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O EXERCÍCIO ILEGÍTIMO DA PROFISSÃO DE ENGENHEIRO … · quando estiver em causa um crime de usurpação de funções em que alguém ... o procedimento respectivo depender de queixa

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O EXERCÍCIO ILEGÍTIMO DA PROFISSÃO DE ENGENHEIRO

E A POSSIBILIDADE DA ORDEM DOS ENGENHEIROS SE CONSTITUIR ASSISTENTE NO RESPECTIVO PROCESSO PENAL

Em Acórdão proferido a 17 de Janeiro de 2007, no Processo nº4681/06-41, os Senhores Juízes Desembargadores da 4ª Secção do Tribunal da Relação do Porto negaram provimento ao recurso interposto pela Ordem dos Engenheiros de um Despacho da Senhora Juíza de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim que indeferiu um requerimento da Ordem dos Engenheiros para se constituir assistente num processo em que estava em causa a prática de um crime de usurpação de funções, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal, consistente no exercício ilegítimo, porque sem título, da profissão de engenheiro civil, por parte de um arguido que não possuía as necessárias habilitações académicas e profissionais.

Nos termos do artigo 68º, nº1, alíneas a), b) e e), do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas ou entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação; b) as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; e e) qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

No douto Acórdão acima referenciado, os Venerandos Juízes Desembargadores fundamentam a sua decisão de negação de provimento ao recurso interposto pela Ordem dos Engenheiros invocando duas razões:

1ª – Entendem que não existe qualquer lei especial que confira à Ordem dos Engenheiros a possibilidade de se constituir assistente nos processos em que esteja em causa a prática do crime em questão, afirmando que a função que compete à Ordem dos Engenheiros, nos termos da alínea g) do nº2 do artigo 2º do seu Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei nº119/92, de 30 de Junho, de promover o procedimento judicial contra quem use ou exerça ilegalmente o título ou a profissão de engenheiro não significa que lhe confere o direito de se constituir assistente, por tal não resultar expressamente da letra da lei, ao contrario do que acontece, por exemplo, com a Lei n.º 10/87, de 4 de Abril (Lei de Protecção do Ambiente) que, no seu artigo 7º, alínea c), prevê expressamente que as associações de defesa do ambiente têm legitimidade para se constituir assistentes nos processos crimes contra o ambiente, e com a Lei nº 2/98, de 22 de Agosto (associações de defesa do consumidor). No entendimento daqueles Venerandos Juízes Desembargadores, a promoção do procedimento judicial significa aqui que à Ordem dos Engenheiros compete, na situação contemplada, impulsionar a instauração do respectivo procedimento criminal, que não é a mesma coisa que a legitimidade para se constituir assistente.

2ª – Entendem que a Ordem não é ofendida no crime em causa, previsto e punido pelo artigo 358º do Código Penal e consistente no exercício ilegal da profissão de engenheiro por um indivíduo que não possuía as necessárias habilitações académicas e profissionais, porquanto não é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, uma vez que, referem os Venerandos Juízes Desembargadores no seu douto Acórdão, citando Cristina Líbano Monteiro, no Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. III, pág. 439 e seguintes, o bem jurídico que o tipo legal do artigo 358.º do Código Penal visa proteger é a “integralidade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público”, representando as Ordens, no que diz respeito às profissões tituladas, apenas uma longa manus do Estado para a regulação de interesses públicos – não de interesses de uma classe ou conjunto de profissionais. Para além disso, a Ordem dos Engenheiros, em si mesma, em nada é afectada pelo exercício ilegal da profissão de engenheiro, embora, individualmente, cada engenheiro nela inscrito o possa ser, mas só indirectamente, na medida em que o exercício da profissão de engenheiro por quem não está habilitado acaba por se traduzir em concorrência desleal.

Mas será efectivamente assim? É verdade que o Acórdão em questão é irrecorrível no domínio do caso concreto em que foi proferido, porém, a tese que sufraga poderá ser posta em causa e submetida à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, para fixação de jurisprudência, caso venha a ser proferida uma decisão contraditória com esta pelo mesmo Tribunal ou por algum dos restantes Tribunais de segunda instância. Salvo o devido respeito, não nos parece que seja esta a solução correcta do problema, mesmo em face do direito constituído, não se mostrando convincentes os argumentos aduzidos neste Acórdão do Tribunal da Relação do Porto para justificar a decisão nele proferida, sobretudo se convocarmos para a discussão do assunto certas noções de direito administrativo.

