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7/24/2019 O Filho Do Pai Manel - Pedro Santo
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Lista de autores, por ordem de sada dos contos:
Pedro Paixo | Joo Tordo | Rui Zink | Lusa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Ins Pedrosa
Afonso Cruz | Gonalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mrio de Carvalho
Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidnio Cachapa | David Machado
JP Simes | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | Joo Barreiros | Raquel Ochoa | Joo Bonifcio
David Soares | Pedro Santo | Onsimo Teotnio Almeida | Mrio Zambujal | Manuel Joo Vieira
Patrcia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Ldia Jorge | Srgio Godinho
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
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Contos Digitais DN
A coleo Contos Digitais DN-lhe oferecida pelo
Dirio de Notcias, atravs da Biblioteca Digital DN.
Autor:Pedro Santo
Ttulo: O Filho Do Pai Manel
Ideia Original e Coordenao Editorial:Miguel Neto
Design e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso
ESCRITORIO editora | www.escritorioeditora.com
2012 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora
ISBN: 978-989-8507-31-0
Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o consenti-
mento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escritorio editora, abrangendo esta proibio
o texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de acordo
com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
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sobre o autor
Pedro Santo
Cocriador de Bruno Aleixo, e de todo o universo que circunda a personagem, produziu
contedos para televiso, rdio e Internet, tendo ainda coapresentado uns e vocali-
zado outros. Escreveu um par de contos para coletneas, j depois de diplomado emSociologia, pelo ISCTE, e de ter nascido em Leiria, em 1980.
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O Filho Do Pai Manel
Pedro Santo
Jos Maria crescera a saber-se devedor a dois ilustres homnimos. Por um lado,
o pai, se risonho, fosse pelo vinho, fosse pelo concbito, desembuchara-lhe, em bas-
tas ocasies e circunstncias, a inequvoca homenagem a Ea de Queirs, augurando
ao pequenote um resplandecente futuro no ramo das artes. Se possvel, nas letradas,
depreendia-se. Nestas ocasies, o pai, encaixando as mos, que pareciam sempre punhos,
nos sovacos do pequeno, engrandecia Jos Maria por uns momentos, para depois deixarcair os ps sobre o peito dos seus e, simulando uma valsa, cantar que o filho seria o mais
aclamado descendente desse nome composto. Mas, por outro, quando o pai, fosse pelo
vinho, fosse pelo concbito, trazia a face retesada e a testa engelhada, a referncia era
Jos Maria, vulgo Calas, o, saberia mais adiante, ltimo condenado forca em Portu-
gal. Nessas alturas, no havia c baile nenhum para ningum. O pai enterrava-se de tal
maneira no velho sof, que este parecia ter pernas, e, das primeiras vezes, no mais de
vinte ou trinta, Jos Maria pensou mesmo estar a ser amaldioado pelo assento. E fugia,
claro, que aquele sof, que sempre lhe parecera sinistro, com dois grandes botes a fazerde olhos e um vinco que dava muito ares de boca, teria agora pernas e pragas para ati-
rar. Enquanto atormentado pela moblia, Jos Maria no chegara nunca a reflectir sobre
aqueloutras palavras, as que o deliberavam como um gandulo vindouro, com o cadafalso
como ltima paragem. L chegaria.
O pai Manel era abroncado nas maneiras, mas, de escassa sobrancelha e farta pestana,
flua nele um lado feminal. Era fogo-de-vista, no passava disso, s que do bom, do que
parecia mesmo. As patilhas, sempre revoltas e atulhadas, deixavam-se estar em marcada
oposio ao cabelo, que, embora aguado, em tempo algum se desarrumava, nem pelo
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vinho, nem pelo concbito. A cabea do pai de Jos Maria era um conflito constante,
nada parecia conjugado, ali. Ele gostava daquele pai, s daquele. Tinha medo que, um dia,
viesse outro pai. Parecido. E que ningum notasse. Por isso, sempre que o pai chegava do
trabalho, Jos corria para ele e verificava-lhe as orelhas. Tinha os lbulos coladinhos
lateral da cara. Era o pai dele. Mais ningum tinha, pelo menos que Jos tivesse visto. E,se lhe escambassem o pai, estariam to preocupados em emular aquelas patilhas, aquelas
pestanas, aquelas sobrancelhas e aquele cabelo, tudo to singular na sua desafinao de
grupo, que no sobraria tempo para orelhas. Jos gostava de tudo naquela cabea. Porque
tudo naquela cabea recreava, deixando os lbulos bem longe dos palcos do escrutnio.
