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32 WALTER BENJAMIN 41. Charles Augustin Sainte-Beuve, De la litterature industrielle, in: Revue des deux mondes, 1839, pp. 682-3. 42. Emile de Girardin, Oeuvres completes. Lettres parisiennes 1836- 1840, Paris, 1860, pp. 289-90. 43. Gabriel Guillemot, Le boheme. Physionomies parisiennes, Paris, 1868, p. 72. 44. Alfred Nettement, Histoire de la litterature francaise sous le Gouvernement de fuillet, Paris, 1859, vol. I, pp. 301-2. 45. Cf. Ernest Lavisse, Histoire de France contemporaine: La monar- chie de juillet (1830-1848), Paris, 192i; p. 352. 46. Cf. Eugene Mirecourt, Fabrique de romans. Maison Alexandre Dumas et Compagnie, Paris, 1845. 47. Paulin Limayrac, Du roman actuel et de nos romanciers, in: Revue des deux mondes, tomo II, 1845, pp. 953-4. 48. Paul Saulnier, Du roman en general et du romancier moderne en particulier, in: Le boheme, abril 1855, n.° 5, p. 2. 49. Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, loc. cit., p. 68. 50. Alphonse de Lamartine, Oeuvres poetiques completes, Paris, 1963, p. 1.506. ("Lettre a Alphonse Karr".) 51. Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, loc. cit., pp. 122-3. 52. Id., ibid., p. 122. 53. Charles Augustin Sainte-Beuve, Vie, poesies et pensees de Joseph Delorme, Paris, 1863, pp. 159-60. 54. Charles Augustin Sainte-Beuve, Les Consolations, loc. cit., p. 118. 55. Cit. Francois Porche, La vie douloureuse de Charles Baudelaire, Paris, 1926, p. 248. 56. Cf. Francois Porche', loc. cit., p. 156. 57. Ernest Raynaud, Charles Baudelaire. Etude biographique, Paris, 1922, p. 319. 58. II, p. 385. 59. Cit. Eugene Crepet, Charles Baudelaire. Etude biographique, Paris, 1906, pp. 196-7. 60. I, p. 209. O Flaneur Uma vez na feira, o escritor olhava a sua volta como em urn panorama.1 Urn genero literario especifico faz suas primeiras tentativas de se orientar. fi uma literatura panoramica. O Livro dos Cento e Um, Os Franceses Pintados por si Mesmos, O Dia- bo em Paris, A Grande Cidade gozavam, simultaneamente com os panoramas, e nao por acaso, as gracas da capital. Esses livros consistem em esbocos que, por assim dizer, imitam, com seu estilo anedotico, o primeiro piano plastico e, com seu fundo informativo, o segundo piano largo e extenso dos panoramas. Numerosos autores forneceram contribuicoes para esses volumes. Desse modo, essas coletaneas sao sedimentos do mesmo trabalho beletristico coletivo para o qual Girardin inaugurara um espaco no folhetim. Os trajes de gala de uma escritura por natureza destinada a se vender nas ruas. Nesse genero ocupavam lugar privilegiado os fascicules de aparencia insignificante, e em for- mato de bolso, chamados de "fisiologias". Ocupavam-se da des- cricao dos tipos encontrados por quern visita a feira. Desde o

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41. Charles Augustin Sainte-Beuve, De la litterature industrielle, in:Revue des deux mondes, 1839, pp. 682-3.

42. Emile de Girardin, Oeuvres completes. Lettres parisiennes 1836-1840, Paris, 1860, pp. 289-90.

43. Gabriel Guillemot, Le boheme. Physionomies parisiennes, Paris,1868, p. 72.

44. Alfred Nettement, Histoire de la litterature francaise sous leGouvernement de fuillet, Paris, 1859, vol. I, pp. 301-2.

45. Cf. Ernest Lavisse, Histoire de France contemporaine: La monar-chie de juillet (1830-1848), Paris, 192i; p. 352.

46. Cf. Eugene Mirecourt, Fabrique de romans. Maison AlexandreDumas et Compagnie, Paris, 1845.

47. Paulin Limayrac, Du roman actuel et de nos romanciers, in: Revuedes deux mondes, tomo II, 1845, pp. 953-4.

48. Paul Saulnier, Du roman en general et du romancier moderne enparticulier, in: Le boheme, abril 1855, n.° 5, p. 2.

49. Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, loc. cit.,p. 68.

50. Alphonse de Lamartine, Oeuvres poetiques completes, Paris, 1963,p. 1.506. ("Lettre a Alphonse Karr".)

51. Karl Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, loc. cit.,pp. 122-3.

52. Id., ibid., p. 122.53. Charles Augustin Sainte-Beuve, Vie, poesies et pensees de Joseph

Delorme, Paris, 1863, pp. 159-60.54. Charles Augustin Sainte-Beuve, Les Consolations, loc. cit., p. 118.55. Cit. Francois Porche, La vie douloureuse de Charles Baudelaire,

Paris, 1926, p. 248.56. Cf. Francois Porche', loc. cit., p. 156.57. Ernest Raynaud, Charles Baudelaire. Etude biographique, Paris,

1922, p. 319.58. II, p. 385.59. Cit. Eugene Crepet, Charles Baudelaire. Etude biographique, Paris,

1906, pp. 196-7.60. I, p. 209.

O Flaneur

Uma vez na feira, o escritor olhava a sua volta como em urnpanorama.1 Urn genero literario especifico faz suas primeirastentativas de se orientar. fi uma literatura panoramica. O Livrodos Cento e Um, Os Franceses Pintados por si Mesmos, O Dia-bo em Paris, A Grande Cidade gozavam, simultaneamente comos panoramas, e nao por acaso, as gracas da capital. Esses livrosconsistem em esbocos que, por assim dizer, imitam, com seuestilo anedotico, o primeiro piano plastico e, com seu fundoinformativo, o segundo piano largo e extenso dos panoramas.Numerosos autores forneceram contribuicoes para esses volumes.Desse modo, essas coletaneas sao sedimentos do mesmo trabalhobeletristico coletivo para o qual Girardin inaugurara um espacono folhetim. Os trajes de gala de uma escritura por naturezadestinada a se vender nas ruas. Nesse genero ocupavam lugarprivilegiado os fascicules de aparencia insignificante, e em for-mato de bolso, chamados de "fisiologias". Ocupavam-se da des-cricao dos tipos encontrados por quern visita a feira. Desde o

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vendedor ambulante do bulevar ate o elegante no foyer daopera, nao havia nenhuma figura da vida parisiense'que o "fi-siologo" nao tivesse retratado. O momento aureo do generoacontece no inicio dos anos 40. E a escola superior do folhetim,pela qual passou a geragao de Baudelaire. Que tinha pouco aIhe dizer, mostra-o o ter ele, cedo ainda, seguido seu propriocaminho.

Em 1841 contavam-se 76 novas fisiologias.2 A partir desseano, o genero decaiu; com a monarquia burguesa, tambem eledesapareceu. Era um genero radicalmente pequeno-burgues.Monnier, o mestre do genero, era um filisteu dotado de capa-cidade incomum de auto-observacao. Em ponto algum, as fisio-logias romperam esse horizonte tao limitado. Depois de se te-rem dedicado aos tipos humanos, chega a vez de se consagra-rem a cidade. Apareceram Paris a Noite, Paris a Mesa, Parisna Agua, Paris a Cavalo, Paris Pitoresca, Paris Casada. Quandotambem esse filao se esgotou, os fisiologistas se arriscaram auma fisiologia dos povos. Tampouco foi esquecida a fisiologiados animais, desde sempre recomendada como assunto inofen-sivo. O que importava era a inofensividade. Em seu estudo so-bre a historia da caricatura, Eduard Fuchs salienta que no ini-cio das fisiologias se encontram as assim chamadas Leis de Se-tembro, as mais exacerbadas medidas de censura de 1836. Formeio delas, um grupo de artistas aptos e adestrados na satirafoi, de um so golpe, desviado da politica. Se dera bom resultadocom as artes graficas, a manobra do governo, com mais razao de-via ser bem-sucedida com a literature, pois nesta nao havia ne-nhuma energia politica comparavel a de um Daumier. A reagao e,portanto, a condigao que "explica a colossal passagem em revis-ta da vida burguesa que se estabeleceu na Franca. . . Tudo pas-sava em desfile. . . dias de festa e dias de luto, trabalho e lazer,costumes matrimoniais e habitos celibatarios, familia, casa, fi-Ihos, escola, sociedade, teatro, tipos, profissoes".3

A calma dessas descrigoes combina com o jeito do flaneur, afazer botanica no asfalto. Mas, ja naquela epoca, nao se podiaandar a passeio por todos os pontos da cidade. Calgadas largaserarn raridade antes de Haussmann;4 as estreitas ofereciam pou-ca protecao contra os veiculos. A fldnerie dificilmente poderiater-se desenvolvido em toda a plenitude sem as galerias. "As

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galerias, uma nova descoberta do luxo industrial — diz um guiailustrado de Paris de 1852 — sao caminhos cobertos de vidro erevestidos de marmore, atraves de blocos de casas, cujos pro-prietaries se uniram para tais especulacoes. De ambos os ladosdessas vias se estendem os mais elegantes estabelecimentos co-merciais, de modo que uma de tais passagens e como uma ci-dade, um mundo em miniatura."5 Nesse mundo o flaneur estaem casa; e gracas a ele "essa paragem predileta dos passeadorese dos fumantes, esse picadeiro de todas as pequenas ocupasoesimaginaveis encontra seu cronista e seu filosofo".6 E para simesmo obtem o remedio infalivel contra o tedio que facilmenteprospera sob o olhar de basilisco7 de um regime reacionario sa-turado. "Quern e capaz — diz uma frase de Guys, transmitidapor Baudelaire — de se entediar em meio a multidao humana eum imbecil. Um imbecil, repito, e desprezivel,"8 As galeriassao um meio-termo entre a rua e o interior da casa. Se quiser-mos mencionar uma artimanha propria das fisiologias, falare-mos de uma dos folhetins, ja comprovada: a de transformar osbulevares em interiores. A rua se torna moradia para o flaneurque, entre as fachadas dos predios, sente-se em casa tantoquanto o burgues entre suas quatro paredes. Para ele, os letrei-ros esmaltados e brilhantes das firmas sao um adorno de paredetao bom ou melhor que a pintura a oleo no salao do burgues;muros sao a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos;bancas de jornais sao suas bibliotecas, e os terrafos dos cafes,as sacadas de onde, apos o trabalho, observa o ambiente. Quea vida em toda a sua diversidade, em toda a sua inesgotavel ri-queza de varia9oes, so se desenvolva entre os paralelepidedoscinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo: eis opensamento politico secreto da escritura de que faziam parte asfisiologias.

