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O Fim Da Dívida - Nuno Costa Santos

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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão |  João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa

Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho

Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado

 JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl |  João Barreiros | Raquel Ochoa |  João Bonifácio 

David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira

Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo  | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN 

A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo

 Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: Nuno Costa Santos

Título: O Fim Da Dívida

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto

Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso

ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2013 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-30-3

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consenti-

mento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição

o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo

com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor

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Nuno Costa Santos

Escritor e argumentista. Publicou livros como Melancómico (2011), Trabalhos e

Paixões de Fernando Assis Pacheco (2012) e Às Vezes é um Insecto que Faz Disparar o

Alarme  (2012). Autor de peças como Condomínio da Rua  (em cena no Teatro NacionalD. Maria II), É Preciso Ir Ver – Uma Viagem com Jacques Brel , Problemas de Agenda  e

Trabalhador Independente (projeto Urgências) e coautor de Stand-Up Tragedy .

Autor do documentário Saudade Burra de Fernando Assis Pacheco, do filme Noite

de Festa  e elemento das equipas de programas como Zapping, O Trabalho e Os

Contemporâneos. Dá aulas de escrita criativa e literária e colabora com a Ler , a Sábado,

o canal Q e a Vodafone FM.

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O Fim da Dívida— • —

Nuno Costa Santos 

 João tinha tudo a crédito: a relação com os bancos, os amigos, a vida amorosa, a rela-

ção com Deus (se existir), com o Diabo (existe, com certeza), consigo próprio (dúvidas).

A mulher aborrecia-o, declamando que era isso que o subjugava à obrigação de apenas

sobreviver. Habitavam um 1º esquerdo, acima d’As Suas Possibilidades, o café de um

prédio apodrecido, e todos os dias passavam ao lado de Uma Grande Carreira, nome da

agência de empregos do bairro, motivo pelo qual haviam sido estrelas de uma reporta-

gem satírica, emitida no final do noticiário das oito.

Homem escuro como uma moeda gasta e suspenso como a situação económica de um

certo lado do planeta, começou a cansar-se de ser escravo de prestações, humores bancários,

cobranças pessoais, ressentimentos com juros. No café onde se cumpria um certo país

desconfiado de si, comentou consigo durante uns minutos que era altura de organizar a

papelada das decisões para por enfim oferecer à vida um sentido que nunca teve.

Resolveu por fim falar.

– É este ano.

O amigo Carlos olhou para ele de esguelha como quem, na auto-estrada, olha ocondutor que tem a desfaçatez de fazer uma ultrapassagem pela direita.

– É este ano o quê?

– É este ano que vou acabar com isso.

– Acabar com quê? Desembucha.

– É este ano!

 João não teve coragem. Ou seguiu o conselho da locutora de uma rubrica de rádio de

evitar o verbo dito antes do verbo feito. Resolveu ir para casa – contar a decisão no café

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do costume nada ajudaria à causa. Quando chegou tinha no telemóvel uma mensagem

do amigo: “Diz lá”. João não disse. Nem à mulher. Ela não ia acreditar nessa boa vontade.

Ainda para mais no pior ano dos anos.

Antes das nove da manhã, já lá estava João com o rabo encostado à porta do banco.

Foi saber como é que podia tratar da modalidade financeira do assunto – seis mil e

trezentos e vinte euros, para ser sincero. O funcionário estava na mesma situação que

ele. Por isso a conversa tingiu-se de empatia.

– Também eu.

– Também você?

– Todos os dias largo dez euros. Vou deixando o ordenado aqui no banco.

– Deve ser desagradável.

Bastante. Percebeu pela expressão do funcionário. Mas era um desconforto que

terminava bem – o homem acabou a rir como uma criança no final das aulas. Um

caminho pedregoso que acabava em erva fofa.– Também quero sentir essa leveza – rematou João, falando consigo.

À saída do banco deu em arrumar as viaturas de quem ali vinha fazer depósitos

a prazo ou pagar o que em tempos lhe prometera um panfleto vendilhão. Ao fim de

três horas conseguiu acumular quatro euros e trinta e sete cêntimos. Uma fortuna que

entregou de modo compulsivo ao funcionário. O homem pegou na morna porção e,

simulando colocá-la na caixa com uma técnica de anos, colocou-a no bolso. Assim

mesmo. E rematou com um sinal de mãos e polegar significando (semioticamente, claro)

“fixe, é mesmo isso”.

