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O FANTÁSTICO SEGUNDO GUY DE MAUPASSANT Jorge de Azevedo Moreira Colégio Pedro II Brasil Tido como uma das grandes referências da literatura fantástica na França, Guy de Maupassant (1850-1893) é, por isso mesmo, sempre citado nos estudos consagrados ao gênero. Teóricos como Tzvetan Todorov 1 , Irène Bessière 2 e Jean Fabre 3 freqüentemente ilustram suas idéias acerca do fantástico fazendo remissões a contos do autor normando, entre os quais se encontram Lui?, La Peur e, talvez o mais célebre de todos, Le Horla (em suas duas versões). É importante observar, contudo, que Maupassant não se limitou a escrever histórias fantásticas, postulando também algumas idéias sobre esse gênero. Detentor de uma aguçada percepção literária, o autor francês muitas vezes trabalhava como um autêntico crítico, analisando obras, autores e gêneros. Tal situação é facilmente compreensível, já que Maupassant atuou paralelamente nas áreas de literatura e jornalismo, conjunção que gerou inúmeras crônicas versando sobre assuntos literários. Pretende-se aqui apresentar as idéias de Maupassant em relação ao fantástico, ainda no século XIX, e compará-las com algumas das teorias veiculadas no século XX. Cumpre estabelecer também um confronto entre tais perspectivas teóricas e sua efetiva produção literária. Das centenas de crônicas que Maupassant escreveu a propósito dos mais variados assuntos, há pelo menos duas que emitem importantes opiniões sobre o fantástico. São elas Adieu mystères (publicada originalmente em 8 de novembro de 1881, no Le Gaulois) e Le Fantastique (publicada em 7 de outubro de 1883 no mesmo jornal). A avaliação desses

O FANTÁSTICO SEGUNDO GUY DE MAUPASSANT · 1881, no Le Gaulois) e Le Fantastique (publicada em 7 de outubro de 1883 no mesmo jornal). A avaliação desses. ... Et les soleils, d’où

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O FANTÁSTICO SEGUNDO GUY DE MAUPASSANT

Jorge de Azevedo MoreiraColégio Pedro II

Brasil

Tido como uma das grandes referências da literatura

fantástica na França, Guy de Maupassant (1850-1893) é, por

isso mesmo, sempre citado nos estudos consagrados ao

gênero. Teóricos como Tzvetan Todorov1, Irène Bessière2 e

Jean Fabre3 freqüentemente ilustram suas idéias acerca do

fantástico fazendo remissões a contos do autor normando,

entre os quais se encontram Lui?, La Peur e, talvez o mais

célebre de todos, Le Horla (em suas duas versões). É

importante observar, contudo, que Maupassant não se limitou

a escrever histórias fantásticas, postulando também algumas

idéias sobre esse gênero. Detentor de uma aguçada

percepção literária, o autor francês muitas vezes trabalhava

como um autêntico crítico, analisando obras, autores e

gêneros. Tal situação é facilmente compreensível, já que

Maupassant atuou paralelamente nas áreas de literatura e

jornalismo, conjunção que gerou inúmeras crônicas versando

sobre assuntos literários. Pretende-se aqui apresentar as

idéias de Maupassant em relação ao fantástico, ainda no

século XIX, e compará-las com algumas das teorias veiculadas

no século XX. Cumpre estabelecer também um confronto entre

tais perspectivas teóricas e sua efetiva produção literária.

Das centenas de crônicas que Maupassant escreveu a

propósito dos mais variados assuntos, há pelo menos duas que

emitem importantes opiniões sobre o fantástico. São elas

Adieu mystères (publicada originalmente em 8 de novembro de

1881, no Le Gaulois) e Le Fantastique (publicada em 7 de

outubro de 1883 no mesmo jornal). A avaliação desses

posicionamentos teóricos torna-se válida a fim de verificar o

quanto eles se aproximam efetivamente de seus textos

consagrados a essa vertente literária. Em Adieux

mystères, o cronista Maupassant se mostra um entusiasta do

espírito positivo de seu tempo, isto é, a segunda metade do

século XIX, elogiando sem cessar a contribuição da ciência

para o esclarecimento humano. Nesse ponto, ele se aproxima

bastante das idéias naturalistas de Émile Zola4, que acreditava

no progresso da civilização calcado no desenvolvimento

científico. As teorias estéticas de Zola preconizavam o texto

literário como um veículo para o cientificismo, razão pela qual

as obras deveriam se ater a uma análise objetiva e criteriosa

dos fatos narrados. Por conseguinte, a literatura

construída sobre a imaginação desenfreada e sobre o lirismo

hiperbólico, à moda dos românticos, era duramente criticada

pelo mestre do Naturalismo. Essa posição é vivamente

compartilhada por Maupassant: Les hommes ne vous suivront

plus, ô poètes. Vous n’avez plus le droit de nous tromper.