Mesmo socialmente, essa escritura era suspeita. A longa se-quencia de caracterizacoes extravagantes ou simples, cativantesou austeras, apresentadas ao leitor pelas fisiologias, tern algoem comum: e inofensiva e de completa bonomia. Essa visao doproximo se distanciava tanto da experiencia que devia ter cau-sas incomumente serias. Provinha de uma inquietacao de ori-gem peculiar. As pessoas tinham de se acomodar a umacircunstancia nova e bastante estranha, caracteristica da cidade

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grande. Simmel fixou essa questao acertadamentei--l!Qu£m--vesem. ouvir fica_muitc> mais inquietoTSjue-quem ouve sem ver.Eis algojjaractenstico da sociolpgia dajcidade grand^. .As rela-9pes reciprocas dos^ seres humanos nas cidades se_.distinguempor uma nptoria preponderancia da atividade visual spbre aauditiva. Suas causas principais sao os meios pubficos de trans-porte. Antes do desenvolvimento dp"s~onibus, dos "trens, dosbondes no seculo XIX, as pessoas nao conheciam a situacao deterem de se olhar reciprocamente por minutos, ou mesmo porhpfas a fipj sem dirigir a palavra umas qs o5trasrr.9 ~K novacondi?ap, cpnforme reconhece Simmel, nao e nada acolhedora.|a_ Bulwer instrumentou sua^7Tescri£ao dos~r\abitafHes"da" cictatlegrande em Eugene Aram, referindo-se a oBserva9ao~"goeThtanade que tpdp ser humano, tanto o mais elevado quanta o maisinferior, leva consigo um segredo que se conhecido o tornariaodioso a todos os putrps.1(J. As fisiolpgias eram perfeitamenteadequadas para afastar como frivolas essas noc.6es inquietantes.Representavam, se e possivel dizer assim, os antolhos do "ani-mal urbano bitolado",11 de que Marx trata uma vez. Com quesolidez, se fosse o caso, limitavam-lhe a visao, e-nos mostradonuma descricao do proletariado em Fisiologia da Industria Fran-cesa, de Foucauld: "Para o trabalhador, o prazer de ficar quietoe esgotante. Mesmo que a casa em que habite sob um ceu semnuvens seja guarnecida de verdes, perfumada de flores e ani-mada pelo gorjeio de passaros, se ele esta ocioso, permaneceinacessivel aos encantos da solidao. Mas, se, por acaso, o somou o apito agudo de uma fabrica distante atinge o seu ouvido;se simplesmente ouve o estalido monotono dos trituradores deuma manufatura, logo sua fronte se ilumina. . . Ja nao sente operfume requintado das flores. A fumaca das altas chaminesda fabrica, os golpes retumbantes da bigorna o fazem vibrar dealegria. Lembra os dias felizes de trabalho guiado pelo geniodo inventor".12 O empresario que lesse essa descrigao talvezfosse descansar mais tranqiiilo do que habitualmente.

De fato, o mais indicado era dar as pessoas uma imagemamistosa das outras. Com isso, as fisiologias teciam, a seu mo-do, a fantasmagoria13 da vida parisiente. Seus procedimentos,porem, nao podiam levar muito longe. As pessoas se conheciamumas as outras como devedores e credores, como ven3edpres_e

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PARIS DO SEGUNDO IMPfiRIO 37.

fregueses, como jmtroes e empregados — sobretudo como con-correhtes. Despertar-lhes a ideia de que seus parceiros eram ti-pos inofensivos nao parecia a longo prazo auspicioso. Por issoformou-se cedo, nessa escritura, outra concep§ao do assunto quepodia atuar de modo muito mais tonico. Remonta aos fisiogno-monistas do seculo XVIII, mas, sem duvida, tern pouco a vercom os empenhos mais solidos de um Lavater ou de um Gall,14

nos quais, ao lado da especulagao e das extravagancias, estavaem jogo um empirismo autentico. As fisiologias alimentavam-sedesse credito sem nada acrescentar de seu. Asseguravam quequalquer um, mesmo aquele nao influenciado pelo conhecimen-to do assunto, seria capaz de adivinhar profissao, carater, ori-gem e modo de vida dos transeuntes. Nos fisiognomonistas essedom aparece como uma faculdade que as fadas colocam juntoao bergo de todo habitante da cidade grande. Mais do que todosos outros, Balzac se achava em seu elemento com tais certezas.Sua preferencia por afirmagoes irrestritas combina com elas. "Ogenio — escreve, por exemplo — e tao visivel no homem quemesmo a pessoa mais inculta, ao passear por Paris, se cruzarcom um grande artista logo sabera de quern se trata".15 Delvau,amigo de Baudelaire e o mais interessante dos pequenos metres do fplhetim, pretendeu distinguir o .publico de Paris emsuas diversas camadas com tanto desembaraco quanta o geologoas camadas de rocha. Se tal coisa pudesse ser feita, entao a vidana cidade grande nao seria nem de. Jonge tlo inquietante^compprovavelmente parecia a cada um. Haveria apenas retorica quan-db Baudelaire perguntava: "O que sap ps perigos da floresta eda pradaria comparados com os cheques e conflitos diarios. domurido civilizado? Enlace sua vitima no bulevar ou traspassesua presa em floresfas desconhecidas, nao continua sendo o ho-/mem, aqui e la, o mais perfeito de todos os predadores?"16

Para designar essa vitima, Baudelaire usa a expressao "du-pe"; a palavra significa o simplorio, o que se deixa enganar,e e o oposto do conhecedor da natureza humana. Quanta me-nos segura se torna a cidade grande, tanto mais necessario parase viver nela — assim se pensava — e esse conhecimento. Naverdade, a concorrencia exacerbada leva o indivfduo a declararimperiosamente os seus interesses. Se quisermos avaliar o corn-portamento de um homem, o conhecimento precise dos seus

•.-A.

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interesses com freqiiencia sera muito mais util do que o de suaindole. O dom do qual o flaneur tanto se gaba e, portanto, umdos idolos que Bacon17 instala na feira. Baudelaire mal chegoua prestar homenagem a esse idolo. A crenca no pecado originalo fazia imune a crenga no conhecimento da natureza humana.Nisso concordava com De Maistre que, por seu turno, unira oestudo do dogma ao de Bacon.

As mezinhas calmantes que os fisiologistas punham a vendaforam logo ultrapassadas. Por outro lado, a literatura que seatinha aos aspectos inquietantes e ameagadores da vida urbanaestava reservado um grande future. Essa literatura tambem terna ver com as massas, mas precede de modo diferente das fisio-logias. Pouco Ihe importa a determinagao de tipos; ocupa-se,antes, com as fungoes proprias da massa na cidade grande.Entre essas, uma que ja por volta da transigao para o seculoXIX e destacada num relatorio policial: "E quase impossivel —escreve um agente secreto parisiense em 1798 — manter boaconduta numa populagao densamente massificada, onde cadaum e, por assim dizer, desconhecido de todos os demais, e naoprecisa enrubescer diante de ninguem".18 Aqui, a massa des-ponta como o asilo que protege o anti-social contra os seus per-seguidores. Entre todos os seus aspectos ameagadores, este foio que se anunciou mais prematuramente; esta na origem dosromances policiais.

Em tempos de terror, quando cada qual tern em si algo doconspirador, o papel do detetive pode tambem ser desempe-nhado. Para tal a flanerie oferece as melhores perspectivas."O observador — diz Baudelaire — e um principe que, portoda a parte, faz uso do seu incognito."19 Desse modo, se oflaneur se torna sem querer detetive, socialmente a transforma-cao Ihe assenta muito bem, pois justifica a sua ociosidade. Suaindolencia e apenas aparente. Nela se esconde a vigilancia deum observador que nao perde de vista o malfeitor. Assim, odetetive ve abrirem-se a sua auto-estima vastos dominios. De-senvolve formas de reagir convenientes ao ritmo da cidadegrande. Capta as coisas em pleno voo, podendo assim imagi-nar-se pr6ximo ao artista. Todos elogiam o lapis veloz do dese-nhista. Balzac quer associar, de modo geral, o genio artistico a

