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Fim de sonho 0 Homem que Arnava os Cachorros, do cuba no Leonardo Padura, recentemente no Brasil, distingue·se como grande romance por dois motivos pr in- cipais: (1) encarna o milagre da e (2) mostra como o sonho do seculo XX de uma so- ciedade justa e igualitaria, contido nas revolu- 96es comunistas, virou pesadelo. 0 livro trata do assassi nato de Leon Trotsky , no Mexico, pelo espanhol. Ramon Mercader, a mando d.e Stalin. Aqui o milagre da fic9ao, quan- do conduzida por mii.os habeis: acompanha-se com sofrega da primeira a ultima das 589 paginas do livro uma historia cujo des fe - cho ja se est a cans ado de con hecer. Mas o mila- gre seria pouco, se fosse s6 esse. 0 princi pal e fazer a I-tistoria, a hist6ria de verdade, ressur- gir de forma rnais viva, mais convincente, e mais "real" do que nos livros dos hi storiad ores. Isso e para OS ficcionistas de primeira linba. Para citar dois outros exemplos de autores vivos, nao M tratado que mostce melhor o estranha- mento entre ra9as na Af rica do Sui do que o romance Desonra, de J.M. Coetzee; e nao ha llist6ria da Il Guerra Mundlal que mostre a mi- senivel realidade da retirada de Dunquerque como o romance Repara9iio, de Ian Mcwen. de Toledo a uma rigorosa observancia dos fatos, em suas linhas gerai s, das datas e dos l ocai s, a mao do flccionista encarrega-se de imaginar diaJogos e de intuir sentimentos, bern como de vestir os personagens com roupas que muito bern pode - riam ter usado e faze-los heber os dri nques e fumar os cigarrosque poderiam mui to bem ter bebido e fumado. 0 result ado e que a hist6ria deixa de ser materia morta, deixa ate mesmo de ser passado, para acontecer de novo. E is o milagre em seu espl endor. Trotsky estava marcado para morrer des de o momenta em qu e personi ficou a a Sta- Lin na sucessao de Leni n, mas sua sera precedida, num ritual macabre, pela ani- quila9ao de seus seguidores e dos membros de sua famili a. Enquanto isso Mercader era prepa- rado com metodo que inclui a de falsas identidades eo assassinato de urn mendigo, para treina r-lhe as habilidades de assassino. Jsso e mais os julgamentos fabricados , as humilhant es confissoes, os expurgos e os massacres curnpri- rao duas funs:oes: na o deixadi.o resqulcio de ao todo- poderoso senhor do Kremlin e feririio de morte, par a sempre, as credenciais morais do regime dos sovietes. E ssa derrocada e dissecada passo a passo, no Uvro, com o talento de qu em, como todo bom escritor, tem horror ao panfleto e sa be que nada supera, em contunden- cia, a narra 9ao pura e si mples. Mas nii.o e s6 o comunismo em sua versiio sovietica que desmorona no livro. Eo sonho co- Padura e urn escritor que vive em Cuba, nao quer sair munista como urn todo. So- bra ate para Trotsky,. "com seu fanatismo obc ecado e seu comple xo de ser hist6ri- co", como diz urn persona- gem. E so bra para Cuba. Um dos estratagemas do autm; de Cuba, mas que se permite ser critico. Talvez seu caso antecipe tempos que estao por vir; ou talvez ilustre circunstancias que o regime nao tern mais para conter 126 I 28 DB MAIO, 2014 I veja Le onardo Padurae urn escritor que vive. em Cuba, ni:i o quer sair de Cuba, mas que se penni - te ser critico do regime e a quem o re gime per- mite que viaje ao exterior (recent emente esteve no Brasil). Talvez seu caso antecipe tempos qu e estao por v it '; ou ta lv ez ilus t re circunstan- cias que o regime nao t ern mais para can- ter . 0 Homem que Amava as Caclwrros recons- tr6 i em cap itulos alternados a trajetoria de Trotsky, desde que, e xpulso da Uniao Sovieti- ca, da inicio a sua de exilado, ate a parada final no Mexico, e a de Ramon Merca- der, desde que, muito jove m, integrado aos ba- talhoes comunistas, se engaja na Guerra Civil Espanhola. Ao mesmo tempo em que obedece na complexa constru9 ao do livro, foi inserir , em as 1J ist6rias paralelas de Trotsky e de Mercader, uma tercei ra hist6ri a, que se passa em Cuba en tre os anos 1 970 e o inicio dos anos 2000, na qual um escritor frustra- do , a partir do encontro com um misterioso per- sonagem, se esba te com a ideia de narrat· a perse- guicao eo assassi na to de Trot sky. 0 sonho cuba- no vai d.e permeio virando miseria, e isso, para maior cru eza e do re lato, de uma perspectiva ao res do chao, que nao con- templa senii.o o dia a dia de anonimos habitantes da il ha, e a vida como e la e. No tim do livre, quem Ia chegar vera, o sonho cubano Li teral- mente desaba, como desaba o telhado de uma cas a na de seus moradores.