Nous n’avons plus la puissance de vous croire. Vos fables

héroïques ne nous donnent plus d’illusions; vos esprits, bons

ou méchants, nous font rire. Vos pauvres fantômes sont bien

mesquins à côté d’une locomotive lancée, avec ses yeux

énormes, sa voix stridente, et son suaire de vapeur blanche

qui court autour de la nuit froide. Vos misérables petits

farfadets restent pendus aux fils du télégraphe! Toutes vos

créations bizarres nous semblent enfantines et vieillies, si

vieillies, si usées, si répétées! J’en lis chaque jour, de ces

livres d’exaltés frénétiques, de bardes obstinés, de refaiseurs

de mystérieux. C’est fini, fini.5

Para o autor normando, sua época é eminentemente

cética e racionalista. Por essa razão, as desgastadas fórmulas

românticas não são mais válidas para impressionar os leitores

de seu tempo. O gosto livre pela imaginação, que recria o

mundo ao bel-prazer do escritor, agrupa um repertório de

técnicas já ultrapassadas. Do mesmo modo que o faz Zola, o

termo “poeta”, usado por Maupassant, não se refere

exclusivamente aos autores de poemas, no sentido estrito, mas

a todos aqueles que se servem do espírito lírico do Romantismo

para confeccionar suas obras. Essa postura romântica é

combatida pelos naturalistas, que se põem a retratar a visão

quotidiana da vida, livre das associações de ordem metafísica –

que Charles Baudelaire tão bem exprime em seu poema

Correspondances. A esse respeito, escreve Maupassant: Les

choses ne parlent plus, ne chantent plus, elles ont des lois!

La source murmure simplement la quantité d’eau qu’elle

débite!

Adieu, mystères du vieux temps, vieilles croyances de nos

pères, vieilles légendes enfantines, vieux décors du vieux

monde!6

A arte romântica pertence a um tempo ingênuo,

ultrapassado; o Naturalismo, por outro lado, ambiciona

representar a consciência do novo mundo que se ergue,

construído a partir de idéias científicas. A literatura, enquanto

representação da mentalidade de uma época, deve-se adequar

aos novos tempos, pois o público leitor torna-se mais exigente

em relação àquilo que é narrado. Os milagres e outros

fenômenos ditos “sobrenaturais” tendem a não serem mais

vistos como a intervenção de entidades superiores, mas como a

ação de leis físicas ainda não totalmente explicadas. Ou seja,

quase tudo pode ser explicado pela ciência; o que ainda não o

é, certamente será desvendado com os posteriores avanços

científicos. Desse modo, a questão do realismo e do

tratamento dado ao quotidiano, típicas do Naturalismo, não

exclui a abordagem dos fenômenos misteriosos, mas os trata

com um novo enfoque. Tais fenômenos não são avaliados como

sobrenaturais, fruto de uma alteração das leis naturais, uma

vez que representam tão-somente manifestações raras e ainda

não suficientemente estudadas dessas leis. A produção

de uma nova literatura fantástica, voltada para a descrição

desses fenômenos, deve ser capaz, portanto, de convencer os

leitores céticos sobre a verossimilhança daquilo que é narrado.

O termo “ literatura fantástica”, tal como é usado pelo autor,

remete a um Fantástico lato sensu, que engloba as várias

tendências do Maravilhoso, ou seja, textos nos quais o

sobrenatural não provoca efeitos de estranhamento na leitura.

O processo de revitalização da velha literatura fantástica

deve implicar a representação dos textos fantásticos numa

realidade conhecida pelo leitor e não no mundo irreconhecível e

imaginário de outrora. Essa estratégia preconizada por

Maupassant marca a passagem para o que chamamos de

Fantástico stricto sensu7. Desse modo, autores como E. T. A.

