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1 O fracasso Eu não faço conferências, mas tenho um ensinamento. JL (1975) Como o ambar, que preserva a mosca para nada saber do seu voo. JL (1969) Desleituras Vamos começar interrogando "o que quer dizer ler", porque se há algo no qual o discurso psicanalítico mudou tudo o que existia antes dele, isto é a noção de leitura. Como já nascemos dentro do período histórico da psicanálise, não podemos ter ideia do que era ler antes de Freud. Poderia ter dito que a psicanálise mudou mesmo é o conceito de verdade, mas esta é uma via repisada e que só leva a clichês vazios em relação aos quais não consigo esconder minha impaciência. Existem vários autores, mais ou menos conhecidos e mais ou menos perto da psicanálise, que trabalharam a questão da leitura de um modo magnífico, mas hoje quero recuperar para nós um conceito inventado por um crítico americano de literatura, para elaborar uma teoria da poesia. Digo "recuperar" porque ele inventou este conceito por ter entendido, como poucos, a novidade freudiana no tratamento do relato. Falo de Harold Bloom e de seu conceito de desleitura (misreading). Ele expropriou para a crítica literária a teoria de Freud sobre as "lembranças encobridoras" e sobre o "romance familiar", e assim jogou uma luz nova sobre os conceitos originais de Freud. Isto é precisamente o que desleitura quer dizer. Consultem seus livros "A angústia de influência" e "Mapa da desleitura". O crítico postula que há leitores fracos e leitores fortes. Estes últimos não lêem, "deslêem" (misread), porque a leitura, no sentido forte do termo, opera como um "romance familiar" –no sentido de Freud–, ou seja, como a reescrita de um outro texto. Os poetas, porque se trata de uma teoria da

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OfracassoEunãofaçoconferências,mastenhoumensinamento.JL(1975)Comooambar,quepreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo.JL(1969)

Desleituras

Vamoscomeçarinterrogando"oquequerdizerler",porqueseháalgono

qualodiscursopsicanalíticomudoutudooqueexistiaantesdele,istoéanoção

de leitura. Como já nascemosdentrodoperíodohistóricodapsicanálise, não

podemos ter ideia do que era ler antes de Freud. Poderia ter dito que a

psicanálisemudoumesmoéoconceitodeverdade,masestaéumaviarepisada

equesólevaaclichêsvaziosemrelaçãoaosquaisnãoconsigoesconderminha

impaciência. Existem vários autores, mais ou menos conhecidos e mais ou

menospertodapsicanálise,quetrabalharamaquestãodaleituradeummodo

magnífico,mashojequerorecuperarparanósumconceito inventadoporum

crítico americano de literatura, para elaborar uma teoria da poesia. Digo

"recuperar"porqueeleinventouesteconceitoporterentendido,comopoucos,

anovidadefreudiananotratamentodorelato.FalodeHaroldBloomedeseu

conceitodedesleitura(misreading).

Ele expropriou para a crítica literária a teoria de Freud sobre as

"lembrançasencobridoras"esobreo"romancefamiliar",eassimjogouumaluz

novasobreosconceitosoriginaisdeFreud.Istoéprecisamenteoquedesleitura

quer dizer. Consultem seus livros "A angústia de influência" e "Mapa da

desleitura". O crítico postula que há leitores fracos e leitores fortes. Estes

últimos não lêem, "deslêem" (misread), porque a leitura, no sentido forte do

termo,operacomoum"romancefamiliar"–nosentidodeFreud–,ouseja,como

a reescrita de um outro texto. Os poetas, porque se trata de uma teoria da

2

poesia, os poetas deslêemuns aos outros, ao fazerem seus poemas.De outro

modo,umpoemaéumatode leitura,nãoumobjeto.Umpoema"lê"poemas

anteriores, de outros poetas ou do mesmo poeta como outro. Não existem

textosisolados,apenasrelaçõesentretextos.Etaisrelaçõessãojáatoscríticos.

Acrítica,ouseja,aleitura,podenãosernecessariamenteumaavaliaçãomasé

sempreumadecisão,eoquesedecideéosignificado.Destemodo,todapoesia

seriacríticaemverso,bemcomotodacrítica,poesiaemprosa.

Borges transforma o próprioKafka emumprecursor deBorges, o que

por tabelaprovaa tesede "Kafka e seusprecursores"—queéuma teoriada

usurpaçãodaorígem.Umtextoliterárioseriasempreumembateentreoautor

eseusprecursores,lidosporeleemseuprópriotexto,alterandodestemodoo

pontodeorigem.O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu labor modifica nossaconcepção do passado, como haverá de modificar o futuro. Nesta correlaçãonada interessaa identidadeouapluralidadedoshomens.OprimeiroKafkadeBetrachtungémenosprecursordoKafkadosmitossombriosoudasinstituiçõesatrozesqueBrowningouLordDunsany.1

DepoisdeKafka,dizateseborgiana,osmaisdiversosautoresanteriores

aele(comoZenãodeElea,23séculosantes)podemconsiderar-sekafkianos,e

viram seus precursores. É muito importante que não se perca de vista que

Borges não apenas não desaparece nesta operação, como possibilita uma

apreciaçãodeKafkacompletamentenova,mudandodestemodotodaacrítica

doescritortchecoqueexistiaatéentão.

É frequente um leitor forte virar um revisionista. Como a palavra

"revisão" indica, está em jogo ali um redirecionamento levando a uma

reestimação ou reavaliação de textos que, com frequencia, se propõe a ser

corretiva. Haveria ali um ideal de leitura verdadeira e uma pretensão a

restaurarumaverdadequejáestarianoescritomesmoequeoleitorconsidera 1Borges J.L. O.C. vol II, p.89. Bs As: Emecé, 1996.Betrachtungé de 1912, Browning

escreveem1889eLordDunsany,em1878.

3

extraviada,semperceberqueestaverdadetextualestariasendoproduzidapela

sualeituraque,nessesentido,seriaumaverdadeiraescrita.Oleitorfortedeslêo

outroparafundarasuaprópriaescritura2.

Espero que se reconheça nesta descrição o modo de Freud ler (criar)

seusprecursores,assimcomotambémoFreuddeLacan.Mas tambémdesejo

acrescentar a esta lista o LacandeMiller. Este último é um leitor nãomenos

fortequeosoutrosdois,comumadiferença:aobramillerianacomportacomo

estratégiaapagaro leitor eoautor, a serviço de uma política de reescritada

obra do precursor. Voltaremos a isso, quando falarmos do programa "Lacan

Elucidado".

