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O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E LUIS MARTÍN-SANTOS
Giseli Tordin (UMass, Amherst)
RESUMO: Procura-se apresentar a correlação entre corpo, ficção e realidade a partir da leitura de três obras: uma peça teatral, Festa, baseada no conto “Las fotografías”, de Silvina Ocampo, e encenada pela companhia de teatro Shiva, Los traidores, teatro escrito por Silvina Ocampo e J.R. Wilcock, e uma narrativa de Luis Martín-Santos, Condenada belleza del mundo, inspirada em um filme espanhol, El próximo otoño (1963). Condenada belleza del mundo assemelha-se a um roteiro no qual se relata como a personagem deve evidenciar ao espectador que os encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Já Los traidores centra-se na história da família imperial romana. A impostura de um dos filhos de Septimio Severo, Basiano, o Caracalla, gera realidades outras. Apenas os traidores sabem algumas verdades, como o assassino do imperador e de seu outro filho, e Basiano dificilmente reconhecerá o próprio mundo que criou. Em Festa, é a posição do corpo do ator que provoca tanto o efeito das diferentes sensações de realidade quanto a indiferença em relação ao outro, a que provém de um excesso do eu que transforma este outro em objeto ou desloca-o a um lugar de indiferença. O mal-estar que o corpo do ator capta, mas não sente, é devolvido ao espectador. A leitura comparada das três obras deve permitir reconhecer que o mais real é aquilo que, muitas vezes, escapa da personagem ou do ator, mas que tem no espectador ou leitor a possibilidade de apreensão.
Palavras-chave: Silvina Ocampo. Luis Martín-Santos. Corpo. Ficção e realidade.
Um corpo, outras vidas
Antonin Artaud, certa vez, em carta endereçada a um amigo, escreveu que ele,
Artaud, era o seu próprio corpo, mas o corpo dele não era ele (ARTAUD apud
FORTES, 2010). Nesta sua leitura, o dramaturgo, escritor e ator francês afirmava que o
corpo era uma instância muito mais ampla do que qualquer identidade ou uma
identidade-ipseidade (em termos ricœurianos).1 A identidade, portanto, estava
compreendida pelo corpo. Mas o corpo não se subordinava à identidade.
1 Segundo Paul Ricœur (1978), a identidade-ipseidade não se forma a partir de uma acumulação de conhecimentos, mas provém do entendimento de si em relação ao outro. Diferentemente da identidade-mesmidade, que é a permanência de uma identidade ao longo do tempo, a identidade-ipseidade é um traço da constituição do sujeito que se forma no decorrer dos anos e através do outro.
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Assim, poderíamos pensar que o corpo aceita outras identidades. No teatro, isso
parece óbvio. O ator encena aquilo que ele não é, dando vida a situações e personagens
através da ação. No entanto, as percepções e os sentimentos dos atores não são
imutáveis. Inclusive na repetição de uma peça, suas percepções diferem-se.
O que garante a verossimilitude de uma obra ou o que permite que os
espectadores envolvam-se mais com aquilo que lhes é apresentado é a existência de um
efeito de verdade, o qual provém da própria ação das personagens, dos corpos que
atuam. Segundo Konstantin Stanislavski (1936), o efeito de verdade no teatro não
significa atestar a real existência de um evento, mas, sim, apontar que determinado fato
tem possibilidade de ocorrer.
No entanto, há obras teatrais e literárias que parecem pôr em xeque algumas
dessas concepções. Em Los traidores, única peça teatral escrita por Silvina Ocampo e
Juan Rodolfo Wilcock, reconta-se uma história oficial, trazendo, inclusive, os nomes
verdadeiros de quem figurava no poder do império romano no ano 211 da nossa era.
Basiano, filho do imperador Septimio Severo, expressa explicitamente que algumas das
outras personagens com quem está em contato agem por agir. Ele começa a ter dúvida
com relação ao desdobramento dos fatos porque observa que muitos parecem
representar a história de um livro, atuando de modo automático.
Já em Condenada belleza del mundo, de Luis Martín-Santos, o narrador controla
a personagem descrevendo como esta deve atuar para persuadir o espectador e ela
mesma sobre tudo aquilo que deve sentir. A ênfase às percepções da personagem parece
reduzir o efeito de verdade ou de qualquer beleza estética que a obra poderia suscitar. E
em Festa, uma peça encenada por uma companhia brasileira de teatro, grupo Shiva, e
adaptada de um conto de Silvina Ocampo, “Las fotografías”, os corpos em cena
parecem não perceber a própria angústia que representam. E o espectador fica com o
ônus da tragédia criada.
