O fotógrafo Rute Coelho Zendron

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  • O fotgrafo

    Rute Coelho Zendron"

    Este texto tem como tema central a fotografia, mais especifi-camente o trabalho de Sebastio Salgado. Sobretudo nos interessa-va seu material fotogrfico relacionado ao que ele denominou Mo-vimento das Populaes. Dessa forma analisamos, ou melhor, observa-mos, atravs de suas fotos, como as coisas chegaram a ser comoso, que racionalidade promove o movimento de tantos, de ondepara onde, quem se movimenta, por fim, quais as rupturas quefixam ou fazem movimentar grupos humanos que vamos chamarde populaes.

    Observar esses movimentos, dentro da contemporaneidade,obviamente possvel e j foi feito atravs de trabalhos analticosde disciplinas como a Histria, a Antropologia, as Relaes Interna-cionais e outras. Podemos dizer que as migraes internacionais cres-ceram de importncia desde os anos 80 e esto sendo observadasmais de perto, sobretudo em funo do que os ricos chamam de"Invaso" de seus espaos pelos habitantes das ex-colnias, perif-ricos do capitalismo contemporneo.

    * Doutoranda em Cincias Sociais - PUC - SP.

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    No entanto, desde de sempre, os homens migram ... foi assimna virada do sculo passado, onde observamos a transferncia demuitos europeus para a Amrica, incluindo o Brasil. O Brasil que jno pode ser pensado sem estes movimentos migratrios, so ra-bes (entre Judeus e Libaneses), Japoneses, Italianos, Alemes, Polo-neses, etc.

    O tema no era desconhecido, no entanto, a forma de olharpoderia ser. Olhar a fotografia. A fotografia de Sebastio Salgadonos pareceu um caminho para analisar o que chamamos "regulao",em outras palavras, achamos que o Sebastio Salgado deu visibili-dade a este estado de coisas.

    Como ele mesmo aponta, seu livro xodos conta a histria dahumanidade em trnsito, uma histria perturbadora, pois poucosabandonam sua terra por vontade prpria. Tornam-se migrantes,refugiados ou exilados, tanto faz o termo, qualquer um deles car-regado de constrangimentos. Fogem da pobreza, da represso oudas guerras.

    Dessa forma avanam como podem, viajam sozinhos, com afamlia ou em grupos. Muitos no "viajam", fogem mesmo...

    Voltando um pouco e ainda falando do artigo. Encaminha-mos a pesquisa de modo institucional, ela fez parte de um progra-ma de iniciao cientfica, e j foi concluda.

    Em funo disso o trabalho comeou com um estudo sobrea fotografia, de forma geral, sempre buscando seu conceito e suaspossveis leituras. Obviamente fizemos a ligao da fotografia coma Histria, relacionando com as pesquisas de historiadores notrios.Relacionamos os que haviam de uma forma ou de outra se utiliza-do dela, observando como de costume os primeiros, os segundos,etc. Enfim, era um trabalho dentro das normas (as recomendadas)e isso no difcil de fazer, e s seguir o manual.

    No entanto, em dado momento foi possvel largar o manual... nos interessava, o que tinha a ver com nosso desejo, as possibili-dades de responder as perguntas. Ou pelo menos uma ou duas...

    Conhecer melhor o fotgrafo ajudaria, sua trajetria e sua his-tria de vida, fazia parte.

    Passou a ser importante saber um pouco dele e manter nossaidia na cabea. A de que sua fotos e sua maneira de fotografar nos

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    permitia visualizar as tecnologias de poder e de regulao das po-pulaes, aquilo que entendamos como racismo de estado.

    Agora sim, nosso interesse se tornava claro. Pensar a partir dasfotos o Racismo. Pensar como as coisas chegaram a ser o que so.

    Trabalho grande, tnhamos (somente), para comear, uma re-ferncia de Michel Foucault de um de seus cursos ministrados noCollge de France em maro de 1976, que tratava da Genealogia doRacismo.

    Foucault nos interessa medida que nos faz observar a formade fazer pesquisa. Algumas coisas seguramos, outras ainda no. Umexemplo: comeamos a prezar as histrias particulares, as pequenashistrias que esto em torno do livro. O autor observado nopela autoria, ou autoridade de sua produo, mas tambm pela suapequena histria. Quem ? Ao que est respondendo quando escre-ve ou pesquisa? Isso legal!

