUGELMAS eWHITEHEAD, 2002).

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passa freqüentemente por cargos executivos estaduais, o senador brasi-leiro sofre pressões dos governadores, que muitas vezes foram seuscolegas no Senado. Deste prisma político, recusar o endividamento paragovernos subnacionais é cortar uma das fontes fundamentais de reprodu-ção política do próprio ator. Por outro lado, ele é membro de um órgãoque tem como função constitucional garantir o equilíbrio financeiro dosentes federativos.

É possível interpretar esta delegação de poder considerando que ossenadores buscaram criar um mecanismo permanente para evitar pres-sões “irrecusáveis”, ao mesmo tempo em que acolhem as necessidadesde controle do endividamento18. Por intermédio das regras que dão aoBanco Central e depois a STN a capacidade de emitir parecer conclusivoe de rejeitar os pedidos que não preencham as condições legais, nãoencaminhando tais pleitos para a Comissão de Assuntos Econômicos, oSenado transferiu porção considerável de seu poder decisório em matériade endividamento para órgãos burocráticos.

Tomando emprestado a analogia utilizada de Jon Ester(1979) com rela-ção à racionalidade limitada de Ulisses diante das sereias, pode-se afir-mar que, conhecendo a “fraqueza de sua própria vontade” ou sua própriaincapacidade de resistir a pressões vindas dos governadores e de outrosparlamentares, os senadores como que amarraram suas mãos e taparamseus ouvidos, pondo fim a um processo altamente politizado, resolvidocaso a caso, e cujos custos tornavam-se cada vez mais elevados, especial-mente frente aos constrangimentos externos que exigem o equilíbriofiscal. Em outras palavras, a despolitização dos pleitos de crédito e suatransformação em matéria técnica, de alçada da burocracia, mostra comoa racionalidade política se acomodou com os ditames do ajuste fiscal nointerior do Senado (LOUREIRO, 2001). Ao fim e ao cabo, os senadoresmais do que amarraram suas mãos; eles “lavaram” suas mãos.

Cabe perguntar, todavia: qual é o custo político desta delegação? Aodespolitizar o processo decisório relativo ao endividamento público na

18 Eis o que diz a respeito um dos senadores entrevistados: “Quando a solicitação do Estado ou

município está no limite do previsto na resolução 65, e agora na 78, ainda assim há pressão dosgovernadores, dos secretários e parlamentares. Há exemplos semanais (dessa pressão)”. .São tambémexpressivas as palavras do secretário da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, encarregadade examinar os pleitos de endividamento: “Se as matérias sobre endividamento não são remetidaspara o Senado, se são tríadas dentro do BACEN, haverá menos pressões políticas junto aos senadores.É uma atitude de autodefesa, porque se chega ao Senado um pedido de autorização de endividamento,é muito difícil resistir politicamente às pressões”.

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suposição de que assim haverá um maior controle, este desenhoinstitucional tem efeitos consideráveis para a accountability democrática,na medida em que transfere as decisões para mãos de burocratas semresponsabilidade política. Na verdade, isto pode ser apenas a reproduçãoda velha e desgastada fórmula tecnocrática que predominou na gestãomacroeconômica no Brasil e em outros países latino-americanos, não sónos regimes autoritários, mas igualmente nos períodos democráticos(PALERMO E NOVARO, 1996; LOUREIRO, 1997). O discurso que justifi-ca esta prática pode ser assim resumido: “para evitar a interferênciapolítica, que atrapalha a melhor decisão técnica, a solução é o insulamento,caminho mais adequado para se alcançar maior eficiência e celeridadenos resultados das políticas ou reformas econômicas”. É reduzido, comefeito, o espaço democrático do debate, da discordância e, o pior detudo, do controle democrático, confinado que fica a uma só arena, exata-mente a mais fechada de todas.

As práticas reiteradas no país de clientelismo e de irresponsabilidadefiscal não podem justificar restrições das formas democráticas de controledas finanças públicas. Afinal, não seriam os políticos, justamente porresponderem aos cidadãos, os atores fundamentais na criação de umacultura capaz de equilibrar os ditames do ajuste fiscal com as necessida-des de gerar desenvolvimento, emprego e bem estar social, muito maisdo que os burocratas, por mais competentes e portadores de ethos repu-blicano que sejam? Mais do que comparar a legitimidade desses agentes,o fundamental é saber que a transformação do modus operandi dos re-presentantes políticos constitui o principal mecanismo de consolidaçãodas reformas do Estado. Se a burocracia ajudar neste processo, tantomelhor; o que não deve ocorrer é o alijamento dos políticos das decisõestécnicas, visto que eles seriam, por natureza, “irresponsáveis”.

2. Lei de Responsabilidade Fiscal e AccountabilityA aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi considerada ummarco no plano das relações intergovernamentais, não apenas porqueobjetivou melhorar a gestão fiscal de todos os níveis de governo, mas,sobretudo em razão de apontar para um novo padrão de responsabilizaçãomútua entre a União e os governos subnacionais. Em termos de accountabilitydemocrática, ademais, deve-se ressaltar que o processo, embora bastanteligeiro em sua aprovação, foi marcado por intensa negociação e barganhaao longo dos últimos dois anos do primeiro governo FHC.

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Não se pode esquecer, no entanto, que a pressão internacional vincu-lada à mudança do regime cambial foi uma variável exógena que atuoufortemente sobre o cálculo dos atores - aliás, tal qual ocorrera em outrasmodificações fiscais desse período. A variável externa aparece, em mai-or ou menor medida, nas decisões dos Parlamentos de qualquer país domundo hoje, não sendo ilegítima em si, mas muitas vezes ela se colocacomo uma força indiscutível e inegociável que pode afetar negativamen-te a accountability democrática.

A maior responsabilização entre os entes federativos foi uma conquistaem prol do melhor desempenho econômico, pois evita o endividamentoperverso que ocorria antes. Representou igualmente um avanço da demo-cracia, uma vez que tornou mais transparente e responsiva a decisão dosgovernos em relação aos demais, ao estabelecer, por exemplo, aobrigatoriedade de apresentação de relatórios periódicos e impor sançõesa quem não cumprir as regras. Permitiu, assim, reduzir a chamada “tragé-dia dos comuns” que pode caracterizar as relações intergovernamentais emuma Federação.

Ressalte-se, porém, que esse mecanismo básico de accountability fede-rativo está mais preocupado em controlar passo a passo os governossubnacionais do que em discutir regularmente com os atores envolvidos agestão fiscal do país. Tal modelo tem reforçado a concentração do podernas mãos da burocracia do Executivo federal, que centraliza o processo decontrole, geralmente deslegitimando os reclamos dos outros entes federati-vos. Deste modo, há o perigo de que o objetivo de transparência contidoexplicitamente na Lei acabe por funcionar mais como instrumento de con-trole do Governo Federal sobre os governos subnacionais do que se tornaruma real prestação de contas por parte dos representantes eleitos aoLegislativo e aos cidadãos.

A accountability democrática ganharia mais força se a LRF colocasse emfuncionamento o mecanismo do Conselho de Gestão Fiscal previsto emseu arcabouço jurídico, mais precisamente no artigo 67. Seu principal obje-tivo seria harmonizar e coordenar os entes da Federação, constituindo-senum fórum que reuniria os diversos atores federativos, da sociedade civil erepresentantes dos Poderes, os quais avaliariam e discutiriam aimplementação da Lei, podendo até propor a modificação da legislação,caso julguem necessário. Em resumo, seria uma arena na qual os principaisagentes negociariam ajustes no processo e compartilhariam decisões.

O funcionamento do Conselho de Gestão Fiscal depende de uma lei

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que o regulamente. É bem verdade que o Executivo Federal enviouproposta neste sentido ao Congresso - projeto de Lei 3744/2000 -, mastambém está claro que não houve vontade política para que essa legisla-ção avançasse em sua tramitação. Na ausência dessa regulamentação,todo o poder foi concentrado na Secretaria do Tesouro Nacional (STN),que vem editando normas gerais de consolidação das contas públicas(VIGNOLI et alii., 2002: 192-194).

O que explica a posição adotada pelo Governo Federal é o predomí-nio de uma visão em que a variável democrática da negociação e docontrole é percebida como algo que pode afetar negativamente os resul-tados da política fiscal. O temor da equipe econômica vincula-se à possi-bilidade de retorno do antigo modelo federativo, marcado pelairresponsabilidade predatória dos governantes subnacionais. Trata-se deuma concepção fiscalista que, no fundo, crê que só uma lei geral, queultrapasse mandatos e governos, pode garantir o equilíbrio fiscal. Emsuma, uma forma de sepultar a política, em sua acepção mais ampla, noterreno das finanças públicas.

A história de irresponsabilidade fiscal do país e o peso da gramáticaclientelista são razões que não podem ser negligenciadas. Não obstante,da maneira como está definida a Lei de Responsabilidade Fiscal, coloca-se em questão o direito à mudança das políticas governamentais. O queestá em jogo aqui é a relação sempre necessária de equilíbrio entregoverno e Estado, de tal modo que é preciso sim ter regras estáveis noessencial, mas também deve haver um espaço para negociações e mu-danças que exprimam a dinâmica democrática do voto. Reproduz-se aquia desconfiança subjacente à certa visão, muito difundida nos meios aca-dêmicos e mesmo na grande mídia, que supõe ser necessário atar asmãos dos políticos mediante regras técnicas perfeitas para se alcançar obom resultado econômico, como já ocorrera no caso do Senado brasileiroacima mencionado.

Foi também seguindo esta ótica que, mediante um processo de dele-gação quase irrestrita de poderes ao Banco Central, o Brasil adotou du-rante quatro anos (1994-1998) uma política cambial errada que, imper-meável às críticas, não pôde ser aperfeiçoada ao longo do caminho. Oresultado foi duplamente ruim: para a economia e para a democracia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Argumentamos no texto que houve reformas fiscais no país, efetuadas aolongo de mais de duas décadas, embora algumas dimensões ou proble-mas ainda não tenham sido tocados. Muitas vezes este processo se deude forma incremental, e não por um modo abrupto e linear de mudança.Houve avanços e recuos nas propostas ou objetivos inicialmente estabe-lecidos e amplas negociações com diferentes atores políticos.

Argumentamos também que o modelo incrementalista ou gradual é omais compatível com democracias de tipo consensual, como o sistemapresidencialista de coalizão existente no Brasil. O incrementalismo re-quer um Executivo forte do ponto de vista de governança, ou seja, doponto de vista da competência da burocracia governamental paraimplementar de forma efetiva a agenda do governo. Por outro lado, ele éa expressão de um arranjo institucional no qual o Executivo é politica-mente limitado ou constrangido, ou seja, forçado institucionalmente alevar em conta e negociar continuamente com outros atores políticosrelevantes e mesmo com grupos organizados na sociedade.

Cabe ressaltar que democracia consensual não significa Executivo fra-co e tampouco fragmentação de poderes sem responsabilidade mútua. Oque se requer é um governo forte em termos de capacidade de coorde-nação, formulação, implementação e avaliação de políticas, masinstitucionalmente constrangido, e um sistema político, especialmentenas esferas congressual e federativa, com poder de controle, mas respon-sável perante o processo decisório.

Concordando com a análise de Vicente Palermo (1998) sobre experi-ência comparada de Brasil e Argentina, as reformas incrementalistas su-põem que os projetos de mudanças não sejam elaborados no formato de“pacotes” orgânicos (blueprint), nos quais os objetivos supostamente sósão alcançados se não ocorrem “desvios” em relação ao que fora inicial-mente planejado pelo grupo de policymakers. Qualquer alteração resul-tante da luta política, para uma visão mais tecnocrática e de cunho pura-mente majoritário, resulta em descaracterização ou perda de eficácia doprocesso de reforma. Ao contrário, reformas gradualistas implicam a cons-trução de projetos de mudanças processados ao longo do tempo, adaptá-veis a novas informações e abertos à dinâmica das interações estratégiasde uma pluralidade de atores políticos.

O padrão de reformas econômicas no Brasil correspondeu, em parte,

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ao modelo incrementalista. Isso pôde ser percebido em aspectos tributá-rios e em certos momentos da negociação federativa, em especial. Emoutros momentos, contudo, prevaleceu uma visão majoritária quanto aoprocesso decisório, cujo caso exemplar foi a condução da política mone-tária e cambial pelo Banco Central. Assistiu-se a uma convivência entreestes dois modelos e, segundo o aferido neste trabalho, quanto maisconsensual o processo, mais efetivas foram as políticas.

No caso das reformas fiscais, constatamos a existência de negociaçõescontinuadas entre os atores políticos no Legislativo e nos governossubnacionais. No entanto, o resultado final, contido nos desenhosinstitucionais que têm servido de base para o controle do endividamentopúblico e para a LRF, não caminharam na mesma direção. Restabeleceu-se, assim, a dicotomia entre a concentração de decisões em fóruns insula-dos do Executivo e os requisitos democráticos de responsabilidade políti-ca estendida.

Contrapondo-se à nossa visão, parte da literatura ressalta que é preci-so levar em conta o custo político e financeiro das negociações sobre oajuste fiscal. Do nosso ponto de vista, esta é apenas uma possibilidade enão uma condição necessária. Além do mais, é sempre conveniente lem-brar que a falta de negociação pode dificultar a implementação das refor-mas, gerando, por sua vez, seus próprios custos. A questão está em comoincorporar a negociação nas políticas de reformas de tipo incremental,considerando sempre que os atores podem mudar suas posições, alteran-do a relação inicial de custo-benefício deste processo.

A LRF é exemplo bastante significativo de como mudanças substanti-vas em uma área de política pública, particularmente difícil, como afiscal, adveio sim de transformações institucionais, mas igualmente deri-vou de uma nova coalizão de interesses e foi gestada sob uma novacultura política. Em outras palavras, o sucesso da Lei de ResponsabilidadeFiscal, a despeito de seu conteúdo politicamente “amargo”, é resultadode uma mudança induzida por um grupo no poder que conseguiu alterar,paulatinamente, as preferências da maioria, num processo que tende asedimentar uma nova forma de organizar as finanças públicas brasileiras.As instituições são necessárias para garantir a continuidade desse movi-mento, só que elas não podem, sob o ponto de vista democrático, “amar-rar” completamente as ações futuras, proibindo que correções de rota e/ou mais negociações sejam feitas.

O início do próximo governo será um grande teste para as duas con-

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cepções de reforma. No terreno fiscal, a rolagem da dívida dos governossubnacionais é colocada como o maior fantasma, uma vez que se teme oretorno do padrão populista e irresponsável que vários governadores eprefeitos adotaram ao longo da redemocratização. Seria um passo erráticoque nos levaria a perder a estabilidade monetária. Argumentos comoestes são fortes para terminar qualquer diálogo. Entretanto, a legitimidadedos pleitos dos governantes locais, muitos recém ungidos pelas urnas,deriva de um fato tecnicamente comprovado: o comprometimento com opagamento da dívida torna-se cada vez mais insustentável e reduz apossibilidade de investimentos, sobretudo porque os contratos foram as-sinados com a perspectiva de um melhor desempenho da economia,capaz de tornar crível a obediência ao que fora assinado.

O exaustivo estudo de Mônica Mora (2002) analisa a evolução doendividamento estadual nos últimos anos, mostrando os avanços obtidos,em especial no que se refere ao superávit primário, e conclui:

“(...) em decorrência do Programa de Reestruturação Fiscal e Financei-ra [que envolveu a privatização e a adoção de medidas para alcançarsuperávits primários], a dívida teve sua trajetória regularizada. Contudo, oresultado fiscal em muitas UFs [Unidades federativas] foi, em parte, fi-nanciado pelos recursos obtidos com a alienação de bens e de receitasprovenientes de operações de crédito e de transferências voluntárias doGoverno Federal. (...) Com o esgotamento dessas fontes de recursos, asustentabilidade da dívida dependerá das interações entre o superávitprimário, a taxa de crescimento do PIB e da taxa de juros” (MORA, 2002:62 - grifo nosso).

Como se vê, o êxito dos governos estaduais em equacionar seus pro-blemas de endividamento depende de três variáveis. A primeira é a taxade juros, fator que não é controlado pelos estados. O pior é que ninguémseriamente supõe uma redução substantiva da taxa de juros no curtoprazo, mesmo os analistas que acreditam ter havido um exagero na ele-vação recente. A segunda variável é a obtenção de superávit primário,ponto em que houve bastante avanço, mas há empecilhos decorrentesdos gastos sociais obrigatórios previstos pela Constituição, da necessida-de de não diminuir a atual estrutura de serviços públicos e, sobretudo,das despesas com inativos. Esta última questão vincula-se à formação deFundos Previdenciários do funcionalismo e de recursos para capitalizá-los. Em poucos lugares houve construções institucionais neste sentido.Desde o segundo mandato de FHC, com a mudança no comando do

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Ministério da Previdência, a União vem ajudando e induzindo a confor-mação de tais Fundos, mas como os recursos que poderiam ter sidoutilizados para a capitalização, provenientes da privatização, foram utili-zados para abatimento de dívida e gastos correntes, os governos estadu-ais têm um longo caminho para resolver este desequilíbrio financeiro.

O reforço do superávit primário vincula-se, ainda, à elevação dasreceitas, que pode ser obtida pela modernização da máquina tributária,algo que já vem sendo feito, com apoio técnico do Governo Federal,além do fim da guerra fiscal, que depende da reforma tributária. Masganhos substantivos de arrecadação advêm fundamentalmente do cresci-mento do PIB, última variável citada pelo estudo de Mônica Mora. Só queaqui também os estados pouco podem fazer. Somente mudanças estrutu-rais na economia, que têm lugar na esfera nacional (no Congresso e/ouno Executivo), poderão levar à melhora do desempenho econômico dopaís.

Por esta razão, é que o trabalho de Mônica Mora conclui o seguinte:“(...) o crescimento substancial da economia é condição sine qua non

para assegurar a sustentabilidade da dívida estadual no longo prazo. Mes-mo com elevadas taxas de crescimento do PIB não é certo que os estadosalcançarão os resultados desejáveis. Simultaneamente, constatou-se que ocontrole dos estados sobre o resultado primário não depende exclusiva-mente do seu esforço fiscal. Ao contrário do que se possa imaginar, osestados possuem uma pequena margem de manobra sobre as variáveisda receita” (MORA, 2002: 65).

Estamos, portanto, diante de dois diagnósticos: o primeiro ressalta ocaminho irresponsável dos governos estaduais durante a redemocratizaçãoe afirma a necessidade de restrições orçamentárias fortes para evitar oretorno ao modelo predatório de relações intergovernamentais; o segun-do mostra que, sem crescimento econômico, o padrão vigente de ajusta-mento estadual é insustentável. Ambos os argumentos estão corretos, pormais paradoxal que possa parecer. A solução passa, a um só tempo, pelacriação de normas e valores vinculados à responsabilidade fiscal e peloestabelecimento de condições políticas e econômicas capazes de viabilizartal cenário.

A invenção deste (novo) modelo só pode ocorrer por intermédio deuma estratégia incremental, que parta de um arcabouço mínimo de regrasde convivência e de arenas democráticas de negociação, a partir dasquais os entes federativos realizem barganhas públicas e transparentes,

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de modo a responsabilizar todos por seus atos; que se utilize das liçõesdo passado e das instituições existentes, aperfeiçoando-as gradualmentee com parcimônia; e que seja ainda capaz de compatibilizar os objetivosde crescimento e ajustamento, uma vez que o fiscalismo não é desejávele muito menos o populismo orçamentário.

Seguindo esta linha, propomos o seguinte encaminhamento à rolagemda dívida dos estados e às instituições vinculadas ao controle doendividamento. É preciso, primeiramente, estabelecer um compromissopela restrição orçamentária responsável, tal qual exposto nos principaispontos da LRF - embora o “crescimento” dessa lei tenha embutido nelaaspectos que vão além do arcabouço mínimo necessário, amarrando ques-tões que não deveriam estar lá. Em segundo lugar, o único meio degarantir a sustentabilidade das dívidas estaduais é o crescimento econô-mico, e não a mera permissão de mais gastos públicos. Assim sendo, parase renovar o pacto federativo no plano fiscal, União e estados devem seunir a fim de aprovar medidas capazes de melhorar o desempenho eco-nômico no curto e médio prazo. As reformas tributária e previdenciáriasão essenciais neste sentido, bem como uma política mais agressiva paraas exportações e medidas capazes de favorecer o aumento da poupançae do crédito no país. Tais ações são deliberadas e aprovadas em arenasnacionais, mas como algumas delas dependem da anuência do CongressoNacional, os líderes regionais têm de se comprometer a apoiá-las, poisdisso depende o crescimento e, por conseguinte, a sustentabilidade doendividamento subnacional.

Outras medidas que favoreceriam o crescimento econômico passampor parcerias intergovernamentais. Destaca-se, aqui, o investimento eminfra-estrutura urbana, especialmente em habitação e saneamento, o quegeraria mais empregos e renda sem afetar a balança comercial. Alémdisso, tais parcerias precisam ser mais incentivadas para racionalizar ogasto público no país e para melhorar o desempenho em áreas nas quaissó a ação conjunta pode resolver, como é o caso da Segurança Pública. Aarticulação federativa, com forte apoio do Governo Federal, não implicamenor responsabilidade dos governos estaduais com suas tarefas, parti-cularmente em termos de finanças públicas. É necessário continuar per-seguindo o superávit primário no que cabe a estes entes e, para tanto, aresolução do problema previdenciário do funcionalismo tem de se tornarprioridade máxima.

Todas estas ações vão exigir uma forma mais articulada e negociada

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de relacionamento federativo. A criação do Conselho de Gestão Fiscal eo aprimoramento da atuação do Senado são passos importantes para estaestratégia. O incrementalismo, como dito antes, requer arenas democráti-cas e sujeitas à responsabilização pública. Isto deve ser feitoconcomitantemente ao reforço da governança, isto é, da qualidade daburocracia, dando-lhe um papel formulador e implementador de desta-que, mas sem que ela se torne o único núcleo das decisões. A LRF e asfinanças intergovernamentais, em resumo, precisam ser melhoradas pordecisões técnicas e políticas.

O caminho do incrementalismo talvez seja percebido como mais difí-cil. Só que ele é o único capaz de evitar tanto o insulamento burocráticocomo o clientelismo desbragado. Sua dinâmica passa por um modelomais responsável em relação ao desempenho e às demandas dos cida-dãos. Foi Max Weber o primeiro a mostrar que o desafio das democraciascontemporâneas encontra-se na integração da lógica da eficiência com alógica democrática, e não na sua separação. Decerto que a tensão sem-pre existirá na relação entre política e técnica e a resolução disso passacertamente por um trade-off entre elas. A via mais adequada, no entanto,é procurar estabelecer ganhos mútuos entre democracia e eficiência. É oque tentamos comprovar neste artigo, tanto do ponto de vista normativocomo, principalmente, pela análise da experiência brasileira recente.

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A TRANSIÇÃO INCOMPLETA:A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

NO GOVERNO FHCMARCUS ANDRÉ MELO

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INTRODUÇÃO

Ao longo da década de 90, a reforma da previdência social ocupou lugarcentral na trilha de reformas e permanece um dos issues fundamentais daagenda pública nacional. Duas razões apontam para esta importância. Emprimeiro lugar, a própria magnitude do déficit do sistema previdenciárioque passou a representar, em 2000, 4,7% do PIB, convertendo-se emelemento central da estabilidade macroeconômica e da política fiscal. Emvirtude do desequilíbrio dinâmico gerado por variáveis demográficas,atuariais e pela grande informalização do mercado de trabalho (com re-dução do número de contribuintes), o déficit do sistema previdenciáriotende a exibir um comportamento crescentemente elevado e potencial-mente explosivo. Esta situação deficitária concentra-se, sobretudo, noregime dos servidores públicos - onde a viabilidade política das mudan-ças é mais reduzida. Neste regime, o número de ativos igualou-se ao depensionistas e inativos (cf. Gráfico 1).

Enquanto o déficit do regime geral dos assalariados representava, em2000, 0,9% do PIB, o do regime dos servidores federais atingiu, nesseano, 2,0%, e os déficits dos regimes dos servidores estaduais e munici-pais, alcançaram 1,5% e 0,3%, respectivamente. A previdência passou deum superávit de 16,6 bilhões em 1988, para um déficit de R$ 9,1 bilhõesdez anos depois, em 1998 (cf Gráfico 2).

A longo da década de 90, as despesas da previdência tiveram umefeito de deslocamento (crowding out) no orçamento público. Em 1987,25% das despesas não financeiras do Orçamento Federal eram destinadas

1 Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco e

do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE.

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ao pagamento dos benefícios do INSS e dos inativos e pensionistas daUnião. Em 2001, essas transferências alcançaram 61% do total da despe-sa. No mesmo período, os gastos com custeio e investimentos, quecorrespondiam a 51% do Orçamento, reduziram-se para 13%.

Em segundo lugar, há flagrante iniqüidade no sistema previdenciário,que está assentado em dois regimes diferenciados e embute, no seufuncionamento global, uma lógica redistributiva perversa e regressiva. ORegime Geral da Previdência Social (RGPS) e o Regime Especial dosServidores Públicos são regidos por regras distintas no que se refere àtaxa de reposição das pensões e critérios de elegibilidade. Enquanto oRGPS, que se destina aos trabalhadores sob o regime de trabalho da CLT,opera com um teto de benefício, o regime dos servidores públicos, regi-dos pelas normas do Regime Jurídico Único, prevê a aposentadoria coma integralidade dos proventos na ativa. As regras diferenciadas de elegi-bilidade também são mais favoráveis no Regime Especial dos Servidores.

As décadas de 80 e 90 foram pródigas em propostas de reforma dosistema previdenciário, apresentadas por parlamentares de vários parti-dos, entidades sindicais de trabalhadores e patrões, e grupos de interes-se. Em março de 1995, o governo do presidente Fernando HenriqueCardoso apresentou uma proposta de reforma do sistema previdenciárioatravés da PEC 33, iniciando um ciclo reformista ainda inconcluso. Embo-ra tenha sido aprovada como Emenda Constitucional 20, em dezembro de1998, e implementada através de duas leis complementares, em novem-bro de 2002, ainda encontra-se em processo de votação o Projeto de Lei(PL) complementar 9, de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para ainstituição de regime de previdência complementar pela União, pelosEstados, e pelos Municípios. Por ele seria estabelecida a virtual unifica-ção dos benefícios do sistema público e do INSS. A trajetória deste cicloexibe várias características singulares em confronto com outras áreas dereforma: a elevada taxa de conflito no processo de tramitação legislativae no debate público, o grande número de derrotas do Executivo noprocesso de aprovação, e sua transformação em um padrão tipicamenteincrementalista de mudanças.

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O texto a seguir está organizado em seis seções. A primeira examina areforma brasileira no contexto internacional, com o foco nas transforma-ções da agenda internacional, em termos dos modelos de reforma preco-nizados, e suas repercussões para o caso brasileiro. As segunda e terceiraseções examinam o conteúdo da reforma e reconstituem sua tramitaçãolegislativa. A quarta discute, do ponto de vista analítico, os fatores queinfluenciaram o conteúdo e o processo da reforma brasileira. A quintaseção apresenta o saldo do processo, confrontando a proposta com o quefoi aprovado no ciclo longo da reforma: emenda constitucional mais leiscomplementares. Ao final, são feitas referências à provável adoção deuma reforma “à italiana” no futuro governo Luis Inácio Lula da Silva.

I - A REFORMA BRASILEIRA E A AGENDA INTERNACIONAL

A reforma previdenciária brasileira foi produzida e implementada no inte-rior de uma agenda que tem origem internacional. Este processo ocorreuem ambiente mutante, sujeito a transformações importantes. Mas, não só aagenda de reformas se alterou, também modelos distintos emergiram nocontexto das experiências implementadas na década de 90.

Embora o núcleo do debate fosse a mudança do regime previdenciário,

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de repartição simples e benefício definido para o regime de capitalizaçãoe contribuição definida, pelo menos três fases distintas podem ser divisa-das na evolução dessa agenda.

O primeiro momento corresponde às reformas da década de 80 e estáassociado à proposta chilena de 1982. Como amplamente analisado, asbases desse modelo são a constituição de um pilar único privado e oregime de capitalização individual. O modelo é financiado inteiramentepelos trabalhadores, abolindo-se a contribuição patronal. Nele não existeum pilar universal público, cabendo ao Estado subsidiar as cotas dos contri-buintes que não lograrem integralizar um fundo de aposentadoria queassegure o piso mínimo. Na experiência chilena, o Tesouro Nacional arcoucom os custos de transição de um sistema a outro, mediante aportes quechegaram a representar 5% do PIB. Este custo representa as aposentadoriascorrentes que eram financiadas em regime de repartição pelos contribuin-tes ativos do sistema.

Cumprindo papel extremamente importante na difusão internacional desistemas de capitalização, o modelo chileno não chegou a ser implementadoem outros países. No Brasil, ele informou um conjunto de propostas dereforma apresentado durante o governo Collor e durante a Revisão Consti-tucional de 1993-1994. Embora tenha encontrado receptividade no cesarismoreformista do governo Collor, esse modelo experimentou arrefecimento nopaís com a difusão dos estudos setoriais patrocinados pelo Banco Mundialque culminaram na publicação, em 1994, do seu relatório anual Avertingthe Old Age Crisis. Com este relatório, um novo momento na agenda dereformas emerge. Na realidade seu impacto se deu em dois níveis: a) nacrítica aos modelos previdenciários públicos baseados no regime de repar-tição, e b) na proposição de um sistema ideal baseado em três pilares.

De acordo com o relatório do Banco Mundial, os programas públicossão deficientes por várias razões. Primeiramente, eles não conseguempreservar os valores dos benefícios contra os efeitos da inflação. Comonão há relação entre contribuições e benefícios, esses últimos estão sujei-tos à manipulação oportunista. O mecanismo de repartição também asse-gura certa invisibilidade das distorções no financiamento, porque o ajustedo sistema se dá de forma gradual via aumento de alíquotas, acumulando-se uma “grande dívida previdenciária implícita”.2 Some-se a isto o impac-

2 O conceito de dívida previdenciária implícita (o valor presente do estoque de compromissos

previdenciários contratados pelo estado com os atuais trabalhadores e pensionistas) foi um doscomponentes centrais da crítica aos modelos de repartição.

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to de alíquotas altas sobre o mercado de trabalho, gerando informalização.Os sistemas vigentes estimulam igualmente a aposentadoria precoce, namedida em que contêm desincentivos à permanência, reduzindo a ofertade trabalhadores mais qualificados no mercado de trabalho. Ademais, osprogramas públicos de repartição simples têm um viés distributivo, combenefícios maiores para os mais ricos. Esses programas excluem a grandemassa de trabalhadores do setor informal, utilizam formas de cálculo debenefícios extremamente generosas e sem sustentação financeira. E, ain-da, por terem benefícios definidos, são facilmente manipulados politica-mente, sendo o seu custo socializado pelos trabalhadores ativos (há trans-ferência intergeracional de renda das coortes de segunda e terceira gera-ções de afiliados para as primeiras)3. Finalmente, tais programas têm umimpacto fiscal extremamente negativo, não contribuindo para a formaçãode poupança na economia.

Ao contrário daquele implementado no Chile, o modelo ideal preconi-zado pelo Banco Mundial está assentado em três pilares. O primeiro pilardeve ser público e universal, e deve garantir um piso mínimo, que repre-senta um safety net. Ele deve ser financiado pelo Tesouro ou por algummecanismo alternativo. Ele pode ser baseado em benefícios uniformesou baseado em anos de contribuição, como na Inglaterra e Argentina, ou,ainda, corresponder a um piso previdenciário, como no Chile. Alternati-vamente pode ser concedido de forma seletiva, baseado em um meanstest, como na Austrália. O segundo pilar deve ser compulsório, baseadona capitalização individual e, portanto, em um plano de contribuiçãodefinida. E o terceiro representa o sistema de aposentadoria complemen-tar facultativo, privado e em regime de capitalização.

O terceiro estágio na evolução da agenda setorial de reformas teminício no final da década de 90, à luz das experiências internacionais dereforma e a partir das críticas ao modelo difundido pelo Banco Mundial.Um marco importante foi a publicação pelo próprio Banco Mundial deRethinking Pension Reform: Ten Myths about Social Security Systems, dePeter Orszag e J.Stiglitz (ORSZAG e STIGLITZ 1999), apresentado emsimpósio de avaliação das reformas previdenciárias, organizado por aquelainstituição. Pela importância do segundo autor - à época economista che-fe do Banco Mundial - as críticas contundentes que fazem no trabalho aossupostos benefícios macroeconômicos dos sistemas de capitalização tive-

3Para uma crítica cf. LoVuolo, 1977.

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ram enorme impacto na comunidade de especialistas. Eles afirmam que,aos mitos derrubados pelo Averting the Old Age Crisis, seguiram-se ou-tros que o próprio relatório construiu.

Na segunda metade da década, esta agenda pública está balizada portrês questões:

a) a experiência internacional apresenta um mix bastante diferenciadode experiências;

b) os custos de transição são impeditivos de reformas para regimes decapitalização;

c) os regimes de repartição puros não são inconsistentes do ponto devista macroeconômico, e os modelos de capitalização só são recomendá-veis em situações específicas.

Com relação ao primeiro item, pode-se afirmar que embora a década de90 tenha assistido a um conjunto extremamente importante de reformas emquase todas as partes do globo, e que muitas experiências tenham conver-gido para a adoção de mecanismos de capitalização, forjou-se um consensode que não há um modelo do tipo “one size fits all”. Na América Latina,foram implementadas reformas da previdência social na Argentina, Méxi-co, Uruguai, Peru, El Salvador, Colômbia e Bolívia. Fora da região empre-enderam-se reformas na Austrália, França, Holanda, Eslovênia, Alemanha,Inglaterra, Dinamarca, Itália, Suécia, entre muitos outros países.

No que tange aos novos sistemas de tipo multipilar, pode-se discernirpelo menos três modelos de reforma. O primeiro é o modelo da OCDEno qual os empregadores e/ou entidades sindicais escolhem a agênciagestora do investimento para cada empresa ou categoria profissional, elefoi utilizado na Inglaterra, Suíça, Dinamarca e Austrália (JAMES, 2000).

O segundo modelo é o sueco, de contas escriturais ou “nocionais” -um primeiro pilar de repartição simples reformado que pode sersuplementado por um segundo pilar. Ele foi copiado pela Itália, Polônia,China, e, como será discutido nesse texto, também adaptado ao Brasil. Arigor, dificilmente este modelo pode ser considerado de capitalização, anão ser em termos da rationale de sua adoção, que se assemelha a ummodelo de capitalização virtual.4

4 Um plano escritural de contribuição definida é um plano em que o trabalhador tem uma conta

individual que lhe é creditada com suas contribuições mais os juros. No entanto, a acumulação éescritural, e não real, devido ao fato de que a contribuição dos trabalhadores é imediatamente pagaaos aposentados, em vez de ser investida. O sistema permanece essencialmente como de repartiçãosimples. Na aposentadoria, a acumulação escritural é convertida em um fluxo de renda efetiva,

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Há, ainda, o modelo latino-americano, que se baseia na escolha indivi-dual pelos trabalhadores das entidades gestoras de seus fundos de apo-sentadoria. Este foi utilizado no Chile, Argentina, Uruguai, México, Co-lômbia, e Bolívia5.

Com relação ao segundo ítem citado, houve o reconhecimento efetivodos problemas de custos de transição, sobretudo no caso dos sistemasque apresentavam uma dívida previdenciária implícita de grande magni-tude. Esta foi, na realidade, a rationale para a adoção dos modelos decapitalização escritural. A centralidade dos custos de transição foi reco-nhecida inclusive na América Latina em relação à adoção do modelochileno na região. No caso brasileiro, as evidências são claras de que avisibilidade deste problema se acentuou bastante ao longo da década de90 (MELO 2002; CVM 1994). A proposta feita pelo economista AndréLara Rezende, de fundar a dívida previdenciária e de absorvê-la peloTesouro Nacional (com a utilização de recursos da privatização) foi aban-donada pela magnitude da dívida previdenciária e por seu impacto norisco-país. Os custos de transição também ocuparam lugar central naagenda de reformas nos países europeus.

Embora o Banco Mundial tenha prescrito, no Averting the Old AgeCrisis, como estratégia de reforma, uma seqüência virtuosa de incorpora-ção dos custos de transição ao novo regime, o problema não era tratadocom a importância que passou a ter no final da década de 90. Estaseqüência proposta consistia nos seguintes passos: O Banco sugere queo processo de reforma se inicie com ajustes em aspectos específicos dosPlanos de Custeio e de Benefícios. A seguir, devem ocorrer modificaçõesmais importantes, que se refletem também, na gestão administrativa, alémdos quesitos anteriores, cuja tendência é a efetivação de alterações maisvigorosas. Por fim, são modificados o regime financeiro e a gestão paraum plano de capitalização individual, gerido pelo setor privado, esteseria a derradeira etapa de todo o processo.

Para enfrentar especificamente o problema dos custos de transição aonovo regime, dever-se-ia reformar o sistema antigo, mediante enxugamento

supostamente com base em termos atuarialmente mais consistentes. Nesse sentido, a adoção do planoescritural de contribuições definidas é equivalente a uma reforma dos sistemas públicos de repartiçãosimples, o qual pode ou não vir a ser acompanhado de um segundo pilar capitalizado (caso daSuécia) (JAMES 2000; MYLES 1998, 240-241). A introdução do “fator previdenciário” na reforma daprevidência brasileira foi inspirada por esse tipo de modelo.

5 Note-se que países como Peru não criaram um pilar básico, público.

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dos benefícios, elevação da idade de aposentadoria e desincentivo àsaposentadorias precoces, uso de maior rigor quanto aos critérios de ele-gibilidades para benefícios, mudança do método de cálculo de benefíciose indexação dos valores, de modo que a dívida implícita fosse reduzida.Esta estratégia foi adotada no Chile, na Argentina e no Uruguai. As medi-das cortaram os benefícios que deviam ser pagos àqueles que permane-cessem no sistema antigo, aos que se transferissem para o novo sistema eaumentaram a probabilidade de migração de um para outro. Em suma, aestratégia recomendada busca desvalorizar o estoque de promessas debenefícios previdenciários em regimes que são considerados inconsisten-tes e/ou iníquos.

Como será analisado a seguir, não resta dúvida de que o Brasil temrevelado muitos aspectos similares a esse script. A proposta previdenciáriado Governo Fernando Henrique Cardoso foi, em larga medida, uma re-forma paramétrica que lançou as bases para a transformação mais estrutu-ral do sistema6. Deve-se ressaltar que o papel das agências multilateraisna difusão da agenda internacional de reformas foi extremamente impor-tante.7

O terceiro item refere-se ao debate em torno das virtudes dos planosde capitalização. Um aspecto destacado no debate em torno das reformasé que esses regimes só são viáveis em países onde haja um mercado decapitais ativo e maduro. Outro aspecto é que esses modelos só podemser implementados em países que tenham criado um marco regulatórioefetivo. A terceira dimensão diz respeito às implicações macroeconômicasdo modelo.8 Para Orszag e Stiglitz o consenso em torno do Averting the

7 Só recentemente, o BID passou a ter uma atuação na área, concentrando-se na reforma dos

sistemas previdenciários em vários estados da Federação e financiando os custos de montagem defundos de pensão para funcionários estaduais. A chancela técnica dessas instituições e o apoiofinanceiro têm constituído fortes incentivos para a adesão às reformas por parte de atores extrema-mente relevantes no sistema político brasileiro, como é o caso dos governadores. Nesse sentido, ainfluência do BID tem significado mais que a simples difusão de uma agenda de reforma, mas, antes,o seu patrocínio ativo.8 Orszag e Stiglitz (1999) identificam dez mitos em relação aos modelos previdenciários. Dentre os

mitos “macroeconômicos” estão os pressupostos de que: contas individualizadas aumentam a pou-pança nacional; as taxas de retorno são mais elevadas nas contas individualizadas; as taxas deretorno decrescentes dos regimes de repartição indicam problemas fundamentais com esses sistemas.O investimento dos fundos público em títulos do governo não tem efeitos macroeconômicos. Dentre

6 Examinando o caso latino-americano, Mesa-Lago (1996) identifica um continuum ideológico entre

as propostas do Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), OrganizaçãoInternacional do Trabalho e Associação Internacional de Seguridade Social, e assinala a difusão doparadigma chileno para a previdência.

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Old Age Crisis estava fundamentalmente errado. Dentre os problemasdestacados estão os custos administrativos e de marketing extremamenteelevados, relativos ao pilar compulsório privado dos sistemasprevidenciários que implementaram reformas.

A reforma previdenciária brasileira tem sido marcada fortemente pelasmudanças na agenda pública internacional. A proposta apresentada pelogoverno Fernando Henrique Cardoso expressou a tensão entre a agendadoméstica de reformas, sua negociação política e o consenso forjado napolicy community setorial internacionalizada. Este processo ocorreu emmeados da década de 90, envolvendo a necessidade de ajustes paramétricose seqüenciados, a discussão em torno dos riscos dos sistemas de capitali-zação, dos custos de transição e problemas relativos aos regimes decapitalização escritural.

II - A PROPOSTA DE REFORMA DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

A reforma da previdência apresentada pelo Governo Fernando HenriqueCardoso em março de 1995 mantém forte continuidade com a agenda doinício da década 90, marcada pelo impacto que a nova Constituição trou-xe sobre a previdência social, sobretudo após a regulamentação dessesdispositivos pela Lei 8213, em 1991. A Constituição de 1988 corrigiuvieses distributivos do sistema existente, em particular, a deterioração dovalor real de benefícios e o tratamento iníquo dos trabalhadores rurais.Todavia, criou grande sobrecarga fiscal e aprofundou as distorções dosistema público.

As propostas de reforma dirigiam-se aos seguintes pontos: Primeiro,ao impacto dos dispositivos constitucionais sobre a massa de segurados.Em virtude dos dispositivos da Constituição de 1988, os trabalhadoresceletistas adquiriram o status de estatutários e, assim passaram a ter direi-to à integralidade do valor dos salários da ativa quando se aposentassem(ou, na ausência de teto, a valores representando até 150% daquelevalor).

os mitos microeconômicos estão: que os incentivos no mercado de trabalho são melhor sob umsistema de contas individualizadas; os planos de benefício definido necessariamente produzemincentivos para a aposentadoria precoce; a competição garante custos administrativos menores emcontas individualizadas. Dentre os mitos relacionados ao que chamam de economia política, osautores identificam três: a) que a existência de governos corruptos e ineficientes são uma justificativapara a adoção de planos de capitalização individual; b) que as operações de socorro financeiro denatureza política são piores nos casos de planos de benefício definido; c) que o investimento defundos públicos sempre são ineficientes e corruptos.

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Segundo, a equiparação ocorrida entre benefícios urbanos e rurais.Com as mudanças, os trabalhadores rurais passaram a desfrutar dos mes-mos benefícios dos trabalhadores urbanos (valores reais que representa-vam metade dos pagos a estes últimos) e tiveram a idade de aposentado-ria reduzida de 65 para 60 anos, para homem, e de 60 para 55 anos, paramulher. Estes benefícios tinham natureza essencialmente não contributiva.Em 2001, de um conjunto de cerca de vinte milhões de aposentados epensionistas do INSS, apenas seis milhões contribuíram durante toda asua vida ativa com aportes ao sistema aposentados. Os quatorze milhõesrestantes recebem benefícios assistenciais: dois milhões estão inscritos noprograma da Lei Orgânica da Assistência Social; seis milhões são pobresurbanos que recebem diferentes benefícios para completar a renda míni-ma e outros seis milhões são aposentados rurais, trabalhadores do campoque jamais contribuíram para sua aposentadoria.9

Terceiro, o impacto da Constituição sobre o valor real das pensões. Osbenefícios previdenciários foram recompostos - o piso dos benefíciospassou de 50% a 100% do salário mínimo, e o princípio da irredutibilidadedo valor real de pensões foi constitucionalizado. Com essa mudança aestratégia adotada durante a década de 80 para o ajuste do sistema - adeterioração do valor real das pensões e benefícios - ficou inviabilizada.Por fim, o reajuste dos benefícios dos servidores passou a ser atrelado àremuneração dos ativos, incluídas todas as vantagens. O impacto fiscaldessas mudanças levou à questão da reforma do sistema ao centro dodebate público.

No Brasil, a reforma da previdência adquiriu grande centralidade naprimeira metade da década de 90 em virtude de dois outros desdobra-mentos:

a) a difusão do paradigma chileno de reforma e a promoção ativa deuma agenda proposta pelo Banco Mundial.

b) No âmbito congressual, os trabalhos da CPI da Câmara dos Deputa-dos sobre as aposentadorias especiais (1991), a formação da ComissãoEspecial da Reforma da Previdência Social (1992-93), e discussão públicadurante a Revisão Constitucional (1993-94), representaram arenas onde aagenda política setorial foi discutida.

9 As contribuições das aposentadorias rurais nunca ultrapassaram 13% do gasto com benefícios.

Para estimativa do impacto da Constituição de 1988 no campo da previdência e assistência social verBeltrão, Pinheiro e Oliveira 2002. Cf também Brandt (2001, 73.)

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Por estar prevista nas disposições transitórias da Constituição de 1988,a Revisão Constitucional constituiu-se em uma policy window importan-te, mas que malogrou em virtude de vários fatores. Neste contexto, pro-postas de reforma amplas foram apresentadas, as quais implicavam afusão dos regimes de servidores públicos e de assalariados do setorprivado, e introdução de um subsistema compulsório privado baseado nacapitalização individual.

A reforma apresentada pelo Executivo através da PEC 21 - posterior-mente renumerada como PEC 33 - constituía um ajuste paramétrico nosistema e não previa nenhuma reestruturação substantiva. A transforma-ção substantiva era apenas uma possibilidade potencial para asseguraruma aposentadoria superior ao teto de benefício do INSS. Ela estavaassociada à constituição de regimes facultativos e complementares nosistema público. A estratégia global orientava-se pela desconsti-tucionalização do capítulo da seguridade social. A idéia básica era retirardo texto constitucional as regras de aposentadoria por tempo de serviçoe por idade e o valor do benefício, deixando-as para as leis complemen-tares que definiriam os regimes previdenciários dos funcionários públi-cos civis, militares, e o regime geral a ser aplicado aos demais casos. PelaPEC 33 seria extinta a aposentadoria por tempo de serviço, substituídapela aposentadoria por tempo de contribuição; seriam eliminadas algu-mas aposentadorias especiais (professores, parlamentares), e proibida aacumulação de aposentadorias tanto quanto as remunerações recebidasem função de cargo, emprego ou função.

A PEC também impedia que novas vantagens concedidas aos servido-res públicos fossem estendidas aos inativos. Por fim, limitava-se a contri-buição de empresas estatais a seus fundos de pensão, os quais teriam deajustar seus benefícios sem reconhecimento de direitos adquiridos. Osalário mínimo era mantido na proposta, como piso de benefício para asubstituição do salário de contribuição ou o rendimento do trabalho, masse desvinculava este piso da renda mensal vitalícia destinada aos idosos einválidos sem meios de subsistência.

Essa proposta era generalista em relação à previdência complementarao fazer referências às possibilidades de sua expansão. Adicionalmente,centralizava-se na União a competência para legislar sobre previdênciasocial, permitindo a estados e municípios criarem entidades previdenciáriasem conformidade com a legislação federal. Muitos outros aspectos pontu-ais foram também incluídos, tais como a equiparação de homens e mu-

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lheres quanto aos critérios de concessão de aposentadorias, o fim daaposentadoria proporcional, o fim da contagem de tempo fictício (conta-gem em dobro de licenças não gozadas, idem para tratamento de saúdesuperior a dois anos e/ou de familiar enfermo, etc) e a eliminação dasaposentadorias especiais para ocupações não penosas ou insalubres (ocaso de categorias como magistrados, jornalistas, jogadores de futebol,entre outros).

As questões de base referiam-se, na realidade, a quatro pontos: a) asubstituição da aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoriapor tempo de contribuição; b) a introdução de idade mínima nas aposen-tadorias do setor público; c) a extinção da integralidade das novas apo-sentadorias do setor público, aproximando os critérios de pagamento debenefícios e contribuição do regime dos servidores públicos aos do RGPS(Regime Geral da Previdência Social) e d) o rompimento da extensão aosinativos de vantagens concedidas a ativos. Ressalte-se que a questão dosfundos de pensão do setor público era matéria de grande centralidade,mas estranha à discussão da estrutura do sistema.

III - A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DA REFORMA: MUITO BARULHO PARA NADA?10

A tramitação legislativa da PEC foi marcada pela política de dissimulaçãode responsabilidades e de medidas que impunham custos concentrados agrupos e clientelas. Ao apoiar medidas impopulares os parlamentaresgovernistas incorriam em custos políticos significativos. Durante a vota-ção da PEC11, os deputados do PFL na Comissão ameaçaram votar contra.O relator governista declarou inconstitucional a emenda que atribui aopresidente da República o poder exclusivo de propor leis sobre formasde financiamento da previdência e saúde. A emenda da quebra de sigilobancário foi também rejeitada. Após demoradas negociações - em que aquestão dos direitos adquiridos foi moeda de troca -, a CCJ (Comissão de

10 Para uma análise minuciosa do processo de tramitação legislativa global, na Câmara e no Senado

cf. Melo (2002, 101-133). Para uma análise do processo na Câmara dos Deputados cf. Silva, Melo eMatijascic 1998: 159-187.11

O Executivo apresentou inicialmente quatro emendas: Emenda 1 - Altera a previdência, incluindoas normas de transição, desconstitucionalização das regras atuais de aposentadoria por tempo deserviço, idade e custeio; Emenda 2 - Dá competência exclusiva ao presidente da República para fazerleis de custeio da seguridade social; Emenda 3 - Permite quebra do sigilo bancário, fiscal e patrimonialdos devedores da previdência; Emenda 4 - Tratava da saúde na seguridade social.

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Constituição e Justiça) aprovou o relatório. Isso, não obstante ter rejeitadoa quebra do sigilo bancário e fiscal de pessoas acusadas de sonegação àprevidência; o fim da isenção para entidades filantrópicas e igrejas; e aproibição de recurso à Justiça, por parte dos aposentados, para garantirdireitos adquiridos.

Durante os trabalhos da Comissão Especial, o governo não logrouassegurar o relator e o presidente de sua base, o que contribuiu para amudança observada na discussão posterior. O cargo crucial de relator daproposta do governo foi entregue ao deputado Euler Ribeiro (PMDB-AM), e a Presidência da Comissão, ao ex-ministro da Previdência dogoverno Figueiredo, deputado Jair Soares (PFL- RS). Ambos haviam sepronunciado contra o projeto, em várias ocasiões, e favoreceram ativa-mente a obstrução dos trabalhos de instalação da Comissão. O relatormantinha vínculos históricos com entidades do serviço público, chegandoa ser o parlamentar que apresentou as propostas revisionais da ANFIP(Associação Nacional dos Fiscais da Previdência) na revisão de 1993.

Na Comissão Especial, a proposta PEC 33-A 95 recebeu oitenta e trêsemendas no prazo regimental de dez dias, e ouviu trinta e quatro pessoasem audiências públicas. A tramitação da proposta na Comissão se carac-terizou por conflitos abertos com o Executivo, no contexto de inúmerasreuniões entre governo, líderes partidários, associações, entidades demovimentos sociais e centrais sindicais.

A votação na Comissão Especial foi suspensa três vezes, por conta daobstrução dos trabalhos feita pelos sindicalistas. Dois episódios se desta-caram na votação do relatório. O primeiro foi a iniciativa do governo deincorporar outros atores à arena decisória em virtude das dificuldadesencontradas para conduzir o processo na Comissão. Os sindicalistas semobilizaram em torno da idéia de greve geral e apresentaram uma pro-posta ao governo. Por iniciativa presidencial, o governo convidou ascentrais sindicais para negociar. Em acordo selado no Palácio do Planalto,a CUT manifestou seu apoio à aposentadoria por tempo de contribuiçãoem troca das seguintes concessões pelo governo: fim da aposentadoriaespecial de professores, desistência de impor idade mínima, e unificaçãodos critérios de concessão entre homens e mulheres. O anúncio do acor-do produziu forte reação do PT, dos parlamentares que insistiam ser aarena parlamentar o lugar mais adequado para as negociações e, ainda,do sindicalismo do serviço público (ANDES, SINDSEP, entre outros). Esteúltimo foi o mais fortemente atingido pelo acordo que restringia as condi-

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ções de elegibilidade à aposentadoria integral pelos servidores. Tais en-tidades acusaram a CUT de traição. Como resultado a CUT recuou em seuapoio tático à reforma e se manteve fortemente crítica em relação àproposta.

O dissenso na Comissão persistiu e envolveu vários pontos: a manu-tenção da aposentadoria proporcional para servidores do setor privado(defendida pelos sindicatos dos bancários), a extinção do Instituto dePrevidência dos Congressistas (que o relator propunha, transformando odispositivo constitucional em fundo de pensão), e o período de carênciapara extinção das aposentadorias proporcionais dos servidores públicos.

O desenlace das negociações ocorreu com a renúncia do presidenteda Comissão, Jair Soares (PFL-RS), devido à insistência do líder de seupartido em levar adiante a votação na sessão programada. Alegando bre-cha regimental, já que o número de sessões havia ultrapassado o limitemáximo previsto pelo Regimento, o presidente da Câmara dos Deputa-dos, deputado Luis Eduardo Magalhães (PFL-BA) dissolveu a Comissão, elevou a questão diretamente ao plenário. A relatoria, no entanto, foimantida com o deputado Euler Ribeiro, em contexto de crescente visibi-lidade de críticas à manutenção do Instituto de Previdência dos Congres-sistas (IPC). Com efeito, esse ponto polarizou as negociações, tendo leva-do as lideranças governistas no Congresso a encomendar um projeto delei ordinária para a extinção do IPC, a despeito da mobilização consisten-te e articulada favorável à sua manutenção, por parte dos beneficiários.

O substitutivo do deputado Euler Ribeiro foi derrotado no plenário por294 votos a favor e 190 contra. Esse resultado, que não parece ter sidoefetivamente antecipado por nenhum dos parlamentares, causou forte co-moção no governo. À semelhança das outras votações, a dissidência nabase governista se concentrou no PMDB (trinta e oito votos contra). Váriosparlamentares do PSDB (nove votos), PPB (vinte e sete votos) e PFL (setevotos) também votaram contra o encaminhamento da liderança. O líder dopartido que concentrou a dissidência, o PMDB, foi indicado para relatar oprojeto original do governo que, por uma interpretação sem amparo regi-mental, entrou precipitadamente na pauta de votação do plenário.

As lideranças propuseram em seguida uma “superemenda aglutinativa”,com base no projeto original e nas sessenta e duas emendas apresenta-das. A estratégia inicial montada pelo novo relator foi a de prosseguircom a “desconstitucionalização”, transferindo-se as decisões não-consensuais para a legislação complementar e ordinária. Isso ensejou

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forte resistência entre os partidos de oposição. Ademais, propôs-se insti-tuir um período de carência de dois anos para as novas regras para osetor público, o que provocou, por sua vez, reações nas bases governis-tas. Durante a votação dos destaques, o governo foi derrotado oito vezesnas trinta e três votações na Câmara.

Na tramitação nessa Casa, manteve-se no texto constitucional a apo-sentadoria por idade, a diferença entre homens e mulheres e a aposenta-doria proporcional. Em votação extremamente tumultuada, permaneceu aaposentadoria especial para todo o magistério, inclusive do terceiro grau.Permaneceu também o conceito da seguridade social, com a garantia dobenefício assistencial não inferior a um salário mínimo.