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apreensao rapida.* — O esbogo de Os Moicanos de Paris deDumas e fornecido pela sagacidade criminal unida a amavelindolencia do flaneur. Seu heroi decide partir 'em busca deaventura indo atras de uma tira de papel que abandonara aoscaprichos do vento. Qualquer pista seguida pelo flaneur vaiconduzi-lo a um crime. Com isso se compreende como o ro-mance policial, a despeito de seu sobrio calculismo, tambemcolabora na fantasmagoria da vida parisiense. Ainda nao glori-fica o criminoso, mas sim os seus adversaries e sobretudo oterreno onde se desenrola a cagada. Messac mostrou que, comisso, se fazem esforgos de atrair reminiscencias de Cooper.20 Omais interessante na influencia de Cooper e que nao a dissi-mulam, mas, ao contrario, a exibem. Em Os Moicanos de Paris,a exibicao ja aparece no proprio titulo; o autor oferece ao leitora perspectiva de Ihe abrir em Paris uma floresta virgem e umapradaria. O frontispicio, talhado em madeira, do terceiro volumeexibe uma rua coberta de moita e, naquela epoca, pouco transi-tada. A legenda da vista diz: "A floresta virgem na rua d'Enfer".O prospecto editorial da obra pinta o contexto com uma reto-rica pomposa, na qual se pode presumir a mao de um autorcheio de si: "Paris — os Moicanos. . . esses dois nomes se em-batem como o 'quern vem la?' de dois desconhecidos gigantes-cos. Estao separados por um precipicio atravessado por essaluz eletrica que tern seu foco em Alexandre Dumas". Ja ante-riormente Feval transplantara um pele-vermelha para uma aven-tura na cidade. Chama-se Tovah e, num passeio de fiacre,consegue escalpas seus quatro acompanhantes brancos de talmodo que o cocheiro nada percebe. Os Misterios de Paris logono imcio se refere a Cooper para prometer que os seus heroisdo submundo pariense "nao estao menos afastados da civili-zacao que os selvagens tao admiravelmente apresentados porCooper". Mas e sobretudo Balzac que nao se cansa de apontarCooper como seu modelo. "A poesia do terror, da qual estaocheias as florestas americanas, onde tribos inimigas se defron-tam na trilha de guerra; essa poesia que serviu tanto a Cooper

* Em Seraphita, Balzac fala de uma "visao rapida, cujas percepcoescolocam, em mudansas subitas, as paisagens contrastantes da Terra adisposi§ao da fantasia".

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presta-se assim, nos minimos detalhes, a vida parisiense. Ostranseuntes, as lojas, os cocb.es de aluguel, um homem que seapoia a uma janela — tudo isso interessava ao pessoal da es-colta do velho Peyrade tao intensamente quanto um tronco, umatoca de castor, um rochedo, uma pele de bufalo, uma canoaimovel, uma folha flutuante interessam ao leitor de um romancede Cooper." A intriga balzaquiana e rica em variafoes interme-diarias entre historias de indios e de detetives. Cedo se fizeramobjegoes aos seus "Moicanos de spencer" e seus "Huronianosde sobrecasaca".21 Em contrapartida, Hippolyte Babou, que eraintimo de Baudelaire, escreve retrospectivamente em 1857:"Quando Balzac rompe os muros para abrir caminho a obser-vacao.... ficamos a escuta atras das portas. . . numa palavra,nos comportamos, segundo dizem os nossos vizinhos inglesesem sua dissimulagao, como police detective".22

O romance policial, cujo interesse reside numa construgaologica, que, como tal, a novela criminal nao precisa possuir,aparece na Fran§a pela primeira vez com a tradugao dos contosde Poe: O Misterio de Marie Roget, Os Crimes da Rua Morgue,A Carta Roubada. Ao traduzir esses modelos, Baudelaire adotouo genero. Sua propria obra foi totalmente perpassada pela dePoe; e Baudelaire sublinha esse fato ao se fazer solidario aometodo no qual se combinam os diversos generos a que Poe sededicou. Poe foi um dos maiores tecnicos da literatura moderna.Pela primeira vez, como observa Valery,23 fez experiencias coma narrativa cientifica, com a moderna cosmogonia, com a des-crisao de fenomenos patologicos. Tais generos valiam para elecomo produ9oes exatas de um metodo para o qual reivindicavavalidez universal. Nisso Baudelaire se poe por inteiro a seu ladoe, tendo Poe em mente, escreve: "Nao esta longe o tempo em quese entendera que uma literatura que se recusa a progredir demaos dadas com a ciencia e com a filosofia e uma literaturaassassina e suicida".24 O romance policial — a mais consequenteentre as realizacoes de Poe — faz parte de uma literatura queatende ao postulado baudelairiano. A analise desse genero lite-rario ja e a analise da propria obra de Baudelaire, apesar de elenao ter produzido nenhuma peca desse tipo. As Flares doMai conhece, como fragmentos disperses, tres dos seus elemen-tos decisivos: a vftima e o local do crime (Mdrtir), o assassino

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(O Vinho do Assassino), a massa (O Crepusculo Vespertine).Falta o quarto elemento, aquele que permite ao entendimentopenetrar essa atmosfera prenhe de emo?ao. Baudelaire nao es-creveu nenhum romance policial, porque, em fungao da impul-sividade de seu carater a identificagao com o detetive Ihe foiimpossfvel. O calculo, o elemento construtivo nele ficava dolado do anti-social e foi totalmente capturado pela crueldade.Baudelaire leu Sade bem demais para poder concorrer comPoe.*

O conteudo social primitivo do romance policial e a supressaodos vestigios do individuo na multidao da cidade grande. Poese dedica pormenorizadamente a esse tema em O MistSrio deMarie Roget, a mais extensa de suas novelas criminais. Esseconto e, ao mesmo tempo, o prototipo do aproveitamento deinformacoes jornalisticas no desvendamento de crimes. Aqui, odetetive de Poe, o cavalheiro Dupin, nao trabalha com base nasaparencias, nas observajoes pessoais, mas sim nas reportagensda imprensa diaria. A analise critica das reportagens fornece osalicerces da narrativa. Entre outras coisas precisa ser determi-nado o momento do crime. Um jornal, Le Commerciel, defendeo parecer de que Marie Roget, a assassinada, tenha sido elimi-nada imediatamente apos ter deixado a casa materna. " 'E im-possivel — escreve ele — que uma jovem conhecida por variesmilhares de pessoas possa ter avanjado tres esquinas sem en-contrar ninguem a quern seu rosto fosse familiar. . .' Eis o modode ver as coisas de um homem de vida piiblica, ha muito domi-ciliado em Paris e que, de resto, se move quase sempre no setordos predios administrativos. Suas idas e vindas se efetuam aprazos regulares, numa area limitada onde se movimentam pes-soas de afazeres semelhantes aos seus e que naturalmente seinteressam por ele e reparam na sua pessoa. Ao contrario, po-demos imaginar como irregulares os caminhos habitualmentedescritos por Marie na cidade. Nesse caso, deve-se considerarverossimil que seu caminho se tenha desviado dos seguidos cos-tumeiramente por ela. O paralelo de que partia o jornal s6 seriaadmissfvel se as duas pessoas em questao percorressem toda a

* "E precise sempre voltar a Sade... para explicar o mal." (II, p. 694.)

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cidade. Nesse caso, sob o pressuposto de que tivessem o mesmonumero de conhecidos, seria igual para ambos a probabilidadede encontrar o mesmo numero de pessoas conhecidas. De minhaparte, sustento nao so como possfvel, mas como imensamenteprovavel, que Marie tenha tornado, a uma hora qualquer, umcaminho qualquer desde sua casa ate a de sua tia, sem encon-trar um unico passante que a conhecesse, ou de quern fosseconhecida. Para chegar a um julgamento justo nessa questao eresponde-la com justica, deve-se ter em mente a enorme des-proporcao entre o numero de conhecidos do individuo maispopular de Paris e a populacao total da cidade."25 Descartandoo contexto que desencadeia em Poe essas reflexoes, o detetiveperde sua esfera de acao, sem que o problema, contudo, percaa validade. Modificado, serve de base a um dos mais celebrespoemas de ,4s Flares do Mai, o soneto A uma Passante:

"A rua em torno era um frenetico alarido.Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,Uma mulher passou, com sua mao suntuosaErguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estatua, era-lhe a imagem nobre e fina.Qual bizarro basbaque, afoito eu Ihe bebiaNo olhar, ceu livido onde aflora a ventania,A do9ura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz. . . e a noite apos! — Efemera beldadeCujos olhos me fazem nascer outra vez,Nao mais hei de te ver senao na eternidade?Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!Pois de ti ja me fui, de mim tu ja fugiste,Tu que eu teria amado, 6 tu que bem o viste!"26

O soneto nao apresenta a multidao como o asilo do criminoso,mas sim como o refugio do amor que foge ao poeta. Pode-sedizer que nao trata da fungao da massa na existencia do bur-gues, mas na do ser erotico. A primeira vista, essa fungao parecenegativa, mas nao o e. A apari?ao que fascina o poeta, longede Ihe ser subtraido pela multidao, so atraves desta Ihe sera

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entregue. O arrebatamento desse habitante da cidade nao e tantoum amor a primeira vista quanto a ultima vista. O nunca da ul-tima estrofe e o apice do encontro, momenta em que a paixao,aparentemente frustrada, so entao, na verdade, brota do poetacomo uma chama. O poeta arde nessa chama; dela, contudo,nao emerge nenhuma fenix. O "nascer outra vez" do primeiroterceto abre uma perspectiva sobre o evento que se mostramuito problematica a luz da estrofe precedente. O que faz dosujeito um "basbaque" nao e a perplexidade diante de uma ima-gem que se apodera de todos os reconditos do seu ser; e algomais proximo ao choque com que um desejo imperioso acometesubitamente o solitario.27 O termo "bizarro" quase o expressa;a enfase que o poeta coloca no "toda de luto" nao e propiciapara ocultar esse choque. Na verdade, existe uma profunda rup-tura entre os quartetos que representam o encontro e os tercetosque o transfiguram. Quando Thibaudet diz que esses versos "sopodiam surgir no seio de uma cidade grande", atem-se a sua su-perficie. Sua forma interna se manifesta em que mesmo o amorse reconhece estigmatizado pela cidade grande.*

Desde Luis Felipe, a burguesia se empenha em buscar umacompensacao pelo desaparecimento de vestigios da vida pri-vada na cidade grande. Busca-a entre suas quatro paredes. Ecomo se fosse questao de honra nao deixar se perder nos secu-los, se nao o rastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos seusartigos de consume e acessorios. Sem descanso, tira o moldede uma multidao de objetos; procura capas e estojos para chi-nelos e relogios de bolso, para termometros e porta-ovos, paratalheres e guarda-chuvas. Da preferencia a coberturas de veludoe de peliicia, que guardam a impressao de todo contato. Para oestilo Makart28 do final do Segundo Imperio, a moradia se

* O tema do amor a mulher que passa e tratado num dos primeirospoemas de George. O decisive, porem, Ihe escapou: a corrente humanaque arrebata a mulher e a leva para longe do poeta. Chega-se assim auma timida elegia. Os olhares do poeta, como deve confessar a sua dama,"afastam-se umidos de desejo antes de ousarem mergulhar nos teus".(Stefan George, Hymnen Pilgerfahrten Algabal, Berlim, 1922, p. 23.)Baudelaire nao deixa nenhuma duvida de que tenha olhado fundo nosolhos da mulher que passa.