Exemplos de desleitura não faltam. Menciono alguns ao léu, como

ilustração apenas. O "complexo de Édipo" é uma desleitura de Sófocles; a

energêticadapulsão,dafísicadeHelmholtz;abiografiadeLeonardodaVincié

deslida em prol da invenção do conceito de "mãe fálica" e de sublimação; a

"pulsãodemorte"éumadesleiturafreudianadeEmpédocles,deSchopenhauer

edeWeissmann.JáoconceitodeTycheeathomatonéumadesleituralacaniana

da "pulsão demorte" freudiana e da física de Aristóteles, para embasar uma

teorianovadosignificante.Oaprès-coup,queseriaofundamentodestaúltima,

deslêaNachträglichkeitfreudiana,quenemchegaaserumconceito,parafazê-

lacabernumateoriadalinguagemalheiaaFreud.Omesmoseaplicaàleitura

dosignodeSaussure,queprivilegiaosignificantesobreosignificadoeàleitura

da condensação freudiana e do complexo de Édipo a partir da metáfora. O

conceito de gozo é uma radical desleitura da pulsão freudiana, para retirar a

psicanálisedobiologicismoreinante(sobreessafalaremoslongamentesemana

próxima).Poroutro lado,ocogitocartesianoédeslidomedianteoWoeswar,

soll ichwerden freudiano,para elaboraruma teoriadoato.EKant épostode

ponta-cabeça, alavancadoporSade,para tematizara lógicada fantasia.Enão

2NosentidodeBarthes.

4

mencionocasosdadesleituramillerianadeLacanporquevoutrabalharalguns

comcuidadonapróximaaula.

OretornoaFreud

Onomegenéricodadesleitura lacanianaéoassimchamado"retornoa

Freud", que consiste, pasmem, no projeto geral de virar Freud pelo avesso,

comoumaluva..."A psicanálise pelo avesso", acreditei que deveria intitular este seminário.Nãocreiam que este título deva nada à atualidade, que se crê na situação de pôrbastantescoisasdepernasproar[serefereaoMaio francêseàcontra-cultura].Dareisóumaprovadisso.Numtextodatadode1966,concretamente,uma das introduções que fiz no momento de concretar a coletânea dos meusEscritos e que o escandem, um artigo chamado "De nossos antecedentes",observo,nap.68,quemeudiscurso sedefineporpegar o projeto freudianopeloavesso.19693...ededarumanovavolta(re-tour)sobreseusconceitos,parafazercom

que apareçamasmolasda sua estrutura (é a aplicaçãoda topologia à leitura

crítica: o corte revela a propriedade de uma superfície, nomomento em que

estadesaparece,depoisdasegundavolta).Nãoé,demodoalgum,umavoltaaos

fundamentos ou um regresso às origens deturpadas ou esquecidas de um

freudismo mais puro, mas um profundo questionamento. Lacan relê os

conceitosfreudianosinvertendoaordemdasrazões.NãoseguimosaFreud,oacompanhamos.19554

E...

3Oavessodapsicanálise.4Oeunateoriadapsicanálise

5

[tampouco]vamoscontraFreud,nosservimosdele.19755

Onde"servir-se"significaapoiar-seneleparaescreveralgonovo.TentodaraostermosfreudianosasuafunçãoLeia-se:emFreudmesmoestafunçãonãopodereconhecer-se.

Tentodaraostermosfreudianosasuafunção,namedidaemquesetratanadamenosquedeumainversãodosprincípiosmesmosdoquestionamento.É isso que chamei inverter a ordem das razões. Ler, por exemplo, a

segundatópicaàluzdaprimeira.Estaúltimaforneceasrazõesparaentendera

que cronologicamente lhe segue, que nesse sentido não apenas não seria

nenhumprogressoteóricocomopoderiaserumaregressão.Demodogeral,se

faznecessáriodirigiraFreudasperguntasopostasquetudomundolhefaz.Dito de outro modo –o que não quer dizer que se diga o mesmo–, estácomprometida neste esforço a exigênciamesma que condiciona a passagem aestequestionamentorenovado.Estaexigênciamínimaéaseguinte:trata-sedefazerpsicanalistas.A razão de ser deste questionamento crítico não é meramente

universitária,jáquesetratadeformarpsicanalistas.SegueLacan:Aquele questionamento não poderia formular-se sem uma recolocação dosujeitoemsuaposiçãoautêntica:essaquefazdepender,desdeaorígem,osujeitodosignificante.19686

Sem subverter a concepção que temos do que um sujeito é –o que

implica,nemmaisnemmenos,emrompercomaontologiaquesustentanosso

pensamentocomum,equenosvemdesdeAristóteles,viaKant–,nãopodemos

refazerestequestionamentodeFreud7.

5RSI6DeumOutroaooutro.7cf."Subversãodosujeito":"Danossaposiçãodesujeitosomossempreresponsáveis".

6

O fimdomeu ensino, pois bem, seria fazer psicanalistas à altura dessa funçãoquesechamasujeito.8

Ele não ensina uma teoria, mas um método de fazer analistas. E não

feitos de qualquer modo, já que se trata de analistas que façam jús ao

significante.Essafunçãoquesechama"sujeito"éprecisamenteoqueseobtêm

depois de uma reviravolta das relações de cada analista com o saber. Para

tanto,precisamosdeumateoriadalinguagemtotalmentenova.Ametamorfose

pessoal, que qualquer análise bem levada produz, não basta: espera-se uma

modificaçãonaconcepçãodoquesaberesentidosão,paraqueateorianãoseja

letra morta. Esta seria a reforma do entendimento necessária (e prévia) à

formaçãodeumpsicanalistapropriamentedito.Acontecequeosinteressados

lutamcontra...Eumeesforceiemdemonstrarcomoseespecificao inconsciente freudiano.Aospoucos,osuniversitáriostinhamconseguidodigeriroqueFreud,poroutraparte,commuita habilidade, tinha se esforçado em tornar-lhes comestível, digerível.Freudmesmoseprestouaissoaoquererconvencer.Era a política freudiana: que a sua disciplina fosse reconhecida pela

ciênciaepelasociedadebempensantedeViena,primeiroepelomundo,depois.