A Câmara aprovou a recuperação - ainda que momentânea - do valor doteto de benefícios em dez salários mínimos. Quanto aos fundos de pensão,permaneceu a regra em que as entidades patrocinadoras podem alocar odobro da contribuição dos empregados. Quanto aos servidores, as mudan-ças aprovadas na Câmara impunham a exigência de tempo de pelo menosdez anos no serviço público, e cinco anos no cargo, para a aposentadoriaintegral. Mas foram mantidos, apesar da resistência do governo, a aposen-tadoria integral, o direito de iguais reajustes entre ativos e inativos e aaposentadoria proporcional também para o servidor. O critério para apo-sentadoria passaria a ser também o do tempo de contribuição.

O Senado representou a instância a partir da qual o governo recompôso projeto anterior e em que se procedeu a nova formulação da proposta.O projeto deu entrada em agosto de 1996 na Casa, mas o relator da CCJ,Beni Veras (PSDB- CE), apresentou um novo projeto só em abril de 1997,após manter discussões com a oposição e especialistas. O Relator rejei-tou a idéia de que fossem promovidas audiências públicas para debater aemenda. Seu substitutivo, que sofreu diversas alterações até ser dadocomo concluído e aprovado pela CCJ em 23 de julho de 1997, foi divul-gado apenas quarenta e oito horas antes da data prevista para a votaçãona Comissão, impedindo que a matéria se politizasse à semelhança doque ocorreu na Câmara.

A demora na divulgação do parecer refletiu o aprendizado políticopropiciado pela tramitação da reforma na Câmara, como também os con-flitos na base de sustentação do governo em torno da aprovação dareforma administrativa. O Senador Beni Veras optou pela apresentaçãode um substitutivo integral à Proposta de Emenda Constitucional, o qualrecupera vários dos pontos derrotados na votação na Câmara dos Deputa-

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dos e introduz ainda muitos outros.12 A questão do fim da paridade entreativos e inativos foi tratada de forma nova no parecer: preservou-se aparidade de reajustes entre aposentadorias e salários, embora tenha-seintroduzido um redutor nos valores das aposentadorias acima de R$ 1.200,00.

O relatório do Senador Veras recebeu cinqüenta emendas na CCJ, dasquais quarenta e seis foram rejeitadas. O parecer foi aprovado com largamargem no plenário do Senado, onde o governo desfrutava de grandemaioria. Após aprovação no Senado, instaurou-se uma querela regimentalsobre a prejudicialidade da apreciação, pela Câmara, de um projeto queapresentava vários pontos novos e reintroduzia outros já derrotados naCâmara. O deputado Nilson Gibson (PSB-PE) encaminhou requerimento àmesa da Câmara argumentando que, como a matéria havia sido julgadapela Casa, só poderia ser apreciada em novo ano legislativo.13

O segundo aspecto regimental importante referia-se à possibilidadede, se alterada, a proposta ter que voltar mais uma vez para o Senado. Oimbroglio foi resolvido pelo presidente da Câmara, que considerou amatéria como nova, passando por cima das impugnações, e como tal,exigiu nova Comissão Especial, além de submetê-la à apreciação pelaCCJ da Câmara. Com isso, o governo pôde reintroduzir pontos já rejeita-dos, como a contribuição de inativos e a aposentadoria de funcionáriospúblicos.14

13 Na interpretação mais ortodoxa do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, se a matéria, já

votada em plenário, não fosse caracterizada como nova, essa apreciação só poderia ser feita em umalegislatura seguinte14

O governo conseguiu também rejeitar, por trinta e cinco votos contra quatorze, o desmembramentoda proposta. Isso se deu em um quadro no qual a maior preocupação era manter inalterado oparecer, evitando-se assim que o mesmo retornasse ao Senado. Após cinco tentativas frustradas devotação, em um prazo de seis semanas, a negociação final envolveu o compromisso por parte dogoverno de zerar, através de lei complementar, a contribuição dos inativos, embora mantendo-se notexto constitucional a referência à cobrança. O texto foi aprovado na CCJ por trinta e cinco deputa-dos de um total de quarenta e oito presentes.

12. O substitutivo previa a reformulação da aposentadoria por tempo de serviço, condicionando-a a

certa idade mínima; a proibição, salvo algumas exceções, de acumulação de mais de uma aposenta-doria ou de percepção simultânea de proventos de aposentadoria e de remuneração de cargo,emprego ou função pública; a exigência de que, em regimes previdenciários complementares, acontribuição de órgãos e empresas públicas não exceda a dos filiados a esses regimes; o estabeleci-mento de critérios similares para os regimes do servidor público e do INSS e a remissão ao artigo quetrata do servidor público para as diversas situações específicas; a proibição de contagem de tempo deserviço; e o estabelecimento de regras de transição visando a preservar direitos e expectativas dedireitos dos atuais servidores públicos e segurados da Previdência Social. Ver Senador Beni VerasPARECER à Proposta de Emenda à Constituição n.º 33, de 1996, que “Modifica o sistema de previdên-cia social, estabelece normas de transição e dá outras providências”, COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO,JUSTIÇA E CIDADANIA, Senado Federal, 1998.

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Na Câmara dos Deputados, a tramitação teve continuidade em períodode convocação extraordinária. As dificuldades de aprovação deviam-se àquestão da contribuição dos inativos, prevista no relatório, e o impassereferia-se ao fato de que, alterado esse dispositivo, a tramitação sofreriagrande atraso por ter que retornar ao Senado. A votação na ComissãoEspecial foi marcada por conflitos e representou uma vitória importantepara o governo, que garantiu unanimidade dos deputados dos partidos desua base de sustentação política para a sua aprovação. A proposta foiaprovada pelos vinte e quatro membros da bancada governista. O mesmopadrão se repetiu com a aprovação no plenário da Câmara dos Deputa-dos - o governo obteve 346 votos favoráveis e 151 contra -, que contoucom um quorum de 503 deputados. Três parlamentares se abstiveram, eapenas dois do PFL não compareceram. O destaque que previa a supres-são da contribuição dos servidores inativos foi aprovado, viabilizado peloapoio de dissidentes do PPB e do PMDB. O bloco de oposição e mais oPPB apresentaram oito destaques para votação em separado, em umquadro de intensificação de demandas para liberalização de emendas doorçamento, já que, em virtude da crise asiática houve corte de 60% destasemendas por parte da equipe econômica.

A divulgação pela imprensa do processo indica a existência de inúme-ras concessões por parte do governo. O Ministro Sérgio Mota comandouas negociações com os líderes e parlamentares, o que envolveu umintenso e demorado mecanismo de barganha, incluindo nomeações, libe-rações de emendas do orçamento, demandas individuais e de bancadas.A oposição passou a centrar suas críticas no “toma lá, dá cá” instituídopelo governo: “a barganha foi institucionalizada no governo FernandoHenrique Cardoso”, denunciou o deputado José Genoíno (PT-SP).

Tal como aprovado nas votações, até o final de maio de 1998, areforma propõe a eliminação de privilégios de categorias profissionaisespecíficas - jornalistas, professores, magistrados, parlamentares, entreoutros. Extingue a aposentadoria por tempo de serviço, introduzindo li-mites mínimos de idade para a concessão de aposentadorias e o sistemade tempo de contribuição, além de abolir a aposentadoria proporcional.A reforma também elimina a aposentadoria integral para aqueles queingressarem no serviço público após a aprovação da emenda e estabele-ce regras de transição para aqueles que já tenham ingressado.

A regra de transição anula distorções existentes como, por exemplo, odireito à integralidade de proventos após, em alguns casos limites, três

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anos de exercício de cargo ou função pública. As outras distorções elimi-nadas referem-se à fixação de tetos máximos para valores de aposenta-doria e à proibição de acumulação de aposentadorias, ou destas comremuneração de cargos, emprego ou função. Por fim, a reforma estabele-ce o fim da paridade entre servidores ativos e inativos. Esta medida e oestabelecimento de regras de transição para os servidores - prorrogandode 20 para 40% o tempo requerido para aposentadoria - são as únicasque potencialmente poderiam ter impacto sobre as contas do setor. O fimda paridade poderá representar um congelamento do valor real do esto-que de benefícios existentes, ou mesmo “arrocho” no pagamento depensões e benefícios. Todavia, o texto aprovado em primeiro turno ga-rante o seu valor.

No quadro das votações dos DVS da PEC 133, o governo sofreu duasderrotas importantes, que implicaram a manutenção dos dispositivos àidade mínima de aposentadoria e à integralidade dos proventos de apo-sentadoria acima de R$ 1.2 mil pela utilização de um redutor. A primeiradessas votações representou verdadeira batalha, na qual o governo foiderrotado pelo voto, supostamente equivocado, do deputado AntônioKandir (PSDB-SP). Com isso foi derrotada a exigência de limite de idadepara os trabalhadores que vierem a ingressar no sistema previdenciárioapós a promulgação da emenda. Em votação subseqüente, poucos diasapós as eleições presidenciais, o governo logrou aprovar um DVS quedefinia a exigência de idade mínima (53 anos para os homens e 48 paraas mulheres) para os trabalhadores que já contribuem para o INSS, crian-do-se uma situação anômala de limite de idade apenas para a regratransitória e não para a regra geral.

Submetido ao primeiro teste no Congresso, após as eleições presiden-ciais de 1998, o governo sofreu duas derrotas adicionais no plenário navotação da reforma fiscal. A primeira foi relativa à derrota da MedidaProvisória 1720, que aumentava a contribuição previdenciária dos servi-dores públicos ativos e taxava aposentados e pensionistas. Após essaderrota, o Executivo propôs nova medida para introduzir a contribuiçãode inativos, dessa vez através de um projeto de lei. O projeto foi aprova-do na Câmara por 335 votos a favor e 147 contra. Vários fatores contribu-íram para este sucesso do Executivo. O primeiro foi a fortíssima mobilizaçãodos governadores recém- eleitos pela sua aprovação. O segundo foi aconjuntura de emergência nacional criada pela crise cambial de fevereirode 1998. A mídia e a opinião pública passaram a caracterizar os opositores

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das medidas de emergências como traidores da Nação. O terceiro foi ofato de que o governo recorreu a seus poderes de agenda, requerendourgência presidencial para a provação da lei, que exigia, para isso, maio-ria absoluta dos votos.15

Essa vitória do governo em sua quarta tentativa para taxar os inativosteve curta duração. Uma batalha legal desenvolveu-se no Judiciário atra-vés de 1050 ações individuais e 16 ações civis públicas. O PT, a OAB ea Confederação Nacional de Servidores Públicos também impetraramADINS contra a medida. Agindo como veto player, o Judiciário declarou amedida inconstitucional. 16

A última batalha do governo envolveu a votação da idade mínima nasaposentadorias através da introdução do chamado fator previdenciário. OExecutivo havia sido derrotado em Plenário na votação de um DVS sobrea questão, e logrou reintroduzir a idade mínima através de um procedi-mento técnico. O fator representa, na realidade, um redutor a ser aplica-do à taxa de reposição das aposentadorias, em função de três variáveis (aexpectativa de vida da coorte dos pensionistas, a média de remuneraçãono passado, e a idade). Esse esquema penaliza as aposentadorias preco-ces e beneficia os que permanecem mais tempo na ativa. A idade míni-ma de aposentadoria converte-se, então, em uma escolha individual sobcondições bastante restritas. O Executivo logrou atingir os mesmos objeti-vos através da adoção de um mecanismo de baixa visibilidade - o fator -e que foi introduzido nos países que não instituíram regimes de capitali-zação, tais como a Itália, França e Suécia (WEAVER 1998; MYLES 1998).

O governo não encontrou dificuldades para a aprovação do fator

16 A decisão do STJ foi um forte golpe para os governadores recém-eleitos, que enfrentavam fortíssima

crise fiscal devido à explosão dos gastos com pessoal, sobretudo com inativos. Na realidade, a maioriados governadores determinou a cobranças das contribuições logo após a sua aprovação, e a medidado Judiciário ocorreu oito meses depois da promulgação da lei. Motivados pela perspectiva de incorrerem grandes perdas, em um quadro político pós-eleitoral, no qual os custos de decisões impopularessão baixos, os governadores mobilizaram-se ativamente pelas contribuições. O Fórum Nacional dosSecretários Estaduais de Administração circulou uma moção de apoio à medida. Com o suporte dosgovernadores, o Executivo propôs, pela quinta vez, a medida, só que agora, através de uma propostade emenda constitucional, que foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça por 27 votos afavor e 18 contra. O apoio dos governadores à medida, sendo muitos deles da oposição, é surpreen-dente tendo em vista a visibilidade que o tema havia adquirido no passado. Esse apoio, no entanto,arrefeceu ao longo do tempo, a despeito de apelos individuais de alguns governantes. Deve-seressaltar que ministros do STF se manifestaram reiteradamente na imprensa contra essa novatentativa.

15 É curioso que a nova medida tenha sido aprovada durante a convocação extraordinária do

Congresso anterior, e com a participação de muitos parlamentares não-reeleitos.

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previdenciário porque ele foi proposto através de um Projeto de Lei (PL1527). Nesta situação, o Executivo pode recorrer a suas prerrogativasinstitucionais. O PL foi proposto em regime de urgência, mas a relatoriada proposta coube a Jandira Feghali (PC do B/RJ), o que provocou atra-sos na tramitação. O relatório da deputada foi derrotado na Comissão deSeguridade Social e Família por 29 votos contra e 12 a favor. Antecipan-do uma possível derrota, o Executivo procedeu à substituição de deputa-dos do PMDB que se manifestaram contra a proposta17. O novo relatóriointroduziu uma fase de transição, na qual os trabalhadores poderiam optarpelo redutor ou pelas novas regras, estendeu sua duração para cinco anose garantiu um bônus para as mulheres trabalhadoras (para assegurar odireito constitucional), sendo aprovado por 305 votos a favor e 157 contra,no plenário da Câmara. Como argumentou corretamente a deputada Feghali“o governo quer restabelecer a idade mínima que já foi derrotada no plená-rio da Câmara porque a base governista não reuniu 308 votos”.

À semelhança da proposta dos inativos, uma nova batalha judicial seseguiu no STF, a partir de ADINs propostas pelo PC do B, PSB e PDT, asquais alegavam que a Lei reduzia de fato a idade mínima. Ademais, haven-do sido alterada no Senado, essa lei teria que retornar à Câmara dos Depu-tados. O STF, no entanto, votou pela constitucionalidade da regra. Uma dasprincipais mudanças ocorridas com a aprovação da lei refere-se a fórmulade cálculo das aposentadorias, que passaram gradativamente de um perío-do de 53 para 336 meses, ou seja, cerca de 80% do tempo equivalente a35 anos de contribuição, e não na média dos últimos 36 meses (PINHEIROe VIEIRA 1999). As implicações fiscais da introdução do fator previdenciárioforam consideradas como bastante significativas: o déficit da seguridadesocial seria reduzido em 2% do PIB, passando de 5% para 3%.

IV - A DINÂMICA POLÍTICA DA REFORMA: CUSTOS CONCENTRADOS, PATH DEPENDENCY E APOLÍTICA DA INVISIBILIDADE.

Este ítem considera, do ponto de vista analítico, os fatores que explicamo longo e errático processo de reforma, suas características e conteúdo

17 Após a derrubada do relatório, o governo divulgou uma nota anunciando que o novo relator seria

o deputado Darcísio Perondi, e que o novo relatório iria diretamente a plenário para apreciação. Opresidente da Comissão de Seguridade, da base governista, reagiu indignado e nomeou um relatordiferente. Este episódio revela o nível de controle do Executivo sobre a agenda dos trabalhos legislativose a reação do Legislativo a esse controle.

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paramétrico e, ainda, a adoção da estratégia de tornar invisíveis seuscustos políticos. Na realidade vários fatores se conjugaram, a saber: anatureza da reforma (que impõe custos a grupos da população); a estraté-gia de desconstitucionalização perseguida; a natureza de seu desenho; ea inércia tendencial do sistema em virtude de sua maturidade (pathdependency).

Com relação ao primeiro aspecto - a natureza da reforma -, uma dascaracterísticas da reforma da previdência é que ela obriga a perdas con-centradas enquanto seus benefícios são difusos. Essa reforma constituiu-se em um conjunto articulado de decisões que impõem custos expressi-vos e concentrados a constituencies com grande capacidade de mobilização.A dinâmica específica que reformas desse tipo assume foi denominadapor Pierson e Weaver como a “política da imposição de perdas”. À visibi-lidade das perdas corresponde estratégias de “dissimulação de responsa-bilidades” - nos termos desses autores, estratégias de blame avoidance”.Ou seja, os atores sociais buscam dissimular através de estratégias varia-das, delegando poder, descaracterizando decisões políticas que são tidascomo decisões técnicas, atribuindo a outros atores os resultados obtidosem negociações, etc.

No Brasil, o processo de agenda setting da reforma previdenciária foifortemente marcado pela denúncia de privilégios existentes no sistema,de forma a viabilizar politicamente a imposição de perdas a esses gru-pos. Porém, o caso brasileiro é distinto do analisado por Pierson e Weaverporque os custos não são lineares devido à maior segmentação dos bene-fícios18. Aqui, os principais “perdedores” que vão arcar com os custos dareforma são os assalariados, sobretudo, os servidores públicos, os apo-sentados e pensionistas. Ainda no grupo de perdedores - na forma emque a reforma foi inicialmente formulada - estão determinadas categoriasocupacionais que desfrutam de aposentadorias especiais, tais como par-lamentares, magistrados (procuradores, juízes, etc) e professores. O gru-po mais articulado e vocal de perdedores é o dos servidores públicos,

18 A política da previdência é fundamentalmente a política da transferência de riscos atuariais entre

grupos. Nesse sentido, é uma política eminentemente redistributiva. Ela redistribui riscos horizontal-mente (entre grupos com perfis atuariais distintos) e verticalmente (entre gerações). Em sistemassegmentados, como o brasileiro, ela não só redistribui riscos, mas também renda de forma despropor-cional porque certas categorias têm elegibilidades distintas e privilegiadas. Ou seja, os riscos não sãosocializados (o que seria neutro do ponto de vista redistributivo), mas sim os privilégios. Certos gruposlogram concentrar benefícios e transferir seus custos para toda a população.

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que constituem o extrato ocupacional com maior taxa de sindicalizaçãodo país.

Como tal dinâmica política impactou o processo político da reforma?Inicialmente, ela está associada às dificuldades de o governo sustentarapoio nas votações nominais de emendas e de destaques para votaçãoem separado (DVS). Os parlamentares não queriam arcar com o ônuspolítico de medidas impopulares. Com efeito, a base parlamentar deapoio se fragmentou, e partidos importantes dessa base se dividiram emdois grupos.

Ademais, a estratégia perseguida pelo governo de desconsti-tucionalização de dispositivos pode ser explicada, em grande medida,pela necessidade de conferir baixa visibilidade aos custos arcados pelossetores mais afetados. No entanto, essa estratégia se mostrou ineficazdevido às características institucionais dos trabalhos congressuais. As mu-danças previstas, inicialmente, visavam desconstitucionalizar as regrasprevidenciárias e, através de legislação ordinária, remover os privilégiose distorções. Seria rebaixado o teto de benefícios do sistema e tambémseriam equiparados virtualmente os dois regimes, o dos servidores públi-cos e o geral, através de lei complementar. Toda a negociação inicial emtorno da PEC 33 envolvia a retórica de que a Constituição Brasileiraincluía dispositivos que, além de injustos, não tinham caráter constitucio-nal.

O ministro Reinhold Stephanes buscou, muitas vezes, dar conteúdosubstantivo à regulamentação: “o teto de previdência deverá ficar emtorno de 5 a 10 salários”, “a idade mínima deverá ficar em 60 anos paramulher e 65 anos para homem”, etc. Essas promessas, no entanto, nãoeram críveis. A interação entre o Executivo e o Legislativo, nessescasos, caracteriza-se por uma estratégia dominante, por parte de muitosatores, pelo status quo, uma vez que passam a preferí-lo à qualquerproposta de alteração que remeta a definição substantiva, via legislaçãoordinária. Este fato se deve às especificidades das regras congressuaisque conferem grande poder de agenda e iniciativa legislativa ao Execu-tivo. Mesmo que os atores concordem com o conteúdo de uma propostaespecífica de regulamentação anunciada pelo Executivo, eles resistemà desconstitucionalização pela incerteza em relação aos atos do Execu-tivo no futuro.

O problema de fundo relaciona-se à credibilidade de promessasintertemporais do Executivo. Nas entrevistas realizadas, a afirmação de

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que o Executivo poderia alterar radicalmente o que estava anunciandoatravés de Medida Provisória foi reiterada muitas vezes.19 Vale assinalar,no entanto, que analisada em uma perspectiva ampla, esta estratégia foiexitosa na medida em que foi a desconstitucionalização que permitiu aogoverno aprovar, em um segundo momento, o “fator previdenciário”.

Embora estivesse disponível no cardápio internacional de medidasrecomendadas, no final da década, para os regimes com grande dívidaprevidenciária implícita, a adoção do fator previdenciário representouestratégia politicamente ótima. De fato, sua adoção permitiu dissimu-lar a introdução da idade mínima de aposentadoria, convertendo-a emuma questão técnica. Em outras palavras, a visibilidade política damedida foi minimizada em virtude das “tecnicalidades” do própriomecanismo.20

Um terceiro fator refere-se ao desenho do pacote de reforma. Comoassinalado, uma das características centrais da reforma é suamultidimensionalidade. A reforma implicava mudanças nos fundos depensão, no regime geral da previdência social, e no modelo dos servido-res públicos. Ao fundir essas várias dimensões, o governo permitiu quese forjasse uma ampla coalizão contra a reforma. Este fato foi percebidotardiamente pelo Executivo. Nas palavras de um assessor da Presidênciada República:

“mexer com os dois regimes na mesma PEC ajuda os adversários dareforma no setor público a usarem os trabalhadores do setor privadocomo tropa de choque”21.

Concretamente, isso se manifestou no malogro de uma “concertação”neocorporativista em torno da reforma. A principal central sindical gover-nista, a Força Sindical, retirou seu apoio desde o anúncio das medidas emjaneiro de 1995. A CUT também teve que recuar em sua disposição denegociar após a reação indignada dos sindicatos do setor público.

Pode-se afirmar, portanto, que a conjunção da multidimensionalidadee da questão da credibilidade de decisões intertemporais tornou difícil anegociação da reforma. A credibilidade das promessas do Executivo rela-

19 Cf Melo (2002, cap. 6). Cf entrevistas citadas com os seguintes parlamentares: José Genoíno,

Eduardo Jorge, Luis Gushiken, Humberto Costa.

21Eduardo Graeff, memorando interno ao Presidente F.H.Cardoso, 19/12/95.

20 A ‘ginástica’ legal para compatibilizar o fator com ausência de idade mínima pode ser observada no

parecer legal que o especialista Wladimir Martinez , preparou a pedido do MPAS, cf (Martinez 2000).

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cionava-se também às incertezas sobre os efeitos das medidas e sobre asituação das contas da seguridade social. Dessa forma, o debate públicotornou-se um debate sobre os números.

O último fator que marcou a reforma brasileira e limitou o conjunto deopções abertas refere-se ao legado de política (policy legacy) herdadopor seus formuladores. Como assinalado, o sistema previdenciário brasi-leiro apresenta alta dívida implícita, o que circunscreve o conjunto dealternativas viáveis. Em outras palavras, um mecanismo de pathdependency parece estar operando. A dívida previdenciária implícita nopaís foi estimada em 187% do PIB - valor só encontrado em regimesmaduros da Europa (cf. Tabela 1). Uma analogia com a discussão dePierson (1994) sobre a reforma britânica sob Thatcher é instrutiva nesteponto. O autor argumenta que foi a ‘imaturidade’ do sistema público defundos de pensão (SERPS) que facilitou a criação de um sistema privadodesses fundos. Como o SERPS era recente, e havia muito poucos pensi-onistas, foi possível “comprar barato” (termos do autor) o apoio dos par-ticipantes do sistema e incentivar sua migração para o novo esquema.Myles e Pierson (1997) e Myles (1998) estendem essa análise, persuasi-vamente, ao conjunto de reformas praticadas nos paises da OECD.

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Brooks e James (1999) estimam a probabilidade de reforma da previdênciaem função do tamanho da dívida previdenciária implícita.22 Esses autores iden-tificam uma relação positiva e alta entre as chances de reforma e essa dívida.

No caso brasileiro, a operação desses fatores na formulação das propostaspode ser aferida no testemunho do autor da proposta do fator previdenciário:

“Inicialmente, quando estudávamos a reforma previdenciária, váriasalternativas foram analisadas. Estudamos os modelos de privatização naAmérica Latina, estudamos os modelos das contas nacionais da Suécia eoutros modelos mistos, como o da Argentina e do Uruguai, e analisamosestudos feitos pela Cepal. Esses estudos nos mostraram que, em primeirolugar, a transição para um regime de capitalização, a privatização dosistema não era uma alternativa viável. Temos vários estudos que mos-tram que o custo de transição de um sistema para outro, caso fosseadotado um sistema puramente de capitalização, seria da ordem de 200%do PIB. Há vários estudos do Banco Mundial que calcularam 205% em1998; a Cepal calculou 201,6% em 1999; a FIP/USP calculou 255% doPIB; IBGE/IPEA, 218%; FGV, 250%, Banco Mundial, em estimativa anteri-or, 188%, e a própria Cepal calculou um custo que poderia ser diferidono tempo de 6% do PIB em 40 anos.” (PINHEIRO 2001, p. 31).

A situação fiscal do país contribuiu para descartar efetivamente qual-quer mudança que implicasse aumento do déficit público:

“Então, essa alternativa se mostrou inviável do ponto de vista financei-ro. ... claro que nessa discussão houve um debate acerca das melhores

22 Como assinalam esses autores: “a large implicit pension debt (IPD—the present value of the pension

obligations of the government to contributors under the old PAYG system) helps put pension reform onthe political agenda but then constrains the degree of funding and privatization that can be achieved-evidence of path dependency” (BROOKS and JAMES 1999, p. 1).

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formas de organização, seu impacto sobre o mercado de trabalho, seuimpacto sobre a poupança mas o que realmente pesou na decisão sobreque tipo de reforma adotar foi justamente o custo de transição. Issoocorreu em momento de vulnerabilidade das nossas contas externas einternas, pois tínhamos acabado de passar pelo furacão da crise da Rússiae não poderíamos adotar qualquer tipo de medida que abrisseendividamento interno ou reduzisse superávit primário. Então, esse cami-nho de reforma foi, de imediato, descartado.” (ibid)

“Passamos, assim, a estudar o sistema sueco, adotado também emalguns países do Leste, como a Polônia e a Lituânia, além da Itália. ... umsistema em que cada pessoa tem sua conta individual, onde são credita-das as suas contribuições e, ao final da vida laboral, os segurados têmdireito a requerer uma anuidade calculada com base nesse esforçocontributivo.” (ibid. p. 32)

Vale registrar que a única região do mundo a implementar reformas daprevidência social baseadas em regimes de capitalização (mistos ou puros)é a América Latina. A viabilidade política das reformas desse tipo na regiãopode ser explicada, por alguns autores, pelo papel de variáveis externas:as agências internacionais e a dinâmica da globalização que minam a capa-cidade de resistência das constituencies beneficiárias do antigo regime.Deve-se lembrar também a falta de legitimidade dos sistemas nacionais deproteção social, especialmente porque eles não pareciam diminuir a po-breza e as desigualdades, sendo de alcance limitado para o exercício plenoda cidadania. Em muitos dos países, a erosão do valor dos benefícioscolocou em xeque a credibilidade dos sistemas, o que, associado aos pro-blemas gerenciais e administrativos, acabou por tornar a opinião públicaconivente com as propostas de reforma de cunho privatizante.

O caso brasileiro parece ser bastante distinto dos outros países latino-americanos porque a legitimidade da previdência nunca foi contestadaradicalmente. Por outro lado, a erosão do valor real das pensões jamaisalcançou os níveis extremamente baixos de alguns países da região. Esteé um dos fatores que ajudam explicar o processo da reforma no Brasil,mas a eles deve-se agregar os outros já referidos: a agenda internacionale os modelo existentes em outros países.

V - O SALDO DA REFORMA

Após quatro anos de promulgação da emenda 20, de dezembro de 1998,

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e dos dispositivos legais que a regulamentaram (MPs e Leis), é possívelavaliar a extensão das mudanças ocorridas. Embora elas tenham se pro-cessado em vários planos, iremos considerar, em particular, aquelas rela-tivas aos benefícios. O confronto entre o que foi proposto e o que foiefetivamente implementado permite concluir que o Executivo logrouaprovar, em larga medida, sua agenda. Se os objetivos eram uma reformaparamétrica, na qual fossem eliminadas as distorções do Plano de Benefí-cios e do financiamento, a reforma foi exitosa. Permanecem ainda emtramitação pontos importantes como, por exemplo, a instituição do tetode benefícios no regime dos servidores igual aos pagos pelo INSS.

Os pontos principais da PEC 33 referiam-se, como já analisado, aospontos discutidos a seguir. Após Emenda 20/1998 a decisiva mudança naPrevidência Social com relação ao regime do setor privado, foi adesconstitucionalização da regra de cálculo dos benefícios. No que serefere ao setor público, foram as seguintes:

• manutenção do valor da aposentadoria igual à última remuneração,mas sem incorporação de vantagens;

• unificação das regras de concessão de benefícios para os diferentesníveis de governo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios);

• manutenção do reajuste das aposentadorias igual aos mesmos índi-ces concedidos aos servidores ativos, incluindo todas as vantagens;

• manutenção do valor da pensão igual ao valor da aposentadoria;• instituição de previdência complementar de caráter privado, capita-

lizada, para novos integrantes no serviço público, oportunidade em que aUnião, Estado, Distrito Federal ou Município, poderá adotar como valordas aposentadorias de seus regimes o valor-teto do regime geral dostrabalhadores assalariados;

• instituição de fundos de ativos, com aporte de bens de propriedadedo ente público e administração distinta das demais atividades, para asse-gurar o pagamento dos benefícios já concedidos;

• manutenção de regime próprio de previdência para a União, Estados,Distrito Federal e Municípios, desde que observado equilíbrio financeiro e atuarial.

Para ambos os regimes a reforma implicou as seguintes mudanças:• substituiu o conceito de tempo de serviço por tempo de contribui-

ção, com limite de idade, eliminando-se os tempos fictícios, para os quaisnão tenha havido contribuições;

• extinguiu a aposentadoria proporcional por tempo de serviço/con-tribuição para novos segurados;

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• extinguiu a aposentadoria especial do professor de nível superior;• estabelecimento, para os atuais segurados, de regras de transição

para a concessão de aposentadoria, com exigência de adicional de tempode contribuição (pedágio) e idade mínima, mas com limites bastante fle-xíveis; no caso do serviço público, passou a exigir ainda tempo mínimode serviço no cargo onde se dará a aposentadoria.

Contrastando-se essas mudanças com a proposta de emenda constitu-cional enviada pelo governo, pode-se afirmar que em larga medida, areforma foi bem sucedida (cf. Quadros 1 e 2). Em primeiro lugar, substi-tui-se a aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tem-po de contribuição. A reforma também introduziu a noção de regimeprevidenciário como conceito constitucional de seguro social de carátercontributivo. E, nesse ponto, a proposta foi plenamente implementada.

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23 A modificação constitucional que institui a obrigatoriedade da contribuição dos servidores já havia

ocorrido em 1993, com a Emenda Constitucional nº 3.

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Em segundo lugar, a reforma foi bem sucedida ao introduzir a idademínima de aposentadoria. Para as aposentadorias do setor público, foiestabelecido um limite de idade de 60 anos para homens e 55 anos paramulheres. Para as aposentadorias do INSS, não foi aprovado limite deidade na regra permanente. A regra transitória válida para ambos osregimes, no entanto, limita a idade de aposentadoria (53 e 48 anos), queinclui ainda um mecanismo de pedágio, desenhado para retardar as apo-sentadorias precoces.24 A desconstitucionalização da regra de cálculo dovalor do benefício abriu também a possibilidade de restringir-se o valorreal das pensões precoces. O texto aprovado remeteu a matéria para aLei Ordinária, e estabeleceu a exigência de respeito a critérios que pre-servem o equilíbrio financeiro e atuarial. A regulamentação do dispositi-vo foi feita através da Lei n° 9876/99, de 29/11/00, que modificou aregra, ampliando gradualmente sua base de cálculo: este deve corresponderaos 80% maiores salários-de-contribuição dos segurados. Foi também ins-tituído o fator previdenciário, que incide sobre a aposentadoria por idade

24 Pela regra de transição o servidor público deve ter 53 ou 48 anos de idade, para homem e mulher,

respectivamente; e ainda, 5 anos de efetivo exercício no cargo, contar tempo de contribuição igual,no mínimo, à soma de 35 anos, se homem, e 30 anos, se mulher e período adicional de contribuiçãoequivalente a 20% do tempo que faltava para atingir o tempo de contribuição de 35 e 30 anos(homens e mulheres, respectivamente).

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(nesse caso é facultativo) e tempo de contribuição (compulsório) e levaem conta o tempo de contribuição, a alíquota e a expectativa de sobrevida.O fator previdenciário representa uma nova estrutura de incentivos queinduz ao deferimento dos pedidos de aposentadorias no tempo.

Em terceiro lugar, cabe destaque para a extinção da integralidade dasnovas aposentadorias do setor público. A possibilidade de limitação dasaposentadorias do setor público ao teto de benefícios do RGPS(R$1.200,00), desde que instituído um sistema de capitalização privadoou público para a complementação das aposentadorias representa umaderrota do executivo. Na verdade, esta é uma parte inconclusa da refor-ma. O projeto de lei complementar 9, de 1999, o qual dispõe sobre asnormas gerais para a instituição de regime de previdência complementarpela União, pelos Estados, e pelos Municípios encontra-se em tramitaçãono Congresso Nacional.

Para os novos trabalhadores existe a possibilidade concreta deequalização do teto de benefícios. Uma questão adicional é que com aaprovação da reforma administrativa (Emenda Constitucional 19, de de-zembro de 1998, e a Lei do Emprego Público, Lei 9962), o regimejurídico único foi extinto, permitindo-se a generalização de contratosCLT no serviço público, cujas aposentadorias estão sujeitas ao teto debenefícios do INSS. Setores técnicos do MPAS estimam que 75% dosnovos servidores sejam contratados pela CLT, o que terá impactos efeti-vos sobre o estoque de aposentadorias integrais, ao longo da próximadécada.

No que se refere à extensão para inativos de vantagens concedidas aativos, a reforma foi igualmente mal sucedida. Persiste, neste ponto, amaior distorção do sistema previdenciário brasileiro O mesmo tambémocorreu com relação à taxação de inativos, que foi derrubada pelo STF.

Em quinto lugar, menciona-se a eliminação das distorções nas aposen-tadorias especiais. Isso foi feito, sobretudo, no plano infraconstitucional.A Lei 9032, de 28/04/95 estabeleceu a exigência de exposição a condi-ções prejudiciais à saúde ou à integridade física para concessão de apo-sentadoria especial, revertendo a possibilidade de conversão desse tem-po de serviço fictício em comum. Na mesma linha, a Lei 9528, de 10/12/97 estabeleceu a exigência de laudo técnico para comprovação dos casosanteriores e revogou a aposentadoria especial de jogadores de futebol,juízes classistas, jornalistas e telefonistas.

No plano do financiamento, foi aprovada a Lei 9732, de 11/12/98

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estabelecendo que as empresas que expõem seus trabalhadores a condi-ções especiais (penosas e insalubres), ensejando aposentadoria especial,contribuíssem com um adicional de 6, 9, ou 12%, conforme o caso.

Em sexto lugar, a proposta buscava disciplinar os fundos de pensãofechados, fixando a paridade de contribuições entre trabalhadores eentidades patrocinadoras. Ressalte-se que a questão dos fundos de pen-são do setor público era matéria de grande centralidade, mas estranha àdiscussão da estrutura do sistema. A reforma logrou estabelecer ummarco regulatório novo que assegurou consistência nos planos atuariaise corrigiu distorções. A implementação dessas mudanças, porém, nãoocorreu sem traumas. Com efeito, em fins de maio de 1998 houve aaprovação, no Congresso, das Leis Complementares no 108 e no 109,que regulamentam a reforma constitucional da Previdência e cujosprojetos encontravam-se em tramitação há aproximadamente dois anos.Com a LC 109, o setor passou a ter nova lei geral, em substituição àLei no 6.435, datada de 1977. A LC 108, por sua vez, regula as rela-ções entre as entidades públicas e os fundos de pensão por elaspatrocinadas.

Por outro lado, em janeiro de 2001, por meio do Decreto no 3.271,elevou-se a idade mínima para aposentadoria nos fundos de pensão fe-chados, estipulada em 55 anos. O decreto sofreu inúmeras contestaçõesjudiciais, e é elemento importante para se visualizar como o governologrou introduzir o princípio da contribuição definida. Por este princípio,a aposentadoria resultante depende, sobretudo, da rentabilidade da car-teira de investimentos, da regularidade e do valor das contribuiçõesefetuadas, e não de planos estruturados pelo princípio do benefício defi-nido (em que a aposentadoria guarda relação com o rendimento pregressodo segurado).

A alta taxa de conflito neste setor pode ser inferida pela forte reaçãotanto dos fundos, quanto dos segurados, às diversas medidas implementadasdesde dezembro de 2000. Isso resultou em grande pressão política sobrea Secretaria de Previdência Complementar e na demissão da sua titularem junho de 2001. Pela Emenda Constitucional 20, de dezembro de1998, os fundos de pensão supervisionados pela Secretaria de Previdên-cia Complementar (SPC) no Ministério da Previdência e Assistência Social(MPAS) deveriam implementar no período de 24 meses diversas medi-das. Entre as quais destaca-se a paridade de contribuição entre emprega-dor e empregado, no caso dos fundos de pensão patrocinados por em-

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presas e entidades públicas de empregados regidos pela CLT. O conflitoaberto levou à intervenção no maior fundo de pensão do país - o PREVI,dos funcionários do Banco do Brasil.25

Mesmo assim, pode-se afirmar que a taxa de conflito político nessaárea foi muito menor da que poderia ter sido antecipada. E isso emvirtude de vários desenvolvimentos. Como resultado do programa deprivatização, um grande conjunto de fundos de pensão do setor público,como o Valia e o Sistel, tornaram-se entidades de caráter privado e suasdistorções passaram a ser problemas de gestão corporativa de seuscontroladores.

Por último, indica-se que a reforma visava equacionar a questãoprevidenciária nos níveis subnacionais de governo (MORAES 2001;RABELO 2001). Nesse sentido a reforma também foi bem sucedida. AUnião recuperou o monopólio legal de emitir normas gerais sobre aseguridade social, e foi ainda aprovada a Lei Geral da Previdência doSetor Público nº 9.717/98, que estabelece regras gerais para organizaçãoe funcionamento dos regimes próprios de previdência dos servidorespúblicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Évedada, por essa Lei, a instituição de regime próprio para os municípioscuja receita diretamente arrecadada seja menor que a receita provenientede transferências constitucionais da União. Neste caso, o município devecontribuir para o INSS na condição de empregador. Com a Lei de Respon-sabilidade Fiscal, de maio de 2000, as restrições tornam-se ainda maisseveras (MORAES, 2001).

VI - O DESAFIO À FRENTE: O GOVERNO LULA E A REFORMA À ITALIANA?

A avaliação freqüente das mudanças na previdência efetuadas no Gover-no Fernando Henrique Cardoso é que se trata de mero ajuste e não deuma reforma propriamente dita. Na realidade, tais transformações sãosubstanciais, embora não suficientes para enfrentar o desequilíbrio atuarialdo sistema. A magnitude desse desequilíbrio está expressa na dívidaprevidenciária implícita do sistema, por conta das promessas de benefíci-os previdenciários dos aposentados e dos trabalhadores do regime anteri-

25 Outra mudança importante diz respeito ao tratamento tributário dos fundos de pensão que perdem

o status fiscal de entidades filantrópicas, e a alteração das regras que regulam a composição deportfolios de investimentos dos fundos.

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or. Uma parte desse estoque tem origem nos encargos previdenciários daUnião, nos benefícios não contributivos, e a outra parte, mais significati-va, nas promessas geradas sem base atuarial.

O alto volume de renúncias fiscais de contribuições, às pequenas emédias empresas, pelo Simples, e às entidades filantrópicas, tambémcontribui decisivamente. Segundo as estimativas, a desconexão entre con-tribuições e benefícios parece estar, parcialmente equacionada após asreformas. É a magnitude do estoque dos direitos adquiridos que, na reali-dade, representa o problema. Existem duas alternativas para reduzir esseestoque. Uma é sua desvalorização - que foi levada a cabo, na década 80no Brasil, pelos gestores macroeconômicos, principalmente através dainflação. Nessa mesma linha de redução do estoque da dívida está aestratégia de cobrar contribuições dos atuais aposentados. Essa alternativafere direitos adquiridos e mostrou-se politicamente inviável no país.

Outra alternativa é a de fundar essa dívida, recorrendo-se a ativospúblicos ou receitas de privatização etc. Com isso isola-se a dívidaprevidenciária antiga e dirige-se o fluxo de contribuições para um siste-ma de capitalização. No entanto, há forte dissenso sobre as vantagens dese capitalizar uma dívida. Além do mais, os custos de transição, comoassinalado, são proibitivos.

A reforma da previdência implementada no país representa, em largamedida, os limites do possível. Não só no sentido já utilizado neste traba-lho, relativo aos limites políticos de reformas que atingem direitos, ex-pectativas de direitos e impõem custos a grupos, mas no sentido devoltar-se fundamentalmente para reduzir o fluxo de novos entrantes nosistema, com promessas de benefícios inconsistentes atuarialmente. Esti-mativas atuais com base no efeito das mudanças prevêem uma estabiliza-ção do déficit a partir de 2030 (BRANDT 2001).

Um paralelo entre nossa reforma previdenciária e a italiana dos anos90 permite iluminar possibilidades importantes de mudança. Esse parale-lo é pertinente por várias razões. Uma delas é que o regime italiano pré-reforma apresentava grande similitude com o brasileiro. Ele estava frag-mentado em diversos regimes, com benefícios diferenciados. O plano debenefício apresentava distorções e privilégios muito semelhantes aosexistentes no Brasil. No regime antigo havia, como no Brasil, aposenta-doria por tempo de serviço e forte viés em favor dos servidores públicos.Dentre as distorções atuariais destacavam-se o estímulo às aposentadoriasprecoces e inconsistência entre benefícios e contribuições. Era possível

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no sistema a acumulação de proventos e pensões, e outras distorções.Outra razão que justifica a comparação é que o processo de reforma

naquele país guarda forte semelhança com o processo ocorrido no Brasil.Ele foi marcado pelo gradualismo, incrementalismo e assumiu o formato,no primeiro momento, também de reforma paramétrica. O passo funda-mental, no entanto, só ocorreu na chamada reforma Dini, quando tevelugar um esforço neocorporativista de “concertação” nacional que contoucom ampla participação das centrais sindicais. Ainda, a mudança maisimportante - a utilização da capitalização escritural ou nocional - tambémfoi adotada, em seus princípios gerais, no Brasil.

A reforma ocorreu em dois momentos diferenciados. O primeiro con-sistiu na Reforma Amato de 1992. O leitmotif dessa reforma foi a crisecambial italiana de 1991-92, a qual teve como um dos seus elementospropulsores a crise de confiança gerada pelo déficit fiscal da previdência(BRUGIAVINI 2002). Esta reforma introduziu mudanças paramétricas muitosemelhantes à brasileira, tais como:

1. A idade mínima de aposentadoria foi elevada (ao longo de dezanos) de 55 para 60, para mulheres, e de 60 para 65, para homens, nocaso das pensões do setor privado.

2. O tempo de referência para o cálculo de pensões foi estendido (aolongo de dez anos) de 5 para dez anos. Para os trabalhadores mais jovens(com menos de 15 anos de contribuições) esse período foi ampliado paratoda a vida laboral. Os rendimentos no passado seriam corrigidos poruma taxa igual à elevação do custo de vida mais um ponto percentual.

3. O número de anos de contribuição para concessão de pensão poridade passou de 15 para 20 anos (durante um período de dez anos).

4. O índice de referência para a indexação dos benefíciosprevidenciários deixou de ser os salários e passou a ser um índice depreços. O governo poderia conceder ajustes discricionários adicionais emfunção da existência de recursos do orçamento.

5. O número mínimo de anos de contribuição exigido para a conces-são de aposentadorias de servidor público foi aumentado para 35, igua-lando-se, portanto, às aposentadorias do setor privado (FRANCO 2000).

A reforma Dini (1995), por sua vez, consistiu nas seguintes mudanças:1. Os valores das aposentadorias são capitalizados e passaram a ter

como base as contribuições pagas ao longo de toda a vida laboral e àidade de aposentadoria. Cada trabalhador detém uma conta escritural.Durante a aposentadoria a pensão é determinada pela multiplicação do

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saldo acumulado pelo coeficiente de conversão que leva em conta asmudanças da expectativa de vida e uma comparação com crescimento doPIB e rendimentos.

2. Os trabalhadores podem escolher se aposentar entre 57 e 65 anos.As pensões são ajustadas por um fator ou coeficiente que leva em contaas expectativas de vida. As aposentadorias por tempo de serviço sãoabolidas.

3. O número mínimo de anos de contribuição requerido para umapensão por idade é reduzido para 5. A pensão mínima é abolida, e aspensões assistenciais reformadas (FRANCO, 2000)

A reforma Amato (1992) pode ser considerada um ajuste paramétricopara as transformações que foram implementadas com a reforma Dini(1995) (cf FRANCO 2000; MARE e PENNISI 2001). Uma das questõesque permanece na agenda, no entanto, é o fortalecimento do pilar com-plementar, sendo que uma das alternativas na agenda atual é a possibili-dade de utilização da cota capitalizada por tempo de serviço (equivalenteao FGTS brasileiro), contanto com isenções fiscais, como contribuição aofundo de pensão privada (ibid.).

Neste sentido, a reforma implementada pelo governo FernandoHenrique Cardoso cumpriu o papel da primeira fase e lançou as basespara a segunda. Esta se completaria com a aprovação da PL 9, de 1999, ea adoção plena de um modelo escritural e unificação dos regimes. Embo-ra o programa de governo do candidato do PT seja generalista e nãocontenha nenhuma referência substantiva ao modelo de reforma a serperseguido, há evidências de que os passos serão dados nessa direção.No entanto, há também referências ambíguas no texto.

Conforme o programa de governo,“a reformulação deve ter como objetivo a criação de um sistema

previdenciário básico universal, público, compulsório, para todos os traba-lhadores brasileiros, do setor público e privado. O sistema deve ter carátercontributivo, com benefícios claramente estipulados e o valor do piso e doteto de benefícios de aposentadoria claramente definido” (p. 18) 26.

Em outras palavras trata-se de um regime contributivo, mas de benefí-cio definido. Não está claro se se trata apenas de um pilar básico. Háreferências também a um terceiro pilar:

“Quanto ao terceiro pilar do atual sistema previdenciário brasileiro, a

26 Cf Programa de Governo de Luis Inácio Lula da Silva,. São Paulo, Partido dos Trabalhadores.

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previdência complementar”... que poderia “ ser exercida através de fun-dos de pensão, patrocinados por empresas ou instituídos por sindicatos(conforme a Lei Complementar 109), voltada para aqueles trabalhadoresque querem renda adicional, além da garantida pelos regimes básicos”(p. 21)

No entanto o texto é ambíguo em relação “ao segundo pilar”, poisafirma que ele será facultativo. A afirmação é que “em complemento aosistema público universalizado, aos trabalhadores tanto do setor públicocomo do privado, que almejam valores de aposentadoria superiores aooferecido pelo teto da previdência pública, haverá o sistema de planoscomplementares de aposentadorias, com ou sem fins lucrativos, de cará-ter facultativo e sustentado por empregados e empregadores”. (p. 18).

A interpretação mais provável é que o modelo divisado é de apenasdois pilares: uma previdência pública, com benefício definido, e umregime complementar. No entanto, há referência a um teto único daprevidência pública, o que abre a possibilidade de um sistema com con-tribuição definida (uma vez que o texto é omisso).

Como assinalado, o processo de discussão da proposta de reforma noBrasil envolveu não só os partidos, mas também as centrais sindicais emum experimento neocorporativista fugaz e malogrado. A experiência bra-sileira contrasta marcadamente com a italiana de reforma radical do siste-ma previdenciário, patrocinada pelo governo Dini, em 1995, em umquadro de intensa crise política e econômica. O impasse nas negociaçõessó foi rompido após as negociações tripartites com as três confederaçõessindicais. O governo fez várias concessões aos sindicatos em troca deapoio para uma reforma que estava fadada ao malogro pelo nível deresistência que encontrou no Parlamento, onde 3.500 emendas foramapresentadas ao projeto. O governo negociou três sucessivos votos deconfiança para a aprovação de um pacote completo de reforma, queincluía muitos privilégios semelhantes ao caso brasileiro (WEAVER 1998;BACCARO 2000; BACCARO E LOCKE 1997).

A chegada do PT à Presidência da República parece abrir a possibili-dade de um modelo de reforma à italiana, não só em termos da adoçãode um modelo escritural pleno, mas também no formato de negociaçãoneocorporativista. Só que o desenlace da reforma irá depender funda-mentalmente da interação estratégica entre os atores sociais e políticos.Como assinala Baccaro (2000), a chave da questão está nas condiçõesque poderiam levar as entidades sindicais a cooperar com o governo.

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DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO

FEDERATIVA NO BRASIL:LIÇÕES DOS ANOS FHC

Fernando Luiz Abrucio1

O Estado sofreu intensa transformação nas últimas duas décadas em vári-as partes do mundo. Entre os aspectos mais importantes desse processo,está a descentralização, pela enorme abrangência de países atingidos,pelos impactos que causou na organização estatal e pela mudança quetrouxe às relações entre os governos e a sociedade, aumentando a preo-cupação com a accountability democrática. Tal importância é destacadapelo estudo de Elaine Kamarck. Analisando 123 nações, a autora consta-tou que a descentralização foi a segunda forma inovadora mais utilizadanos processos de reforma do Estado, aparecendo em 40% dos casos, etendo sido ultrapassada apenas pela privatização (KAMARCK, 2000).

O tema da descentralização também ganha destaque especial porqueé, entre os tópicos de reforma do Estado, o que mais questões abarca.Autonomia local, formas de democracia participativa, racionalização daprovisão de serviços, maior liberdade e responsabilidade dos gestorespúblicos, desigualdades regionais, entre os principais, são aspectos quefazem da descentralização um verdadeiro caleidoscópio. Por conta destecaráter, ela deve intrinsecamente lidar, a um só tempo, com as variáveisdo desempenho e da democratização da gestão pública.

Nos países onde a organização político territorial foi bastante alterada,a descentralização tornou-se ainda mais relevante. O Brasil está entreestes casos. O processo descentralizador, aqui, foi não só intenso eavassalador, como também influenciou a redemocratização do país, oredesenho da rede de proteção social e a reforma do Estado. A análise

1 Doutor em Ciência Política pela USP e professor da PUC (SP) e da FGV (SP).

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dos os caminhos da descentralização, portanto, é um ângulo privilegiadopara se compreender a história brasileira recente.

O objetivo do artigo é estudar a descentralização adotando uma pers-pectiva diferenciada da maioria da literatura, que explora tal tema peloângulo dos governos subnacionais e seus atores. Sem negligenciar esteprisma, o foco principal concentra-se na análise do papel do GovernoFederal na coordenação federativa ao longo dos dois mandatos presiden-ciais de Fernando Henrique Cardoso. Em termos metodológicos, a com-preensão da singularidade dos anos FHC passa, primeiro, por uma dis-cussão teórica formulada a partir da experiência internacional e, em se-gundo lugar e mais importante, pelo estudo da trajetória do federalismo edas relações intergovernamentais no Brasil, buscando compreender quaissão os legados deste processo histórico. Este referencial permite enten-der a especificidade do governo Fernando Henrique e descobrir quaissão as lições deste período.

Para tanto, o trabalho organiza-se da seguinte forma. Na primeira par-te, o fenômeno da descentralização é definido, buscando compreendersua evolução recente e as suas implicações no processo de reforma doEstado. Na segunda, o objetivo é mostrar que a descentralização ganhaum sentido bastante peculiar num contexto federativo, uma vez que acoordenação intergovernamental torna-se peça-chave. A partir desta ar-gumentação, o processo descentralizador brasileiro é compreendido comoum eixo derivado da trajetória do federalismo. Por esta razão, neste pontodo trabalho, traça-se uma breve história da Federação, desde suas origensaté o ocaso do regime militar.

O entendimento do funcionamento do federalismo brasileiro montadona redemocratização é feito na quarta parte. As características federativasdeste período e a continuidade de seus efeitos são centrais neste artigo.Na quinta seção, o foco se concentra nas mudanças realizadas na estrutu-ra básica da Federação a partir do Plano Real. Trata-se de uma “conjuntu-ra crítica”, no sentido formulado por Paul Pierson (2000), na qual a posi-ção relativa dos atores e os seus recursos foram alterados, levando aoredesenho de parte do arcabouço institucional. Ainda no bojo desta dis-cussão, é traçado um mapa de várias ações do Governo Federal no terre-no da coordenação federativa.

Destaque é dado, a seguir, ao processo de coordenação federativa nasáreas financeira e administrativa, que ganharam importância nos anosFHC, no bojo de seu modelo de reforma do Estado. Depois são analisadas

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as políticas sociais de Saúde, Educação e Assistência Social, mostrando osavanços e problemas encontrados sob o prisma das relaçõesintergovernamentais. E, mais adiante, o artigo trata dos dois principais fra-cassos da União no período: as políticas urbanas e de desenvolvimento.

Além de ressaltar as principais características dos caminhos dadescentralização na Era FHC, a conclusão arrola alguns desafios de coor-denação federativa que certamente serão enfrentados pelo próximo pre-sidente .

I - O FENÔMENO DA DESCENTRALIZAÇÃO

Descentralização é uma palavra muito utilizada nos dias que correm,quase sempre com um sentido positivo. Só que, no mais das vezes, aquantidade de elogios que recebe é proporcional à sua imprecisãoconceitual. Para tornar mais claro o debate, definimos descentralizaçãocomo um processo nitidamente político, circunscrito a um Estado nacio-nal, que resulta da conquista ou transferência efetiva de poder decisórioa governos subnacionais, os quais adquirem autonomia para escolherseus governantes e legisladores (1), para comandar diretamente sua ad-ministração (2), para elaborar uma legislação referente às competênciasque lhes cabem (3) e, por fim, para cuidar de sua estrutura tributária efinanceira (4).

Obviamente que há graus diferenciados de autonomia nas diversasexperiências nacionais, sendo que, geralmente, os governos subnacionaistêm maior poderio nas Federações, por razões que veremos mais adian-te. Também existe uma diversidade no que tange a cada um dos quatroaspectos citados acima, com experiências mais voltadas às liberdadespolítica e jurídica e outras direcionadas mais firmemente a questões tribu-tárias ou administrativas. De qualquer modo, tem-se aqui uma definiçãomínima de descentralização, no mesmo sentido da delimitação minimalistade democracia, e a partir da qual é possível compreender melhor ofenômeno.