O problema do crédito bancário, aquele que pedira em tempo de vacas meio gordas

para pagar um carro em segunda mão e umas férias numa pensão três estrelas de uma

aldeia do sul de Espanha, começava a ser resolvido. Na sua consciência, em primeiro

lugar, o mais relevante dos territórios. O resto viria depois. Muitos outros improvisados

trabalhos teria ainda de praticar para conseguir ir abatendo o que lhe crescia em juros.

Levar a dona Gina a Sangalhos, passear o cão do Fernando, esfregar as escadas ao Matos.

No café, depois das primeiras conquistas, já ganhara confiança para fazer uma

palestra de auto-ajuda.

– Estou a conseguir pagar a dívida!Gesto errado. A partir desse momento Carlos não lhe perdoava se não pagasse uma

 vez por semana a rodada aos deprimidos todos. Por uma questão de solidariedade social.

– Andamos muito em baixo. Precisamos de alegria.

Se eles precisavam de alegria, era dar-lhes alegria. Na sua consciência – sim, o

mais sagrado dos lugares – tinha um crédito para pagar aos amigos. Eles haviam-no

amparado em tantos instantes de alcoólica penúria, eles ofereceram-lhe dezenas, quem

sabe centenas, de minis quando ele não tinha tesouraria nem para meio copo de água.

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O crédito em minis leva uma vida a pagar. Porque ali, naquele bairro, continuava a ser

entre dois goles que se resolvia a amizade.

A resolução contabilística da dívida voltou a ser adiada e João teve de protelar por

uma temporada o regresso aos mercados. Apesar do esforço, em casa a mulher quase não

lhe falava, recordando-lhe a cada esgar que, além do guito, havia mais créditos a resolver.

Era preciso começar a ser melhor marido, melhor pai (sim, era pai de um crianço do sexo

feminino, Isabel, importante lembrar esse dado a partir desta altura da história), melhor

genro, melhor a lavar os dentes. O hálito também lhe impunha as suas dívidas.

Começou a trabalhar nesses guichets , sabendo que eram tarefas com pouco reconhe-

cimento. Era preciso separar os lixos e levá-los à rua – lá ia ele. Era preciso fazer o jantar à

família – chegava-se à frente, fazendo questão de estar na cozinha uma hora mais cedo do

que Irene. Era preciso contar uma história à filha, lá estava ele com o livro da biblioteca

do município na mão, sempre fechado, com o justificativo de que as suas histórias valiam

por todas as estantes. Era preciso mandar um SMS à sogra, perguntando-lhe pelas cruzese pelo canídeo, lá teclava ele, terminando as mensagens com um sorriso. Era preciso

lavar os dentes umas 30 vezes, como mandava a senhora dona dentista, lá lavava ele. 29

seria faltar à palavra.

Uma manhã, em chegando ao café e em espreitando a manchete do jornal, ficou a

saber que o banco ao qual estava a pagar as dívidas havia entrado em generosa falência

– e transforma-se, após ser recusado por todas as empresas e por todos os Estados, em

propriedade dos clientes. João, que começara o ano como propriedade, era agora dono

de um banco. Ele e o funcionário que lhe fanava as contribuições. Encontraram-se, mais

uns tantos, para falarem desse negócio.

– Eu não quero ser dono de um morto.

– Nem eu.

– Eu muito menos.

– Como é que a gente faz?

– Chama uma televisão e livra-se do assunto.

– O face  é mais eficaz.

– Ok, faz-se um grupo.

– Não. Uma petição.A relação com Deus resolvia-se não dando tanto crédito ao Diabo. Não era homem

de ir à missa mas mantinha vivos estes conceitos, repassados por uma mãe nada e crescida

numa aldeia minhota. Ainda floresciam na floresta murcha do seu coração, numa altura

em que no bairro se ia perdendo a espiritualidade, palavra aliás vulgarizada nas revistas

sobre felicidade fácil. Esses eram problemas de um foro mais próprio – e que tinham a

 ver com as traições à mulher com as rapariguinhas do shopping  que não vêm em letras

de músicas, com os infinitos egoísmos tão infinitamente seus, com a falta de atenção ao

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outro, fosse ele um agente da autoridade, um delinquente ou um ministro.