Em relação à primeira das razões invocadas no Acórdão para negar à Ordem dos Engenheiros a possibilidade de se constituir assistente, é necessário lembrar que, nos termos do disposto no nº1 do artigo 68º do Código Processo Penal, se afirma que podem constituir-se assistentes, no processo penal, as pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito. Ora, a alínea g) do nº2 do artigo 2º do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/92, de 30 de Junho, atribui à Ordem dos Engenheiros a faculdade de, para protecção do título e da profissão de engenheiro, “promover o procedimento judicial contra quem o use ou a exerça ilegalmente”.

1 Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/.

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É verdade que esta norma não refere literalmente o direito de constituição de assistente, mas, em cumprimento do disposto no nº1 do artigo 9º do Código Civil quanto às regras de interpretação da lei, o sentido e o alcance da expressão usada pelo legislador: “promover o procedimento judicial contra quem use (o título) ou exerça (a profissão) ilegalmente”, não pode ser outro que não seja o de que o legislador teve intenção de conferir à Ordem dos Engenheiros o direito de se constituir assistente em processo penal quando estiver em causa um crime de usurpação de funções em que alguém se faz passar por engenheiro quando, na verdade, o não é, como terá acontecido no caso que suscitou o processo penal em causa.

Senão vejamos: pratica o crime em questão, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal, quem “exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-la, quando o não possui ou não as preenche”. Trata-se de um crime público, que, portanto, não depende de queixa. Que sentido faria que o legislador, que se presume consagrar as soluções mais acertadas e saber exprimir-se em termos adequados, tivesse querido apenas com aquela disposição legal - a alínea g) do nº2 do artigo 2º do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/92, de 30 de Junho – atribuir à Ordem dos Engenheiros o direito de apresentar queixa pela prática daqueles factos ilícitos?

Na verdade, tratando-se de um crime público, tal queixa seria uma mera denúncia, e o direito de denúncia de crimes públicos está conferido a toda e qualquer pessoa, porquanto, dispõe o artigo 244º do Código de Processo Penal, que qualquer pessoa que tiver notícia de um crime pode denunciá-lo ao Ministério Público, a outra autoridade judiciária ou aos órgãos de polícia criminal, salvo se o procedimento respectivo depender de queixa ou de acusação particular, o que não é o caso. A vingar esta insólita interpretação, teríamos de concluir que a norma em apreciação, inserida nas atribuições que o Estado confere à Ordem dos Engenheiros para o exercício do seu múnus público, seria completamente inútil.

Por outro lado, a expressão “promover o procedimento” indicia um maior dignidade do que um mero direito de queixa ou denúncia, uma vez que, nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal é o Ministério Público que tem legitimidade para “promover” o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo Código. Atendendo à imprescindível unidade do sistema jurídico, esta expressão empregue pelo legislador só pode significar que a Ordem dos Engenheiros tem o direito de assumir nos processos em que esteja em causa o uso ilícito do título de engenheiro ou exercício ilegal da respectiva profissão uma posição activa, interventiva, e, de certo modo, paralela à do Ministério Público, o que, em termos processuais penais, corresponde precisamente à posição de assistente, que, conforme estipula o nº1 do artigo 69º do Código de Processo Penal é a de colaborador, embora subordinado, do Ministério Público. Em face dos argumentos acima aduzidos, parece-nos lógico concluir que existe, na verdade, lei especial que atribui à Ordem dos Engenheiros o direito de se constituir assistente num processo penal movido por crime de usurpação de funções em que alguém se faz passar por engenheiro quando, na verdade, o não é.

A segunda razão invocada no Acórdão para negar provimento ao recurso baseia-se num entendimento segundo o qual a Ordem dos Engenheiros não é ofendida no crime em causa, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal e consistente no exercício ilegal da profissão de engenheiro por um indivíduo que não possuía as necessárias habilitações académicas e profissionais, porquanto não é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com aquela incriminação. Sigamos o raciocínio subjacente às várias citações doutrinárias reproduzidas no douto Acórdão para justificar esta tese:

“Diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo”2.

“Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato do crime”3.

“Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o imediato, que continua a servir de base à classificação dos crimes no Código Penal de 1982, pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendidos particulares; só o têm aqueles cujo objecto imediato e tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular. É ainda uma mera aplicação do princípio geral referido a conclusão de que crimes públicos existem relativamente aos quais ninguém se poderá constituir assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público, como sucede com os crimes contra o Estado”4.

“É pela norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminoso. Definido o interesse, há que identificar o titular desse interesse – pessoa física ou entidade”5.

O artigo 358º do Código Penal encontra-se inserido no Título V do Livro II do Código Penal, pertencendo ao grupo “Dos Crimes Contra o Estado” e, dentro do Capítulo II, “Dos crimes contra a autoridade pública”. Segundo Cristina Líbano Monteiro6, que escreveu a propósito do interesse que tal norma visa proteger: “Pode dizer-se que o delito que se comenta representa um

2 Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, 1976, p. 505. 3 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, edição de 1996, p. 244. 4 Maia Gonçalves em anotação ao artigo 68º, no seu Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, p. 118. 5 Leal-Henriques e Simas Santos em anotação ao artigo 68º, no seu Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 2.ª edição. 6 In Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. III, p. 439 e ss.

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interposto normativo de protecção à distância de certos interesses, muito diversos entre si e assumidos pelo Estado/autoridade como próprios. Explicitando: (…) se outro se faz passar por médico, advogado, engenheiro (…) e pratica actos próprios dessa profissão, a sua presumível incompetência representa um risco potencial para a vida, a integridade física, a segurança, o património, a liberdade, etc., dos destinatários dessa actividade”. Já para Leal Henriques e Simas Santos7, o artigo 358º do Código Penal “visa proteger e acautelar o interesse do Estado no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício”.

Da doutrina acima exposta, citada no Acórdão que ora se comenta, não há qualquer dúvida que, com o normativo da alínea b) do artigo 358º do Código Penal, o legislador visa proteger o interesse do Estado em que as funções públicas ou profissionais que exigem título ou preenchimento de certas condições sejam desempenhadas por pessoas legalmente habilitadas. Com essa incriminação não se visa proteger, em primeira linha, interesses especiais dos engenheiros ou da respectiva Ordem, mas o interesse do Estado. Porém, também nos parece resultar de uma análise daquela doutrina penal feita com a mobilização de algum conhecimento de direito administrativo, que o interesse do Estado é, no caso concreto que está em apreciação, o interesse público subjacente ao exercício da engenharia, cuja defesa, conforme veremos adiante, constitui atribuição da pessoa colectiva pública Ordem dos Engenheiros.

A engenharia é uma das profissões em que, para além dos interesses particulares de quem a exerce e de quem dela beneficia, no âmbito de uma relação contratual entre o engenheiro e o seu cliente ou a sua entidade empregadora, existe um interesse público a acautelar. É precisamente neste interesse público que radica a razão de ser da Ordem dos Engenheiros. Esta é uma associação pública, formada pelos licenciados em engenharia que exercem a profissão de engenheiro com o fim de, por devolução de poderes do Estado, regularem e disciplinarem o exercício da sua actividade profissional. Trata-se, portanto, de uma pessoa colectiva pública de base associativa, criada por lei e pertencente à administração autónoma do Estado8. Não pode, por isso, ter acolhimento a tese de que a Ordem dos Engenheiros visa apenas ou predominantemente a garantia dos interesses corporativos dos engenheiros, uma vez que, embora seja verdade que as ordens profissionais defendam também interesses colectivos privados, a sua natureza dualista impõe-lhes o prosseguimento prioritário dos interesses públicos que lhes estão atribuídos pelo Estado9. Na verdade, a maior parte dos Estados modernos, em obediência a um princípio de autonomia e descentralização administrativa, confia a certas classes de profissionais, particularmente qualificadas, o cumprimento da missão de regular e disciplinar o exercício da sua profissão, reconhecendo-lhes a indispensável capacidade de auto-gestão e auto-disciplina.