A definição mínima de descentralização é tanto mais necessária porconta desse termo designar correntemente outros três fenômenos. Umdeles envolve o aspecto administrativo. Trata-se da delegação de fun-ções de órgãos centrais para agências mais autônomas, o que na verdadeé um processo de desconcentração administrativa, ou ainda então ahorizontalização das estruturas organizacionais públicas, com o repasse

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de maior responsabilidade da cúpula aos gerentes e funcionários da pon-ta. Além dessa caracterização, a descentralização é igualmente utilizadapara denominar a transferência de atribuições do Estado à iniciativa pri-vada - privatização ou concessão de serviços públicos - e do governopara a comunidade ou ONGs. Estes três processos não podem ser sim-plesmente equiparados à descentralização no seu sentido estrito, emborapossam conviver com ela ou mesmo serem impulsionados por mudançaspolíticas descentralizadoras.

Tentar distinguir claramente tais termos não é uma preocupaçãonomológica, mas sim uma precaução contra maneiras indevidas de semanejar os conceitos. Exemplo nesta linha foi o discurso de MargarethThatcher e de boa parte do receituário neoliberal da década de 80, quedefendia uma descentralização cujo objetivo era mais limitado. Significa-va o repasse de funções para governos locais sem garantir a autonomia eo financiamento, a desconcentração de atribuições da administração cen-tral para agências e, dentro destas, da cúpula para os gerentes, e ainda aprivatização de empresas públicas. Essas ações buscavam diminuir custose melhorar o desempenho da gestão pública, só que propositadamentenegligenciavam o cerne de qualquer processo descentralizador: a demo-cratização do Estado2.

Com base nesta discussão conceitual, pode-se dizer que o processodescentralizador, no seu sentido essencialmente político, é um fenômenobastante recente, que ganhou maior impulso, num maior número de paí-ses, somente nas últimas décadas do século XX. Decerto que há umdebate intelectual sobre a questão desde o século XIX, em pensadorestão distintos como Proudhon e Tocqueville, além de pelo menos umaexperiência precursora em larga escala, que foi o modelo norte-america-no. A precocidade dos Estados Unidos é perceptível na tradição de auto-nomia local e no conjunto complexo de instituições e mecanismos derelacionamentos entre os níveis de governo, algo ainda poucas vezesencontrado.

A formação dos modernos Estados nacionais, na verdade, foi um pro-cesso de centralização do poder e de tentativa de construir uma sobera-nia una e indivisível, nos termos de Jean Bodin. O objetivo maior eraestabelecer a ordem mínima hobbesiana, concentrando poder numa auto-ridade que desse conta dos perigos da fragmentação local e da invasão

2 Sobre a descentralização na era Thatcher, ver B. Guy Peters (1992).

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externa. O Governo Central tornou-se o eixo estruturador de toda a polí-tica, com um poderio praticamente inquestionável.

O fortalecimento do poder nacional não foi abrupto, mas sim, umaconstrução que durou séculos. Neste longo processo centralizador, adescentralização do poder era normalmente vista de modo negativo, coma grande exceção da experiência norte-americana. Com a consolidaçãodas independências na América e com o novo colonialismo europeu naÁfrica e Ásia, ademais, o poderio do Estado nacional transformou-se emarma fundamental no jogos geopolítico e econômico, especialmente paraos que disputavam mercados no contexto imperialista, entre o final doséculo XIX e o começo do XX. Mais adiante, a crise da ideologia dolaissez faire e a formulação do pensamento keynesiano, no bojo da de-pressão da década de 30, legitimaram o reforço do papel da intervençãoestatal centralizada.

A expansão do Estado atingiu seu auge depois da Segunda GuerraMundial. O aumento da intervenção governamental foi estruturado sobtrês pilares: o keynesiano, correspondente ao aspecto econômico, oWelfare State, ligado ao social, e o burocrático weberiano, modelo admi-nistrativo que dava suporte às ações dos outros dois pilares. Todos os trêsforam engendrados pelo Governo Central. Nos países desenvolvidos,ademais, esta engenharia institucional foi construída num contexto deampliação da democracia no plano nacional. O fato é que, entre 1950 e1980, era de grande prosperidade do capitalismo (por alguns chamadade “anos dourados”), o Estado nacional foi o motor do desenvolvimentoe, em alguns casos, da cidadania.

Paradoxalmente, o avanço e o sucesso da intervenção estatal centrali-zada e da nacionalização da política no pós Guerra impulsionaram, maisadiante, o processo de descentralização. Dito de outro modo, a expansãodo Welfare State e da democracia, frutos do período de grande nacionali-zação da política, favoreceram a constituição de demandasdescentralizadoras.

No caso dos Welfares, cabe assinalar que eles foram instituídos pelosGovernos Centrais, que agiram com maior ênfase a partir da década de50. No começo, a administração centralizada geralmente implantava sozi-nha as políticas de bem estar social, contudo, ao longo do tempo, elaaumentou as ações de financiamento e/ou as parcerias com os governossubnacionais. Em outras palavras, a ampliação da oferta de serviços pú-blicos, por parte do Poder Nacional, redundou na criação de estruturas

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administrativas no plano local. Um exemplo neste sentido é o da experi-ência norte-americana. Conforme John Donahue, houve lá uma maiorcentralização desde os anos 30, mas as burocracias estaduais foram seaperfeiçoando para receber e utilizar melhor os grants do Governo Fede-ral, criados desde o período Roosevelt e ampliados ainda mais pelogoverno Lyndon Johnson, por meio do programa Great Society. Esteprocesso, por si só, gerou mais adiante demandas pelo repasse integraldas funções aos estados (DONAHUE, 1997: 12).

O crescimento e a complexificação da estrutura administrativa dosistema de proteção social resultou em dilemas de eficiência e democra-tização. No que se refere ao primeiro aspecto, quanto mais atividades oGoverno Central concentrava em suas mãos, mais perdia o controle sobreo desempenho e a qualidade das políticas. Um bom exemplo disso era oprograma de merenda escolar do Governo Federal brasileiro. Seu alcancee recursos elevaram-se deveras ao longo do tempo e, até meados dadécada de 90, a União comprava os alimentos, muitas vezes trazia-os atéBrasília e depois os distribuía para o restante do país. Daí resultavam osseguintes problemas: os bens em questão eram perecíveis e muitos estra-gavam por conta dessa logística centralizadora; os hábitos alimentíciosregionais eram desprezados; e a compra centralizada normalmente au-mentava os custos. Trocando em miúdos, o excesso de centralizaçãolevava à ineficiência.

A centralização excessiva muitas vezes provinha das ações da buro-cracia nacional e dos políticos, os quais, ao concentrarem os recursos nonível central, fortaleciam seu poder decisório (burocratas) ou de chanta-gem perante as bases locais (líderes políticos clientelistas). A maior de-mocratização do sistema político tem sido o melhor instrumento contraesta situação. Tal processo democratizador foi inicialmente construídomais por processos nacionais do que locais, ao contrário do que supõevisões mais românticas. Até no caso norte-americano, fundado pelo con-ceito de self-government e onde de fato a autonomia republicana dosgovernos locais prosperou em boa parcela do território, a nacionalizaçãoda política foi fundamental para a democratização do sistema, atacandoos focos de corrupção no Sul e em grandes centros urbanos (como Chica-go), além de garantir os direitos civis dos negros.

Em vários países desenvolvidos, a nacionalização do processo demo-crático ampliou espaços de participação que, gradativamente, estabele-ceram-se nos níveis locais de governo. Cabe lembrar que o longo cami-

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nho da centralização do poder havia sufocado uma série de demandaspor autogoverno regional, e a democratização do pós Guerra permitiucolocar em xeque essa estrutura política, embora a transformação domodelo não tenha ocorrido de uma hora para outra. O caso italiano refle-te bem esse fenômeno, pois, como mostrou Robert Putnam, entre a pro-mulgação da Constituição, em 1948, e o início da década de 70, ocorreuuma intricada batalha pela autonomia dos governos locais (cf. PUTNAM,1996: 35-38).

O modelo centralizador entrou em crise no começo da década de 80.Para tanto, contribuíram fatores como a internacionalização econômica,que reduziu parcela significativa do poder de intervenção estatal no pla-no nacional, especialmente na área financeira; a crise fiscal dos Gover-nos Centrais, vinculada à perda de dinamismo econômico que marcara os“anos dourados”; a defesa de reformas inspiradas por uma concepçãominimalista de Estado, iniciada com as vitórias de Thatcher e Reagan; ofortalecimento de organizações com modus operandi transnacional, comoempresas multinacionais, ONGs, instituições multilaterais, blocos regio-nais e até máfias internacionais; a maior demanda por participação nonível local; e o aumento da integração econômica entre os capitais e osgovernos subnacionais, processo chamado por alguns autores de“glocalization” (WATTS, 1994).

Sobre este processo, ficou famosa a frase de Daniel Bell: “the nation-state is becoming too small for the big problems of life and too big for thesmall problems of life” (BELL, 1988).

Em boa medida, o discurso e a prática descentralizadoras derivaramdessa crise do modelo centralizador de intervenção estatal. No entanto,vale ressalvar que o balanço dos últimos vinte anos não revela umaredução significativa do tamanho do Estado ou o esvaziamento do Gover-no Central. Houve, sim, mudanças na estrutura centralizada anterior, comnovas formas de provisão e atuação do aparato estatal, só que o resultadodisso está levando a repensar o papel do Poder Nacional, em vez dedestrui-lo.

Em resumo, os resultados paradoxais da expansão e complexificaçãodo Welfare State e da nacionalização da democracia, somados aos fatoresrecentes que enfraqueceram o Governo Central, pavimentaram o terrenoonde a descentralização foi inicialmente construída. Mais outras quatrocausas influenciaram este processo: a urbanização acelerada, que tornouos problemas locais e seus governos cada vez mais importantes para um

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maior número de pessoas; a irrupção de conflitos étnicos, os quais, quan-do não levaram à secessão, demandaram novas relações do Poder Nacio-nal com os grupos regionais, como na experiência espanhola; o surgimentodas democracias de Terceira Onda (HUNTINGTON,1994), nas quais houve,por diversas vezes, um imbricamento entre a democratização e o proces-so de descentralização; e, por fim, a força do discurso políticodescentralizador, cada vez mais aceito e proposto em larga escala, inclu-sive por instituições multilaterais, como o Banco Mundial, que o defen-dem como uma das melhores soluções aos países menos desenvolvidos.

O contexto atual pode ser classificado como uma era dedescentralização, dada a desconcentração sem precedentes do poderpolítico nacional. Os seus primeiros passos foram dados nos anos 50,mas o grande impulso se deu na década de 70, com a inclusão de umnúmero crescente de países, num processo ainda hoje em expansão.Entre os desenvolvidos, houve grandes mudanças na organizaçãoterritorial em lugares como a Bélgica (que passou por um processo defederalização nos últimos trinta anos), a Espanha e a Itália - ambascriadoras de uma estrutura regional ou quase federal (LARSSON,NOMDEN & PETITEVILLE, 1999: 400). Em todos estes casos, os go-vernos subnacionais conquistaram uma forte autonomia. Destaca-se,ainda, a consolidação dos federalismos alemão, australiano e canaden-se, cada vez mais preocupados em aperfeiçoar seus mecanismosintergovernamentais para garantir o princípio da subsidiariedade, se-gundo o qual as políticas devem ser conduzidas, o máximo possível,pelas autoridades mais próximas dos cidadãos. É igualmente relevantea influência do viés federativo no debate acerca da União Européia.Soma-se a tudo isso, de forma inédita e até inesperada, o repasse depoder ao plano local em duas das nações mais centralizadas da Euro-pa, a Grã-Bretanha e a França, como assinala Rudolf Hrbek:

“Recentemente, se vislumbram importantes alterações da estruturaterritorial na Grã-Bretanha. Sob o lema da ‘devolução’, o governo deWestminster transferiu direitos de autonomia abrangentes, embora di-ferentes, para a Escócia e o País de Gales. Vários observadores consi-deram essa evolução como início de uma profunda mudança da orga-nização estatal do Reino Unido, que poderia chegar a um ‘Estado deAutonomia’ ou ainda uma construção federativa. (....) Na França, con-siderada há muito tempo exemplo clássico de um sistema centralizador,também se iniciou uma política de descentralização a partir de 1982.

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Sua expressão mais nítida é a criação de regiões com novas entidadesterritoriais, ao lado dos tradicionais municípios e departamentos. Em-bora a competência e os recursos à disposição das regiões pareçammodestos, são nítidas as mudanças no Estado francês, bem como o fatoda descentralização já significar mais do que mera transferência deatribuições administrativas para um nível mais baixo. As regiões de-senvolvem autoconfiança, procuram tomar posições em relação à ca-pital e ao governo central e, ocasionalmente, já são consideradas ato-res respeitados num sistema que se desenvolve passo a passo” (HRBEK,2001: 111-112).

Nos Estados Unidos, país com maior tradição federativa do mundo,houve uma renovação do discurso em prol da descentralização. Do“novo federalismo” de Nixon até o modelo mais recente do devolutionpowers, aconteceu um repasse de funções aos estados, que para algunssignificou o retorno às “liberdades originais da Federação”. Ademais, aconcepção de que os governos subnacionais são “laboratórios de demo-cracia”, isto é, capazes de criar políticas inovadoras quanto mais contatodireto tiverem com os cidadãos, foi um dos principais eixos da políticanorte-americana na década de 90 (CONLAN, 1998; OSBORNE &GAEBLER, 1994).

A descentralização também avançou celeremente em outras partes doglobo. Num estudo citado por Marta Arretche, constatou-se que entre 75países em desenvolvimento analisados, 63 tinham realizado reformasdescentralizadoras (apud ARRETCHE, 1996: 63). A América Latina desta-ca-se neste contexto. Nela, são eleitos atualmente 13 mil governos locais,contra menos de 3 mil no final dos anos 70 (BANCO MUNDIAL, 1997:112). Países como Colômbia, Peru e Venezuela aumentaram, em maiorou menor grau, a autonomia dos governos locais. Federações mais anti-gas, porém tolhidas em sua liberdade por décadas de autoritarismo, comoo México e a Argentina, reforçaram o poder de suas províncias ou esta-dos - no caso mexicano, foi do plano subnacional que, em grande medi-da, saiu o processo de democratização recente do país (cf. RODRÍGUEZ& WARD, 1995). E o Brasil não ficou atrás, pois reconstruiu sua estruturafederativa por meio do reforço do poder das esferas estaduais e munici-pais, como mostraremos mais adiante.

O fascínio causado pela descentralização baseia-se não apenas nacrise do modelo centralizador e no surgimento de novas realidades, mastambém na força política adquirida por esse conceito, cujo sinal é quase

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sempre positivo. Agregando uma ampla e heterogênea coalizão de inte-resses, o discurso descentralizador teria suas principais qualidades associ-adas à democratização do Poder público e à melhora do desempenhogovernamental.

Descentralização e democratização do Estado andam juntas no argu-mento político desde pelo menos o livro clássico de Alexis de Tocqueville,A Democracia na América. Processos históricos mais recentes, como aconquista de governos locais pelos comunistas italianos, na década de 60,ou o crescimento do municipalismo no Brasil nos anos 80, com seu viésdemocratizador sendo perceptível em políticas como o OrçamentoParticipativo, são dois entre vários dos exemplos que ajudariam a corro-borar esse relacionamento virtuoso.

O pressuposto que orienta essa concepção é o de que a maior proxi-midade dos governos em relação aos cidadãos possibilita o aumento daaccountability do sistema político. De fato, o controle sobre os governantespode ser facilitado pela descentralização, já que com ela há maior proba-bilidade de disseminação das informações, de criação de canais de deba-tes e mesmo de se instituir mecanismos mais efetivos de fiscalizaçãogovernamental, para citar três dos elementos básicos do processo deresponsabilização democrática do Estado (PRZEWORSKI, 1998). Formasde democracia semi-direta também têm muito mais chances de se realizarno plano local.

O aumento da eficiência e da efetividade é citado igualmente comooutra qualidade intrínseca da descentralização. Isto porque a centraliza-ção completa das políticas resultaria, tecnicamente, em maior irracionalidadeadministrativa, e, politicamente, na criação de “superagências” monopolistasque dificilmente seriam controláveis, com efeitos não só para aaccountability democrática, como também para o desempenho da açãoestatal. Inversamente, a descentralização, ao aproximar os formuladoresdos implementadores, e, principalmente, estes dois dos cidadãos, melho-raria o fluxo de informações e a possibilidade de avaliação da qualidadeda gestão pública.

Nesta mesma linha de raciocínio, supõe-se que a uniformizaçãosubjacente ao modelo mais centralizador diminuiria os incentivos à inova-ção, ao passo que a existência de múltiplos governos seria um estímulopara a busca de novas soluções administrativas, pois os governantes lo-cais teriam a necessidade, por conta maior da cobrança da população, e apossibilidade, por conta da maior autonomia decisória, de encontrar saí-

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das criativas e vinculadas às peculiaridades de cada circunscrição políti-ca. Esta posição é bastante difundida no debate norte-americano e vemganhando adeptos em outros países3.

Muitos defendem que pode haver, sob certas condições, uma relaçãode mão dupla entre a democratização e busca da eficiência no planolocal, tal qual argumentam Abrucio e Soares:

“Por um lado, a participação e a cobrança da população obrigam osgovernantes, muito mais próximos, a melhorar seu desempenho adminis-trativo. Por outro, as condições para que os cidadãos atuem [democratica-mente] de forma mais eficaz estão ligadas à qualidade da gestão pública,responsável pela informação e pela adequação dos instrumentos de con-trole” (ABRUCIO & SOARES, 2001: 28).

A descentralização, no entanto, não tem qualidades intrínsecas etampouco está isenta de aspectos negativos. A força política deste discur-so e muitos resultados satisfatórios que daí se originaram nublam os pro-blemas que se colocam, em muitas ocasiões, para a implantação de umprocesso descentralizador. Há cinco questões fundamentais que devemser equacionadas em qualquer modelo de descentralização: a constituiçãode um sólido pacto nacional, o ataque às desigualdades regionais, a cria-ção de um ambiente contrário à competição predatória entre os entesgovernamentais, a montagem de boas estruturas administrativas no planosubnacional e a democratização dos governos locais.

A primeira se refere à relação dos governos locais com a nação. Umafragmentação excessiva pode levar à guerra civil, à desorganização eco-nômica ou à secessão. É claro que esta última pode ser até desejável emcertas circunstancias, nas quais grupos étnicos foram sufocados pelo Go-verno Central e/ou por uma etnia dominante. Não obstante, o fortaleci-mento de uma série de nacionalismos desde a segunda metade da décadade 80 tem grandes chances de produzir países com frágeis condições desobrevivência - e, neste caso, os vetores da globalização assimétrica naqual vivemos tendem a ser implacáveis, favorecendo os que mantiverammais território e população. Talvez tenhamos, na década que ora sedesenvolve ou no mais tardar na próxima, que refletir novamente sobre

3 Nos EUA, um dos maiores best sellers da década de 90 foi o livro Reinventando o Governo, que

analisa uma série de exemplos de experiências bem sucedidas no plano subnacional, os quais sãoclassificados como verdadeiros laboratórios de gestão pública (OSBORNE & GAEBLER, 1994). Estalinha argumentativa, entretanto, é bem mais antiga nas literaturas de Ciência Política e Economiaproduzida nos Estados Unidos, bem como no debate político.

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formas de organização política do espaço que respondam às demandaseconômicas e geopolíticas de centralização, mas acentuando necessaria-mente o caráter democratizador desse processo.

Supondo que um país resolva seus dilemas básicos de ordem e hajaum sentimento nacional razoavelmente consolidado, é preciso evitar ocrescimento das desigualdades entre as regiões. Algumas experiênciasrecentes de descentralização não foram acompanhadas pela criação depolíticas redistributivas - ou ao menos compensatórias - para as localida-des mais pobres ou carentes de infra-estrutura, o que contribuiu paraacentuar as diferença socioeconômicas. Nestes casos, a descentralizaçãotorna-se, na precisa definição de Remy Prud’Homme, “na mãe da segre-gação” (PRUD’HOMME, 1995), uma vez que as disparidades entre aspartes prejudicam o desenvolvimento de muitas delas e, ao fim e aocabo, do próprio conjunto, pois há uma piora do desempenho econômicoglobal, um aumento do conflito distributivo e, no extremo, a luta políticaassume proporções preocupantes à ordem nacional. Os impactos desseprocesso negativo são ainda maiores em grandes nações marcadas peladesigualdade regional, como a Índia, o Brasil e a Rússia. Para solucionareste problema, faz-se necessária a atuação coordenadora do GovernoCentral, sem a qual não é possível uma descentralização efetiva e justa.

O acirramento dos conflitos entre os níveis de governo é outra ques-tão que pode prejudicar a descentralização. Em razão de o processodesconcentrador de poder ser normalmente recente, dois fenômenos apa-recem com freqüência. Em uma ponta, muitos Governos Centrais não têmconseguido lidar com a nova realidade e querem evitar a perda de auto-ridade e competências, criando incertezas quanto aos passos seguintesdo processo e mesmo em relação à manutenção dos que já foram dados,tal qual ocorreu na Inglaterra nos tempos de Thatcher; noutra ponta, aausência de experiência anterior de autogoverno e o enfraquecimento doPoder Nacional têm gerado, em certos casos, estímulos à irresponsabilidadefiscal das unidades subnacionais, como na Argentina, ou a uma disputatributária predatória, como na guerra fiscal à brasileira4. O fato é que afragilidade dos instrumentos de cooperação e coordenação entre as esfe-ras de poder constitui um grande obstáculo ao sucesso da descentralização.

4 Para uma visão geral do processo de descentralização, tratando sobretudo das resistências a ele e a

manifestação de comportamentos fiscais irresponsáveis por parte dos governos subnacionais, verBURKI, PERRY & DILLINGER, 1999.

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É necessário, também, desenvolver as capacidades administrativas efinanceiras dos entes subnacionais para que a descentralização ajude amelhorar o desempenho da gestão pública. Os possíveis ganhos deeficiência resultantes da desconcentração das atribuições não são alcan-çados caso faltem recursos suficientes às administrações locais, ou seestas deixarem de exercer sua autoridade tributária. O repasse das fun-ções antes centralizadas só alcança plenamente seus objetivos quandoacoplado à existência ou à montagem gradativa de boas estruturasgerenciais nos níveis inferiores. Obviamente que a grande concentra-ção de tarefas nas mãos do Governo Central é prejudicial à eficiência,porém, a manutenção de padrões arcaicos de governança no planolocal, além de reduzir a efetividade da ação estatal, desmoraliza adescentralização, podendo até incentivar propostas demagógicas de(re)centralização e paternalismo. Logo, a modernização administrativados governos subnacionais é condição sine qua non de um ciclo virtuo-so descentralizador.

A relação entre descentralização e democracia não é linear. Ela de-pende das condições sociais, econômicas e políticas existentes em deter-minado país e tempo histórico. Trata-se, em suma, de uma construçãopolítico-institucional. É neste sentido que, analisando a associação entredemocratização e descentralização, Marta Arretche argumenta:

“A concretização dos ideais democráticos depende menos da escalaou nível de governo encarregado da gestão das políticas e mais da natu-reza das instituições que, em cada nível de governo, devem processar asdecisões” (ARRETCHE, 1996: 45).

Em diversos momentos da história, formas oligárquicas predominaramno plano local. Exemplos: o Brasil da Primeira República, o Sul dosEstados Unidos na primeira metade do século XX - realidade tão bemdescrita por V.O.Key Jr. (1949) -, os governos subnacionais mexicanosdurante o domínio do PRI e, até hoje, a administração das Províncias maispobres e suas municipalidades na Argentina. A lista é bem mais extensa,mas ficamos por aqui. Ora, isto quer dizer que existe uma outra “relaçãolinear”, agora entre descentralização e oligarquia? Esta ilação é tão falsaquanto a primeira. Basta observar a progressiva democratização de go-vernos subnacionais em várias partes do mundo: em países federativos(como a Alemanha, os EUA, o Canadá) em Estados Unitários (Itália eEspanha), além dos grandes avanços ocorridos em nações em desenvol-vimento, como o Brasil e a Índia. A continuidade desse processo vincula-

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se à construção de certas condições institucionais, culturais esocioeconômicas.

Para responder a estas cinco questões, é preciso adotar três pressu-postos gerais que balizam qualquer processo de descentralização:

1) A opção não deve ser centralização ou descentralização. O segredodo sucesso está no relacionamento entre elas. Num extenso e detalhadotrabalho que envolveu o estudo das relações intergovernamentais detodos os países da OCDE, a então presidente dessa organização, AliceRivlin, concluiu que:

“Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização.Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções -descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando ou-tras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudançasestão a caminho em todos os países” (OCDE, 1997: 13).

2) A descentralização envolve um projeto nacional e vários processosou rodadas de negociação. Em relação ao primeiro aspecto, cabe ressaltarque não basta criticar os problemas do antigo modelo centralizador; éfundamental estabelecer uma estratégia nacional que oriente, minima-mente, o processo descentralizador (FIORI, 1995). Assim sendo, as lide-ranças políticas e administrativas de todo o país precisam ter em mente osentido geral da descentralização. No entanto, este projeto geral érediscutido e repensado ao longo do tempo. Ademais, a desconcentraçãode funções ocorre em diversas áreas, às vezes muito distintas entre si,por conta da peculiaridade de cada política pública. É por esta razão queconcordamos com o argumento de Maria Hermínia Tavares de Almeida: adescentralização é um processo composto por várias rodadas (ALMEIDA,2000: 7), muito embora o histórico específico das políticas afeta seudestino posterior. Qualquer avaliação da descentralização em um deter-minado país, portanto, deve analisar o projeto nacional e os processosdescentralizadores, bem como a relação entre eles.

3) A descentralização exige a construção de capacidades político-institucionais tanto do Poder Central como dos governos subnacionais.Ambos devem ser preparar especificamente para este processo. O Go-verno Central deve habilitar-se para o repasse de funções e para a coor-denação das ações mais gerais, atuando em prol do equilíbrio entre asregiões, fornecendo auxílio técnico e financeiro aos níveis inferiores eavaliando as políticas de cunho nacional. Os entes subnacionais, por suavez, precisam aprimorar sua estrutura administrativa e seus mecanismos

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de accountability democrática. Uma competência comum é essencial:todas as esferas de poder devem desenvolver instrumentos e mesmouma cultura política vinculados às relações intergovernamentais, em par-ticular no caso do Governo Central, em razão de seu papel necessaria-mente coordenador.

O caso brasileiro enfrenta todo este universo de questões atinentes àdescentralização. Só que há uma particularidade: o Brasil é uma Federa-ção, característica que dá um molde especial ao processo descentralizador.

II - FEDERAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO: O SIGNIFICADO DESSA RELAÇÃO

As formas de organização territorial do poder podem ser divididas emquatro tipos: a Associação de Estados, a Confederação, a Federação e oEstado Unitário. Alguns países têm adotado características de mais de ummodelo, seja porque a era da descentralização trouxe mais preocupaçõesfederativas a nações unitárias, seja porque a temática dos blocos regio-nais impulsionou experiências com inspiração confederativa, como a UniãoEuropéia, ou que procuram constituir alianças econômicas, como as uni-ões aduaneiras e áreas de livre comércio. De qualquer modo, há simdiferenças entre tais categorias, que dizem respeito, em especial, à maiorou menor concentração/dispersão de poder e soberania entre os entes,fazendo com que haja organizações territoriais do poder mais centrífugasou mais centrípetas. O quadro abaixo configura esta classificação:

Resumidamente, podemos diferenciar cada uma dessas formas de or-ganização político-territorial do poder5. A Associação de Estados estabe-lece uma parceria voluntária entre nações que não perdem sua soberaniaoriginal e constituem uma cooperação com fins culturais, políticos e/oueconômicos, sem que isto implique um maior compromisso decompartilhamento de poder ou centralização decisória. Portanto, são mem-bros que não abdicam de sua condição de país e, enquanto tais, podem

5 Essa conceituação baseia-se em ABRUCIO, 2000.

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sair dessa organização a qualquer momento. Ademais, a Associação entreEstados pode ocorrer entre Estados nacionais que não tenham contiguidadeterritorial, uma vez que os objetivos podem ser de cooperação econômi-ca ou de intercâmbio cultural - tal como ocorre no Commonwealth.

A Confederação, por sua vez, é a junção de unidades independentes,que podem ser Estados nacionais ou não - o início da história dos EstadosUnidos representa esta segunda possibilidade. Busca-se um maior com-promisso pelo compartilhamento do poder do que na Associação entreEstados, mas se evita a criação de um Governo Central. Diferentementeda Associação entre Estados, a Confederação pressupõe sempre umacontiguidade territorial.

O que motiva a criação do modelo confederativo é a existência deproblemas e necessidades comuns em uma mesma área territorial. Paratanto, os participantes desse acordo estabelecem políticas integradas.Contudo, ao contrário da Federação, não é constituído um Governo Cen-tral, embora possa até existir uma estrutura que funcione como póloaglutinador da Confederação, porém sem um estatuto de legitimidade porsi só. Mais do que isso, há uma superioridade do arcabouço constitucionalde cada um dos membros sobre o conjunto de regras que orienta essaunião. É por esta razão que as principais decisões válidas para todos osintegrantes precisam da aprovação unânime deles ou, então, certas deci-sões não são vinculantes a todos os participantes - a questão da moedacomum na União Européia é tipicamente uma questão confederativa.

O modelo confederativo foi o inicialmente praticado nos Estados Uni-dos após a independência, em 1776. Pode-se dizer que hoje a UniãoEuropéia é o que há de mais próximo de uma Confederação6. Observan-do a história das experiências confederativas, percebe-se uma a baixacapacidade de sobrevivência dessa forma de organização político-territorialdo poder. Nos EUA, durou pouco mais de dez anos, enquanto o casorecente da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), composta pe-las partes daquilo que fora a União Soviética, redundou em maior divisão

6 A experiência da União Européia tem características mais próximas da Confederação, porém alguns

de seus membros e ideólogos defendem uma maior federalização de sua estrutura. Propostas como ofortalecimento do Parlamento Europeu, do Direito Comunitário e do Banco Central Europeu, reti-rando grande parcela do poder macroeconômico dos Estados nacionais, caminham numa linhamais federativa. Contudo, a capacidade de países pertencentes à essa união de não compartilhar detodas as regras do ordenamento comum, como o Reino Unido repetidamente tem feito, e a ausênciade políticas externa e de segurança para todo o bloco constituem enormes obstáculos à federalizaçãoda União Européia.

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entre estes povos, levando os analistas a afirmar que a saída para essaregião era manter a Federação Russa e esta fazer Associações com osdemais Estados nacionais (SEROKA, 1994)7.

Como ponto mais centrípeto da escala exposta acima, temos o EstadoUnitário, onde a soberania está toda concentrada no Governo Central e é,por tal motivo, una e indivisível. O poder dos entes subnacionais derivada ação voluntária da esfera nacional, que delega funções e graus deautoridade. Todavia, há variações cada vez maiores na forma como estaorganização territorial se estrutura, sobretudo por conta dos efeitos da erada descentralização. Países de tradição centralizadora como a França e aInglaterra, tal qual mostrado anteriormente, modificaram bastante sua dis-tribuição espacial do poder político nos últimos vinte anos.

Mesmo com tais mudanças, um aspecto diferencia claramente o Estadounitário das formas confederativas ou federativas: a distribuição de poderobedece a uma hierarquia e a uma assimetria entre o Governo Central eas unidades subnacionais. Exemplo: no Reino Unido, o primeiro-ministrotrabalhista, Tony Blair, cumpriu sua promessa de campanha e criou umParlamento regional na Escócia. Houve pressões do plano local, mas adecisão veio do âmbito nacional. Mais importante: a continuidade desseprocesso de desconcentração de poder vai depender da aprovação eminstâncias do nível central, sobretudo o Parlamento, o qual é formadoexclusivamente por representantes que, embora eleitos em distritos, têmum mandato nacional, não vinculado à proteção dos direitos de tal ouqual região.

É este o limite da descentralização nos Estados unitários: o poderio dosgovernos subnacionais é inferior constitucionalmente ao do Governo Na-cional. A ausência de estruturas capazes de defender especificamente osinteresses regionais corrobora isto. Não há porque construir uma enge-

7 Três fatores explicam o fracasso do modelo confederativo. O primeiro é a pouca efetividade dos

mecanismos que arbitram os conflitos numa Confederação, dado que o poder vinculante das deci-sões é mais tênue. Além disso, o processo decisório é bastante intrincado, já que o poder de veto deapenas um membro é muito amplo, e o custo desse veto é baixíssimo para o ente individual, ao passoque o preço pela unanimidade normalmente é bastante alto. E, por fim, o maior problema do modeloconfederativo refere-se à proteção diante de inimigos externos ou mesmo de guerras internas. AUnião Européia não tem até hoje uma política de defesa comum e por isso depende dos EstadosUnidos - que resguardam suas ações no “biombo” da OTAN. A importância da questão da segurançapode ser constatada pelo lugar estratégico e pela quantidade de espaço que ocupou em O Federalista:do segundo ao décimo artigo, parte que dá início e prepara o terreno para o restante da argumenta-ção. Foi essa fragilidade do modelo confederativo que convenceu figuras históricas fundamentaispara a independência, como George Washington e Benjamin Franklin, a ficarem do lado dos foundingfathers norte-americanos na defesa do ideal federativo na Convenção de 1787.

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nharia institucional para defender as unidades subnacionais se elas nãosão reconhecidas como portadoras de direitos originários que devem serdefendidos. Em suma, não são soberanas e a soberania nacional é frutode um contrato entre todos os indivíduos da nação, e não de um acordoentre entes territoriais8.

O Estado Federal é uma forma inovadora de se lidar com a organiza-ção político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricialda soberania, e não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR,1987: 37). Hoje há vinte e duas nações que adotam formalmente o siste-ma federativo, afora outras, como a Espanha e a África do Sul, queembora não tenham constitucionalmente este status, na prática funcionamcada vez mais enquanto tais (WATTS, 1999: 10). Além destas, muitasoutras nações vêm adotando instrumentos federativos para resolver seusproblemas intergovernamentais. Mesmo tendo um pouco mais de 10%dos países utilizando esse modelo de organização político territorial, ofato é que a importância geopolítica, econômica e cultural dos que ado-tam a forma federal é evidente, em todos os cantos do mundo, dos EUA àRússia, da Índia à Alemanha, do Canadá à Nigéria, da Suíça à Argentina,do México ao Brasil, para ficar nos casos mais relevantes.

O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análisede sua natureza, de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente,toda Federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993).Duas condições conformam este cenário. Uma é a existência deheterogeneidades que dividem uma determinada nação, de cunho territorial(grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico,socioeconômico (desigualdades regionais), cultural e político (diferençasno processo de formação das elites dentro de um país e/ou uma forterivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim instituído paradar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país deste tipo nãoconstituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional man-

8 O caso italiano é interessante pois, além de ter aumentado fortemente o poder dos entes locais desde

pelo menos a década de 70, define em sua Constituição promulgada no pós Guerra (1948) uma sériede instâncias de defesa do interesse das unidades subnacionais. Um exemplo disto é o Senado,composto por 315 parlamentares eleitos pelas Regiões - afora os senadores vitalícios, que são designa-dos pelo presidente, e os ex-presidentes. Outro é a eleição para presidente, na qual participam, alémdos membros do Parlamento, delegados das Regiões do país. Apesar da existência destes mecanismosde representação regional, a autoridade nacional é reconhecida constitucionalmente como superior,ao passo que os governos subnacionais, segundo a lei, participam por uma via concorrente esecundária do exercício da atividade governamental (Cf. SPREAFICO, 1992: 372).

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terá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco defragmentação9.

Outra condição federalista é a existência de um discurso e de umaprática defensores da unidade na diversidade, resguardando a autonomialocal, mas procurando formas de manter a integridade territorial num paísmarcado por heterogeneidades. Trata-se do princípio filosófico da Fede-ração, na definição de Burgess:

“O gênio da Federação está em sua infinita capacidade de acomodar acompetição e o conflito em torno de diversidades que têm relevânciapolítica dentro de um Estado. Tolerância, respeito, compromisso, barga-nha e reconhecimento mútuos são suas palavras-chave, e ‘união’ combi-nada com ‘autonomia’ é sua marca autêntica” (BURGESS, 1993: 7).

As coexistência destas duas condições é essencial para se montar umpacto federativo. Mas, o que é uma Federação? Segundo Daniel Elazar,

“O termo ‘federal’ é derivado do latim foedus, o qual (...) significapacto. Em essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida eregulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um tipo especi-al de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimentomútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidadeespecial entre eles” (ELAZAR, 1987: 5).

Em outras palavras, a Federação é um pacto entre unidades territoriaisque escolhem estabelecer uma parceria, conformando uma nação, semque a soberania seja concentrada num só ente, como no Estado Unitário,ou então em cada uma das partes, como na Associação entre Estados emesmo nas Confederações. A especificidade do Estado Federal, em ter-mos de distribuição territorial do poder, é o compartilhamento da sobera-nia entre o Governo Central - chamado de União ou Governo Federal - eos governos subnacionais.

O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dosgovernos e a interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classica-mente enunciada por Daniel Elazar: self-rule plus shared rule. Quanto aoprimeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis intermediários e

9 Exemplos de heterogeneidade são os mais variados: o Canadá (heterogeneidades lingüísticas), a

Índia (diversidades étnicas, lingüísticas e socioeconômicas), Brasil e Argentina (diferenças econômi-cas regionais e entre as elites políticas locais), para ficar em alguns casos. Ademais, todo país grandetem a questão federalista batendo à sua porta - Estados Unidos, Canadá, Brasil, Índia, Indonésia,Paquistão, Austrália, Rússia e mesmo a China, que embora não seja (ainda) uma Federação, contémuma diversidade de situações sociais misturada com a complexidade geográfica, o que cria umambiente marcado por heterogeneidades explosivas.

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locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processode descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político,legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. Apeculiaridade da Federação reside exatamente na existência de direitosoriginários pertencentes aos pactuantes subnacionais - sejam estados, pro-víncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos nãopodem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais,garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador dopacto político-territorial. Ressalte-se que o Poder Nacional deriva de umacordo entre as partes, ao invés de constitui-las. Assim, a descentralizaçãoem Estados Unitários pode até repassar um efetivo poder político, maseste processo sempre provém do Centro e não institui direitos de sobera-nia aos entes subnacionais.

Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos paradefender seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existênciade Cortes constitucionais, que garantem a integridade contratual do pactooriginário; uma Segunda Casa Legislativa representante dos interessesregionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional dosestados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) naCâmara baixa; e o grande poder de limitar mudanças na Constituição,criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias quali-ficadas, e em muitos casos se faz necessária a aprovação dos Legislativosestaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios básicos da Federaçãonão podem ser emendados em hipótese alguma. Sobre este último ponto,é interessante notar que no Brasil o federalismo é considerado cláusulapétrea (artigo 60, parágrafo 4), isto é, não pode ser objeto de Emendaconstitucional, o que igualmente acontece na Alemanha, uma vez que oartigo 79, alínea 3 da Lei Fundamental torna a Federação um princípioinatingível e inalterável. Nos EUA, o contrato federativo representadopela Constituição cria uma estrutura na qual os estados e a União são“indestrutíveis”.

Como bem constatou Alfred Stepan, toda Federação restringe o poderda maioria (demos constraining), consubstanciado na esfera nacional. Po-rém, o federalismo precisa igualmente responder à questão dainterdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendên-cias centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos doplano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquerexperiência federativa, sob o risco de se enfraquecer a unidade político-

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territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a “tragédia dos comuns”típica do federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fatoé que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do tempocaso se estabeleça uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pac-tuantes e a interdependência entre eles.

A busca da interdependência é uma tarefa que enfrenta pelo menoscinco desafios: o caráter matricial das Federações, a dupla cidadania pre-sente no federalismo democrático, o pluralismo intrínseco a essa formade organização político-territorial do poder, a necessidade dos checksand balances entre os níveis de governo e o problema da coordenaçãofederativa.

Em primeiro lugar, a interdependência federativa não pode ser alcançadapela mera ação impositiva e piramidal de um Governo Central, tal qualnum Estado Unitário, pois uma Federação supõe uma estrutura maismatricial, sustentada por uma soberania compartilhada - aliás, como ditoantes, é por isso que no federalismo há União (ou o Governo Federal) enão Governo Central. É claro que as esferas superiores de poder estabe-lecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, sejapor conta do auxílio e financiamento às outras unidades governamentais.O Governo Federal tem prerrogativas específicas para manter o equilí-brio federativo, e os governos intermediários igualmente detêm fortegrau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Só que asingularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre osentes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à suacapacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos debarganha afetam decisivamente as relações verticais num sistema federal.

Em segundo lugar, a população de uma democracia federativa possuiuma dupla cidadania: a individual e a territorial, cada qual representadapor mecanismos políticos distintos. Vale ressalvar que, citando novamen-te Stepan, “em uma Federação democrática os cidadãos deve ter identi-dades políticas duplas, mas complementares” (STEPAN, 1999: 202). Criaruma relação de complementaridade entre os interesses e direitos locais ea perspectiva nacional é outro desafio que todo Estado Federal deveenfrentar.

As Federações, ademais, são marcadas intrinsecamente pela diversida-de e pelo conflito. A obtenção de padrões de interdependência não podeser resultado da eliminação do pluralismo que é subjacente ao modelofederativo. De modo que as parcerias intergovernamentais não podem

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ser frutos do domínio de uma instância contra a autonomia de outra oudas demais. Destacam-se aqui o respeito mútuo e, novamente, o papelda barganha nas relações entre os níveis de governo.

Desde a invenção do federalismo moderno nos Estados Unidos, estaforma de organização político-territorial do poder pressupõe a existênciade controles mútuos entre os níveis de governo - trata-se de um doschecks and balances da democracia madisoniana. O objetivo deste meca-nismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para quenenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabecom a autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependêncianuma Federação democrática tem de ser feita conjuntamente com o con-trole mútuo.

O desenvolvimento recente dos Estados modernos levou ao cresci-mento do papel dos Governos Centrais, especialmente no que se refereà expansão das políticas sociais. No caso dos sistemas federais, ondevigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negocia-do e extenso de shared decision making, ou seja, de compartilhamentode decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui oproblema da coordenação das ações de níveis de governo autônomos,aspecto chave para entender a produção de políticas públicas numa es-trutura federativa contemporânea.

Em seu trabalho sobre os Estados de Bem Estar Social em paísesunitários e federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo asações governamentais são divididas entre unidades políticas autônomas,as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, por conta da nacionali-zação dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativade governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision makingsurge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativosque, por natureza, só entram neste esquema conjunto se assim o deseja-rem. Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativosé bem mais complexa, envolvendo jogos de cooperação e competição,acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O desa-fio posto por esta questão foi bem resumido por Pierson:

“No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciati-vas políticas são altamente interdependentes, mas são, de forma freqüen-te, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995: 451).

Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as Federaçõesdevem, primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição

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existentes. Antes que um mal entendido se estabeleça, partimos da pre-missa, já enunciada anteriormente, de que o federalismo é intrinsecamen-te conflitivo. Concordamos, neste sentido, com Deil Wright, segundo oqual o conflito não é um estado patológico de uma estrutura federal; maisdo que isso, o autor ressalta que a cooperação e a competição não sãopólos opostos de uma escala, já que a presença do primeiro não significaa ausência do segundo, e vice-versa (WRIGHT, 1997: 27).

Seguindo esta linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcio-namento das relações intergovernamentais no federalismo:

“Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergoverna-mentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação eacomodação” (PIERSON, 1995: 458).

Daí toda Federação ter de combinar formas benignas de cooperação ecompetição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de parti-cipação conjunta, mas de instaurar mecanismos de parceria que sejamaprovados pelos entes federativos. O modus operandi cooperativo éfundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nasquestões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais deuma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar gover-nos menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas;para integrar melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas,evitando o jogo de empurra entre os entes - como no episódio da den-gue, quando União, estados e municípios procuravam definir o(s) outro(s)como culpado(s) em relação a esta questão. Ainda é peça-chave no ata-que a comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos deum ente à nação, como também na distribuição de informação sobre asfórmulas administrativas bem sucedidas, incentivando o associativismointergovernamental10.

Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribuipara elevar a esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fatorfundamental para o equilíbrio de uma Federação. No entanto, fórmulascooperativas mal dosadas trazem problemas. Isto ocorre quando a coope-

10 Neste aspecto, cabe lembrar a experiência dos EUA. O crescimento da intervenção estatal impulsiona-

do pela Era Roosevelt aconteceu num momento em que as máquinas locais estavam infestadas declientelismo e corrupção e careciam de capacidades institucionais para realizar a contento políticaspúblicas mais amplas. Em tal contexto, as associações horizontais entre os níveis de governos tiveramum papel essencial na transformação do federalismo norte-americano, repassando informações sobrecomo alguns governos subnacionais tinham modificado sua antiga estrutura (ZIMMERMAN, 1996).

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ração confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordina-ção do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidadelatino-americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa amontagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap(armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, masque se repete igualmente em outras experiências. Nesta estrutura, todasas decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuênciade praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhosde racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas,processo que pode diminuir o ímpeto inovador dos níveis de governo,enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e dificultar aresponsabilização da administração pública.

As Federações requerem determinadas formas de competição entre osníveis de governo. Primeiro, por conta da importância dos controles mú-tuos como instrumento contra a dominância (ou tirania, nos termos deMadison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a compe-tição federativa pode favorecer a busca pela inovação e melhor desem-penho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar aperformance dos vários governantes, uma das vantagens de se ter umamultiplicidade de governos. A concorrência e a independência dos níveisde governo, por fim, tendem a evitar os excessos contidos na “armadilhada decisão conjunta”, bem como o paternalismo e o parasitismo causadospor certa dependência em relação às esferas superiores de poder.

Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. Oprimeiro se refere ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedadeentre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo. Quanto mais hete-rogêneo é um país, em termos socioculturais ou socioeconômicos, maiscomplicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federa-lismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua naturezaevitar uma disputa desregrada entre os entes.

A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negati-vos, mais particularmente no terreno das políticas sociais, como demons-trou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism,1995) sobre aexperiência recente dos governos estaduais norte-americanos. O autorpercebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de queos cidadãos “votam com os pés”11, ou seja, podem escolher o lugar que

11 Esta visão foi formulada originalmente por Charles Tiebout (1956).

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otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diantedisso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápioamplo de proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é,mais pessoas, sobretudo as mais pobres, iriam morar nestes lugares, au-mentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividadeeconômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriamconstituir uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e bai-xar os impostos, reduzindo com isso a afluência dos mais pobres àquelaregião e, novamente em tese, elevando a competitividade econômica e aoferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via - é o quePeterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnetse o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo asegunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompa-nhado da redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, omodelo competitivo levado ao extremo piora a questão redistributiva.

O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerrafiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais emais isenções às empresas, em que cada governo subnacional procuraoferecer mais do que o outro, geralmente sem se preocupar com a formade custear este processo. Ao fim e ao cabo, a resolução financeira destaquestão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próxi-mas gerações, seja repassando tais custos ao nível federal e, por tabela, ànação como um todo.

A diminuição da solidariedade entre os entes federativos, a menorpreocupação com a eqüidade e a realização de disputas predatórias sãodefeitos de certos comportamentos competitivos no federalismo. Os la-ços que unem os pactuantes afrouxam-se, colocando a autonomia indivi-dual - especialmente a dos mais fortes - contra a interdependência.

O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequaçãoentre competição e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos posi-tivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma vez à argumen-tação precisa de Daniel Elazar:

“(...) todo sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolverum equilíbrio adequado entre cooperação e competição, e entre o gover-no central e seus componentes” (ELAZAR, 1993: 193 - grifo meu).

A coordenação federativa, por fim, depende muito do papel dos ní-veis superiores de governo frente à descentralização, especialmente daação do Governo Federal. Por um lado, porque em vários países os

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governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos quedificultam a desconcentração de atribuições. Por outro, porque a União eoutras instâncias federativas precisam arbitrar conflitos políticos e de ju-risdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre os ní-veis de governo no terreno das políticas públicas.

Parafraseando o conceito elaborado por Flávio Rezende para analisarreformas administrativas12, pode-se dizer que a descentralização numaFederação pode padecer de “falhas seqüenciais”. Ou seja, se não houverações coordenadoras, particularmente da União mas também dos estados,o processo descentralizador tende a ter piores resultados na prestaçãodos serviços públicos. O ponto essencial desta questão é que o GovernoFederal precisa reforçar seu papel coordenador ante estas “falhasseqüenciais”, porém não pode fazê-lo contra os princípios básicos dofederalismo, como a autonomia e os direitos originários dos governossubnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamentointergovernamental e os controles mútuos. A resposta para este dilema,em síntese, está na criação de redes federativas, e não de hierarquiascentralizadoras.

A partir da definição histórico-conceitual de descentralização e defederalismo, faremos a seguir a análise do caso brasileiro. Sabendo quenão há um modelo único de relações intergovernamentais, pois as Fede-rações são bastante “elásticas” (ELAZAR, 1987: 11), tentaremos entendera singularidade do Brasil. Mais especificamente, após uma discussão dastrajetórias de nossa estrutura federativa, o objetivo primordial é mostrarcomo o Governo Federal, na Era FHC, lidou com a questão da coordena-ção entre os níveis de governo, tendo em conta, principalmente, o temada descentralização.

III - A TRAJETÓRIA DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA: DA FUNDAÇÃO AO OCASO DO REGIME MILITAR

“Tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo antes das partes”(Rui Barbosa)

O objetivo desta seção é analisar brevemente a evolução do federalismobrasileiro até o golpe de 1964, procurando traçar seus caminhos básicos.Para tanto, partimos da seguinte hipótese: há dois momentos importantes

12 Conforme REZENDE, 2002.

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para a estruturação da nossa estrutura federativa até a recente democrati-zação do país, o da formação inicial (1) e o da criação e evolução dochamado Estado varguista (2). Cada um destes episódios estabeleceuaspectos que influenciam os passos das trajetórias posteriores - ou seja,uma relação de path dependence (PIERSON, 2000).

A questão federativa teve um papel fundamental na formação do Esta-do brasileiro. Antes mesmo de o país tornar-se uma Federação, o conflitoentre o Poder Central e as elites regionais tinha sido um dos pontoscruciais na definição dos parâmetros da construção nacional. Mesmo ten-do alcançado um inegável sucesso em sua conquista ultramarina, a colo-nização portuguesa não logrou criar uma centralização político-adminis-trativa capaz de aglutinar e ordenar a ação dos grupos privados instaladosao longo do território brasileiro (CARVALHO, 1993:54). O poder públicoera, no mais das vezes, o domínio das oligarquias locais, poucas vezesatingidas por medidas centralizadoras e autoritárias da Metrópole, predo-minando o modus operandi localista. Nascia aqui um dos ingredientes dasituação federalista brasileiro: o sentimento de autonomia. O outro foi ocrescimento da desigualdade entre as regiões do país ao longo da história.

Nossos pais fundadores sabiam da existência de uma situação federalistano Brasil, mas temiam que ela gerasse desunião - as duas revoltaspernambucanas, em 1817 e 1824, eram o retrato desta possibilidade.Como remédio, optou-se pela via do Estado Unitário e monárquico. Essearranjo institucional foi escolhido pela elite central em razão de seu te-mor quanto a uma possível repetição aqui da fragmentação territorialocorrida na América hispânica. Cabe lembrar que havia quatro vice-reina-dos na América espanhola, dos quais se originaram dezessete países.Após as sangrentas lutas do período regencial, conformou-se um modelocentralizador que vigorou, firmemente, por quase cinqüenta anos13.

O paulatino enfraquecimento de Dom Pedro II, a perda do apoio deimportantes setores políticos desde o final da Guerra do Paraguai e, comopá de cal, a abolição da escravatura, foram fatores que solaparam asbases políticas do Império. Além destes, a insatisfação crescente daselites locais com o excesso de centralização teve um peso histórico muito

13 O longo período centralizador não significou o fim da discussão a respeito de nossa organização

político-territorial do poder. O célebre debate entre Visconde do Uruguai, defensor da centralizaçãopolítica e da descentralização administrativa, e Tavares Bastos, entusiasta do modelo norte-america-no, teve um impacto enorme, mostrando que a situação federalista ainda se fazia presente (NUNESFERREIRA, 2000).

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grande. Os governantes das províncias eram indicados pela cúpula doPoder central, que normalmente não só escolhia pessoas de outras regi-ões como estabeleceu uma alta rotatividade no cargo. Por isso, a luta pelofim da monarquia respondeu, em grande medida, mais aos anseios pordescentralização de poder do que por uma republicanização da vidapolítica. Deste modo, a república brasileira não só nasceu colada a umcerto ideal federativo como a ele foi subordinada.

A criação da Federação teve sua inspiração no modelo norte-america-no, mas sua conformação foi bastante diferente. Primeiro porque no mo-mento de constituição do federalismo brasileiro partiu-se de um EstadoUnitário fortemente centralizado para um modelo descentralizador depoder. A partir desta característica, nossa experiência estaria mais para omodelo do hold together, em que uma união anterior desconcentra poder,tal qual a construção federativa da Índia, do que para o do come together,a junção entre partes antes separadas que distinguiu o protótipoestadunidense, segundo a terminologia utilizada por Alfred Stepan (1999).

É neste sentido que Rui Barbosa, ao comparar nossa realidade com anorte-americana, afirmou:

“Não somos uma Federação de povos até ontem separados e reunidosde ontem para hoje. Pelo contrário, é da União que partimos. Na Uniãonascemos” (apud TORRES, 1961: 22).

O caso brasileiro, no entanto, também diferencia-se dos modelos dehold together, os quais buscavam descentralizar poder e concomitantementefortalecer a unidade nacional, como também do protótipo norte-america-no, porque neste era igualmente essencial a idéia hamiltoniana de União,isto é, da criação de um nova estrutura que assegurasse a associaçãoentre as partes. No nascedouro da República Velha, Os líderes locaislutaram pela Federação para aumentarem seu poderio interno e, sobretu-do, para escolher autonomamente o governador de Estado. Como bempercebeu João Camilo de Oliveira Torres:

“Afinal, federalismo entre nós quer dizer apego ao espírito de autono-mia; nos Estados Unidos, associação de estados para defesa comum. (...)A federação [brasileira] era o nome, a figura e o rótulo ideológico paraesta aspiração concreta e objetiva: a eleição dos presidentes de província“ (TORRES, 1961: 153).

Neste projeto federativo, portanto, só cabia a busca do autogoverno epouco espaço sobrava para a interdependência. Isto se agravou por con-ta da forte assimetria e hierarquização existente entre os estados, com

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São Paulo e Minas Gerais detendo um poder e uma riqueza muitos maio-res do que a grande maioria das unidades, o que dificultava o equilíbriohorizontal na Federação. Além disso, as oligarquias dominavam a políticalocal na República Velha, enfraquecendo qualquer ideal republicano edemocratizador do sistema político.

O governador de estado tornou-se o centro deste sistema oligárquico,no qual imperava o unipartidarismo, as eleições irregulares, a fragilida-de dos governos locais em relação à máquina estadual, a ausência deespaço para a oposição, a falta de mecanismos de fiscalização governa-mental e uma sociedade basicamente rural e com pouquíssima autono-mia e capacidade para controlar de fato os governantes (LEAL, 1986;LESSA, 1988; ABRUCIO, 1998). Tratava-se, no Brasil, de um modelomuito distante do republicanismo proposto pelos founding fathers nor-te-americanos, de modo que a fundação da Federação descolou-se aquido ideal republicano.