Freudsequeriadigestivo,Lacan,indigesto.Omaislouco,veremos,équeduas

políticas opostas tiveram o mesmo desfecho, porque Lacan terminou tão

digerido(ecagado)quantoFreudofoi.Mas,continuemos:O sentido do retorno a Freud émostraroquehádedecisivonoqueFreuddescobriu,equefaziaentrarnojogodeummodocompletamenteinesperado,jáqueeraaprimeiravezqueseviasurgiralgoquenãotinhaestritamentenadaavercomoquealguémtivesseditoantes.OinconscientedeFreudéaincidênciadealgocompletamentenovo.19749

Dávergonhaterquedizê-lo,masseforalgo"completamentenovo",não

podeseromesmodesempreenãodeveriasertratadocomotal.Pareceóbvio,

819679LacanJ.Otriunfodareligião.1974

7

maspretendodemonstrarcomo,onossodesentendimentocomLacancomeça

quandoforçamosoqueeledizparacabernosnossospreconceitosteóricos.E

fazemosissoaopontodeeliminartudoque,notextodele,nãoencaixanoquejá

entendiamosouesperávamosquedisesse.Terminamosentendendoocontrário

doqueelenospropõe,porquefizemosentrar,semsaber,amaioriadasvezes,

osconceitosqueelesubvertenascategoriasusuais.Masissojáaconteciaentre

seudiscípulosdiretos,efoioqueolevouadiagnosticarumaresistênciadelesà

suaprópria formação.Aquise tratadapalavra"inconsciente":enganadorana

medida em que carrega consigo toda a concepção ontológica da qual Lacan

tentalivrarapsicanálise.Seformosmantê-la,precisamosimplodirseusentido

comum.10É espantoso que ninguém tenha comentado jamais o modo como

atormentaaolongode20anosesteconceito.Meu desígnio énunca repetir a mesma coisa,não dizer o que já é sensocomum.196711

Aquiháduasadvertências,uma,comoacabeidedizer,parasuspendero

que acreditamos entender, quando nos fala de coisas como "sujeito", "real",

"corpo" ou "gozo" (para citar as pior entendidas). A outra, para lembrarmos

que,quando ficamos convictosde termosencontradoadefinição canônicade

tal conceito de Lacan, seria bom ter emmente que, a próxima volta daquele

conceitonodiscursodeletalvezqueiradizeralgocompletamentediferente.

Exemplos?Em1964,oVorstellungsrepräsentanzdeFreuderaoS2;em

1968, o S1. Em 1958, a enunciação é o andar de cima do grafo; em 1969, o

andardebaixo.Ademandaeraimagináriaeconsciente,em1955;em1960era

simbólica e inconsciente. Durante 16 anos o Outro, com "o" maiúsculo,

designava o simbólico e, com "o" minúsculo, o imaginário, no seminário de

10Cf.Osquatroconceitos:"oestatutodoicsééticoenãoôntico"e"aanalistafazparte

doconceitodeinconsciente."11LacanJ.Meuensino,Rio:Zahar,2005,p.14.

8

1968,issoseinverte.Isto,semcontarasmileumareformulaçõesdeconceitos

como"real"ou"sujeito".Assimquepercebiaterviradounanimidade,tercaído

noconsenso,nolugarcomum–mesmoesobretudonolugarcomumlacaniano–,

mudava. E tratava de induzir nos discípulos, pacientes e leitores a mesma

disposição.Nãoconseguiu.Esabianãoterconseguido,comoveremos.

Há, contudo, algo mais aqui, o próprio "inconsciente freudiano", bem

entendido, seria algo que se produz como uma novidade permanente. Os

discursosdosnossos analisantesdeveriamser tratados comocompletamente

originais. Cairmos na mesmice já seria estarmos às voltas com a inércia da

repetiçãoecomuminconscientefechado.Houveumaépoca,nadécadade80,

emque foi teorizado isto comoa existênciadedois inconscientes:um lúdico,

inconsequenteefrívolo,exemplificadopelossonhos,oschisteseosatosfalhos

e outro sério, grave e pesado, que seria o inconsciente do sintoma,

perfeitamente inercial e morto. Este último foi o núcleo do que depois foi

teorizadocomo"gozo".Conceitoque,domodocomoestáhoje,jánãotemnada

delacaniano.Napróximaaulavoufundamentarestaafirmaçãoextrema.

DuMoreira,queémúsico,mefezobservarqueestalógicanãoselimitaà

psicanálise.Emmúsicatemosamesmaoposição.Maisespecificamente,emjazz,

ao menos seria a opinião de Pat Metheny na década de 90, criticando os

músicosfascinadosemreproduziradinfinitumoestiloretrôdosanos60ou70:Devodizer queaqualidadede ser diferente valemuitomais paramimdoqueparamuitosoutros.Quandoescutoalguémquesoacomooutrapessoa,meioquedesligo. Paramim a individualidade ou aomenos, a tentativa de vir com algooriginalequenãoestejareferenciadoaistoouaquilo,émuitoimportante.É aessênciamesmadoquealinguagemdojazzimplicaearesponsabilidadedoartista.

E era também a opinião de Wim Wenders, quando veio falar em São

Paulo12, de que os cineastas que se orgulhavam de poder fazer um filme

12Masp,10/10/10.

9

"padrãoHollywood",nãotinhamparaelenenhuminteresse.Elesósevoltava

paraumdiretorquefaziaalgooriginal,mesmoquefossebemsimples.

OestilodeLacanéopsicanalista

Numdosvolumesdoseucursodeantifilosofia13,AlainBadiounotaalgo

sobreosantifilósofos(Lacanseriaoúltimodeles,nãooúnico),quemechamou

poderosamenteaatenção,porcoincidircomumacaraterísticaminha.Eupenso

contra.Penso"contra",nomesmosentidoemquesedizdealguémqueseapoia

contra uma parede. E parece que um antifilósofo também é um pensador

adversário. Cada um deles se opunha a algo ou a alguém específico. Pascal

argumentavacontraoslibertinos.RousseausedirigeaosmalvadosIluministas

–aos homens sem coração, como Voltaire ouHume. JáNietzsche falava para

homens livres, aqueles que não temumamoral de escravos. Kierkegaard, do

seulado,pensapara,porecontraamulher.EohomemaquemLacansedirige

éopsicanalista.Lacanfalaepensa"contra"opsicanalista.

O espantoso é, observa Badiou, que nenhum adversário da psicanálise

teriaacoragemdedizermetadedoqueLacanproferecontraosanalistas.Eo

dizemtodosostonsdodiapasão.Quesãohomensperdidos,aosquaiseledeve

reconduzirparaocaminhocerto,comoumpastor.Quenãosãoconfiáveis.Que

viram as costas ao seu próprio ato, do qual tem horror. Que ignoram ou

desprezam aquilo de que depende a sua própria formação (se refere à

matemáticaeàlógica).Quenãoentenderamnadadoqueelevemlhesdizendo

há20anos.Quefalaparaasparedes.Queestácompletamentesó,clamandono

deserto.E,lastbutnotleast,queestáalipara...envergonhá-los!

Sobreestavergonhafalaremosnopróximosábado,porquedizrespeitoà

ontologia: é vergonhoso que os psicanalistas formados por ele continuem 13L'antiphilosophie.Paris:Fayard,2013.

10

sustentando a ontologia de sempre. É o que lhe faz dizer que os analistas

continuamadormir.Aontologiaseriaosonhodoqualnãoconseguiufazê-los

acordar.Preferemapílulaazulàvermelha14.

Issotudoparadizerquese"oestiloéohomemaquemnosdirigimos[a

quil'ons'adresse]"15,nãorestadúvidaque,nocasodeLacan,éopsicanalista.