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torna uma especie de capsula. Concebe-a como um estojo doser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, pre-servando, assim, os seus vestigios, como a natureza preserva nogranito uma fauna extinta. Nao se pode esquecer, porem, que oprocesso tern dois lados. O valor real ou sentimental dos obje-tos assim guardados e sublinhado. Sao subtraidos a visao profanado nao-proprietario e, sobretudo, os seus contornos sao apaga-dos de modo significative. Nao e de estranhar que a resistenciaao controle, que no elemento anti-social se torna segunda natu-reza, se repita na burguesia abastada. Pode-se ver nesses costu-mes a ilustrasao dialetica de um texto que apareceu em muitossegmentos no Journal Officiel. Ja em 1836, Balzac escrevera emModeste Mignon: "Pobres mulheres da Franca! Bern querieispermanecer desconhecidas para tecer o vosso pequeno romancede amor. Mas como haveis de consegui-lo numa civilizacao quemanda registrar em pracas piiblicas a partida e a chegada dascarruagens, que conta as cartas e as sela uma vez no despachoe outra na entrega, que da numeros as casas e que, em breve,tera todo o pais, ate as menores parcelas, registrado em seuscadastres?"29 Desde a Revolusao Francesa, uma extensa rede decontroles, com rigor crescente, fora estrangulando em suas ma-Ihas a vida civil. A numeracao dos imoveis na cidade grandefornece um ponto de referenda adequado para avaliar o pro-gresso da normatizajao. Desde 1805, a administrate napoleo-nica a tornara obrigatoria para Paris. Em bairros proletaries,contudo, essa simples medida policial encontrou resistencias;ainda em 1864, diz-se do bairro Saint-Antoine, o bairro dosmarceneiros: "Quando se perguntar a um morador desse bairropelo seu endereco, ele sempre dara o nome que sua casa levae nao o frio mimero oficial".30 Naturalmente, tais resistenciasnada puderam, por muito tempo, contra o empenho de com-pensar, atraves de uma multipla estrutura de registros, a perdade vestigios que acompanha o desaparecimento do ser humanonas massas das cidades grandes. Esses esforcos prejudicaramBaudelaire tanto quanto qualquer outro criminoso. Fugindo doscredores, metia-se em cafes ou em circulos de leitura. Aconteceude habitar dois domicilios ao mesmo tempo, mas, no dia emque o aluguel estava por veneer, pernoitava num terceiro, emcasa de amigos. Vagueava, assim, pela cidade, que ha muito ja

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nao era a patria do flaneur. Cada cama em que se deitava, tomava-se para ele um "leito arriscado".31 Entre 1842 e 1858, Crepet contacatorze endere?os parisienses de Baudelaire.

Medidas tecnicas tiveram de socorrer o processoadministrativo de controle. Nos primordios dos procedimentosde identificacao, cujo padrao da epoca e dado pelo metodo deBertillon,32 encontramos a definicao da pessoa atraves daassinatura. Na historia desse processo, a descoberta da fbtografiarepresenta um corte. Para a criminalistica nao significa menosque a invencao da imprensa para a literatura. Pela primeira vez,a fotografia permite registrar vestigios duradouros e inequivocosde um ser humano. O romance policial se forma no momento emque estava garantida essa conquista — a mais decisiva de todas— sobre o incognito do ser humano. Desde entao, nao se podepretender um fim para as tentativas de fixa-lo na 3930 e napalavra.

A famosa novela de Poe, O homem da multidao, e algo comoa radiografia de um romance policial. Nele, o involucre querepresenta o crime foi suprimido; permanece a simples armadura:o perseguidor, a multidao, um desconhecido que estabelece seutrajeto atraves de Londres de modo a ficar sempre no seu centre.Esse desconhecido e o flaneur. Tambem Baudelaire o entendeassim quando, em seu ensaio sobre Guys, denominou o flaneur "ohomem das multidoes". Porem a descrifao que Poe faz dessafigura esta livre da conivencia que Baudelaire Ihe empresta. ParaPoe, o flaneur e acima de tudo alguem que nao se sente seguro emsua propria sociedade. Por isso busca a multidao; e nao e preciseir muito longe para achar a razao por que se esconde nela. Adiferen9a entre o anti-social e o flaneur e deliberadamenteapagada em Poe. Um homem se torna tanto mais suspeito namassa quanto mais dificil e encontra-Io. Renunciando a umapersegui9ao mais longa, o narrador assim resume em silencio suacompreensao: "— Esse velho e a encarna9ao, o genio do crime —disse a mim mesmo por fim — Ele nao pode estar so; ele e ohomem da multidao".33

O autor nao solicita o interesse do leitor apenas para essehomem; o leitor vai se fixar a descri9ao da multidao no minimocom a mesma intensidade, e isso tanto por motives documen-taries quanto artisticos. Em ambos os aspectos e a multidao que

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sobressai. O que impressiona, em primeiro lugar, e o fasciniocom que o narrador acompanha o espetaculo da multidao, aqual e tambem observada pelo primo a sua janela de esquinanum celebre conto de E. T. A. Hoffmann. Mas quao acanhado•o olhar deste que observa a multidao instalado em domicilio, equao penetrante o daquele que a fita atraves das vidra9as docafe! Na diferenca entre esses dois postos de observagao seencontra a diferenca entre Berlim e Londres. De um lado, ohomem privado; senta-se na sacada como num balcao nobre; sequer correr os olhos pela feira, tem a disposigao um binoculode teatro. Do outro, o consumidor, o andnimo, que entra numcafe e que logo, atraido pelo magneto da massa que o unge in-cessantemente, tornara a sair. De um lado, toda a especie depequenas estampas do genero, que, reunidas, formam um albumde gravuras coloridas; do outro, um esbogo que seria capaz deinspirar um grande gravador: uma multidao a perder de vista,onde ninguem e para o outro nem totalmente nitido nem total-mente opaco. Para o pequeno-burgues alemao de Hoffmannestao fixados limites estreitos. E, no entanto, por sua predis-posicao, Hoffmann era da familia de um Poe e de um Baude-laire. Nas notas biograficas da edigao original de suas ultimasobras, consta o seguinte: "Hoffmann nunca foi amigo especialda natureza. O ser humano — comunicar-se com ele, observa-lo,simplesmente ve-lo — era para ele mais importante do que tudo.Se fosse passear no verao, o que, com bom tempo, aconteciadiariamente ao entardecer. . ., entao nao era facil encontrar umataverna, uma confeitaria, onde nao tivesse aparecido para verse la havia gente e de que especie".34 Mais tarde, ao viajar,Dickens se queixara da falta do barulho da rua, que era indis-pensavel para a sua producao. "Nao saberia dizer como as ruasme fazem falta — escreve em 1846 de Lausanne, envolvido nafeitura de Dombey e Filho. — E como se as ruas me dessemao cerebro algo de que nao pode prescindir se quiser trabalhar.Uma semana, quatorze dias, posso escrever maravilhosamentenum sitio afastado; mas um dia em Londres basta para me re-erguer. . . E a fadiga e o trabalho de escrever, dia apos dia,sem essa lanterna magica sao monstruosos. . . meus personagnesparecem querer paralisar-se se nao tem uma multidao ao redor."35

Entre as varias coisas que Baudelaire censura a detestada Bru-

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xelas, uma Ihe traz rancor especial: "Nenhuma vitrine. A fla-nerie, que e amada pelos povos dotados de fantasia, nao e pos-sivel em Bruxelas. Nao ha nada a ver, e as ruas sao inutiliza-veis".36 Baudelaire amava a solidao, mas a queria na multidao.

No decurso de seu conto, Poe faz com que anoitega. Ele sedemora na cidade a luz de gas. O fenomeno da rua como in-terior, fenomeno em que se concentra a fantasmagoria do flaneur,e dificil de separar da iluminagao a gas. As primeiras lampadasa gas arderam nas galerias. Na infancia de Baudelaire fez-sea tentativa de utiliza-las a ceu aberto; colocaram-se candelabrosna Place Vendome. Sob Napoleao III cresce mais rapidamenteo numero de lampioes a gas. Isso elevou o grau de segurancada cidade; fez a multidao em plena rua sentir-se, tambem anoite, como em sua propria casa; removeu do cenario grandeo ceu estrelado e o fez de modo mais radical que os seus pre-dios altos. "Corro as cortinas contra o Sol que agora foi dormir,como de habito; doravante nao vejo outra luz senao a da chamado gas."37* A Lua e as estrelas ja nao sao dignas de mengao.

No florescimento do Segundo Imperio, as lojas nas ruas prin-cipals nao fechavam antes das dez horas da noite. Era a grandeepoca do noctambulismo. "O ser humano — escreve Delvauno capitulo de As Horas Parisienses dedicado a segunda ho-ra depois da meia-noite — pode de tempos em tempos repou-sar; pontos de parada e estagoes Ihe estao franqueadas; naotem, contudo, o direito de dormir."38 As margens do lago,Dickens se lembra nostalgicamente de Genova, onde tinha duasmilhas de ruas iluminadas para vagar a noite sem rumo certo.Tempos depois, quando, devido ao declinio das galerias, a fla-nerie caiu de moda e mesmo a luz de gas ja nao se tinha comoelegante, o derradeiro flaneur a vagar tristemente pela PassageColbert teve a impressao de que o chamejar dos bicos de gasapenas exibia o medo de sua chama de nao ser paga ao final domes.39 Foi entao que Stevenson escreveu sua elegia sobre odesaparecimento dos lampioes a gas. Seu lamento se deixa levarsobretudo pelo ritmo no qual os acendedores de lampiao seguempelas ruas, de um lampiao a outro. No principio, esse ritmo se

* A mesma itnagetn e reencontrada em O Crepusculo Vespertine:"Qual grande alcova o ceu se fecha lentamente" (p. 349).

