13
O flautista de Hamelin Robert Browning Ilustrações Antonella Toffolo Tradução Marcos Bagno Temas abordados Poesia romântica inglesa • Arte e sociedade • Música e magia GUIA DE LEITURA PARA O PROFESSOR PARA QUE POESIA? POESIA PARA QUEM? Em um mundo acelerado pela informação, a poesia para crianças, sem deixar de divertir, constitui valioso caminho de conhecimento e autoexpressão. A descoberta dos recursos expressivos da linguagem é uma conquista importantíssima no processo de aquisição e desenvol- vimento das capacidades verbais da criança. Ao longo desse pro- cesso, o contato com o texto poético constitui marco importante, na medida em que fornece à criança meios para decodificar as diferentes estratégias discursivas que povoam, desde sempre, seu mundo em expansão. O papel desempenhado pelo texto poético em sala de aula liga-se ao fato de ele pôr a própria linguagem em questão, libertando-a dos automatismos. Por essa razão, uma poesia 32 páginas O Flautista de HAMELIN Robert Browning tradução Marcos Bagno ilustrações Antonella Toffolo O AUTOR Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês, nasceu em 7 de maio de 1812, em Camberwell, região sudeste de Londres, e morreu em Veneza, em 12 de dezembro de 1889. Chegou a se preparar para a carreira diplomática, da qual logo desistiu para se dedicar à literatura. Casou-se com a também poeta Elizabeth Barrett (1806-1861) e mudou-se para a Itália, onde passou a maior parte da vida. Entre as suas obras mais conhecidas estão os poemas “Paracelsus” (1835) e “Sordello” (1840), a série de peças Bells and Pomegranates (1841-1846), a coletânea de versos Men and Women (1855) e “The Ring and the Book” (1868-1869), longo poema com mais de 20 mil versos. A ILUSTRADORA Antonella Toffolo nasceu em Milão, em 1961. Cartunista formada pela Escola de Quadrinhos de Milão, trabalha como ilustradora em jornais e editoras de livros. Atuando em associação com coletivos de quadrinistas (como Struwwelpeter e i Cani), publicou seu primeiro livro em 2005, obra que foi finalista do prêmio Comicon Micheluzzi. Em 2007, o Museu da Resistência de Bolonha dedicou à ela uma mostra e a Associazione Nazionale Amici del Fummetto e dell´Illustrazione (Anafi) lhe conferiu o Prêmio Albertarelli. O flautista de Hamelin é seu primeiro livro juvenil.

O flautista de Hamelin - Edições SM na medida em que fornece à criança meios para decodificar as ... O papel desempenhado pelo texto poético em sala de aula . ... no episódio

  • Upload
    ledien

  • View
    220

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

O flautista de HamelinRobert Browning

Ilustrações Antonella ToffoloTradução Marcos BagnoTemas abordados Poesia romântica inglesa • Arte e sociedade • Música e magia

GUIA DE LEITURA

PARA O PROFESSOR

PARA QUE POESIA? POESIA PARA QUEM?

Em um mundo acelerado pela informação, a poesia para crianças, sem deixar de

divertir, constitui valioso caminho de conhecimento e autoexpressão.

A descoberta dos recursos expressivos da linguagem é uma

conquista importantíssima no processo de aquisição e desenvol-

vimento das capacidades verbais da criança. Ao longo desse pro-

cesso, o contato com o texto poético constitui marco importante,

na medida em que fornece à criança meios para decodificar as

diferentes estratégias discursivas que povoam, desde sempre, seu

mundo em expansão.

O papel desempenhado pelo texto poético em sala de aula

liga-se ao fato de ele pôr a própria linguagem em questão,

libertando-a dos automatismos. Por essa razão, uma poesia

32 páginas

“E então me pareceu que um eco etéreo(mais doce que uma harpa, que um saltério)dizia: ‘Rejubilem-se, roedores!O mundo agora é só uma cantina!Venham provar sem fim os seus sabores,roer, moer, sorver a papa fina,jantar, almoço e ceia vespertina!’.E, como se um barril de puro melbrilhasse feito um sol à minha frentee me chamasse: ‘Rompe-me, sou teu!’,me vi dentro do Weser de repente...”.