O Fim do Sonho

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O Fim do Sonho

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  • Fim de sonho 0 Homem que Arnava os Cachorros, do cuba no Leonardo Padura, recentemente lan~ado no Brasil, distinguese como grande romance por dois motivos prin-cipais: (1) encarna o milagre da fic~ao e (2) mostra como o sonho do seculo XX de uma so-ciedade justa e igualitaria, contido nas revolu-96es comunistas, virou pesadelo. 0 livro trata do assassinato de Leon Trotsky, no Mexico, pelo espanhol. Ramon Mercader, a mando d.e Stalin. Aqui come~a o milagre da fic9ao, quan-do conduzida por mii.os habeis: acompanha-se com aten~ao sofrega da primeira a ultima das 589 paginas do livro uma historia cujo desfe-cho ja se est a cans ado de con hecer. Mas o mila-gre seria pouco, se fosse s6 esse. 0 principal e fazer a I-tistoria, a hist6ria de verdade, ressur-gir de forma rnais viva, mais convincente, e mais "real" do que nos livros dos historiadores. Isso e para OS ficcionistas de primeira linba. Para citar dois outros exemplos de autores vivos, nao M tratado que mostce melhor o estranha-mento entre ra9as na Africa do Sui do que o romance Desonra, de J.M. Coetzee; e nao ha llist6ria da Il Guerra Mundlal que mostre a mi-senivel realidade da retirada de Dunquerque como o romance Repara9iio, de Ian Mcwen.

    de Toledo

    a uma rigorosa observancia dos fatos, em suas linhas gerais, das datas e dos locais, a mao do flccionista encarrega-se de imaginar diaJogos e de intuir sentimentos, bern como de vestir os personagens com roupas que muito bern pode-riam ter usado e faze-los heber os drinques e fumar os cigarrosque poderiam muito bem ter bebido e fumado. 0 resultado e que a hist6ria deixa de ser materia morta, deixa ate mesmo de ser passado, para acontecer de novo. Eis o milagre em seu esplendor.

    Trotsky estava marcado para morrer des de o momenta em que personificou a oposi~ao a Sta-Lin na sucessao de Lenin, mas sua aniquila~1o sera precedida, num ritual macabre, pela ani-quila9ao de seus seguidores e dos membros de sua familia. Enquanto isso Mercader era prepa-rado com metodo que inclui a ado~ao de falsas identidades eo assassinato de urn mendigo, para treinar-lhe as habilidades de assassino. Jsso e mais os julgamentos fabricados, as humilhantes confissoes, os expurgos e os massacres curnpri-rao duas funs:oes: nao deixadi.o resqulcio de

    oposi~ao ao todo-poderoso senhor do Kremlin e feririio de morte, para sempre, as credenciais morais do regime dos sovietes. Essa derrocada e dissecada passo a passo, no Uvro, com o talento de quem, como todo bom escritor, tem horror ao panfleto e sa be que nada supera, em contunden-cia, a narra9ao pura e simples.

    Mas nii.o e s6 o comunismo em sua versiio sovietica que desmorona no livro. Eo sonho co-

    Padura e urn escritor que vive em Cuba, nao quer sair munista como urn todo. So-bra ate para Trotsky,. "com seu fanatismo obcecado e seu complexo de ser hist6ri-co", como diz urn persona-gem. E so bra para Cuba. Um dos estratagemas do autm;

    de Cuba, mas que se permite ser critico. Talvez seu caso antecipe tempos que estao por vir; ou talvez ilustre circunstancias que o regime nao tern mais for~a para conter

    126 I 28 DB MAIO, 2014 I veja

    Leonardo Padurae urn escritor que vive.em Cuba, ni:io quer sair de Cuba, mas que se penni-te ser critico do regime e a quem o regime per-mite que viaje ao exterior (recentemente esteve no Brasil). Talvez seu caso antecipe tempos que estao por vit'; ou talvez ilustre circunstan-cias que o regime nao tern mais for~a para can-ter. 0 Homem que Amava as Caclwrros recons-tr6i em capitulos alternados a trajetoria de Trotsky, desde que, expulso da Uniao Sovieti-ca, da inicio a sua peregrina~ao de exilado, ate a parada final no Mexico, e a de Ramon Merca-der, desde que, muito jovem, integrado aos ba-talhoes comunistas, se engaja na Guerra Civil Espanhola. Ao mesmo tempo em que obedece

    na complexa constru9ao do livro, foi inserir, em adi~iio as 1Jist6rias paralelas de Trotsky e de Mercader, uma terceira hist6ria, que se passa em Cuba entre os anos 1970 e o inicio dos anos 2000, na qual um escritor frustra-do, a partir do encontro com um misterioso per-sonagem, se esbate com a ideia de narrat a perse-guicao eo assassinato de Trotsky. 0 sonho cuba-no vai d.e permeio virando miseria, e isso, para maior crueza e verossimilhan~a do relato, de uma perspectiva ao res do chao, que nao con-templa senii.o o dia a dia de anonimos habitantes da ilha, e a vida como ela e. No tim do livre, quem Ia chegar vera, o sonho cubano Literal-mente desaba, como desaba o telhado de uma cas a na cabe~a de seus moradores.