Hoffmann, Edgar Allan Poe e Ivan Tourgueniev, são, para o

escritor francês, os exemplos a serem seguidos, já que foram

capazes de entremear, em suas histórias, elementos reais com

outros misteriosos, junção que faz o leitor hesitar frente à

narrativa, conforme ele observa em sua crônica Le Fantastique:

Quand le doute eut pénétré enfin dans les esprits, l’art est

devenu plus subtil. L’écrivain a cherché les nuances, a rôdé

autour du surnaturel plutôt que d’y pénétrer. Il a trouvé des

effets terribles en demeurant sur la limite du possible, en

jetant les âmes dans l’hésitation, dans l’effarement. Le lecteur

indécis ne savait plus, perdait pied comme en une eau dont le

fond manque à tout instant, se raccrochait brusquement au

réel pour s’enfoncer encore tout aussitôt, et se débattre de

nouveau dans une confusion pénible et enfiévrante comme un

chauchemar.8

O efeito de dúvida descrito acima, próximo à sensação de

um pesadelo, constrói igualmente sensações de pavor e

angústia junto ao leitor, que, a partir do texto, mergulha num

mundo a princípio familiar mas que se torna estranhamente

amedrontador na seqüência narrativa. Observamos, portanto,

que as idéias de Maupassant a respeito dessa literatura

fantástica revigorada – o Fantástico stricto sensu – aproximam-

se em muito das conceituações formuladas por Tzvetan

Todorov cerca de um século depois, relacionando esse gênero

justamente à hesitação, que pode ou não ser compartilhada

por um dos personagens de tais histórias. As opiniões

de Maupassant, contudo, se apresentam com uma relativa

inconsistência. Nas crônicas que analisamos, o escritor exalta

a ciência, revelando-se assim como um perfeito representante

da escola naturalista; por outro lado, em outros de seus textos

jornalísticos, esse entusiasmo pelo cientificismo arrefece

consideravelmente. Prova disso é uma outra crônica,

Par-delà (publicada em 10 de junho de 1884, no Gil Blas), na

qual o espírito naturalista de Maupassant se mostra

enfraquecido. Nesse texto, o autor avalia o romance À Rebours

(1884) de J.-K. Huysmans, escritor também ligado ao círculo

dos naturalistas mas que procura outras direções para sua

arte, diferentes daquelas que a estética de Zola propunha.

Nessa obra, cujo protagonista é Des Esseintes, um esteta, a

autonomia da arte, em geral, e da literatura, em particular, é

exaltada; o objeto artístico, portanto, deve ser apreciado em si

mesmo e não como um veículo portador de uma mensagem,

como observavam os naturalistas. Maupassant mostra-se

nessa crônica mais entusiasmado pela arte em si do que pela

ciência, que ele vê então com sérias restrições: Nos maladies

viennent des microbes? Fort bien. Mais d’où viennent les

microbes? et les maladies de ces invisibles eux-mêmes? Et les

soleils, d’où viennent-ils?