Nos idos de abril de 1842, o poeta inglês Robert Browning, para divertir e confortar um menino adoentado, filho de um amigo, decide pôr em versos a antiga fábula alemã do Flautista de Hamelin, recolhida pelos Irmãos Grimm. Nasce assim uma pequena obra-prima: uma históriaencantadora, mágica e cheia de música, irresistível como as notas com que o Flautista hipnotiza ratos e crianças.Uma edição refinada, traduzida pelo poeta e linguista Marcos Bagno e acompanhada das dramáticas xilogravuras de Antonella Toffolo, queevocam o movimento Blaue Reiter e o expressionismo alemão.

O Flautista deHAMELIN

R o b e r t B r o w n i n g

tradução Marcos Bagnoilustrações Antonella Toffolo

ALB_O FLAUTISTA DE HAMELIN_CAPA_LA.indd 1 2/17/12 7:25 PM

O autOr Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês, nasceu em 7 de maio de 1812, em Camberwell, região sudeste de Londres, e morreu em Veneza, em 12 de dezembro de 1889. Chegou a se preparar para a carreira diplomática, da qual logo desistiu para se dedicar à literatura. Casou-se com a também poeta Elizabeth Barrett (1806-1861) e mudou-se para a Itália, onde passou a maior parte da vida. Entre as suas obras mais conhecidas estão os poemas “Paracelsus” (1835) e “Sordello” (1840), a série de peças Bells and Pomegranates (1841-1846), a coletânea de versos Men and Women (1855) e “The Ring and the Book” (1868-1869), longo poema com mais de 20 mil versos.

a ilustradOra Antonella Toffolo nasceu em Milão, em 1961. Cartunista formada pela Escola de Quadrinhos de Milão, trabalha como ilustradora em jornais e editoras de livros. Atuando em associação com coletivos de quadrinistas (como Struwwelpeter e i Cani), publicou seu primeiro livro em 2005, obra que foi finalista do prêmio Comicon Micheluzzi. Em 2007, o Museu da Resistência de Bolonha dedicou à ela uma mostra e a Associazione Nazionale Amici del Fummetto e dell´Illustrazione (Anafi) lhe conferiu o Prêmio Albertarelli. O flautista de Hamelin é seu primeiro livro juvenil.

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

2

“para crianças” não cumprirá seu papel enquanto subestimar

a inteligência do leitor, recorrendo a noções simplistas, a bana-

lizações de forma e conteúdo, a diminutivos pueris. Concor-

rendo com a velocidade do desenho animado, do vídeo e da

internet, a poesia deve ser capaz de recuperar o sabor dos jogos

e das brincadeiras, atentar para temas, experiências e sentimen-

tos que compõem o universo cada vez mais heterogêneo do jovem

leitor, estimulando-o a indagar, a criar e a refletir.

No século XVIII, o filósofo iluminista francês Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778) protestou contra a visão da criança como

adulto em miniatura. A infância, então, passou a ser considerada

uma etapa essencial do desenvolvimento, da qual dependia a emer-

gência do cidadão apto a participar plenamente da vida coletiva.

No mundo contemporâneo, a sociedade da informação e do

mercado impõe a adultização precoce da criança. A poesia re-

presenta nesse contexto um espaço protegido em que é possível

recuperar o sentido lúdico da experiência com a palavra, bem

como fomentar uma abordagem alternativa a sua instrumentali-

zação. Fruto de grande liberdade criativa, a poesia incrementa a

potência fabuladora da criança. Mergulhando-a no frescor da lín-

gua, ela ajuda a formar leitores ativos, mais habilitados a enfrentar

a prosa do mundo.

3

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

FORMAS E TEMAS

Com O flautista de Hamelin (1842), o inglês Robert Browning

(1812-1899) transforma em poema a tradicional fábula sobre o

flautista misterioso que livra a cidade alemã de Hamelin de uma

infestação de ratos. Um dos registros mais conhecidos da fábula

é o dos irmãos Grimm, de 1816, mas as origens da história, ba-

seada em diversas lendas medievais e fatos históricos, são bem

anteriores: as versões mais antigas datam do século XIII.