O actual Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/92, de 30 de Junho, estipula, no seu artigo 1º, que a Ordem dos Engenheiros é a associação pública representativa dos licenciados em engenharia que exercem a profissão de engenheiro, e no número 1 do artigo 2º consagra como escopo fundamental da Ordem a contribuição para o progresso da engenharia através do estímulo dos esforços dos seus associados nos domínios científico, profissional e social, bem como o cumprimento das regras da ética profissional. O número 2 do mesmo artigo 2º confere à Ordem dos Engenheiros um conjunto de atribuições que concretizam aquele escopo fundamental, nas quais predomina de forma esmagadora a obrigação da Ordem prosseguir a defesa do interesse público associado ao exercício da engenharia, como é evidente nas alíneas daquele artigo que a seguir se transcrevem:

“a) Assegurar o cumprimento das regras de ética profissional e o nível de qualificação profissional dos engenheiros;

b) Atribuir o título profissional de engenheiro e regulamentar o exercício da respectiva profissão;

d) Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de engenheiro;

e) Fomentar o desenvolvimento do ensino da engenharia;

g) Proteger o título e a profissão de engenheiro, promovendo o procedimento judicial contra quem o use ou a exerça ilegalmente;

i) Valorizar a qualificação profissional dos engenheiros pela concessão dos respectivos níveis e títulos de especialista e pela participação activa na formação de pós-graduação, emitindo os competentes certificados e cédulas profissionais;

j) Prestar a colaboração técnica e científica solicitada por quaisquer entidades, públicas ou privadas, quando exista interesse público;

m) Exercer jurisdição disciplinar sobre os engenheiros”.

No caso em apreço estamos perante um crime que consiste, essencialmente, no exercício da profissão de engenheiro por alguém que não se encontra inscrito na Ordem dos Engenheiros, condição necessária para o exercício de tal actividade, não sendo sequer licenciado em engenharia. Neste crime, o interesse especialmente protegido com a incriminação é, na verdade, a “integridade ou

7 In Código Penal Anotado, vol. II, p. 1544.

8 Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo – Volume 1, 2ª edição, Livraria Almedina, 1997, pp. 405-416. 9 Vital Moreira, As Ordens Profissionais: entre o Organismo Público e o Sindicato, Texto da palestra proferida no dia 11 de Novembro de 1997 no Centro Cultural D. Dinis, na série “Pilares de Prestígio”, promovida pela Associação Académica de Coimbra, p. 8.

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intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público”, ou seja, a observância de determinadas regras para o exercício da profissão10. O titular último deste interesse público é, realmente, o Estado, porém, o Estado, quando criou a Ordem dos Engenheiros (a Ordem dos Engenheiros foi a segunda das ordens profissionais a ser criada, logo a seguir à Ordem dos Advogados, através do Decreto-Lei nº 27.228, de 24 de Novembro de 193611), fê-lo porque sentiu a necessidade de garantir a prossecução dos interesses públicos subjacentes ao exercício da engenharia, cuja defesa aquela melhor prosseguiria12. Esta foi uma forma do Estado responder à necessidade de disciplinar o exercício da engenharia e garantir a prossecução dos interesses públicos que lhe estão subjacentes. O que o Estado pretendeu com a criação da Ordem dos Engenheiros foi assegurar que as funções de engenheiro apenas sejam exercidas por quem reúna as condições exigidas por lei para tal e que a Ordem dos Engenheiros, dentro das atribuições que lhe foram conferidas, regule e discipline o exercício daquela profissão, de modo a garantir a prossecução dos interesses públicos que lhe estão subjacentes, e, em particular, o controlo da inscrição dos licenciados em engenharia na Ordem, requisito necessário para o exercício da actividade de engenheiro, sob pena do agente incorrer no crime de usurpação de funções.

É, pois, neste quadro sistemático, e dentro de uma sequência lógica e coerente, que se compreende que o Estado confira à Ordem dos Engenheiros a faculdade de se constituir assistente num processo penal em que esteja em apreciação o eventual uso ilícito do título de engenheiro ou o exercício ilegal da respectiva profissão, uma vez que tal situação põe em causa os interesses (de ordem pública) que àquela Ordem incumbe defender. E no caso que suscitou o recurso interposto pela Ordem dos Engenheiros aqueles interesses estavam, na verdade, postos em causa, porquanto se impunha a defesa da dignidade e prestígio do exercício da profissão de engenheiro e, em última análise, a defesa da segurança pública, através do controlo do exercício da profissão de engenheiro civil, assegurando que quem elabora projectos ou calcula estruturas e edifícios, reúne as condições necessárias para exercer tal actividade. Verifica-se, por conseguinte, que a Ordem dos Engenheiros também é titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação em causa no presente processo e, por força do disposto na alínea a) do nº1 do artigo 68º do Código de Processo Penal, deve ser admitida a constituir-se assistente.

