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Departamento de Direito O FENÔMENO DA RACIONALIZAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NO ÂMBITO JURÍDICO Aluno: Carolina Paes de Castro Mendes Orientador: Noel Struchiner Introdução O direito tem como uma de suas fontes, a jurisprudência, que segundo Miguel Reale é “a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais” [1]. Desse modo, o direito é objeto e resultado da atividade jurisdicional. Isso significa que é aplicado em julgamentos, e, quando reiteradas decisões de tribunais coincidem em relação a uma matéria, essas construções são dotadas de força normativa, passando a fazer parte do direito vigente. Em virtude disso, a tomada de decisões é de extrema importância, uma vez que tudo aquilo que é decidido e transita em julgado é incorporado ao direito positivo. Assim, é de interesse coletivo que a prestação jurisdicional ocorra da melhor forma possível, observando os princípios jurídicos a ela relacionados. Juízes aplicam e interpretam normas jurídicas, em regra, a partir de casos concretos. Diante da situação concreta, o juiz não só tem o dever de julgar, como de fundamentar sua decisão, o que se chama de ratio decidendi, as razões de decidir. A tomada de decisão, em sentido amplo e genérico, vem sendo objeto de estudo de diversas áreas, como da psicologia, da filosofia, do direito, entre outras. O que pesquisas têm apontado é que, ao explicitarmos nossas motivações, normalmente ocorre o fenômeno da racionalização. Isso indica que alcançamos nossos juízos de valor a partir de instintos, vieses, inclinações, estereótipos, emoções, hábitos etc., mas, ao revelarmos os motivos que nos levaram até aquela valoração, apresentamos outras razões. Contamos uma história post hoc para justificar nossas ações [2]. Transpondo isso para o direito significaria que juízes, ao decidir, não tomariam por base materiais jurídicos: suas decisões estariam fundadas em impulsos psicológicos profundos, palpites ou intuições (Jerome Frank e Joseph Hutcheson) e, posteriormente, uma roupagem jurídica seria aplicada para fundamentar tais decisões.

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Departamento de Direito

O FENÔMENO DA RACIONALIZAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES

NO ÂMBITO JURÍDICO

Aluno: Carolina Paes de Castro Mendes

Orientador: Noel Struchiner

Introdução

O direito tem como uma de suas fontes, a jurisprudência, que segundo Miguel

Reale é “a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da

jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões dos tribunais” [1]. Desse

modo, o direito é objeto e resultado da atividade jurisdicional. Isso significa que é

aplicado em julgamentos, e, quando reiteradas decisões de tribunais coincidem em

relação a uma matéria, essas construções são dotadas de força normativa, passando a

fazer parte do direito vigente. Em virtude disso, a tomada de decisões é de extrema

importância, uma vez que tudo aquilo que é decidido e transita em julgado é

incorporado ao direito positivo. Assim, é de interesse coletivo que a prestação

jurisdicional ocorra da melhor forma possível, observando os princípios jurídicos a ela

relacionados.

Juízes aplicam e interpretam normas jurídicas, em regra, a partir de casos

concretos. Diante da situação concreta, o juiz não só tem o dever de julgar, como de

fundamentar sua decisão, o que se chama de ratio decidendi, as razões de decidir. A

tomada de decisão, em sentido amplo e genérico, vem sendo objeto de estudo de

diversas áreas, como da psicologia, da filosofia, do direito, entre outras.

O que pesquisas têm apontado é que, ao explicitarmos nossas motivações,

normalmente ocorre o fenômeno da racionalização. Isso indica que alcançamos nossos

juízos de valor a partir de instintos, vieses, inclinações, estereótipos, emoções, hábitos

etc., mas, ao revelarmos os motivos que nos levaram até aquela valoração, apresentamos

outras razões. Contamos uma história post hoc para justificar nossas ações [2].

Transpondo isso para o direito significaria que juízes, ao decidir, não tomariam

por base materiais jurídicos: suas decisões estariam fundadas em impulsos psicológicos

profundos, palpites ou intuições (Jerome Frank e Joseph Hutcheson) e, posteriormente,

uma roupagem jurídica seria aplicada para fundamentar tais decisões.

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Isso não aconteceria sempre, mas estudiosos apontam que em casos moralmente

salientes isso é comumente observado. Como muitos casos jurídicos são moralmente

sensíveis, isso se torna preocupante.

Além disso, evidências empíricas sugerem que tampouco o alto nível de

inteligência quanto o conhecimento filosófico seriam capazes de reduzir a

racionalização. Na verdade, há indícios de que seja possível que isso a intensifique. [3]

Sendo assim, a intelectualidade dos operadores do direito não os afastaria da

racionalização.

As discussões e os estudos acerca da racionalização vêm ganhando espaço no

momento atual, mas a premissa de que as decisões são obtidas na esfera psicológica a

partir de mecanismos desconhecidos, que são mais tarde encobertos pelo emaranhado

jurídico apresentado na fundamentação, já era defendida pelos realistas. Assim, autores

do realismo jurídico norte-americano como Jerome Frank defendiam que a decisão

judicial seria um aparato para a racionalização da decisão pessoal do juiz. Entretanto,

como não tinham a sua disposição todas as pesquisas mais recentes sobre racionalização

desenvolvidas na filosofia, nas ciências cognitivas, na psicologia experimental, etc.,

faltou embasamento para a tese por eles concebida.