Como, portanto, compreender através das personagens as diferentes dimensões
de realidade e ficção? O que é a verdade numa obra de ficção ou em um teatro? O que é
o real nessas obras? Estariam as obras colocando ênfase na possibilidade de os atores
agirem de modo automático? Quais os efeitos de sentido?
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A partir da fronteira entre cinema, teatro e literatura, procura-se neste trabalho
responder a essas questões considerando as diferentes espessuras da realidade
transvasadas ao corpo: como os corpos que estão no espaço da cena, corpos que ganham
o plano através da visualidade háptica e os corpos que estão além dos corpos, na sua
virtualidade circunstancial, permitem outros reconhecimentos ao modificar a postura do
espectador ou leitor. Pressupõe-se que esse reconhecimento constrói-se a partir daquilo
que não podemos nomear e que está no inconsciente ou nos subterfúgios que, desde o
outro, percebemos como nossos.
O real no outro lado da moeda
Em Los traidores, trata-se de uma peça sobre a história de dois irmãos, Basiano,
conhecido como Caracalla, e Publio, que herdarão o império romano após a morte do
pai, Septimio Severo. São todas personagens históricas que fazem uma releitura do
acontecimento principal, que é a morte de Publio, cujo assassinato é supostamente
perpetrado por Basiano. A peça, porém, não reafirma o que a História provê. A beleza
encontra-se nas dimensões de incerteza que a atuação possibilita. Todos os fatos
históricos reaparecem ali, porém, entrelaçam-se gerando uma leitura outra: a de que
nunca se sabe quem, de fato, mata Publio tampouco o pai, morto havia dois meses,
apesar de todos ali fingirem que ainda está vivo.
Como o fingimento posto em cena é de conhecimento do espectador, sua
encenação parece ser dirigida aos que não pertencem à corte. No entanto, as
personagens, ao atuarem de modo a inventar outras possibilidades sobre a situação de
Septimio Severo – um faz-de-conta –, criam realidades paralelas em relação a uma
realidade primeira. A atuação mistura-se à atuação da atuação. No desenvolvimento da
peça, é esta desconfiança que gera incertezas:
La imperfecta visión de dos hermanos que se odian y su madre que los ama. ¡Quiere decir efigie y dice esfinge Los tres aislados, como en un teatro,
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representando un drama establecido, iluminados, sin mirar al público que nada entiende y sin embargo aplaude allá arriba en oscuras graderías. ¡Si pudiera encontrar en algún libro el texto de esa historia defectuosa que los dioses me obligan a inventar! ¿Viste que dijo esfinge en vez de efigie? (OCAMPO, 1956, p.34).
As palavras de Basiano, conquanto sejam irônicas e coloquem em primeiro
plano o isolamento de cada personagem, não são capazes de revelar a ele mesmo, dentro
desta metalinguagem (que é capaz de observar), que o mais real é a ausência de uma
história coletiva pela qual ele mesmo, Basiano, teria responsabilidade. O isolamento
deve-se à sua própria incapacidade de entretecer as narrativas das demais personagens e,
assim, construir um sentido de verdade que mude os caminhos de uma história já
estabelecida.
Basiano não percebe que ele poderia ser ator dele mesmo e não de outrem. As
personagens deixam de criar ou de representar uma realidade da qual todas elas
deveriam fazer parte. Elas não atuam no sentido mais amplo e plural porque o outro é
excluído de sua própria constituição. O outro é sempre o inimigo.
Um aspecto fundamental da peça não é a descoberta ou não do assassino de
Publio, mas o simulacro da atuação que revela um espaço desprovido de realidade.
Basiano, ao explicitar desconfiança e temor e, portanto, ao isolar-se, faz nascer de seus
atos mundos que se distanciam. O mundo de seu irmão, o mundo de sua mãe e de todas
as pessoas da corte não se correspondem ao seu porque uns desconfiam dos outros.
Segundo Hannah Arendt, a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros.
