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Por muitas décadas já os filmes da Disney vêm encantando crianças e adultos. Este ensaio apresenta algumas características recorrentes nessa arte tão popular e requitanda.
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O estilo Disney de contar histórias
Mário Sérgio Teodoro da Silva Júnior
Introdução
“Eu não acho que nada seja tão mágico quanto um desenho de conto de fadas da
Disney. Não existe nada como isso”1. São palavras de Howard Ashman, uma das grandes
mentes criativas da Disney, o grande músico que está por trás das canções de A pequena
sereia e A bela e a fera. De fato, é difícil pensar em alguma ficção que alcance, ao mesmo
tempo, a popularidade, influência e até arte dos filmes animados da Disney, mesmo entre
outros desenhos animados que seguiram a mesma tendência.
No final dos anos 1920, [Walt Disney] começou a reinventar a animação, transformando-a, gradualmente, em uma novidade que enfatizava o movimento e a elasticidade do traço, criando uma forma de arte que destacava o personagem, a narrativa e a emoção. [...] O crítico Robert Hughes atribuiu a Disney a invenção da própria arte pop, não apenas por seu olhar, que deixou como herança, mas também pela convergência da grande arte e da arte menos refinada que expressou. “Aconteceu”, escrever Hughes, “quando, em Fantasia, Mickey escalou com dificuldade o pódio (real) e apertou a mão do maestro (real) Leopold Stokowski”. (GABLER, 2009, p.8)
Trata-se de uma produção artística ficcional que fundiu o discurso do cinema de
animação com diversos discursos narrativos, penetrando no imaginário popular, solidificando-
1 I just don’t think anything is quite as magical as a Disney cartoon fairy tale. There’s just nothing like that.
(Waking Sleeping Beauty, 2009). Tradução minha.
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se na história da humanidade e, junto com o cinema em geral, construindo um novo jeito de se
contar histórias.
Então, o presente trabalho tem por objetivo estudar as estratégias discursivas dessa
produção que, se for possível dizer assim, forma o gênero Disney. Para tanto, a fonte mais
recorrente será o livro de Jason Surrel,“Os segredos dos roteiros da Disney – dicas e técnicas
para levar magia a todos os seus textos”.
Apesar de o título sugerir algo como um manual de como escrever bem, um autoajuda
literário, o assunto do livro é totalmente diferente. Surrell traz uma análise geral de
características das histórias dos filmes da Disney, abordando a estrutura das narrativas e, mais
superficialmente, outros elementos da animação por meio de fontes confiáveis: entrevistas
com pessoas envolvidas na produção desses filmes e publicações e documentários oficiais da
Disney.
Ao longo da obra, Surrell apresenta “recursos” afirmados pelos produtores, roteiristas,
animadores, diretores etc. e pelo próprio Walt Disney, como a ideia da personagem sustentar
toda a credibilidade da trama; a história e o tema aliados a ela formando um tripé vital; uma
estrutura (variável) de três atos com pontos (beats) importantes e recorrentes na trama; a
função da música como extensão narrativa; o caráter mítico; e a necessidade a adequação da
história com o contexto social da sua produção.
I – O motor da história
“A ênfase em personagens muito bem definidos [...] e a diretriz para uma história bem
contada, sempre foram a pedra de toque das produções da Disney [...].” (SURRELL, 2009,
p.105) Ora, este é um princípio que fundamenta não só os filmes da Disney, mas toda a arte
de ficção. Então, considerando personagem e história o coração de uma obra, tentemos
visualizar amplamente como eles são trabalhados na Disney, passando, antes, por uma
consideração interessante sobre o poder da ficção.
Nos anos 3000, quando a série de ficção científica “Jornada nas estrelas” já havia sido
banida da Terra e enviada para o planeta Ômega 3, Fry, um americano do século XX, fã da
série, que chegou a esse futuro graças à criogenia, decide resgatar os episódios perdidos do tal
planeta. Quando preparava a nave para partir, seu amigo, o robô Bender, lhe pergunta por que
essa série era tão importante para ele. A resposta de Fry foi a seguinte: “Ora, porque me
ensinou muita coisa. De como devemos aceitar as pessoas, sejam elas negras, brancas,
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klingon... ou até mulher. Mas o mais importante, quando eu não tinha nenhum amigo, me fez
sentir que eu talvez tivesse”.