O flautista de Hamelin tornou-se, assim, referência para a cida-

de alemã – hoje em dia, é sua principal atração turística. Ao longo

do tempo, tentou-se fixar datas e locais precisos para os eventos

narrados na lenda, buscando dar-lhes mais veracidade. Em seu

texto, os irmãos Grimm mencionam uma controvérsia sobre a

data “real” do desaparecimento das crianças, que costuma ser re-

ferida como 26 de junho de 1284, embora também apareça em

alguns registros históricos de Hamelin a menção ao 22 de junho.

Uma moeda teria sido cunhada em memória do trágico aconte-

cimento, sinalizado por meio de diversas inscrições em lugares

públicos: nas paredes da prefeitura; nos portões da cidade; nos

vitrais de uma igreja. Uma dessas inscrições teria sobrevivido ao

longo do tempo, com o seguinte texto: “No ano 1284, no dia de

João e Paulo, 26 de junho, um flautista vestindo roupas de muitas

cores abduziu 130 crianças, nascidas em Hamelin e perdidas em

Calvery, nas proximidades de Koppen”.

É muito difícil, após tantos séculos e tantas versões, separar ver-

dade documental e imaginação na história desse flautista. O que

importa notar, contudo, é a extraordinária permanência da fábula,

o modo como foi sendo apropriada e recontada com o passar do

tempo. De todas as versões conhecidas, a de Browning tornou-se

célebre por sua originalidade na recriação da narrativa.

Tal originalidade evidencia-se em vários aspectos, a co-

meçar pelo reconto em versos. Valendo-se da liberdade for-

mal e temática instaurada pelo Romantismo, ele escreveu

um poema sem esquema rígido de estrofes, cujo número de

versos varia, com regularidade na presença da rima e na mé-

trica, quase sempre tendendo ao decassílabo na tradução de

Marcos Bagno (octassílabo no original inglês). Além disso,

Browning explorou especialmente a musicalidade do poema, o

que vem a calhar em uma fábula protagonizada por um flautista.

4

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

Esse é outro aspecto caro à poesia romântica, podendo ser ob-

servado em trechos como o da marcha dos ratos, com suas as-

sonâncias e aliterações: “[...] ratões, ratinhos, ratos rotos, ratos/

robustos, ratos ruivos, ruços ratos,/ velhos grisalhos, pândegos

gaiatos,/ pais, mães, avós, avôs, gêmeos, padrinhos,/ torcendo

rabos, roçando focinhos [...]” (VII).

Quanto ao conteúdo, Browning inova com a fala de persona-

gens que sobrevivem aos dois eventos principais da história: o

afogamento dos ratos e o sumiço das crianças. Os discursos do

rato e do menino manco são fundamentais para o entendimento

do sentido crítico do texto.

Por fim, ele também tira partido da ambivalência entre o len-

dário e o verídico ao criar um narrador poético que conta os “fa-

tos” em primeira pessoa. Apesar de já distante da época em que

ocorreu a história (“há bem quinhentos anos”), o narrador conta

com a vivacidade e o frescor de quem a tivesse testemunhado, até

mesmo advertindo seu ouvinte sobre a moral da fábula: “Assim,

guri, paguemos sempre à vista,/ especialmente a um credor flau-

tista!/ Se solfejou e deu cabo dos ratos,/ vamos cumprir à risca o

nosso trato!” (XV).

5

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

MAIS DE PERTO

A cruzAdA dAs criAnçAs

Um dos principais eventos históricos a que a fábula do flau-

tista parece aludir é a “Cruzada das Crianças”, ocorrida em

1212. Em verdade, foram duas as cruzadas infantis nesse ano,

nas quais milhares de crianças teriam sido conduzidas até

Jerusalém por um menino pastor. Reza a lenda que elas teriam

peregrinado até o mar Mediterrâneo esperando que este se abris-

se a sua passagem, como o mar Vermelho se abrira para Moisés

e os demais judeus em fuga do Egito, no episódio bíblico. O des-

tino dessas crianças, porém, à diferença do dos judeus no Êxo-

do, teria sido trágico: poucas lograram voltar para casa, sendo a

maioria raptada por traficantes e vendida como escrava.