O caráter centrífugo (1), o federalismo assimétrico e hierárquico (2) ea oligarquização do sistema político no plano subnacional, com o respec-tivo fortalecimento dos governadores e de suas máquinas estaduais (3),constituem as três características básicas do modelo federativo brasileiroem seu nascedouro. Esta configuração estruturou caminhos que influenci-aram o desenvolvimento político e econômico posterior. O peso dos“caciques regionais”, a desigualdade regional e a criação de um modelopolítico refratário à republicanização nos níveis estadual e municipal sãoas maiores conseqüências do modo como a Federação foi fundada noBrasil.

O ideário da Revolução de 30 posicionava-se firmemente contra omodelo da política dos governadores e do federalismo oligárquico. Suasorigens, no tocante à temática político-territorial, estavam na nacionaliza-ção do discurso político desde os anos ‘1920, principalmente por partedas Forças Armadas, e na crise da aliança do “café com leite”, com oquestionamento do predomínio paulista. A partir destas pressões, ovarguismo anunciava-se como um momento disruptivo e fundador deuma nova ordem federativa brasileira; em resumo, um verdadeiro mo-mento “maquiaveliano” (POCOCK, 1975). Entretanto, é preciso ressaltarque as mudanças foram gradativas, não rompendo de imediato e porcompleto com as bases iniciais da Federação, além de sua evolução nãoter ocorrido de maneira linear e completamente coerente. Soma-se a issoa necessidade de se constituir um Estado de compromisso (DRAIBE,

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1985), a partir do qual vários grupos conviveram no condomínio dopoder.

O modelo varguista transformou o Estado nacional, em especial asestruturas do Executivo Federal, no articulador de um projeto de desen-volvimento capitalista industrial, sob a égide da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, e no principal organizador das demandas sociais, apartir de um tipo de corporativismo (nas relações capital/trabalho) e declientelismo (nas relações governantes e governados), os quais serviramcomo instrumentos de uma “modernização conservadora”. Conformou-se,por esta via, o processo de state and national building do Brasil moderno.Este modelo estatal perpassou governos e regimes diferentes. Como bemnotou Aspásia Camargo,

“(...) tivemos uma Era de Vargas com Vargas, uma Era de Vargas semVargas e, finalmente, uma Era de Vargas contra Vargas, na medida emque a hostilidade do regime de 1964 à sua herança populista não osimpediu de reeditar estrutura semelhante ao modelo autoritário que elehavia implantado, com os mesmos objetivos nacional-desenvolvimentistas”(CAMARGO, 1993: 309).

Como este modelo varguista, alicerce de regimes e períodos distintose que sobreviveu algo em torno de cinqüenta anos, afetou e foi afetadopelo federalismo? Há quatro importantes aspectos que devem ser obser-vados na relação entre o varguismo e o federalismo até o golpe de 64: a)a centralização do poder e a consolidação do Estado nacional (state andnational building); b) a nova dinâmica regional do poder; c) as mudançasocorridas no período 46-64; d) os padrões de relações intergovernamentaisverticais e horizontais que foram construídos.

A primeira tendência importante foi a da centralização do poder. Pelolado econômico deste projeto, a ação centralizada no Executivo Federalprocurou sustentar o desenvolvimento por instrumentos estatais de fo-mento e atuação direta no mercado, via empresas públicas. Pelo ladosocial, procurou constituir gradativamente uma estrutura de políticas pú-blicas, na maioria sustentadas e executadas pela União. E, por fim, pelolado administrativo, criou bolsões de meritocracia a partir do DASP, osquais, apesar de conviveram com núcleos cartoriais e clientelistas, foramessenciais na modernização do país.

Estes três aspectos tiveram relações conflituosas com os governossubnacionais e suas elites. No que tange à intervenção econômica, aatuação direta do Governo Federal foi crescendo ao longo do período,

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mas teve em alguns casos de ser compatibilizada com as estruturas esta-duais, o que gerou uma dificuldade de coordenação federativa que podeser resumida na seguinte frase: ou se estabeleceu um modelo fragmenta-do e sem comunicação entre as esferas de governo - como no caso dosetor elétrico - ou a União, de cima para baixo e geralmente de formaautoritária, montou um modelo vertical e hierárquico de atuação no planosubnacional. No aspecto social, as primeiras políticas de Welfare, comalgumas exceções, foram não só financiadas pela União mas normalmen-te por ela executadas. Na verdade, a temática social presente no varguismodo período de 30 a 64 esteve mais vinculada ao corporativismo e à suaconcepção de cidadania regulada do que a um padrão orgânico de políti-cas sociais. Mas é na questão político-administrativa que houve os maio-res problemas. Por um lado, porque certo grau de patrimonialismo per-maneceu no plano federal, e, por outro, pois não houve a modernizaçãoda estrutura administrativa dos estados.

Utilizando novamente a perspectiva comparada, é interessante anali-sar o processo de centralização e construção do state and national buildingnas Federações brasileira e norte-americana. Nos EUA, o chamado mode-lo rooseveltiano aumentou o poder do Governo Federal de forma demo-crática, consultando e negociando com os outros Poderes (SCHLESINGER,1958). No caso brasileiro, por sua vez, a centralização do poder ocorreuem pleno autoritarismo do Estado Novo e, com o fim deste, o período 46-64 foi marcado pela dificuldade de estabelecer padrões mais cooperati-vos nas relações intergovernamentais e entre os Poderes. Ainda no quese refere à experiência estadunidense, lá foram criadas Comissões Naci-onais de Reforma das estruturas político-administrativas dos estados, quenum primeiro momento (década de 30) atingiram o Poder Executivo,para mais adiante serem implementadas modificações no Legislativo (dé-cada de 50) e no Judiciário (década de 70) (BOWMAN & KEARNEY,1986). No Brasil, ao contrário, o varguismo não procurou alterar substan-cialmente o sistema político-administrativo subnacional. Em vez disso, aredemocratização de 45 foi construída em parte sob as bases da estruturaoligárquica dos estados e, noutra parte, com a burocracia federal instituí-da no Estado Novo assumindo nichos fundamentais do sistema decisório,em detrimento dos partidos (CAMPELLO DE SOUZA, 1976).

O modelo varguista também trouxe a questão regional à tona. A críticaao domínio da matriz do “café com leite”, em especial à hegemoniapaulista, foi o que impulsionou a proposição de medidas para, em tese,

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aumentar a igualdade numa Federação fundada sob o signo da hierarquiae assimetria entre os estados e regiões. Duas proposições se destacaramneste sentido: a elevação da desproporcionalidade de representação naCâmara Federal, em proveito dos entes mais pobres e estancando ocrescimento das cadeiras parlamentares à disposição principalmente deSão Paulo; e a criação de instrumentos que estabeleceram formas detransferências de recursos inter-regionais. Na década de 50, com a cria-ção da Sudene, o discurso em prol dessas políticas fortaleceu-se maisainda (COHN, 1976).

Um balanço dessas medidas destinadas a aumentar a simetria federati-va deve ressaltar dois pontos. O primeiro é o aumento da multipolaridadeda Federação durante a evolução do Estado varguista, de modo que hou-ve um crescimento do número de estados médios em termos de poder,dando maior equilíbrio ao jogo federativo (ABRUCIO, 1998). O segundoponto, contudo, revela que as políticas de compensação regional, bemcomo a distorção representativa, não mudaram a extrema concentraçãodo desenvolvimento capitalista brasileiro na Região Sudeste e mais espe-cificamente em São Paulo. Ao contrário, o grande salto econômico verifi-cado da década de 50 até o final da de 70 resultou numa das Federaçõesmais desiguais do mundo.

O terceiro aspecto que devemos observar na relação entre o varguismoe o federalismo são as mudanças ocorridas no período 46-64. A Constitui-ção de 46 restituiu e ampliou a autonomia e as liberdades dos estados,além de ter dado um raio de poder inédito aos municípios. Estas modifi-cações não foram realizadas, no entanto, retornando-se ao padrão daestrutura federativa da Primeira República. A Segunda República inaugu-rava um modelo mais equilibrado, já que dava à União a capacidade quelhe faltara no auge da política dos governadores e, ao mesmo tempo, nãoreduzia os níveis de governo subnacionais a meros agentes administrati-vos, como tinha acontecido no Estado Novo14.

O período 46-64 é marcado pela convivência da nacionalizaçãodos mecanismos de intervenção estatal com a manutenção da impor-tância da política subnacional para o sistema de poder. Neste sentido,é certo dizer que houve um processo descentralizador na passagem

14 É interessante notar que a literatura comparada sobre federalismo somente classifica o caso brasi-

leiro como uma Federação a partir da Constituição de 1946, quando são garantidos princípios maisdemocráticos de convivência intergovernamental. (Cf. ELAZAR, 1987 e WATTS, 1994).

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do Estado Novo para a Segunda República, mas é errado afirmar queisso se fez em detrimento do Governo Federal. Isto mostra que atradicional classificação de sístoles e diástoles, formulada originalmen-te por Golbery do Couto e Silva, e segundo a qual o Brasil viveriaciclos de centralização sucedidos por outros de descentralização eassim por diante, explica muito pouco as mudanças históricas realiza-das na dinâmica intergovernamental do país. Compartilho aqui da ar-gumentação exposta por Kugelmas & Sola (1999) a respeito do con-ceito das sístoles e diástoles:

“A tão sedutora metáfora [das sístoles e diástoles] atribuída ao generalGolbery do Couto e Silva e que tem sua origem no pensamento deVilfredo Pareto é excessivamente simplista e pode conduzir a erros. (...)Ficam na sombra alguns aspectos de continuidade nestes processos quesão essenciais para a melhor compreensão da evolução do regime fede-rativo e da oscilação entre centralização e descentralização. Se há ummovimento pendular, não há simetria neste movimento. Nem o EstadoNovo chega a destruir a estrutura federativa, nem a Constituição de 1946abala o reforço do governo central e sua ampliação de atribuições”(KUGELMAS & SOLA: 1999: 64 - grifo meu).

O estudo do impacto do modelo varguista no federalismo completa-secom a análise das relações intergovernamentais no período. Constata-seprimeiramente a criação de uma Federação mais multipolarizada no pla-no horizontal, beneficiada pelas políticas regionais e peladesproporcionalidade congressual, apesar de São Paulo ainda concentrara maior parte do desenvolvimento econômico. Tal modificação não seráacompanhada de uma transformação radical dos sistemas políticos dosestados menos desenvolvidos, o que criará um jogo federativo de barga-nha e autoproteção entre as elites dos lugares mais ricos com a dos maispobres. Em suma, a equação resultante da soma da multipolaridade com anão-republicanização dos sistemas estaduais gerará, por muitas vezes,uma parceria entre o moderno e o atraso.

As relações entre a União e os estados também ficaram mais equilibra-das, o que levará o Governo Federal a buscar apoios nas elites regionaispara a aplicação de seus projetos nacionais, especialmente naquelas vin-culadas aos estados mais pobres. Como contrapartida, o Executivo Fede-ral tinha de distribuir verbas e cargos, num processo bastante fragmenta-do e marcado pela irracionalidade. Em resumo, conviviam o insulamentoburocrático e o clientelismo, só que a capacidade de conjugar as duas

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coisas, com um padrão de governabilidade mínimo, foi sendo minada aolongo do tempo (GEDDES, 1994).

O modelo varguista não resolveu, em suma, dois dilemas básicos quemarcaram as relações intergovernamentais: a dificuldade em estabelecercaminhos institucionais capazes de compatibilizar as demandas das elitesregionais com uma visão nacional dos problemas do país e o descompassoentre a modernização (ainda que incompleta) das estruturas estatais doGoverno Federal e a permanência de padrões patrimonialistas em quasetodos os estados e municípios. Percebe-se, aqui, a força de alguns ele-mentos presentes na fundação do federalismo, evidenciando que ovarguismo foi um corte sim na estrutura federativa da Primeira República- sobretudo com o crescimento do poder da União -, mas não teve capa-cidade de destruir por completo o antigo modelo, convivendo com eleou o modificando em parte, conforme o seu sucesso na negociação comas elites regionais.

O golpe de 64 refletiu num primeiro momento dois fenômenosantinômicos no que se refere ao federalismo: a força dos poderes estadu-ais e a reação dos militares, principais “atores nacionais” durante ovarguismo, contra a antiga ordem constitucional, que para eles reforçarademais a descentralização em detrimento do Governo Federal. Em rela-ção ao primeiro, constata-se que os governadores dos estados mais im-portantes - São Paulo, Minas Gerais e Guanabara - foram decisivos noapoio à derrubada de Goulart, na suposição de as Forças Armadas seriamum “Poder Moderador” temporário até a nova eleição à Presidência daRepública. Essa ilusão foi dissipada pela paulatina assunção do poderpelos militares, que foram constituindo um projeto próprio. Um dos ex-poentes mais fortes do novo regime, o general Golbery do Couto e Silva,tinha inclusive um diagnóstico claro dos efeitos do federalismo no perío-do anterior:

“(...) a Constituição de 1946 viria a consagrar os velhos ideaisdescentralizadores e autonomistas, com drástico cerceamento do poderexecutivo em face do legislativo e redução do poder central da União, oque acabaria, muitos outros fatores contribuindo largamente, ao mesmotempo, na quase anomia de 1963-64” (COUTO E SILVA, 1981: 12).

Na verdade, os militares localizavam na Federação a maior fonte deprovável oposição ao regime. Não por acaso a alteração da estruturafederativa era um objetivo explícito e fundamental da cúpula governante.Buscava-se aumentar a capacidade decisória do Executivo Federal e evi-

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tar a articulação oposicionista da elite civil nos estados, especialmente aque pertencesse aos quadros dos partidos do período anterior ao golpede 64. Como bem notou Brasílio Sallum Júnior:

“Dentre os mecanismos que cumpriram o papel de homogeneizar avontade política da camada dirigente, a nova forma de Federação, comestados e municípios menos autônomos em relação à União, desempe-nhou o papel mais relevante. Muito mais do que o novo sistema partidá-rio, apesar da atenção muito maior que esse tem recebido da pesquisaacadêmica” (SALLUM JÚNIOR, 1994: 3).

A ação dos militares para controlar a Federação também foi fruto daconsolidação desse grupo como principal ator nacional, em aliança com atecnoburocracia federal. O projeto deles constituiu uma nova combinaçãoentre o varguismo e o autoritarismo. Como mostrei em outro trabalho:

“O regime autoritário tinha como diretriz básica a maior centralizaçãodo poder político e das decisões econômicas e administrativas na esferado Governo Federal, e dentro deste nas mãos do presidente da Repúbli-ca. Dessa maneira, o regime militar seguia o padrão varguista de organi-zação do poder, caracterizado pela hipertrofia do Poder Executivo Fede-ral e pelo fortalecimento da Presidência da República como o centropolítico do sistema, acentuando mais o seu caráter autoritário” (ABRUCIO,1998: 63).

Este projeto fica claro na estrutura federativa montada pelo regimemilitar, o chamado modelo unionista-autoritário (ABRUCIO, 1998). Emlinhas gerais, este modelo tinha, no plano político, o objetivo de cercearo poder das elites estaduais mediante a adoção da eleição indireta para ocargo de governador; no âmbito financeiro, várias mudanças tributáriasimplementadas entre 1965 e 1968 redundaram numa forte centralizaçãoda receita; e, por fim, no plano administrativo, procurava-se impor umpadrão uniforme e obrigatório às administrações estaduais em termos depolíticas públicas. Em suma, o modelo unionista-autoritário procuravaacabar com os contrapesos advindos da estrutura federativa.

O modelo de relações intergovernamentais no regime militar ficoumarcado, portanto, por uma concepção autoritária e vertical. Nele, haviaespaço para uma “cooperação” de mão única: os governos subnacionaistinham de obedecer e colaborar com os planos da União. Para tanto,foram utilizados os convênios, que repassavam recursos e assistênciatécnica, e uma série de ações conjuntas entre as estatais federais e esta-duais, pois com o Decreto Lei 200 (1967) descentralizou-se à administra-

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ção indireta a realização da maioria dos programas de desenvolvimento ede intervenção no setor de infra-estrutura. Obviamente, caso estados emunicípios se recusassem a participar deste jogo, ficariam sem o bônusdas verbas e do apoio burocrático, e estariam alijados do processo destate building realizado pelo varguismo em seu período militar. AntonioCarlos Medeiros define precisamente este federalismo cooperativo à bra-sileira:

“As relações entre estados e municípios com o governo central eramanálogas a de um cliente com um banqueiro: o último está sempre emuma posição de poder. Parceria não é um conceito adequado para descrevê-las” (MEDEIROS, 1986: 175).

O efeito desse modelo autoritário e verticalizado de relaçõesintergovernamentais é ainda mais profundo caso levemos em conta o pa-pel do regime militar nas áreas econômica e social. Na primeira, especial-mente na gestão de Ernesto Geisel, houve um aprofundamento do nacio-nal-desenvolvimentismo, por intermédio das estratégias de substituição deimportações e de expansão das estatais. Como mostra José Luiz Fiori:

“Até os anos 30, o Brasil dispunha de apenas 14 empresas estatais.Entre 1930 e 1954, na Era Vargas, o Estado gerou 15 novas empresas; noscinco anos de governo Kubitschek, 23; com Goulart foram criadas 33; edurante os 20 anos de regime militar, 302” (FIORI, 1995: 58).

Além do intervencionismo no terreno econômico, o regime militarinstituiu de fato o moderno Welfare State brasileiro, uma vez que houveuma ampliação enorme das diversas políticas públicas, que atingiramuma parcela crescente de pessoas (DRAIBE, 1996). Porém, o nossoincipiente Estado de Bem Estar Social era muito menos universalista doque o padrão europeu e desenvolveu-se num contexto marcado porrestrições democráticas. Entre as suas principais peculiaridades, destaca-vam-se o alto grau de centralização financeira, a concentração das princi-pais decisões na burocracia federal, a implementação de programas queprivilegiaram mais os grupos organizados e a classe média ascendente, aexpansão dos serviços sem uma profunda transformação da estruturaadministrativa subnacional que lhe dava suporte, a falta de mecanismosde participação da sociedade no controle e discussão da elaboração daspolíticas governamentais e, por fim, a ausência de estruturas que dessemconta do problema do shared decision making, isto é, de instrumentospolíticos e burocráticos que fizessem a intermediação entre os níveis degoverno.

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O modelo unionista-autoritário, contudo, não acabou com os conflitosintergovernamentais, havendo constantes negociações, concessões e mu-danças de rumo que ocorreram no período. Um aspecto nodal determi-nou isso: a cúpula governante nunca pôde prescindir do apoio da elitecivil para permanecer no poder e, para tanto, manteve algumas eleiçõespara determinados cargos, todas com base no plano subnacional. Osefeitos desta engenharia política ficaram mais claros em 1974, quando oregime perdeu a disputa ao Senado em vários estados, a primeira grandederrota desde a formação do sistema bipartidário. Ao aspecto políticosomaram-se a crise econômica, o aumento das dissensões na corporaçãomilitar e a pressão cada vez maior dos setores urbanos por políticaspúblicas, conformado uma situação que resultou em intensas barganhasfederativas.

Uma primeira ação neste sentido foi o II PND. Concebido e implanta-do pelo presidente Geisel e sua equipe do Ministério do Planejamento,este projeto efetuou ou induziu investimentos para desconcentrar o de-senvolvimento para além da Região Sudeste, favorecendo a criação depólos industriais em estados médios, como Rio Grande do Sul e Bahia, etendo grande amplitude no setor de infra-estrutura em várias áreas dopaís. Em poucas palavras, buscava-se o apoio das elites de regiões me-nos desenvolvidas, para contrabalançar o enfraquecimento político doregime nos grandes centros e nas unidades estaduais mais fortes, especi-almente em São Paulo e, em menor medida, no Rio de Janeiro.

Foram elevadas também as transferências federais obrigatórias e vo-luntárias para estados e municípios, além de o Governo Federal ter afrou-xado os limites de endividamento e ampliado as linhas de crédito. Maisdo que isso, houve um paulatino restabelecimento da autonomia finan-ceira que os governos subnacionais praticamente haviam perdido. É nes-te ponto que o movimento deixa de ser uma mera barganha e transforma-se em recuo ou mesmo perda de controle dos governos militares sobre oprocesso. Em 1978, os governos estaduais recuperaram a capacidade dedefinir as alíquotas do então ICM, antes decididas pelo Senado. Dali paradiante, o avanço descentralizador continuou em linha ascendente até suaconsolidação na Constituição de 1988.

O caminho mais difícil para os governos subnacionais passava entãopela recuperação da autonomia política e administrativa. O desenrolar doregime militar foi solapando a legitimidade do poder da cúpula governante,sobretudo com a diminuição do ímpeto econômico. Isso se fez presente,

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primeiramente, na divisão interna ao próprio partido governista, a Arena.Por várias vezes, ocorreu um conflito entre o que poderíamos chamar deArena I, vinculada ao Poder Central e/ou aos governadores escolhidospelo Planalto, e a Arena II, constituída por boa parte da elite políticagovernista que se sentia alijada do poder. Quanto mais o Governo Fede-ral enfraquecia-se no plano econômico e/ou tentava enfiar “goela abai-xo” seus candidatos aos cargos estaduais, mais a Arena II se fortalecia ereagia, inclusive contrariamente aos interesses do regime. Como se vê, ocorte regional afetou profundamente o projeto do militares (ABRUCIO &SAMUELS, 1997).

Mas a autonomia política e administrativa só poderia ser recuperadacom o fim das eleições indiretas a governador, o que ocorreu na eleiçãode 1982, fato que mudou a Federação e, ao mesmo tempo, abriu asportas para a transição democrática.

IV - REDEMOCRATIZAÇÃO E O NOVO FEDERALISMO BRASILEIRO

As eleições diretas a governador, em 1982, contribuíram significativa-mente para o ocaso do regime militar e de seu modelo unionista-autoritá-rio. Mais do que isso, a vitória da oposição modificou a história políticado país, fazendo com que a transição democrática brasileira se iniciassepelo plano estadual e não por um pleito nacional, tornando nossa experi-ência quase única nos processos de Terceira Onda de redemocratização(LINZ & STEPAN, 1996).

As oposições conquistaram 10 dos então 22 governos estaduais, admi-nistrando estados que representavam 56% das população do país, 75% doPIB e cerca de 75% do ICM, principal imposto subnacional de então(FERREIRA FILHO, 1983: 181-182). Esse resultado eleitoral criou aquiloque Juan Linz e Alfred Stepan chamaram de diarquia (LINZ & STEPAN,1992: 61-62). Ou seja, havia duas estruturas de poder competindo entresi: uma era a do Governo Federal, comandada pelos militares, e a outraformada pelos governadores de estado, principalmente os da oposição,mas não só, porque até os da situação aproveitaram-se do momento parabarganhar e angariar mais recursos e autonomia.

A partir dessa diarquia, os governadores constituíram-se em peças-chave da redemocratização, atuando em episódios decisivos. Primeiro nacampanha das Diretas, maior movimento de oposição ao regime militar.Neste caso, foi fundamental a ação do governador paulista, Franco Montoro,

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somada depois a de outros da oposição. Isto porque o controle dos recur-sos dos governos estaduais, dentre os quais estavam o uso de prédios etransportes públicos e o efetivo da Polícia Militar, garantiram a logísticabásica para o sucesso das manifestações (Cf. SALLUM JÚNIOR, 1996:102; ABRUCIO & SAMUELS, 1997; 155).

Outra influência decisiva dos estados foi na eleição indireta deTancredo Neves, então governador de Minas, à Presidência da Repúbli-ca. Neste episódio, os governadores de oposição articularam-se inicial-mente entre si e depois com a maioria dos vinculados ao PDS, a fim devencer a candidatura oficial de Paulo Maluf. É bom recordar que cadaestado tinha o direito de escolher seis delegados para o Colégio Eleitoral,eleitos pelas Assembléias Legislativas, todas praticamente controladas pelosgovernadores. Por isso, o “voto” dos governadores situacionistas era fun-damental, e a articulação de Tancredo angariou o apoio integral de novedesses doze governadores (DIMENSTEIN et alii, 1985).

A vitória de Tancredo Neves conformou um tipo específico de transi-ção democrática, que pode ser resumida do seguinte modo;

“(...) a negociação da transição não foi feita só entre os moderados deambos os lados, mas também foi articulada e selada por meio de umpacto entre governadores em ascensão no cenário político nacional eelites regionais que sempre tiveram influência no jogo político federativo- Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, e Jorge Bornhaunsen eramexemplos típicos dessas elites. A transição passou muito mais pela dinâ-mica da Federação do que por negociações partidárias definidoras doconteúdo e da forma do governo que se instalaria. Não por acaso o pactoentre a dissidência do PDS - a Frente Liberal - com a oposição, iniciadoefetivamente em uma reunião no Palácio dos Jaburus entre AurelianoChaves e Tancredo Neves, foi apelidado de ‘Acordo Mineiro’”(ABRUCIO,1998: 101).

O papel dos governadores continuou destacado mesmo depois decompletada a passagem do poder aos civis. Isto se deveu basicamente àevolução institucional do sistema político brasileiro ao longo daredemocratização. O elemento chave, aqui, foi a coincidência entre ospleitos estaduais majoritários com todas as eleições proporcionais, nacio-nais e estaduais, do período que vai de 1982 até 1994, num total de trêsdisputas sob esta lógica, ao passo que só houve uma eleição presidenci-al, e esta foi “solteira”. Ademais, o “caráter fundador” das eleições agovernador, que inauguraram um novo período competitivo, teve efeito

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sobre a dinâmica seguinte da transição reforçando um comportamentomais estadualista na classe política - o contrário (comportamento maisnacional) teria ocorrido se iniciássemos redemocratização escolhendo opresidente ou uma Assembléia Constituinte.

Essa coincidência eleitoral, somada à legitimidade e ao poder políticodos governadores, fez com que eles fossem decisivos na elaboração daConstituição, exercendo grande influência sobre importantes regras quedefiniram o funcionamento do novo regime democrático e a organizaçãodo Estado, especialmente no que diz respeito à descentralização tributá-ria e isenções fiscais, distribuição de competências e estruturação dopoder político-administrativo no nível estadual.

Os prefeitos também aumentaram o seu poderio na Federação, numadimensão inédita em nossa história. Com a ampliação das eleições muni-cipais, aumentando os cargos do mercado político brasileiro, e por contado impacto que as bases locais têm no comportamento da classe política,em especial a do ramo legislativo, os governantes locais tornaram-sepeças-chave do sistema. Aos prefeitos, ademais, juntaram-se vários ato-res que começaram a defender um discurso municipalista. Entre estes,destacavam-se acadêmicos, movimentos populares urbanos e, sobretudo,grupos profissionais das diversas áreas de políticas públicas, tais comosaúde, educação, habitação, assistência social e meio ambiente, para ficarnas principais.

Um novo federalismo estava nascendo no Brasil. Ele foi resultado daunião entre forças descentralizadoras democráticas com grupos regionaistradicionais, que se aproveitaram do enfraquecimento do Governo Federalnum contexto de esgotamento do modelo varguista e do Estado nacional-desenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto básico era fortalecer osgovernos subnacionais e, para uma parte destes atores, democratizar oplano local. Preocupações com a fragilidade dos instrumentos nacionais deatuação e com coordenação federativa ficaram em segundo plano.

Dois fenômenos destacam-se neste novo federalismo brasileiro: o es-tabelecimento de um amplo processo de descentralização, tanto em ter-mos financeiros e políticos, como também no que se refere à criação denovas formas de relação entre os governos locais e a sociedade; e acriação de um modelo predatório e não-cooperativo de relaçõesintergovernamentais, com predomínio para o componente estadualista.Grupos técnicos e, em menor medida, políticos alojados no GovernoFederal reagiram a este processo, produzindo também outro componente

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das relações intergovernamentais nos anos 80' e 90': a concepçãocentralizadora tecnocrática, com outra roupagem em relação ao regimemilitar, mas com características e defeitos similares.

Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório,visto que ele teve um impacto enorme também no outro processo (adescentralização). De 1982 a 1994, vigorou um federalismo estadualista,não-cooperativo e muitas vezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa revi-ravolta na Federação brasileira só pôde se efetivar, em primeiro lugar,porque a União e a própria Presidência da República entraram numaséria crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise abarcava omodelo de financiamento estatal do desenvolvimento, o equilíbrio dascontas públicas nacionais, a burocracia federal, enfim, os instrumentos depoder do Executivo Federal.

Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro característi-cas do sistema político também contribuíram para aumentar o poderiodos estados e seus governadores. São elas:

a) o sistema ultrapresidencial que vigorou - e em grande medida aindavigora - nos estados, o qual fortaleceu sobremaneira os governadores noprocesso decisório e praticamente eliminou o controle institucional esocial sobre o seu poder (ABRUCIO, 1998);

b) a lógica da carreira política brasileira, cuja reprodução se dá pelalealdade às base locais e pela obtenção de cargos executivos no planosubnacional ou então aqueles no nível nacional que possam trazer recur-sos aos “distritos” dos políticos. Em ambos os casos, o Executivo estadualé peça fundamental, seja no monitoramento das bases para os deputados,seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administraçãopública federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997);

c) os caciques regionais ocuparam ocupado posição destacada de lide-rança no Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes adespeito dos partidos, por outras, tornando-se grandes proprietários deparcelas dos condomínios partidários. E para se chegar a tal “posto”,quase sempre era necessário ter ocupado uma governadoria e continuarsendo influente na gestão do atual governador - melhor que seja o con-trolando, como bem mostra a experiência de maior cacique regional doperíodo, Antonio Carlos Magalhães.

d) Os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrati-vos que os fortaleciam no sistema de poder. Os Bancos estaduais, umnúmero considerável de cargos na administração direta e indireta, o tribu-

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to que mais recursos recolhe no país - o ICMS, que abarca cerca de 30%da arrecadação total - e, até então, um contingente considerável de em-presas estatais em áreas estratégicos, como o setor elétrico.

O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração deum federalismo estadualista e predatório. Estadualista porque o pêndulofederativo esteve a favor das unidades estaduais em termos políticos efinanceiros. Este aspecto estava igualmente presente no comportamentoatomizado e individualista dos governadores, cujo fortalecimento não re-sultou numa coalizão nacional em torno de um projeto de hegemonianacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter ostatus quo. Assim, cada “barão” estadual se preocupava apenas com amanutenção do poder que a estrutura federativa lhe proporcionava.

O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão decompetição não-cooperativa que predominava nas relações dos estadoscom a União e deles entre si. Desde o final do regime militar, as relaçõesintergovernamentais verticais tinham sido marcadas pela capacidade dosestados repassarem seus custos e dívidas ao Governo Federal e, aindapor cima, não se responsabilizarem por este processo, mesmo quandoassinavam contratos federativos. Caso clássico disso foram os BancosEstaduais. A partir de 1982, as instituições financeiras estaduais foramutilizadas pelos governadores como instrumento de atuação política. Fo-ram criadas verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos dele-térios para a inflação e para o endividamento global. O principal efeitodesta relação predatória era que, como aponta Sérgio Werlang, “todos osbancos estaduais [tinham] potencial de transferência do déficit fiscal doEstado para a União, não de direito mas de fato. Dessa forma, a políticamacroeconômica do Governo Federal passava a depender dos GovernosEstaduais”15.

Não por acaso as dívidas vinculadas aos Bancos estaduais quadrupli-caram no período que vai de 1983 a 1995. Pior: além de não controlá-los, o Governo Federal regularmente cobria seus déficits, socorrendo osestados com dinheiro que não seria recuperado. Exemplos disso foramas ajudas às instituições financeiras subnacionais após as eleições de1982, 1986 e 1990. Em todas estas vezes, a União, por meio do BancoCentral, intervinha, cobria seus rombos, saneava suas contas e depoisos devolvia para os governadores, sem nenhum prejuízo aos cofres

15 Apud BANCO CENTRAL DO BRASIL, 1992: 181.

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públicos dos estados - e tudo isso era repassado, em forma de dívida,para toda a nação.

No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório tevelugar na guerra fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de1988 e ainda continua vigorosa nas práticas federativas. O fato é que oestadualismo predatório acabará sendo ele próprio um dos elementosgeradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante.

Este contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização:o intento de reforçar os governos subnacionais, obtendo-se uma autono-mia inédita. A Federação tornou-se uma cláusula pétrea, e sua extinção oumedidas que alterem profundamente seus princípios não podem ser obje-tos de Emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4). Os estados ganharammaior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação noplano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade(Adins), extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA,1999: 55). A liberdade dada às Constituintes estaduais também forneceuum terreno fértil para a independência federativa.

Pela primeira vez na história brasileira e sem paralelo na experiênciainternacional, os municípios transformaram-se em entes federativos, cons-titucionalmente com o mesmo status jurídico dos estados e da União16.Hely Lopes Meirelles, um dos maiores especialistas em Direito Adminis-trativo no Brasil, afirma que a nova Constituição deu ao município acondição de “entidade estatal, político-administrativa, com personalidadejurídica, governo próprio e competência normativa” (MEIRELLES, 1993:116). Não obstante esta autonomia, os governos locais respeitam umalinha hierárquica quanto à sua capacidade jurídica - a Lei Orgânica, porexemplo, não pode contrariar frontalmente a Constituição estadual -, esão, no mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores degoverno no que tange às questões políticas, financeiras e administrativas.

A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medidadas conquistas tributárias, iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983,e consolidadas na Constituição de 1988, o que faz do Brasil o país emdesenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal (SOUZA,1998: 8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a maior elevaçãorelativa na participação do bolo tributário, apesar de grande parte deles

16 Já no seu artigo 1, a Constituição define que “a República Federativa do Brasil, [é] formada pela

união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (...)”.

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depender muito dos recursos econômicos e administrativos das demaisesferas de governo. O fato é que os constituintes reverteram a lógicacentralizadora do modelo unionista-autoritário, e mesmo as recentes alte-rações que beneficiaram a União não modificaram a essênciadescentralizadora das finanças públicas brasileiras.

A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de sedemocratizar o plano local. Embora este processo seja desigual na suadistribuição pelo país e tenha um longo caminho pela frente, ele redun-dou numa pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformandoum fenômeno sem par em nossa história federativa. Daí surgiram novosatores, como os conselheiros em políticas públicas e líderes políticos quenão tinham acesso real à competição pelo poder - o crescimento gradativoda esquerda nas eleições municipais, em particular o PT, demonstra isso.Também surgiram formas inovadoras de gestão, como o Orçamentoparticipativo e a Bolsa Escola, para ficar em dois casos famosos. Taisexemplos nos remetem às idéias norte-americanas do “Laboratório deDemocracia” e do “Reinventando o Governo”17.

As conquistas da descentralização não apagam os problemas dos go-vernos locais brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocamobstáculos ao bom desempenho dos municípios do país: a desigualdadede condições econômicas e administrativas; o discurso do “municipalismoautárquico”; a metropolitanização acelerada; os resquícios ainda existen-tes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam aaccountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais.

Desde a fundação da Federação, o Brasil é historicamente marcadopor fortes desigualdades regionais. Em termos comparados, o Brasil estáem terceiro lugar na lista dos países com alto índice de desigualdaderegional, numa situação pior do que a da Índia, protótipo de Federaçãomarcada por disparidades econômicas, e melhor apenas do que, respec-tivamente, a Rússia e a China (SHAH, 2000).

É bem verdade que o Brasil vem atacando as desigualdades regionaisdesde o período varguista e tais medidas foram ampliadas pela Constitui-ção de 1988, por meio de transferências tributárias, incentivos fiscais emedidas redistributivas na área social. Embora tenha havido uma mudan-ça na assimetria federativa existente no momento da fundação da Federa-

17 Entre os diversos livros que tratam da temática da inovação municipal no Brasil, podemos citar os

de SPINK & CLEMENTE, 1997; e o de PAULICS, 2000.

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ção, estamos bem longe dos ideais que mobilizaram Celso Furtado eoutros homens públicos brasileiros. As duas tabelas a seguir, elaboradaspor Clélio Campolina Diniz (2000), retratam as diferenças inter-regionaissob dois aspectos: o econômico e o social.

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A disparidade de condições econômicas é reforçada pela existênciade um contingente enorme de municípios pequenos, com baixa capaci-dade de sobreviver apenas com recursos próprios. A média por Região éde 75% dos municípios com até 50 mil habitantes, ao passo que no

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universo total há 91% dos poderes locais com este contingentepopulacional (RESENDE, 2000; ARRETCHE, 2000: 247). Além do mais,argumenta Marta Arretche:

“O porte populacional dos municípios tem uma relação direta com suacapacidade de gasto: nos Estados do Nordeste, a receita corrente própriaper capita dos municípios com população inferior a 50 mil habitantes éinferior a R$ 10,00; nos Estados do Sul, esta cifra é inferior a R$ 53,00 e,nos Estados do Sudeste, inferior a R$ 77,00” (ARRETCHE, 2000: 247).

A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maiorsob o ponto de vista comparado. Segundo estudo realizado por JoséRoberto Afonso e Érica Araújo (2000: 48), os governos locais brasileirosestavam em décimo quinto lugar em termos de base de arrecadaçãoprópria num universo de dezenove países. Mas além da fragilidade fi-nanceira, a maior parcela das municipalidades detém uma máquina admi-nistrativa precária - embora o Governo Federal durante os anos FHCtenha atuado para minorar este problema, como veremos depois. Proble-mas de capacidade burocrática constituem elemento que cria uma “falhaseqüencial” na descentralização. O sucesso do processo descentralizador,diante dessa realidade, vai depender muito das ações dos níveis superio-res de governo e do desenho das políticas públicas, os quais devemoferecer auxílio intergovernamental mas também incentivos para que aspróprias gestões locais alterem sua estrutura. Caso contrário, essa “falhaseqüencial” criará uma eterna dependência dos municípios em relaçãoaos estados e à União.

Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento dadescentralização no Brasil foi prejudicado exatamente pelo discurso quea defendia: a argumentação em prol da municipalização. Por um lado, apostura municipalista foi essencial para modificarmos o padrão centralistade produção e implementação de políticas públicas que vigorou ao longodo período varguista, particularmente no regime militar. Ademais, foiigualmente a partir dela que diversos avanços democratizadores e novasposturas em relação à gestão pública surgiram no cenário federativobrasileiro. Porém, conformou-se uma ideologia segundo a qual os gover-nos locais poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletivacolocados às suas populações. Trata-se de um municipalismo autárquico,como bem definiu certa vez Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André. Éinteressante reforçar que Celso foi um defensor da bandeira municipalista,além de um inovador administrativo e um democratizador das relações

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entre Estado e sociedade, mas também sabia dos limites do poder localno país.

O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a“prefeiturização”, tornando os prefeitos atores por excelência do jogolocal e intergovernamental. Cada qual defende seu município como umaunidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relaçãoaos problemas comuns em termos micro e macroregionais. Numa hipóte-se que constata maior perversidade neste fenômeno, o municipalismoautárquico se transforma numa plataforma de poder e ascensão a lideran-ças locais.

O quadro institucional favorece o municipalismo autárquico. Primeiroporque não há incentivos para que os municípios se consorciem, dadoque não existe nenhuma figura jurídica de direito público que dê segu-rança política para os governos locais que buscam criar mecanismos decooperação. Mesmo assim, em algumas áreas os consórcios desenvolve-ram-se mais, como em meio ambiente e na saúde, mas ainda numa pro-porção insuficiente para a dinâmica dos problemas intermunicipais. Aoinvés de uma visão cooperativa, predomina um jogo no qual os municípi-os concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis de governo,lutam predatoriamente por investimentos privados e, ainda, muitas vezesrepassam custos a outros entes, como é o caso de muitas prefeituras quecompram ambulâncias para que seus moradores utilizem os hospitais deoutros municípios, sem que seja feita uma cotização para pagar as despe-sas. Neste aspecto, a questão da coordenação federativa é chave.

Em segundo lugar, a estrutura tributária baseada em transferênciasintergovernamentais, não obstante ser essencial numa Federação desi-gual, não estabelece no caso brasileiro, ao contrário de outros paísesfederativos, qualquer tipo de estímulo para aumentar a arrecadação tribu-tária ou então para compartilhar despesas de forma horizontal. A distri-buição dos recursos tornou-se ainda mais irracional com a multiplicaçãode municípios, que ganhou força após a promulgação da Constituição de1988. O impulso para isso adveio de quatro fatores: a) o recebimentoautomático de dinheiro provindo do Fundo de Participação dos Municípi-os (FPM) para todo distrito que se emancipar; b) a criação de novosmunicípios pode servir ao desejo dos governadores de redesenhar omapa eleitoral em regiões cuja competição política seja baixa o suficientepara permitir a entrada de um novo líder - mais uma demonstração daforça do estadualismo; c) a ausência de um nível intermediário entre o

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governo estadual e o municipal exacerba o conflito entre os líderes locaispor verbas públicas, tornando irracional os resultados regionais das políti-cas (ABRUCIO, 2000: 327-328).

A partir destes fatores, houve uma grande multiplicação demunicipalidades no Brasil, como mostra a tabela abaixo:

O processo de multiplicação de municípios tornou-se efetivamentepredatório porque beneficiou mais as pequenas municipalidades, ondehá menor população e menos problemas coletivos, levando-se em contasua magnitude e complexidade. Por tabela, foram prejudicados os gover-nos locais de médio para grande porte, com maior população e onde ademanda por recursos públicos é mais necessária e premente. Ao seobservar os resultados da enorme emancipação de distritos pelo pais,conclui-se o seguinte:

a) Primeiro, mais da metade dos municípios criados até 2002 tinhamaté cinco mil habitantes e mais de 95% tem, no máximo, 20 mil habitantes(GOMES & MAC DOWELL: 2000). Criou-se um terreno para a fragmenta-ção do país, ao contrário da tendência internacional. Para dar um exem-plo, em 14 dos 15 países da União Européia houve diminuição do núme-ro de comunas e agregação de poderes locais;

b) Os municípios criados têm a menor porcentagem de receita própriadentro da receita total e são os que têm, disparado, a maior receita percapita dentro do total (GOMES & MAC DOWELL: 2000).. Assim, a multi-

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plicação de municípios significou, de um lado, um estímulo airresponsabilidade fiscal e a dependência em relação às transferênciasintergovernamentais e, de outro, retirou recursos dos maiores para osmenores

c) Por fim, a maioria dos municípios criados, além de representaremuma parcela ínfima da população brasileira, está gastando a maior partedos recursos apenas para pagar suas contas mínimas, sendo os que maisgastam com os três Poderes (GOMES & MAC DOWELL: 2000). Ao invésde significar um repasse de gastos para a área social, resolvendo melhoros problemas que estariam sendo prejudicadas pelo município-mãe, odesmembramento concentrou renda nas mãos da elite política local.

Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi aintensa metropolitanização do país. Não só houve um crescimento dasáreas metropolitanas, em número de pessoas e de organizações adminis-trativas, como também os problemas sociais cresceram gigantescamentenestes lugares. No entanto, a estrutura financeira e político-jurídica insti-tuída pela Constituição de 1988 não favorece o equacionamento destaquestão. No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos constituintesfoi por um sistema de repartição de rendas intergovernamentais com viésfortemente anti-metropolitano (REZENDE, 2001). No que tange ao se-gundo ponto, o fato é que as Regiões Metropolitanas (RMs) enfraquece-ram-se institucionalmente em comparação à dimensão que tinham noregime militar. Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formascompartilhadas de gestão territorial. É dessa concepção que se originou aexplosão dos problemas dos grandes centros urbanos brasileiros, comoveremos mais adiante.

A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de res-quícios culturais e políticos anti-republicanos no plano local. A despeitodos avanços que houve, que foram muitos se os enxergarmos por umaperspectiva histórica, diversas municipalidades do país ainda são gover-nadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que éfundamental para a combinação entre descentralização e democracia.Escândalos como o dos precatórios e o da “Máfia dos Fiscais”, ambos emSão Paulo, mostram que nem as grandes cidades estão imunes - no casoem questão, o órgão montado para fiscalizar o Poder público, o Tribunalde Contas do Município (TCM), era totalmente controlado pelo malufismo,num estilo não muito diferente do vigente na política da República Velha.Ao estudar como vários municípios vêm sendo governados, Joffre Neto

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(2001) revelou o domínio do executivismo ou prefeiturização do Poderpúblico, com os vereadores almejando ser “miniprefeitos” e não legisla-dores ou fiscalizadores do Poder público, além de a população entrevis-tada afirmar que a Câmara Municipal “fazia parte da Prefeitura” e desejarque os parlamentares atuassem, prioritariamente, em prol de políticasassistenciais. Uma outra pesquisa, realizada por Lúcia Avelar e FernãoDias de Lima (2000), constatou outra face desse problema: os pioresresultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são encontra-dos nos municípios pequenos e governados pelo modo político tradicio-nal - neste quesito, destaca-se o PFL.

É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poderlocal é continuar na trilha da descentralização. Porém, se não houverreformas das instituições políticas subnacionais, além de uma mudança dapostura da sociedade em relação aos governantes, cria-se uma nova “fa-lha seqüencial” no processo descentralizador.

No plano intergovernamental, não se constituiu uma coordenação ca-paz de potencializar a descentralização ao longo da redemocratização.Na relação dos municípios com os estados, predominava a lógica decooptação das elites locais, típica do ultrapresidencialismo estadual. Adi-cionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a Constituição de 1988,num quadro de indefinição de suas competências e da maneira como serelacionariam com os outros níveis de governo. Este vazio institucionalfavoreceu uma posição “flexível” dos governos estaduais: quando as po-líticas tinham financiamento da União, eles procuravam participar; casocontrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as atribuições para os go-vernos locais.

O avanço da descentralização encontrou a União numa postura defen-siva. Ao perder recursos tributários na Constituição e se responsabilizarintegralmente, num primeiro momento, pela estabilidade econômica, oGoverno Federal procurou transformar a descentralização num jogo demero repasse de funções, intitulado à época de “operação desmonte”.Daí se originam dois problemas. O primeiro é que, dada a desigualdadefederativa, muitas políticas terão de ser necessariamente financiadas, pelomenos em parte, por recursos federais. Além disso, a coordenação nacio-nal é essencial para induzir, auxiliar e avaliar a implementação de diver-sos programas.

Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opiniãopública, grande parcela dos encargos foi sim assumida pelos municípios.

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Só que isso aconteceu de forma desorganizada na maioria das políticas - agrande exceção foi a área de Saúde. Ademais, a inflação crônica tornavamais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção progra-mada das atribuições por parte dos governos locais. Criou-se, em suma,uma situação de incerteza, de decisões e transferências de verbas emritmos inconstantes e de ausência de mecanismos que garantissem a coo-peração e a confiança mútua. Neste sentido, argumenta Maria HermíniaTavares de Almeida:

“Sendo a descentralização um processo e não um jogo de uma rodadasó, a confiança em sua continuidade é essencial para que os governossubnacionais se disponham a entrar no jogo. Em outros termos, adescentralização bem sucedida requer que o centro[em especial numasituação de grande desigualdade, como a da Federação brasileira] sejacapaz de dar incentivos e garantias críveis de continuidade aos destinatá-rios da transferência” (TAVARES DE ALMEIDA, 2000a: 7).

Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conforma-do na redemocratização: a descentralização depende agora, diversamen-te do que ocorria regime centralizador e autoritário, da adesão dos níveisde governo estaduais e municipais. Por isso, o jogo federativo dependehoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superi-ores de poder, como é natural numa Federação democrática. Em suma,seu sucesso associa-se à coordenação intergovernamental.

A falta de uma coordenação do processo descentralizador fez com queele dependesse de duas variáveis para ser bem sucedido. A primeira é odesenho específico de cada política pública. A área em que havia umaestrutura institucional mais adequada à descentralização era a da Saúde,por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), e foi nela em que houvemaior sucesso. No restante das atribuições governamentais, o cenárioinicial foi caótico e sua melhora foi normalmente condicionada à implan-tação de medidas coordenadoras no plano geral das políticas, algo queganhou força em determinados setores a partir do governo FHC.

A segunda variável relaciona-se à estratégia de indução federativa. Emextensa análise de quatro áreas de políticas públicas (desenvolvimentourbano, educação, assistência social e saúde) em seis unidades estaduais,Marta Arretche comprovou que “devido à debilidade fiscal de uma gran-de proporção de municípios em cada Estado (...) a existência e a naturezade estratégias federais e estaduais são um requisito fundamental do pro-cesso de descentralização das políticas sociais” (ARRETCHE, 2000: 247).

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Por isso, o sucesso dos programas vincula-se à ação coordenada entre osníveis de governo.

O principal problema da descentralização ao longo da redemocratizaçãofoi a conformação de um federalismo compartimentalizado, em que cadanível de governo procurava encontrar o seu papel específico e não haviaincentivos para o compartilhamento de tarefas e a atuação consorciada.Daí decorre também um jogo de empurra entre as esferas de governo. Ofederalismo compartimentalizado é mais perverso no terreno das políti-cas públicas, já que numa Federação, como bem mostrou Paul Pierson, oentrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na produção egerenciamento de programas públicos, especialmente na área social. Aexperiência internacional caminha neste sentido.

Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coorde-nação da descentralização foram atacados pelo governo Fernando HenriqueCardoso, com sucessos diferenciados, maiores na primeira questão, maisirregulares, na segunda. Mas antes de analisar as políticas em si, é preci-so compreender as condições que permitiram as mudanças, bem como asque ainda criam obstáculos para a melhoria da coordenação federativa.

V - A ERA DO REAL: UMA “CONJUNTURA CRÍTICA” E UM “MOMENTO

MAQUIAVELIANO” NO FEDERALISMO BRASILEIRO18

A “era do Real” marca o início da crise do federalismo estadualista, em-bora não tenha conseguido eliminar todas suas características predatórias- uma delas, a guerra fiscal, até aumentou de intensidade. Entende-seaqui o Real de uma forma mais ampla do que um plano de estabilização:o contexto que o proporcionou e os seus diversos resultados foram fun-damentais para fortalecer o Governo Federal e enfraquecer os governosestaduais, mudando a dinâmica intergovernamental.

Neste sentido, a “era do Real” nasce antes da promulgação do planode estabilização. A partir de 1993, e mais especificamente da indicaçãodo ministro Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda, oGoverno Federal fortaleceu-se em razão dos seguintes fatores:

a) O primeiro é a mudança no cenário externo. Depois de uma décadaem que se combinaram, perversamente, a redução drástica de emprésti-

18 A análise desta seção baseia-se no desenvolvimento do argumento primeiramente defendido em

Abrucio & Ferreira Costa (1998).

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mos e refinanciamento externos com uma enorme transferência líquidade recursos para o estrangeiro (SALLUM JÚNIOR, 1999: 25), a partir de1991 começa a ocorrer uma reversão deste processo. Entre 1992 e 1997,ocorre o auge do fluxo de capitais para a América Latina. De acordo comdados da Cepal, somente o montante de investimento estrangeiro diretopassa de 10 bilhões de dólares, em 1990, para 68 bilhões de dólares, em199719. Soma-se a isso a bem sucedida renegociação da dívida externarealizada em 1993 e chegamos a uma situação extremamente favorávelao Executivo Federal no plano internacional, antítese do que fora a déca-da de 80.

b) Um segundo ponto importante foi a melhora das condições dascontas públicas federais. Aqui, verdade seja dita, a “era do Real” recebeude bandeja algumas conquistas dos períodos anteriores, como a moderni-zação orçamentária feita no governo Sarney e o crescimento das reservascambiais obtido pelo ministro Marcílio Marques Moreira. Além disso, des-de o governo Itamar Franco houve um aumento progressivo da arrecada-ção federal. Diretamente, Fernando Henrique Cardoso, então Ministro daFazenda, atuou de forma decisiva para a aprovação do Fundo Social deEmergência (FSE), que aumentou os recursos “livres” da União, constitu-indo a primeira grande vitória federativa da União no campo financeirodesde a aprovação da Emenda Passos Porto, em 1983, quando se iniciouo aprofundamento da descentralização.

Grandes melhoras no plano externo e algumas importantes mudançaspara o equilíbrio interno das contas públicas, eis dois passos importantespara o fortalecimento do Governo Federal;

c) O impeachment do presidente Collor e a possibilidade da vitória deLula nas eleições presidenciais de 1994 levaram a um realinhamento doestablishment, em sua dimensão política, social e econômica. Os princi-pais caciques regionais e os partidos ou frações partidárias que comanda-vam, importantes setores empresariais e a maioria dos meios de comuni-cação de massas não estavam dispostos a ter de engolir o “sapo barbudo”nem um novo aventureiro solitário à direita. Havia, então, os primeirossinais do fortalecimento do Governo Federal, creditado à atuação deFernando Henrique, que, aliás, pouco a pouco se transformava informal-mente em “primeiro-ministro” do presidente Itamar Franco. Com estecacife e sua virtú na montagem da coligação eleitoral, Fernando Henrique

19 Gazeta Mercantil, 9 de fevereiro de 2000, página A-20.

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conseguiu formar uma grande aliança, a qual se reforçou com o sucessodo Real.

d) Houve também a consolidação de uma mudança ideológica que háanos estava, paulatinamente, ganhando força na sociedade brasileira. Aspesquisas de opinião em geral e as feitas junto às elites por BolívarLamounier e Amaury de Souza mostraram que um discurso favorável àsreformas do Estado, tomadas de uma maneira genérica, obtiveram umaaprovação inédita, revertendo o ideário que predominara na década de80 (LAMOUNIER & SOUZA, 1991; LAMOUNIER & SOUZA, 1995;LAMOUNIER & SOUZA, 1995 a). Os principais formadores de opinião, aclasse média, a mídia e importantes setores empresariais adotaram a idéiade reformas constitucionais como a salvação do país, e foi isso que,somado à estabilização monetária, uniu fortemente o presidente à socie-dade no primeiro mandato, dando grande popularidade a FernandoHenrique;

e) Pela primeira vez desde o início da redemocratização, as eleiçõespresidenciais de 1994 ocorreram concomitantemente ao pleito estadual eà disputa para o Congresso Nacional. Essa “eleição casada” vinculou oscongressistas e o presidente, e mesmo os governadores, ao mesmo man-to de legitimidade, ao contrário do que ocorrera antes, quando a Presi-dência da República era definida num pleito “solteiro” e os parlamenta-res elegiam-se tendo como carro-chefe a eleição à governadoria - o quecontava a favor da atuação dos chefes dos Executivos estaduais junto àsbancadas de seus estados. Decorreu, daí, um dos fatores do fortalecimen-to da Presidência da República vis à vis aos governos estaduais;

f) Ainda no plano eleitoral, não foi apenas o caráter concomitante daeleição que favoreceu a União no seu relacionamento com os estados. Aeleição de 1994 foi marcada por uma outra peculiaridade: em unidadesestaduais estratégicas da Federação, foram eleitos governadores fiéis aopresidente e cujas vitórias derivaram do apoio ao Plano Real. Entre estesdestacam-se Marcello Alencar (Rio de Janeiro), Eduardo Azeredo (MinasGerais), Antonio Britto (Rio Grande do Sul) e mesmo Mário Covas (SãoPaulo), embora este tinha maior independência partidária e calibre políti-co. Apesar de ainda existirem importantes conflitos e FHC ter tido sem-pre de negociar com os governos estaduais, estes últimos atuaram bastan-te afinados com o Palácio do Planalto, concordância federativa que nãoera obtida desde o governo Geisel;

g) Por fim, o fortalecimento do Governo Federal completa-se e se

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estrutura no estupendo êxito inicial do Plano Real, que conseguiu sesustentar por mais tempo do que qualquer outro e, ademais, estabeleceualguns aspectos estruturais bem sucedidos que provavelmente acompa-nharão o próximo governo. Sua legitimidade garantiu a eleição e a reelei-ção do presidente Fernando Henrique, bem como um grande apoio deimportantes setores da sociedade, dos governadores e da comunidadeinternacional. Além da legitimidade, a arquitetura do Plano Real derrubouo aspecto inercial da inflação e, o que é mais interessante aos nossospropósitos, praticamente liqüidou os mecanismos que os estados deti-nham anteriormente para produzir, autônoma e predatoriamente, recur-sos financeiros.