Esta descrição é sobre um episódio da série de TV “Futurama”.2
Nas palavras da personagem Fry, podemos perceber um depoimento sincero do efeito
da ficção na sociedade: a ilusão de outra realidade, seja para a suplantação de angústias, seja
para uma simples fuga da realidade; em suma, para o divertimento. Mas,
De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. (CANDIDO, 2005, p.55)
Considero, então, as palavras de Candido em seu texto “A personagem do romance”,
(expandindo-as para as personagens da ficção das mais diversas artes) como um panorama
geral dos artifícios que conferem credibilidade às personagens: (i) elas devem ser verossímeis
no que diz respeito à possibilidade de “comparar o mundo do romance [e da ficção] com o
mundo real (realidade igual à vida)” (ibidem, p.75); (ii) tendo mais validade quando a
personagem em questão exerce um papel funcional dentro da história, encaixando-se na
organização interna da trama.
As “narrativas” da Disney conseguem efetivar esses dois fatores: a verossimilhança e a
funcionalidade interna, fornecendo a tal falsa ideia da apreensão de uma personalidade
completa. O diferencial nos filmes é como ocorrem esses dois fatores. Enquanto algumas
obras de ficção (se não se puder falar “maioria das”) que existem trazem um protagonista e
algumas personagens secundárias dentre as muitas da história3 que são verossímeis E
funcionais. Nas animações Disney, a maioria esmagadora das personagens apresentam essas
características.
Além disso, é bom destacar que as personagens, mesmo que “terciárias”, relacionam-
se de modo singular com as outras e com outros elementos da narrativa, gerando um grande
número de relações com valores empregados. Isto é, toda personagem de uma animação
2 O episódio referido é o 12º episódio (dublado) da 4ª temporada, intitulado “Um fã pra lá de fiel” (título original: Where no fan has gone before). “Futurama” é uma série de animação da 20th Century Fox Television criada por Matt Groening em 1999 e continua sendo produzida até hoje. 3 Nesse ponto, estou me referindo a personagens auxiliares que não têm muita participação na trama, os figurantes, os que não têm fala, enfim, os outros que habitam no universo fictício. Não quero, de forma alguma, aplicar um julgamento de valor, já que podem sim haver boas histórias, com bons temas e bons personagens em que nem tudo seja verossímil e funcional.
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Disney não existe apenas para uma função na trama, mas também em função de sua própria
personalidade e uma interação além-trama.
Pode-se compreender que isso seja fruto da experiência criativa única pertencente à
animação, em que é possível desenhar uma personagem conforme os desejos do artista,
recorrendo a recursos gráficos para expressar emoções de modo como nenhum ator real ou
autor munido de palavras poderia fazer. “Grandes animadores colocam-se na pele da
personagem a fim de criar empatia com ela e encontrar a melhor maneira para canalizar as
emoções dessa personagem através de seu pincel e no papel.” 4 (HAHN, 2009, p.90).
Também deve ser lembrado que, na Disney o repertório de referências, experiências,
técnicas e ideias que dão vida às personagens é multiplicado. Diferentemente de um único
autor de uma obra literária que deve criar sozinho, com base em suas próprias referências
individuais, todas suas personagens, na Disney, desde o início dos longas-metragens
animados, um grupo de profissionais formam um núcleo que se ocupa do desenvolvimento de
uma personagem ou um pequeno conjunto de personagens. Assim, a equipe emprega atenção
especial na criação desse ser fictício responsável pela sustentação da história.
II – O conto mítico da contemporaneidade
Hoje em dia, quando se fala sobre alguns contos de fada como “A pequena seria”,
“Branca de Neve”, “Cinderela” etc. com alguém que tenha crescido assistindo aos filmes de
que estamos falando, possivelmente a pessoa pensará em um primeiro momento nas
adaptações dessas histórias para o cinema feitas pela Disney. Já quando se fala em filmes da
Disney, o quê vem à cabeça são contos de fadas como os anteriormente citados.
Positivamente, a animação Disney e os contos de fada estão associados, apesar de que,
tomando-se toda a produção da empresa, esses contos não sejam maioria dentre as obras
adaptadas.
Essa impressão ocorre, talvez, pelo fato dos filmes em questão transformarem-se todos
em contos míticos, refletindo princípios dos antigos contos de fada e mitos do passado:
[...] as formas do conto de fadas e mito estão disponíveis para exprimir, predominantemente, quer a positividade e a aposta nas forças do ser humano, quer a negatividade decorrente dos limites impostos ao ser humano pela vida em sociedade. Isso ocorre desde a infância. (SPERBER, 2011, p.23)
4 “Great animators put themselves into a character’s shoes in order to empathize with it and find the best way to
channel that character’s emotions through their pencil and onto the paper.” Tradução minha.