Nous ne savons rien, nous ne voyons rien, nous ne pouvons

rien, nous ne devinons rien, nous n’imaginons rien, nous

sommes enfermés, emprisonnés en nous. Et des gens

s’émerveillent du génie humain!9

O intervalo de tempo entre as publicações de Le

Fantastique e Par-delà é inferior a um ano, o que nos leva a

concluir que essa ambigüidade frente ao saber científico,

composta de exaltação e descrença, não parece resultar de

uma sucessão de opiniões distintas mas de uma coexistência

de sentimentos opostos. Assim, tomando como base essas

crônicas, poderíamos concluir que, enquanto as explicações

sobre os mistérios do mundo calcadas nas velhas tradições do

Maravilhoso parecem risíveis, as formulações propostas pela

ciência se mostram demasiadamente incompletas. Isso

significa que, dento das opiniões expressas pelo Maupassant-

cronista, essas duas modalidades de pensamento tendem a se

anular. Esse confronto de pensamentos, que Irène

Bessière considera como a característica principal do

Fantástico, apresenta-se também nos textos do Maupassant-

escritor fantástico. Devemos, portanto, estudar de que maneira

essas modalidades de pensamento se contrapõem na escritura

fantástica do autor francês, verificando as várias facetas

interpretativas que o sobrenatural toma naquele contexto

histórico. A hesitação, traço fundamental do Fantástico

stricto sensu de acordo com Todorov, representa o índice mais

evidente do confronto de mentalidades exposto nos textos do

gênero. Conforme já foi citado, esse efeito de hesitação não é

necessariamente expresso através da perspectiva de um

determinado personagem; em alguns casos, a construção da

dúvida no texto é estabelecida pelo antagonismo de dois

discursos distintos, cada um propondo explicar à sua maneira

os eventos narrados. Analisando as idéias propostas por

Todorov e Bessière, pode-se concluir que esse confronto de

discursos provém da sua própria natureza. Com efeito, de um

lado, temos um discurso regido pelas leis do racionalismo,

enquanto, de outro, observamos a expressão de um ponto de

vista voltado para o sobrenatural. No entanto, no contexto

histórico em que Maupassant escreve suas obras, marcado

pelo cientificismo triunfante, a noção de sobrenatural se torna

bastante complexa. No caso específico do autor francês,

o sobrenatural tradicional, aquele das velhas crenças religiosas

e folclóricas, tende a ser substituído por uma abordagem

científica dos fatos. A idéia de forças misteriosas atuando

exteriormente ao homem sofre, portanto, uma mudança na sua

formulação tradicional. A intromissão de seres oriundos de

planos espirituais – fantasmas, anjos, demônios, criaturas

elementares, gênios, deuses – cai em relativo descrédito na

segunda metade do século XIX, perdendo espaço para

doutrinas científicas e paracientíficas, como o Magnetismo e o

Espiritismo. Isso significa que a idéia de elementos

transcendentes ao homem permanece, mas sob um novo

enfoque, já que o termo “transcendência” deve ser entendido

aqui não como a interferência de um outro plano existencial em

nossa realidade, mas sim como uma série de aspectos de fato

misteriosos porém pertencentes a leis naturais de difícil

comprovação. Tratar-se-ia, pois, de fenômenos físicos e não

metafísicos. Na segunda versão de Le Horla, verifica-se de

modo bem claro a diferença que a abordagem do sobrenatural

sofre em função do desenvolvimento científico: Quand cette

intelligence demeurait encore à l’ état rudimentaire, cette

hantise des phénomènes invisibles a pris des formes

banalemente effrayantes. De là sont nées les croyances

populaires au surnaturel, les légendes des esprits rôdeurs, de

fées, de gnomes, des revenants, je dirai même la légende de

Dieu, car nos conceptions de l’ouvrier-créateur, de quelque

religion qu’elles nous viennent, sont bien les inventions les

plus médiocres, les plus stupides, les plus inacceptables

sorties du cerveau apeuré des créatures.10

Especificamente, em Maupassant, o cientificismo se

traduz no texto fantástico pela contraposição de duas

hipóteses racionalistas, uma negando o fenômeno sobrenatural

e outra o explicando através de estudos não plenamente

comprovados. Assim, de um lado a ciência pode atribuir os

acontecimentos misteriosos a uma coincidência, a um sonho

ou a uma alucinação; de outro lado, ela tenta analisá-los à luz

de leis físicas apenas sugeridas e não compreendidas na sua

totalidade. Desse modo, a ciência se divide entre a negação ou

a aceitação da idéia de forças transcendentes ao homem.

No conto Magnétisme (1882), encontramos um claro

exemplo dessa duplicidade racionalista. O personagem

principal, cético como ele mesmo se proclama, narra o caso de

uma criança que teria acordado no meio da noite e previsto a

morte do pai no mar. No dia seguinte, a família foi informada de

que o chefe-de-família realmente morrera e, o mais espantoso,

num horário que coincidira com o anúncio desesperado do

filho. Todavia, o narrador minimiza essa pretensa manifestação

do sobrenatural, ao constatar que na maioria das famílias de

marinheiros tais pesadelos eram muito freqüentes. Logo, é

natural que ocorresse a coincidência entre um acidente e um

sonho, assumindo este então um suposto valor de premonição.