A estabilidade monetária foi garantida não apenas pelo instrumentoengenhoso da URV, mas também graças ao novo cenário externo. Foiesse fator que possibilitou a utilização da chamada âncora cambial comovariável chave no combate à inflação. A “aposta” no fluxo de capitalexterno como elemento que, simultaneamente, garantiria os baixos índi-ces inflacionários e fecharia as contas do balanço de conta corrente, foi atônica no primeiro mandato. Pode se dizer que se, por um lado, essaaposta foi perigosa pois criou uma dependência que por fim levaria àdesvalorização do Real em janeiro de 1999 e a um desastre financeiroque acompanhou o segundo mandato, por outro lado, foi também ela queestabeleceu uma ameaça exógena constante aos congressistas, já que acada crise internacional, desde da do México à da Rússia, o presidente ospressionava a aprovar reformas para garantir a estabilidade do Real.

O êxito inicial do Plano Real teve grande impacto sobre adescentralização. A drástica redução da inflação tornou mais estáveis astransferências intergovernamentais, favorecendo à condução do processodescentralizador. Com isso, a União obteve o instrumento que lhe faltavapara poder barganhar a passagem de encargos e funções de uma formamais racional e programada para os governos subnacionais. Foi esta situ-ação que permitiu a formulação de políticas públicas coordenadas comoo Fundef, que analisaremos adiante.

A “era do Real” teve o significado de uma “conjuntura crítica”, isto é,de uma grande mudança na posição relativa dos atores políticos e sociaisem relação aos instrumentos de poder e às preferências (PIERSON, 2000).A esta modificação na situação dos agentes somou-se a capacidade dopresidente Fernando Henrique de montar e manter por um bom tempouma coalizão capaz de fazer alterações na antiga estrutura, segundo os

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objetivos determinados por FHC. Neste sentido, trata-se, também, de um“momento maquiaveliano” (POCOCK,1975), no qual a mudança da “for-tuna” (condições objetivas, no sentido marxista) realiza seu potencial navirtù do condutor da mudança, que cria uma nova ordem institucional20.

Deste modo, houve uma conjunção entre as alterações situacionais e acapacidade do presidente Fernando Henrique Cardoso de montar suaestrutura de poder, pelo menos em seu primeiro mandato. Para tanto,FHC soube combinar habilmente os aspectos majoritários com osconsociativos do sistema político brasileiro. Em termos legislativos, eledefiniu o processo constitucional, com apoio de grande parte da socieda-de, como a agenda prioritária do Congresso Nacional, utilizando-se dasMedidas Provisórias para suas tarefas rotineiras de governo ou para im-pulsionar o andamento de votações importantes, inclusive constitucio-nais, que estavam paradas por conta de vetos na própria base governista.

Mas foi na montagem do governo que o presidente Fernando Henriqueteve seu maior mérito em lidar com as peculiaridades de nosso sistemapolítico. Ele se aproveitou da legitimidade das urnas e do sucesso doReal não para impor um mandato bonapartista; ao invés disso, costurou oapoio de partidos e de lideranças de estados importantes, só que resguar-dando um espaço maior de poder para algumas agências insuladas - comdestaque para o Ministério da Fazenda - e para técnicos vinculados dire-tamente à Presidência da República - aqui, o instrumento utilizado foi oda influência direta na escolha de Secretários Executivos, segundo cargona hierarquia ministerial, os quais fizeram o papel de controladores dadelegação presidencial aos ministros escolhidos segundo as variáveis par-tidárias e federativas (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999). No presidencialis-mo de coalizão brasileiro, o primeiro mandato de FHC foi o mais bemsucedido na montagem ministerial desde o retorno da democracia.

Ao mesmo tempo em que se fortalecia o Governo Federal, os estadosentravam numa seríssima crise financeira. O estopim disso, sem dúvidaalguma, foi o Plano Real. Em primeiro lugar, porque com o fim da infla-ção os governos estaduais deixaram de ganhar a receita provinda dofloating, que permitia o adiamento dos pagamentos e o investimento dodinheiro arrecadado no mercado financeiro, possibilitando assim uma ele-

20 Os conceitos de “conjuntura crítica” e “momento maquiaveliano” foi primeiramente utilizado

para o caso brasileiro por Lourdes Sola & Eduardo Kugelmas (2002) e, depois, por Maria Rita Loureiro& Fernando Luiz Abrucio (2002).

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vação artificial dos recursos e uma diminuição igualmente artificial deboa parte das despesas dos governadores. Ao tomarem posse, os novosgovernadores perceberam a mudança ocorrida com o fim do floating,como bem resumiu Mário Covas;

“Varia de estado para estado, mas a maioria [dos governadores] se defrontacom este fato: as despesas ainda correm em regime inflacionário e as receitasjá atuam em regime de estabilidade” (PADRÃO & CAETANO, 1997: 23).

O Plano Real produziu outro grande impacto nas finanças estaduaiscom a elevação das taxas de juros, que atingiram em cheio as dívidasestaduais, sobretudo no que se refere aos títulos e dívidas dos Bancosestaduais (SOLA, GARMAN & MARQUES, 1997: 28). Depois de teremsido o grande instrumento financeiro dos governadores, especialmentena fase áurea do federalismo estadualista, os Bancos estaduais entraramem verdadeira bancarrota. Sofreram mais os grandes estados, sendo oscasos mais graves o do Banerj e, principalmente, o do Banespa. Nesteúltimo, estava em sua carteira a própria dívida do Estado de São Paulo, amaior dentre as unidades estaduais.

A crise dos Bancos estaduais ocorreu também porque eram essas asinstituições financeiras que mais retiravam seus recursos do jogo inflacio-nário. Com a elevação de suas dívidas e por vezes do passivo dos estadosque estavam em suas carteiras, o fim da inflação e a reestruturação dosistema financeiro, aumentando a competitividade, o sistema bancário dosestados praticamente se inviabilizou. Além do mais, o presidente tinhaaliados em importantes estados, os quais não reagiram fortemente à inter-venção do Banco Central como teriam feito os antigos governadores21.

Contou ainda para a crise financeira dos estados a adoção de medidastributárias centralizadoras. Primeiro, aumentando-se a participação dasContribuições Sociais no bolo de recursos do Governo Federal, as quaisnão entram na partilha constitucional de recursos, ficando somente noscofres do Tesouro Nacional. Além disso, a centralização da receita estevepresente em outra medida importante, já citada, que foi o Fundo Socialde Emergência (FSE). Sua validade seria provisória, mas foi posterior-mente prorrogado e alterado o seu nome para Fundo de EstabilizaçãoFiscal (FEF), mostrando que o Executivo Federal não precisava mais es-conder o verdadeiro propósito desta medida.

21 A respeito do colapso dos Bancos estaduais após o Real, ver o minucioso trabalho de GARMAN,

LEITE & MARQUES, 1998.

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Mais do que a alocação em si dos recursos, a aprovação do FundoSocial de Emergência teve uma importância simbólica reveladora: foi aprimeira vez que a União teve uma vitória tributária contra os estadosdesde o início da redemocratização. Isso abriu politicamente as portaspara outras alterações federativas no plano tributário, como a Lei Kandir,que mesmo sendo resultado de uma intensa negociação entre o Executi-vo Federal e os governadores, atingiu parcela substantiva do principaltributo estadual, o ICMS, naquilo que incidia sobre parte considerável dasexportações. A tabela abaixo mostra as perdas iniciais dos estados com aLei Kandir, bastante substantivas, diga-se de passagem.

O resultado final destas mudanças no plano tributário foi uma novarecentralização de receitas. Ainda que o Brasil seja um dos países commaior descentralização fiscal em comparação aos países em desenvolvi-mento e mesmo perante as Federações mais consolidadas do mundo, omovimento concentrador foi de fato considerável, por intermédio da ele-vação das receitas advindas das Contribuições Sociais e do represamentode parcela dos recursos para transferência aos governos subnacionais.

Os efeitos e o esgotamento do modelo predatório constituíram-se tam-

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bém em elementos decisivos para a crise financeira dos estados. Não sepode, portanto, creditar as causas do desequilíbrios das contas públicasestaduais apenas às ações e ao fortalecimento do Governo Federal. Osjuros, medidas tributárias centralizadoras, o fim da inflação e a interven-ção nos Bancos estaduais, sem dúvida, foram fundamentais; porém, sãoos próprios governos estaduais que têm a maior parcela de culpa em suaatual crise.

As dívidas estaduais e o descalabro criado pelos Bancos estaduaisforam primeiramente obra das próprias elites estaduais. E a despeito doaperto financeiro e da elevação dos juros, os governos estaduais continu-aram a optar pela obtenção de empréstimos de curto prazo, mesmosabendo do maior risco dessas operações, fato devidamente comprovadopelo Relatório da CPI dos Precatórios. Antes da crise, os governadoresnão efetuaram esforços relevantes para aumentar suas receitas. Mesmohavendo uma elevação da arrecadação dos estados de 36,65 % entre1993 e 1996, também houve uma elevação, ainda maior proporcional-mente, das despesas (ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998: 78-79).

Outro grave problema dos governos estaduais que ajudou a minar suascontas públicas foi o do excessivo gasto com pessoal. Esse padrão admi-nistrativo foi reforçado pelos estados ao longo da redemocratização, par-ticularmente com a promulgação das Constituições estaduais. Caso anali-semos mais pormenorizadamente o período mais recente, concentrando-se na comparação União versus estados, fica ainda mais evidente a ele-vação dos gastos dos governos estaduais com funcionalismo. Tomandocomo base somente as despesas com o pessoal ativo em relação à receitatotal, constata-se que do período 1990-1993 para o de 1994-1995 ocor-reu uma pequena redução de 18,8% para 17,7% na União ao passo que,em média, os estados elevaram os seus gastos de 46% para 50,2%(BELTRÃO, ABRUCIO & LOUREIRO, 1998: 11).

A aceleração do aumento dos gastos com servidores públicos derivou,em parte, das regras estabelecidas pelas Constituições estaduais. GuerzoniFilho (1996) mostrou como vários estados criaram normas que flagrante-mente contrariavam a Constituição Federal no que se refere à concessãode estabilidade. Na Bahia, Rio Grande do Norte, Maranhão e Ceará foramestabilizados os empregados das empresas públicas e sociedades de eco-nomia mista; em Santa Catarina, tornaram-se estáveis servidores admiti-dos em caráter transitório, enquanto no Piauí todos aqueles admitidos atéseis meses antes da promulgação da Constituição estadual, inclusive a

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título de prestação de serviços, ganharam estabilidade. É bem verdadeque alguns governos estaduais posteriores conseguiram reverter estesdispositivos constitucionais, mas o custo deste processo já havia se insta-lado nos montante de dívidas dos estados (GUERZONI FILHO, 1996: 55).Outros dois fatores também contribuíam para esta situação: o crescimentodas despesas com os Poderes Legislativo e Judiciário, além do Tribunalde Contas dos estados, e a existência de categorias privilegiadas querepresentam um pequeno contingente da burocracia, mas que abocanhamuma parcela enorme da folha salarial.

Mas o fator principal no aumento dos gastos com pessoal advém daPrevidência pública. A elevação das despesas com inativos tem sidocrescente em todos os níveis de governos, mas de uma forma maispreocupante no âmbito estadual. Este diagnóstico demorou para ser feitotanto pelos governadores como pela União, com efeitos deletérios para areforma do Estado planejada pelo governo Fernando Henrique.

Os governadores que tomaram posse em 1995 receberam ainda umpassivo inesperado: o aumento de gastos com a folha de salários aoapagar das luzes dos antigos governos. Para dar um exemplo recorrente,no Mato Grosso o governador Dante de Oliveira constatou que a folha desalários do Executivo havia passado de R$ 27 milhões/mês em 1994 paraR$48 milhões/mês em 1995, levando o governo estadual a gastar 80% dareceita do governo com funcionalismo (PADRÃO & CAETANO, 1997:24). É bom lembrar que esta mudança ocorreu exatamente quando osestados perderam a capacidade de manipular o floating vigente no perí-odo inflacionário, o qual permitia uma certa margem de manobra aosgovernadores.

Como se vê, é muito grande a importância dos governos estaduais emimpulsionar a sua própria crise. O resultado não foi só a derrocada finan-ceira, mas também uma grande deterioração dos serviços públicos. Asgreves das Polícias Militares talvez tenham sido a sinalização clara de queou se fazia uma reforma das máquinas públicas estaduais ou se entrarianum caos social.

O modelo estadualista e predatório enfraqueceu-se sobremaneira coma Presidência de Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo-se uma “con-juntura crítica” na Federação brasileira. Mesmo com a corrosão gradativada coalizão governista no segundo mandato, não houve uma reviravoltana Federação e, ao contrário, a adoção de um novo modelo financeiroganhou força com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),

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com apoio considerável dos congressistas, da sociedade e dos governanteslocais.

Um balanço dos anos FHC mostra que, em parte, ele conseguiu cons-tituir um “momento maquiaveliano” no jogo federativo, tendo a virtù paracriar uma nova ordem; em outros aspectos, todavia, isso não foi feito,permanecendo o legado do federalismo desenvolvido durante aredemocratização, e ainda com algumas influências da trajetória históricadas relações intergovernamentais do país. É por esta ótica que analisare-mos a coordenação federativa no período 1995-2002, procurando enten-der a especificidade deste período e suas lições.

VI - A COORDENAÇÃO FEDERATIVA SOB FHC: AVANÇOS E PROBLEMAS

O objetivo desta seção é analisar o processo de coordenação federativanos anos FHC num plano mais geral e em políticas mais específicas. Nocaso destas últimas, o capítulo não tem como finalidade fazer uma avali-ação dos resultados dos programas, mas sim, estudá-los do ponto de vistada descentralização e do papel do Governo Federal nesta questão.

Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemosdestacar sete mecanismos gerais adotados pelo Governo Federal no pla-no da descentralização. O primeira deles se refere ao fato de que o Brasiltinha iniciado o processo descentralizador antes de estabilizar a econo-mia, o que tornou mais difícil a constituição de jogos mais coordenados eefetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a inconstância datransferência das verbas constitui um obstáculo numa Federação desigualcomo a brasileira (AFONSO, 1996). Ao reduzir a inflação, houve umimpacto positivo para a regularização dos repasses de recursos aos go-vernos subnacionais. Isto permitiu a abertura de uma nova rodada denegociação para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas pú-blicas.

Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e osobjetivos de reformulação do Estado. Neste sentido, o Governo Federalprocurou, em primeiro lugar, reduzir todos os focos de criação de déficitpúblico nos governos subnacionais, especialmente os de cunho predató-rio - isto é, que repassavam custos para a União. Para alcançar estasmetas fiscais, houve uma atuação conjunta em prol da modernização daestrutura fazendária em vários estados - com recursos de instituiçõesinternacionais - e, no segundo mandato, a aprovação de uma regra fede-

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rativa de restrição orçamentária - a Lei de Responsabilidade Fiscal - e aadoção de medidas de auxílio na área previdenciária.

O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação esta-tal, ademais, incluiu a proposição de Programas de Demissão Voluntáriaaos estados, com financiamento federal. Num sentido mais institucional, oMinistério da Administração e Reforma do Estado (MARE) procurou ativaro Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, realizando reuniõesmais constantes e cujo tema de debate era a modernização das máquinaspúblicas - isso durou apenas os primeiros quatro anos do período FHC.Por fim, destaca-se aqui o processo de privatização das empresas estadu-ais, no qual o BNDES teve um papel decisivo.

O repasse de recursos condicionado à participação e fiscalização dasociedade local foi um terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. Decerto modo, houve uma continuidade da estratégia já prevista pela Cons-tituição de 1988, particularmente na criação e ampliação do escopo dosConselhos de Políticas Públicas. Aprofundou-se esta concepção com adeterminação de que certas transferências só seriam recebidas se existis-sem os Conselhos da área em questão. Além disso, o Comunidade Solidá-ria optou pela produção de programas intrinsecamente vinculados à mon-tagem de parcerias entre o Estado e a sociedade. O caráter democráticoda descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a tônica nestapolítica.

A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas deSaúde e Educação, com o PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef(Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental), respectivamente. Osmecanismos coordenadores aqui utilizados passaram pela combinação derepasse de recursos com o cumprimento de metas preestabelecidas ou aadoção de programas formulados para todo o território nacional. Trata-sede um modelo indutivo, mas que transfere verbas segundo metas oupolíticas-padrão estipuladas nacionalmente, procurando assim dar um perfilmais programado e uniforme à descentralização, sem retirar a autonomiados governos subnacionais em termos de gestão pública. No caso doFundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de recursos, experi-ência inédita na Federação brasileira.

A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foramadotadas políticas de distribuição de renda direta à população. O primei-ro deles foi o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), de-pois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o Programa Bolsa

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Escola, ao qual se juntaram o Bolsa Alimentação e o Vale Gás. Buscou-se,com tais medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticasnacionais, as quais podem ser realizadas em parceria com outros instru-mentos de gestão local, mas com a garantia de uma verba federal padro-nizada. O pressuposto destas ações é que em problemas de origemredistributiva, particularmente numa Federação, é necessária a atuaçãodo Governo Federal para evitar o agravamento das desigualdades.

A este mecanismo redistributivo foi acoplada uma novidade: a tentati-va de coordenar melhor os programas do Governo Federal num só local,com o Projeto Alvorada. A despeito da importância desta medida, háainda muita descoordenação e fragmentação no terreno das políticas soci-ais, inclusive nas ações de distribuição direta de renda.

A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temáticafederativa foi outro mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com taisações, ficou claro que o objetivo era fazer uma reforma institucional nofederalismo brasileiro, mais do que implementar políticas de governo,embora o padrão de implementação dessas medidas não seja completa-mente coerente, além de responder a pressões políticas diferenciadasdentro do Executivo Federal. Das 34 Emendas Constitucionais aprovadasde 1995 até junho de 2002, 15 delas afetavam diretamente o pacto fede-rativo. Isto ocorreu nos seguintes terrenos:

a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabiliza-ção Fiscal (FEF) e sua renovação posterior pela Desvinculação de Recei-tas da União (DRU), como também pelas mudanças nas ContribuiçõesSociais, especialmente aquelas vinculadas à criação e prorrogação daCPMF. Foi por meio das Contribuições Sociais que a União aumentou suasreceitas, sem precisar reparti-las com os outros níveis de governo. Tam-bém foram feitas modificações constitucionais que atingiram o IPTU, ga-rantindo sua progressividade, e no ISS, procurando efetuar aqui umaharmonização tributária entre os municípios;

b) na organização político-administrativa, com a aprovação da “Emen-da Jobim” (Emenda 15), que tornou mais difícil a criação de municípios,com a aprovação de novos limites de gastos dos Legislativos locais (Emenda25) e mesmo com a instituição da reeleição (Emenda 16). Pouco secomentou acerca do impacto federativo da reeleição, mas o fato é queela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um grandeimpacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, queantes passavam pela utilização dos Legislativos, sobretudo a Assembléia

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Legislativa, como trampolim para postos executivos. Como a tendência éaumentar a estabilidade dos grupos políticos que estão no Executivo,deverá haver uma maior aposta nos cargos legislativos;

c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatizaçãonas áreas do gás canalizado e das Telecomunicações, e a reformulação devários artigos referentes à Administração Pública (Emenda 19) e à Previ-dência (Emenda 20), com impacto enorme sobre a gestão governamentaldos estados e municípios. Não por acaso, todas esta medidas passarampor intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf.ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998; MELO, 2002).

d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda 14), da chama-da “PEC da Saúde” (Emenda 29) e do Fundo de Combate e Erradicação daPobreza (Emenda 31), a qual ajudou a modificar o padrão das políticas dedistribuição de renda direta à população, tal como referido anteriormen-te. É interessante notar que tais reformulações constitucionais criam obri-gações válidas não só para os próximos presidentes, mas também para osfuturos governantes de estados e municípios.

Além das alterações constitucionais, várias Leis Complementares eordinárias com impacto federativo foram aprovadas. Destacam-se a Leide Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Lei Kandir, que transformaram re-gras básicas das finanças públicas. Na verdade, esta nova legislaçãoreordenou os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando ascondições para que as relações intergovernamentais ganhem um sentidodiferente do constituído na redemocratização, especificamente no quetange à convivência mais responsável entre os níveis de governo.

A avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda decoordenação federativa do governo Fernando Henrique. O Ministério daEducação (MEC) constituiu-se no principal agente dessa mudança, crian-do sistemas avaliadores que apresentam regularmente os resultados al-cançados por esta política. O mesmo mecanismo também está sendodesenvolvido em outros ministérios e órgãos públicos, embora num está-gio ainda preliminar.

Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos deação na ordem federativa: 1) o combate à inflação e a respectiva regula-rização dos repasses, permitindo uma negociação mais estável e planeja-da com os outros entes; 2) a associação entre os objetivos da reforma doEstado, como o ajuste fiscal e a modernização administrativa, e adescentralização; 3) condicionou a transferência de recursos à participa-

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ção da sociedade na gestão local; 4) criou formas de coordenação nacio-nal das políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionaisa assumirem encargos, mediante distribuição de verbas, cumprimento demetas e medidas de punição, também normalmente vinculadas à questãofinanceira, além de utilizar instrumentos de redistribuição horizontal noFundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à popula-ção, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não seresolve apenas com ações dos governos locais, dependendo do aporteda União; 6) aprovou um conjunto enorme de leis e Emendas Constituci-onais, institucionalizando as mudanças feitas na Federação, e assim dan-do-lhes maior força em relação às pressões conjunturais; 7) estabeleceuinstrumentos de avaliação das políticas realizadas no nível descentraliza-do, especialmente na área educacional.

Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo FernandoHenrique também teve problemas gerais de funcionamento. Entre eles,estão a fragmentação de uma mesma política em vários órgãos e ministé-rios, como é o caso do Saneamento básico; a pulverização das políticasde renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a falta deuma avaliação consistente na maior parte das áreas decentralizadas; aexistência de poucos ou fracos fóruns intergovernamentais, a partir dosquais as políticas nacionais poderiam ser melhor controladas e legitima-das; a adoção de uma visão tributária perversa do ponto de vista federa-tivo, seja pela recentralização de recursos, seja pela negligência em rela-ção à harmonização tributária do ICMS; a deterioração das políticas regio-nais, levada às últimas conseqüências com o fim da Sudam e da Sudene;e o fracasso das políticas urbanas, afetando setores como Habitação, Sa-neamento, Segurança Pública e Transportes Metropolitanos.

Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de algumas políticas decoordenação federativa efetuadas nos anos FHC. O propósito não é ava-liar substantivamente tais ações; o intuito desta parte do trabalho é enten-der do papel do Governo Federal em tais questões ou setores.

1) Reforma do Estado: questões financeiras e administrativasO tema central da agenda federativa de FHC foi a questão financeiro-fiscal. Suas ações nortearam-se pelos objetivos de acabar com os meca-nismos que os governos subnacionais tinham de repassar custos à União,pela criação de condições para que os estados conseguissem ajustar suascontas, produzindo superávits - estratégia utilizada sobretudo no segundo

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mandato - e pelo programa de privatização da empresas estaduais, peloqual procuram, ao mesmo tempo, remodelar setores econômicos segun-do o modelo de Estado defendido por Brasília e obter recursos paraquitar dívida pública. Além disso, o segundo período governamental con-centrou-se, movido ainda pela ótica econômica, na questão previdenciária.Em menor medida, houve a preocupação de modernizar a gestão dasgovernadorias, em especial no período áureo do Fórum dos SecretáriosEstaduais de Administração, quando o ministro Bresser-Pereira propôsparcerias mais efetivas entre as esferas de poder.

No plano financeiro-fiscal, o Governo Federal aproveitou a enormecrise que assolou os governos estaduais e a legitimidade da “era do Real”para, primeiramente, reestruturar o sistema bancário estadual. O resulta-do final apontou para o fim das formas de repasse de custos ao BancoCentral, por meio da extinção, privatização e federalização da grandemaioria dos Bancos estaduais. Se, por um lado, este processo pôs fim aum mecanismo estrutural de produção de déficit, por outro, ele teve umpreço para os cofres da União, causado por dois fatores: pela dificuldadeem resolver a situação do Banespa, que postergou a resolução dos pro-blemas de todo o sistema, e pela necessidade de se criar um instrumentofinanceiro de transição, o Proes (Programa de Incentivo à Redução doSetor Público Estadual na Atividade Bancária), cujo custo final, em valoresde março de 2002, foi de R$ 70 bilhões (MORA, 2000). Não obstante,este modelo permitiu uma mudança crucial na lógica das relaçõesintergovernamentais.

O Governo Federal, por meio principalmente do BNDES, tambématuou fortemente no programa de privatizações dos estados. O objetivo,como dito acima, era reestruturar a ação do Estado em áreas estratégicase obter recursos para quitar dívida pública. No primeiro mandato de FHC,foram privatizadas 24 empresas estaduais e em mais 13 houve venda departicipação acionária, o que significou a obtenção de 37% dos quaseUS$ 70 bilhões movimentados por todas as privatizações e concessõesrealizadas no período, excluídas as transferências de dívidas (ABRUCIO& FERREIRA COSTA, 1998: 101). Um balanço de todo o período revelaque os estados obtiveram R 38 bilhões de reais com a venda de suasempresas (MORA, 2002: 51). Segundo Fábio Giambiagi,

“O fato é que a venda de empresas estaduais representou uma fontede ajuste primário de 0,45 do PIB entre 1995 e 1998 e de 0,3% do PIBadicionais entre 1998 e 2000. Trata-se de um benefício inequívoco, es-

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pecialmente quando se leva em conta a situação de total descalabro emque muitas dessas empresas se encontravam há alguns anos. Sem dúvidanenhuma, mesmo que em alguns casos isolados possam ter se verificadoproblemas - naturais, pois afinal de contas foram vendidas em torno deduas dezenas de empresas - pode-se dizer que o setor público ficoumenos vulnerável e que o país ficou mais eficiente do que antes desseprocesso de privatização estadual começar” (GIAMBIAGI, 2000: A-11).

O êxito financeiro e programático alcançado pelo Executivo Federalnas privatizações nos estados não respondeu a todos os problemas envol-vidos neste tema. Primeiro porque muitos estados usaram parte das recei-tas obtidas não para o pagamento de suas dívidas com a União, mas paragastos correntes. É claro que houve um ganho importante em termos deabatimento de débito, sem no entanto levar a maioria dos estados à realiza-ção de um verdadeiro ajuste estrutural das contas públicas - os que conse-guiram fazê-lo, como o Ceará, Bahia, São Paulo e Maranhão, precisaramfazer cortes e racionalização dos gastos, bem como aumentar a receita.

Mais do que isso: a política macroeconômica adotada no primeiromandato de FHC dificultou qualquer ajuste provindo apenas dos recursosde privatização. Isto porque o modelo da sobrevalorização cambial e suaaposta no financiamento por poupança externa vinculou-se a uma altataxa de juros que, ao fim e ao cabo, elevava ainda mais a dívida pública,de modo que os recursos obtidos com a venda das empresas (estaduais efederais) acabavam, em boa medida, indo “para o ralo”. Em termos estru-turais, os governadores teriam feito melhor se utilizassem a receita daprivatização para capitalização de Fundos de Pensão do funcionalismoestadual, com efeitos benéficos maiores no curto e longo prazos. Mas,naquele momento, os governos estaduais e o Governo Federal, no seupapel de coordenação federativa, não tinham idéia do impacto estruturaldos gastos previdenciários às contas públicas subnacionais.

Obviamente que as privatizações são fundamentais para diminuir redesclientelistas estabelecidas entre as empresas estatais, a classe política e asempresas privadas, constituindo-se assim num aspecto essencial para mu-dar a gramática política brasileira (NUNES, 1997). Ademais, sem as empre-sas estatais, os estados tendem a não fazer determinados gastos que levari-am ao aumento de seu déficit. Colocados estes aspectos positivos à mesa,deve-se ter cuidado para não transformar o programa de privatizações emuma ação a partir da qual o Estado sai dessas esferas econômicas.

E aqui encontra-se o maior problema do programa de privatizações

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dos estados sob a coordenação federativa da União: não se propôs, nagrande maioria dos casos, um modelo regulatório consistente para o diaseguinte da reforma do Estado. Do mesmo modo que o BNDES prestouadequada assessoria financeira para a venda das empresas estaduais,também seria necessária a ajuda na criação de agências regulatórias -montadas depois em alguns estados, e com perfis bastantes diferenciadosem termos de funções e qualificação22. Porém, neste aspecto, pesou maiso lado da primeira onda de reformas voltadas para o mercado, do que oaspecto essencial da segunda rodada de reformas, de criação de novasinstituições estatais voltadas à regulação econômica (BANCO MUNDIAL,1997). O interessante é notar que, mesmo no Governo Federal, a consti-tuição de um marco regulatório obedeceu mais às peculiaridades políti-cas de cada setor do que a um plano geral de ação.

A renegociação das dívidas dos estados, por meio da Lei 9.496/97, foium passo importante para disciplinar as relações federativas, rompendocom o antigo modelo predatório. Em primeiro lugar, o acordo contem-plou quase a totalidade das unidades estaduais, evitando-se assim a exis-tência de free riders. No total, ela refinanciou um montante de R$ 132bilhões. Segundo, embora os estados reclamem hoje da porcentagem dareceita líquida que têm de disponibilizar, o fato é que receberam umgrande subsídio da União, a partir do qual houve uma redução substanti-va das taxas de juros que vinham pagando antes. Este novo contrato,ademais, é bem diferente dos efetuados ao longo da redemocratização,particularmente pela sua capacidade de fazer com que seja de fato cum-prido, incluindo a retenção de transferências federais - o único estadoque tentou burlar esta regra, Minas Gerais (na gestão de Itamar Franco),teve verbas bloqueadas e logo a seguir regularizou seu pagamento. Oúltimo aspecto relevante dessa nova legislação diz respeito às medidasde ajuste fiscal que ela estabeleceu no compromisso que foi firmadoentre as partes da Federação, pontuando uma série de questões quedeveriam pautar as preocupações fiscais e financeiras das governadorias23.

Para equacionar o problema do déficit público e cumprir o contrato de

23 Conforme mostra o trabalho de Mônica Mora (2002: 22), as questões que os estados deveriam

equacionar para cumprir o contrato de refinanciamento seriam as seguintes: a) dívida em relação àreceita líquida real (RLR); b) resultado primário; c) despesas com funcionalismo público; d) arreca-dação de receitas próprias e) privatização, permissão ou concessão de serviços públicos; f) reformaadministrativa e patrimonial; g) despesas de investimento em relação à RLR22

Sobre as Agências Regulatórias estaduais, ver o capítulo escrito por Marcus Melo para este livro.

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refinanciamento, três questões estruturais precisam ser resolvidas. A pri-meira se refere às despesas com pessoal. No início de 1995, constatou-seum elevado gasto com pessoal nos estados. À época, das 27 unidadesestaduais (contando o Distrito Federal), apenas 6 despendiam menos de60% da receita líquida com o funcionalismo, sendo que em três delas(Roraima, Amapá e Tocantins) a maior parte dos servidores ainda erapaga pela união, já que a sua condição de estado é bastante recente. Acontinuidade deste problema dificultaria a resolução dos déficits financei-ros da Federação.

Por isso, o Governo federal resolver atuar nesta questão, basicamentede duas maneiras. A primeira, de caráter estrutural e de mais longoprazo, por intermédio da Reforma Administrativa; e a segunda, vinculadaa ações mais imediatas. O auxílio em algumas áreas técnicas foi impor-tante para melhorar o gerenciamento das folha de pagamento. No entan-to, a medida de maior impacto inicial foram os Planos de DemissãoVoluntária (PDVs). Com financiamento da Caixa Econômica Federal, osPDVs resultaram na demissão de 100 mil funcionários públicos estaduais,mas tiveram pequeno impacto na redução de custos, de apenas 4,5% doque se gastava com pessoal ativo - os estados com maior contingente deservidores, ademais, foram os menos afetados (BELTRÃO, ABRUCIO &LOUREIRO, 1998).

Foram constatados dois grandes problemas na aplicação dos PDVs. Oprimeiro é que os servidores que aderiam a estes programas de dispen-sas normalmente tinham uma melhor qualificação profissional, ficando oscom menor capacidade gerencial. Além disso, em muitos estados nãohavia um mapa preciso do perfil do funcionalismo e, desse modo, não sesabia exatamente quais eram os gargalos burocráticos. No entanto, faltouaqui uma ação mais coordenada entre o Governo Federal e as Adminis-trações subnacionais, ao estilo dos Planos Nacionais de Reforma, realiza-dos nos EUA ao longo do século XX. Isto porque, em razão da maiorfragilidade das burocracias estaduais, a União teria um papel coordena-dor para resolver esta “falha seqüencial”.

A falta de uma coordenação federativa levou a um diagnóstico equivo-cado quanto aos gastos com pessoal. O governo FHC insistiu, por boaparte do primeiro mandato, em um argumento: a resolução do problemase daria com a permissão de dispensa de funcionários quando um nívelde governo gastasse mais do que 60% da receita líquida com folha depagamento. Foi esta visão que guiou a ação do Governo federal, embora

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o próprio ministro da Administração, Bresser-Pereira, dissesse, com ra-zão, que a dispensa por insuficiência de desempenho fosse mais impor-tante estruturalmente para a reforma do Estado, em contraposição à visãoda equipe econômica, enfim vencedora no jogo político.

Há, no entanto, dois problemas neste diagnóstico. O primeiro delesfoi depositar a responsabilidade toda na conta dos Executivos estaduais.Ao não discriminar os gastos entre os Poderes, a então Lei Camata colo-cou para o governador uma tarefa que em parte ele não pode atuar. Istoporque cresciam, cada vez mais, os gastos com pessoal do Legislativo e,sobretudo, do Judiciário. Mas o maior erro foi outro: não perceber que omaior problema do excesso de gastos com pessoal provinha do paga-mento de inativos. Novamente, isto não foi detectado porque faltava umaburocracia competente nos estados e uma ação coordenadora do Gover-no Federal para corrigir esta “falha seqüencial” da descentralização. So-mente no final de 1997 é que os governos estaduais e a União se deramconta da magnitude deste problema. Não só os gastos eram altos comoacelerava o crescimento dessa conta. Na tabela abaixo, relacionamos adespesa com inativos dos estados no ano 1998.

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Além de demorarem a detectar este problema, os governos estaduaise o Governo Federal não constituíram a resposta adequada a ele, queseria a constituição de Fundos Previdenciários. A dificuldade maior esta-ria na capitalização de tais Fundos, o que poderia ter sido feito com osrecursos da privatização. Poucos estados trilharam este caminho - a exce-ção digna de nota é a Bahia. Sem este instrumento, a maioria se viuobrigada a aumentar o valor das contribuições dos ativos e, em algunscasos, cobrar também dos inativos. Não há problema neste caminho, sóque ele pode ser insuficiente.

Mesmo tendo adquirido poder no pêndulo federativo no primeiro man-dato, a União não se preparou adequadamente para atuar como agentecoordenador no plano intergovernamental. Deveria haver orientação ecapacitação da burocracia federal para recolher informações dos gover-nos subnacionais ou então, numa via mais pertinente com o federalismo,precisaria auxiliar os estados e municípios na criação de capacidadesinstitucionais. Em vez disso, o primeiro governo FHC procurou “vender”uma receita de reforma do Estado sem estabelecer uma rede entre asburocracias de ambas as esferas de poder.

Houve neste caso um grande avanço no segundo mandato. O Ministé-rio da Previdência e Assistência Social assumiu uma importante funçãocoordenadora e atuou decisivamente na assessoria e indução dos estadose municípios. O resultado é que mais e mais governos subnacionais estãoconstituindo Fundos Previdenciários, com cálculos atuariais mais preci-sos, só que a tarefa teria sido mais fácil, repito, se o dinheiro da privatizaçãofosse usado na capitalização deste sistemas. O aprendizado federativotambém foi constatado na definição de gastos com pessoal e nos instru-mentos de controle com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fis-cal (LRF), em maio de 2000.

Como tal assunto é tratado em outro capítulo deste volume24, faço

24 Ver capítulo 8, escrito por Maria Rita Loureiro e Fernando Luiz Abrucio.

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quatro comentários breves. O primeiro é que a LRF definiu melhor osmecanismos de restrição orçamentária, responsabilizando mais claramen-te todos os Poderes. Adicionalmente, suas regras estabeleceram instru-mentos de enforcement mais efetivos, que dificultam uma postura contrá-ria à nova regulamentação, por conta das penalidades. E, ainda, o Gover-no Federal exerceu um papel coordenador ativo por intermédio do BNDES,que assessorou governos locais, disseminou as noções básicas da LRF portodo o país e deu incentivos para a modernização da máquina adminis-trativa dos governos subnacionais, com vistas a cumprir os requisitosfiscais básicos. Talvez esta tenha sido uma das experiências mais bemsucedidas de coordenação federativa nos anos FHC. Falta, no entanto, acriação de um fórum de discussão entre os vários níveis de governo, talcomo estabelecido no artigo 67 da LRF, que estipula a instituição de umConselho de Gestão Fiscal. O governo FHC não se mobilizou politica-mente para regulamentar tal Conselho, causando prejuízo para a demo-cratização da Federação. No fundo, prevalece aqui a visão da equipeeconômica, que supõe, seguindo certas versões do federalismo fiscal,que deve haver uma hierarquização entre os entes governamentais, como Governo Federal - que neste caso poderia se chamar Governo Central -comandando linearmente as finanças públicas. Nada mais distante dasoberania compartilhada que marca o federalismo.

A segunda questão estrutural diz respeito às ações em prol da reformaadministrativa estadual. A melhor atuação conjunta foi a modernizaçãodas receitas estaduais. Desta vez, o ângulo financeiro esteve alicerçadoem reformas institucionais, dando um fôlego maior ao ajuste fiscal, pois éo aprimoramento da burocracia que sedimenta transformações profundas.Não por acaso os estados que tiveram maior êxito foram os que realiza-ram as maiores transformações no modus operandi da administração pú-blica, como no Estado de São Paulo, por meio dos instrumentos de gover-no eletrônico, de racionalização da máquina e de gestão voltada ao aten-dimento do cidadão.

O maior problema neste quesito foi a descontinuidade da políticarealizada junto ao Fórum dos Secretários Estaduais de Administração,conduzida pelo então Ministério da Reforma do Estado (Mare). No pri-meiro mandato, o ministro Bresser-Pereira conseguiu levar toda a discus-são da reforma do Estado, com conceitos vinculados à economia, à efici-ência, à efetividade e à democratização dos serviços públicos para oplano subnacional. Experiências bem sucedidas e problemas de difícil

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solução eram compartilhados, estabelecendo aí um tipo de associativismointergovernamental. O resultado recorrente foi o aperfeiçoamento da es-trutura de informação dos governos estaduais, e num menor número decasos, ocorreu a implantação de políticas públicas extremamente inova-doras. Infelizmente, no segundo período ocorreu um refluxo enormedessa atividade, com o Governo Federal abandonando um importantepapel de coordenação federativa.

Em termos estruturais, por fim, a melhora das condições fiscais delongo prazo tem a ver com duas outras variáveis: a realização de refor-mas institucionais e a construção de um novo modelo de desenvolvimen-to. No primeiro aspecto, é importante que sejam realizadas mudanças norelacionamento entre a sociedade e o Estado e das instituições políticassubnacionais, especialmente do Tribunal de Contas e do Judiciário, paraaumentar a accountability democrática. Além disso, a burocracia dos ní-veis subnacionais precisa ser continuamente aperfeiçoada.

A construção de um novo modelo de desenvolvimento que melhore asituação dos estados depende basicamente de ações nacionais. Por umlado, é preciso atacar as desigualdades regionais, que impedem a obtençãode resultados satisfatórios em várias partes do país. Por outro, a guerrafiscal não pode mais continuar, pois ela cria déficits futuros aos governosestaduais e, efetivamente, não resolve o problema do desenvolvimento; aoinvés disso, acirra o conflito horizontal entre as unidades federativas.

Os governos estaduais têm obtido resultados fiscais positivos seguidosdesde 1999 e a LRF vem sendo um instrumento importante para pressioná-los nesta direção. E mais: dos 4,13% do PIB de superávit primário obtidosaté outubro de 2002, 1% ou um quarto deste esforço advém das unidadessubnacionais. Antes que se dê a questão por resolvida, é bom lembrar otamanho do rombo: em dezembro de 2002, a dívida dos estados alcançoua cifra de R$ 250 bilhões25. O que se conseguiu até agora foi às custas deuma redução brutal dos investimentos, afora vários estados estarem, no-vamente, caminhando para uma crise financeira. De modo que a resolu-ção federativa desta questão passa sim pela continuidade da trilha abertapela Lei de Responsabilidade Fiscal, com a ativação de um fórum federa-tivo que a gerencie mais democraticamente, mas também depende dereformas estruturais - criação ou fortalecimento dos Fundos Previdenciários,

25 Dados retirados de artigo de Ricardo Amaral, intitulado “O novo perfil fiscal dos governadores”.

Valor Econômico, 10/12/2002, página A7.

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modernização das burocracia estaduais, democratização das instituiçõespolíticas subnacionais e novo modelo de desenvolvimento - para as quaiso fiscalismo reinante nos anos FHC deu pouca atenção.

2) Coordenação Federativa na Área Social: alguns exemplosA área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeadano espaço deste capítulo. Por esta razão, escolhemos três de suas políticas,analisando como se deu a relação entre descentralização e coordenaçãofederativa, sem fazer uma avaliação substantiva dos resultados alcançados.

A Saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaqueno quadro federativo desde a Constituição de 1988. O modelo dedescentralização proposto fora construído por muitos anos de lutas contraa centralização dos programas e da gestão dos recursos, com destaquepara a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que constitu-íram, junto com lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que algunsdenominam de “Partido da Saúde” - ao qual hoje se somam a burocraciasetorial e diversos políticos, muitos com origem na área. Na década de80, o debate se acirrou, obrigando a mudanças paulatinas da postura doMinistério da Saúde e na própria legislação, cujo marco foi a criação doSUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, em 1987), “princi-pal instrumento de descentralização operacional, administrativa e finan-ceira dos programas de saúde entre 1987 e 1989” (MEDICI, 1996: 306).

O SUDS tinha como objetivo a descentralização de recursos físicos,humanos e financeiros da máquina previdenciária para os estados, a fimde racionalizar a gestão e o uso dos recursos, e a reestruturação dosórgãos federais responsáveis pela gestão de serviços de saúde, que de-veriam passar a se concentrar no planejamento, na coordenação, no con-trole e na avaliação das ações de toda a rede. No entanto, também oSUDS não demonstrou ser uma política eficaz no processo dedescentralização - cuja conclusão dependia da transferência dos serviçosde saúde para os municípios. Os gestores estaduais, que saíram fortaleci-dos pelo repasse dos recursos e poder, comandaram o processodescentralizador segundo uma lógica baseada em interesses político-clientelistas (ABRUCIO & COSTA, 1999).

A reforma deste setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e oestabelecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicossão a universalidade, a integralidade e a igualdade de assistência garanti-das a todos os brasileiros; preconizava ainda a descentralização da gestão

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do sistema e a participação da comunidade. As Leis Orgânicas da Saúde8080 e 8142, por sua vez, foram os instrumentos legais mais importantespara o avanço desse processo descentralizador, uma vez que regulamen-tavam o SUS26. Destaca-se, ainda, a criação de vários mecanismoscolegiados de gestão, envolvendo todos os níveis de governo, que têmuma efetividade grande comparada à presente nas outras políticas públi-cas. Ademais, seu sentido era fortemente municipalista.

Na década de 90, surgiram também as NOBs (Normas OperativasBásicas), as quais representaram um esforço de racionalização dos repas-ses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios, além da criaçãode instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Elastentavam definir, com a maior clareza possível, os custos e benefíciosresultantes do cumprimentos ou não das regras e critérios de repasse derecursos (principalmente no que se refere às condições necessárias esuficientes ao repasse de recursos financeiros entre União, estados emunicípios), prestação de contas e acompanhamentos das ações de saú-de (ABRUCIO & COSTA, 1999). Três foram as NOBs elaboradas nosanos ’90: a 91, a 93 e a 96.

A palavra-chave do modelo instaurado pela NOB-96 é aresponsabilização de cada instância de governo. O desempenho dos pa-péis que cabem aos gestores concretiza-se mediante um conjunto deresponsabilidades bem detalhadas na NOB-96. A NOB-96 define comoimprescindível a cooperação técnica e financeira dos poderes públicosestadual e federal, com responsabilidade conjunta na gestão do SUS. Seuobjetivo principal é “promover e consolidar o pleno exercício, por partedo poder público municipal e do Distrito Federal, da função de gestor daatenção à saúde dos seus munícipes” (MS, 1996; apud ABRUCIO, 2000).O sistema municipal de saúde - SUS-municipal - é concebido como umsubsistema do SUS e composto pelo conjunto de estabelecimentos, orga-nizados em rede regionalizada e hierarquizada.

A NOB 96 estabelece que os gestores federal e estadual são os pro-motores da harmonização, modernização e integração do SUS. Essa tarefaacontece, especialmente, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), noâmbito estadual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no âmbito

26 A primeira regula os princípios constitucionais correspondentes à saúde; a segunda vincula

descentralização à municipalização e dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUSe sobre as transferências intergovernamentais.

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nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas não criaincentivos financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999). A NOB-96 também simplifica o processo de responsabilização pela política, re-duzindo a duas as categorias de gestão municipal e estadual: gestãoplena da atenção básica e gestão plena do sistema municipal. Os estados,por sua vez, podem habilitar-se às condições avançada do sistema esta-dual e plena do sistema estadual (MS, 1996).

A quase totalidade dos municípios brasileiros encontra-se habilitadasegundo uma das condições de gestão definidas na NOB 96. Entretanto,conforme afirmam Costa, Silva & Ribeiro (1999:46) em avaliação recentedo processo de descentralização do sistema de saúde no Brasil, “ao con-trário do que se tem verificado para os municípios, ainda é pouco signifi-cativa a adesão dos estados ao novo papel que lhes foi reservado noSUS”. Segundo os autores, o processo de habilitação dos estados é retardatá-rio e desigual devido às “dificuldades dos estados em definirem um papelclaro na estrutura do sistema público de saúde brasileiro, dominada ainda, nadécada de 90, pelas demandas e orientações localistas” (idem:. 48).

Foi neste contexto de maior consistência da descentralização que ogoverno FHC estabeleceu suas políticas de Saúde. Os problemas iniciaisestavam vinculados mais à regularidade dos repasses e à garantia defonte seguras e permanentes de recursos. Com a resolução destes, apartir do fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos “carimba-dos” à Saúde, a descentralização se aprofundou ainda mais. Dados de SolGarson e Érica Araújo (2001) demonstram o impacto da ação federalnesta política. Entre 1995 e 1999, sem contabilizar as transferências, osgastos dos níveis de governo eram de 58% para a União, 16% para osestados e 26% aos municípios; após contabilizarmos as transferências, ascifras mudam substancialmente: 23% para a União, 25% para os estados e52% aos municípios. Além disso, segundo dados de dezembro de 2001,99% dos municípios estavam habilitados a uma das condições de gestão,sendo 89% em gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão Plenado Sistema Municipal (MELO, 2002: 4).

Para o que importa a este trabalho, a descentralização esteve presenteem quatro questões. A primeiro se refere ao fortalecimento dos Conse-lhos. Apesar de ser bastante representativo, muitos criticam tanto seucaráter corporativo como sua “governamentalização”, isto é, a força dosrepresentantes de governos em detrimento dos usuários, especialmentetendo em conta os problemas de organização nos municípios menores,

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mais pobres e/ou com baixo capital social. A discussão permanece e,quanto mais a intervenção na Saúde aproximar-se dos cidadãos, a tendên-cia é a contínua democratização e o debate sobre melhoras formas deaccountability. Os anos FHC permaneceram nesta trilha aberta pela Cons-tituição de 1988, apostando aqui acertadamente no incrementalismo.

Outro aspecto importante diz respeito ao fortalecimento das ativida-des intrinsecamente nacionais. A primeira delas é a organização adminis-trativa do Ministério da Saúde, que se reforçou com a melhoria dos siste-mas de informação, em especial o DATASUS. Houve também uma reor-ganização administrativa, com aperfeiçoamento de pessoal e constituiçãode duas Agências Reguladoras essenciais: a Agência Nacional de Vigilân-cia Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).Cabe reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à ca-pacidade burocrática do Governo Federal.

A política de Saúde do governo FHC adotou iniciativas para reforçar asfunções redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões maispobres e menos populosas (RIBEIRO & COSTA, 1999). A principal medi-da neste sentido foi a criação, em dezembro de 1997, do Piso de AtençãoBásica (PAB). Ao mesmo tempo em que procura reduzir as desigualdadesde recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização,pois somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos.

O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeiradestina-se à atenção básica da saúde e garante a transferência automática,fundo a fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/ano para todos osmunicípios brasileiros. A idéia é reduzir as desigualdades existentes entreas municipalidades, uma vez que aquelas com maior “capacidade produti-va” tendiam a receber mais recursos, ao passo que as pequenas, com redeincipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde, pouco recebiam. A partevariável do PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nosanos FHC. Sua distribuição de recursos só ocorre se os governos locaisaderirem aos programas nacionais definidos como prioritários. Além disso,para receber tais recursos é preciso passar por todo o sistema de Conse-lhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos.

São seis os programas nacionais incluídos no PAB variável: Saúde daFamília/Agentes Comunitários de Saúde, Saúde Bucal, Assistência Finan-ceira Básica, Combate às Carências Nutricionais, Combate a Endemias eVigilância Sanitária. A característica básica destas políticas é a ênfase naprevenção e não na cura, lema histórico do movimento sanitarista O

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município pode aderir a quantos quiser, e recebe os recursos de acordocom o estipulado em cada programa. Tais ações governamentais, ade-mais, envolvem capacitação dos gestores locais e a avaliação dos resulta-dos, seja pelo sistema federal, seja pelo controle social ligado aos meca-nismos de accountability intrínsecos ao SUS. Os resultados têm sido bas-tante satisfatórios no que se refere à adesão e, consequentemente, aonúmero de pessoas atingidas. No caso do Programa de Agentes Comuni-tários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30% napopulação coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002: 517).

A quarta medida foi a aprovação da chamada “PEC da Saúde” (EmendaConstitucional 29), que determinou a elevação gradativa da porcentagemde recursos destinados a esta área nos três níveis de governo. Com isso, oproblema que o governo Fernando Henrique encontrou no início do seuprimeiro mandato de instabilidade nos gastos com Saúde foi, em boamedida, resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação, pois ele“engessa” mais o Orçamento e os próprios governantes, que devemsubordinar sua agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos constitucio-nais. Talvez tivéssemos de combinar melhor as regras intertemporais queorientam a ação dos entes federativos com mecanismos de negociaçãocontínua de metas e resultados - e neste sentido, o Fundef está maisadequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez que temmetas e prazo para se esgotar, ao mesmo tempo que ultrapassa o períodode mais de um governante.

Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à Saú-de. A coordenação intergovernamental, a despeito da força integradorado SUS e do “Partido da Saúde”, vez ou outra revela sua fragilidade,como ficou bem claro no episódio da dengue, em que a briga dosgovernantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual oufederal. A maior lacuna desse sistema é a indefinição do papel das unida-des estaduais. Neste tópico, o Governo Federal precisa criar formas deindução à participação e à cooperação da mesma maneira que o PAB ofez em relação aos municípios.

O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de con-sórcios entre os municípios, como forma de melhorar a prestação doserviço segundo problemas que são regionais e/ou porque a maioria dosgovernos locais não tem condições de resolver todos os seus problemasnesta área. Documento do Ministério, de 1997, assim defende o modelodos consórcios:

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“A implantação e a operacionalização de serviços de saúde que con-templem integralmente as demandas de uma população representam,para a maioria dos municípios, encargos superiores à sua capacidadefinanceira. A manutenção de um hospital, por mais básico que seja, re-quer equipamentos, um quadro permanente de profissionais e despesasde custeio que significam gastar, anualmente, o que foi investido naconstrução e em equipamentos. A necessidade de melhoria na infra-estrutura, a contratação de recursos humanos especializados e a aquisiçãode equipamentos, para oferecer serviços de saúde em todos os níveis deatenção implicam montante significativo de recursos que, quase sempre,não chegam a ser plenamente utilizados por apenas um município, ge-rando aumento de custos operacionais e impossibilitando, por outro lado,o investimento em ações básicas de promoção e proteção. Assim, a pres-tação de serviços de forma regionalizada pelos consórcios evita a sobre-carga do município na construção de novas unidades, na aquisição deequipamentos de custos elevados e na contratação de recursos humanosespecializados” (ABRUCIO, 2000).

O fato é que a Saúde é uma das áreas com maior número de consórci-os. Em 2000, havia 141 consórcios de saúde, em 13 estados, 1.168 muni-cípios e abrangendo uma população de 25.362.735 habitantes, segundoestudo da Organização Pan-americana de Saúde e do Ministério da Saúde.Trata-se de um dado impressionante comparado ao que acontece nasoutras políticas públicas Porém, os mesmos números mostravam que nobloco das municipalidades que têm entre 10 mil a 20 mil pessoas aporcentagem de consórcios era de 23,5%, enquanto no estrato que vai de20 mil a 50 mi, o contingente atingido era de 12,4 %. Além do mais,nenhuma capital tinha consórcio, o que é um absurdo sabendo que asRegiões Metropolitanas sofrem freqüentemente do problema do “carona”- habitantes da cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais enão pagam nada por isso.

Este retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de induçãoà criação dos consórcios, na mesma linha do PAB. Só que neste caso háum problema estrutural, revelado anteriormente: o federalismocompartimentalizado, o municipalismo autárquico e a fragilidade jurídicadeste instrumento dificultam a adesão à essa união intermunicipal.

Na área de educação, duas políticas se destacaram nos anos FHCcomo formas de coordenação federativa. A primeira é a criação de umsistema amplo de avaliação dos Ensinos Fundamental e Médio. Como tais

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políticas estão majoritariamente nas mãos dos governos subnacionais, ca-bendo à União papel suplementar, uma maneira de garantir a qualidadenacional é avaliar os resultados obtidos e, a partir disso, propor medidasque possam minorar os problemas. A questão da evasão escolar, porexemplo foi bem resolvida graças à articulação federativa entre os níveisde governo, baseada na conjunção entre avaliação e propostas de solu-ção - no caso, envolvendo capacitação e recursos orçamentários.

A política impulsionada pelo governo Fernando Henrique que mais seaproximou de um modelo de coordenação federativa foi o Fundo deManutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizaçãodo Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso Nacional em 1997, oFundef obriga os governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes dareceita de impostos e transferências na educação, sendo que não menosde 60% deverão ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua implantação,em nível nacional, iniciou-se em 1o de janeiro de 1998.