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distingue da uniformidade do anoitecer, mas agora contrastacom o cheque brutal que fez cidades inteiras se acharem derepente sob o brilho da luz eletrica. "Essa luz so deveria incidirsobre os assassinos ou criminosos politicos ou iluminar os cor-redores nos manicomios — e um pavor feito para aumentar opavor."40 Muitas coisas provam que so tardiamente a iluminacaoa gas foi tratada de modo tao idilico quanto o fez Stevenson,que Ihe escreve o necrologio. Isso e mostrado em especial pelotexto de Poe em questao. Mai se pode descrever o efeito dessaluz de modo mais inquietante: "Enquanto ainda lutavam como anoitecer, os raios dos bicos de gas eram debeis. Agora tinhamtriunfado e lancavam a sua volta uma luz intensa e tremulante.Tudo parecia negro, mas cintilava como o ebano com o qualse comparou o estilo de Tertuliano".41 "No interior da casa —diz Poe em outro trecho — o gas e totalmente inadmissivel. Sualuz dura e vibrante fere a vista."42

A propria multidao londrina aparece sombria e confusa comoa luz na qual se move. Isso vale nao so para a gentalha que denoite rasteja "para fora dos antros"43; tambem a classe dosaltos funcionarios e descrita por Poe da seguinte maneira: "Emgeral, seu cabelo ja estava bastante rarefeito; a orelha direita,geralmente um tanto afastada da cabega devido ao seu empregocomo porta-canetas. Todos, por forca do habito, mexiam emseus chapeus com ambas as maos e todos usavam correntes derelogio curtas, douradas, de forma antiquada".44 Em sua des-cricao, Poe nao buscou a aparencia imediata. Estao exageradasas semelhancas a que se sujeitam os burgueses devido a suapresenca na massa; o seu cortejo nao esta muito longe de seruniforme. Ainda mais surpreendente e a descrigao da multidaosegundo seu modo de movimentar-se: "A maioria dos que pas-savam parecia gente satisfeita consigo mesma, e com os doispes no chao. Pareciam apenas pensar em abrir caminho atravesda multidao. Franziam o cenho e lancavam olhares para todosos lados. Se recebiam um encontrao de outros transeuntes, naose mostravam mais irritados; ajeitavam a roupa e seguiam apres-sados. Outros — e tambem esse grupo era numeroso — tinhammovimentos desordenados, rostos rubicundos, falavam consigomesmos e gesticulavam, como se se sentissem sozinhos exata-mente por causa da incontavel multidao ao seu redor. Se tives-

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sem de parar no meio do caminho, repentinamente paravam demurmurar, mas sua gesticulacao ficava mais veemente, e es-peravam — um sorriso forgado — ate que as pessoas em seucaminho se desviassem. Se eram empurradas, cumprimentavamas pessoas que as tinham empurrado e pareciam muito embarasa-das.45* Poder-se-ia pensar que se esta falando de individuos em-pobrecidos e semi-embriagados. Na verdade, trata-se de "gentede boa posicao, negociantes, bachareis de especuladores daBolsa".46 Algo diverse de uma psicologia de classes esta aquiem jogo.**

Ha uma litografia de Senefelder que representa uma casa dejogo. Nenhum dos retratados acompanha o jogo da maneirahabitual. Cada um esta possuido por seu afeto: um, por umaalegria irreprimida; outro, pela desconfianca em relacao ao par-ceiro; um terceiro, por um surdo desespero; um quarto, por suamania de discutir; outro, ainda, se prepara para deixar estemundo. Essa gravura recorda Poe pela sua extravagancia. Semduvida, a censura de Poe e maior, e a ela correspondem os meios

* Em Um Diet de Chuva se encontra um paralelo para essa passagem.Embora assinado por outra mao, deve-se atribuir o poema a Baudelaire(cf. Charles Baudelaire, Vers retrouves, Paris, Ed. Mouquet, 1929). A ana-logia dos ultimos versos com a referenda de Poe a Tertuliano, e tantomais notavel quando se sabe que Baudelaire os escreveu o mais tardar em1843, epoca em que nada sabia a respeito de Poe.

"Cada um, nos acotovelando sobre a cal^ada escorregadia,Egoista e brutal, passa e nos enlameia,Ou, para correr mais rapido, distanciando-se nos empurra.Em toda a parte, lama, diluvio, escuridao do ceu.Negro quadro com que teria sonhado o negro Ezequiel." (I, p. 211)

** A imagem da America que Marx trazia dentro de si parece ser feitado mesmo material que a descricao de Poe. Ele destaca "o movimentojovem e febril da produ§ao material" nos Estados Unidos e o responsa-biliza pelo fato de que "nao tenha havido nem tempo nem oportunidadede suprimir o velho mundo espiritual" (Karl Marx, O 18 Brumdrio deLuis Bonaparte, loc. cit., p. 30). A propria fisiognomonia dos homensde negocio tern, em Poe, algo de demoniaco. Baudelaire descreve como,ao anoitecer, " . . . demonios insepultos no ocio/acordam do estupor, comohomens de negocio..." (p. 351). Talvez esse trecho de O CrepusculoVespertino tenha sido influenciado pelo texto de Poe.

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de que se utiliza. Seu traco magistral nessa descrigao consiste emexpressar o isolamento desesperado dos seres humanos em seusinteresses privados, nao como o fez Senefelder — atraves da va-riedade de sua conduta —, mas sim na absurda uniformidade desuas roupas ou de seu comportamento. O servilismo com queos que recebem os empurroes se desculpam permite identificara origem dos meios que Poe mobiliza nesse ponto. Eles se ori-ginam no repertorio do palhaco, e ele os emprega de modosemelhante ao que, mais tarde, os comicos utilizaram. Na artedos comicos e notoria uma relagao com a economia. Em seusmovimentos abruptos, imitam tanto a maquinaria ao assentarseus golpes na materia, quanto a conjuntura ao assenta-los namercadoria. As particulas da multidao descrita por Poe exe-cutam uma mi'mese semelhante do "movimento febril da pro-du?ao material" junto com as formas de comercio pertinentes.A descrigao de Poe prefigura o que mais tarde o Lunapark —que transforma o homem do povo num comico — realizou comseus brinquedos oscilantes e diversoes analogas. Em Poe, aspessoas se comportam como se so pudessem se exprimir reflexa-mente. Essa movimentagao tern um efeito ainda mais desumanoporque, em Poe, se fala apenas de seres humanos. Quando amultidao se congestiona, nao e porque o transito de veiculos adetenha — em parte alguma se menciona o transito —, massim porque e bloqueada por outras multidoes. Numa massadessa natureza, a flanerie nao podia florescer.

Na Paris de Baudelaire, ainda nao se chegara a esse ponto.Ainda havia balsas cruzando o Sena onde, mais tarde, seriaminstaladas pontes. No ano da morte de Baudelaire, um empre-sario ainda podia ter a ideia de fazer circular quinhentas liteiraspara comodidade de habitantes abastados. Ainda se apreciavamas galerias, onde o flaneur se subtraia da vista dos veiculos quenao admitem o pedestre como concorrente. Havia o transeunte,que se enfia na multidao, mas havia tambem o flaneur, queprecisa de espa?o livre e nao quer perder sua privacidade.Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assimcontra a divisao do trabalho que transforma as pessoas emespecialistas. Protesta igualmente contra a sua industriosidade.Por algum tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tar-

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tarugas a passear pelas galerias. De bom grado, o flaneur dei-xava que elas Ihe prescrevessem o ritmo de caminhar. Se otivessem seguido, o progresso deveria ter aprendido esse passo.Nao foi ele, contudo, a dar a ultima palavra, mas sim Taylor,ao transformar em lema o "Abaixo a fldneriel "47 A tempo, algunsprocuraram imaginar o que estava por vir. "O flaneur — es-creve Rattier em 1857, em sua Utopia Paris nao Exlste — queencontravamos nas calgadas e em frente das vitrines, esse tipofutil, insignificante, extremamente curioso, sempre em busca deemosoes baratas e que de nada entendia a nao ser de pedras,fiacres e lampioes a gas. . . tornou-se agora agricultor, vinha-teiro, fabricante de linho, refinador de agucar, industrial doa?o."48

Em suas errancias, o homem da multidao, ja tarde, chega aum grande bazar ainda bastante freqiientado. Nele circula comose fosse fregues. Havia no tempo de Poe lojas de muitos andares?Seja como for, Poe faz esse inquieto gastar "cerca de hora emeia" nesse local. "la de um setor a outro sem nada comprar,sem nada dizer; com olhar distraido, fitava as mercadorias."49

Se a galeria 6 a forma classica do interior sob o qual a rua seapresenta ao flaneur, entao sua forma decadente e a grandeloja. Este e, por assim dizer, o derradeiro refugio do flaneur.Se, no come?o, as ruas se transformavam para ele em interiores,agora sao esses interiores que se transformam em ruas, e, atra-ves do labirinto das mercadorias, ele vagueia como outroraatraves do labirinto urbano. Um traco magnifico do conto dePoe e que ele inscreve, na primeira descricao do flaneur, aimagem do seu fim.