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É esta aposta na bondade e na capacidade do homem e a superação dos obstáculos que
se repete filme após filme da Disney, sem exceção, manifestando-se na jornada do herói (ou
heróis, em alguns casos). Essa jornada, na maioria das vezes, ganha um reforço mítico com
personagens, elementos, situações e lugares arquetípicos (tão arquetípicos quanto o próprio
herói): um velho mentor que auxilia o protagonista; um trapaceiro que tenta desviá-lo de seu
caminho; o príncipe e outros “objetivos” a serem alcançados; uma transgressão (positiva ou
negativa) que desencadeia a jornada; lugares sombrios que ambientam essa transgressão
negativa; a interferência de forças sobrenaturais (favoráveis ou não) e, imprescindivelmente
na Disney, a oposição do bem e o mal.
Ao longo dessa jornada, entram em cena temáticas vitais, como o conflito amoroso, o
sentimento de desencaixe dentro da sociedade, os conflitos do eu com o outro, com a
sociedade, com a natureza etc. Mas no filmes da Disney, alegorizado nestes temas, há um
conflito maior e mais vital: o conflito do eu consigo mesmo, dos seus desejos com a sua
condição e o modo (geralmente errado) que o protagonista encontra para superar essa
condição.
[...] o mito, a magia e a busca por transcendência [...] estão ligados àquilo que temos de mais humanos: nossa capacidade de ter dúvidas, de sonhar com o inalcançável, de aspirar à espiritualidade, de sofrer ante o trágico e admirar o belo. (SPERBER, 2011, p.7)
Superar os obstáculos para alcançar o sonho e cessar o conflito do eu consigo mesmo é
o tema que reina na Disney, vindo desde a história pessoal de Walt Disney e da sociedade em
que ele viveu segundo Neal Gabler:
Tanto na imaginação de Disney quanto na imaginação americana era possível afirmar a vontade individual sobre o mundo; era possível, usando o próprio poder, ou, mais exatamente, mediante o poder da bondade inata, alcançar o sucesso. [...] Os melhores desenhos animados de Walt Disney – Branca de neve e os Sete Anões, Pinóquio, Bambi e Dumbo – são expressões arquetípicas dessa ideia. Eles tratam, em grande medida, do processo de afirmação de uma criança no mundo, do processo de superar obstáculos para se tornar aquilo que ela ou ele querem ser. De forma semelhante, tanto na imaginação de Disney quanto na imaginação americana, a perfeição era uma meta conquistável. (GABLER, 2009, p.14)
É interessante aprofundar a reflexão sobre a jornada do herói e como a trama organiza-
se nos filmes a partir das palavras de Jason Surrell (2009). Ele demonstra um modelo
maleável de uma estrutura de três atos nas narrativas dos filmes: no primeiro ato são
apresentadas as personagens e o conflito principal que se estabelece no mundo comum (o
espaço comum ao protagonista e sua sociedade); no segundo ato o herói é forçado ou
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pressionado a iniciar sua jornada em outro espaço, chamado pelo autor de mundo
extraordinário, momento em que conhece outras personagens arquetípicas; e no terceiro ato o
herói retorna ao seu mundo comum, com os conhecimentos adquiridos no mundo
extraordinário e resolve o conflito inicial, restaurando a paz.
Quanto à estrutura de três atos, é bem verdade o quê Surrell diz; este paradigma é
extremamente recorrente, trata-se de um esquema básico de introdução, desenvolvimento e
conclusão que garante que os filmes atinjam seu objetivo: o divertimento e entretenimento,
poupando o espectador de processar mentalmente uma história longa com muitos conflitos e
reviravoltas. Mas no que diz respeito à jornada no mundo extraordinário, podemos ir além.
É notável que nem todos os filmes contam com um espaço extraordinário como aquele
que existe em Branca de Neve e os sete anões (1937)5, A pequena sereia (1989) e O rei leão
(1994). Mesmo assim, a noção de mundo extraordinário é incontestável quando percebemos
que em filmes como Bambi (1942), Mogli – o menino lobo (1967) e Lilo e Stitch (2002), o
extraordinário está em outras categorias narrativas que não o espaço. Em Bambi, o quê
desencadeia a jornada pelo extraordinário é a morte da mãe e o extraordinário assume mais de
uma forma, são a figura do pai e o amor; em Mogli, a chegada do tigre Shere Khan à selva
leva o herói numa jornada pela própria selva; e em Lilo e Stitch, o extraordinário está em uma
personagem, o extraterrestre Stitch, que simboliza uma “jornada estática” ao “sobrenatural”.