Aos seis anos e picos, Jos Maria descobriu, finalmente, que daquele sof no
chegavam pernas nenhumas, tampouco palavras. Vinham do pai. As duas coisas. Foi, a
par da revelao de que o tio Cludio tinha comprado um capacete com viseira, a des-
coberta mais entusiasmante do ano. E o garoto l adolesceu, dividido entre os agouros
de novo Ea, que, durante muito tempo, pensava ter sido um famoso danarino, e desegundo Calas, sujeito que, pelo paleio do pai Manel, ter-se-ia destacado exemplarmen-
te em prticas ratoneiras (no mnimo) e nada mais. Num dos Veres, a profecia na sua
verso positiva no veio acompanhada de valsa, que o pai tinha pisado um prego e esbu-
racado o p direito. De resto, tudo na mesma, anos a fio, sem frequncia decifrvel, at
morte do pai Manel, que partiria em pacatez, durante o sono naquele sof mau.
Roando os dezasseis de idade, Jos Maria era agora Fialho. O Fialho, para ser mais
exacto. Com artigo definido, nunca sem; ou, se para ele falavam, era Fialho, sempre
com interjeio, nunca sem. Deixara de ser Jos Maria, para ser Fialho, aquando da mortedo pai, o Fialho original. Era tradio, ali, e, pelo menos, nos arrabaldes at onde toda
aquela gente j tinha ido. Entretanto ciente da base biogrfica de Ea e Calas, Fialho
correra todos os ofcios da zona, especialmente biscateiro geral e guarda-cancela, desta-
cando-se sempre pela inaptido e indiferena, que, invariavelmente, l iam dar a um
Fialho, no vai dar mais, gostava muito do teu pai e de te ajudar, mas a cancela tem de ser
levantada e baixada com apuro, seno ainda acontece alguma desgraa ou equivalente.
Ao Fialho que lhe importava isso, na verdade. Sabia que seria Ea ou Calas, por muito
que a me, Maria Jlia, sempre ciciosa, lhe pedisse para tirar da a ideia, tanto num caso,
como no outro. Sem grande xito, l o conseguiu convencer a tentar o Ea primeiro. Foio mximo.
Coimbra era longe, por isso amancebou-se com uma viva com casa perto, bem
mais feia do que uma outra, que tinha casa longe, mas com menos catraios para filhar, o
que, tudo somado, acabaria por compensar. O objectivo era inscrever-se na faculdade e
cursar Direito, como Ea muito antes, mas Fialho amantizara-se logo em Julho, no fosse
a vaga da viva ir ao ar, como era costume nestas coisas. Tivera, por isso, de esperar, j
amancebado e em Coimbra, pelo reincio dos servios acadmicos. Aproveitou esse dois
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mesitos para deixar crescer um bigode. Chegada a hora, l foi, na alvorada do primeiro
de Setembro, com um projecto de bigode, o possvel nuns cinquenta e tal dias de inves-
timento. Herdara do pai a revolta dos plos, que tambm lhe cresciam todos batatada,
cada um por si. Tentou pente-los, mas, tamanha a insurreio, tinha de faz-lo com
vigor e acabou por deixar estar, que j lhe doa o filtro do lbio e, sem notar, at tinhafeito um pequeno rasgo logo abaixo. Na secretaria, o bvio doeu, mesmo para um tipo
que tentava ainda estancar uma pequena hemorragia com cirrgicas passagens salivan-
tes. No tinha sequer o liceu feito, como que esperava entrar em direito, ouviu ele,
em tom de ralhete, da boca duma mulher estrbica. Nunca tinha visto nenhuma, o que
explica o facto de, pasmado, s terceira Fialho ter escutado realmente o que lhe dizia
aquela mulher, l com o timbre de ralhete dela, que, s tantas, at tinha para tudo, podia
no haver nada de pessoal naquilo. Veio embora, muito danado. Nunca tivera nada
contra estrbicos, e conhecia bem uma boa meia-dzia, mais uns quantos de vista, mas
agora no gostava nada deles.Nesse dia, desalentado, nem almoou. Quando, mais tarde, o estmago reclamou
entretm, atirou-se a um lanche ajantarado, com sandes em que a proporo de fatias de
fiambre para fatias de queijo rondava as seis para uma. Tinha de ser, o homem do talho
mais prximo cortava-as muito finas. A meio do segundo po, e seriam trs, j Fialho
decidira o passo seguinte. No d para ser artista, pois que seja bandido, conclua, teatra-
lizando tudo aquilo com uma afirmativa punhada na mesa. E comearia logo ali. A viva
sara para comprar fiambre, que se acabara. Fialho contemplou tudo o que estivesse en-
gavetado. Havia jias, ou, no mnimo, coisas que reluziam, mas, como ia fugir de vez,deixando viva e respectiva prole, o remorso no tardou. Levaria apenas um guarda-p
encardido, pronto. Era do defunto e a viva, embora odiasse a pea, que s lhe lembrava
como o marido trabalhava demais, no conseguira deit-la fora. Uma tia muito beata
tinha-lhe dito que, ai, era um grande pecado, no podia ser, Deus nos livre. Assim, e sem
deixar de dar o seu primeiro passo enquanto Calas, l lhe parecia estar a compensar de
algum modo a senhora.