    Depois a prpria contribuio de Foucault, quando trabalhaas relaes de poder, quando chama a ateno do poder disciplinarque se aplica ao corpo por meio das tcnicas de vigilncia e doslugares de punio (penso que essa a mais difundida de suassacaes). Mais adiante, outra denominao aparece, agora obiopoder, que se exerce sobre as populaes, a vida e os vivos.

    Neste momento, com esses temas poder / fazer viver edeixar morrer / populaes / e racismo, comeamos a olhar omaterial fotogrfico do projeto de Sebastio Salgado.

    Vamos ento ao exerccio...

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    Foto 01. Hospital de Labone, sul do Sudo, 1995.

    O Fotgrafo

    O autor sempre corre o risco de ser suplantado por sua obra,ou como nas palavras de Foucault: "A obra que tinha o dever deconferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser aassassina do seu autor".

    E esse fato torna-se mais evidente no que concerne fotogra-fia. Ao folhear uma revista ou jornal, meios de maior difuso defotografias, v-se as imagens, mas no se procura quem as fez, ofotgrafo permanece incgnito na maioria das ocasies.

    Isso deve-se ao fato de a fotografia ser percebida como "c-pia", "imitao" da realidade, e no uma imagem construda. Refe-rindo-se a isso, Roland Barthes afirma: "A foto literalmente umaemanao do referente'. E Susan Sontag: 'Mas a fora da imagem0 fotogrfica origina-se no fato de serem elas realidade materiais pordireito prprio, depsitos ricos em informao deixados no rastro

    a: da coisa que as emitiu...". Por realizar-se por um processo qumico,

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    em que a imagem se imprime no filme, ou outro material devida-mente preparado, a fotografia tem esse aspecto de suplantar o fo-tgrafo, visto que este est fazendo uma "cpia", e no criando,como em uma pintura.

    Porm, a imagem fotogrfica construda a partir dafocalizao, enquadramento e perspectiva do fotgrafo. Este, aorealizar sua fotografia "imprime" na sua histria, suas construesde verdade, etc., ou seja, tudo o que contribuiu para a sua constru-o, como sujeito.

    Este fotgrafo/sujeito, historicamente construdo, ao deter-minar a temtica de suas fotografias, est fazendo uma escolha,portanto a fotografia no apenas "a emanao do referente"4,mas a emanao de um referente previamente escolhido, enquadra-do, focalizado. E so esses aspectos, considerados tcnicos, como aperspectiva, a focalizao, o enquadramento, o uso da luz, etc., quevo diferenciar e consagrar um fotgrafo, tornar-se sua "assinatu-ra", da mesma maneira que o uso das cores, o tema, as pinceladas,etc., so a "assinatura" de um pintor. A fotografia torna-se, portan-to, uma linguagem do fotgrafo. Linguagem em que muitas vezes preciso conhecer o fotgrafo, sua histria, seus objetivos, para com-preender sua obra.

    A fotografia, quando nomeada, ou seja, quando realizada porum fotgrafo "consagrado", e no mais incgnito, percebida di-ferentemente por quem a observa. Novamente cito Foucault paraesclarecer esse aspecto:

    [...I o nome do autor serve para caracterizar um certo modo de ser dodiscurso: para um discurso, ter um nome de autor, o fato de se poderdizer 'isto foi escrito (fotografado) por fulano' ou 'tal indivduo oautor', indica que esse discurso no um discurso flutuante e passagei-ro, imediatamente consumvel, mas que se trata de um discurso quedeve ser recebido de certa maneira e, que deve, numa determinadacultura, receber um certo estatutos.

    coA partir dessa afirmao de Michel Foucault, pode-se perce-

    ber que as fotografias de Sebastio Salgado tm esse carcter deOserem recebidas e percebidas diferentemente por quem as observa.o

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    Elas no tm esse aspecto de um discurso flutuante e passageiro emgeral, presente no fotojornalismo. E isso deve-se "narrativa" queSebastio Salgado construiu com suas fotografias.