Jules Laforgue disse que Baudelaire teria sido o primeiro afalar de Paris "como um condenado a existencia cotidiana nacapital".50 Teria podido dizer tambem que foi o primeiro a falardo opio que conforta este — e somente este — condenado. Amultidao nao e apenas o mais novo refugio do proscrito; e tam-bem o mais novo entorpecente do abandonado. O fldmeur e umabandonado na multidao. Com isso, partilha a situagao da mer-cadoria. Nao esta consciente dessa situagao particular, mas nempor isso ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcoticoque o indeniza por muitas humilhafoes. A ebriedade a que se

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entrega o flaneur e a da mercadoria em torno da qual brame acorrente dos fregueses.

Se a mercadoria tivesse uma alma — com a qual Marx, oca-sionalmente, faz graca51 —, esta seria a mais plena de empatiaja encontrada no reino das almas, pois deveria procurar emcada urn o comprador a cuja mao e a cuja morada se ajustar.Ora, essa empatia e a propria essencia da ebriedade a qual oflaneur se abandona na multidao. "O poeta goza o inigualavelprivilegio de poder ser, conforme queira, ele mesmo ou qualqueroutro. Como almas errantes que buscam urn corpo, penetra,quando Ihe apraz, a personagem de qualquer um. Para o poeta,tudo esta aberto e disponivel; se alguns espagos Ihe parecemfechados, e porque aos seus olhos nao valem a pena serem ins-pecionados."52 O que fala aqui e a propria mercadoria, e essasultimas palavras dao realmente uma nocao bastante precisa da-quilo que ela murmura ao pobre-diabo que passa diante de umavitrine com objetos belos e caros. Estes nao querem saber nadadele; nao sentem nenhuma empatia por ele. Aquilo que falanas frases desse importante texto em prosa, As Multidoes, e oproprio fetiche. Com ele a sensibilidade de Baudelaire vibra emtao perfeita ressonancia que a empatia com o inorganico setornou uma das fontes de sua inspiragao.*

* O segundo poema da serie intitulada Spleen aparece como comple-mento importantissimo para as provas reunidas na primeira parte desseensaio. Dificilmente, antes de Baudelaire, algum poeta tera escrito umverso que corresponda a "sou como um camarim onde ha rosas fanadas".O poema esta totalmente voltado para a empatia com uma materia queesta morta em duplo sentido: e a materia inorganica e, ademais, estaexcluida do processo de circula?ao.

"— Doravante has de ser, 6 pobre e humano escombro!Um granito agoitado por ondas de assombro,A dormir nos confins de um Saara brumoso;Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,Esquecida no mapa, e cujo aspero humorCanta apenas aos raios do Sol a se por." (pp. 293-4)

A imagem da esfinge com que se fecha o poema tern a beleza sombriados artigos sem saida que ainda sao encontrados nas galerias.

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Baudelaire entendia de entorpecentes. Nao obstante, passou-Ihe despercebido um dos seus efeitos sociais mais importantes.Trata-se do charme que os viciados manifestam sob a influenciada droga. A mercadoria, por sua vez, retira o mesmo efeito damultidao inebriada e murmurante a seu redor. A massif icagaodos fregueses que, com efeito, forma o mercado que transformaa mercadoria em mercadoria aumenta o encanto desta para ocomprador mediano. Quando Baudelaire fala de uma "ebriedadereligiosa da cidade grande",53 o sujeito, que permanece anoni-mo, bem poderia ser a mercadoria. E a "santa prostituicao daalma", em comparacao com a qual "isso que os homens chamamde amor e bem pequeno, bem restrito e bem debil",54 nao pode— se o confronto com o amor mantem sentido — ser outracoisa que a prostitui?ao da alma da mercadoria. "Essa santaprostituigao da alma — continua Baudelaire — que se da intei-ramente, poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, aodesconhecido que passa."56 £ exatamente essa poesia, exata-mente essa caridade que as prostituidas reclamam para si. Elasprovaram os segredos do livre mercado; a mercadoria nao levanenhuma vantagem sobre elas. Alguns de seus atrativos provi-nham do mercado e se tornaram instrumentos de poder. Comotais, Baudelaire os registra em O Crepusculo Vespertine:

"Atraves dos claroes que o vendaval flagelaO Meretricio brilha ao longo das calcadas;Qual formigueiro ele franqueia mil entradas;Por toda parte engendra uma invisivel trilhaAssim como o inimigo apronta uma armadilha;Pela cidade imunda e hostil se movimentaComo um verme que ao Homem furta o que o sustenta."56

So a massa de habitantes permite a prostituic,ao estender-sesobre vastos setores da cidade. E so a massa permite ao objetosexual inebriar-se com a centena de efeitos excitantes que exerceao mesmo tempo.

No entanto, o espetaculo oferecido pelo publico das ruas deuma cidade grande nao tinha sobre todos esse efeito inebriante.Muito antes de Baudelaire ter composto seu poema em prosa,

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As Multidoes, Engels tentara descrever a agitacao nas ruas lon-drinas: "Uma cidade como Londres, onde se pode vagar horasa fio sem se chegar sequer ao inicio do fim, sem se encontrar omais infimo sinal que permite inferir a proximidade do campo,e algo realmente singular: Essa concentracao colossal, esse amon-toado de dois milhoes e meio de seres humanos num unicoponto centuplicou a forca desses dois milhoes e meio. . . Masos sacrificios que isso custou, so mais tarde se descobre. Quandose vagou alguns dias pelas calgadas das ruas principals, so entaose percebe que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhorparte de sua humanidade para realizar todos os prodigios dacivilizacao, com que fervilha sua cidade; que centenas de forsas,neles adormecidas permaneceram inativas e foram reprimidas. . .O proprio tumulto das ruas tern algo de repugnante, algo querevolta a natureza humana. Essas centenas de milhares de pessoasde todas as classes e situa?6es, que se empurram umas as outras,nao sao todas seres humanos com as mesmas qualidades e apti-does e com o mesmo interesse em serem felizes?... E, no entan-to, passam correndo uns pelos outros, como se nao tivessem abso-lutamente nada em comum, nada a ver uns com os outros; e,no entanto, o unico acordo tacito entre eles e o de que cadaum conserve o lado da calgada a sua direita, para que ambasas correntes da multidao, de sentidos opostos, nao se detenhammutuamente; e, no entanto, nao ocorre a ninguem conceder aooutro um olhar sequer. Essa indiferen$a brutal, esse isolamentoinsensivel de cada individuo em seus interesses privados, avul-tam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indi-vfduos se comprimem num espaco exiguo".57

"Esse isolamento insensivel de cada individuo em seus inte-resses privados", so aparentemente rompe-o o flaneur quandopreenche o vazio, criado pelo seu proprio isolamento, com osinteresses, que toma emprestados, e inventa, de desconhecidos.Ao lado da clara descricao fornecida por Engels, soa obscuraa seguinte frase de Baudelaire: "O prazer de se achar numamultidao e uma expressao misteriosa do gozo pela multiplicasaodo numero".58 A frase se esclarece, porem, se pensamos quenao foi dita tanto do ponto de vista do ser humane como da-quele da mercadoria. Na medida em que o ser humano, comoforga de trabalho, e mercadoria, nao tern por certo necessidade

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de se imaginar no lugar da mercadoria. Quanto mais conscientese faz do modo de existir que Ihe impoe a ordem produtiva,isto e, quanto mais se proletariza, tanto mais e traspassado pelofrio sopro de economia mercantil, tanto menos se sente atraidoa empatizar com a mercadoria. Contudo, a classe dos pequenos-burgueses a qual pertencia Baudelaire ainda nao chegara taolonge. Na escala de que tratamos agora, ela se encontrava noinicio do declinio. Inevitavelmente, um dia, muitos deles te-riam de se defrontar com a natureza mercantil de sua forcade trabalho. Esse dia, porem, ainda nao chegara. Ate entao,se assim se pode dizer, podiam ir passando o tempo. Como namelhor das hipoteses, o seu quinhao podia temporariamente ser oprazer, jamais o poder, o prazo de espera que Ihes concederaa Historia se transformava num objeto de passatempo. Quernsai em busca de passatempo, procura o prazer. Era evidente,contudo, que o prazer dessa classe se deparava com limites tantomais estreitos quanto mais se quisesse entregar a ele dentro dessasociedade. Esse prazer prometia ser menos limitado se ela pu-desse extrai-lo dessa sociedade. Se, nessa maneira de sentirprazer, pretendesse chegar ao virtuosismo, nao podia desdenhara identificagao com a mercadoria. Tinha de saborear essa iden-tifica$ao com o gozo e o receio que Ihe advinham do pressenti-mento de seu proprio destine como classe. Por fim, tinha deprover essa identificasao com uma sensibilidade que ainda per-cebesse encantos nas coisas danificadas e corrompidas. Baude-laire que, num poema a uma cortesa, diz: " . . . seu coracao,machucado como um pessego,/ esta maduro, como o seu corpo,para o amor sabio. . .", possuia essa sensibilidade. A ela deveo prazer nessa sociedade, da qual ja se sente meio excluido.

Na atitude de quern sente prazer assim, deixava que o espe-taculo da multidao agisse sobre ele. Contudo, o fascinio maisprof undo desse espetaculo consistia em nao desvia-lo, apesar daebriedade em que o colocava, da terrivel realidade social. Elese mantinha consciente mas da maneira pela qual os inebriados"ainda" permanecem conscientes das circunstancias reals. Porisso e que, em Baudelaire, a cidade grande quase nunca alcancaexpressao na descri9§o direta de seus habitantes. A incisividadee a dureza com que Shelley fixou Londres na imagem de suaspessoas nao convinha a Paris de Baudelaire.

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"O inferno e uma cidade muito semelhante a Londres —Uma cidade populosa e fumacenta,Com toda a sorte de pessoas arruinadas,E pouca ou nenhuma diversao,Pouca justiga e ainda menos compaixao."59

Para o flaneur, um veu cobre essa imagem. A massa e esseveu; ela ondeia nos "franzidos meandros das velhas capitals".60

Faz com que o pavoroso atue sobre ele como um encantamento.61

So quando esse veu se rasga e mostra ao flaneur "uma dessaspragas populosas que, durante os combates, ficam vazias degente" — so entao, tambem ele, ve a cidade sem disfarces.