Por outro lado, o texto menciona uma outra

possibilidade de interpretação dessa estranha ocorrência. Para

o narrador, várias pessoas explicariam o que se passou através

da teoria do magnetismo animal, embora ele próprio não creia

nisso. No entendimento dos defensores do magnetismo, um

fenômeno fisiologicamente normal como um sonho passaria a

ser visto sob um prisma de transcendência: não mais a

transcendência ligada à questão do milagre ou de um aviso

divino, mas sim como uma prova do intercâmbio de fluido

energético entre dois seres. Em seguida, o personagem

se põe a contar um episódio acontecido com ele mesmo. Certo

dia, enquanto escrevia uma carta, veio-lhe abruptamente à

cabeça a imagem de uma mulher que ele conhecia

superficialmente. Apesar de considerá-la um tipo comum, sem

nada de especial que lhe chamasse a atenção, sua lembrança

avultou-se de maneira tão obsessiva que, no dia seguinte, o

narrador dirigiu-se à casa dela, iniciando aí uma relação afetiva

que durou dois anos. Ao final da narração, o texto apresenta

duas explicações plausíveis para a inopinada paixão. O

personagem-narrador credita o inesperado e poderoso

sentimento a alguma lembrança dessa mulher, adormecida em

sua mente e despertada sem uma razão clara, o que acabou

por fazê-lo notar nela qualidades nunca antes percebidas: J’en

conclus… je conclus à une coïncidence, parbleu! Et puis, qui

sait? C’est peut-être un regard d’elle que je n’avais point

remarqué et qui m’est revenu ce soir-là par un de ces

mystérieux et inconscients rappels de la mémoire qui nous

représentent souvent des choses négligées par notre

conscience, passées inaperçues devant notre intelligence!11

Um homem que assistira atentamente à explanação do

narrador defende, em contrapartida, a hipótese do

magnetismo, isto é, a influência de forças invisíveis originárias

de um indivíduo e agindo fora da matéria. Dirigindo-se ao

personagem-narrador, ele acha que os eventos relatados

provam por si mesmos a influência do magnetismo: “Tout ce

que vous voudrez, conclut un convive, mais si vous ne croyez

pas au magnétisme après cela, vous êtes un ingrat, mon cher

monsieur!” 12 Dessa maneira, verificamos a existência de

dois discursos distintos para explicar essa fantástica paixão.

Um deles nega qualquer transcendência e vincula o estranho

sentimento a uma lembrança repentinamente emergida do

inconsciente; o outro aventa a hipótese de uma misteriosa

ligação energética, invisível a nossos sentidos, e com a qual a

mulher teria atraído o narrador. Assim, a hesitação nesse

texto não é produzida pela tensão entre uma crença racional e

outra sobrenatural, se considerarmos como “sobrenatural” os

valores preconizados por uma metafísica tradicional. Na

verdade, tal hesitação é gerada pelo confronto de duas visões

racionalistas, uma vez que, conforme verificamos em

Magnétisme, o sobrenatural que costuma aparecer em

Maupassant é racionalizado. A diferença entre o

sobrenatural tradicional e o sobrenatural racionalizado é que,

naquele, o termo propõe a idéia de uma natureza outra e

superior em relação àquela com a qual estamos habituados. O

sobrenatural racionalizado, por outro lado, desmistifica a

crença nessa natureza superior que contraria as leis físicas;

assim, ele considera os acontecimentos fantásticos

simplesmente como a incidência de fenômenos raros e de

causas não totalmente explicadas, mas que são essencialmente

naturais. Desse modo, poderíamos afirmar que o “inexplicável”

do sobrenatural tradicional é substituído no sobrenatural

racionalizado pelo “inexplicado” – ou, preferencialmente, pelo

“ainda não-explicado”. Essa espécie de apropriação do

sobrenatural por parte da ciência, tomando assim o lugar

destinado à religião, retira do mistério sua aura sagrada e

mistificadora, pois assegura virtualmente sua compreensão

total. Até mesmo os fenômenos que em dado momento não são

explicados de maneira satisfatória tornar-se-ão plenamente

compreendidos um dia, porque representam fatos tão naturais

quanto aqueles observados na vida prática, apenas escapando

de nossa sensibilidade comum. A esse respeito,

Maupassant dá um exemplo muitas vezes usado ao longo de

sua obra e que assinala a debilidade dos sentidos humanos.