    Sebastio Salgado consagrou-se por suas fotografias em pre-to e branco, ele mesmo se justifica afirmando: "J aceitei muitareportagem em cor. Mas a minha cor sempre foi um preto e bran-co colorido. A cor era um motivo de desconcentrao" . Tambm reconhecido pela contraluz, cuja preferncia se deve ao fato deque, novamente usando suas palavras: "As coisas tm mais fora,tanto mais detalhes, tanto mais relevo, todos os relevos se acentu-am'". Mas destacou-se principalmente pela fotodenncia.

    A temtica de suas fotografias cultuada e criticada. Criticadapor verem em suas fotografias uma "esttica da misria", comoafirma a crtica de arte Ingrid Sschy. E o filsofo Jean Baudrillard,analisando mais profundamente, critica-o afirmando:

    Ele admirvel se quisermos, mas suscita o problema do voyerismosociopolitico. A sua fotografia trata do humanismo da miserabilidade[...] Ele inscreve, uma verdade, ele no fotografa o que , mas o que nodeveria ser. Isso uma posio moral de denegao. Se essa uma fotomoralizante, em relao prpria imagem ela um contra-senso. Seriapreciso que a imagem pudesse estar l por sua especificidade, e nocurto-circuitada por uma idia moralista, histrica..."

    E, cultuada por quem v Sebastio Salgado como um fot-grafo "engajado", preocupado em denunciar as injustias sociaisexistentes no mundo, temtica presente no lbum Terra, relaciona-do problemtica dos sem-terra, e no lbum Trabalhadores, emque registra a difcil realidade dos trabalhadores braais em vriospases.

    Sebastio Salgado afirma querer provocar debate com suasfotografias, no sentido de ajudar a mudar alguma coisa, ao destacardeterminado acontecimento. Essa ao de denncia, faz dele um

    cshumanista.Sebastio Salgado entrou em contato com a fotografia por

    CDacaso... Ele e sua esposa, Llia, foram para Paris, em 1969, ondeSebastio pretendia fazer doutorado em Economia. Naquele per-

    a.)

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    odo trabalhou descarregando caminhes, trabalho difcil, teve pro-blemas de adaptao, saudades, o que resultou em problemas desade. Um mdico, amigo seu, concluiu que ele precisava descan-sar, e convidou-os, ele e a esposa, para passarem frias em sua casaem Haute Savoie, sudeste da Frana. Sebastio e Llia aproveitarame passaram em Genebra para comprar uma cmera fotogrficapara os estudos de arquitetura de Llia.

    A partir da, Sebastio passa a fotografar, e, constri um labo-ratrio em seu quarto na Cidade Universitria, Paris. Fotografava erevelava filmes para outros estudantes. Seu primeiro trab alho foiuma reportagem para Jorge Amado, quando este recebeu o pr-mio Gulbenkian de Fico, em 1971.

    Salgado foi trabalhar na Organizao Internacional do Caf,em Londres, perodo em que quase desistiu da fotografia. Mas aofazer viagens de trabalho frica levava a cmera fotogrfica. So-bre esse perodo Sebastio Salgado comenta: "As fotografias medavam vinte vezes mais prazer do que os relatrios econmicosque tinha de escrever"). Isso o levou a pedir demisso e dedicar-se fotografia. Voltou a Paris e iniciou seu trabalho como fotojennalista.Trabalho que lentamente foi sendo reconhecido, possibilitando oseu contrato como free lancei- pela agncia Sygma, e mais ta rde pelaGamma, que Sebastio considera sua escola de fotojornalisrno, ondeaprendeu "a analisar, a sintetizar, a ver o que era importante, e nissome ajudou muito a formao de economista'.

    Em meados da dcada de 80 Llia deixou seu trabalho e pas-sou a organizar exposies das fotografias de Sebastio Salgado,ento suas fotografias passaram a ser mais vendidas, mais comenta-das, o que possibilitou a organizao de uma estrutura prpria, aAmazonas Imagens.