Um dos resultados do bom trabalho com essa estrutura mítica nos filmes é uma obra
atemporal, que passe pelo teste do tempo, não se tornando uma crítica ou representação de um
modelo social vigente. A atemporalidade das animações da Disney, segundo Surrell, deve-se à
ambientação em um mundo de fantasia ou natural na maioria das vezes, ou em um cenário de
época (do passado ou de um futuro tecnológico), entre outros fatores como boas personagens.
Ainda assim, acredito que filmes que têm ambientação contemporânea – como 101
dálmatas, Oliver e sua turma, A dama e o vagabundo e Aristogatas – têm seu caráter
atemporal garantido pelo emprego feliz dos valores contemporâneos e os valores humanos.
Podemos perceber que valores contemporâneos (vestimentas, linguagem, arquitetura,
sociedade etc.) são elementos que se situam no tom da narrativa, no modo, espaço e no tempo
em que ela é contata. Já os valores humanos, os temas vitais já ditos aqui, que figuram como
assunto de história desde os mitos e contos de fada antigos, são usados sabiamente no efeito
do filme, nas catarses e na moralidade.
5 Os anos de lançamento dos filmes foram todos retirados da relação das animações Disney presente no livro de Surrell (2009)
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III – O discurso moral
Aliado a esse modelo mítico, aos temas vitais que compõe o “significado” da história,
as animações da Disney também contam com um discurso moral. Este discurso divide a cena
com o plano trágico-heroico e o cômico. É geralmente um tema moral simples (vital também)
que se desenvolve conforme a narrativa avança e, algumas vezes, pequenas lições morais nas
tramas secundárias, confundindo-se com o plano cômico (a ser tratado a seguir).
Pode-se relacionar o teor moral dos filmes com o cunho moral das fábulas das mais
diversas civilizações. A fábula, nesse sentido, configura-se, segundo Dezotti (2003, p.21-28),
como um “ato de fala que se realiza por meio de uma narrativa” e “como um discurso
alegórico, ancorando o ‘outro’ significado ao contexto de enunciação”.
Mas há uma diferença entre os filmes Disney e o discurso da fábula: trata-se,
notavelmente, da extensão e da “complexidade” da narrativa. Enquanto a fábula ocupa-se do
tema moral, configurando uma história simples, na Disney, o tema moral dilata-se e se
configura simples, enquanto o enfoque É a história (e os personagens).
Surrell sintetiza de forma interessante como o “modo de contar” da fábula torna-se
uma grande animação dos estúdios, tomando de exemplo o tema moral de A bela e a fera
(1991):
Em outras palavras, é muito mais importante que você diga “quero contar uma boa história” ou “quero apresentar pessoas a esses personagens esquisitos, e não “quero contar ao mundo que está errado julgar o monge pelo hábito”. (SURRELL, 2009, p.142)
IV – Discurso cômico
Não bastasse a fusão do discurso mítico da jornada do herói com a configuração
alegórica e moral da fábula, que não está originalmente prevista para narrar a trajetória
individual do protagonista (trajetória física e psicológica), o discurso Disney traz ainda um
discurso cômico para “contracenar” com cenas e temas trágicos.
A comicidade nos filmes ocorre nas tramas secundárias que se desenvolvem ao longo
da narrativa e é executada, majoritariamente, pelas personagens secundárias e, em alguns
casos, pelos antagonistas e pelo próprio herói.
A presença do humor nesses filmes é algo pertencente ao mundo da animação, que
raramente tem um caráter prevalentemente sério. É um fato inegável que desenhos animados
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tendem para o humor, satírico ou não, intelectual ou simples; de modo geral, a proposta do
desenho é, antes de contar uma história trágica, contar uma história de humor.
E o modo como os filmes da Disney trabalham seu humor é sua constante. Antes dos
longas-metragens, Walt Disney já produzia em sua ainda pequena empresa vários desenhos
curtos humorísticos, como os desenhos do Mickey Mouse. Pela natureza do desenho
caricaturesco e pela duração limitada, eles se fundamentavam na ideia do fazer rir, não
explorando ainda histórias mais complexas. Naturalmente, quando Walt iniciou a empreitada
de produzir filmes com mais de 60 minutos, o humor entrou junto.