Objetivos

O presente trabalho tem por objetivo escrutinar as discussões filosóficas sobre o

conceito de racionalização, apresentar os estudos mais recentes a respeito do tema,

analisar experimentos a ele relacionados, ponderar os potenciais benefícios e problemas

da racionalização e, por fim, refletir sobre seus efeitos no campo do direito. Tendo em

vista o insight que os realistas tiveram sobre o modo como os julgamentos são formados

e a lacuna por eles deixada no que tange a justificação dessa mesma proposição,

objetiva-se lapidá-la a partir de considerações mais robustas sobre a noção de

racionalização e seu mecanismo de funcionamento, para discutir quais são suas

implicações para a tomada de decisão jurídica.

Metodologia

A metodologia empregada consistiu em uma análise crítica e reflexiva da

literatura acerca do tema, assim como de experimentos conduzidos por outras pessoas

que trouxeram resultados relativos ao assunto. A partir disso, como a maior parte dos

experimentos não versa especificamente sobre o campo do direito, houve uma

dedicação no sentido de planejar experimentos semelhantes que poderiam ser aplicados

visando descobertas sobre o fenômeno no âmbito jurídico. Sendo assim, o trabalho é

predominantemente teórico, mas tem a pretensão de se desdobrar, em um futuro

próximo, também no plano experimental.

Racionalização – Conceito e Exemplos

Uma definição abrangente de racionalização realiza uma distinção entre as

justificativas oferecidas por um para defender uma ação ou atitude e o que realmente

explica sua ação ou atitude (Audi 1985. Siegel 2014) [4]. Isso não quer dizer

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necessariamente que a justificação explicitada não é um motivo verdadeiro. Ele pode

ser, mas não será o único ou o principal motivo que levou a pessoa a agir. Dessa forma,

a racionalização consiste na justificativa que é apresentada como uma motivação, mas

que, na verdade, não é a real motivação, ou pelo menos não é uma motivação

suficientemente capaz de explicar a ação do agente.

Audi propõe uma descrição ampla do que seria a racionalização:

Uma racionalização em primeira pessoa, realizada por S sobre seu

comportamento A, é uma suposta descrição dada por ele de seu

comportamento A, que (a) apresenta um ou mais motivos porque

realiza A; (b) dado(s) esse(s) motivo(s) faz com que seu

comportamento A pareça racional prima facie, mas (c) não explica

porque S realizou A.

Jesse Summers aponta, no entanto, que esse conceito apresentado por Audi

abrange também a mentira deliberada. Para ele, é preciso salientar que existe uma

diferença entre os dois. Não são apresentadas, na racionalização, razões diversas das

verdadeiras como uma tentativa de enganar os outros ou a si mesmo, como na mentira.

Aquela ocorre de maneira inconsciente. Uma pessoa pode acreditar que está sendo

objetiva, colocando fatores contra e a favor na balança e ter um raciocínio enviesado

sem ter consciência disso. Logo, para J. Summers, o agente decisório precisa acreditar

que a razão justificativa seja uma razão que explica sua ação∕decisão.

De acordo com Summers, a racionalização inclui a confabulação, que também se

caracteriza como imotivada. A confabulação ocorre quando alguém cria uma explicação

para que seu comportamento faça sentido diante de um caso em que não tem acesso a

fatos relevantes para dar uma boa explicação. Pode-se observá-la em alguns casos

neurológicos atípicos, como por exemplo, na anosognosia (a incapacidade de perceber

sua própria doença) de hemiplegia (paralisia sobre uma metade do corpo). Uma pessoa

nessas condições não se dá conta de que não pode mover parte do corpo em razão da

doença, então, quando questionada, confabula uma explicação sobre o porquê da

escolha por não mover seu membro, dizendo que está cansada etc.

Desse modo, J. Summers sugere a seguinte descrição, adaptando aquela

apresentada por Audi:

Uma racionalização em primeira pessoa, realizada por S sobre seu

comportamento A, é uma sincera explicação, que ele dá a si mesmo ou

a outros, sobre seu comportamento A, mesmo após certa introspecção,

e que (a) oferece uma justificativa parcial ou completa para seu

comportamento A, (b) explica de fato parcialmente seu

comportamento A, mas (c) existem outras justificativas ou explicações

melhores do porque S realizou A. [5]

Um experimento realizado por Haidt, no qual contou uma história fictícia

moralmente sensível a um grupo de pessoas e depois pediu que se manifestassem a

respeito do relatado, exemplifica essa situação.

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Julie e Mark são irmãos. Eles estão viajando juntos na França, durante

as férias de verão da faculdade. Uma noite, eles estão hospedados

sozinhos em uma cabana perto da praia. Eles decidem que seria

interessante e divertido se eles tentassem fazer amor. No mínimo,

seria uma nova experiência para cada um deles. Julie já estava

tomando pílula anticoncepcional, mas Mark também faz uso de um

preservativo por segurança. Ambos curtem fazer amor, mas resolvem

não fazer novamente. Eles resolvem manter aquela noite em segredo;

um segredo especial que faz com que se sintam ainda mais próximos um do outro.