Se fosse precise uma prova da forga com que a experienciada multidao moveu Baudelaire, a encontran'amos no fato de eleter nutrido uma rivalidade com Victor Hugo sob o signo dessaexperiencia. Pois era evidente para Baudelaire que se Hugopossufsse alguma forga, ela estaria na multidao. Louva em Hu-go um "caractere poetique. . . interrogatif" e diz que ele sabe naoso reproduzir o claro e o nftido, de modo claro, mas tambem coma obscuridade indispensavel o que so se revelou obscuro e indis-tinto.62 Um dos tres poemas de Quadras Parisienses dedicados aVictor Hugo comeca com uma invocagao a cidade superpovoada— "Cidade a fervilhar, cheia de sonhos. . . "63; outro persegue asvelhinhas no "ebrio cenario"64 da cidade atraves da multidao.*A multidao e um objeto novo na poesia lirica. Em honra doinovador Sainte-Beuve, ainda se considerava conveniente e apro-priado a um poeta dizer "a multidao e insuportavel".65 Duranteseu exilio em Jersey, Hugo trouxe esse objeto para a poesia. Emseus passeios solitaries na costa insinuou-se a ele gracas a umadas gigantescas antiteses indispensaveis a sua inspiracao. EmHugo, a multidao entra na poesia como objeto de contemplagao.Seu modelo e o oceano a quebrar-se contra as rochas, e o pen-sador que reflete sobre esse espetaculo e o verdadeiro investi-gador da multidao, na qual se perde como no rumor do mar.

* No ciclo As Velhinhas, o terceiro poema sublinha essa rivalidadeatrave's de um apoio verbal no terceiro poema da serie hugoana Fantasmas.Assim, uma das mais perfeitas poesias de Baudelaire fica correspondendoa uma das mais fracas que Hugo jamais escreveu.

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"Assim como olha, o desterrado, desde o seu recife solitariopara terras imensas ricas de destines, assim tambem desce osolhos sobre o passado dos povos. . . Leva a si e ao seu destinopara a torrente de acontecimentos que se vivificam para ele ese misturam a existencia das forgas naturais, ao mar, as falesiaserodidas, as nuvens em movimento e as demais grandezas con-tidas numa vida calma e solitaria, em comunhao com a nature-za "66 "Q pr5prio oceano se cansou dele" — disse Baudelairea respeito de Hugo, ferindo com o feixe de luz de sua ironiaaquele que medita sobre o recife. Baudelaire nao se sentia mo-vido a se entregar ao espetaculo da natureza. Sua experienciada multidao comportava os rastros da "iniquidade e dos milha-res de encontroes" que sofre o transeunte no tumulto de umacidade e que so fazem manter tanto mais viva a sua autocons-ciencia. (No fundo, e exatamente essa autoconsciencia que eleempresta a mercadoria que flana.) Para Baudelaire, a multidaonunca foi estfmulo para langar a sonda do' pensamento a pro-fundeza do mundo. Hugo, por outro lado, escreve: "As profun-dezas sao multidoes",67 abrindo assim um espago imenso assuas meditagoes. O natural-sobrenatural que afeta Hugo comose fosse a multidao se apresenta tanto na floresta quanto noreino animal quanto na rebentagao das ondas; em cada um podecintilar por momentos a fisionomia de uma cidade grande. AInclinafao do Devaneio da uma ideia magnifica da promiscui-dade reinante na multiplicidade de tudo o que e vivo.

"A noite e a multidao, nesse sonho hediondo,Vinham, engrossando-se juntas as duas,E, nessas regioes que nenhum olhar sonda,Mais o homem era numeroso, mais a sombra era profunda."68

"Multidao sem nome! caos! vozes, olhos, passos.Os que nunca vimos, os que nao conhecemos.Todos os vivos! — cidades que zumbem as orelhasMais que bosque da America ou colmeia de abelha."69

Com a multidao, a natureza exerce seu direito elementar sobrea cidade. Mas nao e s6 a natureza que assim defende os seusdireitos. Ha uma passagem surpreendente em Os Miserdveis,

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onde o ondular, na floresta aparece como arquetipo da existenciada massa. "O que havia ocorrido nessa rua nao teria surpreen-dido uma floresta; os altos fustes e a vegetagao rasteira, as ervas,os galhos inextricavelmente enredados uns nos outros e o capimalto levam uma existencia sombria; atraves do imenso formigardesliza sorrateiramente o invisivel; o que esta debaixo do homemdistingue, atraves da nevoa, o que esta acima do homem." Nessadescricao esta imersa a caracteristica da experiencia de Hugocom a multidao. Na multidao, o que esta abaixo do homem entraem relagao com o que impera acima dele, E essa promiscuidadeque engloba todas as demais. Em Hugo, a multidao aparece comoum ser hibrido que forgas disformes, sobre-humanas, geram paraaquelas que estao abaixo do homem. O trago visionario existenteno conceito hugoano de multidao faz mais justica ao ser socialdo que o tratamento "realistico" que Ihe dispensou na politica.Pois a multidao e de fato um capricho da natureza, se se podetranspor essa expressao para as relagoes sociais. Uma rua, umincendio, um acidente de transito, reunem pessoas, como tais,livres de determinagao de classe. Apresentam-se como aglome-racoes concretas, mas socialmente permanecem abstratas, ouseja, isoladas em seus interesses privados. Seu modelo sao osfregueses que, cada qual em seu interesse privado, se reunem nafeira em torno da "coisa comum". Muitas vezes, essas aglomera-coes possuem apenas existencia estatistica. Ocultam aquilo queperfaz sua real monstruosidade, ou seja, a massificagao dosindividuos por meio do acaso de seus interesses privados. Porem,se essas aglomeragoes saltam aos olhos — e disso cuidam osEstados totalitarios fazendo permanente e obrigatoria em todosos projetos a massificagao de seus clientes —, entao vem a luzseu carater ambiguo, sobretudo para os proprios implicados. Estesracionalizam o acaso da economia mercantil — acaso que osjunta — como o "destino" no qual a "raca" se reencontra a simesma. Com isso, dao curso livre simultaneamente ao instintogregario e ao comportamento automatico. Os povos que se encon-tram em primeiro piano no palco da Europa Ocidental travamconhecimento com o sobrenatural que Hugo encontrou na multi-dao. No entanto, nao pode Hugo discernir o pressagio historicodessa grandeza. Este, porem, se imprimiu em sua obra como umadeformacao peculiar: na forma de atas das sessoes espiritas.

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O contato com o mundo dos espiritos que, sabidamente, atuouem Jersey com igual profundidade sobre sua vida e sobre suaobra, era, antes de tudo, e por mais estranho que possa parecer,o contato com as massas, que, sem diivida, faltava ao poeta noexilio. Pois a massa e o modo de existir no mundo dos espiritos.Assim, em primeiro lugar, Hugo via a si mesmo com um geniona grande assembleia de genios que seus ancestrais constituiam.Em William Shakespeare percorre, em longas rapsodias, a seriedesses principes do espirito, que comega em Moises e termina emHugo, mas que nao forma senao um pequeno bando na grandiosamultidao dos falecidos. Para o engenho ctonico70 de Hugo, o adplures ire11 dos romanos nao era uma expressao vazia. — Osespiritos dos mortos vieram tarde, na ultima sessao, como men-sageiros da noite. Os registros de Jersey preservaram suas men-sagens: "Cada celebridade trabalha em duas obras: na obra querealiza enquanto vivo e na sua obra-fantasma . . . O ser vivo seconsagra a primeira. A noite, porem, no silencio profundo, des-perta — 6 terror! — nesse ser vivo o criador-fantasma. — Como?— grita a criatura. — Isso nao e tudo? — Nao — responde ofantasma —, acorda e levanta-te; a tempestade anda a solta,uivam os caes e as raposas; ha trevas por toda a parte, a natu-reza estremece, se confrange sob o acoite de Deus . . . — Ocriador-fantasma ve as ideias-fantasmas. As palavras se erigam, afrase se errepia... a vidraga torna-se opaca, o medo toma contada lampada.. . Toma cuidado, 6 vidente, toma cuidado, 6 homemde um seculo, tu, vassalo de um pensamento terrestre. Pois istoaqui e a dementia, isto aqui e o tumulo, isto aqui e o infinito,isto aqui e uma ideia-fantasma".72 O fremito cosmico na viven-cia do invisivel, fixado por Hugo nessa passagem, nao tern ne-nhuma semelhanga com o terror nu que dominou Baudelaireno spleen?* Baudelaire manifestou tambem pouca compreensaopara com o empreendimento de Hugo. "A verdadeira civiliza-cao — dizia ele — nao esta nas mesas dos espiritas." Mas paraHugo nao se tratava de civilizagao. Sentia-se realmente em casano mundo dos espiritos, que era, por assim dizer, o complementocosmico de uma vida domestica a qual, tampouco, faltava o ele-mento de terror. Sua intimidade com as aparigoes Ihes tira muitode seu espanto mas ela nao esta livre de agitagao e denun-cia algo gasto. A contrapartida dos fantasmas noturnos sao

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abstracoes sem significado, personifica§5es mais ou menos en-genhosas entao comuns em monumentos. "O Drama", "a Liri-ca", "a Poesia", "o Pensamento" e muitos outros do genero sefazem ouvir sem embaragos nas atas de Jersey, ao lado dasvozes do caos.

As imensas legioes do mundo dos espiritos — e isso poderiaaproximar o enigma da solucao — representam, antes de tudo,um publico para Hugo. O fato de sua obra acolher temas damesa dos espiritas e menos surpreendente que o seu costume .deescrever diante dela. O aplauso que o alem-tumulo nao Ihe pou-pou, Ihe deu, no exilio, uma previa daquela imensa ovacao queo aguardava, na velhice, em sua patria. Quando, no seu septua-gesimo aniversario, o povo da capital se apinhou em frente desua casa na Avenida d'Eylau, tanto a imagem da onda que re-benta no recife quanto a mensagem do mundo dos espiritosestavam resgatadas.