RUMO AO SANTO SEPULCROAs cruzadas da Idade Média, que aconteceram entre os séculos

XI e XIII, foram campanhas militares conduzidas por nobres

cristãos da Europa Ocidental em direção ao Oriente Médio, com

o objetivo de restaurar o domínio cristão sobre a “Terra Santa”

(o que corresponde hoje a Israel e aos territórios palestinos sob

sua ocupação). A cidade de Jerusalém e toda a região estavam

então sob o controle dos turcos muçulmanos. As cruzadas eram

também uma espécie de peregrinação, cujos motivos religiosos

eram inseparáveis das razões políticas e econômicas.

Sem embargo, somente no século XX seria esclarecida a base

histórica por trás do lendário sobre as cruzadas infantis. Histo-

riadores demonstraram que a palavra pueri (“crianças”, em la-

tim), frequente nas crônicas, era um modo pejorativo de refe-

rir-se a camponeses muito pobres ou em situação de servidão.

Eram comuns, no século XIII, bandos de camponeses sem terra,

mendigos e doentes que vagavam em constantes migrações pela

Europa, deslocados ao sabor das crises socioeconômicas do pe-

ríodo. Assim, é provável que as cruzadas infantis tenham se ori-

ginado do trânsito dessas pessoas.

MAis referênciAs bíblicAs

A versão de Robert Browning para a fábula do flautista de

Hamelin acentua o mistério sobre o destino das crianças, mas su-

gere um final feliz para elas, ao contrário das lendas sobre as cru-

zadas infantis. Pela fala do menino manco, temos pistas de que

as crianças teriam chegado, enfim, à Terra Prometida, onde não

6

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

existem sofrimento nem servidão, onde a natureza é perfeita. O

menino lamenta não ter conseguido acompanhar o flautista e as

outras crianças, contando um pouco do que vislumbrou: um “país

de sonho”, onde “abelhas já nasciam sem ferrões,/ cavalos tinham

asas de falcões/ e cães venciam corças na corrida”. Na terra onde

tais coisas são possíveis, o menino certamente seria capaz de se

“endireitar e andar de pé”. Contudo, justamente por causa de sua

deficiência, ele perde para sempre essa oportunidade: “Manco fi-

quei, sem nunca mais ouvir/ falar daquela terra, se existir...” (XIII).

O personagem do menino manco lembra novamente Moisés,

que, depois de vagar quarenta anos pelo deserto como líder do

povo judeu, apenas vislumbra Canaã, morrendo antes de nela en-

trar. Da mesma forma, a passagem através do monte Koppelberg

e o afogamento dos ratos no Weser evocam a já mencionada tra-

vessia do mar Vermelho (assemelhando-se o destino dos ratos ao

dos soldados do faraó, sobre os quais se fecham as águas do mar

após a fuga dos judeus). Por outro lado, também o flautista se

equipara a Moisés, abrindo a montanha com sua flauta como o

profeta judeu dividiu as águas com seu cajado.

Tanto na narrativa bíblica como no poema de Browning há

oposição entre virtude e vício, pureza e corrupção. A história,

como a maioria das fábulas, encerra, pois, uma lição moral. Para

ilustrá-la, o poeta utiliza, aliás, uma citação bíblica: “Os ricos

entrarão no céu somente/ quando um camelo enfiar-se numa

agulha!” (XIV). A sentença encontra-se no evangelho de Mateus,

num trecho sobre o perigo das riquezas: “é mais fácil um camelo

entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Rei-

no de Deus” (19, 24). Os puros e virtuosos, como as crianças, são

recompensados com o paraíso, mas os avaros e gulosos, como os

governantes da cidade e os ratos, são punidos.