    Sebastio Salgado, atento ao mundo e sua Histria, ao obser-var o processo de migrao de populaes, d visibilidade a este,desenvolvendo o projeto fotogrfico Movimento das Popu/aes. Oestudo dessas fotografias possibilitar analisar o movimento migra-trio ao final do sculo XX, identificando e visualizando astecnologias de poder e de regulao de populaes presen tes.

    Outro fator ou razo pode ser apontado no desenho do "mapaCmundi", que se altera. Reproduzir mapas um ato especificamente

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    geopoltico, um poderoso elemento de redistribuio de popula-o. O redesenhamento do mundo tambm faz ser avaliada a ques-to do aparecimento de povos e "etnias" politicamente domina-das, sobretudo no caso da URSS.

    Finalmente, voltaram cena os "visados histricos": judeus,armnios, ciganos e os mais contemporneos e no menos visados:negros, hindus, rabes, somados ainda aos "latinos", trazidos peloxenofobismo da direita, que ganha adeptos entre aqueles que sesentem ameaados em vrios sentidos pela presena do estranho.

    At aqui, racismo tem sido definido num contexto especfico(o mais geral), antropolgico e preocupado em responder as ques-tes postas sobre as diferenas. E razovel, no entanto, no comela que vamos lidar.

    A perspectiva que tomamos aquela que recupera a raa pelaidia da guerra de raas, ou seja, a questo da raa no desaparece,porm recuperar-se mediante algo distinto que o Racismo deEstado.

    Podemos nos referir aqui teoria clssica da soberania, parapensar guerras e raas, parte do pensamento de Michel Foucault,sobretudo nos argumentos da Genealogia do Racismo. Nela sabemosque o direito de vida de morte era um dos atributos fundamentaisda soberania. Assim, o direito de vida morte, um direito estra-nho, no ento natural. Nesse sentido quer dizer que o soberanotem direito de vida e de morte, em outras palavras, pode fa.zer morrere deixar viver. O sujeito no de pleno direito nem vivo nem morto,s graas ao soberano tem o direito de estar vivo ou de estar mor-to. No h equilbrio, no h simetria. Buscando historiar esse direi-to podemos perceber que no h pelo tempo muitas transforma-es, ao antigo direito de soberania, fazer morrer ou deixar viver, vose interpenetrando outras coisas, atravessando-o mesmo, ora mo-dificando ora somando, resultando num poder quase inverso: Poderde fner viver e deixar morrer. Com segurana, essa transformao nose produziu rapidamente. A questo do direito, sobretudo da Teoria

    cr: do Direito Vida, longa entre juristas, historiadores e outros. Dec..)^ fato, a preocupao com a vida acaba por fazer existir o soberano.

    Movidos pela necessidade e pelo perigo os indivduos se renem

  • O FOTGRAFO

    De certo h uma discusso na filosofia politica que pensa oproblema da vida.

    No entanto, o que quero evidenciar mesmo a teoria polti-ca e mais as tecnologias do poder. Essas tcnicas de poder (sc.XVIII) estavam centradas no corpo do indivduo, sua separao,seu alimento, sua vigilncia. Eram "vistos" e tentava-se melhorarsua utilidade (exerccios, adestramento, etc.). So tecnologias dis-ciplinares.

    O que se segue a essa tecnologia no vai substitu-la, at por-que segue outra escala. No entanto, usa dessa "disciplinarizao"inicial. Essa nova tcnica no suprime a anterior, usa dela, mas utili-za-se de outros instrumentos bem distintos. A nova tecnologia, sedirige multiplicidade dos homens, no mais corpos individuais(vigiar, instruir, utilizar, castigar), so agora como uma massa, afeta-das por um processo de conjunto que so prprios da vida: nascimen-to, morte, enfermidades, etc. Em suma, a tomada de poder no ocorremais na direo do homem corpo, porm na direo do homemespcie, que pode ser chamada de bio-poltica da sociedade. Com o bio-poder, nascem as tcnicas de averiguao da sociedade, que tm aver com os processos que j mencionei, como as taxas de reprodu-o de uma populao, natalidades e mortalidades e da as medidasestatsticas. Sobretudo as mortalidades so apreciadas no somentecomo causadoras da morte, mas como fatores permanentes desubtrao de foras, de gastos econmicos, tanto pelo que deixa deproduzir, tanto pelos cuidados que podem acarretar. Com essesfenmenos surge a higiene pblica, normalizadora das prticas cotidi-anas que passam ento a desqualificar as prticas consideradas "po-pulares" e "tradicionais", enfim, a medicalizao da populao.