Por fim, a sombra insondavel da existencia das massas foitambem a fonte das especulagoes revolucionarias de VictorHugo. Em Os Castigos o dia da libertacao e assim descrito:

"O dia em que nossos ladroes, em que nossos tiranos sem contaCompreenderem que alguem se mexe no fundo da sombra."74

Pode um juizo revolucionario ser confiavel se representa amassa oprimida pelo signo da multidao? Nao seria esse con-ceito, antes, a forma nitida da estreiteza desse juizo, quaisquerque sejam suas origens? No debate da Camara do dia 25 denovembro de 1848, Hugo havia vociferado contra a barbararepressao de Cavaignac a Revolta de Junho. Mas, em 20 dejunho, no debate sobre os ateliers nationaux,15 ele cunhara aseguinte frase: "A monarquia tem seus ociosos; a republica,seus vagabundos".* Coexistem em Hugo o reflexo da opiniao

* Pelin, um representante tipico da baixa boemia, escreveu em suafolha, Les boulets rouges. Feuille du club pacifique des droits de I'homme,a respeito desse discurso: "O citoyen Hugo debutou na Assembleia Na-cional. Como era esperado, revelou-se como declamador, gesticulador eher6i da frase; perseverando em seu ultimo mural, de teor perfido ecalunioso, falou dos vadios, da miseria, dos malandros, dos mendigos, dospretorianos da revolta, dos condottieri — em suma, estafou a metafora

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superficial do presente e da mais credula opiniao acerca do futu-re junto ao profundo pressentimento da vida a se formar no seioda natureza e do povo. Hugo jamais conseguiu uma mediacaoentre esses dois termos; nao a sentir necessaria permitiu a imen-sa pretensao, o imenso alcance e tambem a imensa influencia desua obra sobre seus contemporaneos. No capitulo de Os Miserd-veis, "A Giria", se defrontam com impressionante brutalidadeambos os lados de sua natureza conflitiva. Apos ter lancadoolhares audaciosos a oficina lingiiistica do populacho, concluio poeta: "Desde 1789, todo o povo floresce em individuos apu-rados; nao ha pobre, porque ele teria direitos e, assim, tambema aureola que Ihe cabe; o pcbre-diabo carrega no intimo a honrada Franca; a dignidade do cidadao e uma armadura interna;quern e livre, e consciencioso; e quern tem direito de voto,reina".76 Victor Hugo via c.s coisas como as colocavam a suafrente as experiencias de uma carreira literaria coroada de exitoe de uma carreira politica brilhante. Foi o primeiro grande escri-tor a dar titulos coletivos as suas obras: Os Miserdveis, Os Tra-balhadores do Mar. Para ele, multidao queria dizer, quase naacepcao classica, a multidao dos clientes —a massa de seusleitores e eleitores. Em suma, Hugo nao era nenhum flaneur.

Para a multidao que acompanhava Hugo e que ele acom-panhava, nao havia nenhum Baudelaire. Mas sem duvida essaimiltidao existia para ele e o levava diariamente a sondar aprofundidade do seu proprio fracasso. E, entre as razoes paraver a multidao, esta nao era o menori Alimentava na gloria deVictor Hugo o orgulho desesperado que o castigava, por assimdizer, aos surtos. Provavelmente o aguilhoava ainda mais im-petuosamente seu credo politico. Era o credo politico do citoyen.A massa da cidade grande nao podia desconcerta-lo. Nela tor-hava a reconhecer a massa popular. Queria ser a carne de suacarne. Laicidade, progresso e democracia constituiam a ban-

para terminar com um ataque aos ateliers nationaux". Em sua HistoriaParlamentar da Segunda Republica, escreve Eugene Spuller: "Victor Hugofoi eleito com votos reacionarios". "Sempre votou com a direita, salvoem duas ou tres ocasioes, quando a politica nao tinha nenhum valor."(Eugene Spuller, Histoire parlamentaire de la Seconds Republique suivied'une petite histoire du Second Empire, Paris, 1891, p. Ill, 266.)

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deira que agitava sobre as cabegas. Essa bandeira transfigu-rava a existencia da massa. Obscurecia um limiar, aquele quesepara o individuo da massa. Baudelaire o protetor desse limiar,isso o distinguia de Victor Hugo. Assemelhava-se a ele, po-rem, porque tampouco traspassava com o olhar a ilusao socialque se assenta na multidao. Opunha-lhe, portanto, um ideal taopouco crftico quanto a concepgao que dela fazia Hugo. Oheroi e esse ideal. No momento em que Victor Hugo festejaa massa como a herofna numa epopeia moderna, Baudelaireespreita um refugio para o heroi na massa da cidade grande.Como citoyen, Hugo se transplanta para a multidao; comoheroi, Baudelaire se afasta.

Notas

1. Grande tela circular e continua, pintada de maneira enganosa sobreas paredes de uma rotunda iluminada por cima e que representa umapaisagem. (N. do T.)

2. Cf. Charles Louandre, Statistique litteraire. De la production intel-lectuelle en France depuis quinze ans, ultima parte, in: Revue des deuxmondes, tomo 20, 17." ano, serie nova, 15 de novembro de 1847, pp. 686-7.

3. Eduard Fuchs, Die Karikatur der europaischen Volker, primeiraparte, 4.a edicao, Munique, 1921, p. 362.

4. Administrador frances (1809-1891) que dirigiu as grandes obras quetransformaram Paris. (N. do T.)

5. Ferdinand Von Gall, Paris und seine Salons, Oldenburg, 1845, vol. 2,p. 22.

6. Id., ibid., p. 22.7. Monstro a que a lenda atribui o poder de matar com a vista.

(N. do T.)8. II, p. 333.9. Georg Simmel, Melanges de philosophic relativiste. Contribution a

la culture philosophique. Trad. A. Guillain, Paris, 1912, pp. 26-7.10. Cf. Edward George Bulwer, Eugene Aram. A Tale, Paris, 1832,

p. 314.11. Karl Marx e Friedrich Engels, Uber Feuerbach. Der erste Teil der

"Deutschen Ideologic", in: Marx-Engels Archiv, Frankfurt, 1926, p. 272.12. Edouard Foucaud, 1. c., pp. 222-3.13. " . . . Mas para Benjamin e fantasmagorico todo produto cultural que

hesita ainda um pouco antes de se tornar mercadoria pura e simples. Cadainovacao tecnica que rivaliza com uma arte antiga assume durante algumtempo a forma... da fantasmagoria: os metodos de construcao modernosdao origem a fantasmagoria das galerias, a fotografia faz nascer a fantas-

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magoria dos panoramas, . . . o urbanismo de Haussmann... se opoe aflanerie f antasmagorica..." (Cf. Walter Benjamin, Charles Baudelaire,Un Poete Lyrique a I'Apogee du Capitalisme, trad. Jean Lacoste, Paris,Petite Payot, 1982, p. 259.) (N. do T.)

14. Franz J. Gall (1758-1828), criador da frenologia, estudo do caraterdo homem segundo a conformacao do cranio; Johann K. Lavater (1741-1801), criador da fisiognomonia. (N. do T.)

15. Honore de Balzac, Le cousin Pans, Paris, Ed. Conard, 1914, p. 130.16. II, p. 637.17. No original alemao se le Baco. Sem diivida, o autor se refere a

Bacon (1561-1626), filosofo ingles, que em Novum Organum distinguequatro idolos ou ilusoes: os idolos da tribo, da caverna, da pra9a e doteatro. "Os idolos da praga (ou da feira) derivam da linguagem a qual seserve freqiientemente ou de nomes de coisas que nao existem (como sorte,movimento inicial, orbitas dos planetas etc.) ou de nomes de coisas queexistem mas nao sao confusas (como gerar, corromper, grave, leve etc.)".(Nicola Abbagnano, Diciondrio de Filosofia, trad. Alfredo Bosi, Sao Paulo,Ed. Mestre Jou, 2.* edicao, 1982, p. 508.) (N. do T.)

18. Cit. Adolphe Schmidt, Tableaux de la revolution francaise, Leipzig,1870, p. 337.

19. II, p. 333.20. Cf. Regis Messac, Le "Detective Novel" et I'influence de la pensee

scientijique, Paris, 1929.21. Cf. Andre Le Breton, Balzac, L'homme et I'oeuvre, Paris, 1905,

p. 83.22. Hippolyte Babou, La verite sur le cos Champfleury, Paris, 1857,

p. 30.23. Cf. Charles Baudelaire, Les fleurs du mat, Paris, Ed. Cres., 1928.

Introdu9§o de Paul Valery.24. II, p. 424.25. Edgar Poe, Histoires extraordinaires, trad. Charles Baudelaire, Paris,

1885, pp. 484-6.26. P. 345.27. Benjamin contrapoe Eros (emofao provocada por uma imagem) e

Sexo (cheque do desejo). E observa: "No fundo e a correspondencia per-feita entre essas duas formas de existencia — a vida sob o signo do ospf-rito e a vida sob o signo da sexualidade pura — que funda esta solida-riedade de escritor com a prostituta, cuja prova mais irrefutavel foi aexistencia de Baudelaire". (Cf. Walter Benjamin, loc. cit., p. 260.) (N.do T.)

28. Hans Makart (1840-1884). Pintor austrfaco. Simboliza para Benja-min a decoracao interior sobrecarregada. (Cf. Walter Benjamin, loc. cit.,p. 261.) (N. do T.)

29. Honore de Balzac, Modeste Mignon, Paris, Ed. du Siecle, 1850,p. 99.

30. Sigmund, Englander, Geschichte der franzosischen Arbeiter-Associa-tionen, Hamburgo, 1864, p. 126.