Na crônica Adieu mystères, bem como nas novelas Lettre d’ un

fou, Un fou?, L’ Homme de Mars e nas duas versões de Le

Horla, o escritor reduz a música, arte tão magnífica e bela,

espécie de dádiva espiritual, à condição de uma mera

seqüência de vibrações físicas, percebidas pela audição

humana. Não tivesse essa capacidade auditiva, o homem

ignoraria a música. De modo similar, é possível que haja uma

série de manifestações físicas que são julgadas como

sobrenaturais, quando parcialmente percebidas por nossos

sentidos grosseiros. A incapacidade das doutrinas

científicas em explicar inteiramente os fenômenos naturais

conduz o homem a um sentimento ambíguo, pois ele se divide

entre a esperança confortadora de um conhecimento que

deverá ser alcançado e a angústia oriunda das lacunas de seu

saber, que mostram sua ínfima condição frente aos enigmas da

vida. Na literatura fantástica, o homem pende para essa

segunda postura. Em Maupassant particularmente, esse

aflitivo impasse se reflete no texto através do comportamento

dos personagens. Da ampla galeria de personagens dos seus

textos fantásticos, poucos são aqueles que crêem no

sobrenatural tradicional. Poderíamos mencionar apenas

alguns: Jonh Rowel (La Main), que teme o ataque do finado

inimigo a quem pertencia a mão dissecada; a senhora Patin (Le

Noyé), que credulamente pensa ouvir a voz do marido

desaparecido ao escutar um papagaio; o protagonista de La

Chevelure, que crê piamente na volta dos mortos; e Ulrich

Kunsi (L’ Auberge), que acredita na presença do espírito de seu

amigo perdido na neve. Em sua maioria, contudo, os

personagens de Maupassant são declaradamente céticos,

embora nem por isso deixem de temer os fenômenos

misteriosos. O sentimento de medo frente ao sobrenatural

tradicional persiste mesmo após sua cientificização. Uma

manifestação clara dessa ambigüidade entre cientificismo e

medo se encontra em Renardet, o assassino da jovem Roque,

na novela homônima: Puis, il tomba sur les genoux et

balbultia: “Mon Dieu, mon Dieu”. Sans coire à Dieu,

pourtant. Et il n’osait plus, en effet, regarder sa fenêtre où il

savait blottie l’apparition, ni sa table où luisait son revolver.13

Renardet não atribui a habitual aparição da falecida jovem

a uma manifestação espiritual, mas a um surto alucinatório,

embora tente se convencer de que não sente remorsos do

crime; entretanto, alucinação ou fantasma, a imagem de Roque

lhe causa extremo pavor. Esse medo atroz o leva a clamar por

Deus, mesmo que não creia em nenhum tipo de força ou ser

transcendente ao homem. A indecisão entre crer ou não

crer numa transcendência é comum aos personagens de

Maupassant e significa possivelmente a presença de fortes

reminiscências da tradição do sobrenatural. De fato, embora

engajado em modernizar as histórias de terror e mistério em

razão da influência do cientificismo de sua época, Maupassant

não se furta a desenvolver certos temas ligados ao

sobrenatural tradicional. Entrariam nesse caso histórias em

que partes do corpo ganham vida própria (La Main d’écorchée,

La Main), objetos se movem sozinhos (Qui sait?) e fantasmas

apavorantes surgem (Apparition). Entretanto , os

vestígios mais relevantes do sobrenatural dentro dos textos de

Maupassant não se vinculam à abordagem desses temas

convencionais, mas à exploração do sentimento de medo.

Pouco importa o quanto a ciência se esforce por tentar explicar

um fenômeno inusitado ou o quanto os personagens recusem

qualquer espécie de transcendência; o medo diante daquilo que

se afasta dos padrões da normalidade quotidiana é irreprimível.

Essa perturbadora sensação que Maupassant tão

incisivamente desenvolve em suas obras fantásticas não

representa um temor banal diante de um perigo concreto.

Seus personagens não temem exatamente os fantasmas, até

porque, de modo geral, não acreditam neles. Eles se

aterrorizam, na verdade, diante de uma ameaça vaga e

indefinível, segundo confessa o narrador de Lui?: Je n’ai pas

peur d’un danger. Un homme entrerait, je le tuerais sans

frissonner. Je n’ai pas peur des revenants; je ne crois pas au

surnaturel. Je n’ai pas peur des morts; je crois à

l’anéantissement définitif de chaque être qui disparaît.14

De modo quase idêntico, mas desenvolvendo ainda mais o

tema do medo, na primeira versão de La Peur, de 1882, o

personagem-narrador tece uma valiosa explicação desse medo

absoluto e invulgar que estaria ligado à fragmentação da

consciência humana e representaria um sentimento ancestral.