Dos recursos do Fundef, pelo menos 60% devem ser aplicados naremuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício desuas atividades no Ensino Fundamental público - incluem-se aqui profes-sores (inclusive os leigos) e os profissionais que exercem atividades desuporte pedagógico, tais como direção, administração, planejamento, ins-peção, supervisão e orientação educacional. Ademais, são colocadas me-tas que balizam a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar queos estados, o Distrito Federal e os municípios devem dispor de um novoPlano de Carreira e Remuneração do Magistério, que regulamente ascondições e o processo de movimentação na carreira, estabelecendo aevolução funcional (por categorias, níveis, classes), adicionais, incentivose gratificações devidos, além dos correspondentes critérios e escalas deevolução de remuneração.

O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculadosna respectiva rede de ensino. Com isso, a distribuição de recursos obede-ce a um critério mais justo, vinculado à real assunção de encargos. Ocor-re aqui uma melhor adequação entre transferências e atribuições, algofundamental numa Federação, especialmente a nossa, em que a desigual-dade e a politização dos critérios foram regularmente empecilhos àefetividade das políticas.

O objetivo do Governo Federal com o Fundef foi corrigir a má distri-buição de recursos entre as diversas Regiões e dentro dos próprios esta-dos, diminuindo as desigualdades presentes na rede pública de ensino.

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Trata-se neste sentido de uma política vertical e horizontal de redistribuiçãode recursos, o que a faz única no federalismo brasileiro.

Para assegurar o seu cumprimento, a lei exige a criação dos Conselhosde Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em cadaesfera de governo, que têm por atribuição acompanhar e controlar arepartição, a transferência e a aplicação dos recursos do Fundo. O Conse-lho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundef deve sercomposto de, pelo menos, quatro membros, representando a SecretariaMunicipal de Educação ou órgão equivalente; dos professores e diretoresdas escolas públicas de ensino fundamental; dos pais de alunos; e dosservidores das escolas públicas de ensino fundamental. No caso do muni-cípio contar com o Conselho Municipal de Educação, representantes des-te órgão também deverão fazer parte do Conselho Municipal de Acompa-nhamento e Controle Social do Fundef.

Em comparação à Saúde, na qual o papel do Governo Federal semprefoi muito forte, a ação da União na Educação foi prejudicada pela formaconfusa e movediça de distribuição de responsabilidades e competênciasneste setor. De acordo com um dos responsáveis pela reforma da educa-ção fundamental no Estado de Minas Gerais:

“No caso da educação básica, temos uma torre de Babel protegida sobo conceito politicamente conveniente de “regime de colaboração”. Se-gundo esse conceito, as três instâncias podem operar (ou não) redes deensino; podem financiar (ou não) a educação; e podem escolher ondedesejam (ou não desejam) atuar. Resultado: não existe uma instância dopoder público que seja responsável (e responsabilizável) pela oferta (ounão) de ensino fundamental. Cada instância faz o que pode e o que quer,supostamente em regime de colaboração.” (OLIVEIRA, 1998).

Nesta “torre de Babel”, o Governo Federal cumpria as tarefas maisvariadas, em todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionara contento seus esforços para o Ensino Fundamental. Desse modo, seucomprometimento era mais voluntarista ou discricionário do que fruto deum plano ou sistemática de cooperação federativa na área educacional.Isto apesar da Constituição definir expressamente a missão da União: estadeve promover prioritariamente a universalização e a eqüidade no ensi-no público, incentivando, financiando e fornecendo assistência técnica aestados e municípios. O Fundef conseguiu reorganizar com sucesso aação federal.

Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de

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alunos matriculados como da municipalização do Ensino Fundamental,tarefas que não avançavam satisfatoriamente no período anterior. Em1996, antes da implantação do Fundo, 63% das matrículas estavam narede estadual, enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano de-pois de iniciado este programa, já houve uma reversão significativa: 51%dos alunos pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal. Outrodado revelador da mudança: em 1998 os governos municipais detinham38,2% das verbas do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2% (GARSON& ARAÚJO, 2001: 2-3).

Em resumo, o Fundef foi bem sucedido no que se refere à questãofederativa por ter melhorado a redistribuição de recursos (em termosverticais e horizontais), aumentado a esperança por simetria entre osníveis de governo, além de impulsionar uma municipalização mais pla-nejada e a colaboração intergovernamental. Contudo, existem três dile-mas federativos não equacionados. O primeiro é o da fragilidade docontrole, perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de corrupçãoem vários estados. Para tanto, é necessário estabelecer formas articuladasde fiscalização institucional entre o TCU, os Tribunais de Contas do planosubnacional, o Conselho vinculado à política e o Poder Legislativo.

A falta de interligação entre o Fundef e o sistema de mais geral deavaliação escolar, o SAEB, constitui outro problema federativo, uma vezque, sem uma comunicação adequada entre estes programas, fica maisdifícil para União planejar e supervisionar a implementação descentrali-zada do Ensino Fundamental. O Fundef, por fim, não foi montado sob umaparato institucional capaz de discutir e revisar sua implantação tal qualhá na área de Saúde, onde a rede federativa é mais forte e legitimadora.Em termos democráticos, é essa rede que permite a continuidade e asalterações da política ao longo do tempo.

Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacam-se duasações na área de Assistência Social com impactos federativos importan-tes. A Comunidade Solidária constituiu-se numa experiência inovadora noque se refere à articulação com a sociedade local. Criou uma novo mode-lo de parceria junto à comunidade, às empresas, aos governos locais e aoTerceiro Setor. Programas como o Universidade Solidária e o Alfabetiza-ção Solidária, o estabelecimento de redes de voluntários, entre outros,aprofundaram uma característica já prevista na Constituição de 1988 eimplantada pelos governos municipais mais progressistas do país, qualseja, a execução de políticas com participação ativa da população. Esta

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concepção visa a atacar o clientelismo local e, embora não acabe comele, torna-se uma educação para a cidadania.

A distribuição direta de renda à população foi outro movimento cen-tral desta área. Iniciado com o PETI (Programa de Erradicação do Traba-lho Infantil), passando pelo mal definido Programa de renda Mínima atéchegar ao Bolsa Escola, o governo FHC gastou sete anos de seu mandatopara construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na verdade,ao longo deste aprendizado, percebeu-se - conscientemente ou não -que problemas redistributivos numa Federação, como já apontaram PaulPeterson (1995) e Paul Pierson (1995), só podem ser resolvidos com aintervenção ativa de políticas nacionais. A maior novidade em termossubstantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a certos objeti-vos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasãoescolar, o que, por sua vez, derivou da transferência de experiênciassubnacionais ao Governo Federal. Aconteceu aqui uma das qualidades domodelo competitivo de federalismo: a noção de governos rivais comouma forma incentivadora da inovação.

A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprova-ção do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e o percentual demunicípios atingidos é impressionante: 99,7%. Além disso, a partir de2001, esta distribuição de renda direta à população foi coordenada me-lhor pelo Projeto Alvorada, o qual também estabeleceu uma focalizaçãomelhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo deutilização do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios.O Programa Bolsa Escola federal, ademais, estabeleceu mecanismos inte-ressantes para direcionar melhor o processo de descentralização. Segun-do Elaine Lício (2002), foram três estes mecanismos:

“a) A suspensão dos repasses do FPM no caso de cadastramento frau-dulento por parte do município;

b) a institucionalização do controle social via obrigatoriedade de umConselho Municipal, já existente ou criado para este fim, composto porpelo menos 50% de representantes da sociedade civil, cuja atribuição éacompanhar a implementação do programa;

c) a vinculação do recebimento do cadastramento das famílias pelo MECà sua respectiva aprovação pelo Conselho Municipal” (LÍCIO, 2002: 122).

Apesar da melhora na coordenação e focalização dessas políticas aofinal de seu período governamental, paradoxalmente o presidente FernandoHenrique também permitiu a proliferação de “Bolsas” ou “Vales” por

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vários Ministérios, de modo que mais programas dividiram o bolo, muitasvezes com ausência de comunicação entre eles, o que pode levar aodesperdício e à dificuldade de se avaliar os resultados. É preciso ressaltarque já há fragmentação demais nas políticas sociais, fato que cria compe-tições predatórias na implementação e na coordenação do Governo Fe-deral.

3) Retumbantes Fracassos: as políticas urbanas e de desenvolvimentoVárias ações do governo Fernando Henrique poderiam ser criticadas sobo prisma federativo, mas duas delas precisam ser comentadas por contado enorme impacto que têm. A primeira diz respeito às políticas dedesenvolvimento, analisadas pelo viés do federalismo. Por esta via, umadas áreas mais problemáticas é a do ataque às disparidades regionais.Decerto que alguns avanços foram feitos aqui, como as reformas da infra-estrutura voltada ao turismo no Nordeste - particularmente nos aeroportos-, as ações de reformas agrária nas localidades mais pobres, a distribuiçãodos recursos da previdência rural, que beneficiam fortemente a popula-ção idosa do interior nordestino e, sobretudo, as ações do Avança Brasil,particularmente no Norte e Centro Oeste. Todavia, a estrutura institucionalfederal montada para tratar desse problemas foi bastante débil. O Minis-tério da Integração Regional constituiu-se, apenas, num lugar para ofisiologismo político da pior espécie, afora ter tido uma grande instabili-dade no seu comando, com trocas freqüentes, muitas delas derivadas dealgum escândalo.

Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimentoregional, a Sudam e a Sudene. O presidente Fernando Henrique Cardosopoderá dizer que foi ele quem desvelou toda uma estrutura profunda,construída por décadas, de corrupção. É óbvio que esta obra deve sercreditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensaparticipação da imprensa e das instituições de controle, em particularaqui o Ministério Público Federal. Mas o fato cabal é que o governo FHCnão teve um projeto claro de desenvolvimento regional. Ao contrário,desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmentou políticaspara esta área e não propôs uma alternativa ao modelo anterior. Faltouum planejamento estratégico para os lugares menos desenvolvidas dopaís, que foram atingidos positivamente pelas macropolíticas sociais nossetores previdenciário, educacional, de saúde e assistência social e pormedidas ad hoc, porém não se discutiu e nem foram tomadas medidas

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para reposicionar as Regiões Nordeste e Norte, em especial, no campodo desenvolvimento econômico.

Em poucas palavras, as políticas sociais dos anos FHC reduziram desi-gualdades, mas não houve a construção de instrumentos para alavancar odesenvolvimento regional, tornando tais Regiões dependentes dos recur-sos federais sem que se tenha uma perspectiva de melhora endógenadesses lugares. Cabe relembrar que o federalismo depende, para seubom funcionamento, de medidas que aumentem a esperança quanto àsimetria entre os entes. Ações nacionais redistributivas são bem vindas,só que conjuntamente e com maior prioridade de longo prazo deve-seestabelecer um planejamento estratégico e se construir instituições capa-zes de mudar o perfil da economia local. Para isso, é preciso repensar aSudam e a Sudene, e não extingui-las, além de definir o que estas Regi-ões podem fazer para nutrir seu próprio desenvolvimento.

Os anos FHC não tiveram uma estratégia de desenvolvimento nacionalque, especificamente, organizasse a dinâmica federativa. Isto é, não cons-tituíram formas mais pactuadas de relacionamento econômico entre osestados, as partir das quais se pudesse ter maior integração e cooperaçãona busca dos objetivos. É claro que numa Federação, como argumentadona segunda parte do capítulo, formas competitivas podem trazer estímu-los para o melhor desempenho das unidades subnacionais, inclusive doponto de vista econômico. No entanto, no governo Fernando Henriqueprevaleceram jogos federativos horizontais (interestaduais e intermunicipais)de competição predatória, nos quais o Governo Federal teve sua respon-sabilidade, por ausência, anuência ou mesmo com algumas ações diretas.

O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa da eraFHC em termos de estratégia de desenvolvimento econômico. Sem dú-vida, há fatores que fogem da alçada da União, como o comportamentoestadualista das governadorias e os elementos da crise financeira dosestados causados pelos próprios, resultantes do uso indiscriminado dosinstrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o que os levoua procurar atrair empresas para angariar empregos e impostos futuros.Nesta mesma linha, inclui-se a dinâmica dos capitais internacionais, quetêm, em várias partes do mundo, atuado para incentivar um verdadeiroleilão entre os governos - especialmente os subnacionais - com o obje-tivo de melhorar “o clima de negócios” (sic). Em tal leilão, o aspectotributário vem ganhando importância. Para não ficar numa visãoreducionista, basta lembrar que nos EUA também cresceu, nos últimos

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vinte anos, a batalha interjurisdicional por investimentos. Entre 1991 e1995, 56 mil empresas moveram-se de um estado para outro em territó-rio norte-americano, envolvendo algo em torno de 1 milhão de empre-gos. Mas para que não se tenha uma percepção benigna desse proces-so, vale citar a frase do senador Charles Horn, de Ohio:

“A competição interestadual [nos Estados Unidos] é um jogo de soma-zero sem nenhuma criação de riqueza” (DONAHUE, 1997: 106).

O jogo predatório da guerra fiscal teve efeitos piores no Brasilporque não havia, até a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal(2000), instrumentos de restrição orçamentária forte nos governossubnacionais. Assim, possíveis déficits poderiam ser repassados parao Governo Federal - e parcela da dívida estadual de R$ 250 bilhõesadveio disso - ou então para gerações futuras. Calcula-se que há umpassivo de mais de R$ 20 bilhões resultante da disputa fiscal - o quelevou alguns governos estaduais a proporem a constituição de umfundo federal para ressarcir àqueles que deram incentivos fiscais,medida que chegou a ser aprovada pelo Confaz em maio de 2000(Valor Econômico, 22 de maio de 2002: A-3).

Os resultados econômicos da guerra fiscal, ademais, são comprovadamenteinócuos. Isto porque a adoção dessas medidas não tem alterado aredistribuição regional dos recursos e, como mostrou o estudo de SérgioFerreira (2000), do BNDES, dos sete estados que mais utilizaram os instru-mentos de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná, EspíritoSanto, Goiás, Bahia, Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na suaparticipação no PIB nacional entre 1985 e 199827.

Fica a pergunta: como o Governo Federal poderia ter atuado nestaquestão? Primeiro, realizando políticas de desenvolvimento, a partir dedecisões que sejam tomadas em fóruns nacionais, em nome da transpa-rência, da justiça redistributiva e da igualdade entre os pactuantes. E, emsegundo lugar, faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma tributá-ria. Sempre se poderá dizer que há muitos interesses em jogo e por issonão é fácil realizar tal reforma. Porém, os anos FHC foram pródigos naaprovação de medidas no campo federativo tão difíceis quanto às altera-

27 Os resultados dos estados que utilizaram intensamente a guerra fiscal foram os seguintes: Goiás teve

um decréscimo de 2% para 1,9%; no Rio Grande do Sul houve uma queda de 7,9% para 7%; naBahia, de 5,1% para 4,1%; em Pernambuco, de 2,5% para 2,3%; no Paraná, de 6,3% para 5,8%; noEspírito Santo, de 1,7% para 1,5%; e, a grande exceção, o Ceará, teve um crescimento de 1,6% para1,8%. (FERREIRA, 2000: 6)

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ções na estrutura tributária. Mais do que isso, o custo de não se fazer estamodificação é muito alto para o equilíbrio horizontal entre os estados e,consequentemente, para toda a Federação. Partindo da hipótese de que areforma tributária seja quase impossível de ser realizada, o papel dopresidente Fernando Henrique deveria ter sido o de colocar no debatepúblico este problema e condená-lo. Em vez disso, concedeu emprésti-mo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, numa batalhaentre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano emrazão da pressão do grande cacique regional, Antonio Carlos Magalhães.Neste caso, FHC perdeu para o legado oligárquico e patrimonialista dofederalismo brasileiro.

A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausência de políticas urbanas.É bem verdade que desde o governo Sarney elas não são prioritárias ena era Collor houve um desmantelamento daquilo que havia. Mas o fatoé que o Brasil dos anos ’90 assistiu a um processo de metropolitanizaçãodos problemas, com a elevação do desemprego urbano, a piora nosistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da desigual-dade e da pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo doque o vivido no meio rural) e o aumento da violência nas periferias -não é por acaso o sucesso do filme Cidade de Deus. Tudo isso ganhaesta visibilidade porque 82% da população brasileira vive em áreasurbanas e um pouco mais de 50% mora nas Regiões Metropolitanastradicionais, nas recém instituídas e naquelas áreas em processo acele-rado de metropolitanização. Como bem notou Regina Pacheco:

“As metrópoles brasileiras constituem hoje um dos grandes desafios àgovernabilidade do país. Concentrando população, riqueza, demandas so-ciais, influindo na formação da opinião pública nacional, conectando-secom cidades globais, as metrópoles são também um imenso patrimôniocoletivo a demandar políticas de revitalização e revalorização, cujo sucessodepende de novas formas de governo e gestão” (PACHECO, 1995: 91).

O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo mo-mento em que não há políticas ou instituições capazes de dar contadesta questão. Primeiro em razão do fortalecimento da concepçãoautárquica de municipalismo, como descrito anteriormente. Isto é, osgovernos locais têm poucos incentivos à cooperação e atuam geralmen-te de forma individualizada. Só que em áreas metropolitanizadas, emparticular, os problemas de ação coletiva são intermunicipais por natu-reza, de modo que é necessária a ação conjunta (ABRUCIO & SOARES,

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2001). Infelizmente, não existe ainda esta consciência na maioria dosatores políticos locais28.

Além disso, a Constituição de 1988 foi movida por uma concepçãodescentralizadora municipalista, por um modelo federativocompartimentalizado e por uma aversão ao centralismo, justificável peloimpacto negativo que teve o “unionismo-autoritário” desenvolvido peloregime militar. Quando os problemas não podem ser resolvidos sozinhospelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisamtambém da intervenção ativa de uma política nacional, o desenhoinstitucional e a cultura política federalista predominante não têm respos-tas adequadas.

O resultado disso fica claro no modelo de Região Metropolitana (RM)que foi concebido na Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foramesvaziadas e sua conformação legal, transferida para os estados, os quais,conforme trabalho realizado por Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000),não priorizaram esta questão no seu desenho político-administrativo. Semuma instância metropolitana e/ou formas que levem à formação decolegiados metropolitanos - com os municípios envolvidos, mais os go-vernos estadual e federal, além da sociedade civil local -, será muitodifícil resolver os dilemas dos grandes centros urbanos.

Uma ação nacional passaria pela revisão da legislação sobre as Regi-ões Metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O GovernoFederal não tratou deste assunto nos anos FHC. Para além da questãomais geral, o fato é que a União não constituiu políticas adequadas para agrande maioria dos problemas metropolitanos. Isto fica claro ao observar-mos o desenho institucional do Executivo Federal em relação a estatemática. Primeiro, repassou tal preocupação à Secretária de PolíticasUrbanas, fraca institucionalmente e politicamente, sendo destinada paraobter apoios clientelistas no Congresso Nacional. Soma-se a isso o fato deque a maioria das políticas urbanas se dividia por vários Ministérios - só oSaneamento estava presente em sete deles, mais a Secretária de PolíticasUrbanas. A fragmentação excessiva inviabiliza atingir resultadossatisfatórias.

28 Como apontam Sérgio Azevedo e Virgínia Guia, “a inexistência de uma consciência metropolitana

em boa parte dos municípios que fazem parte dessas regiões. Prevalece , ainda, entre muitos prefeitose vereadores uma visão tradicional de cunho essencialmente local, que, muitas vezes, dificulta ou seopõe à visão regional” (AZEVEDO & GUIA, 2000: 530).

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É interessante notar que no período Fernando Henrique foi aprovadauma legislação importante sobre este tema, o Estatuto da Cidade, discuti-do no Congresso por mais de uma década. No entanto, afora esta Lei teruma visão excessivamente municipalista, com os defeitos provindos des-se exagero autárquico, ela não teve impactos significativos na agenda doGoverno Federal, até porque foi aprovada no apagar das luzes do gover-no FHC (10 de julho de 2001).

As principais políticas de cunho urbano-metropolitano fracassaram. Po-deríamos citar a Segurança Pública, na qual o Governo Federal descobriutarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveriaatuar em rede na coordenação das Polícias. No caso do Saneamento, houveum problema regulatório, com a crise das empresas do setor e a errática (eequivocada) trajetória de privatização, e, em termos de investimento, em-bora tenham se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer maisno momento seguinte por conta das restrições do acordo com o FMI.Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Federal, principal financiadorade infra-estrutura urbana, não firmou nenhum contrato de financiamento naárea de Saneamento entre 1999 e 2000 (MELO, 2002: 8).

Aí está um dos grandes problemas da atuação federal em políticas urba-nas: a crise dos mecanismos de crédito, fundamentais para alguns destesprogramas. Em especial, a área de Habitação foi bastante prejudicada, sobre-tudo no que tange ao público de baixa renda, e só não houve um colapsomaior porque os governos subnacionais também investem na construção demoradias populares, embora numa proporção insuficiente para o tamanhodo déficit do setor. Seria preciso, neste caso, resolver o problema estruturaldo financiamento nacional e estabelecer uma rede intergovernamental parapotencializar os gastos das três esferas de governo.

Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências eatribuições dos três níveis de governo, a coordenação federativa teriaque passar, como foi feito na Saúde e com o Fundef, pela elaboração depolíticas federais indutoras, a partir das quais os governos subnacionaisfossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e resulta-dos. Além disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticaspúblicas tem sido maior conquanto consigam potencializar suas caracte-rísticas intersetoriais, como ocorre no Bolsa Escola, por exemplo. Isso éválido para vários setores do desenvolvimento urbano, em particular oSaneamento, que poderia se articular mais com a Saúde, fortalecendo osprogramas desta área (MELO, 2002: 25).

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O presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem deum mandato a outro, que sua política urbana ia de mal a pior. Por issocogitou de criar um Ministério específico e forte para esta área, mas nãoteve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a pena citar a descriçãode Caco de Paula a respeito deste processo:

“Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardosochegou a anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano,uma superpasta que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orça-mento da União, de recursos da Caixa Econômica Federal e que, comacordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater os grandesdéficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicosem urbanismo como por empresários do setor imobiliário esse ‘Ministérioda Moradia’ - ou ‘Ministério da Cidade’ - passou a ser visto como umapossibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as políticas de desen-volvimento urbano de forma mais integrada. Como já acontecera outrasvezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo demuitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados doPalácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrezministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardosoabandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado desde o fim dos governosmilitares, de fazer da questão urbana a grande prioridade da ação federal,novamente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002: 419).

A lição fica para o próximo governo: um Ministério das Cidades éprioridade neste país com grandes problemas metropolitanos, fragilidadee fragmentação nas políticas urbanas e uma articulação intergovernamentalincipiente.

VII - CONCLUSÃO: LIÇÕES E DESAFIOS

Os anos FHC foram marcados por grandes mudanças, orientadas normal-mente pelo eixo da reforma do Estado. Em boa parte de suas ações, opresidente Fernando Henrique Cardoso poderia adotar como sua a con-cepção expressa por Aspásia Camargo, citada abaixo:

“A Federação é a coluna vertebral que pode ou não dar consistência eviabilidade ao conjunto de reformas econômicas sociais e políticas que oBrasil pretende realizar” (CAMARGO, 1994: 93).

Neste sentido, um balanço do período Fernando Henrique ressaltaria,

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primeiramente, as transformações positivas que conseguiu realizar. A partirda “conjuntura crítica” conformada sob a “era do Real”, o governo FHCfoi maquiaveliano ao destruir praticamente todas os mecanismos predató-rios presentes no estadualismo que vigorou na redemocratização. O fimdos Bancos estaduais e de outras “torneirinhas” dos governadores - aúltima foi a dos precatórios, ainda usada durante os primeiros anos FHC -, a renegociação da dívida dos estados e, sobretudo, a aprovação da Leide Responsabilidade Fiscal foram modificações profundas no federalis-mo. A criação de uma ordem intergovernamental mais responsável, pelomenos do ponto de vista financeiro, também esteve presente na aprova-ção da “Emenda Jobim”, que dificultou a proliferação de municípios, namudança da legislação acerca do endividamento subnacional, efetivadapelo Senado e pelo Banco Central, e na modernização da estruturafazendária na União e nos estados (além de algumas capitais). O maiorganho é a criação de uma cultura de responsabilidade fiscal que vai alémda própria legislação.

O Governo Federal teve ações bem sucedidas também no campo dacoordenação administrativa. A experiência da parceria MARE/Fórum dosSecretários Estaduais de Administração foi uma inovação que juntou cola-boração vertical com estímulos ao associativismo intergovernamental. Oerro foi ter paralisado este processo, embora ela tenha germinado ummodelo de relacionamento entre os entes que se repetiu no segundomandato no campo previdenciário, exatamente aquele em que tinha ha-vido um fracasso retumbante de coordenação federativa. O BNDES éoutra instituição que se destacou muito no auxílio e indução de políticaspúblicas para os estados e municípios, além de ter criado uma base dedados excepcional em seu site, com o chamado Banco Federativo. Aliás,a melhora do tratamento da informação no Executivo Federal ajuda tantona sua atividade coordenadora como também na obtenção de dados pelosoutras esferas de poder. Aqui, os Ministérios da Saúde, da Fazenda, daPrevidência, da Educação, do Planejamento e a própria Presidência daRepública merecem elogios.

Na descentralização de políticas sociais, o governo FHC apresentoualguns resultados bastante satisfatórios. Alguns vieram de uma práticaincremental, ou seja, de continuar o que já estava no caminho certo,aperfeiçoando certos aspectos, como é o caso dos Conselhos de PolíticasPúblicas e do modelo do SUS. Alvissareira foi a aposta num novo relacio-namento entre Estado e sociedade no plano local, algo que estava inscrito

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na Constituição, mas que ganhou mais vida em determinadas áreas, entreas quais citaríamos aquelas associadas ao Comunidade Solidária. Infeliz-mente, neste tópico, o Governo Federal fracassou na implementação dasOrganizações Sociais, que poderiam ter sido um outro meio de reformulara relação entre os serviços públicos e os cidadãos.

A criação de mecanismos de coordenativa federativa na Saúde, com oPAB, e na Educação, com o Fundef, foi a maior novidade no campo dasrelações intergovernamentais. Em ambos há instrumentos indutores, sejapela via do financiamento seja pelo controle social, os quais fortaleceramuma descentralização orientada por resultados padronizados nacionalmentee que não desvirtuam o caráter autônomo dos governos subnacionais.Entre os dois, o mais sofisticado é o Fundef, uma vez que prevêredistribuição horizontal entre os entes, a única em nossa Federação;metas quantitativas e qualitativas; e, ademais, ao estipular um prazo devalidade para além do período FHC, consegue responder, ao mesmotempo, aos desafios da lógica do Estado - regras mais estáveis para alémdas intempéries conjunturais - e da lógica do governo, já que não engessaráa gestão de todos os próximos presidentes, o que obrigaria, a cada mu-dança democrática de governante, a realização de reformas constitucio-nais, defeito estrutural de nosso sistema político.

Políticas nacionais de combate à pobreza mais articuladas com propó-sitos intersetoriais, voltadas à emancipação dos cidadãos (renda mais edu-cação) e mais focadas constituem outro avanço do período. Pena quetenham se consolidado nos dois últimos anos de governo, algo absurdopara um presidente cujo partido intitula-se social-democrata. Os progra-mas estratégicos de investimento contidos no PPA também tiveram umefeito importante em algumas Regiões do país, mormente no Centro-Oes-te. De resto, há outros sucessos federativos dispersos em decisões ad hocou sem uma maior importância e visibilidade no conjunto do governo.

Os erros e as insuficiências do governo Fernando Henrique no frontfederativo decorrem de questões mais estruturais presentes na trajetóriado federalismo brasileiro e de opções governamentais equivocadas. Noque se refere ao primeiro aspecto, a fragilidade republicana dos níveissubnacionais, presente desde a fundação da Federação, vem se modifi-cando, mas ainda constitui obstáculo às ações do Governo Federal. Tantomelhor seria se o presidente FHC e sua coalizão percebessem o quanto areforma do sistema político, em especial das instituições responsáveispela accountability do plano local, é essencial para o sucesso de qual-

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quer governante que assume o posto nacional. Não se pode negar, poroutro lado, que houve avanços nos costumes políticos, afinal dois dosmaiores caciques regionais brasileiros, ACM e Jáder Barbalho, perderamseus mandatos num processo inimaginável a alguns anos. Mas voltaramnovamente para Brasília, porque o republicanismo é uma obra ainda emconstrução nos estados e municípios.

Outros três legados federativos que influenciaram negativamente osanos FHC advêm da redemocratização. O primeiro é o federalismocompartimentalizado, em que cada nível de governo é uma “caixinha”separada da outra. A busca pela autonomia governamental depois docentralismo autoritário explica em parte este processo, mas a lógica dacompetição política à brasileira é igualmente um elemento que ressaltaessa divisão estanque do poder. Por vezes, este obstáculo foi ultrapassado,normalmente pela mudança no desenho das políticas públicas, mas suasuperação vai depender da conscientização da gravidade desse problemapor parte da sociedade brasileira. A trajetória da redemocratização noslegou, também, uma concepção autárquica do municipalismo, que precisaser modificada. Aqui, a ação da União e dos estados para incentivar umavisão consorciada são fundamentais, porém a alteração deste quadro talvezsó ocorra com novas regras, como a refundação do conceito de RegiãoMetropolitana. Por fim, o estadualismo predatório persistiu na guerra fiscal.Este aspecto é anterior e mais profundo do que o projeto do presidenteFernando Henrique, mas ele poderia ter ao menos levado mais adiante adiscussão sobre a reforma tributária no Congresso Nacional e na sociedade.

O governo FHC não avançou em certas áreas federativas por seuspróprios equívocos. Um deles foi a predominância exacerbada dofiscalismo, que prejudicou uma visão mais acurada do processo de refor-ma do Estado nos governos estaduais. Além disso, os comandantes deBrasília erraram em alguns diagnósticos porque não estabeleceram umarede federativa mais forte com as Administrações subnacionais - é ovelho vício do insulamento. O exemplo mais gritante, aqui, é o do pro-blema dos inativos nos estados. Se tivessem detectado mais cedo a fonteverdadeira do desequilíbrio das conta públicas estaduais, poderiam terutilizado melhor os recursos de privatização para capitalizar Fundos depensão. Como a história é sempre melhor compreendida depois dosfatos, é preciso elogiar os técnicos do Ministério da Previdência que, nosegundo mandato, tentaram corrigir, com competência, os erros cometi-dos antes.

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A fragmentação das políticas sociais foi outro problema do períodoFHC. Não obstante algumas ações coordenadoras ao final do período,como o Projeto Alvorada, o balanço geral revela um alto grau de disper-são em determinadas áreas, como o Saneamento Básico. Mas os maioreserros aconteceram nas políticas de desenvolvimento e urbanas. Nas pri-meiras, faltou ao país políticas nacionais para aumentar a simetria federa-tiva. Já as ações para a questão urbano-metropolitana foram as mais malsucedidas destes oito anos. Ao próximo governo fica a lição de que aSegurança Pública, o Saneamento, a Habitação, o Transporte das grandescidades e certos temas ambientais precisam, urgentemente, de progra-mas federais devidamente articulados com os outros níveis de governo,como deve ocorrer numa Federação democrática.

Para concluir, coloco quatro desafios para o próximo governo29. Oprimeiro é aprofundar a análise sobre o que ocorreu nos anos FHC,preservando a memória administrativa do período, que foi bastante ricoem inovações de políticas públicas, mas também aprendendo com oserros, porque eles costumam se repetir mais do que se imagina. Alémdisso, seria interessante conhecer mais a experiência de descentralizaçãode outras Federações, num trabalho de benchmarking, não para copiar, esim para descobrir caminhos que possam servir de inspiração.

Um segundo desafio está na articulação maior entre a os funcionáriospúblicos federais e os subnacionais, em todos os níveis de gerência. Issofacilitaria o processo de coordenação das políticas descentralizadas. Osservidores das carreiras estratégicas da União, em especial, deveriam terum estágio de pelo menos três meses em algum município do Brasil,para conhecer melhor nossa realidade.

O ataque ao modelo compartimentalizado de federalismo é o terceirodesafio. Para tanto, é preciso incentivar a ações consorciadas no planolocal; recriar, com mais mecanismos de poder, as Regiões Metropolitanas;reconstruir a Sudam e a Sudene, para atuar sobre o problema do desen-volvimento regional e reforçar a solidariedade federativa; repensar osfóruns de debates e negociação federativos, como o Confaz e o Conselhode Gestão Fiscal, e instituir novos instrumentos neste sentido, como umaAgência de Estudos e Debate Federativo, nos moldes da ACIR norte-americana. É preciso, ademais, encontrar um maior equilíbrio entre coo-peração e competição em nossa Federação, para nos livrarmos dos lega-

29 Esta parte final, referente aos desafios, é baseada em Abrucio, 2002.

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dos negativos da trajetória de nosso federalismo.Por fim, o grande desafio do próximo governo é aumentar a capacida-

de de coordenação do Governo Federal ante o processo dedescentralização. Medidas para tanto deverão ser tomadas em cada políti-ca específica e, fundamentalmente, precisa ser criada uma forma decoordenar as ações entre todos os programas que tenham interseção,para evitar o desperdício ou mesmo a competição predatória por recur-sos públicos.

Enfrentar estes quatro desafios é lutar contra a visão dicotômica quecontrapõe centralização à descentralização. É descobrir que o GovernoFederal tem um papel essencial no processo descentralizador e não éseu inimigo.

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AS AGÊNCIAS REGULATÓRIAS :GÊNESE, DESENHO INSTITUCIONAL E

GOVERNANÇAMarcus André Melo

1

INTRODUÇÃO

As Agências Regulatórias independentes representam uma das principaisinovações organizacionais do Estado brasileiro nos anos 90. Na realidade,o seu significado é ainda mais amplo: elas inauguram um novo padrão deintervenção estatal com relação à economia e à sociedade.

Construiu-se uma nova face do Estado pós-desenvolvimentista, no quala ação estatal assume um caráter eminentemente regulatório e facilitador,abandonando suas funções produtivas e prescindindo do controle diretode empresas e firmas (Boschi e Lima 2002). Esse pelo menos foi oprojeto que se buscou consolidar no país durante o governo FernandoHenrique Cardoso, e cujo grau de institucionalização torna-o irreversívela curto e médio prazo.

Este projeto implicou uma dupla transformação: por um lado, esteveancorado em uma reforma patrimonial de largas proporções, representa-da pela transferência de ativos públicos para agentes privados, as chama-das privatizações. Por outro, esteve associado a uma reforma administra-tiva que definia um núcleo de atividades exclusivas de Estado, no qualestão concentradas as funções de regulamentação, fiscalização, fomento,segurança e seguridade social.

A criação das Agências Regulatórias não constitui fenômeno isolado,mas, na realidade, representou um movimento fortemente marcado peladifusão internacional de um paradigma institucional. As agências multila-terais, empresas de consultoria internacional, elites técnicas e outros ato-

1 Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco e

do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE

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res no plano doméstico se constituíram em personagens privilegiados deum processo complexo em que se conjugam mecanismos de aprendiza-gem social, formação de policy communities, além de mecanismosreforçadores de um certo isomorfismo organizacional.2

Este texto analisa o desenvolvimento das Agências Regulatórias brasi-leiras, apresentando um balanço sumário de seu desenho institucional eavaliando, ainda que bastante tentativamente, como seus impactos sobreos resultados. A curta experiência das Agências Regulatórias no paísainda não permite que se faça uma avaliação de sua atuação, nem é esteo objetivo deste trabalho. No entanto, já se pode identificar algumasquestões críticas relativas ao seu funcionamento, além dos desafios à suaimplementação. Essas questões são discutidas tanto no plano federal quantono estadual.

O texto está estruturado em sete seções. A primeira discute a transiçãodo modelo endógeno de regulação centrado na auto-regulação por de-partamentos de ministérios gestores (no caso da infraestrutura, órgãos aosquais as empresas estatais estão subordinadas) para o modelo de regulaçãopor agência independente. As distintas rationales para a transição nasáreas de infraestrutura e da regulação social são também discutidas. Asegunda seção analisa como as estratégias regulatórias variamsetorialmente, enquanto a terceira explora a questão da especificidadedo desenho institucional das agências - voltado para garantir autonomia,independência e transparência - e descreve os diferentes formatos dasoito Agências Regulatórias federais3.

A quarta seção faz um balanço das questões e fatores relevantes paraanalisar a experiência das Agências (capacidade institucional, capacidadede enforcement, fragilidade a crise exógena, conflito jurisdicional, tradeoffs entre objetivos, e o papel da seqüência). A quinta seção discute ofederalismo regulatório e o desenho institucional das onze Agências esta-duais existentes. Na sexta parte, discute-se a questão da contestaçãopolítica à autonomia das Agências estaduais, enquanto a seção final pro-põe algumas conclusões preliminares. Ressalte-se que o foco do capítuloé a nova forma institucional e não a atividade regulatória enquanto tal.

2 Sobre o processo de difusão de policy reforms cf Melo e Costa (1995). Sobre a onda de criação de

agências regulatórias internacionais cf. Melo (2001). Para uma revisão da literatura, ver Melo(2000).3 Por estar em implantação, não será analisada a Agência Nacional de Aviação Civil. Encontra-se em

tramitação o PL 1491, que cria a Agência Nacional de Serviços de Correios.

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Como destacou Nunes (2001), existiam, só no plano federal, 319 órgãosem 1998 com funções de normatizar, regular, fiscalizar, planejar, proporpolíticas, estabelecer critérios e diretrizes.

I - O NOVO ESTADO: DA REGULAÇÃO ENDÓGENA À REGULAÇÃO POR AGÊNCIA INDEPENDENTE

As Agências Regulatórias independentes representam uma nova formade regulação pública de setores econômicos, substituindo o exercício deatividades de regulação diretamente por departamentos ou órgãos daburocracia executiva. Nesse tipo de regulação endógena ou implícita, osórgãos estavam sob o comando direto dos governos, que também deti-nham a propriedade de empresas monopolistas. A regulação pela propri-edade pública foi durante décadas o principal meio de regulação na áreade infra-estrutura: gás, eletricidade, indústria de água, ferrovias, telégra-fos, e serviços telefônicos. Essas indústrias exibiam as características demonopólios naturais4.

O argumento avançado em prol das Agências Regulatórias não secentra fundamentalmente em vantagens ou desvantagens do regime depropriedade - se pública ou privada -, mas sim na qualidade da estruturade incentivos que determina se as empresas vão ser competitivas e/ou sea universalização de serviços será atingida mais rapidamente. A regulaçãoendógena apresenta falhas regulatórias importantes: não há separaçãoentre as atividades de gestão e regulação; as ações de defesa da concor-rência não são exercidas, pois há a condição de ente monopolista; e ocontrole de qualidade dos serviços é deficiente na medida que é exerci-do pelo próprio provedor (MAJONE 1996; MAJONE 1999).

O argumento que suporta a nova onda de criação de Agências noBrasil é que ao confundir os papéis regulatórios e de gerenciamento, aregulação por propriedade pública promoveu rigidez organizacional, bai-xa capacidade de responder a mudanças tecnológicas e, sobretudo, pou-ca capacidade de promover o interesse de consumidores pelo escassocontrole público sobre as empresas. As transformações tecnológicas tive-

4 Tecnicamente, verifica-se economias de escala tais que fazem com que apenas uma única empresa

seja capaz de suprir a demanda pelo produto ou serviço, com custos inferiores aos que ocorreriam sehouvesse mais de uma empresa atuando no mercado. Se os serviços ou produtos forem fornecidos pormais de uma empresa, o custo médio para cada uma delas poderá ser superior ao verificado paraapenas uma. Este fato implica custos decrescentes (economias de escala) e na impossibilidade físicade existir mais de uma empresa na prestação do serviço.

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ram papel central na mudança dos regimes regulatórios porque permiti-ram que surgisse competição em setores que até então não admitiammais de uma firma operando (como telecomunicações).

Antes das privatizações, os setores de infra-estrutura eram organizadosna forma de holdings de capital aberto (empresas de economia mista), ea propriedade da maioria do capital votante das empresas era do Estado.As pertencentes às áreas de telecomunicações, energia e petróleo eramreguladas por departamentos vinculados aos ministérios corresponden-tes: o Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), o Departa-mento Nacional de Águas e Energia Elétrica (Dnaee) e o DepartamentoNacional de Combustíveis (DNC). No caso do petróleo, até 1990, o órgãoresponsável era o Conselho Nacional do Petróleo.

No setor de telecomunicações, a Telebrás controlava a operadora dechamadas de longa distância (Embratel) e todas as operadoras regionais,exceto quatro operadoras independentes. No setor elétrico, a Eletrobrásera responsável por apenas cerca de metade da geração total (mediantesuas subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul, e a participaçãobrasileira no complexo hidroelétrico de Itaipu) e por uma parcela peque-na da distribuição. O resto da distribuição cabia às concessionárias esta-duais, tanto na geração (36%) como na distribuição (quase 85%) (PIRES1999).

O setor de petróleo e gás natural estava organizado sob o forte predo-mínio de uma grande empresa verticalmente integrada, a Petrobrás. Osegmento de gás natural ainda é bastante embrionário no país. A Petrobrásainda controla todos os segmentos da cadeia, exceto no segmentodownstream, no qual as empresas estaduais, muitas com a participaçãoacionária da Petrobras, detêm o monopólio regional de distribuição.

O processo de privatização no país teve início com o Programa Naci-onal de Desestatização, em 1991. Entre 1991-2000, foram vendidos ati-vos totalizando mais de U$90 bilhões, caracterizando o processo deprivatização no país como um dos maiores já realizados no plano interna-cional. Só no setor de telefonia, foram investidos (com a inclusão dedívidas transferidas) U$ 29 bilhões. No setor elétrico, as privatizaçõesconcentraram-se nas distribuidoras de energia controladas pelos gover-nos estaduais. Em 1999, 2/3 da distribuição já havia sido privatizada. Naárea do petróleo, a ANP já fez quatro rodadas de licitação de concessões(blocos para exploração e produção), em 1999, 2000, 2001 e 2002.

A primeira Agência Regulatória independente no plano federal foi a

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Aneel, criada em 1997, no âmbito do processo de privatização do setorelétrico, ao que se seguiu a Anatel e a ANP. As origens da Aneel estãoassociadas à modelagem do setor feita em 1997 pela empresa deconsultoria Coopers & Lybrand (COOPER & LYBRAND 1997), e nãoremetem à reforma administrativa do Governo. No entanto, afora as Agên-cias citadas, outras foram criadas na esfera nacional em áreas nas quais osprovedores já eram privados - como no caso de transportes intermunicipaise interestaduais - ou quando a regulação tinha uma função distinta - ocaso de recursos hídricos, vigilância sanitária e saúde complementar.

Neste último caso, a regulação volta-se para corrigir falhas de merca-do de outro tipo que não as associadas aos monopólios naturais: os casosde informação assimétrica (vigilância sanitária, saúde complementar, le-gislação prudencial), presença de externalidades e coordination failures(meio ambiente, recursos hídricos), ou defesa da concorrência onde seobserva abuso de poder de mercado (vigilância sanitária, saúde comple-mentar).

A opção pelo formato agência autônoma, nestes casos, está mais asso-ciada à questão da chamada “lógica da delegação congressual” do que àredução do risco regulatório, como é o caso da infra-estrutura (analisado aseguir). Segundo esse argumento, a divisão de trabalho que se estabeleceentre os governantes (entendidos como a coalizão composta pelo Execu-tivo e sua base parlamentar) e agências autônomas são determinadaspelo balanço subjetivo de custos e benefícios vinculados às decisões queos mandatários tomam. Os governantes tendem a transferir para agênciasautônomas decisões que, numa avaliação dos atores dessa coalizão, en-volvem tecnicalidades excessivas e/ou onde os custos políticos de arcarcom ações freqüentemente impopulares ou resultantes de equívocos téc-nicos excedem os ganhos políticos que potencialmente poderiam auferirse eles mesmos tomassem as decisões. As Agências são parte integral deuma estratégia de blame shifting por parte dessa coalizão (MELO 2001;MELO 2002). A área da regulação social representaria uma dessas áreas.

A lógica que preside a criação de Agências na área de infraestrutura éinteiramente distinta. Nesse caso, elas se inscrevem numa estratégia debusca de credibilidade e redução do risco regulatório para os investidoresdos processos de privatização. Esse risco resulta da própria natureza dossetores de infra-estrutura, que apresentam custos irrecuperáveis altos (highsunk costs) e ativos fixos que não são facilmente transferíveis para outrasatividades por apresentarem asset specificity.

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Já a questão básica da credibilidade regulatória refere-se à necessida-de e capacidade das autoridades governamentais de assegurar que con-tratos serão honrados no futuro e de que não haverá mudanças no jogoou, no limite, “expropriação administrativa” de rendas, nas várias formasque isso pode assumir: congelamento de preços, re-estatização, manipu-lação de tarifas, entre outras.

A estabilidade das regras do jogo é determinada pela estrutura degovernança regulatória - o conjunto de mecanismos que uma sociedadeutiliza para restringir o escopo da ação discricionária dos governantes epara resolver os conflitos que tais restrições produzem na área da regulação.As agências autônomas representam um componente central nesse senti-do. Todavia, como assinalam Levy e Spiller (1996), a estrutura degovernança é fundamentalmente constrangida pela estrutura institucionalde um país - as instituições do Legislativo, Executivo e Judiciário -, asregras informais que são tacitamente aceitas pelos atores sociais e pelacapacidade de um país de fazer valer as regras.

O Judiciário independente constitui um componente essencial. Ade-mais, as instituições políticas influenciam a estrutura de governançaregulatória pelos limites que estabelecem para a ação discriminatória dosgovernantes. Tais limites são estabelecidos por uma variedade de meca-nismos com a separação de Poderes; regras constitucionais limitando opoder legislativo de presidentes; o federalismo (que estabelece compe-tências distintas para níveis específicos de poder); além do presidencia-lismo e legislativos bicamerais5. A credibilidade regulatória é, portanto,maior em países que apresentam fortes restrições à discrição por partedo Legislativo e Executivo, além de um Judiciário independente (MUELLLER2000; MUELLER E PEREIRA 2000).

Deve-se enfatizar que a onda de criação das agências nas várias áreasde atuação não pode ser inteiramente explicada em função de dois argu-mentos, de redução do risco regulatório e de blame shifting. A difusão deidéias do chamado novo gerencialismo público também cumpriu um pa-pel não trivial: ele levou a um certo isomorfismo organizacional no setorpúblico. Estas idéias estão na base do Plano Diretor da Reforma do Apa-relho do Estado, proposto pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, em1995, e idealizado pelo Ministério de Administração e Reforma do Estado

5 Sobre o impacto dessas variáveis nas reformas do Governo Fernando Henrique Cardoso no Brasil cf.

Melo (2002); e sobre a privatização do setor de telecomunicações cf. Kingstone e Amaral (2002).

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(MARE). Embora não constem explicitamente do Plano, a formação dasagências foi discutida nas primeiras reuniões do Conselho da Reforma doEstado e foi objeto de recomendações específicas6.

De acordo com o Plano Diretor, é importante distinguir três níveis deatividades do Estado: o núcleo estratégico, ao qual incube a formulaçãodas políticas públicas; as atividades exclusivas do Estado desempenhadaspelas agências autônomas; e os serviços não exclusivos, realizados orga-nizações sociais. A idéia de agências autônomas pressupunha dois tiposdiferentes de entes públicos: as Agências Executivas e as regulatórias. Asprimeiras são referentes a uma estratégia de flexibilização da gestão deorganismos que realizam funções exclusivas do Estado, ao passo que assegundas vinculam-se a uma ação estatal mais efetiva na regulação dosserviços públicos concedidos e de áreas econômicas importantes para opaís, como no caso do petróleo. Bresser-Pereira (1997) assinala que asAgências Reguladoras devem ser mais autônomas do que as Executivas,porque não existem para realizar políticas de governo, mas para darconta de uma função mais permanente: garantir mercados competitivos equalidade de serviços.

II - ESTRATÉGIAS REGULATÓRIAS: OBJETIVOS MÚLTIPLOS E CONFLITANTES

As estratégias gerais dos instrumentos de regulação das agências variamamplamente de acordo com as especificidades setoriais. De forma geral,elas referem-se aos seguintes aspectos: a) defesa da concorrência e ga-rantia de mercados competitivos; b)definição de preços e tarifas; c) con-trole de qualidade e padrões de serviços ou produtos.

Com relação à defesa da concorrência e garantia de mercados compe-titivos, o problema assume características específicas nas áreas deinfraestrutura, tais como telecomunicações, gás natural e energia. O obje-tivo é garantir concorrência como forma de se assegurar qualidade eeficiência em benefícios de consumidores. Essas áreas apresentam umaorganização industrial centrada em redes e o controle destas (pela em-presa monopolista anterior à privatização) constitui o principal obstáculoà entrada de novos concorrentes nos mercados desses serviços. O princi-pal objetivo dos reguladores é garantir o acesso às redes de forma quepossa ocorrer competição entre provedores de serviço.

6 Cf a Segunda reunião do Conselho. Cf. (Conselho da Reforma do Estado 1997, p. 21)

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O acesso pode assumir a forma de separação (unbundling) nas estru-turas verticalmente integradas das empresas monopolistas anteriores (“em-presas incumbentes”), atribuindo-se a diferentes agentes a propriedadeda rede e sua exploração ou, alternativamente, garantindo o acesso àrede por parte de empresas novas (“empresas entrantes”). O modelo dasprivatizações brasileiras adotou a segunda opção, que consiste em garan-tir às empresas situadas downstream, usuárias do serviço, o acesso àsinstalações essenciais das empresas incumbentes situadas upstream7.

Assim, na área de telecomunicações garantiu-se às novas empresasoperadoras de telefonia à distância o acesso às redes fixas das operado-ras de telefonia local, cuja propriedade passou da Telebrás para as trêsempresas controladoras das áreas de concessão em que o país foi dividi-do pelo Plano Geral de Outorgas (1998). Na área de energia, a estratégiacompetitiva consiste em assegurar o acesso às redes de transmissão, paraviabilizar a competição entre os consumidores livres (grandes consumi-dores) em um mercado atacadista de energia (no mercado bilateral espot). Na área do gás canalizado, onde a quase totalidade ofertada éimportada através do gasoduto Brasil-Bolívia, a meta é propiciar o acessoao pipeline de propriedade da Petrobrás e do governo boliviano.

Na prática, a regulação das redes implica regulação do acesso: proibi-ção da negação do acesso, proibição de estratégias de discriminação depreços em relação à empresa downstream da incumbente, no que serefere ao acesso, fixação ou não de preços de acesso à rede (no caso datelefonia, a tarifa de interconexão), etc.

Para fomentar a entrada de novas empresas entrantes no mercado, aestratégia é a utilização de assimetrias regulatórias pró-entrante, ou seja,conceder vantagens compensatórias aos entrantes para compensar o grandepotencial de práticas anticompetitivas das incumbentes. Dentre estas,estão a utilização de preços menores de interconexão em relação àsincumbentes; autorização com prazo indefinido para entrantes versus ou-torgas com prazo limitados para incumbentes; a imposição de regras emetas desiguais de atendimento de usuários e de universalização deserviços etc.

Como assinala Possas (2002), as empresas incumbentes, no entanto,continuam usufruindo economias de escala e escopo, além de externalidades

7 Mas exige-se uma separação contábil entre a incumbente controladora da rede e sua empresa

downstream.

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de rede que reduzem a eficácia e complexificam a atividade regulatória,criando tensão permanente (i. e. nos casos, como o brasileiro, no quais nãose quebra a estrutura vertical integrada da indústria).

A defesa da concorrência e a proibição de práticas anticompetitivasassumem outro formato no caso da regulação social. No caso da vigilân-cia sanitária, a questão essencial é assegurar a oferta competitiva demedicamentos num quadro de fortes assimetrias de informação nos mer-cados de serviços médicos, de medicamentos, alimentos ou planos desaúde.8 A facilitação da oferta de genéricos no mercado interno cumpreesse papel, bem como as garantias de portabilidade de carênciasinterplanos. Além disso, também é importante a regulação prudencial deplanos de saúde suplementar.

A terceira dimensão da regulação é a definição de padrões mínimosde qualidade de serviços. Esses são justificados pela existência de falhasde mercado e de consumidores cativos. Por sua vez, a fixação pelasAgências Reguladoras de metas de universalização (no caso de telecomu-nicações) é um objetivo de natureza social.

A área de recursos hídricos é peculiar. A regulação nesse caso orienta-se por objetivos variados: a) de caráter ambiental e social: evitar fenôme-nos conhecidos como “tragédia dos comuns”, como o superconsumo debens públicos onde não há restrição ao usufruto do bem; b) de regulaçãoeconômica (evitar a exploração de mananciais que têm características demonopólios naturais, etc); e c) sanar falhas de coordenação na explora-ção do bem.

Um das questões centrais da regulação diz respeito aos trade offsinevitáveis entre objetivos, que muitas vezes podem ser conflitantes. Osobjetivos sociais podem conflitar com os objetivos de defesa da concor-rência. A meta de universalização na telefonia pode, por exemplo, conflitarcom os objetivos de defesa da concorrência.9

9 Foi o que aconteceu no caso brasileiro (Herrera 2002, p. 4). Esses conflitos e expressam no processo

legislativo de criação das agências. Cf. Amaral (2000) e Pereira, Costa Giovanella (000)

8 A demanda de serviços médicos e medicamentos é determinada pela oferta (supply driven demand),

convertendo o médico ou provedor de serviços em consumidor substituto. Nos planos de saúde,medicamentos ou alimentos há assimetria entre consumidores e produtores, pelas quais os primeirosnão têm condição plena de avaliar o produto que consume ou adquire.

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III - DESENHO INSTITUCIONAL E CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DAS AGÊNCIAS

REGULATÓRIAS FEDERAIS

Vários aspectos singularizam as Agências em termos do seu desenhoinstitucional. Esses entes da gestão pública são usualmente estabelecidospor estatuto como autoridade independente e recebem a permissão paraoperar fora da linha de controle hierárquico e de supervisão do governocentral. Uma característica notável das novas instituições é o poder dearbítrio e independência que são concedidos aos reguladores. Suas atri-buições vão para além do monitoramento e autorização para funciona-mento, intervindo na estrutura de preços e qualidade de serviço, comotambém nas condições de financiamento das atividades concedidas. Opoder de arbitragem tem sido exercitado sem a necessidade de procedi-mentos legais mais gerais.

Do ponto de vista do desenho institucional, a autonomia da agênciaestá relacionada com os aspectos listados na Tabela 1.

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Essas características são auto-explicativas, mas alguns aspectos mere-cem comentários adicionais. As Agências são autarquias especiais, vincu-ladas a um ministério gestor, só que não mantém com ele nenhumarelação de subordinação hierárquica. Há apenas um elo de conexão fun-cional. A autonomia e estabilidade dos dirigentes são garantidas por man-datos fixos e não coincidentes não só entre os diretores e o Executivoque os nomeou, como também entre os próprios diretores. O primeiroaspecto é essencial na medida em que garante a não captura do dirigenteem relação ao governo. O descasamento de mandatos entre dirigentesfavorece a imparcialidade nas decisões individuais dos mesmos. A vedaçãoda demissão imotivada assegura também autonomia, pois só podem serexonerados após condenação por sentença transitada em julgado ou porimprobidade administrativa. A exigência de aprovação do Legislativo éoutro dispositivo essencial para garantir autonomia e representa, sobretu-do, uma instância de veto adicional.