Pela argumentação acima exposta, escorada, aliás, na própria doutrina que foi citada no douto Acórdão comentado, parece-nos que, salvo melhor opinião, a decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto deveria ter sido outra, isto é, a de dar provimento ao recurso interposto pela Ordem dos Engenheiros, admitindo-a a intervir como assistente num processo em que estava em causa a prática de um crime de usurpação de funções, previsto e punido pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal, consistente no exercício ilegítimo, porque sem título, da profissão de engenheiro civil, por parte de um arguido que não possuía as necessárias habilitações académicas e profissionais.

Por último, uma vez que este assunto tem sido objecto de decisões contraditórias em relação a outras ordens profissionais, na qualidade de engenheiro que também sou, não posso deixar de invocar a objectividade e pragmatismo típicos dos engenheiros, que tanta falta fazem a alguns juristas, para propor uma clarificação definitiva da situação, evitando decisões jurisprudenciais como a que se comentou no presente artigo, baseadas numa interpretação literal das normas jurídicas aplicáveis. Para impedir a ocorrência de casos futuros que possam pôr em causa o interesse público subjacente ao exercício da profissão de engenheiro e abalar o prestígio da Ordem dos Engenheiros, enquanto entidade que integra a administração pública autónoma do Estado e a quem compete, nos termos da lei, defender esse interesse público, é necessário aproveitar a próxima revisão do Estatuto da Ordem dos Engenheiros para alterar a redacção do actual texto da norma da alínea g) do nº2 do artigo 2º, fazendo-o no sentido de consagrar a seguinte solução literal:

“Na prossecução das suas atribuições, cabe à Ordem dos Engenheiros:

- Proteger o título e a profissão de engenheiro, promovendo o procedimento judicial contra quem o use ou a exerça ilegalmente, podendo, designadamente, constituir-se assistente no respectivo processo penal”.

É de assinalar, em abono da tese acima defendida, a solução legislativa que, nesta matéria, foi consagrada no Projecto de Lei nº384/X(2ª)13, já aprovado na especialidade na Assembleia da República, mas que em 31/12/2007 ainda não tinha sido sujeito à votação final global em plenário. Apesar deste projecto de lei, destinado a estabelecer o regime jurídico de criação, organização e funcionamento de novas associações públicas profissionais, não ser directa e imediatamente aplicável à Ordem dos Engenheiros

10 Sobre este ponto, ver Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, t. 3, p. 441. 11 António Barreto Archer, Manual de Ética e Deontologia para Engenheiros; Ordem dos Engenheiros – Região Norte / Cenatex, 3ª edição, Porto, Agosto de 2006, p. 9. 12 Seguindo uma argumentação análoga à presente, veja-se o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Setembro de 2003, proferido no Processo nº 1093/03-1, que pode ser consultado na Internet através do endereço http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/, em que aquele Venerando Tribunal, revogando um despacho idêntico ao que foi objecto de recurso pela Ordem dos Engenheiros, mas relativo à Ordem dos Médicos Veterinários, admitiu a final esta associação pública a intervir como assistente num processo em que se investigava também um crime de usurpação de funções. 13 O respectivo Relatório da discussão e votação na especialidade e o texto final deste projecto de lei incluindo propostas de alteração, da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, encontra-se publicado no Diário da Assembleia da República, II Série – A, nº22, de 28 de Novembro de 2007.

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(vd. artigo 1º), é significativo, em termos de lege ferenda, que o mesmo preceitue, no seu artigo 33º, que “as associações públicas profissionais podem constituir-se assistentes nos processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam ou com o desempenho de cargos nos seu órgãos, salvo quando se trate de factos que envolvam responsabilidade disciplinar”.

António Barreto Archer

Advogado e Engenheiro