Surrell ainda atribui ao tipo de humorismo Disney a característica de atemporalidade:
Walt tinha especial cuidado para se manter longe de slogans ou máximas e quaisquer referências culturais ou outros elementos que pudessem datar imediatamente um filme, apenas para obter com rapidez algumas risadinhas. Quando o humor deriva organicamente de uma determinada situação em que um personagem esteja bem definido, o filme tem oportunidades muito maiores de permanecer acessível a plateias pelas próximas décadas. (ibidem, p.52)
Assim, entendemos que o cômico parte de valores humanos, não de época6. Também
ocorre de forma simples, evitando o “grotesco” e o exagero descomedido de uma caricatura.
Às vezes vem da revelação de defeitos “suaves” das personagens, físicos e psicológicos, como
os problemas de flatulência de Pumba ou a prepotência de Timão, de O rei leão; outras vezes
da situação particular em que ocorrem as confusões que geram a catarse cômica.
Trata-se, então, de algo intencionalmente cômico encaixado em um molde mítico
heroico.
V – A canção
No cinema, a narrativa torna-se pluridimensional, encontrando extensões na fotografia,
na trilha sonora, nas canções. Nas animações da Disney não é diferente. O tema principal tem
sua manutenção em símbolos visuais como formas, contornos e cores recorrentes, criando
outros planos de significação. Outro instrumento de manutenção é a música: temas musicais
remetem ideias e emoções previamente estabelecidas.
Mas a música, a canção, desempenha um papel mais importante nesses filmes,
tornando-se uma continuidade da narrativa verbal. Em uma canção, a personagem (e sua
6 Existem filmes que trazem marcas do tempo de sua produção e tiram delas, inclusive, tentativas de catarse cômicas que, hoje em dia, já não fazem mais efeito, como em Aladim (1992), em que o gênio faz alusões a figuras populares da sociedade norte-americana daquela época.
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personalidade) é definida, seus sonhos são expostos ao público, situações são descritas com
objetividade e brevidade, enfim, “os filmes da Disney também empregam a música e canção
para apresentar os elementos básicos da história e evitar a lentidão mortificante de exposições
intermináveis.” (ibidem, p.97).
E de tão enraizada na cultura de fazer desenhos da Disney, a canção nesses filmes
configura arquétipos de canções, como indica Surrell. Arquétipos como a música “eu quero”,
cantada pelo protagonista, localizada geralmente no primeiro ato e que sintetiza os almejos da
personagem; a música do vilão, que explora os desejos do antagonista; e a canção de amor
que ocorre geralmente na segunda metade do segundo ato.
VI – O efeito do tempo
Entretanto, não se deve pensar ingenuamente sobre como todas as características
listadas anteriormente se aplicam nos filmes da Disney. Não existe um padrão totalmente
constante: “Com toda a certeza não existe nenhuma ‘lista de verificação da história’ afixada
na parede da suíte dos executivos. Só existem contadores de histórias e fazedores de filmes –
talento criativo e executivos de estúdio, lado a lado – que levam muito a sério a tradição
Disney.” (ibidem, p.11-12)
Essa tradição Disney que pode ser encontrada nas palavras escritas até aqui: mito,
moral, personagem, riso e música. Mas os autores dessas histórias, as mentes criativas que
criam contos imortais são mortais. Essas pessoas são demitidas, abandonam os estúdios da
Disney, ficam doentes e morrem. Obviamente, a mudança do grupo de autores implica em
mudança nas características artísticas.
Mas elas também se alteram em função do público. As mudanças na sociedade mudam
a visão que se tem de conceitos e valores e a produção da animação Disney não ignora essas
mudanças.