Sempre.Acrescento que esses analistas que o são apenas por serem objeto -objeto doanalisante-,acontecedeeumedirigiraeles[il arriveque jem'adresseàeux],nãoqueeulhesfale,masquefalodeles16:nãofossemaisqueparaperturbá-los.17eufalavaparapessoasaquemaquilointeressavadiretamente,pessoasprecisasque se chamam psicanalistas. Aquilo dizia respeito à experiência mais diretadeles, mais cotidiana,mais urgente. Era expressamente feito para eles,nuncaforafeitoparaninguémmais"18

A exasperação frente ao desejo de continuar adormecido está

provavelmente detrás das invectivasmenos contra os analistas que contra o

analista. Já esta declaração, proferida no final da vida, transparece apenas

decepção:Não espero nada das pessoas e alguma coisa do funcionamento. Portanto émister inovarporqueestaEscola,euaerreiaoter fracassado emproduzirapartirdelaanalistasqueestivessemàaltura.19

Ofuncionamento,diferentedeFreud,nãoéodispositivomasomatema,

falaremosdissoaseguir.Jáoquedizdoseuprópriofracassonãotemamenor

ambigüidade: a Escola Freudiana de Paris fracassou em fazer psicanalistas

dignosdonome.Nãoépouco. 14Cf.TheMatrix.Outravergonhaéafaltadecoragem(ie.oato)15LacanJ.Escritos."Aberturadestacoletânea"16Odiscursodoanalista,genitivoobjetivo.17Television,Paris:Seuil,1974.p.1018LacanJ.Meuensino,op.cit.p.64.1915dejaneirode1980

11

aresistênciadoanalista

Ofracassoearesistênciaestãointimamenteligados.Ligadosapontode

poderem ser inscritos na superficie única de uma contrabanda. Começamos

falando de Fracasso e terminamos falando de resistência, sem mudar de

assunto.

OprimeiríssimoLacan(1951)diz20que"averdade[queFreudassumiua

responsabilidade de nos fazer ouvir] inspira um temor crescente nos

praticantesqueperpetuamsuatécnica."Assim é que os vemos [...] refugiar-se sob as asas de um psicologismo que,coisificando o ser humano, chegaria a malefícios perante os quais os docientificismofísicojanãopassariamdeninharias.21

Existemdoisobstáculoscomosquaisvemchocar-seapsicanálise,ambos

reconhecidos por Freud: um, inerente aos tratamentos mesmos e outro,

relativo à aceitação da "nova ciência" pela sociedade. Este último, pensava

Freud,devia-seaosopapoqueadescobertadoinconscienteteriaimpingidona

face da humanidade. Diagnóstico com o qual Lacan não concorda, como

veremos. O outro, cujo nome genêrico é "resistência", foi tematizado por

primeira vez no "caso Dora", mediante o conceito de transferência. Lacan

propõedefiniratransferêncianegativanopaciente"comosendoumaoperação

doanalistaquea interpreta."22E concluiafirmandoquea "transferência tem

sempre omesmo sentido, de indicar osmomentos de errância e também de

orientação do analista23, o mesmo valor de nos convocar à ordem de nosso

20Escritosp.216.21idemibid.22ibid.p.217.23Noveanosmaistardechamaráistodeacting-out(cf.seminárioX)

12

papel:umnão-agirpositivo,comvistasàortodramatizaçãodasubjetividadedo

paciente."24RelembroaosleitoresdeLacanestasvelhariasporqueédaquique

seoriginaanoçãodequenãoháoutraresistênciaempsicanálise,anãoserado

analista.

Esta fórmula, comoquase todas,virouumclichêrepetidoatéanausea,

cujosentidoinicialseperdeu,numtãovagoquantopersistentesentimentode

culpabilidade, que toma os analistas lacanianos da certeza de que eles são

responsáveis por tudo de ruim que acontece durante os tratamentos –por

incompetência,evidentemente.Estes impassesdapráticaclínicaestão ligados

ao"temorcrescentenospraticantes"frenteàverdadequeseuatodesencadeia.

Leia-se:"nãoqueremsabernadadisso".Depoisdiráqueoanalistatemhorror

doseuato25.

Quanto ao outro obstâculo, dizia que Lacan põe em dúvida a ideia de

Freud de que as resistências à psicanálise procedem do fato de que ela

atentariacontraonarcisismodaspessoas.Oquenãopassa,seria"asubversão

[que a psicanálise produz] na estrutura do saber." 26 Por isso chama o

inconscientede "saber insabido" (savoir insu), um saber quenão se sabe a si

próprio –edoqual todospreferemsedesincumbir.Aqualidade acéfaladeste

saber (não seria o saber de alguém, já que é o saber sempre do Outro) lhe

parece semelhante à das matemáticas. E por isso alinha a resistência dos

analistas contra seu ensino com a resistência de todo mundo a aprender

matemática.Oessencialdeambasdisciplinasestariadoladodaescritaformale

lógica,queencadeialetrascomrigor,masquesãorefractáriasatodaformade

intuição. Há um modo de funcionar do significante do qual não queremos

inteirar-nosequeserevelanasnossasdificuldadesaaprenderciênciasexatas,

24ibid. p. 225. "a ortodramatização da subjetividade do paciente"... em português: a

postaematocorretadasubjetividadedopaciente.251975.26LacanJ.1972.Jeparleauxmurs.

13

etambémnosimpedeoacessoaodiscursopsicanalítico–lacanianstyle:aopé

da letra e sem concessões para o saber-sabido. Em suma, Freud teria dado

ensejoaumarevoluçãonaepistemologia,mastodos lheviraramascostas.Não

me parece à toa que diga isto na mesma conferência em que declara estar

falandoparaasparedes.

Preparando esta aula me lembrei de algo que li em 1973 e do qual

guardeiapenasumapequenafrase–porquedorestonãoentendinada.Retirei

essa frase de um livro que é hoje uma raridade, a tese de doutorado em

psicologiadeAnikaRifflet-Lemaire,de1969.Ointeressedolivronãosedeveao

conteúdo,foramescritascoisasmuitomelhoresqueesta,masaofatodesera

primeira teseuniversitáriadedicadaàobradeLacan,edeeste ter-lheescrito

um prólogo. A frase que lembrei está nomencionado prólogo –um pretexto,

aliás, para discorrer sobre o fracasso da psicanálise frente à religião, a

universidade e a psicologia. Está no prólogo, digo, mas fora dele, porque se

trata da epígrafe, que Lacan inventou e colocou ali para indicar como queria

quefosseentendidooquesegue.Estaepígrafe,comoqueporcoincidência,foi

excluídadaversãooficialestabelecida,republicadapelaSeuil,naFrançaepela

Zahar,noBrasil,sobonomeOutrosEscritos.Dizoseguinte:Comooambar,quepreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo

Sefosseumhaikuoescreveriamosassim:oambarpreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo

Umrápidocomentário.Depoisiremosmaisdevagar.