    Outra interveno da bio-politica tem a ver com a sada doindivduo da produo. A velhice reduz as capacidades e aumentaos acidentes, as enfermidades, as anomalias... Para isso, a bio-polti-ca vai usar das instituies de assistncia... Porm com mecanismomais sutil ou mais racional; seguros, poupanas de seguridade, etc.,tambm, a bio-poltica vai estar atenta aos problemas do meioambiente (enchentes, enxurradas), e o no natural, as cidades. Estamosat aqui evidenciando a bio-poltica. No entanto, fundamental quese perceba que essa "nova" tecnologia tem seu entendimento base-

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    ado num corpo inumervel de corpos: a bio-poltica tem a vercom populaes.

    importante perceber que essa tecnologia de poder bio-po-ltico passa a empregar mecanismos (diferentes dos disciplinares).So eles: as previses, as estimativas estatsticas, as medidas globais,etc.

    Passa a ter que modificar isso, passa a ter que baixar a morta-lidade, a prolongar a vida, estimular os nascimentos.

    Trata-se, sobretudo, de estabelecer mecanismos reguladores,que promovem um equilbrio, estabelecem uma medida, no maisdo indivduo, e sim global. No os preocupa o indivduo comodetalhe, mas como estados globais de equilbrio de regularidades.

    Se antes a ao era entre corpos - vigilncia e punio - agoraa ao sobre a populao.

    Em resumo, no se exerce sobre o homem uma disciplinamas uma regulao. E regulao faz viver e deixa morrer. E umnovo poder. Lembramos que o poder de soberano podia fazermorrer. Agora h um deslocamento, o de fazer viver e deixar mor-rer. O poder cada vez menos direito de fazer morrer, e cada vezmais direito de intervir para fazer viver, o direito de intervir namaneira de viver para controlar seus "acidentes", seus imprevistos,suas deficincias. Agora, nessas condies, a morte representa o li-mite do poder. Sobre ela o poder no atua mais, a no ser estatisti-camente, e a no estamos falando da morte e sim da mortalidade(esta sim pode ser avaliada). Lembramos de novo que no direito desoberania, a morte era a evidncia do poder do soberano, era pas-sagem para outro soberano, no o debaixo, mas o de cima, umpoder ao outro, do direito civil, pblico, de vida e de morte, a umdireito de vida eterna, ou castigo eterno.

    Podemos confrontar aqui em muitos aspectos os sistemas desoberania e seu direito de vida e morte, e o novo sistema (contem-porneo) e seu direito de vida e morte. Um representado por me-canismos disciplinares e outro por mecanismos reguladores.

    No entanto, o que importa mais perceber um e outro, aeficcia, e a ineficcia, os corpos, a articulao. Identificar o segun-do como o lugar de onde escolho para buscar o entendimento deuma racionalidade. A racionalidade que tenta dar conta do projeto

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    j est "escolhida". Parte do entendimento, da regulao das popu-laes, vista como fenmeno global ou bio-sociolgico de massashumanas, seria ento uma relao depopulao / processos / biolgicos /mecnicos / reguladores; no significa que no se observa as caracters-ticas do direito de soberania (pois ele no desaparece, ele no substitudo), no excludo (pois est em nvel inverso) mas simque se privilegia o entendimento de regulao das populaes. Issoquer dizer que o poder agora se estende desde o orgnico at obiolgico, desde o corpo at a populao. um jogo duplo, e nopode ser visto de outra forma. No entanto permanece. Como serelaciona bio-poder, Estado e Racismo.

    No se trata de marcar, aqui, o nascimento do racismo; comovimos ele anterior e j estudado. O que inscreve o racismo nosmecanismos do Estado precisamente a energia do bio-poder. Racis-mo a ruptura introduzida, diz quem deve morrer e quem deve viver,qualifica as raas (boas/ruins), mostra diferenas entre um grupo eoutro, produz uma censura biolgica. Essas so as funes do ra-cismo "fazer cortes" dentro do biolgico. A outra funo do racis-mo de permitir uma relao cruel, mas efetiva, matar alguns parapromover a vida de outros.