O CAMELO E A AGULHASegundo o filólogo Deonísio da Silva (A vida íntima das

frases. São Paulo: Novo Século, 2009), a imagem algo surrealista

se deveria a um erro de tradução da vulgata de São Jerônimo,

que teria confundido a palavra grega “kamilos” (corda grossa)

com “kamelos” (camelo). Assim, a frase original falava em passar

uma corda pelo buraco da agulha. Outra hipótese refere a

existência de uma porta estreita à entrada de Jerusalém chamada

“olho da agulha”. Por ela um camelo poderia passar desde que

baixasse a cabeça, em sinal de humildade, e se despojasse de

boa parte da carga, em sinal de desapego.

7

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

Exceção à regra são o rato que, apesar de mau como os outros,

se salva do afogamento e o menino manco, que, apesar de bom,

é privado da Terra Prometida. Isso porque ambos devem dar tes-

temunho do que ocorreu, revelando, com suas falas, o sentido da

magia do flautista: cada qual será recompensado de acordo com

seu desejo.

Arte e MArginAlidAde

Desde o momento de sua chegada, o flautista é mal recebido

e malvisto pela elite de Hamelin. Sua entrada repentina causa

espanto a todos, em primeiro lugar pela aparência excêntrica: ca-

belos soltos, rosto sem barba, roupa colorida. O casaco amarelo

e vermelho é a principal característica física do personagem, por

meio da qual ele se apresenta: “sou o Flautista do Manto Malha-

do”. Sua figura parece livre e alegre, destoando completamente

dos membros do Conselho e do Prefeito de “pança mole”. Ainda

assim, é recebido como uma aparição: “‘Parece até que vejo’,

alguém falou,/ ‘sair da sepultura o meu avô.../ É o Dia do Juízo

que chegou?’” (V). Aos olhos dos burgueses, o flautista aparece

como uma “estranhíssima figura”, cujas roupas são “vestes esqui-

sitas”, um “traje tão fora de moda”.

Depois de declarar seu ofício, o flautista passa a ser visto ainda

com mais desconfiança. Afinal, ele não é um simples extermina-

dor de pragas, mas um mestre “em musicais ciências/ que nunca

nenhum homem dominou.” Ou seja: é um músico cuja arte pode

comandar “tudo o que vive embaixo deste céu,/ e voa, e nada, e

corre, e foge em bando./ Ninguém igual a mim jamais nasceu!”

(VI). A associação entre arte e magia (os poderes encantatórios

da música) apenas reforça a má impressão causada pela excen-

tricidade do artista. Até o mero gesto de dedilhar o instrumento

parece suspeito ao povo de Hamelin, como se o músico fosse

uma espécie de viciado que não consegue ficar longe da droga:

“E quem estava ali pôde notar/ os dedos do mancebo a se esfre-

gar,/ como se lhes fizesse grande falta/ tamborilar naquela flauta

à toda” (VI).

Não bastasse isso, os governantes corruptos da cidade, para

quem só importa a riqueza, ainda estranham a modesta quan-

tia exigida pelo flautista como remuneração por seus serviços,

prometendo-lhe, sem intenção de pagar, um valor muito maior

do que o pedido: “‘Só mil? Cinquenta mil!’, diz em falsete/ o coro

de Prefeito e Gabinete” (VI).

8

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

A visão negativa sobre o artista e seu ofício é um dos aspectos

críticos do poema, que pode ter certo enraizamento na biografia

do poeta. Browning sofreu para se estabelecer no mundo literá-

rio inglês, suas publicações foram muitas vezes mal recebidas,

pela crítica e pelo público, e o reconhecimento do mérito de sua

obra, embora duradouro, foi tardio.

Ao mesmo tempo, Browning expressa a visão romântica

do artista como ser único, inspirado, superior. Era bastante

comum, no Romantismo, a valorização e idealização de per-

sonagens excêntricos, marginalizados pela sociedade. Nesse

ponto, é interessante notar o contraste entre a nobreza e a

elegância do flautista e os modos rudes e grosseiros da elite

política e econômica de Hamelin. O flautista é como um aris-

tocrata; conhece reis, xás e sultões, que o tratam da melhor

forma possível, apesar de ele ser um “flautista pobre”. Os no-

bres a quem o flautista serve reconhecem seu valor, respeitam

sua arte. Ele é esperado para jantar na casa do Califa de Bagdá,

em gratidão pelos serviços ali prestados: “Com ele nada tive a

barganhar,/ não creiam, pois, que aceito seu vintém!/ Se ou-

sarem me tratar com vil desdém,/ um outro som hão de me

ouvir tocar!” (X).