Antes de mais nada, sabem o que é o ambar? É uma resina vegetal

fossilizada, acinzentada ou amarelada. Assistiram Jurassic Park? Trata da

clonagemdeumdinossauro,apartirdosangueabsorvidoporumpernilongo

14

jurássico que o picou, conservado intato no interior de uma substância

transparenteeduracomopedra.Issoéoambar.Jámoscaémosca.

Como uma pedra não sabe nem pode querer saber coisa alguma,

devemos concluir que se trata de uma metáfora. O que, por sinal, fica

confirmado pelo "como" que Lacan pós na frente: "como o ambar". O ambar,

queprendee fixao inseto, impossibilitadode semexer, substitui aodiscurso

universitário e, veremos mais tarde, aos próprios psicanalistas. A mosca, ao

trabalhovivoecambiantedopsicanalista,transformadoemobraacabadapela

teseuniversitária.Cristalizada,amoscaestarásempreali,poréminerte,como

nummuseu.Deixadeescapolir,dedesenhararabescosnoarejánãoincomoda

ninguémcomoRaulSeixasqueriae,aoparecer,Lacantambém.

Então,seoinconsciente,eodiscursodeLacan,podemserconotadospor

aquelamoscaquepousaapenasuminstanteeédifícildepegar,issosedevea

que estruturalmente resiste a ser captado pelo eu. Todos temos com o

inconscientefreudianoumarelaçãode"nãoquerosabernadad'isso(quepensa

emmimsemmim)".Oquemelevaaoúltimocomentáriosobreametáforado

ambar,quenadaquersaberdovoodamosca.Oqueestádenotadoaliéquea

postura escolar, docente e dicente, frente ao inconsciente é a de "não querer

nemsaber".Ora,eospsicanalistas,seráqueelesqueremsaber?Esperar-se-ia

quesim.Porém,Lacanafirmaquenão.Elestampoucoqueremsaber...

Vejamosoquedizaosromanosnaconferênciade1967,"Apsicanálise,

razãodeumfracasso":"Funçãoécampodapalavraeda linguagem", tais foramos termos: funçãodapalavra,campodalinguagem.Tratava-sedeinterrogarapráticaerenovaroestatutodoinconsciente.Como este sucesso [do livro Escritos] me vale a atenção da assembleiapresente, isso torna paradoxal que me apresente frente a ela a título defracasso.

15

Digamos que me consagrei à reforma do entendimento, que impõe umatarefaemrelaçãoàqualoatoécomprometeroutrosnela.Engajar os discípulos na reforma do entendimento –veremos a que se

refereessaexpressão–seriaumato.

Por pouco que esmoreça o ato, é o analista quem vira o verdadeiropsicanalisado, conforme se dará conta disso tão seguramente quanto maispertoseencontrardeestaràalturadasuatarefa.

Vamosanalisarcomcuidadoestaúltimafrase,aprimeiravista,bastante

obscura. Primeiro, a "reforma do entendimento" a que Lacan diz ter se

consagrado é seu ensino, aquele que visava "interrogar a prática e renovar o

estatutodoinconsciente".Lembremque,nestaépoca,Lacantinhaasuaprópria

Escolaeacabaradeproporumanovamodalidadedeseleçãodospsicanalistas,

denominada "o passe", muito resistida pelos membros. Mas, por que chama

assimaseuensino?

O "Tratado da reforma do entendimento e da melhor via a seguir para

chegaraoverdadeiroconhecimentodascoisas",éocompridotítulodolivroque

escreveu Spinoza em 1661. Era uma introdução aométodo, oumelhor, uma

"propedeutica", ou seja, o conjunto de conhecimentos necessários para

preparar o estudo de uma matéria, ciência ou disciplina27. Mas, para poder

fazer isso,paraencontraro caminhodaspedrasna teoria, énecessárioantes

aprender a pensar direito. Trata-se de aprender a aprender. A reforma do

entendimento é um ato de ensinamento, porque ométodo só se aprende no

exercíciomesmo,juntocomoautor.Esteseriaobomsentidode"exemplo",de

27ApropedeuticapsicanalíticadeLacanémuitodiversadadeFreud.Paraesteeraa

arqueologia,ahistóriadosmitosedasreligiões,afilosofianecessáriasparaaformaçãodeumpsicanalista. Para Lacan, a lógica, a topologia, a lingüística e a antifilosofia (cf. Peut-être aVincennes,1974).

16

"façamcomoeu"oude"sigaolíder".Apropostaseriaverificarnosanalistasa

subversãodosujeito,assimnateoriacomonaclínica.

Entretanto, surpreendentemente, Lacan diz que quando isto falha,

quandoatransmissãofracassa,ficamosàsvoltasnãocomumpsicanalistamas

com um psicanalisado. Ou seja, não basta com ter feito análise para ser um

psicanalista. Ainda que a psicanálise passe de fato através da experiência de

umaanálise, issonãogarantequepassededireito.Deumaanálisenãoresulta

um analista mas um psicanalisado. E ainda que um psicanalisado possa dar

contadoatoanalítico,elenãoéaindaumpsicananalista–digoissonomesmo

sentidoemqueObiWanCanobidiria:"youdidwell,butyou'renotaJediyet"–

"você cumpriu com a missão, mas ainda não é um Jedi". Para chegar a jedi

(Lacannãooschama"jedis"mas"analistasdaEscola"),precisaterpassadopor

aquelareformadoseuespírito.Reformaqueomestreéobrigadoaaceitarque

nãoaconteceu.

Restaperguntar-se, comele, oque seriamesmoumpsicanalista.Est-ce

que il'y a du psychanalyste?, pergunta, com aquele famoso partitivo francês,

impossívelde traduzir.Pergunta seháanalista,nomesmosentidoemque se

inquereseaindahávinhonagarrafaoupãonamesa.Estáclaroquenãoestá

garantidoquehajaanalistapelosimples fatodepessoas teremseanalisadoe

exercitaremométodopsicanalítico.O exercício clínico está longe de garantir

quehaja"aquelacoisa"quesedenomina"analista".Edissonãosededuzquese

esteja afirmando que os praticantes sejam ruins, ou que lhes falte análise ou

supervisão, ou qualquer coisa do gênero. Apenas quer dizer que conseguem

realizarumatodoqualnãofazemamenor ideiadecomoopera.Conduzema

experiência analítica perfeitamente, os pacientes se curam, falam em

congressos,participamdeinstituições,masnãosabemaonderadicaaeficácia

dasuaação.Nessesentido,nãohaveriapsicanalista"àalturadasuafunção",já

queestafunçãoseproduzesetransmiteatravésdeumateoriaconsistente,não

17

pelapráticaintuitiva.AtransmissãopelamerapráticafoiopontoaondeFreud

teriadeixadoospsicanalistasofalecer.Lacanqueriairalém.