Somente há potencialidade de ação no lugar onde exista confiança mútua. Ora, é
exatamente o oposto engendrado por Basiano que começa a governar suspeitando de
todos. Sua tirania produz o seu isolamento (refletido em seu monólogo) e fomenta,
utilizando as palavras de Arendt no contexto da análise do poder tirano, “os germes de
sua própria destruição” (ARENDT, 2005, p.229). E isso é o mais real da peça.
No prólogo, as Eumênides, sentadas junto ao público, aparecem repentinamente
e anunciam a todos que a obra teatral está repleta de traidores. Embora refiram-se a
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personagens que ainda não estão no palco, elas são capazes de prever seus atos e ouvir
as vozes de quem sequer apareceu. Elas repetem que a noite é antiga, assemelhando-se à
Scherezade de As mil e uma noites, pois narram acontecimentos dos quais estão
ausentes, não obstante falem de dentro da história e revelem aquilo que só elas podem
ouvir. Quando se abrem as cortinas, elas voltam a sentar-se e retornam ao final para
reafirmar a traição. Sempre há a tentativa de marcar a dimensão da ficção como se a
atuação fosse um fingimento. Mas o que se observa ao final é o contrário.
Isto não é um cachimbo
A peça de Ocampo e Wilcock lembra a obra de René Magritte, Ceci n’est pas
une pipe, de 1928-1929. A frase escrita no quadro, Isto não é um cachimbo, recordando
os moldes de uma legenda, contradiz a figura de um cachimbo. Cria-se uma disparidade
entre o enunciado e o objeto. Talvez Magritte desejasse chamar atenção para o fato de o
desenho não ser o objeto, mas apenas uma representação. Portanto, a arte não é a
realidade em si, mas espelha a realidade, é uma imagem desta. Também se poderia
pensar que a frase – a palavra – exerce um poder muito forte sobre nós porque a
representação de um objeto não é suficiente para afirmar o valor do objeto, mas é a
palavra que o determina.2
A similaridade entre Los traidores e Ceci n’est pas une pipe provém deste
aspecto: Basiano, na peça, desconfia de todos de sua família porque não acredita na
representação. Não é capaz de observar que esta tem um valor de verdade e espelha o
engano que está nele mesmo, mas é atribuído ao outro. Basiano acredita em suas
palavras as quais funcionam como uma espécie de legenda à representação à que
assiste. Ele aponta, na peça, às relações entre o conhecido e o desconhecido: por um
lado, demonstra conhecer o estatuto da ficção, que há personagens que atuam ou que
2 Para mais detalhes, consultar Isto não é um cachimbo, de Michel Foucault, disponível em http://ltc-ead.nutes.ufrj.br/constructore/objetos/FOUCAULT,%20Michel%20%20-%20Isto%20n%e3o%20%e9%20um%20cachimbo.pdf
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mentem. Por outro lado, na vertente do desconhecido, teme qual será o fim da história;
não sabe se conseguirá permanecer no poder.
Tomo emprestado um exemplo de Slavoj Žižek sobre a relação entre o
conhecido e o desconhecido, a fim de tornar meu argumento mais claro. Donald
Rumsfeld, secretário de defesa dos Estados Unidos, em fevereiro de 2002, justificou por
que os Estados Unidos deveriam invadir o Iraque. Disse Rumsfeld que havia o
‘conhecido conhecido’, ou seja, sabemos que sabemos; o ‘desconhecido conhecido’: há
coisas que agora sabemos o que não sabemos; e o ‘desconhecido desconhecido’: há
coisas que não sabemos e que sequer podemos suspeitar. Assim, justificava a invasão
no Iraque porque havia ameaças iminentes que os Estados Unidos não sabiam, além de
outra ameaça que nem imaginavam.
Žižek diz que Rumsfeld é um filósofo amador porque o principal não era dizer
sobre as ameaças de Saddam Hussein das quais não suspeitavam, mas, sim, ‘o
conhecido desconhecido’, que é o inconsciente freudiano: o conhecimento que não se
conhece a si mesmo. Tudo o que negamos estar em nós e que dirige nossas ações. O que
julgamos ver no outro (ou o que os Estados Unidos julgavam ver no Iraque) é a
existência de algo que está em nós mesmos (nos Estados Unidos) sem suspeitar que este
inimigo existe devido às nossas (às suas) crenças.