Começou a tentar o milagre da melhoria de uma vez só. Quis acordar anjo e o anjo

não lhe ocorreu. Erro de principiante que o atirou para o consultório de psicologia clínica

do centro de saúde.

– Então o senhor quer ser uma boa pessoa neste ano novo – era uma noviça que o

atendia, nervosa, às vezes dura, quase cruel, na forma como fazia a observação.

– Isso.

– E não está a conseguir?

– Não. Era uma má pessoa e agora sou uma pessoa angustiada.

Talvez não fosse esse o melhor caminho. O carreiro passava pelo mui galináceo grão

a grão. Deixar de trair aqui, ajudar alguém acolá, evitar filhasdaputice, das certificadas,

noutra parte qualquer, ir perdoando aqueles que o ofendiam, pedindo desculpa a quem

tratara mal. E eram tantos, estes últimos, que o dossier   arriscava transformar-se num

ofício para diversas encarnações.Desde miúdo que vinha acumulando culpas, chutando-as para longe como fazia com

as bolas nos jogos de futebol em que não alinhava como titular. Nunca pensara que as

maldades que fazia – ele e mais dois – no Colégio Flávia Henriques estavam próximo

daquilo que mais tarde a sociedade e os seus órgãos de comunicação passaram a conside-

rar, como é que se diz, “bullying”. Mas estavam.

A vontade de se tornar santo só o empurraria para essa indecência maior que é a

melancolia. E para fazer face a esse pecado capital – pelo menos, segundo se diz, para a

igreja católica, até ao século XVII – a doutora ainda lhe recomendou umas orientalíssi-

mas sessões de ioga e de meditação, ministradas por uma prima direita com pós-gradua-

ção tirada na aldeia de Vishani. Tentou ir às duas, só que ficou com um entorse na zona

lombar logo na estreia e na segunda perdia-se em dores na bacia por ter de congelar na

posição de lótus, pouco respeitada, diga-se, no latino café.

Recebeu, num momento de relaxe da ossatura, o telefonema de um número desco-

nhecido.

– Está lá?

– Sou eu, do banco.

Do banco? Mas qual banco? Ah, daquele.– Era para te dizer que fizemos aqui umas contas e eu era o cliente com uma conta

maior.

– O que é que isso quer dizer?

– Que agora tens de fazer uma transferência para mim.

Silêncio. Concentra-te. Não te passes do cabelo.

– Eu sou o dono do banco!

– Mas não ia haver aquilo da petição?

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– Fiz uma: consegui mil assinaturas. Para ficar como presidente do conselho de ad-

ministração.

Focado na rima, João suspirou toda a cevada que tinha para suspirar. Fez o esforço

de não vilipendiar o sujeito. E conseguiu desligar a chamada com um sorriso, arrisque-

mos, compassivo.

Rodeado de uma nova família de garrafas e ouvindo ao longe o riso dos amigos,

ia percebendo cada vez melhor o lugar onde estacionara. Faltava, mais do que todos

os outros, resolver o problema do crédito consigo. Aquilo que pedia aos seus recursos

pessoais e depois não conseguiu pagar. Viver acima das possibilidades não era só habitar

acima de um café com esse nome. Era escalar o monte acima dos seus problemas de cons-

ciência, como dizia a psicóloga do bairro, numa linguagem de fazer inveja a um poeta

principiante. A sua matriz fazia-se de valores. Não era um relativista profissional, capaz

de se abandonar à tarefa de ir piorando como ser humano no falhado safari da existência.

Foi a matutar nesses termos que passou ao lado de Uma Grande Carreira, habitadono instante por uma mocidade portuguesa desempregada das televisões. Chegou a entrar

como quem espreitava um futuro finório, mas saiu, achando pela primeira vez que a

melhor carreira era aquela, pequena, que o conduzia aos aposentos. Mesmo que, após

aquele esforço todo de Sísifo de bairro, a mulher não lhe concedesse novo crédito.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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