Declara ele: La peur (et les hommes les plus hardis peuvent

avoir peur), c’est quelque chose d’effroyable, une sensation

atroce, comme une décomposition de l’âme, un spasme affreux

de la pensée et du coeur, dont le souvenir seul donne des

frissons d’angoisse. Mais cela n’a lieu, quand on est brave, ni

devant une attaque, ni devant la mort inévitable, ni devant

toutes les formes connues du péril: cela a lieu dans certaines

circonstances anormales, sous certaines influences

mystérieuses en face de risques vagues. La vraie peur, c’est

quelque chose comme une réminiscence des terreurs

fantastiques d’autrefois.15

A idéia do medo como a reminiscência de estádios

anteriores da formação da personalidade humana, fazendo vir à

tona parcelas esquecidas de uma mentalidade positiva, é

claramente expressa na segunda versão de La Peur, esta de

1884, conforme notamos nas palavras de um dos narradores,

que explica o que efetivamente é a moléstia conhecida como

cólera: Le choléra c’est autre chose, c’est l’Invisible, c’est un

cólera: Le choléra c’est autre chose, c’est l’Invisible, c’est un

fléau d’autrefois, des temps passés, une sorte d’Esprit

malfaisant qui revient et qui nous étonne autant qu’il nous

épouvante, car il appartient, semble-t-il, aux âges disparus.16

Essa descrição do medo como projeção de terrores

oriundos de uma era anterior, infantil ou primitiva, remete aos

comentários propostos por Freud em seu artigo Das

Unheimliche17, texto muito citado nos variados ensaios sobre o

fantástico. É interessante notar que Maupassant, quase três

décadas antes desse ensaio psicanalítico, já tratara à sua

maneira da questão da mentalidade superada e sua influência

no comportamento humano, sobretudo no tocante ao medo.

A partir do que se lê nas novelas fantásticas do escritor

francês, é possível afirmar que o medo em Maupassant se

associa menos a um objeto concreto e explicitamente

ameaçador do que a uma angústia apavorante da perda de

consciência do real. Assim se expressa o narrador de Lui?, ao

se referir à presença fantasmagórica com que se deparara em

sua casa: J’avais peur de le revoir, lui. Non pas peur de lui,

non pas peur de sa présence, à laquelle je ne croyais point,

mais j’avais peur d’un trouble nouveau de mes yeux, peur de

l’hallucination, peur de l’épouvante qui me saisirait.18

Enfim, não seria

descabido sintetizar

essa aterrorizante

sensação nesta frase,

reiterada algumas

vezes por um dos

personagens da

segunda versão de La

Peur: “On n’a

vraiment peur que de

ce qu’on ne comprend

pas”19. A

mentalidade positiva,

calcada no

Racionalismo, torna-

se, portanto,

perturbadoramente

debilitada, em face da

intrusão do medo. O

temor do

desconhecido, aludido

em La Peur, é também

abordado por Jean

Fabre20, que o

considera um

sentimento cujo

alcance escapa da

capacidade cognitiva e

do controle racional

do indivíduo. Daí

resulta não ser

necessário acreditar

em algo para sentir

medo, situação em

que se encontram

vários personagens

de Maupassant.

Para Fabre, se o

indivíduo tem sua

mentalidade

inteiramente dedicada

à fé religiosa ou, em

contrapartida, à

ciência positiva, ele

não estará propenso

ao medo diante de um

suposto fenômeno

sobrenatural. No

primeiro caso, porque

primeiro caso, porque

a fé é confortadora e

implica a idéia de um

Deus protetor; no

segundo caso, porque

a ciência tenta

reduzir o

sobrenatural a um

fenômeno

essencialmente

natural. Fora

desses dois padrões

elementares de

pensamento, Fabre

menciona também o

indivíduo

supersticioso,

atormentado por uma

condição dualista,

pois ao mesmo tempo

em que acredita no

sobrenatural também

o teme. Sua crença

revela-se, portanto,

altamente

inquietante.

Situação

parecida é observada

nos indivíduos que

não acreditam

totalmente no

sobrenatural, mas

ainda assim o temem.

Poderíamos afirmar

que esses indivíduos

possuem uma

modalidade de

pensamento

fantástico, que

representa o retorno

de aspectos de uma

mentalidade julgada

superada. É nessa

categoria que se

encaixa a maior parte

dos personagens das

histórias de

Maupassant. É

preciso também

considerar que o

sobrenatural não se

mantém apenas na

questão do medo.

Sendo produto de

uma cultura, o

sobrenatural persiste

como crença em

alguns indivíduos,

mormente os

religiosos e os

supersticiosos, ainda

que o racionalismo se

configure como

crença hegemônica.