Para que a agência possa operar com autonomia é fundamental tam-bém que tenha independência financeira, conferida no seu orçamento,com fontes próprias de arrecadação. Para a autonomia funcional é funda-mental que se constitua quadro próprio, com carreiras típicas e alto nívelde especialização, de forma a romper com a forte assimetria de informa-ção entre regulador e empresas reguladas.

Outra característica das Agências que garante maior eficácia de suasações é que elas são a última instância de recurso no âmbito administrati-vo. Nesse sentido, para contestar suas decisões só cabe o recurso aoJudiciário. Ao princípio da autonomia das Agências só se eleva o princí-pio da legalidade10. Muitas delas adquirem também o poder de instruirprocesso no caso de leis de defesa da concorrência, e mesmo julgá-losadministrativamente.

Algumas Agências assinam um contrato de gestão com o Ministériogestor da área, com o objetivo de criar um mecanismo gerencial deresponsabilização dos dirigentes. Essa inovação representa uma clara in-fluência do novo gerencialismo público sobre o formato institucional detais Agências, uma vez que isso não existe na experiência norte-america-na, bem mais antiga. O impacto desse dispositivo é ambíguo em termosda autonomia, pois uma das cláusulas contidas estipula que o não cumpri-

10 As decisões das agências nos EUA equivalem a de tribunais de primeira instância, o que ainda não

é o caso no Brasil, malgrado a tendência à procedimentalização do direito na área.

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mento do contrato implica destituição de dirigentes. Ao contrário da le-gislação e das normas que governam a atuação das Agências, os contratosde gestão estabelecem metas que são negociadas ex ante, introduzindouma relação de subordinação em relação aos Ministérios, com a conseqü-ência de minar a independência que se assegura, por outros instrumentos,aos seus dirigentes. No caso das Agências da área de infraestrutura, rompe-se dessa forma a eqüidistância que os reguladores devem manter em rela-ção às partes envolvidas, o poder concedente e os concessionários11.

No que se refere à transparência e ao controle social, o desenhoinstitucional das Agências tem incluído a criação de ouvidorias, algumasdas quais com mandato, além de prever a representação dos usuários edos Procons. As audiências públicas são elemento central do controle exante e permitem a publicização das decisões. Nessa última linha, a publi-cidade de todos os atos, decisões, discussões (reproduzidas em atas dereuniões) é um requisito legal importante seu funcionamento. Esses doisúltimos requisitos, aliados à exigência legal de justificativas por escrito,caracterizam um processo de procedimentalização das Agências, que marcaseu desenho institucional. Por sua vez, as diretorias colegiadas, que im-pedem a personalização de decisões, reforçam o conjunto de incentivosorganizacionais para sua autonomia.

As agências federais comparadas12

ANATELA Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi criada através daLei 9.472 de 16 de julho de 1997, que dispõe sobre a organização dosserviços de telecomunicações no país e funcionamento do órgão regula-dor. A implantação se deu pelo Decreto no. 2.338 de 7 de outubro de1997, tornando-a autarquia especial vinculada ao Ministério das Comuni-cações. A Anatel tem a finalidade de regular o setor, implementar políti-cas nos termos da Lei Geral de Telecomunicações e formular de estraté-

12 O governo aprovou às pressas, e sem a definição dos dispositivos regulatórios, a Agência Nacional

de Aviação Civil (ANAC) em 2001, ressuscitando a Comissão Especial que havia sido criada paraapreciar um PL, em virtude da necessidade de homologação de aviões da Embraer por agênciaindependente, para que os mesmos pudessem operar em áreas internacionais. A agência não será,no entanto, analisada neste texto por estar em instalação.

11 No caso das agências da área da regulação social - saúde suplementar, vigilância sanitária, etc -

esse aspecto torna-se negligenciável.

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gias para ampliar a concorrência, normatizar o mercado e fiscalizar. Aamplitude do escopo de intervenção da Anatel envolve o controle, pre-venção e repressão das infrações da ordem econômica, ressalvadas aspertencentes ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

O órgão superior da ANATEL é o Conselho Diretor, composto porcinco conselheiros nomeados pela Presidência da República e aprovaçãodo Senado Federal. O presidente do conselho é nomeado para esta fun-ção pela Presidência da República para um mandato de três anos semrecondução - é a única agência onde isso ocorre. O mandato do ConselhoDiretor é de cinco anos, vedada a recondução. Os conselheiros só pode-rão perder seus mandatos em caso de ilícitos e a eles é vedada qualqueratividade profissional, sindical ou político-partidária, salvo a de professoruniversitário. A quarentena é de 12 meses após o fim do mandato, envol-vendo atividade de representação de interesses junto à Agência.

O Conselho Consultivo destina-se à representação da sociedade, sen-do composto por doze membros não remunerados, sendo dois indicadospelo Senado federal, dois pela Câmara dos Deputados, dois pelo PoderExecutivo, dois indicados pelas empresas prestadoras de serviços, doisrepresentantes de usuários e dois conselheiros indicados por entidadescom representatividade na sociedade. Suas competências consistem emopinar sobre o Plano Geral de Outorgas e acerca das metas parauniversalização dos serviços prestados em regime público, requerer in-formações e formular proposições. O modelo tem como objetivo a inclu-são de grupos públicos e de parlamentares como mecanismo de controlesobre falhas de regulação.

A Anatel possui ainda um Ouvidor independente, sem relações com oConselho Diretor, nomeado pela Presidência da República para um man-dato de dois anos, admitida uma recondução. A Procuradoria-Geral daAgência está vinculada à Advocacia-Geral da União, para fins de orienta-ção normativa e supervisão técnica. A Corregedoria fiscaliza as atividadesdos órgãos vinculados, aprecia representações efetuadas em seu nome,realização correições, coordena os estágios confirmatórios dos servidorese instaura sindicâncias e processos administrativos disciplinares. As deci-sões são submetidas ao Presidente do Conselho Diretor. A estrutura con-templa ainda cinco Superintendências e Comitês dirigidos por conselhei-ros conforme necessidade.

As receitas da Anatel são decorrentes principalmente do OrçamentoGeral da União (OGU) e de recursos do Fundo de Fiscalização das Tele-

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comunicações (FISTEL), que são administradas exclusivamente por ela.As mudanças tecnológicas no setor de telecomunicações e a altacompetitividade nos mercados internacionais, já assinaladas, favorecerama adoção de inovações que acompanharam o processo de privatização doSistema Telebrás e as concessões a novas empresas que entraram nosmercados nacionais. Com o desenho de uma Agência Regulatória comelevado grau de autonomia frente ao Poder Executivo e insulada frenteaos grupos de interesses privados, pretendeu-se o desenvolvimento depolíticas competitivas e a eliminação das características de monopólionatural.

O aprendizado internacional da ANATEL na montagem do aparelhoregulatório brasileiro foi considerado como uma variável que favoreceuas privatizações das empresas do Sistema Telebrás. O elenco de ações denatureza regulatória orientada à competitividade no setor incluem proibi-ções de concentração de concessões; limite por cinco anos de fusões;proibição de ampliação do escopo de atuação e de integração vertical deserviços locais e de longa distância.13

Foram estabelecidas regras de interconexão entre operadoras e con-cessionárias em consonância com a competitividade dos mercados, sendoos conflitos arbitrados pela Agência. Como estratégia regulatória, estáprevista a prática temporária do cream skimming (autorização para novasempresas atuarem nos segmentos mais rentáveis, obrigando os incumbentesà prática de subsídios cruzados), a fim de assegurar novos agentes nosmercados. Outra estratégia regulatória utilizada foi a adoção do modelobritânico dos anos ’80 (RPI-X), como forma de regular por meio de pre-ços (price cap), em substituição ao tradicional estabelecimento de preçospelos custos14.

13 Segundo Pires (1999), uma das características importantes das reformas no setor de telecomunica-

ções no Brasil consiste na adoção dos incentivos à entrada de novos operadores no setor (assimetriasregulatórias pró-entrantes). Trata-se de reduzir o poder de mercado dos primeiros vencedores dosleilões das estatais. Foram definidas seis estratégias com características de assimetrias regulatórias porparte da ANATEL: definição do regime de exploração dos serviços; de área de atuação; critérios paraexpansão de atividades; estrutura de incentivos para a universalização dos serviços; possibilidade dediversificação; e uso de novas tecnologias.14

No regime de regulação por incentivos, tais regras estimulam a concessionária a reduzir os custosde operação cobertos pelos custos gerenciáveis da receita ao longo do período anterior à revisãotarifária, uma vez que menores custos para um mesmo nível real de tarifas, implicam em maioresbenefícios para a concessionária, sob a forma de maior remuneração do capital. Os custos não-gerenciáveis são repassados.

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O aprendizado internacional da nova gerência pública implica quesoluções organizacionais sejam buscadas para definir o lugar do cidadãoe a responsabilização. A Agência contempla a figura da Ouvidoria inde-pendente na sua estrutura, nomeada pela Presidência da República naforma de ombudsman. Em relação à responsabilização, não se definiu ocontrato de gestão com o Ministério supervisor.

ANEELA Agência foi criada através da Lei no. 9.427, de 26 de dezembro de1996, na forma de uma autarquia em regime especial com o objetivo deregular e fiscalizar o setor de energia elétrica. A implementação foi feitaatravés do Decreto 2.335 de 6 de outubro de 1997. A Aneel é dirigidapor um Diretor-Geral e quatro Diretores em regime colegiado, dos quaisum deles tem a incumbência de atuar como Ouvidor - modelo que confe-re menos autonomia à atividade do que a figura do ouvidor externo àdiretoria com mandato fixo.

A diretoria é nomeada pelo Presidente da República, com prévia apro-vação pelo Senado Federal, para cumprir mandatos não coincidentes dequatro anos, sendo vedada a participação de seus membros em empresasou grupos atuantes no setor. A quarentena estipulada após a saída docargo é de 12 meses. As receitas são obtidas junto ao Orçamento Geralda União (OGU) e, sobretudo, a taxa de fiscalização. A estrutura da Aneelé a mais complexa de todas as federais, comportando, além da diretoriacolegiada, vinte superintendências. O corpo funcional é composto porfuncionários selecionados por concurso público.

A Aneel é a única na área de infraestrutura que dispõe de Contrato deGestão. A subordinação direta foi substituída pelo instrumento do contra-to de gestão com o Ministério das Minas e Energia - o qual, como assina-lado, introduz um elemento de redução da autonomia da Agência.

O grau de insulamento da Agência é elevado. A exoneração imotivadados dirigentes só poderá ocorrer nos quatro meses iniciais do mandato,após o que fica assegurado o exercício pleno das funções. A quarentenaé estipulada em 12 meses após o afastamento do diretor de seu cargo.Por sua vez, a transparência no processo decisório e a inclusão de agen-tes econômicos e de grupos de interesses públicos buscam corrigir asfalhas de regulação, especialmente os riscos de captura. Não há ouvidorexterno à diretoria com mandato fixo, pois a ouvidoria constitui atividadedesenvolvida no âmbito da diretoria colegiada da ANEEL.

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No que se refere à representação dos interesses na Aneel, não seprevê nenhuma estrutura de participação das concessionárias ou de con-sumidores na estrutura do órgão ou fora dele. O controle social é, dessaforma, menor que nas outras agências. As audiências públicas são previs-tas na Lei 9.427 e têm caráter obrigatório, devendo ser convocadas pelaAneel sempre que suas decisões afetarem direitos de agentes econômi-cos do setor e consumidores, e devem preceder a tomada de decisões,sendo os resultados publicados no Diário Oficial da União (DOU).

A Aneel é a única Agência na qual as atividades de descentralizaçãosão previstas e detalhadas na legislação e no regimento interno. Ela atuanos estados mediante convênios - sendo 13 já celebrados até outubro de2002.

ANPA Agência Nacional do Petróleo foi criada pela Lei 9.478 de 6 deagosto de 1997 em conjunto com o Conselho Nacional de PolíticaEnergética e implantada pelo Decreto no. 2.455 de 14 de janeiro de1998, na forma de autarquia sob regime especial. Seus objetivos consis-tem em regular a indústria do petróleo de acordo com objetivos dapolítica energética nacional. O CNPE concentra as funções de formula-ção política e está diretamente ligado à Presidência da República. A Leiassegura o monopólio da União sobre a pesquisa e lavra de jazidas depetróleo e gás natural, refinação, importação de exportação de produ-tos e derivados básicos e o transporte marítimo de petróleo bruto ederivados básicos. No entanto, a nova legislação autoriza o GovernoFederal a efetuar concessões ou autorizações para empresas desenvol-verem atividades sob monopólio estatal. A regulação das atividadespúblicas e privadas no setor é competência da ANP.

Ele á uma autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério dasMinas e Energia. A estrutura consiste de Diretoria-Geral, Procuradoria-Geral e Superintendências. A Diretoria-Geral funciona em regimecolegiado, sendo composta por um Diretor-Geral e quatro Diretores, to-dos nomeados pela Presidência da República após aprovação pelo Sena-do Federal, permitida a recondução. No ato de implantação da ANPforam remanejados de outros órgãos da administração direta um total de208 cargos comissionados de diferentes níveis, que compõem o quadroinicial da agência.

O grau de insulamento dos dirigentes da ANP é muito inferior às

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demais Agências. Ao contrário da Aneel e da Anatel, os diretores da ANPnão gozam de estabilidade no cargo15. O artigo 12 da Lei 9478 foi vetadopelo Presidente da República. O artigo vedava a demissão imotivada dosdirigentes16. Os dirigentes tampouco estão sujeitos às exigências das ou-tras Agências de não ter mantido vínculos nos 12 meses anteriores comas empresas ou entidades de representação17.

O mandato da diretoria é de quatro anos não coincidentes, permitida arecondução. Nos 12 meses após deixar o cargo é proibida a vinculaçãodos diretores a empresas ou grupos atuantes no setor. As receitas da ANPadvêm do OGU; participações por implementação da legislação; convê-nios, acordos ou contratos; doações e similares; taxas e multas; venda oulocação de imóveis.

Os aspectos procedimentais, afora os comuns a todas as Agências,estão explicitados na lei de criação da ANP. O processo decisório estabe-lece que as sessões deliberativas, destinadas a resolver pendências entreagentes econômicos e entre estes e consumidores e usuários de bens eserviços da indústria do petróleo, serão públicas, permitida a sua grava-ção por meios eletrônicos e assegurado aos interessados o direito dedelas obter transcrições. Além disso, o processo decisório que implicarafetação de direitos dos agentes econômicos ou de consumidores e usuá-rios de bens e serviços da indústria do petróleo, decorrente de ato admi-nistrativo da Agência ou de anteprojeto de lei por ela proposto, seráprecedido de audiência pública.

17 O artigo 13 da Lei 9478 foi vetado. A íntegra do artigo é a seguinte: Art. 13. Está impedida de exercer

cargo de Diretor na ANP a pessoa que mantenha, ou haja mantido nos doze meses anteriores à datade início do mandato, um dos seguintes vínculos com empresa que explore qualquer das atividadesintegrantes da indústria do petróleo ou de distribuição I - acionista ou sócio com participaçãoindividual direta superior a cinco por cento do capital social total ou dois por cento do capital votanteda empresa ou, ainda, um por cento do capital total da respectiva empresa controladora; II adminis-trador, sócio-gerente ou membro do Conselho Fiscal; III - empregado, ainda que o respectivo contratode trabalho esteja suspenso, inclusive da empresa controladora ou de entidade de previdênciacomplementar custeada pelo empregador. Parágrafo único. Está também impedida de assumir cargode Diretor na ANP a pessoa que exerça, ou haja exercido nos doze meses anteriores à data de iniciodo mandato, cargo de direção em entidade sindical ou associação de classe, de âmbito nacional ouregional, representativa de interesses de empresas que explorem quaisquer das atividades.

15 É curioso que o primeiro ocupante do cargo venha a ser o genro do presidente da República. Uma

hipótese sobre esse baixo grau de insulamento é que ele pode estar relacionado com a centralidadeda Petrobrás na economia brasileira.16

O artigo 9 da Lei 9986, de 2000 (Lei dos quadros das agências), estabelece que “Os Conselheiros eos Diretores somente perderão o mandato em caso de renúncia , de condenação judicial transitadaem julgado ou de processo administrativo disciplinar . Parágrafo único - A lei de criação da Agênciapoderá prever outras condições para a perda do mandato”.

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A ANP conta com um órgão consultivo externo que é o ConselhoNacional de Política Energética, criado pela mesma Lei que a agência,mas só regulamentado em junho de 2001, no quadro da crise de energia.O CNPE, no entanto, não é um conselho exclusivo da agência, nem neleestão representantes de recipientes de outorgas18.

ANVISAA Agência foi criada através de Medida Provisória no. 1.791, de 1998, eregulamentada pela Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999, que define oSistema Nacional de Vigilância Sanitária e o seu funcionamento. Ao con-trário dos casos anteriormente descritos, a ANVISA não se estrutura nointerior de privatizações de monopólios estatais ou voltada para estimulara concorrência e competitividade em mercados. Neste sentido, o foco daregulação é fortemente concentrado em funções de fiscalização. No en-tanto, a atuação recente da agência tem tido repercussão sobre o merca-do de medicamentos, na medida em que impulsiona a Lei de Medica-mentos Genéricos em consonância com as atividades do Ministério daSaúde ao qual está vinculada, a fim de promover a redução de preços aoconsumidor de remédios básicos e essenciais.

Foi criada como autarquia em regime especial. Seus objetivos se reme-tem ao controle sanitário da produção e comercialização de produtos eserviços submetidos à vigilância sanitária, dos ambientes, dos insumos edas tecnologias, assim como efetuar o controle sobre portos, aeroportos efronteiras. O controle territorial também a diferencia das demais. Ela coor-dena o Sistema Nacional de Vigilância sanitária, o que implica em estabele-cer amplo conjunto de normas e ações, estipular padrões técnicos, intervirem empresas e serviços públicos e naqueles privados de caráter estratégi-co, conferir licenças de produtos, exigir certificados de qualidade ecredenciamentos junto ao SINMETRO, entre outras competências. A cria-ção da Agência resultou na substituição de estruturas burocráticas do Minis-tério da Saúde, com a extinção da Secretaria de Vigilância Sanitária.

18 Integram o CNPE: I - o Ministro de Estado de Minas e Energia, que o presidirá; II - o Ministro de

Estado da Ciência e Tecnologia; III - o Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão; IV- o Ministro de Estado da Fazenda; V - o Ministro de Estado do Meio Ambiente; VI - o Ministro deEstado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; VII - o Ministro Chefe da Casa Civil daPresidência da República; VIII - um representante dos Estados e do Distrito Federal; IX - um cidadãobrasileiro especialista em matéria de energia; e X - um representante de universidade brasileira,especialista em matéria de energia. Os membros tem mandato de 2 anos, e são designados peloMinistro das Minas e Energia e pelos estados.

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A ANVISA está vinculada ao Ministério da Saúde e possui DiretoriaColegiada, contando com um Ouvidor, um Procurador, um Corregedor eum Conselho Consultivo.A Diretoria-Geral é composta por cinco mem-bros, com um Diretor-Presidente, todos nomeados pela Presidência daRepública, após aprovação pelo Senado Federal, para mandato de trêsanos, admitida uma recondução. O Diretor-Presidente é nomeado peloPresidente da República entre os membros do colegiado. A exoneraçãoimotivada de diretores só pode ser feita nos quatro meses iniciais domandato. É proibida outra atividade profissional ou de representaçãopolítica e sindical dos diretores e o período de quarentena é de 12 mesesapós o término de seu mandato.

A atuação da ANVISA é regida por Contrato de Gestão estabelecidocom o Ministério da Saúde e o descumprimento injustificado de seustermos implicará a exoneração do seu Diretor-Presidente. As receitas daANVISA decorrem de dotações do OGU; Taxa de Fiscalização Sanitária;retribuição por serviços prestados; multas e dívidas; convênios, contratosou acordos; doações e similares; rendas de bens móveis e imóveis.

A ANVISA é a única agência brasileira que instrui e julga processos,sem remissão ao CADE. Suas decisões só podem ser contestadas noJudiciário. No entanto, na prática, a fixação de preços de medicamentoscabe a Câmara de Medicamentos, integrada pelos Ministérios da Fazenda,Justiça, Casa Civil e pela ANVISA, que exerce a secretaria executiva.

ANSCriada pela Lei n° 9.961 de 28 de Janeiro de 2000, a Agência Nacionalde Saúde Suplementar é uma autarquia sob regime especial, vinculada aoMinistério da Saúde. A ANS tem a missão de promover a defesa dointeresse público na assistência suplementar à saúde, regulando as ope-radoras setoriais, inclusive nas suas relações com prestadores e consumi-dores. É dirigida por uma Diretoria Colegiada, devendo contar, também,com um Procurador, um Corregedor e um Ouvidor, além de unidadesespecializadas.

A gestão da ANS é exercida pela Diretoria Colegiada, composta poraté cinco Diretores, sendo um deles o seu Diretor-Presidente. Todosdevem ser brasileiros, indicados e nomeados pelo Presidente da Repúbli-ca, após aprovação prévia pelo Senado Federal, para cumprimento demandato de três anos, admitida uma única recondução. O Diretor-Presi-dente da ANS será designado pelo Presidente da República, dentre os

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membros da Diretoria Colegiada, e investido na função por três anos, oupelo prazo restante de seu mandato, admitida uma única recondução portrês anos. Após os primeiros quatro meses de exercício, os dirigentes daAgência Nacional de Saúde Suplementar somente perderão o mandatoem virtude de condenação penal transitada em julgado ou condenaçãoem processo administrativo; acumulação ilegal de cargos, empregos oufunções públicas, e/ou descumprimento injustificado de objetivos e me-tas acordados no contrato de gestão.

A representação de interesses é extremamente ampla e inusitada emtermos de sua diversificação. A ANS conta com uma Câmara de SaúdeSuplementar, de caráter permanente e consultivo. A Câmara é compostade 34 membros19. A principal fonte de recursos é própria: a taxa desaúde suplementar.

ANTT e ANTAQEssas duas Agências irmãs foram criadas pela mesma lei e tem a mesmaestrutura institucional salvo no que se refere ao número de diretores. AAgência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) e a Agência Nacionalde Transportes Aquáticos (ANTAQ) têm como objetivo implementar, emsuas respectivas esferas de atuação, as políticas formuladas pelo Conse-lho Nacional de Integração de Políticas de Transporte e pelo Ministériodos Transportes, segundo os princípios e diretrizes estabelecidos na le-

19 Os membros são os seguintes pela Lei 9961, modificada pela MP 2.177, de 24/08/01:

I - pelo Diretor-Presidente da ANS, ou seu substituto, na qualidade de Presidente;II - por um diretor da ANS, na qualidade de Secretário;III - por um representante de cada Ministério a seguir indicado:a) da Fazenda; b) da Previdência e Assistência Social; c) do Trabalho e Emprego; d) da Justiça; e) daSaúde;IV - por um representante de cada órgão e entidade a seguir indicados:a) Conselho Nacional de Saúde; b) Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde;c) Conse-lho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde;d) Conselho Federal de Medicina;e) ConselhoFederal de Odontologia;f) Conselho Federal de Enfermagem;g) Federação Brasileira de Hospitais;h)Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços;i) Confederação das SantasCasas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas;j) Confederação Nacional da Indústria;l)Confederação Nacional do Comércio;m) Central Única dos Trabalhadores;n) Força Sindical;o) Soci-al Democracia Sindical; p)Federação Nacional das Empresas de seguros provados e capitalizaçãoq ) Associação Médica Brasileira.V - por um representante de cada entidade a seguir indicada:a)do segmento de auto-gestão de assistência à saúde;b) das empresas de medicina de grupo;c) dascooperativas de serviços médicos que atuem na saúde suplementar;d) das empresas de odontologiade grupo;e) das cooperativas de serviços odontológicos que atuem na área de saúde suplementar;VI- Por dois representantes de entidades a seguir:a) de defesa do consumidor;b) de associações de consumidores de planos privados de assistência àsaúde;c) das entidades de portadores de deficiência e de patologias especiais.

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gislação. Ambos devem regular ou supervisionar, em suas respectivasesferas e atribuições, as atividades de prestação de serviços e de explo-ração da infra-estrutura de transportes, exercidas por terceiros, com vis-tas:

a) a garantir a movimentação de pessoas e bens, em cumprimento apadrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade, pontualidade emodicidade nos fretes e tarifas;

b) a harmonizar, preservado o interesse público, os objetivos dos usu-ários, das empresas concessionárias, permissionárias, autorizadas e arren-datárias, e de entidades delegadas, arbitrando conflitos de interesses eimpedindo situações que configurem competição imperfeita ou infraçãoda ordem econômica.

A ANTT e a ANTAQ têm diretorias atuando em regime de colegiadocomo órgãos máximos de suas estruturas organizacionais, além de Ouvidoriae Corregedoria. A Diretoria da ANTT é composta por um Diretor-Geral equatro Diretores e a Diretoria da ANTAQ tem um Diretor-Geral e doisdiretores. Os membros da Diretoria devem ser brasileiros, de reputaçãoilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especia-lidade dos cargos a serem exercidos, e serão nomeados pelo Presidenteda República, após aprovação pelo Senado Federal.O Diretor-Geral énomeado pelo Presidente da República dentre os integrantes da Direto-ria, os quais cumprem mandatos de quatro anos, não coincidentes, admi-tida uma recondução. Os membros da Diretoria perderão o mandato emvirtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado, processoadministrativo disciplinar, ou descumprimento manifesto de suas atribui-ções.

ANACriada em julho de 2000, a Agência Nacional de Recursos Hídricos (ANA)é uma autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa efinanceira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidadede implementar, em sua esfera de atribuições, a Política Nacional deRecursos Hídricos, integrando o Sistema Nacional de Gerenciamento deRecursos Hídricos, juntamente com as agências estaduais de água, oscomitês de bacia e Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Em adição aisso, cabe à ANA outorgar, por intermédio de autorização, o direito deuso de recursos hídricos em corpos de água de domínio da União.Elaagência está envolvida em densa estrutura institucional onde o potencial

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para conflitos de jurisdições é extremamente elevado.A ANA é dirigida por uma Diretoria Colegiada, composta por cinco

membros, nomeados pelo Presidente da República, com mandatos nãocoincidentes de quatro anos, admitida uma única recondução consecuti-va, e conta com uma Procuradoria. O Diretor-Presidente da Agência éescolhido pelo Presidente da República entre os membros da DiretoriaColegiada, e investido na função por quatro anos ou pelo prazo querestar de seu mandato.

A exoneração imotivada de dirigentes da ANA só poderá ocorrer nosquatro meses iniciais dos respectivos mandatos. Depois disso, apenas operderão em decorrência de renúncia, de condenação judicial transitadaem julgado ou de decisão definitiva em processo administrativo discipli-nar. Dentre os dispositivos que visam a assegurar autonomia, está a vedaçãodo exercício, por seus dirigentes, de qualquer outra atividade profissio-nal, empresarial, sindical ou de direção político-partidária. A ANA detémautonomia funcional e financeira. Dentre suas receitas, estão as proveni-entes da cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio da União, oque lhe garante potencialmente uma gestão autônoma.

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IV - A IMPLEMENTAÇÃO DAS AGÊNCIAS FEDERAIS: DESAFIOS

A curta experiência das Agências Regulatórias no país ainda não permi-te que se faça uma avaliação de sua atuação e nem é este o objetivo dotrabalho. No entanto, já se pode identificar algumas questões críticasrelativas ao funcionamento das Agências e os desafios a suaimplementação.

A questão preliminar que se antepõe às demais é a vulnerabilidadedo regime regulatório brasileiro a choques endógenos e exógenos. Acrise de energia enfrentada pelo país em 2001 representou um testelimite e expôs a fragilidade do regime no que se refere à energiaelétrica, gás e recursos hídricos20. Com a crise, foram criados o Comitêde Gestão da Crise Energética (GCE), que substituiu a Aneel e a ANPem muitas de suas atribuições (sobretudo a primeira) e a EmpresaComercializadora de Energia Emergencial. A autonomia e estabilidadedas Agências ficaram seriamente abaladas. No auge da crise, parlamen-tares e o próprio Executivo discutiram a demissão do diretor da Aneel -o que só poderia ser feito por falta grave ou descumprimento do con-trato de gestão assinado. A questão da fusão das duas Agências tambémentrou na agenda governamental.

O GCE assumiu muitas das responsabilidades estatutárias da Aneel,tais como a definição do preço à vista no Mercado Atacadista de Energia(MAE), a fixação das metas do racionamento e a comercialização deexcedentes. No que se refere à ANP, o GCE tomou para si a fixação dascondições do programa de uso do gás para a geração de energiatermelétrica (PIRES e GOLDSTEIN 2001, p.33-35; ANNUATI NETO eHOCHSTETLER 2001).

A segunda questão é a ausência de competências plenamente defi-nidas e a transição incompleta do modelo anterior para o novo. Na áreaenergética o ciclo permaneceu inconcluso, com a privatização restritabasicamente às distribuidoras. Na área das telecomunicações não secompletou a fase de concentração de competências na área de regulação,com a assunção pela Anatel das concessões de rádio e televisão, ainda

20 A crise foi produzida pela conjunção dos seguintes fatores: a falta de investimentos em geração;

pela trajetória incompleta das privatizações do setor, que atingiu apenas o segmento de distribuição;grave falta de coordenação entre Aneel e ANP; atraso na constituição de uma marco regulatório paraa exploração de recursos hídricos, e conseqüentemente investimentos de geração; deficiências dagovernança do MAE; além da falta de planejamento e fatores metereológicos.

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22 A fusão dessa entidade em uma Agência Nacional de Defesa da Concorrência foi anunciada para

consulta pública, mas que curiosamente não regulamenta a relação das agências com o novo órgão(Herrera 2001, p. 5).

21 Ao contrário do previsto, as Agências não têm desempenhado um papel importante na arbitragem

de conflitos em virtude de inadequação da legislação brasileira. (Araújo e Pires 2000).

mantidas sob competência do Congresso Nacional. A Agência mais afe-tada pela incompletude da transição foi a Aneel. Nesse caso, o proble-ma está ancorado na própria seqüência perversa no setor, com a monta-gem do marco regulatório e a criação da agência ocorrendo posterior-mente ao início do processo de privatização. Com efeito, as privatizaçõesda Light, Escelsa, e Coelba precederam a definição do marco regulatórioe a criação da Aneel , MAE e ONS.

A indefinição de competências e a falta de coordenação intersetorialcontribuíram para a exacerbação da própria crise energética na medidaem que o aumento da oferta de energia no curto prazo e a redução dadependência nacional de fontes hidrelétricas estavam vinculadas à defi-nição pela ANP das condições de uso do gás para a termeletricidade.Ainda houve a postergação por mais de dois anos da implantação doCNPE, depois de sua criação legal. O conflito de competências envol-vendo a ANA, acrescido da indefinição de parâmetros para olicenciamento ambiental, foi outro fator que retardou o investimento emgeração.

A questão do caráter inconcluso da transição do modelo energético eas insuficiências do quadro regulatório adquiriram grande centralidadecom a crise no setor. A convivência de empresas geradoras incumbentesno sistema contribuiu também para aumentar o risco regulatório nosetor, uma vez que a credibilidade do Aneel para fazer valer as regrasfoi colocada em dúvida. A permanência da Petrobrás como virtualmonopolista no setor de gás atuou na mesma direção. Esses dois aspec-tos são discutidos abaixo.

O conflito de jurisdições está presente no relacionamento entre asAgências, a Secretaria de Acompanhamento do Econômico (SEAE, sediadano Ministério da Fazenda), e a Secretaria de Defesa Econômica (SDE,sediada no Ministério da Justiça)21, que desenvolvem atividades prelimi-nares que são enviadas ao Conselho Administrativo de Defesa da Concor-rência (CADE) para julgamento22. No entanto, deve-se destacar que oCADE só pode intervir ex post, quando as empresas submetem para suaaprovação propostas de fusão ou compra, enquanto as Agências e a SEAE

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atuam preventivamente sobre a conduta, colocando restrições ex ante.Ademais, há acusações de captura das agências por interesses das

empresas por parte da SEAE23. Para esta, a regulação setorial é passívelde captura regulatória, enquanto a regulação geral, em sua alçada e daSDE, é mais universalista e neutra. Por outro lado, o risco regulatório parao mercado do SEAE é alto, em virtude de seu potencial de subordinaçãoàs metas antiinflacionárias do Ministério da Fazenda. O conflito jurisdicionaltambém ocorre entre o INPI e a ANVISA, em torno da concessão depatentes de medicamentos24.

A terceira questão está intimamente relacionada à anterior e refere-se aoaspecto central do regime regulatório, a saber, a capacidade de enforcementdas Agências e sua autonomia em relação aos agentes envolvidos. Estesserão discutidos com base em alguns eventos específicos que ilustram opadrão de atuação delas. No caso da Anatel alguns episódios podem serdestacados. O primeiro refere-se à regulação preventiva do mercado. A LeiGeral de Telecomunicações (LGT) proíbe a mesma operadora de possuirações no consórcio controlador em mais de uma região25. A Anatel, nestesentido, tomou três decisões com o objetivo de regular a estrutura do merca-do (Pires & Goldstein 2001: 19-21). A primeira intervenção deveu-se ao fatode o consórcio que adquiriu a Telesp fixa já controlar a operadora gaúchaCRT, que não fazia parte do Grupo Telebrás. Uma série de conflitos entre osacionistas da CRT impedia a venda das ações do consórcio da Telefônica nacompanhia, o que levou à intervenção na empresa em junho de 1999.

As outras intervenções da Anatel foram a determinação para que aSprint se desligasse do controle acionário da Embratel, em razão do anún-cio de fusão, ao final não concretizada, entre a Sprint e a MCI (controladorada operadora de longa distância), e a suspensão dos direitos de gestão daMaçal Investimentos no Conselho de Administração da Telemar, em se-

24 Cerca de 220 patentes de remédios concedidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial

(INPI) até 2001 foram alvo de procedimentos administrativos requerendo a nulidade das concessõesporque as patentes foram concedidas sem o exame de anuência prévia da Agência Nacional deVigilância Sanitária (ANVISA), conforme dispõe a Lei nº 10.196, de 2001. Valor econômico, 1/8/2002.

23 Titular da SEAE, Cláudio Considera, na Conferência Competition and Regulation: the energy sector

in Brazil and the UK, Oxford, 4-5 June 2001.

25 A Lei Mínima havia criado, respectivamente, nove e dez áreas de concessão para as bandas A e B

de telefonia móvel, enquanto o Plano Geral de Outorgas, conforme previsão da Lei Geral de Teleco-municações, estabeleceu o duopólio em três grandes áreas de concessão de telefonia fixa local, alémda abrangência nacional para a operação de telefonia de longa distância. As bandas C, D e E foramoferecidas em leilão, em áreas superpostas às regiões das operadoras fixas, enquanto as operadorascelulares das bandas A e B foram estimuladas a migrar para as regras do novo modelo SMP.

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tembro de 1990, por suspeitas de a mesma ter transferido suas açõespara o Grupo Garantia (quando a LGT exigia cinco anos de carência).

A segunda área em que a Anatel foi bem-sucedida foi a de garantia doacesso à interconexão pelas operadoras de longa distância e que envol-veu também o acesso aos chamados backbones para o fornecimento deserviços de transmissão de dados. A Agência tem o papel de árbitro emconflitos envolvendo as operadoras - mas em alguns casos a disputa foiresolvida pelo Judiciário26.

Por fim, o terceiro evento relevante se refere às definições das regrasdos editais de concessão para as licenças dos serviços móveis pessoais(SMP), e também da definição da faixa de 1,8 GHz para essa área. Amissão da Agência visava à convergência celular-móvel e a criação deconglomerados e foi bem sucedida.

Um episódio mais recente diz respeito à antecipação de metas pelasoperadoras de telefonia fixa e sua possível habilitação a operar serviçosde longa distância. Essa medida foi contestada judicialmente pela Embratel,impossibilitando a Telefônica de entrar no mercado. A Lei Geral de Tele-comunicações prevê que depois de antecipação de metas, as empresaspodem explorar serviços de longa distância, justamente para estimular aantecipação. No entanto, nesse caso surgiu um buraco negro regulatório.A Anatel, ao regulamentar a outorga de novas licenças às operadoras,criou o precedente legal usado pela Embratel para questionar a concor-rência. Para regulamentar um direito previsto na concepção do modelode telecomunicações - o de operadoras prestarem novos serviços depoisde antecipar as metas -, a Anatel decidiu conceder a licença de DDDnacional na forma de uma extensão dos contratos de concessão. Como aLei Geral proíbe que uma mesma empresa tenha duas outorgas paraprestar determinado serviço, essa concessão não aconteceu com os servi-ços de DDI ou de chamadas originadas fora da área da concessão, queforam outorgados na forma de autorizações. As concessionárias que játêm a licença para prestar DDD dentro de suas áreas não poderiam teroutra outorga para prestar o mesmo serviço, fora delas.

Para superar esse obstáculo, a Anatel decidiu que a prestação de DDDnacional seria uma extensão do contrato de concessão. No entanto, pelaLei Geral, novas concessões, ou a mudança do objeto de contratos de

26 No primeiro caso o conflito envolveu a Embratel, operadora de longa distância, e a Telefônica,

sobre a titularidade de receita sobre ligação interurbana de serviço móvel pessoal.

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concessão existentes, só podem ser feitas mediante processo licitatório.Dessa forma, o dispositivo do marco regulatório criado para incentivar auniversalização tornou-se juridicamente questionável. Neste sentido, pa-rece ter havido falha do marco regulatório. O aspecto mais relevantedesse episódio é que revela os limites da capacidade de enforcement daAnatel. Como assinala Herrera (2001: 7), o saudável recurso à Justiça, naausência de tribunais especializados em matérias regulatórias, pode gerarum vácuo regulatório27.

No caso da Aneel, três episódios revelam que sua capacidade deenforcement apresenta debilidades: o episódio de revisão das tarifas daEscelsa, a decisão de não se permitirem repasses de custos não-controlá-veis dos distribuidores e a decisão, já assinalada, de intervir na gestão doMAE (Pires e Goldstein 2001). No primeiro caso, em um contexto deforte críticas à ausência de cláusulas de produtividade nos contratos, eapós processo de consulta pública, a Aneel estabeleceu uma reduçãomédia de 3,4% nas tarifas da Escelsa e uma pequena reestruturação novalor das tarifas por classe de consumidores. Quanto aos reajustes anuaisda tarifa para 1999-2001, a Aneel decidiu condicioná-los ao cumprimentode metas adicionais de qualidade e universalização, permitindo dessaforma que os usuários compartilhassem os benefícios da melhora emeficiência resultantes da privatização. A decisão de não autorizar o repas-se de custos não controláveis às tarifas gerou um contencioso e afetou acredibilidade da Agência, segundo Pires e Goldstein (2001), pois tal açãofoi identificada como volta a velhas práticas de controle da inflação atra-vés do controle de tarifas. A decisão de intervir no MAE, embora acerta-da, só foi tomada após manifestas evidências quanto a um processo deforte deterioração de performance dessa instituição28.

27 O Presidente mundial da telefônica afirmou que “o Brasil não poderia conviver com uma situação

de mudança nas regras do jogo. O próprio governo, entendendo a gravidade, é o maior interessadoem verificar o que pode ser feito para contornar a situação e mostrar que o país tem regras estáveis”“Telefônica pede envolvimento do governo”, Valor Econômico, 5/05/2002. O mesmo aconteceu comum dirigente da ANVISA que proibiu a importação de uma substância, e a empresa estrangeiraprejudicada ganhou a causa. “Diretor da ANVISA escapa de ser preso em Brasília”, Estado de SãoPaulo, 20/04/20.28

Em dois anos nenhuma transação ocorreu neste mercado. A estrutura de governança no MAE eraclaramente deficiente, e a gestão compartilhada foi substituída por uma gestão profissional. A Aneelapós a intervenção passou a regular o ASMAE (a administradora das transações do MAE), que deixoude ser um órgão independente. Como assinalam Pires e Goldstein (2001), a operação do MAE foiprejudicada pelos interesses conflitantes do Estado como regulador e produtor e pela escassa capaci-dade de aplicar sanções.

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30 “No âmbito do executivo, a maior parte das medidas adotadas contra aumentos de preços do setor

se deu através da abertura de processos administrativos no âmbito da lei de defesa da concorrência,sendo um grande número de processos instaurados entre 1992 e 1994, quando ainda vigorava a Lei8158/91. Todos os processos foram arquivados pelo Conselho administrativo de Defesa Econômica(CADE), sob a alegação de que os aumentos ocorreram após longo período de controle de preços e arecomposição da margem seria normal naquele momento. Novos processos foram instaurados apartir do ano de 1997, por investigações promovidas pela Secretaria de Acompanhamento Econômi-co do Ministério da Fazenda, por denúncias do conselho de farmácia ou de diversos segmentos dasociedade e já enquadrados na nova lei antitruste (Lei 8884/94). Nenhum dos casos julgados tevedecisão pela condenação da prática de aumento de preço abusivo” (ANVISA 2001b, p.7).

No que se refere à ANP, deve ser destacado o episódio da garantia deacesso ao gasoduto Brasil-Bolívia. O conflito envolveu a Petrobrás, sóciacontroladora da Transportadora Brasileira Gasoduto Brasil Bolívia (TBG).O livre acesso aos gasodutos é um das questões fundamentais para apromoção da concorrência no mercado de gás natural por reduzir asbarreiras à entrada de concorrentes e diminuir as necessidades de inves-timentos do possível entrante (pela não necessidade de duplicação deredes que representam sunk costs de grande magnitude). A ANP con-cluiu que a TGB estava criando obstáculos ao compartilhamento de suainfra-estrutura, ao atender prioritariamente os contratos assinados comseu carregador controlado (a Petrobrás), sem considerar a oferta de capa-cidade a outros interessados (Pires e Goldstein 2001).

No caso da regulação social a capacidade de enforcement da ANS eANVISA é significativa. No caso desta última, ela é sinalizada pela polê-mica autuação da empresa Phillip Morris, pela transmissão de propagan-da em desacordo com a Lei 10.167, a Lei do Fumo, publicada em 28 dedezembro de 2000, que delega à ANVISA a competência de fiscalizarpropagandas de cigarro veiculadas em rádio, televisão, jornais, revistas,Internet e outros meios audiovisuais. A agência de publicidade responsá-vel pela criação e compra do espaço também foi autuada. (ANVISA2001a).

A capacidade de fiscalização dos preços dos remédios é objeto deconflito jurisdicional com o Ministério da Fazenda.29 Enquanto a ANVISAinsiste no congelamento de preços (que foi determinado em dezembrode 2000), a Secretaria Especial de Acompanhamento Econômico se opõe.Para a ANVISA, a Lei de defesa da Concorrência é ineficaz para controlaros preços de medicamentos30. A política de medicamentos genéricos(obrigatoriedade de disponibilização e autorização de importação) im-

29 Sobre as críticas recíprocas destas duas instituições cf. “Estudo confunde debate sobre remédios no

governo”, Valor Econômico, 2/05/2001.

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plantada pela Agência também é indicador relevante de capacidade deenforcement. Sua credibilidade está em jogo nestes casos, nos quais éacusada de práticas de controle de preços com o objetivo de controle dainflação.

A quarta questão relevante trata da capacidade das Agências nas açõesde defesa dos consumidores. Um dos pouquíssimos estudos neste senti-do, realizado sobre o desempenho da Anatel, no entanto, apresenta re-sultados mistos e paradoxais (Lins 2001)31. Por um lado, os indicadores dequalidade produzidos e disponibilizados pelas próprias companhias apon-tam para uma significativa melhoria. Por outro lado, o número de recla-mações feitas diretamente ao órgão e aos Procons revela crescente insa-tisfação. A interpretação desses dados é complexa, mas há grande neces-sidade de auditorias independentes para aferir a qualidade dos serviços.Outra constatação importante é que embora o número de reclamaçõesdos usuários seja elevado, as atividades de fiscalização e auditoria nãoestão voltadas para os serviços que originam maior número de reclama-ções32.

Embora não seja possível avaliar a extensão do impacto, pela curtaexperiência, o impacto das Agências de regulação social na defesa daconcorrência e do consumidor parece ter sido significativo. A mudançano setor foi estrutural. Na área de regulação dos planos de saúde, houvemudanças amplas na regulação econômica do setor e na regulação doproduto da assistência à saúde. As empresas que antes se organizavamlivremente para atuar no setor, submetendo-se unicamente à legislaçãodo tipo societário escolhido, passaram a ter que cumprir exigências espe-cíficas, desde registro de funcionamento, até a constituição de garantia,além de estarem sujeitas a processos de intervenção e liquidação.

Quanto à regulação da assistência à saúde, se antes as empresasdefiniam livremente o produto que pretendiam oferecer, a quem ofere-cer, em que condições de operação e preço (carências, coberturas, con-dições de rescisão e de reajustes), após a regulamentação o produto

32 Ainda que o serviço de telefonia fixa tenha sido objeto de cerca de cerca de 78.000 reclamações

junto aos Procon das capitais de estado em 2000, apenas 1.459 procedimentos de apuração deocorrências foram conduzidos no serviço, a maior parte indireta, menos de 0,2% do total de proce-dimentos efetuados nos serviços de radiodifusão, com cerca de 13.000 procedimentos de apuração e190.000 vistorias (Lins 2001).

31 O grau de controle da Anatel na área da defesa do consumidor, no entanto, parece ser bastante

superior ao de outros países latino americanos (Rhodes 2001).

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obrigatório está definido em lei, a seleção de risco é proibida, assimcomo a exclusão indiscriminada de usuários. Em 2001, a ANS instaurouRegime de Direção Fiscal em quinze operadoras (em 2002, esse númerofoi para 110!), Direção Técnica em duas outras e Liquidação Extrajudicialde mais cinco. A razão entre ações de fiscalização e denúncias é muitomais elevada do que na área de telecomunicações33.

No caso da ANVISA, a percepção de sua atuação na defesa dosconsumidores pelos agentes locais de vigilância sanitária é muito posi-tiva. Uma pesquisa realizada em amostra representativa de municípiosde todo o país avaliou alguns impactos da implantação da ação descen-tralizada da ANVISA, por intermédio adicional do Piso de Atenção Bási-ca para Ações de Vigilância Sanitária PAB/VISA. Em mais da metadedos municípios pesquisados (59%), a opinião prevalente é a de quehouve melhora dos serviços de vigilância sanitária após a implantaçãoEste percentual foi ainda maior nos casos dos municípios que declara-ram utilizar os recursos do PAB/VISA exclusivamente para a vigilânciasanitária (71%)34.

A quinta questão relaciona-se à criação de capacidade institucional eformação de uma elite burocrática autônoma. Um aspecto central quepermite garantir a autonomia funcional das agências diz respeito aosseus quadros técnicos. As agências tiveram dificuldades de constituiçãode quadro próprio em função de dois desenvolvimentos. O primeiro dizrespeito aos impasses resultantes da contestação da Lei das Agências (Lei9986, de 2000), que dispõe sobre os quadros de servidores das agências. ALei cria, para exercício exclusivo nas Agências Reguladoras, os empregospúblicos de nível superior de Regulador, de Analista de Suporte à Regulação,os empregos de nível médio de Técnico em Regulação e de Técnico deSuporte à Regulação. No entanto, ela foi objeto de contestação judicial noSTF, por meio da ADIN 2310 interposta pelo PC do B e PT, que argumen-taram que ela que está em desacordo com a Emenda Constitucional 19

33 Elevou-se a taxa de operadoras fiscalizadas em 2001, relativamente ao ano de 2000 (64% em 2001

e 39% em 2000). Ao todo, foram realizadas, em 2001, 8.139 fiscalizações em 1.177 operadoras deplanos e seguros privados de saúde, que geraram a aplicação de 1.355 autuações por desobediênciadas normas do setor. Foram registrados o recebimento de 8.475 denúncias, as quais ensejaram arealização de 8.028 fiscalizações reativas, e também efetuadas 111 fiscalizações derivadas de análisetécnica, assistencial e econômico-financeira de operadoras e de seus respectivos produtos. Em respos-ta à média de 706 denúncias mensais registradas, empreendeu-se uma média de 669 ações defiscalização mensais e aplicou-se uma média de 112 autos de infração mensais (ANS 2001).34

Cf. ANVISA (2000)

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(reforma administrativa), que estabelece que as funções de fiscalização eregulação representam atividades típicas de Estado, obtendo liminar sus-pendendo a validade de alguns artigos e a realização de concurso. Aopção, no curto prazo, foi a contratação temporária de pessoal nas Agênci-as e a requisição de funcionários do Executivo. O quadro abaixo indica asituação em fevereiro de 2000.

A lei também determina que os contratos de trabalho temporáriossomente podem ser prorrogados por prazo máximo de 24 meses e operíodo de prorrogação de alguns destes contratos vence em 200335.

A formação de elite técnica também enfrenta grave problema de eva-são de quadros em algumas agências, principalmente a Anatel (Herrera2001: 5). Na Aneel, a questão de formação de recursos humanos estámarcada pela forte continuidade entre o pessoal do DNAEE e o da agên-cia, mantendo práticas administrativas e a cultura organizacional caracte-rísticas da regulação endógena anterior, comprometendo assim a eficáciada Agência. Mas grave do que isso é a circularidade entre o setor público

35 Na Anatel, em 2003, caso não ocorram mudanças, serão demitidos 139 funcionários e, em 2004,

outros 393 também terão que deixar os cargos. Do quadro de funcionários da Anatel em 2002, 680foram contratados temporariamente, 350 são cedidos pela Telebrás e 227 são dos quadros dosministérios, principalmente do Ministério das Comunicações. “Anatel terá que emitir funcionáriostemporários”, O Estado de São Paulo, 1/1/2002. Dificuldade adicional é que os salários do regime deemprego são mais elevados do que os do regime de carreiras típicas.

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e o privado nas Telecomunicações, com forte repercussão sobre a auto-nomia burocrática da agência36.

Quanto à autonomia financeira das agências a situação é bastante he-terogênea, com algumas delas tendo alcançado virtual autonomia - comoa ANVISA, que arrecada 94% de sua receita - e outras, como a ANTT, quedependem do Orçamento da União. As Agências vêem seus recursoscontingenciados como órgãos regulares da administração pública, mesmono caso da Anatel, que arrecada valores extremamente vultosos, mas quesão revertidos para o Tesouro, restando-lhe apenas os valores relativos àtaxa de arrecadação, com graves prejuízos para sua autonomia.

V - O DESENHO INSTITUCIONAL E O FEDERALISMO REGULATÓRIO

Federação e RegulaçãoA dimensão federativa é de grande importância para a questão da regulaçãoem país de forte tradição federativa como o Brasil37. Grande parte dosdesafios à institucionalização de uma nova governança regulatória noBrasil estão relacionados à questão federativa. Esta seção analisatentativamente o processo de implantação das Agências estaduais, focali-zando um problema específico: o desenho institucional e suas repercus-sões sobre o controle social e a autonomia e independência do órgãoregulador. Deve-se destacar, preliminarmente, que a interface entreregulação e Federação varia amplamente conforme o setor o que adicio-na grande complexidade à questão. A Tabela 2 apresenta uma matrizcruzando setor e interface regulatória (que inclui competência constituci-onal e outras interfaces institucionais relevantes).

37 Cf sobre este tema Resende (2000) e Melo, Pereira, Mueller e Costa e (2000).

36 Cf Amaral (2000). O caso mais destacado é Fernando Xavier, ex-presidente da Telebrás e ex-

secretário executivo do Ministério das Telecomunicações, que comandou o processo que levou àsprivatizações, para se tornar posteriormente Presidente da Telefônica.

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O setor de saneamento é de competência municipal, mas as questõesrelativas à captação, adução e distribuição d’água podem exigir coopera-ção intergovernamental para serem equacionadas. Por sua vez, o setorde transportes intermunicipais é estadual, contudo no plano metropolita-no as interfaces com os municípios são grandes. A área de energia apre-senta interfaces com os níveis estadual e federal: a competência é daUnião, todavia as concessionárias eram - e ainda são em alguns estados -, empresas públicas estatais. A decisão de privatização também está naesfera estadual. O setor de gás canalizado, no que se refere à exploraçãoe transporte, é de competência da União, e virtual monopólio da Petrobrás,só que a distribuição e comercialização é de titularidade dos governosestaduais. Por sua vez, a implementação das redes locais é uma questãode uso do solo, de competência municipal. O conflito concentra-se, aqui,nos níveis estadual e federal.

Na área de telecomunicações a dimensão federativa está, hoje, virtual-mente ausente. Na regulação social - casos da ANVISA e ANS - a legisla-ção é federal, mas essas atividades se confundem em larga medida com ocontrole de qualidade e a fiscalização, atividades tipicamente desenvolvi-das no plano local. Na área de recursos hídricos as competências tornam-se extremamente complexas porque são estruturadas em torno de baciashidrográficas. Como decorrência dessas especificidades, a dinâmica polí-tico institucional varia conforme o setor.

À semelhança do ocorrido no plano federal, foram criadas, a partir de1997, 19 Agências Regulatórias nos estados. Dois fatores devem ser des-tacados neste processo. Em primeiro lugar, a difusão dessa formainstitucional não ocorreu homogeneamente em todo o território federal.Umas das agências citadas, a ARSE-MG, que foi criada pela Lei 12.999 de31 julho de 1998, no entanto, não foi implantada. Um conflito da mesmaordem, embora mais significativo (ver adiante no texto), ocorreu no Riode janeiro, com a ARSEP- RJ. em 1998 e 1999. Em segundo lugar, acriação das Agências obedeceu a dois formatos distintos. O primeiro é omultisetorial, que foi observado na grande maioria dos casos, e o segun-do é o de especialização, adotado em São Paulo, onde foram criadas duasinstituições voltadas para a regulação de setores isolados: a Comissão deServiços Públicos de Energia (CSPE), em 1997, e a Agência Reguladorade Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo(ARTESP), em 2002.

Assim, as Agências no plano subnacional fugiram do padrão único,

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39 Cf. o estudo da reforma dos estados de SP, RS e ES, em ABRUCIO & FERREIRA COSTA (1999).

unisetorial e isomórfico existente na esfera federal, embora um modelomultisetorial específico tenha se reproduzido na maioria dos estados. Há,no entanto, maior variação no desenho institucional no âmbito estadualdo que entre as Agências federais. Elas divergem quanto às áreas deatuação; ao recebimento de atribuições de poder concedente e órgãogestor, ou seja, quanto a seus objetivos; quanto à estrutura funcional; aograu de autonomia e insulamento decisório; quanto aos mecanismosadotados de controle social; de suas relações com as atribuições de defe-sa da concorrência e dos consumidores e, finalmente, quanto à eficáciana intermediação de conflitos entre os agentes envolvidos.

A criação de agências multisetoriais nos estados, com a exceção deSão Paulo, deve-se, fundamentalmente, à necessidade de economias deescala, escassez de recursos humanos e redução de custos. A amplitudedo programa de privatização de distribuidoras de energia no Estado deSão Paulo - onde operam 14 concessionárias de serviços de energia -levou à constituição de uma agência específica para o setor. A constitui-ção dessa Agência também foi uma imposição dos atores participantes doprocesso. Deve-se destacar, ainda, que pela natureza federativa do pro-cesso de geração e distribuição de energia, houve a necessidade decriação de Agências locais. Esta área, ademais, é o carro-chefe dos con-vênios de delegação de responsabilidades entre Agências federais e es-taduais, o que vem ocorrendo de forma mais sustentada com a Aneel.Estados importantes como o Rio de Janeiro e Minas Gerais não participamdesses convênios já celebrados com 13 estados38.