J estava, agora que se lixasse. Antes de deixar a cidade, ainda foi aos correios,
mandar uma carta a Manuel Joaquim, rapaz dos seus contactos que abarregara a outra
viva, a tal bem talhada, sem dvida, mas de morada longe e mais canalha. Sabia queManuel Joaquim considerava, acima de tudo, a beleza feminina, mas os doze quilmetros
a p que fazia diariamente h uns meses, e dos quentes, alteraram-lhe as prioridades. O
prprio lhe confessara. Alegr-lo-ia, certamente, essa novidade de que a viva raoada
na graa, mas com casa a um quarto de hora da Praa da Repblica, estaria disponvel e,
em princpio, vulnervel.
Procurava estabelecer-se longe, da que tenha apanhado a carreira que o levasse mais
alm pelo dinheiro que tinha em moedas (guardou duas notas). De caminho, tomou
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conhecimento de que teriam sido afinal crimes de sangue a enrolar a corda volta do
pescoo do Calas. Foi um homem de Chaves que lhe contou, que o Fialho, assim que
soube de flaviense em assento prximo, logo o inquiriu sobre o malnascido conterr-
neo. E agora, como era? Nunca matara nada. Envergonhado, e depois ablico, vestiu o
guarda-p e sentou-se noutro lugar.Saiu dezasseis paragens mais adiante, j recomposto, e a apenas nove da que teria
direito pela mancheia de moedas. Alugou um espao numa mansarda duma velha, que,
em vez de renda, pedia apenas que lhe lesse as bulas dos medicamentos. Parecia bom
negcio, pois parecia, mas o raio da velha tinha centenas de medicamentos e alguns
tinham duas bulas, uma em castelhano ou (mais raro) francs. Queria sempre que lhe
lesse as duas, no fosse haver coisas que no eram contadas aos espanhis, apenas aos
franceses, e vice-versa. Ao segundo dia, tarde, j se tinha arrependido. Imaginava-se
capaz de matar, agora sim. Se tivesse de ser, bem entendido. Nem um ms passado, j o
condicional tinha ido para o maneta. Fialho estava pronto, era o que era. Como, nessemeio-tempo, at ficara curto de dinheiros, decidiu publicitar, nos dois cafs e sempre
sotto voce, os seus servios de assassino a soldo. Era aproximar o til do agradvel, na
medida do possvel.
Nos primeiros tempos, no houve encomendas e Fialho viu-se obrigado a juntar
uns trocos lendo bulas para outras velhas, amigas da velha que lhe alugava o quarto. A
palavra espalhara-se. Era um clube de leitura de bulas, at ver, oficioso: quartas e sextas,
sempre depois de almoo. Certa vez, uma das velhas levou a filha, tambm ela velha.