O que você pensa sobre isso? Você acha OK o fato de eles terem feito

amor? (Haidt, 2001, p.814)

A maior parte das pessoas respondeu imediatamente após escutar o caso acima

que essa conduta teria sido moralmente condenável, para apenas depois pensar em

argumentos justificando suas respostas (Haidt, Bjorklund, & Murphy, 2000). Muitas

recorreram a argumentos que já haviam sido explicitamente rechaçados como

possibilidades na vinheta apresentada: a possibilidade de gravidez e o nascimento de

uma criança com problemas genéticos (mas duas formas de controle estavam sendo

usadas: pílula e preservativo); a possibilidade de outros ficarem sabendo e as

repercussões sociais negativas disso (mas Mark e Julie resolveram manter aquela noite

em segredo); a possibilidade de se afastarem como amigos (mas o segredo fez com que

se sentissem ainda mais próximos e amigos). Quando o responsável por conduzir o

experimento insistia e demonstrava que aquelas razões não eram adequadas, as pessoas

frequentemente diziam que, embora não conseguissem explicar as razões, sabiam que o

ato era errado. A intuição moral é uma espécie de cognição, mas não é uma forma de

justificativa (Haidt, 2001, p. 814). [6]

Podemos observar que fatores estranhos levaram as pessoas às suas decisões,

fatores esses que não eram suscitados no momento de explicação. Aqui, o fator estranho

era o sentimento de nojo provocado nos participantes pela ideia de incesto.

Diversas pesquisas se dedicaram à relação entre nojo e moralidade. O nojo,

originalmente, tinha o intuito de indicar o que poderia servir de alimento e o que deveria

ser evitado e, se já houvesse ocorrido a ingestão, que aquilo que foi consumido deveria

ser expelido. Mais tarde, o nojo passou a ter também uma função social: identificar

grupos de pessoas e comportamentos que seriam inaceitáveis.

Esse fator estranho (uma emoção, um instinto etc.) não precisa estar

necessariamente ligado ao caso. É possível que fatores externos influenciem a forma de

decidir. Isso ficou provado em dois outros experimentos:

No experimento realizado por Haidt, Schnall, Clore e Jordan (2008), uma

adaptação de um experimento anterior (Whatley e Haidt, 2005), que comprovou que o

nojo tornava juízos morais mais severos, foram criadas quatro situações. Na primeira,

um spray com cheiro desagradável era lançado na sala de teste. Na segunda, o ambiente

continha objetos nojentos (cadeira com estofado rasgado e sujo; uma caneta mordida em

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cima da mesa; lixo com restos de comida, lenços de papel usados etc.). Na terceira,

deveriam descrever uma experiência do passado em que se sentiram enojados antes de

responder e, na quarta, os participantes assistiam vídeos que envolviam a tristeza e o

sentimento de nojo antes de responderem ao questionário. Alguns participantes foram

submetidos às condições acima e grupos de controle realizaram o teste em ambientes

normais, que não deveriam suscitar nojo, ou, no caso dos dois últimos experimentos,

não receberam instruções para se recordarem de uma experiência vivenciada e

assistiram a vídeos neutros. A todos eles foram apresentadas vinhetas que descreviam

situações que costumam envolver o nojo e situações normais. Ao avaliar os casos, os

participantes submetidos às condições de nojo julgaram mais severamente não só as

vinhetas que causavam nojo, mas também as demais. O julgamento foi mais severo

quanto aos julgamentos morais e não morais.

Outro trabalho experimental que demonstrou o efeito de fatores externos no

julgamento, nesse caso, especificamente no julgamento judicial, foi realizado por Shai

Danzigera, Jonathan Levavb e Liora Avnaim-Pessoa [7]. As decisões de oito juízes

(judeus israelitas) tomadas ao longo de 10 meses, sobre 1.112 pedidos, em sua maioria,

de liberdade condicional (87%) foram analisadas. As demais eram a respeito de

mudanças quanto aos termos de sua liberdade condicional (ex. retirada de tornozeleira)

ou quanto ao encarceramento em si (ex. mudança de presídio). Percebeu-se que no

início do dia ou após os intervalos para lanche, as decisões eram mais favoráveis aos

presos; em 65% dos casos os pedidos eram deferidos. Ao final do dia ou antes dos

intervalos, as decisões eram mais prejudiciais a eles; a percentagem de pedidos

deferidos beirava a 0 e tendia a retornar a 65% após o intervalo novamente. Isso

evidencia que a tomada de decisões reiteradamente ao longo do dia leva à fadiga. A

fome, o cansaço etc. também engendram julgamentos mais severos. Verificou-se que

nessas condições a tendência foi manter o status quo. Essa tendência pode ser superada

por meio de um intervalo para o descanso e para a ingestão de glicose, suficientes para a

reposição dos juízes. Em síntese, esse estudo demonstra que fatores legalmente

irrelevantes podem afetar a decisão sobre uma ação. Isso é pernicioso, porque muitas

vezes é a vida de uma pessoa que está em jogo.

Esse experimento foi recentemente revisitado por Andreas Glöckner (2016) [8],

que sustenta que a magnitude dos efeitos da fome e fadiga tenha sido superestimada e

que os resultados encontrados poderiam, em parte, ser explicados por outros fatores.

Todavia, sua análise reconhece que a tendência decrescente de decisões favoráveis ao

longo do dia pode decorrer de fatores estranhos, uma vez que as hipóteses por ele

testadas não foram capazes de explicar os resultados em todos os seus aspectos.