Basiano é incapaz de observar que, no excesso de suas palavras, há algo que lhe
escapa: suas ações dirigem-se a ele mesmo. A convicção em suas suposições não lhe
permite ver que tramam contra ele. A existência da metalinguagem apontava também a
um espelho. Basiano deixa de olhar-se e é surpreendido pela repetição do passado, de
uma história já escrita. Ele evita que o passado seja dinâmico. Ele não elabora, portanto,
outra experiência porque talvez tenha medo: o medo de encontrar a sua verdadeira face.
O medo impede a sua autonomia, provoca reincidências, dificultando que ele modifique
a dimensão virtual do passado.
Dom Quixote, diferentemente de Basiano, transforma seu próprio caminho: ao
saber que um escritor apócrifo conduzia-o rumo à cidade de Zaragoza, o Cavaleiro da
Triste Figura, por vontade própria, dirige-se a Barcelona. Dom Quixote é uma
reinvenção de si mesmo. Reinventa-se no interior de sua própria leitura. Porém, não se
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trata de uma leitura parada. A leitura ocorre enquanto atravessa o mundo. Dom Quixote
vive porque lê e modifica, inclusive, os rumos de uma história já escrita.
Michel Foucault (2002) afirma que a grande façanha de dom Quixote não são as
batalhas, mas, sim, a própria transformação da realidade em signo. A ficção reinscreve a
realidade vivente de Dom Quixote. O cavaleiro modifica o passado virtual porque vive
no mundo da aparência sem, no entanto, percebê-lo como separado da realidade. Já
Basiano vive o mundo de suas palavras separadamente das ações que presencia e
desconfia das aparências que são, no fundo, o real.
O amor é o mais real
Condenada belleza del mundo, de Luis Martín-Santos, não é simplesmente uma
narrativa baseada em um filme espanhol, mas, sim, uma história outra que se faz a partir
de uma releitura desse filme. À semelhança de Los traidores, pode-se supor que
também há a descrença na aparência e, mais primordialmente, no amor, o que leva o
protagonista a afastar-se do universo da bela moça francesa, por quem se apaixona. Essa
descrença é criada pelo narrador cujas palavras funcionam como uma legenda, guiando
as ações do protagonista.
A convite do diretor catalão, Antonio Eceiza, Martín-Santos acompanha as
gravações de El próximo otoño, lançado em 1963. O texto do escritor e psiquiatra
espanhol nascido em Marrocos assemelha-se a um roteiro porque descreve como a
personagem masculina deve construir-se de modo a evidenciar ao espectador que os
encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Há um narrador
que impõe uma história de modo que a personagem parece não conseguir atuar de outra
maneira exceto a de fazer prevalecer o próprio desejo do narrador.
São destacados os enganos desse protagonista: de que a jovem francesa que ali
vem passar as férias não o ama. Há uma metatextualidade que amplifica essa
desconexão do protagonista com relação aos outros e consigo mesmo:
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El muchacho está absolutamente anclado en su vida anterior. Está enajenado por las circunstancias de su familia y él mismo. Es un débil. No tiene capacidade de cambio. Está resignado a su destino. (MARTÍN-SANTOS, 2004, p.12)
A ênfase nesta descrição pode ser compreendida como uma maneira de tornar o
corpo um objeto, um fantoche nas mãos de um autor: “No es necesario que se le vea
bien [...]. La cámara tiene que moverse a su alrededor, para demostrar que es un objeto”
(idem, p.17). É interessante destacar que o narrador tece uma descrição como se
estivesse apenas observando ou fazendo uma tradução dos fatos. No entanto, é o próprio
narrador quem cria esses sentimentos. O tempo todo o leitor não perde de vista que se
trata de uma história de um “encuentro no modificante” (idem), frase que é repetida.
Ora, a ênfase na exposição desses desejos (especialmente como devem ser expressos) é
uma tentativa de apagar a própria dimensão do protagonista e do seu corpo. Assim,
pode-se afirmar que essa própria ênfase, que desvela ainda uma metatextualidade que
nos coloca de frente com uma linguagem despida tanto de uma realidade quanto de uma
magia ficcional, mitiga o mundo das percepções, evidenciando que esta personagem,
este eu, não se adequa ao mundo, ou seja, que ele está em constante conflito.