As personagens, por força da verossimilhança, acompanham aquilo que o público
espera delas no que diz respeito a sua personalidade e atitudes. Surrell traz uma reflexão sobre
a personalidade de Bela, de A bela e a fera:
Especialmente no conto original, a Bela era pouco mais do que um peão controlado pela Fera e por seu pai; suas ações eram amplamente ditadas por uma cega devoção a essas duas figuras masculinas. Linda [a roteirista do filme] sabia que uma “mulherzinha” tão delicada e passiva teria funcionado bem no anos 1950, mas seria praticamente inaceitável nos últimos anos do século XX. (idem, p.38)
10
De fato, em Branca de neve (1937), Cinderela (1950) e A bela adormecida (1959), as
heroínas são passíveis aos conflitos: Branca de Neve não luta contra o caçador para salvar sua
vida, Cinderela não foge de casa para se livrar do autoritarismo da madrasta e Rosa não vai a
busca de seu verdadeiro amor. Já em A pequena sereia (1989), A bela e a fera (1991), Aladim
(1992) e Pocahontas (1995) as “princesas” são mais ativas e tomam decisões mais
importantes para o desenvolvimento da trama.
Do mesmo modo, outros valores são afetados pelo transcorrer das décadas, mesmo que
a história seja ambientada em um tempo e sociedade com outros costumes, já que o que
realmente interessa é a verossimilhança em relação ao público e à estrutura internas da trama,
e não em relação à sociedade retratada. São valores de época que, como já dito, não influem
no efeito do filme: tanto em Branca de Neve como em A bela e a fera, a realização do desejo
pessoal e o encontrar um lugar na sociedade ocorre de modo a atingir a emoção de qualquer
público humano.
A canção, por exemplo, teve seus momentos específicos ao longo da produção, como
mostra Surrell:
Quase todos os longas de animação de Walt eram musicais completos, uma tradição da qual ele começou a se afastar no início dos anos 1960, com filmes como 101 dálmatas e A espada era a lei. Esses filmes contêm uma boa canção aqui e ali, mas não podem ser considerados musicais no sentido mais clássico. [...] Essa abordagem menos ambiciosa da música e da canção continuou até 1989, quando A pequena sereia restabeleceu os estúdios Walt Disney como um dos mais importantes produtores musicais em Hollywood, na Broadway, e pelo mundo afora. (ibidem, p.89)
O humor também é alterado. Inicialmente o humor era muito mais ingênuo, advindo
de situações simples como algum animalzinho rechonchudo com sua face contorcida de raiva
ou com um jeito atrapalhado; em outras palavras, no começo, o humor desses filmes era como
aquele que um bebê provoca em um adulto. Com o tempo, o riso passou a vir de situações
mais sofisticadas e com mais zombaria. Passa-se a rir de uma personagem por causa de suas
características humanas negativas, sua capacidade intelectual reduzida, sua prepotência
exagerada etc.
Palavras finais
Tudo isso dito, podemos perceber que a Disney constitui uma política de fazer
desenhos de forma singular, principalmente no que toca à fusão de vários discursos
11
narrativos: o cômico, o trágico-heroico, o mítico, o de interpretação moral e a canção,
tornando o discurso Disney um discurso híbrido.
No que implica na história, os filmes as configuram dentro dos seus padrões
atemporais e míticos, adaptando obras diferentes a esses padrões, como quando adapta para a
mesma forma de animação tanto um conto de fadas, um romance ou uma peça teatral, sejam
eles trágicos, cômicos, de cunho moral ou não; se encerram da mesma forma nas telas.
Existem, certamente, elementos de todos esses apelos no trabalho de Disney, e sua enorme popularidade é, sem dúvida, o resultado de uma combinação de fatores – na verdade, a habilidade de Disney para reunir muitas coisas díspares e até tendências contraditórias. (GABLER, 2009, p.11)
Assim, gênero Disney pode ser definido como o conto mítico do nosso tempo, é o tal
“tale as old as time, song as old as rhyme” declarado na canção tema de A bela e a fera.
Referências bibliográficas:
CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 11º Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
DEZOTTI, M. C. C. A fábula. In: _____(org.). A tradição da fábula – de Esopo a La
Fontaine. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa oficial do Estado de
São Paulo, 2003.
GABLER, N. Walt Disney – o triunfo da imaginação americana. Tradução Ana Maria
Mandim. São Paulo: Novo Século, 2009.
HAHN, D. The alchemy of animation – making an animated film in the modern age. Nova
Iorque: Hyperion, 2008.
SPERBER, S. F. Apresentação; Introdução: a lenda da Flor Azul, o mito e o conto de fada. In:
VOLOBUEF, K. (org.). Mito e magia. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.1-23.
SURREL, J. O Segredo dos roteiros da Disney – dicas e técnicas para levar magia a todos
os seus textos. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Panda Books, 2009.
Waking Sleeping Beauty. Direção de Don Hahn, distribuído por:Walt Disney Studios
Motion Picture, 2009. 86 min.