A Racionalização e o Realismo Jurídico

O realismo jurídico norte-americano, que remonta à primeira metade século XX,

já se dedicava em estudar o comportamento de juízes no exercício de suas funções.

Jerome Frank, um autor pertinente ao movimento e ele próprio um juiz, já defendia que

a decisão judicial seria um mecanismo de racionalização de decisões pessoais. Segundo

os realistas, os magistrados decidiriam conforme suas convicções e não com base em

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fundamentos jurídicos, mas os utilizariam para, posteriormente, justificar suas

sentenças, o que chamaram de “teoria da racionalização”. Essa visão pode ser

decomposta em duas partes: (a) a maior parte dos juízes tem uma inclinação para chegar

a um resultado antes de consultar os materiais jurídicos; (b) tendo em vista que os

materiais jurídicos são amplos e, em geral, de conteúdo abstrato, não haveria

dificuldade em encontrar uma regra ou princípio para encobrir sua decisão.

A racionalização se relaciona com o contexto de descoberta e contexto de

justificação, noções que permeiam a filosofia da ciência. Hans Reisenbach introduziu

esses termos em sua obra “Experience and prediction: an analysis of the foundations

and the structure of knowledge” (1938) pela primeira vez, após afirmar que existe “uma

notória diferença entre o modo de o pensador encontrar seu teorema e seu modo de

apresentá-lo ao público”. Nesse sentido, o contexto de descoberta é aquele que envolve

as condições (aspectos fáticos) que levaram o cientista até sua teoria, isto é, de que

maneira foi concebida, e o contexto de justificação, aquilo que o cientista apresenta

como justificativa para a veracidade de sua teoria.

É exatamente o que se observa na racionalização: um complexo de fatores leva

uma pessoa a um juízo de valor (contexto de descoberta), inclusive fatores que essa

pessoa desconhece como sendo relevantes em seu julgamento, mas a justificativa

pronunciada a posteriori, seu contexto de justificação, difere do anterior.

A Racionalização e as Ciências psicológicas e cognitivas

A racionalização está intimamente ligada também com o que a literatura das

ciências cognitivas costuma chamar de “teoria do processo dual de pensamento” (dual-

process theory), segundo a qual o processo decisório resulta de dois sistemas: Sistema 1

(implícito ou intuitivo) e Sistema 2 (explícito ou deliberativo). O primeiro, empírico, é

sustentado por memórias, intuições etc. e opera de maneira rápida e automática, sendo

pouco introspectivo. Caracteriza-se como inconsciente, sendo suas decisões muitas

vezes carregadas de vieses. Em seguida, o Sistema 2, baseado na razão e na lógica, revê

os julgamentos primitivos formadas pelo Sistema 1. Esse segundo sistema, é

intencional, analítico, consciente e atua de maneira mais lenta.

Embora o sistema 2 possa ser utilizado como um mecanismo de

superação dos erros e desvantagens do sistema 1, na prática isso nem

sempre acontece. Jonathan Haidt, um badalado psicólogo moral,

mostrou, em uma série de experimentos desenvolvidos com cole as,

que o sistema tem uma certa primazia em relação ao sistema e que

em muitas ocasiões o sistema 2 funciona como mero “porta-voz” do

sistema 1 (...) [9].

Pat Croskerry elaborou uma tabela comparativa dos dois sistemas, que pode ser

encontrada em seu artigo “The theory and practice of clinical decision-making” [ 0]. A

tabela a seguir é uma tradução e adaptação da que pode ser encontrada em seu trabalho:

Características Sistema 1 (intuitivo) Sistema 2 (analítico)

Estilo cognitivo Heurístico Sistemático

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Consciência cognitiva Baixa Alta

Controle consciente Baixo Alto

Automaticidade Alta Baixa

Velocidade Rápido Devagar

Confiabilidade Baixa Alta

Esforço Baixo Alto

Aspecto emocional Forte Fraco

Rigor científico Baixo Alto

O que afeta os julgamentos?

Heurísticas permitem que as decisões sejam tomadas mais rapidamente. Em

sentido estrito, podem ser entendidas como mecanismos não conscientes produzidos

pelo Sistema 1 que suscitam intuições responsáveis, do ponto de vista causal, pela

decisão. Por um conceito mais amplo, seria todo e qualquer mecanismo que possa

simplificar a tomada de decisão. [11] Dentro dessa ideia de mecanismos estariam as

intuições, emoções etc., que servem como atalhos no processo decisório. Como as

pessoas são obrigadas a tomar decisões inúmeras vezes ao longo do dia, que variam

apenas quanto ao grau de importância e à quantidade de fatores envolvidos, essas

heurísticas são empregadas de modo a facilitar e possibilitar a enorme quantidade de

escolhas que devem ser feitas a todo instante.

A racionalização pode ser provocada por diferentes espécies de erros inferenciais

e vieses específicos tais como o confirmation reasoning (raciocínio de confirmação), o

confirmation bias (viés confirmatório), o myside bias e a ancoragem. Todos esses

fenômenos funcionam como heurísticas.

Temos uma hipótese de confirmation reasoning quando uma pessoa tem diversos

motivos no plano fático para acreditar em P, mas por uma razão interna (um desejo,

uma esperança, um objetivo etc.) acredita no contrário (Não- P). Há um excesso de

confiança nesses casos. Nota-se que o produto do Sistema 1 não é reprimido pelo

Sistema 2.