A narrativa é tecida não a partir dos fatos, mas, sim, da própria gestualidade
inventada. São os gestos que o narrador diz vislumbrar a priori que vão determinar que
se trata de um encontro não-modificante. O que salta à vista, portanto, não é
propriamente a passividade da personagem exceto a formulação de um mundo
desencantado. Assim, o encontro efetivo com o outro não existe. Segundo Jacques
Lacan (1975), apenas os encontros produzem um mundo simbolizado. Na narrativa, o
momento do encontro já coincide com sua própria desfeitura. Desmancha-se no ar
porque as palavras do narrador proíbem o acesso ao outro. Os significantes, ao invés de
abrirem o texto para a multiplicidade de sentidos, adormecem-no.3
3 A literatura produzida por Luis Martín-Santos data do momento em que Espanha vivia a ditatura franquista que, iniciando-se em 1936, só terminaria no ano de 1975. A sociedade retratada por Martín-Santos em seus romances é uma sociedade moderna repleta de conflitos, como a impossibilidade de o sujeito assumir seus próprios papéis. Em um documentário sobre o dia do livro exibido pela Red de Televisión Española (RTVE 2), o livro Tiempo de silencio, único romance que publicou em vida, é comentado como uma das obras mais importantes do século XX na Espanha cujas formas de apresentação
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No filme de Eceiza, o sentimento de frustração da personagem Juan, quem não
consegue aproximar-se de Monique por acreditar que a jovem francesa não o ama, além
do fato se sentir-se impedido de viver este amor devido à sua condição social e familiar,
é percebido através da visualidade háptica. Trata-se, na verdade, de um conceito da
teoria fílmica desenvolvido pela pesquisadora canadense, Laura Marks, segundo o qual
a imagem que se projeta pretende que o espectador tenha uma experiência táctil. É
como se os olhos pudessem tocar a imagem e senti-la. Esta percepção isola o objeto de
seu campo visual. Assim, o espectador percebe, no filme de Eceiza, o próprio
afastamento dos mundos de Monique e Juan. Já no texto de Martín-Santos, a frustração
do amor acontece na medida em que as palavras do narrador impedem o contato entre as
personagens.
No entanto, não se deve perder de vista que o real é ainda o amor, sentimento
presente nas personagens. Por isso as inúmeras tentativas de dizer o contrário. Assim,
tanto no filme quanto na narrativa o que poderia devolver à personagem a sua crença no
amor seria um resgate do seu papel, essencialmente a tomada de consciência de seu
corpo como totalidade, o que lhe permitiria situar-se ativamente no mundo simbólico,
reescrevendo, com suas palavras, uma nova relação entre o imaginário e o real
(LACAN, 1975, p.130).
A verdade em um clic
Diferentemente do filme de Eceiza no qual o mal-estar é pressentido tanto pelo
protagonista quanto pelo espectador, em Festa, peça adaptada do conto de Silvina
Ocampo, o mal-estar será pressentido pelo espectador e não (ou em menor medida)
pelas personagens. O espectador não parece ser cúmplice, mas a quem o desafeto dirige-
se, visto que as personagens ali são mediadoras, passando indiferentes às circunstâncias
que se lhes apresentam. Trata-se da festa de aniversário de Adriana, uma jovem
paralítica. Os convidados, em silêncio, chegam com um presente, depositando-o em um
das personagens e encadeamento dos fatos são as mais arriscadas e inovadoras até então já produzidas. Disponível em: http://www.rtve.es/alacarta/videos/pagina-2/pagina-2-dia-del-libro/3097172/
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canto. Posicionam-se em pé e não conversam entre eles. No entanto, eles esperam
avidamente pelo fotógrafo cuja chegada modifica inteiramente o clima da festa. O que
era estático, sem palavras, ganha um ruído de vozes difícil de compreender. Eles fazem
da festa de Adriana um espetáculo particular, posto que cada um quer uma foto com a
melhor pose.
Adriana morre na festa, vítima do esquecimento, já que os convidados não
percebem que ela não estava bem. Todos são anti-heróis, provocadores de uma ação
parada, crua, engessada. Os convidados projetam ante o fotógrafo (através de inúmeras
poses) a imagem daquilo que eles não são (os seus excessos). As supostas imagens
estampariam, na verdade, o que gostariam de ser, mas o público sabe que enquadram o
oposto, ou seja, o resto: um quase não-existir.