Em suma, estou reformulando, mediante o conceito de resistência do

analista, as duas resistências que Freud definira: contra a descoberta do

inconscienteemgeral,dasociedadeecontraadescobertadoinconscienteem

particular, de cada qual durante as sessões. A segunda seria a resistência

transferencial,motivodassupervisões:aoutrafacedo"nãoquerosabernada

disso". A dupla conceitual "transferência / contratransferência" não fala de

outracoisa,masnãoéumateoriaquepermitaresolverosimpassesclínicos.A

reformulação lacaniana, entretanto, não é recebida facilmente."Os analistas

resistemàquilodequedependeasuaprópriaformação",dizLacanem1969,e

serefereàlógicaeàmatemática,nãoao"complexodeÉdipo".

Aoutraresistência,adasociedadecontraapsicanáliseemgeral,decorre

daanterior:poucossuportamacompletasubversãodanoçãodeconhecimento,

aopontodeaceitardebomgradoaexistênciadeumsaberquedeterminaseus

destinosàsuarevelia.Nãosabemdisso,maspoderiamsaber.Onomedarevista

daEscolaFreudianadeParis,era,precisamente,Scilicet,emlatim,"istoé"(sim,

comoaconcorrentedaVeja)emfrancês:c'est-àdire.Nãoeraumaconstatação

de aonde a Escola tinha chegado,mas um voto de aonde poderia ir: a saber

algumacoisasobreoatoanalítico.Naépoca,Lacanaindatinhaesperançasna

transmissão...

OtextodeRomacontinuaassim:Sigoentãoaregrado jogo, comoFreud fez, enão tenhocomomesurpreenderpelofracassodosmeusesforçosempôrumfimàdetençãodopensamentopsicanalítico.28

28"Apsicanálise,Razãodeumfracasso",op.cit.

18

A regra do jogo a que ele se refere foi apostar todas as fichas ao

dispositivo.Osanalistasfreudianossãocomomaquinistasdeumtrem:podem

conduzir a locomotiva, mas não fazem amenor ideia de como ela está feita.

ObservemqueLacanpensaqueopensamentopsicanalíticoestáparado,comoa

locomotivanaestação...em1967!Areformadoentendimento,destinadaapô-

loemmovimento,fracassou.

Oinconsciente,alémdeserumfatoinéditonahistória,secaracterizapor

ser uma novidade permanente para cada um –a formação do inconsciente é

sempre inesperada. Lacan pretendia reproduzir o efeito surpresa em seu

próprio discurso no seminário. Mas aquela mímica do inconsciente resulta

intragávelparaosanalistasqueoseguem.Suatendênciaédeteromovimento,

batercomomata-moscasefixaramoscalacaniananumpontoqualquerdoseu

ensino.ComLacanparado,fazemsistema,obraedeclaram:"esteéLacan!"Jáo

própriodizquepersevera(daumsemináriodenominado"mais,ainda"),masos

lacanianosparamdesegui-lo.

[...]E toda tentativa de pôr [no pensamento psicanalítico] alguma coerência, eprincipalmentepormimdelevaraliamesmaperguntacomaqualinterrogooatomesmo, determina emalguns, que euacreditei decididos a seguir-me, umaresistênciabastanteesquisita.29

OsdiscípulosmaispróximosnãoqueremsaberdoqueLacan lhes traz.

Insistemempensarcomasvelhascategoriasdesempre.Pensoqueo famoso

"nãocederdodesejo"–do"desejodeanalista"–,seriasimplesmentenãodeixar

apetecacair.Acompanharanovidadepermanente,tantonodiscursodeLacan

como no discurso do analisante. O tédio, aliás, é o que acontece quando o

inconsciente se fecha e não é mais reaberto pelo analista. O tédio é a

subjetivaçãododesconhecimento(méconnaisance)doeu,resultadapaixãode

ignorância e do "não quero saber nada disso". Nesse momento, ninguem

29"Apsicanálise,Razãodeumfracasso",op.cit.

19

aprendenada,nemda teorianemdopróprio inconsciente.Estamosnoreme-

reme. É quando o analista dorme na poltrona. Estagnação das análises, e da

doutrinatambém.

Aquestãoé,oqueprovocaestaresistênciaque faz fracassara reforma

doentendimento?Ospreconceitosteóricosesubjetivosdecadaum.Aéticado

desejo, tematizada em 1960, seria o convite a continuar a insistir na

interrogaçãodosprópriosimpasses,tantonateoriacomonaclínica.Aprendera

aprenderdopróprio"nãoqueronemsaber", comoLacanmesmo fazia. Porque

ele não era uma exceção, sofria da mesma paixão de ignorância de todo o

mundo.Adiferençaéquepretendeavançarporalimesmo:

Medeicontaquemeujeitodeavançareradaordemdeum"nãoquerosabernadadisso".Aqui há um "não quero saber nada disso" pessoal, que diz respeito ao

saberinconscientequemeconcerneedoqualeumeafastodefensivamente,na

medidaemquemeagarroaosentidodaminharepresentação,domeueu.Há

também, como disse, um "não quer saber nada disso" relativo à teoria

necessária para abordar o ato, queme daria acesso ao primeiro. Ambos são

solidáriosporquetemamesmaestrutura.Lacannãofazdiferençaentreume

outro, por isso seu discurso é tão difícil de seguir. Resistimos a ele com a

mesmaresistênciaqueopomosareconhecerossignificantesmestresdanossa

vida.

Há também entre vocês, na grandemassa dos que estão aqui, um "não querosabernadadisso".Mas,aquestãoé:seráomesmo?Vosso"nãoquerosaber"decerto saber que vos é transmitido em retalhos, será igual aomeu? Nãoacredito.Éprecisamenteporsuporemquepartodeumoutrolugarnaquele"nãoquerosabernadadisso",quevocêsseencontramligadosamim.

20

O"saberquevosétransmitidoemretalhos"éodoseminário.Cadaum

dos ouvintes receberá aquilo, ou não, de acordo ao seu próprio tempo para

compreender,depoisdevencerasincertezaseasresistênciacontraeledevidas

aoeu30.Seconseguir.Demodoque,seforocasodequeeusópossoestaraqui,emrelaçãoavocês,naposiçãodeanalisantedomeu "nãoquero sabernadadisso",daquiaquevocêsalcancemomesmolugar,haverámuitochãoapercorrer.31

Ele ensina em posição de "analisante do [seu] não quero saber nada

disso". Os discípulos aprendem, quando aprendem, de modo indireto.