O confirmation bias seria “a busca ou a interpretação de evidências de modo que

sejam parciais a crenças, expectativas ou a uma hipótese que se busca comprovar”

(Nickerson, 1998, p.175). Entretanto, o que Hugo Mercier [12] defende é que não existe

essa tendência generalizada de confirmar tudo o que se pensa, mas uma tendência em

encontrar argumentos que respaldem sua visão – o chamado myside bias. Isso se

materializa por meio da tendência de encontrar argumentos que defendam sua posição

ou refutar argumentos que sustentem a posição contrária.

A literatura sobre o myside bias sugere que, diante de temas controversos,

costuma-se recordar e produzir mais argumentos a favor do ponto de vista defendido do

que sobre o ponto de vista contrário. Além disso, alguns estudos demonstraram que as

pessoas são mais críticas em relação a argumentos contrários a sua posição moral.

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Em um experimento (Edwards & Smith, 1996), a seguinte alegação foi

apresentada a participantes que defendiam e que eram contrários à pena de morte:

“Sentenciar uma pessoa à morte garante que ele∕ela jamais cometerá outro crime. Por

isso, a pena de morte não deveria ser abolida.” (Edwards & Smith, 1996, p.9). Os

participantes deveriam, então, classificar a força do argumento acima. O que se

observou foi que os participantes que rejeitam a pena de morte, em comparação aos

participantes que a apoiam, avaliaram o argumento como substancialmente mais fraco.

A reprovação de um argumento que desafia nossas posições deriva de nossa habilidade

em encontrar contra-argumentos (Edwards & Smith, 1996; Greenwald, 1968; Taber &

Lodge, 2006). Portanto, podemos acreditar que os participantes contrários à pena de

morte poderiam facilmente contra-argumentar a afirmação apresentada. No entanto, o

problema maior não é o fato das pessoas facilmente rejeitarem argumentos opostos ao

que defendem, mas sim o fato de aceitarem avidamente argumentos que sustentem seus

pontos de vista.

Dois outros experimentos demonstram o myside bias a partir da análise sobre o

teste de hipóteses. Estudam o que as pessoas fazem quando querem saber se uma de

suas ideias é verdadeira ou não. Peter Wason, que desenvolveu e conduziu tais

experimentos, buscou verificar se as pessoas eram capazes de testar suas hipóteses

utilizando-se da mesma técnica aplicada pelos cientistas, o que se chama de falsification

(técnica da falseabilidade): uma hipótese é boa se ela resiste a repetidas tentativas de

provar que ela é falsa.

“The Rule Discovery Task”: O objetivo do primeiro experimento era descobrir

uma regra. Forneceram aos participantes um trio de números que se conforma à regra: 2,

4, 6. Em seguida, eles deveriam apresentar outros trios para que o pesquisador os

informasse se este se adequava à regra ou não (Ex. Hipótese: uma série de números em

que se acrescenta 2 a cada passo. Série de números: 10, 12, 14). Demonstrou-se que os

participantes, formulada uma hipótese, tinham a tendência de verificá-la apresentando

trios que se adequariam a ela, ao invés de apresentar séries de números que não se

adequariam (ex. 2, 4, 7). Com esse último raciocínio seriam capazes de saber que a

hipótese formulada estava incorreta, descartá-la e levantar uma nova, visando chegar

mais rapidamente à regra. É possível perceber uma tendência de confirmação das

hipóteses por meio da “positive test strategy”. A re ra correta era uma série de números

ascendentes.

“The Wason selection test”: Quatro cartas foram colocadas sobre uma mesa,

assim como a se uinte re ra: “Se há uma vo al de um lado, então haverá um número

par do outro”. Os participantes deveriam dizer qual∕quais carta(s) deveria(m) ser

virada(s) para que se provasse ser verdadeira a regra. Poderiam ser selecionadas quantas

cartas achassem necessárias.

A 7 D 4

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A maior parte dos participantes respondeu que a carta A ou as cartas A e 4

deveriam ser viradas, mas a resposta correta seria virar as cartas A e∕ou 7. A re ra não

diz que do outro lado de uma carta par deve haver uma vogal, portanto a carta 4 não é

necessária. Já a carta 7 pode demonstrar que a regra é falsa se do outro lado for

encontrada uma vogal. Da mesma maneira, se do outro lado da carta A for encontrado

um número ímpar, será falsa a regra.

A ancoragem ocorre quando um número, dado ou obtido, funciona como âncora

para a decisão. Esse número serve de parâmetro, tendo influência decisiva (e maior do

que deveria) no resultado a que a pessoa chega.