Mais do que isso, o

sobrenatural

permanece no

imaginário coletivo,

figurando de diversas

maneiras, mesmo nos

indivíduos mais

céticos, conforme se

aprecia em algumas

obras de

Maupassant. Tal fato

implica, por

conseguinte, a

análise do texto

fantástico como uma

retomada constante

do sobrenatural

tradicional. De certo

modo, sua obra

desmente certas

considerações feitas

na já aludida crônica

Adieu mystères, na

qual se lê que “a noite

não nos apavora

mais, porque não tem

fantasmas nem

espíritos”. É possível

que, de fato, não haja

fantasmas e espíritos;

contudo, nas obras

fantásticas do escritor

francês, algo de

insidioso, assustador

e inexplicado ainda

permanece na

penumbra da

consciência humana,

desafiando seu saber

racional. A esse

respeito, é importante

igualmente considerar

que cada leitor

reconstrói o texto em

sua mente de acordo

sua mente de acordo

com as interpretações

baseadas em sua

própria bagagem

cultural. Em termos

práticos, ainda que o

ser misterioso de Le

Horla seja

apresentado como o

próximo degrau na

cadeia evolutiva do

homem, ele tenderá

sempre a ser

encarado como um

fantasma – invisível,

apavorante e

opressor. Pelo

que foi apresentado,

revela-se de grande

importância reavaliar

o conceito de

hesitação fantástica

no que concerne à

obra de Maupassant.

Certamente,

encontramos nesse

escritor personagens

que expressam uma

angustiante dúvida a

respeito dos fatos que

presenciam (reais ou

imaginários?), o que

confirma parcialmente

a definição proposta

por Todorov. No

entanto, julgamos

mais conveniente

mais conveniente

afirmar que

geralmente o

personagem de

Maupassant não se

divide entre uma

hipótese racional e

uma outra

sobrenatural, como

sugere o renomado

teórico, mas sim

entre duas hipóteses

racionais: uma não-

transcendente e

outra transcendente –

sendo esta o

sobrenatural

racionalizado.

Feitas tais

considerações,

poderíamos falar,

portanto, de uma

espécie de dupla

hesitação na obra

fantástica de Guy de

Maupassant: a

primeira, voltando-se

para a realidade do

fenômeno – ele ocorre

mesmo ou não? –; a

segunda, recaindo

sobre sua natureza

transcendental – se

ocorre, trata-se da

influência de um

outro plano ou é

apenas a

apenas a

manifestação de leis

físicas ignoradas?

A condução do

texto poderá

privilegiar um desses

dois tipos de

hesitação, sendo

importante lembrar

que as narrativas que

Todorov julga como

genuinamente

fantásticas são

aquelas nas quais o

impasse não se

resolve. De um certo

modo, a observação

de Todorov se

coaduna com as

idéias formuladas por

Bessière, Fabre e

pelo próprio

Maupassant: o

fantástico explora,

mais do que um mero

jogo de incertezas,

aspectos

angustiantes da

consciência humana,

incapaz de vencer

seus temores frente

ao desconhecido.

Talvez seja

exatamente esse o

traço que torna até

hoje a leitura de

textos como Le Horla

textos como Le Horla

envolvente e

aterrorizante, apesar

dos avanços

científicos de nossa

época.

1 Tzvetan Todorov. Introduction à la littérature fantastique. Paris, Seuil, 1970.

2 Irène Bessière. Le récit fantastique ; la poétique de l’incertain. Paris, Larousse,1974.

3 Jean Fabre. Le miroir de sorcière ; essai sur la littérature fantastique. Paris, JoséCorti, 1992.

4 Émile Zola. Le roman expérimental. Paris, Garnier-Flammarion, 1971.

5 Guy de Maupassant. Chroniques. Paris, UGE, 1993. 2e. éd. [1 ère éd. 1980].Édition de Hubert Juin. Vol. I, p. 313-314.

6 Maupassant, 1993, Vol. I, p. 314.

7 Jorge de Azevedo Moreira. O Realismo bruxuleante e o Fantástico em Guy deMaupassant. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras UFRJ, 2001. Dissertação deMestrado.

8 Maupassant, 1993, Vol. II, p. 257.

9 Maupassant, 1993, Vol. I, p. 403.

10 Guy de Maupassant. Contes et nouvelles. Paris, Albin Michel, 1957. Éditiond’Albert-Marie Schmidt avec la collaboration de Gérard Délaisement. Vol. II, p.1107 .

11 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 780.

12 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 780.

13 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 1046.

14 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 853.

15 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 798.

16 Maupassant, 1993, p. 964.

17 Sigmund Freud. L’inquiétante étrangeté (Das Unheimliche). Essais dePsychanalyse appliquée. 11 e éd. Paris, Gallimard, 1952. p. 163-221.

18 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 858.

18 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 858.

19 Maupassant, 1957, Vol. II, p. 959.

20 Fabre, 1992, p. 90-91.