Aprendemdoqueeleseensinaasipróprio,seguindocomabsolutafidelidade

osencadeamentoslógicosdoqueestátentandoelaborar.Earesistênciaqueo

discursodeLacanprovocaseriadamesmacepaqueoinconscientemesmo,já

queemrelaçãoaambossedesencadeianossa"paixãodaignorância".

Por isso dissolvo. [diz o ultimíssimo, "dissolvo a Escola por terfracassadoemfazeranalistasàalturadasuafunção"]Enãoreclamodosditos"membrosdaEscola"–antespelocontrário,lhessougrato,portersidopor eles ensinado, onde eu, da minha parte fracassei, quer dizer, meatrapalhei.32

Vocês vêem, Lacan aprendeu dos discípulos. Foram estes que não

aprenderamnadadele. Istoúltimopodenosservircomo introduçãoa "Lacan

Elucidado".Quandotentoexplicaralgoeumalunonãoentende,assumoque,na

dificuldade emme fazer entender, estão asminhas próprias questões. É isso

que eu aprendo dele. Comentei aquilo em outro lugar, quando fiz notar a

diferençaentreobrasileiríssimo"entendeu?",eo"¿meexplico?",argentino.No

30Dica:omodeloteóricoparaentenderaresistênciaéoartigosobreotempológico.

Algumdiavoufazerumaapresentaçãodisso.311973,Mais,ainda.321980,Dissolução.Ibid.

21

primeiro, o ônus da burrice está no interlocutor; no segundo, no próprio

locutor.Éticasdiferentesdacomunicação.

Mas há algomais. Entre asmil e uma figuras através das quais Lacan

interrogaoanalista,umadelaséAristóteles...Aristóteles extraiu alguma coisa [dos sofistas], que aliás permaneceucompletamentesemefeitosobreaquelesaquemsedirigia.Assimparaelecomoparamim.Com os psicanalistas já bem instalados, o que conto não fedenemcheira.33

Aqui temosalgo interessante.Assimcomooensino filosóficodePlatão

eraoral,odeAristóteleseraescrito.OproblemaéqueosDiálogos,doprimeiro,

se conservaram e os livros do segundo se perderam, quase todos. O que nos

chegou,viaAndrónicodeRodas,sãonotasdealunoseditadas,comoaprimeira

versãodoCursodeSaussure.Só sabemos o que Aristóteles disse pelo que conservaram alguns discípulosdaquela época. Os discípulos repetemo que omestre disse,mas a condição deque omestre saiba o que diz. Porém, quem julga isso senão seus própriosdiscípulos?Portanto,sãoelesquesabem.34

Nãoédifícilimaginarqueaquiomestrefaladasuaprópriasituação.Os

alunosentendemoqueforeéaquiloquepassaaconstarcomooqueomestre

disse.No casodeAristóteles, Lacan imagina, o subversivo enovedosodo seu

ensinoseperdeuesórestouo lugarcomum,obomsenso,queseriaoqueos

alunos captaram do que ele escreveu. Ou seja, ele, como Aristóteles, não

consegue afetar (lembrem do "eu quero envergonhá-los") aqueles a quem se

dirige.AestratégiadeLacanparadiferenciar-sedeAristótelesfoi implodirou

explodir o senso comum; tornar inconsistente o conhecimento estabelecido.

Incluindo-se, insisto, o conhecimento lacaniano estabelecido. Ainda "o ambar

quepreservaamoscaparanadasaberdoseuvoo". Isso tornaabsolutamente

33Meuensino,op.cit.34"OsonhodeAristóteles",1978,ConferêncianaUnesco.

22

paradoxaloprogramadeestabelecimentodasuaobraoralquedeuno"Lacan

Elucidado".

Então,oproblemaera:oqueapsicanáliseensinaecomoensiná-lo.Como

aprenderdopróprio inconscienteecomotransmitiroque foiaprendido?Em

algumlugar,creioquenaapresentaçãodosEscritos,terminadizendoqueoque

setransmite,emúltimainstância,éumestilo.Bem,umestilohádeseromodo

particulardefracassardecadaum.

Foiconvencionadoemchamarsucessoàalgaravia,istoéàquiloquereuneumamultidão. Foi convencionado isso pelo público. Mas para nós, analistas, talsucesso não tem nada a ver com o que nos interessa; esse sucesso é algototalmente diferente do que seria o nosso, quero dizer o êxito ao que nosreferimos quando falamos daquilo que estamos destinados a registrar, ouseja,o fracasso.O fracasso é o que opomos ao sucesso. Porém, o sucesso queassim supomos –estamos obrigados a supô-lo, já queo que nos caracterizacostumasero fracasso:esobreissosabemosbastante–,essesucesso,pois,queénossopolosupostoenquantopartimosdofracasso,essesucessoñaotemnadaavercomnenhumêxito,comnenhumaconsagraçãodotipodeumaaglomeraçãocomoesta. Osucessoparanósselimitaaoquechamareioresultado.

Acabeide leraaberturadoCongressodaEscolaFreudianadeParis,em

Roma, em 31 de outubro de 1974. Notem duas coisas, uma, a popularidade

escondeeobstaculizaoverdadeiroobjetivodatarefadeumanalistaqueseria

"registrarofracasso".Apsicanálisepartiriadofracasso,diria,dosintomacomo

fracasso,enoregistrodissoestariaoêxitopossíveldeumaanálise.Elechama

isso de "resultado". Em segundo lugar, quando exemplifica o que quer dizer

comresultado,serefereatextos,àproduçãoteóricaquerespondeaseuensino.

"Resultadospositivoséquandoalgosesustenta,comoesseescritoqueacabei

de citar.35" Em momento algum se ocupa de resultados terapêuticos, mas

35Trata-sedeumdosraroselogiosfeitosaumtrabalhodealguémquenemsequeré

seu discípulo (mesmo caso do elogio feito ao livro de Nancy e Lacoue-Labarthe no anoanterior)

23

podemosassumirque seumaanálise se sustenta, o fazpela sua lógica, como

um texto. Digo isto para aqueles que acham que a cura não interessa aos

lacanianos.

fracassodatransmissão/transmissãodofracasso

Neste ponto se perfila uma diferença fundamental entre o fracasso da

transmissão e a transmissão do fracasso. Não digo "a transmissão de um

fracasso",nocaso,odopróprioLacan,senãodofracassodapsicanálisemesma.

Seriaalgoassimcomoatransmissãodoimpossíveldetransmitir,menoscomo

uminsucessopessoalquecomoumaimpossibilidadeinerenteàtransmissãoe

àformaçãomesmasdopsicanalistaenquantotal.

Haveria algo da psicanálisemesma que fracassa, que não poderia não

fracassar.Algonodiscursoanalíticonãopassa,etalveznuncachegueapassar.