Estavam naquelas idades em que j parecem irms, l pelos noventas e poucos e setentase tais, respectivamente. No fim, pediu para conversar em privado. Devia querer leituras
particulares, pensou Fialho, j lhe tinham pedido antes. No era. A velha, filha da outra
velha, queria que Fialho mandasse algum fazer tijolo, lhe vestisse um sobretudo de
madeira, lhe limpasse o sebo. S ao terceiro disfemismo percebeu que carago queria
a velha, palavra de honra. O primeiro, porque no conhecia a expresso. O segundo,
porque, entre tanta bula lida, j lhe passara um tudo-nada a perspectiva de ser um Calas
assalariado e de encomenda. Alm do mais, o pedido estaria sempre descontextualizado,
entre velhas e bulas desenroladas. O terceiro, esse do sebo, usava-se muito. Tambm
havia com sarampo.Esperaram que todas sassem, entre passos arrastados e bulas enrodilhadas para
caberem nas bolsas. Tratava-se de empreitada que, nem de propsito, preenchia por
completo as duas regras que Fialho se lembrara de impor enquanto a velha ainda falava:
ser longe e gente de m rs. Claro que, para o segundo critrio, Fialho teria de confiar
nos antecedentes que lhe eram relatados pelo contratante. Neste caso, a velha, filha da
outra velha. Parecia-lhe confivel, sinceramente, e Fialho ia l com fezadas. O alvo seria
um homem que, disse-lhe, teria difamado o pai dela, que morrera de desgosto, nem trs
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semanas depois. Era homem honrado e sensvel a esse ponto, mrtir indefeso do conluio
de trs patifes da pior espcie, acrescentou. De dois, no sabia nada, do outro, sim. Fialho
chamou para a conversa umas quantas dvidas de pacotilha, para dar ar de j ter feito
aquilo antes, e, sem especial demora, aceitou. Recebeu direces e tudo o mais, fez a mala
e ps-se a andar, que era Sexta e s teria de voltar na Quarta que vinha, para as leituras.Mal comprou bilhete, arrependeu-se de no ter pensado em incluir as despesas de
viagem na factura total. Quinze por cento, como tinha visto num filme, o mesmo de
onde tirara a regra dos cinquenta adiantados. Tirou um papel amarrotado que morava no
bolso h pelo menos duas semanas. A algibeira era apertada, mas, sempre que procurava
moedas, o fura-bolo e o pai-de-todos da mo direita de Fialho l se cruzavam com aquele
papel. No o tirara ainda porque ia sempre ao bolso procura de outras coisas. Desem-
brulhou-o e escreveu nas costas. Uns bons quilmetros depois, e mais ou menos o mesmo
nmero de rabiscos, decide cobrar apenas dez por cento extra para despesas de desloca-
o. A conta era bem mais fcil de fazer. Era tirar o ltimo zero, e o preo dele terminavasempre com um, e a estava o valor para as despesas. Depois, juntava-se esse valor ao total
e, pronto, j estava. No haveria c fiao. Amarrotou novamente o papel, guardando-o
no bolso do guarda-p, que entretanto vestira. O ar condicionado estava ligado.
Na paragem maior, a da merenda, veio rua. No o tinha feito nas mais curtas, as
que no deram tempo para merendas, e arrependera-se em quase todas. Deixou estar o
guarda-p, malgrado, e cito, o calor de assar rolas que ali estava. No ouvia a expresso
desde pequeno, sempre pela boca do pai Manel, referindo-se terra duns tios que acabou
por nunca conhecer. No percebia, ento, se isso significaria muito calor, pouco calor ouum calor qualquer especfico, no na sua intensidade, mas tipologia. L sabia ele, uma
criana, que raio de calor assa ou deixa de assar rolas. Esquecera a expresso, redundan-
te na memria, mas, assim que a ouviu, sentiu finalmente a que calor se referia o pai.
Sorriu, porque estaria a fazer as coisas bem. Era um sinal. S que um demasiado abafante
e l voltou para a carreira, esperando abraar o ar condicionado que tanto maldissera.
chegada, num misto de dormncias, cibras, pingo e afrontamentos, esse
revigorante sinal, do calor e das rolas, parecia j um fruto da sua imaginao. A exigncia
de que os trabalhos fossem em zonas afastadas logo lhe parecera lgica, essencialmente
pela questo prtica de no se querer cruzar com os anncios da morte ou do funeral.Ou at familiares pequenos do falecido. Ia fazer-lhe confuso, isso, sem dvida. Mas
no contava que as viagens de autocarro tendessem tanto para a contemplao. Raios
as quilhassem, pensou, se algum dia, em algum lugar, algum conseguiu matar depois
dumas horas de reflexo diante de uma paisagem, a setenta e cinco quilmetros horrios.
Ainda tentou engonhar, distrair-se da introspeco, e definiu a personaa adoptar (nada
de mais, coxearia e mudaria um pouco o cabelo, ainda no decidira como), mas acabava
por empanar constantemente no mtodo. Pensara em corda, que tinha, mas no consigo,
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lmina, que tinha, mas quase cega, marreta, que no tinha, mas sabia onde arranjar, e
pistola, que no tinha, nem sabia onde arranjar, e, de todos, inclinou-se para o veneno.