As implicações do efeito ancoragem para o direito são relevantes, já

que juízes devem decidir questões que envolvem julgamentos

numéricos, como em casos que precisam decidir o valor de uma

multa, o valor de uma indenização devida, ou quanto tempo alguém

deve ficar preso. Na maior parte dessas situações, recebem um valor

numérico inicial que é apresentado por uma das partes (seus

advogados), ou no caso do direito penal, frequentemente por um

promotor ou defensor. [13]

Em um estudo empírico realizado por Guthrie, Rachlinski e Wistrich [14] dois

grupos de juízes foram expostos a uma vinheta que descrevia um caso de

responsabilidade civil: um motorista de caminhão negligente havia causado um acidente

de trânsito, no qual a vítima (e autor da ação), um professor de 31 anos, teve três

costelas quebradas e sofreu lesões graves em seu braço direito. Além disso, passou uma

semana internado no hospital e perdeu seis semanas de trabalho. Ao final, seu braço

direito teve que ser amputado, sendo que ele era destro. No experimento, os juízes

tinham que fixar um valor de reparação para o reclamante. Para os juízes do grupo de

controle, a única informação passada além dos fatos do caso foi a de que o autor

pretendia obter “uma reparação monetária si nificativa”. Para outro rupo de

magistrados, no entanto, foi dito que o autor reivindicava uma indenização de dez

milhões de dólares. Os resultados, não surpreendentemente, confirmam o poder da

âncora. Enquanto os magistrados do grupo de controle atribuíram, na média, uma

indenização de 808.000 dólares, com mediana de 700.000 dólares, os juízes do grupo de

controle defeririam, na média, o valor de 2.210.000 de dólares, com mediana de um

milhão de dólares. [15]

English, Mussweiler e Strack (2006) desenvolveram uma pesquisa na Alemanha,

tratada no arti o “Playing Dice With Criminal Sentences: The Influence of Irrelevant

Anchors on Experts’ Judicial Decision Making” [16], onde o efeito da ancoragem

também ficou demonstrado. Foram apresentadas a profissionais experientes do direito

(juízes e promotores) três situações diferentes envolvendo crimes para os quais eles

deveriam atribuir uma pena. O primeiro estudo visava examinar os efeitos da mídia na

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tomada de decisões jurídicas. Nesse experimento, os juízes leram sobre um caso de

estupro que deveriam julgar. Após lerem o caso, foram instruídos a imaginar que no

intervalo, antes do julgamento, receberam uma ligação de um jornalista perguntando se

a sentença para o réu seria maior ou menor do que um/ três anos (baixo valor/ alto valor

de ancoragem). Metade dos juízes foi induzida a imaginar que recebeu a ligação que

fazia referência a um ano, e a outra metade, a ligação que fazia referência a três anos.

Embora todos soubessem que a opinião do jornalista era irrelevante e que deveria ser

ignorada, ainda assim os juízes que receberam o valor baixo atribuíram uma média de

25 meses de prisão, enquanto os juízes que receberam o valor mais alto atribuíram uma

média de 33 meses. O segundo estudo pretendia analisar os limites do efeito da

ancoragem, verificando se a sentença dos profissionais legais seria influenciada por

âncoras supostamente aleatórias. Os juízes, dessa vez, receberam o caso de uma mulher

que furtara um supermercado, sendo essa sua 12ª ocorrência. Em seguida, foi entregue a

eles a seguinte informação: “para propósitos experimentais, a se uinte recomendação de

sentença foi aleatoriamente determinada pelo promotor”. Para metade, a recomendação

era de 9 meses em liberdade condicional, para a outra, de 3 meses. Apesar de a

recomendação ter sido atribuída de forma aleatória e o juiz ter sido explicitamente

informado de que ela “não refletia qualquer tipo de expertise”, ainda assim, os juízes

que receberam o número aleatório mais alto atribuíram sentenças mais altas, e os que

receberam um número aleatório mais baixo atribuíram sentenças mais baixas. Tendo em

vista que os participantes poderiam ter dúvidas quanto a recomendação ter sido, de fato,

obtida de modo aleatório, podendo não ter aceitado essa informação, no último

experimento, os próprios juízes lançaram dados, cujo valor serviria como âncora

aleatoriamente determinada. Metade dos juízes recebeu um par de dados que sempre

mostrava os números 1 e 2 e outra metade recebeu um par de dados que sempre

mostrava os números 3 e 6. Após lançarem os dados, foram orientados a somar os

valores obtidos, que seria o número de meses em liberdade condicional recomendado,

chegando ao mesmo quadro do segundo experimento: 3 ou 9 meses. O resultado

observado foi muito semelhante ao do segundo estudo, sendo verificado o efeito

ancoragem. Resumindo, juízes, de forma inconsciente, ficam atrelados aos primeiros

números que são apresentados para eles, sejam esses números relevantes ou não. Eles

apresentam um sentimento, produzido pelo Sistema 1, de forma não consciente, de que

a resposta correta gira em torno do número que receberam. O mais surpreendente foi

que tampouco o conhecimento jurídico ou a experiência afastaram os juízes da área

criminal das armadilhas colocadas. Na verdade, essas condições os tornaram mais

confiantes em relação às sentenças dadas. [17]

Os efeitos da racionalização

A racionalização não é intrinsecamente “boa” ou “ruim”, mas acredita-se que seus

malefícios sejam preponderantes. Assim, mostra-se necessário pensar em mecanismos

que evitem seus problemas causados.

Em uma tentativa de demonstrar um aspecto positivo da racionalização, J.

Summers apresenta dois possíveis benefícios seus: consistency e meaningfulness

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(consistência e significado). Este último está relacionado a padrões comportamentais em

que as ações realizadas são permitidas no ordenamento jurídico e as pessoas as realizam

sem pensar a respeito do motivo que as leva a tanto. São hábitos, reações automáticas

ou atitudes culturais (ex. cumprimentar os vizinhos no elevador). Todavia, quando

questionadas, as pessoas buscam dar explicações que atribuem maior importância ao

motivo subjacente às suas ações.