O papel da União como agente indutor da difusão da nova formainstitucional foi fundamental, se manifestando ativamente, sobretudo nocaso dos governos da coalizão política do Executivo federal, na forma deindução ativa e financiamento das privatizações e dos programas estadu-ais de reforma do setor público39. As Agências Regulatórias federais, porsua vez, contribuíram indiretamente de forma também importante nessadifusão, mediante convênios e esquemas de cooperação os mais varia-dos, e que tiveram grande expressão no setor elétrico.

Os convênios de descentralização na área de energia foram discutidos

38 Em Outubro de 2002, foram celebrados convênios com 13 estados e, em outros 6, entendimentos

estavam sendo mantidos nesse sentido (Cf www.aneel.gov.br). A ARSEP - RJ, no entanto, mantémconvênio de pesquisa com a ANP.

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em Pedrão (2002) e Santos (2002). Este último apresenta uma análise dodesempenho institucional das Agências estaduais na área de energia, nosmarcos do convênio Aneel, no que tange à qualidade de serviços presta-dos, e chega a conclusões instigantes sobre o papel do desenhoorganizacional. Dos casos estudados, aquelas que exibem mais autono-mia financeira, institucional e funcional, são os que apresentaram melhordesempenho em termos de controle de serviços prestados. O autor tam-bém assinala que os convênios com a Aneel tiveram impacto importanteno fortalecimento das Agências.

O desenho institucional comparado: autonomia e controleA onda de criação das agências teve início com a criação da AGERGS(Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do RioGrande do Sul), uma autarquia com autonomia financeira, funcional eadministrativa criada em 09 de janeiro de 1997, pela Lei N° 10.931. AAGERGS teve sua estrutura definida pela Lei N° 11.292 de 23 de dezem-bro de 1998. Seu objetivo é garantir a qualidade de serviços públicos(energia, telecomunicações, transporte etc.) oferecidos aos usuários pe-las concessionárias privadas e o equilíbrio econômico e financeiro doscontratos entre o poder concedente (Governo) e as empresas concessio-nárias. Pelas características singulares de seu desenho institucional, omodelo da AGERGS será discutido em seção separada.

A Agência Reguladora de Serviços Públicos concedidos do Estado doRio de Janeiro (ARSEP-RJ) foi criada em 1997, pela Lei estadual N° 2.686,de 13/02/97, posteriormente alterada pela Lei N° 2.752, de 02/07/97.No entanto, como será analisado a seguir, manteve-se inoperante até2001.

A ARCE foi criada em 1997 pelo governo estadual para controlar asconcessões e permissões dos serviços públicos do Ceará. A Agência éuma autarquia especial, vinculada à Procuradoria Geral do Estado e temcomo órgãos superiores o Conselho Diretor e o Conselho Consultivo,além de doze assessores técnicos. Como a maioria das Agências, a ARCEatua de forma independente, tendo receita própria, proveniente de taxascobradas das empresas reguladas, e de convênios, dentre outras arreca-dações. Seus Conselheiros são investidos de mandatos para que assimpossam ter total autonomia. Ao contrário das demais, todos os técnicos daARCE são concursados e não pode haver a alocação de servidores muni-cipais, estaduais e federais cedidos ou transferidos.

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A ARCE dispõe de ampla autonomia política. Das agências existentes(cf a AGERGS e a ARPE também neste ponto adiante) é a única cujavinculação não é com uma secretaria de infraestrutura, mas sim com aSecretaria de Ouvidoria e Meio Ambiente. Em princípio, essa vinculaçãocom a Procuradoria do Estado lhe confere mais autonomia. No entanto,outros fatores parecem restringir, em parte, essa potencialidade. Das agên-cias existentes, é umas das que apresenta maior continuidade de pessoalde direção entre a empresa estatal distribuidora anterior e a nova agên-cia. O presidente do Conselho Diretor é ex-Diretor de Gestão Empresari-al da Companhia Energética do Ceará (COELCE). Outro membro da dire-toria foi Presidente da COELCE e também da Associação de EmpresasDistribuidoras de Eletricidade do Norte/Nordeste/Centro Oeste (AEDENNE)e ex- Diretor-Presidente da Cia Energética do Ceará (COELCE).

Outros aspectos, no entanto, fortalecem a sua autonomia da. A habili-tação a conselheiro é feita por edital aberto a qualquer cidadão, queapresente qualificação técnica e idoneidade moral. O governador nomeiaos conselheiros que, por sua vez, elegem o presidente do conselhodiretor.

Por sua vez, a ARTESP é uma autarquia especial vinculada à Secretariade Estado dos Transportes do Estado de São Paulo, dotada de autonomiaorçamentária, financeira, técnica, funcional, administrativa e poder depolícia, com a finalidade de regulamentar e fiscalizar todas as modalida-des de serviços públicos de transporte autorizados, permitidos ou conce-didos, no âmbito da Secretaria de Estado dos Transportes. A agênciadispõe de autonomia e representatividade de corte neocorporativo. OConselho Consultivo de 13 membros têm mandato fixo e são designadospelo Governador. São escolhidos por lista tríplice os representantes dasentidades de classe das prestadoras de serviços; das entidades sindicaisdos transportadores, das entidades representativas da sociedade civil, dasentidades representativas dos trabalhadores dos diferentes setores de trans-portes. A Agência detém grande autonomia. Os mandatos dos diretores econselheiros são fixos e não coincidentes. A ouvidoria também tem man-dato fixo e foi instituída uma Comissão de Ética.

No Pará, foi criada, em 1997, a ARCON, que foi uma das agênciasestaduais pioneiras. A Agência tem como objetivo estabelecer normas efiscalizar a execução de serviços públicos de competência do Estado, ouque lhe tenham sido delegados, e que são operados pelo setor privadoatravés de concessão, permissão, ou autorização. O grau de insulamento

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é alto, com os usuais descasamentos de mandato e demissibilidade dediretores em caso de atos lesivos ao interesse público ou patrimônio. Háum Conselho tripartite, o CONERC, com representantes do governo, em-presas, e usuários. Além disso, os membros não integrantes da represen-tação governamental são escolhidos por processo em que se admite apostulação e seleção. Os Conselheiros têm mandatos fixos de dois anos,com renovação alternada de 1/3 e 2/3.

O CONERC também é uma instância recursiva das decisões da ARCON,podendo, em decisões colegiadas no fórum geral, vetar decisões ou pa-receres da agência, inclusive multas e advertências. O Conselho pode,também, com base em pareceres dos grupos técnicos, exigir que a Agên-cia revise tarifas de concessionários delegados ou que esta intervenhaem assuntos que pareçam relevantes para o conselho. Há uma Ouvidoriaativa, mas, no entanto, o ouvidor ressente-se de não ter mandato fixo, oque lhe daria mais autonomia. A inexistência de pessoal próprio temexigido o uso constante de recursos humanos terceirizados.

A Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Rio Grande do Norte(ARSEP) foi criada com o objetivo de assegurar a qualidade nos serviçospúblicos, bem como controlar tarifas e monitorar as condições de atendi-mento de serviços delegados. A agência sofreu alterações na legislaçãoque aumentaram sua representatividade e autonomia. Inicialmente haviaum único diretor geral com mandato de quatro anos. Com a Lei 7758, adiretoria passou a ser colegiada e integrada por três membros commandato não coincidentes de três anos. O Conselho Diretor possui man-dato de quatro anos descasados, com renovação anual de dois ou trêsmembros. Inicialmente era composto de quatro membros, nomeados pelogovernador, sendo um representante do Executivo; um representante doLegislativo; o Diretor Geral da ASEP-RN e um representante das Federa-ções de Sindicatos Patronais. Houve uma alteração que incluiu a repre-sentação dos usuários (a ser escolhido dentre os membros dos Conselhosde Consumidores instalados).

A Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Energia, Transportes eComunicações da Bahia (AGERBA) tem como missão garantir auniversalização e a qualidade dos serviços públicos oferecidos aos usuá-rios pelas concessionárias do setor privado, bem como preservar o equi-líbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão e a modicidadetarifária.

Seu Conselho Consultivo possui sete Conselheiros que são nomeados

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pelo governador, sem lista tríplice: um representante da AssembléiaLegislativa; um representante do Ministério Público (Promotoria de Defe-sa do Consumidor); um representante do Executivo; um representantedas entidades representativas das concessionárias dos serviços públicosdelegados; um representante das entidades ligadas às permissionáriasdos serviços públicos delegados; um representante da Coordenação deDefesa do Consumidor; e um representante de entidades da sociedadecivil. Os Diretores da AGERBA, também nomeados pelo governador apartir de critérios previamente estabelecidos, têm o período de seusmandatos atrelado ao Contrato de Gestão assinado pelo Diretor Executivojunto à Secretaria de Infra-Estrutura. Não há possibilidade de mandatosdescasados entre Executivo estadual e diretoria das Agências. O controlesocial está previsto pela existência de uma Ouvidoria e pela participaçãodos usuários.

A Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) é uma entidadeautárquica, criada pela Lei complementar N° 833, de 17 de outubro de1997 e instalada em 14 de abril de 1998. Ela é vinculada à Secretaria deEstado de Energia, que atua em convênio com a ANEEL, e tem porfinalidade fiscalizar e controlar as atividades de prestação de serviçospúblicos de energia no Estado de São Paulo.

O insulamento, neste caso, é médio. Os comissários são escolhidosunilateralmente pelo governador, sem ouvir a Assembléia. O controlesocial é alto pela representatividade do Conselho Consultivo, que inclui oProcon, além de representantes dos consumidores. O Conselho tem es-trutura neocorporativista, com a participação de entidades do comércio eda indústria.

No Estado de Alagoas, o governo estadual implantou a ARSAL em2002. A Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoasfoi criada em 20 de setembro de 2001, pela Lei de Nº 6267/01, e temcomo meta a garantia da qualidade nos serviços públicos, com a fiscaliza-ção das concessionárias nas áreas de transportes intermunicipais, sanea-mento e energia. Além dos impedimentos usuais (não ser cotista, parenteetc), não pode ser membro diretor da ARSAL qualquer integrante dadiretoria de associação local, regional ou nacional, representativa de inte-resses das empresas fiscalizadas, de categoria profissional de emprega-dos desses agentes, bem como de conjunto ou classe de consumidoresafins.

O grau de insulamento nesta Agência é baixo: os membros da direto-

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ria colegiada (consistindo de apenas três membros) podem ser demitidossem motivo com até seis meses de nomeação (é a única Reguladora quecontém esse dispositivo). Além disso, não existe conselho consultivo. Ocontrole social também é débil, embora exista a figura do ouvidor. Nãoexiste participação por parte dos conselhos de consumidores.

A Agência Reguladora de Serviços Concedidos do Estado de Sergipe(ASES) é uma autarquia vinculada à Secretaria de Planejamento, Ciência eTecnologia, com autonomia técnica, administrativa e financeira. Pela Lei3973, de 10 de junho de 1998 a finalidade da dela é exercer o poder deregular e de fiscalizar as concessões e permissões de serviços públicosconcedidos, nos quais o Estado de Sergipe figure como poder concedenteou permitente por disposição legal ou por delegação.

A ASES é bastante distinta das demais pelo seu caráter centralizado epouco representativo. Há um Conselho de três diretores, sendo um presi-dente, ambos nomeados pelo governador, observada as restrições co-muns à totalidade das outras Agências (ser cotista, idoneidade etc), e commandato de quatro anos. No entanto, não há nenhuma estrutura represen-tativa, consultiva. São admitidos nas reuniões representantes de usuários,de empresas ou municípios, mas sem direito a voto. A única exceção sãoas reuniões do Conselho em que estiver submetida à deliberação questãode interesse de Município que detenha parcela do Poder Concedente naárea de saneamento, quando se garante a presença de um vogal por eleindicado, com direito a voto. O controle social é, portanto, baixíssimo:Não há Ouvidoria ou participação dos usuários ou qualquer estruturarepresentativa, nem mesmo articulação com entidades de defesa dosconsumidores. Observa-se também notável continuidade de elites buro-cráticas ligadas ao modelo de regulação pretérito. O atual Presidente daAgência é ex-presidente da Empresa Estatal de Energia pré-privatização,a Energipe.

A agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado dePernambuco, ARPE (PE) é uma autarquia em regime especial subordinadaao Gabinete do Governador. Sua finalidade é fiscalizar e regular os seto-res do saneamento, energia elétrica, rodovias, telecomunicações, trans-portes, distribuição de gás encanado, coleta e tratamento de resíduossólidos e inspeção veicular. Sua diretoria é colegiada e composta de trêsdiretores: o diretor geral e dois diretores. O Conselho Consultivo écomposto de nove membros: 1 da União de vereadores, 1 AssociaçãoMunicipalista de Pernambuco; o Prefeito do Recife; 1 da entidade repre-

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sentativa de usuários de serviços; 1 representante das empresas de servi-ços; o Governador do Estado; 1 membro do Ministério Público; e 1 mem-bro da Assembléia Legislativa.

A representação do Conselho é singular no âmbito das agências esta-duais por várias razões: a) o próprio governador participa do mesmo e,ademais, a própria Agência é vinculada diretamente ao seu Gabinete; b)há uma dupla participação dos municípios: da entidade representativa edos vereadores; c) o prefeito da capital participa do Conselho. O controlesocial é elevado pela existência de ouvidoria e de representantes deusuários e do Ministério Público. As exigências de nomeação são asusuais: qualificação técnica e idoneidade; proibição de ser acionistas oucotistas, ou de parentesco ou afinidade com dirigente, administrador ouconselheiro de empresas reguladas, ou detentores de até 1% do seucapital.

A ARPE apresenta um aspecto que a singulariza juntamente com aAGERGS: todos os membros da diretoria são aprovados pela AssembléiaLegislativa e submetidos à argüição pública, antes da nomeação. Ade-mais, afora as condições usuais (sentença transitada em julgado etc.), aLei estabelece que “será causa de perda do mandato a inobservância,pelo Diretor, dos deveres e proibições inerentes ao cargo, inclusive noque se refere ao cumprimento das políticas estabelecidas para o setorpelos Poderes Executivo e Legislativo.” (art. 8, inciso I). Ou seja, o con-trole do Legislativo se estende às decisões da agência.

O Mandato é de dois anos, admitida uma recondução. Prevê-se umaquarentena atipicamente longa de 24 meses para ex-diretor. Seus manda-tos são fixos, mas curtos, de apenas dois anos (embora seja admitida,como é praxe em todas as Agências, a recondução por mais um manda-to). Os Diretores terão mandatos não coincidentes de três, dois e um ano,de acordo com os termos de posse e fixados nos respectivos atos denomeação. No entanto, na primeira instalação regular da Diretoria, osseus membros e do Conselho Consultivo terão seus mandatos finalizadoscom o término do mandato do governador. A segunda instalação da Dire-toria e do Conselho Consultivo dar-se-á na forma prevista descrita acima.

Os conselheiros têm mandato fixo de três anos (sem possibilidade derecondução) e, ao contrário, dos conselheiros das outras agências, sãoremunerados. O controle social é alto: há ouvidoria com mandato e re-presentantes de consumidores.

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O Modelo AGERGS: neocorporativismo ou autonomia?A AGERGS possui um desenho institucional singular no quadro das agên-cias regulatórias, e, portanto, será tratada aqui de forma separada. Adiscussão desse desenho permite destacar alguns problemas conceituaisda questão da regulação. No caso da AGERGS, o Conselho Superior, aquem compete a direção superior da agência é composto de 7 (sete)membros.

O Conselheiro tem mandato de quatro anos, sendo nomeado eempossado somente após aprovação de seu nome pela AssembléiaLegislativa do Estado, devendo satisfazer, simultaneamente, as condiçõesde ser brasileiro maior de idade, ter habilitação profissional de nívelsuperior, ter reputação ilibada e idoneidade moral, além de possuir maisde 5 (cinco) anos no exercício de função ou atividade profissional rele-vante para os fins da AGERGS. O Conselheiro só poderá ser destituído,no curso de seu mandato, por decisão da Assembléia Legislativa.

A composição do Conselho Superior é a seguinte: 3 (três) membros delivre indicação do governador; 1 (um) representante do quadro funcionalda AGERGS, indicado pelo Executivo, a partir de listas tríplices resultan-tes de eleição realizada entre os servidores efetivos; 2 (dois) represen-tantes dos consumidores, indicados, respectivamente, pelo órgão gestordo Sistema Estadual de Proteção ao Consumidor, e pelos Conselhos deConsumidores dos concessionários, permissionários e autorizatários deserviços públicos, no Estado do Rio Grande do Sul; e 1(um) representantedos concessionários, permissionários e autorizatários de serviços públicosno Estado do Rio Grande do Sul.

O Presidente do Conselho, ao qual se atribui o voto de qualidade, éeleito dentre seus membros, com mandato de dois anos. Os membros doConselho Superior possuem atividade remunerada e sofrem as mesmasrestrições e limitações impostas aos servidores públicos em geral. À Di-retoria-Geral compete a gestão executiva da AGERGS, em obediência àsdiretrizes e deliberações do Conselho Superior. O titular da DiretoriaGeral é escolhido livremente pelo Conselho Superior da AGERGS. Já osdiretores dos departamentos executivos são escolhidos pelo ConselhoSuperior dentre os servidores efetivos da AGERGS. Os mandatos tantodos conselheiros quanto dos diretores são de quatro anos não coinciden-tes com o do chefe do Executivo. A Lei de criação buscou garantir auto-nomia financeira à agência por intermédio da criação de uma taxa deregulação de 0,5% sobre o faturamento bruto das empresas delegatárias.

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A AGERGS destaca-se do conjunto das agências estaduais por duasrazões. A primeira diz respeito à própria estrutura de governança centradaem um Conselho, o qual por sua vez, escolhe três membros para consti-tuir a diretoria, e os submete à aprovação da Assembléia Legislativa.Note-se, que ao contrário de todas as outras Reguladoras estaduais, ogovernador não escolhe o diretor geral da Agência. O Legislativo funcio-na, neste caso, como veto player. O presidente do Conselho, ou diretorgeral, neste sentido, pode vir a ser um representante de uma das partes:usuários e consumidores, por um lado, e permissionários ou concessioná-rios, por outro. O sentido de autonomia e neutralidade, que informa oconceito da Agência, é rompido por esses dispositivos. Ele co-existe comoutros que visam a assegurar essa independência, tais como o papel daAssembléia na aprovação de conselheiros, mandatos fixos, não coinci-dentes com o Executivo.

As únicas barreiras de ordem técnica para impedir o risco de capturasão a exigência de que os conselheiros tenham exercido cinco anos deatividade relevante para os propósitos da AGERGS e a existência de duasdiretorias que são exercidas por servidores de carreira da instituição. Aquestão relevante é: a quem responde esses diretores, ao governador ouà Assembléia Legislativa? (que cumpre papel na aprovação destituiçãodos conselheiros).

A outra razão refere-se ao grau de controle social existente, que semanifesta em vários níveis. A Assembléia Legislativa estadual tambémdetém amplas prerrogativas na nomeação40 e destituição dos conse-lheiros. Com efeito, os membros do Conselho Superior só podem serdestituídos por decisão da Assembléia Legislativa. A representaçãoque os consumidores tem no Conselho Superior também é substantiva,pois estão previstos dois membros, os quais poderão escolher os dire-tores. Abre-se a possibilidade, portanto, da AGERGS ter como direto-res os representantes dos consumidores. Um outro aspecto a ser des-tacado é que todos os membros são aprovados pela AssembléiaLegislativa, quando da nomeação e da destituição eventual. Por fim, aAgência inovou ao ter criado a primeira Ouvidoria dentre as Regula-doras estaduais. A AGERGS conta também com um Cadastro de Usuá-rios Voluntários para a realização de pesquisa de opinião sobre a

40 O único estado que tem dispositivo semelhante é o Pará. No caso dos diretores da ARCON, após três

recusas a indicação do governador prevalece.

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qualidade dos serviços públicos, em uma iniciativa mobilizadora doscidadãos.

Gifoni Neto (2002), em uma análise perspicaz e minuciosa das Agên-cias estaduais de regulação na área de transportes intermunicipais, assi-nala que a AGERGS representa um modelo regulatório distinto, daí anali-sar e contrapor o que denomina “modelo AGERBA” e “modelo AGERGS”,em oposição ao modelo francês de serviço público com regulação implí-cita, (representado, em sua análise, pelo DER). Os argumentos desseautor são distintos dos assinalados anteriormente, e se concentram nassemelhanças maiores do modelo da AGERGS com o das agências anglo-saxônicas e de best practices internacionais.

O Modelo da AGERBA, em contraste, representaria, “um estágio inter-mediário na escala formada entre os outros dois modelos, tendo o Modeloimplícito do DER no pólo mais próximo do conceito francês de gestão deserviços públicos e o modelo explícito da AGERGS no pólo mais próxi-mo do conceito anglo-saxão de regulação de utilidades públicas.” 41

O Modelo AGERGS apresenta uma alternativa de separação das atri-buições da regulação tarifária das de gestão, estabelecendo-as comocompetência de uma Agência reguladora independente. Outra dimensãorelevante diz respeito à separação das funções regulatórias e operacionais.No Modelo AGERBA, as políticas setoriais estão concentradas na Secreta-ria de Estado e são repassadas à AGERBA através de um Contrato deGestão, não ocorrendo separação de responsabilidades operacionais eregulatórias. A AGERBA é o órgão gestor setorial competindo-lhe asmesmas atribuições do DER, além daquelas advindas da própria figurajurídica das agências, como mediação de conflitos e defesa da concorrên-cia e dos consumidores. No Modelo AGERGS as políticas setoriais sãocompetência da Secretaria Estadual de Transportes (no caso da DAER quecomo órgão gestor recebeu as atribuições operacionais), mas à AGERGScoube apenas a responsabilidade especificamente regulatória.

Essas observações sobre o modelo da AGERGS permitem uma conclu-são de caráter mais amplo em relação às Reguladoras estaduais. Malgradoa sua grande heterogeneidade institucional, essas Agências parecem des-viar-se de uma forma não trivial em relação ao modelo internacional. Emprimeiro lugar, como assinalado, o modelo de accountability das Agênci-as Regulatórias em relação ao Executivo está fundado em uma relação

41 Cf também Brasileiro, Santos e Aragão (2001)

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43 Pinheiro, no entanto, afirmou querer fortalecer a Anatel, e retirar do Ministério das Telecomunica-

ções o poder de concessão de radiodifusoras, conforme proposta em tramitação. “PT quer renúnciade Dirigentes de Agências Reguladoras”, O Estado de São Paulo, 8/11/2002

direta com o Legislativo. No plano federal, a aprovação e demissão dosdirigentes das agências cabem ao Senado. Este modelo, na realidade, sóexiste no plano estadual na AGERGS e na ARPE, e, em menor medida, naARCON. Em segundo lugar, a separação entre atividades de gestão e deregulação propriamente ditas só está presente no caso da AGERGS.

VI - A AUTONOMIA CONTESTADA: O DESENHO INSTITUCIONAL EM CHEQUE?

Uma das questões fundamentais relativas à sustentabilidade do regimeregulatório brasileiro diz respeito ao impacto das mudanças políticasnos ramos Executivo e Legislativo sobre a autonomia das agências. Aexperiência brasileira nos últimos anos contém alguns casos que pare-cem ser paradigmáticos dos conflitos que marcarão os próximos go-vernos. Esses casos podem ocorrer nos dois níveis, federal e estadu-al. Essa seção discute os constrangimentos políticos à autonomia dasagências.

O Plano Federal Essa contestação no plano federal é ainda embrionária e pode ser obser-vada nas reações iniciais decorrentes das eleições presidenciais e davitória do candidato oposicionista. Tal contestação, no entanto, é maisantiga. O deputado Sérgio Miranda (PC do B) reiteradamente afirmou queas Agências constituíam aberrações. O próprio senador José Serra comba-teu a extensão excessiva da autonomia das Reguladoras durante atramitação dos projetos no final dos anos 90 na Comissão de AssuntosEconômicos do Senado (CAE)42.

Mais recentemente recente, como amplamente divulgado pela im-prensa, a contestação surgiu com sugestão do deputado Walter Pinheirorelativa à renúncia conjunta dos dirigentes das Agências ao final doGoverno Fernando Henrique Cardoso43. Esses desenvolvimentos devemser colocados em perspectiva. Em setembro de 1997, o PT entrou noSupremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade,

42 “Agências têm mais poder que Ministérios”, Jornal do Brasil, 2/12/2001.

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com pedido de medida liminar contra os dispositivos da LGT que, “fron-talmente”, feriam a Constituição Federal. Em fevereiro de 1998, o de-putado Walter Pinheiro (PT-BA) ajuizou Ação Popular, na Justiça Fede-ral do Distrito Federal, em desfavor da União, do Ministério das Comu-nicações e da Agência Nacional de Telecomunicações, contra o PlanoGeral de Outorgas para Serviços de Telecomunicações em Regime Pú-blico visando a demonstrar que a publicação era “ (1) ilegal, (2)intempestiva e (3) lesiva ao interesse e patrimônio públicos, visandotão somente iludir terceiros desavisados de que a lei está sendo cumpri-da...” (PT 2000).

Em abril de 1998, o PT, novamente por intermédio do deputado WalterPinheiro (PT-BA) entrou com Ação Popular contra a União Federal, oMinistério das Comunicações, a Telebrás, a Telebrasília e a ANATEL, poromissão sobre a ilegalidade do ato e a sua lesividade ao interesse epatrimônio públicos, em razão da privatização da Telebrás e da Telebrasília.Em julho de 1999, o PT encaminhou representação à Procuradoria daRepública no Distrito Federal contra a Anatel, por falta de cuidado emzelar pelos interesses da sociedade, seja através de ações de carátertécnico, para garantir a confiabilidade no funcionamento, seja por proce-dimentos consoantes os dispositivos estabelecidos na LGT. Outras medi-das incluem também a ADIN 2473, contra a criação e competências daCâmara de Gestão da Crise de Energia.

A experiência dos estadosA experiência nos estados ilustra três dimensões de contestação da auto-nomia das Agências. A primeira refere-se ao papel do Legislativo estadu-al como veto player na nomeação dos dirigentes. A segunda à contesta-ção das competências federativas na área da regulação. A terceira tem aver com a questão do boicote administrativo e financeiro às Reguladoras.

A experiência da AGERGS representa um caso de contestação radicalà nova institucionalidade regulatória com relação ao primeiro dos aspec-tos citados: o papel do Legislativo como veto player. O conflito teveinício após a posse do governo petista no Rio Grande do Sul. O governa-dor eleito, Olívio Dutra, decidiu exonerar os diretores da AGERGS. Emvirtude da resistência oferecida pelo Conselho da Agência e seus direto-res, instalou-se um conflito. A querela assumiu um caráter de disputapolítica explícita uma vez que o presidente do conselho, GuilhermeSocias Villela, ex-Secretário Estadual de Transportes do governo anterior

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e líder do PPB na Assembléia, havia sido, inicialmente, lançado comocandidato à Prefeitura Municipal de Porto Alegre, onde há três gestõesconsecutivas governava o Partido dos Trabalhadores.

A AGERGS não dispõe de procuradoria jurídica e a procuradoriaestadual é a responsável pela defesa da Agência. No entanto, foiatravés da própria procuradoria estadual que o governador impetrouuma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) contra a estabilidadeno cargo dos conselheiros.44 Não contando com maioria na AssembléiaLegislativa, o Executivo argüiu que era inconstitucional a atribuição aoLegislativo da prerrogativa de nomeação e destituição de conselhei-ro45.

Na petição com que impetrou a ADIN, o governo gaúcho argumenta-va que a remoção dos conselheiros era necessária “sob pena de se man-ter, no seio da administração gaúcha, um corpo de diretores de umaentidade da administração indireta que possa se rebelar contra as diretri-zes definidas pelo próprio governador e, assim, tornar o estado do RioGrande do Sul ingovernável”. (Governo do Estado do RS, 1999, PetiçãoInicial da ADIN 1449, p.8). A concepção de Agência Regulatória no textoestá explícita na afirmação de que a “tarefa da AGERGS é de, eminente-mente, ser “um longo braço da materialização da política econômicaestadual” (ibid. , p. 4).

O conceito de órgão regulador independente é contestado em seuconceito fundamental de mandato descasado: a AGERGS é definida comoum “órgão técnico auxiliar na formulação e execução de sua políticaeconômica, que não pode ser dirigido por quem não se identifique com ogoverno legitimamente eleito. Nem o Governo atual pode pretenderimpor a seu sucessor a adoção de seu próprio programa, nem o Governoanterior pode pretender a continuidade do seu programa, através depessoas que mereciam a sua confiança, mas não merecem do Governo

45 Gazeta Mercantil, 19/11/1999.

44 Uma formulação curta defendendo a autonomia está em Figueiredo (1999). Foram questionados os

Arts. 007 º e 008 º da Lei Estadual 10931 de 1997 , em sua redação originária e na redação que lhesconferiu o art. 001 º da Lei Estadual 11292 de 1998 . O art. 007 º estabelece o seguinte: “- Os membrosdo Conselho Superior da AGERGS terão mandato de 004 (quatro) anos, somente serão empossadosapós terem seus nomes aprovados pela Assembléia Legislativa do Estado, devendo satisfazer, simultane-amente, às seguintes condições: 00I - ser brasileiro; 0II - ser maior de idade; III - ter habilitaçãoprofissional de nível superior ; 0IV - ter reputação ilibada e idoneidade moral ; 00V - possuir mais decinco ( 005 ) anos no exercício de função ou atividade profissional relevante para os fins da AGERGS. Por sua vez o Art. 008 º estabelece que “- Os membros do Conselho Superiro da AGERGS somentepoderão ser destituídos , no curso de seus mandatos , por decisão da Assembléia Legislativa do Estado“.

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atual” (id.ibid.). O Tribunal deferiu a liminar até o julgamento do mérito46,mas os conselheiros cumpriram o mandato, até 2001.

A AGERGS também sofreu questionamentos judiciais, envolvendo oMinistério Público, com em relação aos seguintes aspectos: a) fixação dovalor cobrado nos postos de pedágios; b) a mudança na modalidade decobrança do uso da água, de consumo real para consumo médio presumi-do; e c) o reajuste nas tarifas de ônibus intermunicipais. Nestes casos,esta interpelação ocorreu por parte das de empresas públicas (Corsan) ouautarquias (caso da DAER-RS). (Pinheiro et alii 2000).

A questão da contestação do mandato dos diretores também ocorreuno Rio de Janeiro, mas o desfecho foi distinto. Logo após a sua posse, ogovernador Garotinho exonerou quatro dos cinco diretores da ARSEP-RJ,que haviam sido indicados pelo governo anterior. Denúncias de corrupçãoafetaram o desempenho do órgão regulador (PECI e CAVALCANTI 2000;REZENDE 2000, 90). O presidente da Agência foi acusado de participarde um esquema de propinas, licenciando-se enquanto o Ministério Públi-co apurava às denúncias.

O alto grau de politização dessa Agência é sinalizado com a renúnciade outro conselheiro da agência, filiado ao Partido Trabalhador, após acrise que levou os petistas a abandonarem o governo de coalizão com oPDT. Como conseqüência, a Agência Reguladora permaneceu paralisadaaté meados de 2000. Por determinação do Regimento Interno, as reuni-ões e sessões não podem funcionar com menos de três conselheiros.Caso um dos conselheiros falte, a Agência praticamente parava.

Logo após sua criação a ARSEP assinou Convênio de Cooperação e deDescentralização de Atividades Complementares com a ANEEL, porémpouco mais de dois anos depois, o convênio foi rescindido. De acordocom declarações do diretor geral da ANEEL47, o convênio de cooperaçãofoi cancelado porque durante os dois anos em que esteve vigente, aARSEP, uma autarquia do governo estadual, não implementou a estruturanecessária para a operacionalização prática do acordo, com a formaçãode equipe de técnicos qualificados para desempenhar as funções previs-tas. O convênio havia sido firmado no final da gestão do GovernadorMarcelo Alencar, no entanto, na gestão Garotinho, entendeu-se que aatribuição de fiscalizar caberia à ANEEL, já que a concessão para a pres-

47 Jornal do Brasil, 25 e 26.02.2001, citado por Pedrão (2002).

46 Até outubro de 2002, o julgamento ainda não havia ocorrido.

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tação de serviços de fornecimento de energia é dada pelo GovernoFederal. A ARSEP seria a responsável, então, apenas pela mediação dosconflitos locais, entre as concessionárias e os consumidores. Com isso,iniciou-se um processo de desmonte, que fez com que a ARSEP tivesseseus recursos retidos, o que impediu a continuação do processo deestruturação da Agência, levando à rescisão do convênio (PEDRÃO, 2002).

O segundo caso de contestação envolveu a competência da AGERGSna área do saneamento. Na ação, a Procuradoria Geral do Estado (PGE)contesta o artigo 3º e 4º da Lei 10.292 cuja redação foi dada pela Lei nº11.292, de 23/12/98, que ampliou as competências da Agência. De acor-do com a PGE, as competências atribuídas à AGERGS são inconstitucionaispois invadem distintas esferas de poder. No caso do saneamento, a fun-ção regulatória sobre os serviços é afeta aos municípios. Segundo o pro-curador geral do estado: “atribuir a uma autarquia estadual competênciapara atuar no que tange à prestação de serviços de interesse municipalvaleria por intervenção disfarçada na autonomia do Município, o que évedado pelo artigo 35 da Constituição Federal” 48.

O governo estadual impetrou a ADIN no Supremo Tribunal Federalem resposta a um conflito envolvendo a reestruturação das tarifas daCorsan, contra a qual a AGERGS se manifestou contra. Segundo o líder doPT na Assembléia, “a AGERGS não tem isenção e está agindo politica-mente. É uma estrutura criada pelo governo anterior que não representaos interesses do conjunto da sociedade”49.

O Executivo estadual, alegando que a tarifa da Corsan apresentavauma defasagem de 18%, considerando os 24 meses anteriores, instituiuum índice escalonado. O governo sustentava que as novas taxas iriamocasionar a redução de tarifa em mais de 800 mil residências e restabele-ceriam o equilíbrio financeiro da Corsan, tornando possível estender osserviços de saneamento para a população que ainda não tinha acesso àrede de água e esgoto.

“O objetivo deste novo sistema de cobrança é justamente ampliar onúmero de pessoas atendidas pela Corsan, pois outros investimentos estãocondicionados ao saneamento financeiro da empresa. Além disso, nada

48 “AGERGSP. PGE questiona competências do órgão no STF”, in Informativo semanal da bancada do

PT , np. 120, dez 1998.49

Ronaldo Zulke, in “AGERGSP. PGE questiona competências do órgão no STF”, in Informativosemanal da bancada do PT , np. 120, dez 1998, p. 4; “PT na Assembléia”, 5/11/1999.

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52 Várias empresas também o fizeram. Originalmente, a proposta estipulava uma Taxa de Regulação

a ser paga por todos os concessionários e equivalente a 0,5% do faturamento mensal, mas sofreumudanças posteriormente.

51 Cf Ferreira e Jaime Jr (2002) , os quais não fazem referência à Lei 12.999.

50 Id.ibid.

mais justo do que cobrar mais de quem tem um consumo mais alto, res-guardando os interesses dos cidadãos que têm um consumo mais baixo”50.

A terceira dimensão da contestação diz respeito ao boicote financeiro eadministrativo das Agências. Exemplos neste sentido ocorreram na ARSE-MG, na AGERGS e na ARSEP-RJ. O caso mais significativo é o da primeiradessas Agências, criada pela Lei 12.999, de 1999, mas que não foi implan-tada pelo governo Itamar Franco. Esse boicote também ocorreu no planoda privatização da CEMIG, a empresa pública de energia elétrica de MinasGerais, no qual foram detectadas irregularidades. As empresas públicasque foram privatizadas, no entanto, não são reguladas por uma Agência.51

No caso da ARSEP-RJ, o governo Garotinho não deu continuidade à for-mação de quadros da agência, prevista em Lei, e boicotou a transferência derecursos. Ela não exerceu em 1999 e 2000 praticamente nenhuma atividadede fiscalização, não tendo aplicado nenhuma multa até meados de 2000(PECI e CAVALCANTI 2000). Vale destacar que o Rio de Janeiro foi pioneironas privatizações com a venda da CERJ e da CEG/Riogás. Como dependeapenas da chamada taxa de fiscalização - cobrada das concessionárias e quecorresponde às 0,5% das suas receitas - a ARSEP enfrentou forte criseorganizacional. Até meados de 2000, três anos e meio após a sua criação, aAgência dependia de recursos erráticos do Tesouro do Estado.

No caso da AGERGS, ocorreu contestação judicial em vários níveis dacobrança de taxa de fiscalização, que daria autonomia à agência (taxa deregulação, estabelecida pela Lei nº 11.073, de 30/12/97). Esta Lei foiconsiderada inconstitucional pelo Executivo estadual. A ConfederaçãoNacional das Empresas de Transporte protocolou uma ADIN e, em juízo,obteve liminar para suspensão do pagamento52. Como decorrência, ape-nas um pequeno número de empresas recolhe o valor. O boicote naAGERGS atingiu também o quadro de pessoal. Não houve homologaçãode concurso público - o que acarretou a vacância do cargo de conselheirorepresentante dos servidores.

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VII - CONCLUSÃO

A criação e implementação das Agências Regulatórias representa umadas mais abrangentes inovações institucionais das últimas décadas. Esseprocesso exibe forte heterogeneidade interna. Pode-se distinguir pelomenos três níveis nos quais a heterogeneidade do desenho institucionalse expressa.

O primeiro refere-se à dimensão setorial. Criadas fundamentalmentepara a redução do risco regulatório pós-privatização, as Agências da áreade infra-estrutura constituíram-se no modelo organizacional para as vin-culadas à regulação social que surgiram posteriormente. A dinâmica decriação dessas últimas está associada à “lógica da delegação” - que estána base das relações e da divisão política de trabalho entre o Executivo eo Legislativo -, e ao processo de difusão do novo gerencialismo público.

Embora exista grande isomorfismo organizacional, as Agências variamtambém no que se refere ao seu desenho institucional. Esse é o segundonível em que se expressa a heterogeneidade. Como assinalado, o aspec-to central desse desenho institucional diz respeito aos dispositivos queasseguram transparência e autonomia às agências. O terceiro nível peloqual a heterogeneidade se expressa é de natureza federativa. Embora asagências federais e estaduais mantenham forte isomorfismo, a variabilidade émaior no plano estadual. O papel da União como agente indutor da difusãoda nova forma institucional não foi trivial. Pelo contrário, ele se manifestouativamente, sobretudo no caso dos governos da coalizão política do Executi-vo Federal. As Agências Regulatórias federais, por sua vez, contribuíramindiretamente de forma importante nessa difusão através dos mecanismos earranjos cooperativos variados que foram montados entre os vários níveis degoverno - isso ocorreu de forma particularmente intensa na área de energiaelétrica.

Por outro lado, as áreas distintas de ação regulatória mantêm interfacediferenciada com a questão federativa. Em alguns setores a questão federati-va é virtualmente um non-issue (telecomunicações), enquanto noutros elaimpacta de forma importante (saneamento). Um dos fatores explicativos davariação interestadual do desenho regulatório é de natureza política. Caracte-rísticas dos sistemas partidários locais também importam e impactam nodesenho regulatório: em estados polarizados e com forte alternância de for-ças políticas distintas no controle do Executivo estadual, como Rio Grande doSul e Pernambuco, o Legislativo representa um veto player importante.

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Embora seja cedo para uma avaliação preliminar, o texto sublinhou algu-mas questões fundamentais com base na curta experiência das Agências: suavulnerabilidade a crises; os conflito de jurisdição entre agências e, em muitoscasos, a incompletude da transição institucional; sua escassa institucionalizaçãocomo burocracias; sua diferenciada capacidade de enforcement. A análiserevela também que o modelo regulatório tem sido questionado em váriosníveis. Não é irrazoável supor que, dados os incentivos presentes em umcenário de forte crise de credibilidade, o novo governo responda conceden-do maior autonomia às Agências e os partidos de esquerda da coalizão degoverno reduzam sua contestação a elas. Uma estratégia de blame shiftingpode vir a ser percebida como altamente eficiente para os novos governantesque já deram sinal de seu pragmatismo.

A percepção do balanço dos custos políticos e benefícios econômicos(na forma de credibilidade regulatória) irá determinar o destino não só daação reguladora na área de infra-estrutura e do ambiente macroeconômico.Se essa análise estiver certa, o destino dessas Agências, no curto e médioprazo, está indissoluvelmente atrelado à sorte do Banco Central.

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CONCLUSÕES

O rico conjunto dos onze trabalhos aqui apresentados aponta claramentepara a construção de um novo aparato estatal no Brasil nos anos FHC. Noentanto, fica a pergunta: qual é o produto resultante deste processo? Emprimeiro lugar, surgiu um Estado multifacetado, com perfis nem semprecoerentes entre si, por vezes reformulando as agendas e, por outras, chegan-do mesmo a montar novas instituições. Neste caminho diversificado, algunsaspectos foram mais bem sucedidos, outros não foram levados adiante ehouve, ainda, escolhas equivocadas. Trata-se, portanto, de um caleidoscópio,que precisa ser lido com muito cuidado.

Antes de mais nada, definitivamente não é possível definir o Estadoresultante como neoliberal, como fez a oposição nos últimos anos. Primeiropor conta de sua diversidade, de modo que se a política cambial, em certomomento, adotou uma crença absoluta nos fluxos de capitais como salvado-res da pátria, as medidas na área de Saúde, peça-chave de qualquer WelfareState, estiveram bem longe do neoliberalismo. Cabe relembrar, ademais, queo papel econômico do governo continua crucial, com intervenção direta equase monopolista em áreas como o petróleo (o que ruborizaria as visõesmais fundamentalistas de mercado), no financiamento para o setor privado eagrícola - com Bancos federais cuja atuação foge à cartilha de certos organis-mos multilaterais -, na manutenção de investimentos na infra-estrutura, naregulação econômica - muitas vezes mal planejada, mas que nunca foidescartada - e no fortalecimento de carreiras e órgãos públicos (como oIPEA e o IBGE), mecanismo que foi na linha da reconstrução de um novotipo de Estado, e não de seu desmantelamento. Comparativamente, aliás,tivemos um caminho de reformas diferente de outros países que tinham umprojeto de fato ideológico e cuja implementação foi rápida e sem discussão,como a Argentina. No mais das vezes, fomos mais gradualistas e pragmáti-cos, apesar de certas nuances mais sectárias em prol do mercado e insuladasdo controle social, mormente a política do Banco Central no primeiro manda-to, sobejamente conhecida como desastrosa.

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Entretanto, se houve políticas de corte social-democrata, como o PABe o Bolsa Escola - embora este tenha vindo tardiamente -, por outro ladonão se constituiu uma face mais nitidamente redistributivista do governoFHC. Neste caso, as políticas sociais até que tentaram - e muitas vezesconseguiram - trilhar esta linha, só que o resultado das crises internacio-nais e de nossos erros macroeconômicos apontaram para outro lado,sobretudo nas metrópoles, onde a crise social se agravou.

O Executivo Federal foi decisivo no processo de reforma do Estado.Todavia, não se deve minimizar a atuação fundamental do Legislativo nasmudanças constitucionais, na transformação dos padrões fiscais e na cria-ção de políticas setoriais. Por vezes, houve reclamações sobre a “lentidãodo Congresso”, mas graças a ela erramos menos, pois a separação dePoderes é mais eficaz tanto na produção de accountability como na melhoriados processos decisórios. Claro que é preciso aperfeiçoar continuamente osistema político, para que ele represente mais adequadamente os cidadãose que possa fiscalizar com exatidão e parcimônia os governantes. O usodesmedido da reedição das Medidas Provisórias foi sim um problema de-mocrático do período, mas a reformulação das MPs, dando-lhe um novostatus, também é um sinal de que passamos por um aprendizado institucional.

Para avaliar a reforma do Estado nos anos FHC, três critérios podemser utilizados. O primeiro diz respeito à identificação daquilo que não foifeito ou o que ficou no meio do caminho. A reforma tributária talvez sejao principal exemplo do que não andou nem um pouco, ao passo que aprevidenciária representou alguns avanços e várias frustrações. Pelo quefoi detalhado ao longo dos textos, o fracasso destes projetos se deve adiversos fatores. Uns de ordem político-institucional, como a dificuldadede construir maioria congressual qualificada em matérias que impõemperdas a interesses concentrados e benefícios difusos. Na base disso, estáuma Constituição que é prioritariamente um conjunto de policies, e nãoprimordialmente a definição da estrutura da polity. Isso faz com quetodos os governos que queiram alterar a dinâmica estatal tenham demexer na Carta constitucional, com a dificuldade de enfrentar a “ditadurados três quintos”. Este problema permanecerá para o presidente Lula epara o próximo e, provavelmente, para o seguinte, e assim por diante.Será que a Constituição deve ser majoritariamente um conjunto de polici-es? A esfinge do tempo e das necessidades deste país desigual continua-rá nos colocando esta questão até que um dia perceberemos a raiz pro-funda de nossos problemas.

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O andamento das reformas também enfrentou dificuldades no campoda coordenação intragovernamental, por conta do legado de estruturasque permanecem governo após governo e só são alteradas ao longo demuitos anos. Fatores federativos foram bem menos reativos do que emtoda a redemocratização. Foram as grandes turbulências no cenário inter-nacional que mais tiveram poder de paralisar o caminho das mudanças.Porém, algumas transformações ocorreram por erro de estratégia gover-namental, como o caso da Previdência, que colocou no mesmo barcoquestões diversas, em termos de coalizão política e justiça social, e notratamento das Agências responsáveis pelo desenvolvimento regional,cujo resultado foi ter “jogado fora a criança com a água do banho”, isto é,acabado com o que estava errado sem colocar nada no lugar.

Vários projetos fracassaram porque se baseavam em premissas equi-vocadas e, consequentemente, redundaram em escolhas erradas. O maiorexemplo é o da política cambial do primeiro mandato, baseada em umasobrevalorização exagerada da moeda e que levava todo o resto de rol-dão, e, particularmente, a suposição de que haveria um fluxo permanen-te e abundante de capitais externos, capazes de financiar ad infinitum aeconomia brasileira. Com certeza, este foi o maior erro dos anos FHC e, opior de tudo, ele teve impacto em quase todas as outras áreas, por contado endividamento público crescente, prejudicando iniciativas bem for-muladas e que estavam no caminho certo.

Equívocos e más escolhas apareceram também em determinados pro-cessos privatização e regulação, mormente o do setor energético. Muitomais danosa foi a ausência de políticas urbanas, talvez o segundo maiordesastre dos anos FHC, o que resultou, juntamente com os problemaseconômicos, na perda de apoio social da população em geral. Destacam-se, ainda, três outros erros, residentes no centro do Executivo federal.Um é a “falha seqüencial” entre ajuste fiscal e reforma institucional, istoé, o descompasso entre as duas perspectivas, com a vitória do fiscalismosobre a modernização administrativa do Estado. Outro é a má definiçãodo papel das Agências, problema que terá de ser resolvido urgentementepelo próximo governo. E, por fim, o modelo de coordenaçãointragovernamental fracassou. Faltou comunicação, interna e externa; aarticulação ministerial foi inconstante e por vezes ineficaz; e, sobretudo,houve um insulamento demasiado de certas áreas, com efeitos deletériosao desempenho e à accountability.

Muitas propostas e mudanças foram bem sucedidas. Certamente elas

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se destacam na área fiscal, com avanços no ordenamento das finançaspúblicas, na melhoria da arrecadação tributária e da coordenaçãointragovernamental pela Secretaria do Tesouro Nacional e, especialmen-te, na quebra do modelo predatório que vigorava na Federação. A Lei deResponsabilidade Fiscal é a consolidação deste processo, um ganho inco-mensurável que nos legou o período FHC.

Houve também o aperfeiçoamento de mecanismos de accountability.No Executivo, com a melhora da qualidade de a transparência das infor-mações e por meio de políticas sociais que aproximaram o Estado doscidadãos, pela via dos Conselhos ou das parcerias com a comunidade. NoCongresso Nacional, os avanços foram o fim da imunidade parlamentar, amaior visibilidade deste poder (cada vez mais responsivo à opinião pú-blica), alterações na legislação de controle das campanhas eleitorais e,em particular, a construção de uma nova regulamentação das MPs.

As capacidades institucionais do Estado reforçaram-se com ainformatização, a maior qualificação do funcionalismo (em termos deescolaridade e treinamento interno), o investimento nas carreiras típicasde Estado e a melhor definição do papel do Executivo Federal. O debatesobre a gestão pública foi disseminado, e até por conta dos conflitos quegerou, resultou numa melhora da cultura administrativa.

A coordenação federativa foi outra área que produziu novidades im-portantes. Em destaque, as ações do PAB e do Fundef de coordenar, pormeio da indução e da avaliação de metas, a descentralização, com resul-tado bastante satisfatórios. No Ensino Fundamental, ademais, foram cria-dos eficazes mecanismos de redistribuição horizontal, os únicos em nossaFederação tão assimétrica. A criação de programas mais focados na po-breza, de cunho intersetorial e com estímulos à maior emancipação doscidadãos (“renda mais escola”) também foram importantes, embora taispolíticas de distribuição de dinheiro direto à população sofram do mal dafragmentação entre os setores governamentais.

Os capítulos trouxeram, ademais, importantes temas e desafios para opróximo governo. Com relação às reformas políticas, indicamos que apreocupação deveria ser menos focalizada na governabilidade e mais nacriação de mecanismos que reforcem a responsabilização dos governantes:na relação entre Poderes, na dinâmica interna do Congresso e na relaçãoentre representantes e representados. Além disso, o país está condenado,quem quer que seja o governante, a manter a estratégia de reformaconstitucional, o que implica custos altíssimos e que não trazem ganhos à

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melhor accountability. Enfatizamos novamente: qual é o sentido destaestrutura política? A resposta fica a cargo do leitor. Por fim, ainda nestetópico, é fundamental continuar apostando no “separacionismo” de nossosistema presidencialista, e, para tanto, é preciso reforçar política e tecni-camente a estrutura dos Poderes, a fim de reduzir as assimetrias de podere de informação entre o Executivo e Legislativo, por um lado, e deconstituir uma Presidência da República institucionalmente mais qualifi-cada. O tema do Judiciário não foi tratado neste livro, mas avisamos quesem sua reforma, não conseguiremos modernizar e tornar mais justo edemocrático o Brasil.

No que diz respeito à reforma administrativa, faz-se necessário definirmais claramente a estrutura organizacional e seu modo de funcionamen-to. Neste ponto, houve avanços no debate, mas diversas indefinições naconstrução de um novo arcabouço. É claro que se deve ter em conta ocaráter de longo prazo deste processo, envolvendo mudanças de posturade políticos e burocratas. Estudando as experiências internacional e brasi-leira recentes, constatou-se que a mudança de tipo incremental é a quetem mais chances de dar certo. Ela é baseada na negociação, no gradualismoe no aprendizado contínuo dos atores, numa combinação de capacidadestécnicas e políticas.

Outro problema fundamental é o da coordenação administrativa. Épreciso evitar que as disputas entre Ministérios transformem-se num obs-táculo à implementação das políticas, as quais, aliás terão de ser cada vezmais intersetoriais e por programas, rompendo com a velha tradição dagestão por setores, tomados como “caixinhas” isoladas uma das outras.Ademais, diante de nossa estrutura presidencialista, é preciso definir cla-ramente o papel do presidente na coordenação governamental e do nú-cleo estratégico ligado a ele. No centro desta questão, está a relaçãoentre política e burocracia, que necessita ser melhor equacionada, medi-ante a conciliação, sem compartimentalização, da lógica das indicaçõespolíticas com o controle da delegação de poder.

Na área fiscal, os desafios são enormes, envolvendo o desenhoinstitucional e a avaliação dos resultados em termos de eficácia, eficiên-cia e efetividade. Do lado intergovernamental, o objetivo deve ser amanutenção da responsabilidade fiscal, mas isso só ocorrerá se reformasinstitucionais forem feitas nos estados - particularmente na áreaprevidenciária -, se for implantado um novo projeto de desenvolvimentoe crescimento econômicos e se as arenas federativas forem utilizadas

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para resolver as possíveis pendências, em busca do aperfeiçoamentodemocráticos das relações entre os níveis de governo.

As reformas previdenciária e tributária não podem ser mais adiadas.Elas envolvem problemas fiscais, de competitividade econômica e dejustiça social. Para tanto, é urgente desonerar a produção para incentivaro crescimento dos empregos e das exportações, bem como modificar aestrutura do ICMS. Adicionalmente, outra meta deve ser a formação deFundos Previdenciários do funcionalismo, com a definição dos recursospara capitalizá-los - em parte vindos da contribuição dos inativos. Tantomelhor será, especialmente em termos de progressividade, se conseguir-mos criar um só sistema previdenciário. Além disso, redução do trabalhoinformal é peça chave que as duas reformas precisam resolver, até paraque se tornem complementares. A inspiração no modelo italiano, similarem vários pontos com a situação brasileira, é sugestiva. Práticas negocia-das, envolvendo governo, congressistas, sindicatos e empresários têmmais chances de gerar bons resultados, tanto para as finanças públicas,com a diminuição dos déficits previdenciários, quanto para os contribuin-tes de hoje e beneficiários no futuros.

O modelo regulatório brasileiro foi uma importante novidade dos anosFHC. No entanto, dado seu caminho errático e fragmentado, ele pode sercolocado na berlinda muito rapidamente. É preciso que as eventuaismudanças não coloquem em risco a estabilidade do sistema. Neste senti-do, deve-se montar uma estratégia de transição que nos logre AgênciasRegulatórias fortes, em termos de desempenho e democratização. O mesmopode ser dito para os projetos de reformulação do Banco Central.

A reforma do Estado é elemento essencial nas políticas sociais e, porconseguinte, na redução das imensas desigualdades deste país. Aprendercom os acertos e erros dos anos FHC é tanto mais importante aqui.Seguindo esta linha, o caminho é fortalecer uma descentralização ancora-da na coordenação federativa da União. Por esta via, teremos melhoresresultados, como comprovaram as experiências na Saúde e na Educação,como também nas políticas de renda implementadas no final do mandato.Só que outras áreas sociais estão sem uma estratégia adequada, como oSaneamento e a Habitação, dois setores que pioraram nos últimos oitoanos. O maior desafio é, sem dúvida alguma, enfrentar as carências urba-nas que crescem explosivamente. O Governo federal terá de se engajarneste tema, porém precisará criar uma rede com os governos estaduais emunicipais para resolver os problemas das periferias metropolitanas.

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O país hoje é mais democrático e está mais habilitado para compreen-der seus desafios. Os erros e os acertos dos anos FHC nos deram estelegado. Com todos os problemas que o Brasil ainda tem, o presidenteFernando Henrique Cardoso pode entregar o cargo para o vencedor daseleições de 2002, o líder oposicionista Luiz Inácio da Silva, num novoclima político e social. Mas o trajeto pela frente é difícil. Depois de todasas reformas, o Estado realiza melhor algumas tarefas e outras, não. Épreciso continuar aprimorando os meios, contudo o essencial é interligá-los adequadamente com os fins, para não termos a impressão de queestamos fazendo bem as tarefas que não são as mais importantes. E existeum Brasil nas periferias das grandes cidades que precisa urgentementede um governo mais presente e efetivo no seu dia-a-dia. Talvez seja esteo maior desafio do presidente Lula.

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