O centro da festa é o flash da câmera fotográfica o qual preenche um desejo de
satisfação que, no entanto, nunca se sacia. Os assuntos sobre que conversam giram em
torno do banal, dos acidentes, de outras tragédias do cotidiano que se somam e que
pertencem exclusivamente ao outro. Os convidados são sempre emissores da
mensagem, nunca destinatários. Falam de tragédias, mas não a veem em si mesmos.
Os presentes configuram o que Walter Benjamin denomina “valor de
exposição”, já que estão subtraídos de uma esfera de uso e parecem relembrar a
constante indiferença entre convidados e aniversariante. Os presentes não cumprem sua
finalidade. Não são presentes com os quais se presenteia. São presentes empilhados. São
presentes ausentes. A pergunta que se poderia formular é por que as personagens não se
dão conta do mal-estar de Adriana. As personagens não se dão conta porque estão
imersas em outra realidade, a da fotografia. Há uma ênfase em torno à espetacularização
do elemento fotográfico.4 O real é a indiferença e todas as poses cujas imagens
poderiam revelar uma forma harmoniosa são o puro meio, não possibilitando a abertura
de um mundo outro. Tudo se esgota em uma sucessão de flashes.
4 Tanto o conto quanto a peça têm pontos de contato com a autoexposição nas mídias sociais. Silvina Ocampo elucidara nos anos de 1970, muito antes do Facebook, certa necessidade do mundo contemporâneo: a exposição para que o outro, quem está de fora, ateste a felicidade do sujeito. O que vale é a imagem da felicidade e do amor declarados a todos, não um sentimento no âmbito privado.
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Considerações finais
Como os convidados de Festa, Basiano não se coloca no ponto de vista do outro.
Não há empatia. Em Los traidores, as múltiplas menções ao espelho não são capazes de
fazer que Basiano enxergue sua própria história de destruição porque há um
adensamento da autossuficiência. Publio, já morto, ao aparecer ao irmão em forma de
espírito, diz que ao matá-lo Basiano estava matando a si mesmo.
Assinalar uma dimensão que contenha mais realidade que outra ou mais ilusão
do que outra – um excesso da metateatralidade – pode expressar o desejo, na peça de
Ocampo e Wilcock, de proteção; como se a própria metateatralidade fosse uma tela
protetora, dificultando um conhecimento de si mais profundo. O mesmo se pode afirmar
com relação à Condenada belleza del mundo. O narrador tenta dissolver os efeitos da
ficção, mas não consegue esconder que esse excesso reativa um resto, que é ainda a
possibilidade do amor.
Já em Festa, fotografar as inúmeras poses dos convidados revelava aquilo que
não era ou que não existia: a alegria. Com a morte de Adriana, apenas um ator
permanece em palco. O fotógrafo. Espera-se uma atitude dele ante o corpo sem vida.
Ele afasta-se de Adriana e, de costas ao público, começa a disparar novos flashes. A
indiferença persiste de modo mais monstruoso, pois agora é o espectador quem a
pressente mais de perto, como se fosse o próprio fotógrafo, uma vez que assume a
mesma perspectiva deste. Afirma Giorgio Agamben que graças ao objetivo fotográfico
um gesto aparentemente comum, sem relevância, carrega o peso de uma vida inteira;
“assume em si o segredo de toda uma existência” (Agamben, 2005, p.31). Mas em
Festa, o sentido maior não está no excesso das fotografias, mas naquilo que não foi
capturado pela lente e que só pode ser apreendido, em última instância, por quem
assiste, e não por quem atua.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Tr. Edgardo Dobry. Barcelona: Anagrama, 2005.
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ARENDT, Hannah. La condición humana. Tr.Ramón Novales. Barcelona. Paidós, 2005 ECEIZA, Antonio. El próximo otoño [Filme-vídeo]. Produção de Elías Querejeta. Direção de Antonio Eceiza. 1963. Duração: 87 min, VHS, Preto e branco.
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FORTES, Tiago. O corpo é um instrumento de trabalho do ator? O percevejo online. v.2, n.1, 2010. http://www.seer.unirio.br
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1978.
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ŽIŽEK, Slavoj. Sobre la violencia. Seis reflexiones marginales. Tr. Antonio Fernández.
Barcelona: Austral, 2013. 287p.