Já os gananciosos políticos de Hamelin usam o orçamento

público em proveito próprio, por isso as contas da cidade es-

tão sempre no vermelho: “Mil florins! O Prefeito ficou roxo/

e todo o Gabinete tremeu, frouxo./ Pois os lautos banquetes

do conselho/ causavam largos rombos nas finanças:/ vinhos

do Porto, champanhes de França...” (VIII). Sua semelhança

com os ratos pode ser novamente notada: ambos preocupam-

-se apenas em encher a própria barriga, ferindo os outros se

necessário. São também mentirosos, cínicos e covardes. Assim

que se veem livres da praga, não hesitam em expor todo o des-

prezo pelo flautista, chegando ao cúmulo de oferecer-lhe al-

guns tostões para comprar uma bebida, em vez do pagamento

acordado: “Pagar tal soma ao músico chinfrim,/ trajado de

ridículo arlequim?/ ‘Pensando bem’, falou rindo o Prefeito,/

‘no rio nossa praga se afogou,/ mas não negamos que é nosso

dever/ oferecer-lhe algo de beber/ e um capital no bolso, mais

que nada./ Porém, sobre a quantia mencionada,/ o amigo sabe,

foi uma piada/ que nosso humilde cofre não sustenta./ Que gra-

ça! Mil florins? Tome cinquenta!’” (VIII). A oferta imoral atesta

a visão que se tem do artista: um marginal, vagabundo, que

não precisa mais do que uma bebida, já que não tem profissão

9

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

“respeitável” nem residência fixa. Nas palavras do Prefeito, o

flautista é um “cigano preguiçoso arruaceiro,/ em trajes de bu-

fão mais esquisito!” (XI).

ÓCIO SEM DIGNIDADEO preconceito contra os artistas ecoa também em outras

fábulas. Um dos mais famosos exemplos é “A cigarra e a formiga”,

fábula atribuída a Esopo (Grécia, século VI a.C.), recontada pelo

francês Jean de La Fontaine (1621-1695). Na história, a cigarra

passa o verão a cantar enquanto a formiga trabalha. Quando

chega o inverno, a cigarra pede comida à formiga, mas esta

recusa, punindo a cigarra por sua atitude, que é julgada como

preguiçosa.

No entanto, toda a arrogância do Prefeito

vai por água abaixo quando o flautista decide

se vingar, sequestrando as crianças da cidade.

Apesar de os políticos reconhecerem que de-

veriam ter pagado pelo serviço, que o seques-

tro ocorreu “por cupidez”, o músico será visto

como alguém que se vingou de forma injusta

e cruel. O vitral da igreja, construído depois

da tragédia, enfatizará “o drama das crianças

abduzidas”. Do ponto de vista dos habitantes

de Hamelin, pouco importa o depoimento do

menino manco, mostrando que as crianças

ficaram bem, tendo alcançado o paraíso ter-

restre. O sequestro serve apenas para reforçar

a hostilidade contra os artistas e justificar seu

banimento: “E, pra fixar melhor toda a lem-

brança,/ o último percurso das crianças/ foi

batizado Rua do Flautista,/ sempre fechada a

músicos e artistas” (XIV).

O grOtescO e O ExpressiOnisMO

Outro ponto alto do poema de Browning é

a construção dos personagens, caracterizados

muitas vezes de maneira cômica e grotesca.

Browning coloca em relevo os traços positivos do flautista, ao

passo que os governantes de Hamelin são impiedosamente re-

tratados com todos seus defeitos. É o caso do Prefeito, sujeito

“nanico”, com “uma barriga enorme, feia e torta”, que só pensa

em comer e enriquecer.

10

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

O GROTESCO E O SUBLIMEO grotesco era um estilo caro aos escritores do Romantismo.