    Isto no um privilgio do homem contemporneo, j sedisse que para viver seguro necessrio eliminar o inimigo, matarpara viver...

    Quem o inimigo?Se queres viver necessrio que outro morra.E uma maneira nova de ver a coisa eles no meus adversrios,

    mas pem em risco a minha segurana. O Estado estabelece estasegurana das populaes.

    A raa, o racismo, so as condies de aceitabilidade do direi-to de matar em uma sociedade de normalizao, onde se tern o bio-poder, ento, o racismo indispensvel. O racismo (esse) esta longede ser simples desprezo ou dio de uma raa sobre outra, ligadodiretamente tcnica de poder, tecnologia de poder. "Se o poder

    de normalizao quer exercer o antigo direito soberano de matar,cotem que passar pelo racismo".

    Para concluir, importante reafirmar que pensamos esse mo-Ovimento hoje como fenmeno de agora como parte de uma verda-

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    de contempornea que tem relao com nossa maneira de viver, deproduzir, de urbanizar, de comunicar... Para alguns seria aglobalizao... interessante notar como esta a primeira e princi-pal relao que o pblico fez e faz cada vez que "comunicamos"este trabalho. A palavra da hora, fcil; a mdia fez ela ficar fcil.Muitos defendem que a globalizao no seria um fenmeno indi-to, pode at ser. De certo, poderamos ir longe com isso, no entantoo que nos interessa observar no a sua origem nem to pouco suaoriginalidade mas a reao que provocou. H grupos que aceitamcomo verdade, e como algo necessrio e que todos mais cedo oumais tarde tero que enfrentar. Portanto imperativo preparar-se,nas escolas, nas empresas, nas ruas, em qualquer lugar, impossvelescapar...

    H os que reagem, um grupo bem menor; estes nos interessano pelo romantismo de todas as minorias, mas pela ao. Obser-var a globalizao importante se observarmos seus dispositivos ediscursos, o que engendram, o que realmente dizem... Para no nosalongarmos, podemos dizer que a fotografia, neste projeto de Se-bastio Salgado, torna visvel o que engendram alguns, se colocan-do como reao, ou como ele mesmo gosta de dizer, como de-nncia da crueldade da globalizao.

    Ento podemos dizer que este trabalho parte de uma anlisefoucaultiana, ou melhor, que estamos pensando a partir de suascontribuies e chegamos a questes bem nossas (e no dele,Foucault), como a globalizao. E bom que se diga que no encon-tramos nos escritos de Foucault (os observados) a idia deglobalizao, mas encontramos a idia de governabilidade. Comoo ato de governar se d nos vrios sculos, da as anlises de Socie-dade de Soberania/ Sociedade Disciplinar/Sociedade de Controle.A tica do ato de governar muda! E gera novos acontecimentos!

    Particularmente na Sociedade de Controle, tomada como otempo da globalizao o que muda a incidncia do domnio quepassar dos corpos individuais para as populaes, ns passamos aser amostras! E da o exerccio de poder se faz mediante a regulaodas populaes, entre as estratgias desta regulao podemos citaras guerras civis alimentadas, a fome alimentada (desculpem a ironiaverbal) os processos de migraes.

    Quais grupos devem morrer? E quais os que devem viver?

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    Notas

    FOUCAULT, Michel. O que um autor? Lisboa: Veja/ Passagens, 1992, p. 36.BARTHES, Roland. A Cmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Ed.

    Nova Fronteira, 1984, p. 121.SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. 2' ed. Rio de Janeiro: Arbor, 1981, p.

    172.Banhes, 1984, p. 121.Foucault, 1992, p. 45.SALGADO, Sebastio. Entrevista a Humberto Werneck. In.: Playboy. So Paulo: Abril,

    dez. de 1997.Salgado, 1997.BAUDRILLARD, Jean. Entrevista a Sheila Leirner. In: Repblica. So Paulo: D'vila

    Comunicaes, Abril, 1999.Salgado, 1997.Salgado, 1997.

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