Por exemplo, uma pessoa pode ser vegetariana pelo mero fato de que desde que

nasceu todos em sua casa eram vegetarianos, de modo que nunca havia carne sobre a

mesa e ela acostumou-se com isso, jamais tendo vontade de experimentar qualquer tipo

de carne animal. Portanto, trata-se de um hábito. No entanto, quando questionada sobre

o porquê da não ingestão de carne animal, essa mesma pessoa teria uma tendência em

responder apresentando uma explicação que atribuísse maior importância ao fato de não

comer carne. Ela poderia dizer, por exemplo, que não come carne porque é contra a

crueldade a animais, se mostrando uma pessoa mais empática.

Isso se relaciona ao primeiro benefício: os homens sentem uma pressão em agir de

modo consistente, de forma que as justificações apresentadas para as ações devem ser

coerentes com comportamentos passados e, uma vez explicitadas, passam a nortear

futuros comportamentos.

Utilizando-se de outro exemplo, pode-se imaginar a seguinte situação: dois

amigos estão andando na rua, quando um deles é abordado por um morador de rua

pedindo esmola. Pego de surpresa, o rapaz se assusta, tira a carteira do bolso e entrega

dinheiro ao sujeito. Alguns minutos depois, seu amigo o questiona sobre o porquê dele

ter dado dinheiro ao morador de rua. No fundo, os motivos pelo quais ele entregou

dinheiro foram o susto e o medo, mas, sem se dar conta disso, responde que deu

dinheiro porque quer ajudar as pessoas necessitadas. Pressionado a se manter uma

pessoa consistente, sua explicação passa a orientá-lo futuramente. Assim, toda vez que

se vir diante de uma pessoa necessitada, ele se sentirá compelido a ajudá-la, pois

afirmou anteriormente que isso o motivava e provavelmente não deseja ser taxado de

hipócrita.

Entretanto, esse aspecto da consistência como um benefício pode ser questionado.

Por exemplo, as medidas cautelares têm por requisitos: i) prova da existência do crime e

ii) indícios de autoria. Se um juiz decreta uma medida cautelar, seguindo a lógica de

Summers, ele se sentiria pressionado a declará-lo culpado também. Isso ocorre com

frequência na prática forense: juízes decretam medidas cautelares e, em quase todas as

vezes, condenam o réu depois. Dificilmente os absolvem, pois isso seria admitir que

decretaram uma medida cautelar sem necessidade. Portanto, a característica da

consistência acompanhando os motivos apresentados pode ser positiva ou negativa, a

depender da justificativa oferecida.

A racionalização no âmbito jurídico e suas implicações

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Há bons motivos para acreditar que a racionalização ocorra na esfera jurídica e

considerar que seja perniciosa nesse domínio. A própria origem etimológica da palavra

“sentença” serve de fundamento para tanto: sentença vem do latim “sentire”, que

si nifica “sentir”. Lo o, traz a noção implícita de que aquilo que o juiz sente se

materializa na sentença. Não é assim que deve ser. A tomada de decisões jurídicas deve

ter a lei como pilar, e fatores estranhos devem ter uma influência mínima. A atividade

jurisdicional deve ser prestada de modo racional.

Se vieses podem influenciar na tomada de decisões, características do juiz como

gênero, idade, religião etc. terão repercussão na maneira como ele decide. Sendo assim,

a homogeneidade dos tribunais é preocupante. Há dados de que nas cortes norte-

americanas homens brancos compõe a maioria, enquanto todos os demais grupos se

encontram sub-representados. No Brasil, parece ocorrer o mesmo. Para fins

exemplificativos, dos 11 ministros que compõe Supremo Tribunal Federal, apenas duas

são mulheres e nove, homens, sendo todos os onze brancos. Desde sua formação, o STF

contou com a passagem de apenas três homens negros, enquanto os brancos somam um

número imensamente maior. [18]

Isso pode ainda ser agravado pelo sistema de precedentes (stare decisis). O novo

Código de Processo Civil aproximou o ordenamento jurídico brasileiro ao Common Law

ao ampliar o papel dos precedentes. Pelo sistema de precedentes, os julgados servem de

parâmetro decisivo para o julgamento de casos futuros. Desta forma, decisões

enviesadas podem ser reproduzidas ao longo do tempo.

Outrossim, conforme foi demonstrado no presente trabalho, o confirmation bias

ou o myside bias afetam todas as pessoas, e os juízes estão aqui incluídos. Isso significa

que, uma vez formado um pré-julgamento, olham para o material jurídico de modo

parcial, isto é, aquilo que respalda a opinião do juiz será mais evidente aos seus olhos,

enquanto aquilo que a contraria será quase invisível ou, ao menos, deixado de lado.

Conclusão

O que os experimentos explorados nesse trabalho mostram, além de muitos outros

que não foram aqui abordados, é que os operadores do direito, como todos os seres

humanos, são influenciados por vieses, têm dois sistemas decisórios cognitivos e,

muitas vezes, o sistema intuitivo prevalece sobre o deliberativo. Desse modo, respostas

intuitivas podem ser apresentadas como solução para problemas jurídicos, e mascaradas

por fundamentos legais.