Em um dos principais textos sobre a estética romântica, o “Prefácio

de Cromwell”, o francês Victor Hugo (1802-1885) defende o

grotesco como a característica principal do Romantismo. Ele seria

a outra face do belo e do sublime. O estilo grotesco trabalha com

elementos como o exagero, a deformidade, a feiura, o ridículo,

buscando em geral um efeito cômico.

As gravuras de Antonella Toffolo acompanham as intenções

do poeta. Quando os governantes recusam-se a pagar o flautista,

vemos uma ilustração comparando o Prefeito a um rato carre-

gando um saco de dinheiro. Toffolo também distorce o rosto dos

habitantes de Hamelin para mostrar o horror e a aflição ante a

infestação dos roedores, representados em tamanho ampliado,

como se vê nas partes I e II. Logo percebemos que o objetivo

da artista não é alcançar o realismo ou a verossimilhança, mas

acentuar determinadas características da cena ou dos persona-

gens para enfatizar algum sentimento ou ideia, à maneira ex-

pressionista.

A VANGUARDA EXPRESSIONISTAO Expressionismo foi um movimento artístico de vanguarda,

que nasceu na Alemanha, na virada do século XX, e durou

aproximadamente até os anos 1920 (embora, em sentido lato,

defina uma tendência permanente da arte). Surgido inicialmente

como uma reação ao Realismo impressionista, tal movimento

propõe uma arte mais pessoal e intuitiva, com predomínio da

visão interior do artista sobre os estímulos externos. Angústia,

senso trágico e violência são alguns traços dessa estética.

O aspecto frequentemente sombrio da arte expressionista

deve muito ao período em que floresceu, marcado pelo cresci-

mento intenso e rápido das cidades e pela miséria e destruição

da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A vitalidade e o oti-

mismo que estiveram na origem do movimento seriam estilha-

çados pela experiência da guerra. O lado atraente da modernida-

de também perderia encanto para os efeitos desumanizadores e

alienantes da vida urbana.

11

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

VERSO E REVERSO

A partir do amplo universo de referências presentes na poesia

de Robert Browning, o professor pode alimentar as discussões

suscitadas durante a leitura dos poemas por meio de algumas

atividades, como as que sugerimos a seguir.

dO cOntO AO pOeMA Vimos que o poema de Robert Browning é mais uma re-

criação da antiga lenda sobre o flautista de Hamelin. Para a

análise das particularidades desta versão poética, será pro-

dutivo compará-la com outros registros da lenda. Um dos

mais significativos é o dos irmãos Grimm, já que foi um dos

grandes responsáveis pela chegada da fábula até nós. Após a

leitura de ambos os textos, o professor pode conduzir uma

análise comparativa entre a fábula dos Grimm e o poema de

Browning, levantando semelhanças e diferenças formais e te-

máticas. Pode-se notar, entre outros aspectos, o caráter sóbrio

do texto dos irmãos Grimm, que a princípio se empenham mais

em registrar o modo como a história é recontada pela tradição

oral alemã do que em inventar elementos ou reinterpretar a

lenda. Todavia, encontram-se aí as bases para a inventividade

de Browning. O poeta inglês criou a personagem essencial do

menino manco, mas já havia, na fábula dos Grimm, três crian-

ças que ficaram para trás: uma cega, outra surda e uma que

voltou para buscar seu casaco. Embora não tenham uma fala

significativa, como a do menino manco, sua presença misterio-

sa provavelmente inspirou a criação de Browning. Outro termo

interessante de comparação é a caracterização do flautista: mais

soturna no texto dos irmãos Grimm, mais alegre e positiva no

poema romântico.