Era o melhor, era. No obrigava a estar l, seria um alvio. O problema que, num pice,
l vinha a janela do autocarro, o raio da paisagem e aquele compasso, de brao dado com
a contemplao. No demorou a ver-se novamente diante da mulher estrbica da Uni-versidade, que agora o questionava, inda em ralhete, como raio estaria espera de fazer
vida disto, se nunca antes tirara a vida a nada, nem um peixe, quanto mais um mamfero.
Fialho bem lutou, chegou at a mudar para a coxia, mas nada feito. No seria capaz.
Fosse como fosse, no queria velhaquear ningum, nem voltar as tripas do avesso.
No mnimo, teria de dar um aperto no velho. Revolveu o cabelo e, no fosse o diabo
tec-las, coxeou at uma taberna que, prxima duma praa, lhe parecera central. L
dentro, mais do que a poalha e os vultos pendidos sobre mesas em ngulos de trinta e
quarenta e cinco graus, destacava-se a fresquido do stio. Aproveitando aquele arejo
abenoado, descolou freneticamente a camisa que o suor colara ao tronco, e, qui en-candeado por toda aquela inesperada frescura, testou novamente o seu destino. Pediu
um copo de vinho de enforcado. Sem esboar qualquer reaco, o taberneiro virou costas
e arrastou os ps at uma pipa perdida na penumbra. Fialho estava agora tolhido pela
tenso. Depois do calor das rolas, havia vinho do enforcado? Nunca tal imaginou, no
devia ter brincado com o fogo. Eram j dois sinais demasiado fortes, o seu destino estava
traado na pedra, no havia como ladear o maldito. Em desespero, passou as mos pelo
cabelo, para logo o voltar a desarrumar. Afinal, faria parte do seu disfarce e, por muito
que Fialho tivesse visto a coragem minada pela contemplao, a profecia do pai Manelvociferava novamente por concretizao. Baixou a cabea e, torrente de vinho no copo,
seguiu-se a harmonia tosca dos ps rojados do taberneiro. Este, em coincidncia com o
copo batido no balco, deu-lhe a conhecer uma aparente poltica da casa: s h tinto.
Completou a interveno com um nada de clarete e uma ofensa imediata, e nada velada,
a apreciadores do dito, esses rabolhos.
Na estao dos autocarros, Fialho era das poucas figuras que, ao suor, juntava sere-
nidade, exsudando-os em doses idnticas. Fora agraciado com duas boas-novas. O im-
prudente desafio ao fado acabara por correr bem, ao passo que o beberique custoso do
tinto (preferia clarete, olha que coisa) dera-lhe tempo para descobrir, em conversa debalco, que o velho, o objectivo da sua viagem, esse mesmo, morrera h mais de vinte
anos. Assim, nem seria preciso mentir velha que o quis como homem de mo. Bastava
um seco est morto, nada mais. At lhe agradava a ideia de ser profissional de poucas
palavras, como o John Wayne. No era, contudo, nenhum parasita, estando ento fora
de questo ficar com a metade que j recebera. Abdicaria facilmente da outra, aludindo
a uma qualquer facilidade inesperada, mas uma devoluo acarreta sempre desconfian-
a. A melhor soluo talvez passasse por devolver o dinheiro velha sem ela dar conta.
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Tambm no era nada de mais, valha a verdade. Se Fialho no tinha grande perfil para
ser Calas, justo lembrar que, por aqueles dinheiros, dificilmente o arranjaria.
Sem ser especfico ao ponto de lhe dizer que o autor material respondia pelo nome de
Pneumonia, e no Fialho, o facto foi comunicado velha, que mui agradeceu, benzeu-se
quatro vezes e prometeu trazer em breve o envelope com os outros cinquenta. Puxouda sua desculpa, tinha sido mais fcil do que estava espera, e, nesse caso, ficava assim,
a srio. Hesitante a princpio, a velha anuiu, benzeu-se novamente, agora apenas duas
vezes, e saiu. Fialho respirou fundo. Durou pouco, porm, esse nimo. Era-lhe com-
plicado renegar as profecias do pai Manel, desapont-lo, e sua memria, de todo em
todo. Voltou leitura de bulas. Tinha sido ali, a l-las, que vira crescer em si algo que, se
fosse muito, talvez desse para ser um sega-vidas sem hesitaes de maior. Podia ser que
isso voltasse ou crescesse nele, forte quanto bastasse para resistir a janelas de autocarros,
paisagens e afins. Na pior das hipteses, enfim, juntaria algum dinheiro e talvez pudesse
matricular-se no Liceu. Deixaria assim em aberto ambas as alternativas.S que passaram dois anos, depois trs e, eventualmente, at quatro, sem que no
instinto assassino de Fialho se registassem grandes alteraes. Estaria, inclusive, ainda
menos activo. Naquela abrasadora semana de Vero de So Martinho, era j a quinta
vez que expulsara aranhios do seu quarto, recorrendo ao pacfico procedimento de os
deixar subir para um jornal dobrado e, transportando-os at janela, sopr-los de volta
para o relento. Por vezes, chegava a murmurar um pedido de desculpas. Amolecera,
estava bom de ver. Se fosse ao incio, mesmo ao incio, quando o fastio de ler bulas a
velhas atacava forte, usaria o mesmssimo jornal, s que enrolado, e como basto, aoinvs de transporte.