Como permitir que o simples lançar de dados possa definir o tempo de

cumprimento de uma pena? Não podemos controlar se um juiz toma ou deixa de tomar

café da manhã, se é influenciado por um número ao seu redor ou o que sente diante de

um caso a partir de suas experiências como homem ou mulher, branco ou negro, mas

podemos buscar mecanismos que evitem que esses fatores, que não deveriam ser

determinantes em um julgamento, exerçam tal influência. O primeiro passo foi

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reconhecer as falhas de nosso sistema. Agora, cabe desenvolver métodos capazes de

conter os impactos desses elementos na tomada de decisões jurídicas.

Já foram elaboradas técnicas de debiasing, mas as implementadas até então se

mostraram pouco eficazes, ao passo que discutir as tarefas em pequenos grupos se

mostrou mais eficiente em refrear vieses [19]. Talvez, o caminho seja evitar que

decisões sejam tomadas por juízes monocráticos, dando preferência aos julgamentos em

colegiados. Deve haver um empenho multidisciplinar no sentido de pensar ainda em

outras medidas, abrangendo profissionais das áreas jurídica, psicológica, etc.

Referências

[1] REALE, M. Lições Preliminares de Direito. 15ª. ed. São Paulo: Saraiva,

1987.p.167.

[2] SUMMERS, J. Post hoc ergo propter hoc: some benefits of rationalization.

Philosophical Explorations, 20: sup1, 21-36, p.3, 2017.

[3] SCHWITZGEBEL, E.; ELLIS, J. Rationalization in Moral and Philosophical

Thought (2016). In: BONNEFON, J.; TRÉMOLIÈRE, B. Moral Inferences.

Psychology Press, 2017, p.12-13

[4] ______. Rationalization in Moral and Philosophical Thought (2016). In:

BONNEFON, J.; TRÉMOLIÈRE, B. Moral Inferences. Psychology Press, 2017, p.12-

13

[5] SUMMERS, J. Rationalizing our Way into Moral Progress. Ethical Theory and

Moral Practice – An International Forum. Springer Netherlands, v.20, n.10677,

2017.p.97-98

[6] STRUCHINER, N.; SCHECAIRA, F. Teoria da Argumentação Jurídica. 1.ed.

Rio de Janeiro : Contraponto, 2016. p.155-174.

[7] DANZINGER, S.; LEVAV, J.; AVNAIM-PESSO, L. Extraneous factors in

judicial decisions. Disponível em: http://www.pnas.org/content/108/17/6889.full.

Acesso em: 14 Maio 2017.

[8] GLÖCKNER, A. The irrational hungry judge effect revisited: Simulations

reveal that the magnitude of the effect is overestimated. Disponível em:

http://journal.sjdm.org/16/16823/jdm16823.html Acesso em: ∕07∕ 0 7.

[9] STRUCHINER, N.; SCHECAIRA, F. Teoria da Argumentação Jurídica. 1.ed.

Rio de Janeiro : Contraponto, 2016. p.155-174.

[10] CROSKERRY, P. The theory and practice of clinical decision-making.

Canadian Journal of Anesthesia/Journal canadien d'anesthésie, Volume 52, Supplement

1, 2005. p. R1-R8

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[11] STRUCHINER, N.; SCHECAIRA, F. Teoria da Argumentação Jurídica. 1.ed.

Rio de Janeiro : Contraponto, 2016. p.155-174.

[12] MERCIER, H. Confirmation bias – Myside bias. In: POHL, R. Cognitive

illusions: intriguing phenomena in thinking, judgement and memory. London; New

York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2017.2.ed. p.99-114

[13] STRUCHINER, N.; SCHECAIRA, F. Teoria da Argumentação Jurídica. 1.ed.

Rio de Janeiro : Contraponto, 2016. p.155-174.

[14] GUTHRIE, C.; RACHLINSKI, J.; WISTRICH, A. Blinking on the Bench: How

Judges Decide Cases. Cornell Law Faculty Publications, Volume 93, Paper 917, 2007,

pp. 1-43.

[15] LEAL, F.; MOLHANO RIBEIRO, L. O direito é sempre relevante? Heurística

de ancoragem e fixação de valores indenizatórios em pedidos de dano moral em

Juizados Especiais do Rio de Janeiro. 2016, p.8-9

[16] ENGLICH, B., MUSSWEILER, T., STRACK, F. Playing Dice With Criminal

Sentences: The Influence of Irrelevant Anchors on Experts’ Judicial Decision

Making. Personality and Social Psychology Bulletin, vol. 32, no. 2, 2006.

[17] STRUCHINER, N.; SCHECAIRA, F. Teoria da Argumentação Jurídica. 1.ed.

Rio de Janeiro : Contraponto, 2016. p.155-174.

[18] COLON, L. Primeiro negro do STF, Pedro Lessa sofria ataques de Epitácio

Pessoa. Folha de S. Paulo. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1463239-primeiro-negro-do-stf-pedro-

lessa-sofria-ataques-de-epitacio-pessoa.shtml Acesso em: ∕07∕ 0 7

[19] MERCIER, H. Confirmation bias – Myside bias. In: POHL, R. Cognitive

illusions: intriguing phenomena in thinking, judgement and memory. London; New

York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2017.2.ed. p.99-114