AtuAlizAçãO dA fábulA

A corrupção dos governantes de Hamelin é um dos ele-

mentos que conferem atualidade ao poema de Browning. Já o

lugar do artista em nosso mundo parece ter mudado em rela-

ção ao que se vê no livro; no entanto, a primazia do mercado

sobre a própria criação não seria ainda um modo de controle

e desvalorização do artista independente? Essas são apenas

duas questões, entre outras, que podem servir de mote a uma

atividade de criação. A ideia é pensar que mudanças a história

sofreria caso se passasse nos dias de hoje. A discussão pode ser

12

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

um ponto de partida estimulante para que os alunos, depois

de analisado o texto, elaborem a própria versão de O flautista

de Hamelin. Cada aluno deve reescrever a lenda, modifican-

do-a a seu modo.

pesquisA históricA

Outra proposta de criação é realizar o caminho inverso da

atividade anterior: em vez de trazer a história para os dias atuais,

os alunos tentam imaginar que outras fontes e fatos teriam

contribuído para a criação do lendário sobre o flautista de

Hamelin. A atividade envolve a pesquisa das referências me-

dievais aí em jogo, como a Cruzada das Crianças. Ela também

propicia uma reflexão sobre o vaivém entre fato e ficção na lite-

ratura e na própria construção do relato histórico, que sempre

conta com o recurso da imaginação para preencher as lacunas

da informação histórica.

A partir da pesquisa e da discussão, os alunos produzem no-

vas histórias relacionadas à fábula do flautista. Admite-se aqui

o trabalho com diversos gêneros: o depoimento em primeira

pessoa, o relato objetivo em terceira pessoa, a carta etc. Ou-

tras formas, não discursivas ou não verbais, também podem ser

exploradas como documentos de época: ilustrações (como os

vitrais da igreja mostrando o sequestro das crianças), moedas,

inscrições, objetos etc.

OUTRAS VIAGENS(Sugestões de livros e filme)

LIVROS

pArA O prOfessOr

• GUINSBURG, Jacó (org.). O Expressionismo. São Paulo:

Perspectiva, 2002. (Coleção Stylus).

Conjunto de ensaios sobre as diversas modalidades de ma-

nifestação da estética expressionista na pintura, na literatu-

ra, na música e nas demais artes.

13

O flautista de Hamelin RobeRt bRowning

Elaboração do guia Chantal Castelli, doutora em teoria literária e literatura Comparada pela FaCuldade de FilosoFia, letras e CiênCias humanas da universidade de são paulo; rEvisão marCia menin.

• SCHWOB, Marcel. A Cruzada das Crianças/ Vidas imaginá-

rias. Trad. Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2011.

A edição traz duas obras de Schwob (1867-1905), ambas

originais de 1896. Em A Cruzada das Crianças, o escritor

francês escreve os relatos de oito personagens que teriam

de algum modo participado da cruzada, cada qual com

um ponto de vista diferente sobre o evento. Schwob segue

o princípio da lenda, em que se misturam ficção e histó-

ria, já que reescreve e reinterpreta o material histórico

das próprias lendas, recolhido em crônicas medievais.

pArA O AlunO

• GRIMM, Jacob e William. Contos de Grimm. Trad. Heloisa

Jahn. São Paulo: Cia. das Letrinhas, 1996.

Versão dos contos recolhidos pelos irmãos Grimm, incluin-

do a fábula sobre o flautista de Hamelin.

• TAVARES, Bráulio. O flautista misterioso e os ratos de Hamelin.

São Paulo: Editora 34, 2006.

Nessa edição, o poeta Bráulio Tavares reconta a fábula no

formato bem brasileiro e popular do cordel, dando à his-

tória um novo tom. O poema é complementado por dois

textos, um sobre as origens da lenda sobre o flautista e outro

sobre a literatura de cordel.

• ANTOINE-ANDERSEN, Véronique. Arte para compreender

o mundo. São Paulo: Edições SM, 2007.

Nesse compêndio com informações diversificadas sobre o valor

da arte como instrumento de interpretação do mundo, há uma

bonita seção dedicada à arte expressionista, com reproduções de

telas da pintora brasileira Anita Malfatti (1889-1964) e do pintor

norueguês Edvard Munch (1863-1944).

FILME• A lenda da flauta mágica (The Pied Piper). Reino Unido/

EUA, 1972. Direção: Jacques Démy. Colorido. 90 min.

Elenco: Donald Pleasence, Donovan, Jack Wild e John

Hurt, entre outros. Filme musical rodado na Alemanha. No

papel do flautista, um ícone da música folk, Donovan, que

tenta salvar uma cidadezinha infestada pela Peste Negra.