As velhotas, por sua vez, no deixavam de ir morrendo. Os clubes de leitura de Fialho
estavam cada vez menos concorridos. s sextas, s muito raramente aparecia algum. A
prpria senhoria j tinha ido de vez e os filhos queriam-no de l para fora, que aquilo era
tudo para vender. Preparava-se Fialho para voltar terra, para casa da me Maria Jlia,
fracassado, quer na misso Ea, quer na Calas, quando, pela janela, topou a velha que lhe
encomendara clebre servio. Vinha, curiosamente, sua procura, contar a novidade.
Abrira uma farmcia em cidade vizinha e, como o negcio das bulas at estava frouxo
por ali, pensou que talvez interessasse essa imigrao. Claro, que remdio, nem precisoude ouvir que haveria com certeza muita gente carente de quem lhe lesse aqueles folhetos.
Saiu s primeiras horas da madrugada, agora a p, que gastara praticamente tudo
num casaco para si, h dois meses, e num frigorfico para a me, h ano e meio. A geada,
ameaando deixar marca na roupa nova, obrigou Fialho a socorrer-se do fiel guarda-p,
vestindo-o por cima. Uma vez l, logo se abeirou da farmcia, para publicitar, junto
de quem l estivesse, os servios que pretendia disponibilizar por ali. Podia parecer
estranho, mas havia mesmo um pequeno mercado por explorar, esse que aproveitava
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a especfica conjugao de hipocondria com cataratas. E a melhor forma de o publicitar
ainda era, como em tudo, de boca em boca. A claridade j estava bem longe de ser de
alvor e a farmcia parecia completamente por abrir. Fialho inspeccionou as brechas e,
quando preparava um tosco binculo com as mos ao qual encostaria em breve a cara, a
porta abriu. Um homem, com ar burgus, recebeu-o com um Aleluia, porra!, saudan-do-o bruscamente, antes de rematar com um bem, ao menos veio logo vestido. Tirada
que, por alguma razo, remataria com uma gargalhada. Puxou-o para dentro, no tanto
pelas aces, mas com aquele temperamento despachado, passou-lhe uma chave para a
mo e saiu apressadamente, retrincando qualquer coisa sobre comboios, Lisboa e chegar
a tempo de almoar.
Nas primeiras horas, ali ficou, espera que o verdadeiro dono daquele posto entrasse
por a, desmanchando-se em justificaes para o atraso, e se esclarecesse o equvoco.
No mais chegou. Podia ter acontecido alguma coisa grave. Podia ter-se arrependido,
simplesmente. Com o tempo, Fialho deixou de se questionar sobre isso. Sem dar porela, j l iam quinze dias e, por essa altura, seria estranho assumir o engano a quem quer
que fosse. Alm do mais, ambientara-se na perfeio, que tanta bula lida, e muitas delas
por baixo, sedimentaram nele conhecimento e confiana capazes de enfrentar olhos nos
olhos qualquer comprimido, ampola, pomada ou xarope.
O proprietrio do negcio regressava a cada trinta dias, para despejar a registadora
numa maleta e deixar o ordenado de Fialho, que fazia questo de colocar sempre num
envelope onde, tudo em maisculas, se lia um garrafal Dr. Carlos. Mandou vir a me,
como soa fazer-se assim que salrio e casa o consentissem, e, cum raio, era, finalmen-te, um Jos Maria com epteto assinalvel. Excepto uma vez por ms, em que, durante
uns minutos, dava pelo nome Carlos, era ento o Dr. Z Maria Fialho, o farmacutico
que tentava escrever romances nos tempos mortos do servio e a quem, muito de
quando em quando, ainda encomendavam uma ou outra matana, que, sempre ama-
velmente, rejeitava.
Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN
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