Lembremqueéoúnicoquenãoseriadasignificação,emqueS1nãoalcançaS2.

Mas,mesmodentrodocampodasignificação,seriabomlembrarqueateoria

da linguagem de Lacan toma o próprio errar o referente dos significantes, a

falhamesmaemcapturarseuobjeto,comooobjetodalinguagem.Querodizer

que o fracasso (échec) como tal seria o objeto da linguagem36. E o fracasso

mesmotambémseriaoobjetodapsicanálise.

Meperguntoseconstatarestaimpossibilidadeinerenteanossodiscurso

não forçou Lacan a fazer a mesma escolha de Freud: alguma confiança ao

36BorgesJ.L.O.C.vol.2."Elotrotigre".Borgespensanumtigre.Sedácontaqueeste

tigrepensadoestáfeitoapenasdepalavraseprocuraumterceiro,quefosseoverdadeiro,odecarneeosso.Ysedácontaquesóencontraráotigrecomoconceito."Masalgo/Meimpõeestaaventuraindefinida,/Insensataeantiga,epersevero/Emprocurarpelotempodatarde/Ooutrotigre,oquenãoestánoverso."

24

funcionamento,nenhumaaospsicanalistas37.Adiferençaéque,aliondeFreud

entendia como "funcionamento" o dispositivo: as regras técnicas e

deontológicasquesedevemseguir,depreferênciasempensar,Lacanentendeo

matema, a via do matema, o que é inteiramente diferente, porque Einstein

podiaacreditaremDeustudoqueelequisesse,masamatemáticadateoriada

relatividade tem uma lógica interna própria que não cessa de provar a sua

eficácia,comoapossibilidadedamediçãodasondasgravitacionaisdemonstra

oitenta anos depois. Em todo caso, acho que as esperanças no matema são

menos as esperanças em encontrar fórmulas matemáticas psicanalíticas

(porquesefosseissoLacanseriamaisoumenoscomoFreud,queesperavada

biologia a confirmação futura da existência da pulsão; ele as esperaria da

formalização), menos isso, digo, que um rigor formal no pensamento dos

discípulos.

Paramim, o realmente espantoso é que este diagnóstico do estado da

arte, feito em 1967, tenha sido lido e ignorado por todas as gerações de

lacanianosatéhoje.

Aconferênciaromanaquevenhocitandoterminaassim:Quandoapsicanálise tenha rendidoas suasarmas frenteaosbecos sem saída,cadavezmais frequentes,danossacivilização, serãoretomadas,porquem?,asindicaçõesdosmeusEscritos.

Em suma, a psicanálise terá claudicado e seus Escritos, caído no

esquecimento. Sete anos depois, dirá que a religião triunfará e a psicanálise

fracassará,seráumsintomasocialsuperado.Lembro,aindaumavez,queeste

pessimismo aboluto quanto ao futuro da psicanálise e esta decepção no que

37Lição de 15 de janeiro de 1980: je n'attend rien des personnes et quelquechose du

fonctionnement.Doncil fautbienquej'innovepuisquecetteécolejel'ai loupéd'avoirechouéàproduiredesanalystesd'icellequisoientàlahauter.

25

tange aos psicanalistas coincide com o topo do seu sucesso pessoal,

institucional e mediático. Lacan era um superstar em 1967. Dois anos antes,

numaintervençãonocongressodasuaEscolaemLaGrandeMotte, tinhadito

paraseusformandos:Por exemplo,eu fracassei poucomais oumenosem tudo o que podia esperarobterdeumarevigorizaçãodapsicanálisefrancesa38.

E,bempertodofim,comoitentaanosenenhumarazãoparaapostarno

futuro,dirá:Falosemamenoresperançademefazerouvir,especialmente.(198039)

oexemplar(oinimitável)

Relendo a terceira conferência de Roma, encontrei uma exortação

dirigidaaoauditório francoitalianoque resume, aomesmo tempo,oestilode

Lacan e sua postura ética a ser transmitida aos analistas. Me refiro ao

impagável:Façamcomoeu,nãomeimitem!

197440

Aexterioridadedoanalistaemrelaçãoaodiscursodoseuanalisante,que

seriaprópriadequalqueranálise–nomínimoporqueelenão fechaosentido

queodiscursodopacientesugeria–,aparecereproduzidanasuaestratégiade

ensino,esetraduz,naprática,pelasuamarginalidadeeexclusãopermanentes

de qualquer classe conceitual, mesmo e sobretudo as que elemesmo criava.

Essaseriaaparte"façamcomoeu".

381965.39"Dissolução"40LacanJ."Latroisième"inAutresEcrits.Paris:Seuil,2014.

26

Porém, esperava-se que cada um fizesse isso a partir da sua própria

relaçãoao inconsciente, istoé, conformeseumodoparticular.Ouseja,devem

inventar-se um estilo particular. Esta seria a parte: "não me imitem." A

mudançaperpétua,oineditismosemfim,seriaseumodo,talvez,denãoceder

jamais em fazer com que o leitor fosse obrigado a ler seu texto como um

psicanalistadevelerodiscursodoseuanalisante.Tudoapontanessadireção:

pôr a advertência na entrada dos Escritos de que eles não são decifráveis, a

menosqueoleitorponhaalgodesinaleitura;abrircomosemináriosobre"A

Carta Roubada", fora da ordem cronológica, a coletânea de textos, com a

indicacãoexpressadequetudooqueseguedeveserlidocomesteensaiocomo

chavedeleitura:estaéumadicapreciosadeleitura:tudoestásemprenacara,

nãohánadaoculto.Sevocêsnãoenxergaméporqueprocuramoutracoisa41.

Nãoexagero,percebamaestratégia,parapodermosdeduzirapolítica:algunsqueestavam[nomeuseminário]desdeoinício,[testemunharãoque]nãohouveumúnicodessescursosquefosserepetido.Ou,"[aosoutros,quenãomeacompanharamdurantetodosestesanos]estáforadequestãodar-lhesinclusiveumaideiadaquiloqueensino,seoqueacabodedizeréverdade,asaber,quenuncamerepeti.

Aquinãosetratadequererseroriginalaqualquerpreço,masdeseguiro

movimento mesmo do que pretende mostrar, enquanto se esforça por

demonstrá-lo,asaber,oinconsciente.Querodizer,ademonstraçãopretendeser

more geometrico, formalizada, lógica, precisa, mas amostração só pode ser

paradoxal e em constante ruptura, comoo inconscientemesmo, que, embora

sigasuasprópriasrazões,revela-secriandocaosnarepresentaçãoorganizada

quetemosdenósmesmos.Nessesentido,oestilosuigenerisalusivo,equívoco,

41A propósito de "A carta roubada": vocês seriam como o rei, como a polícia e

finalmente,comoopróprioministro.EDupin,queseriaopróprioLacan,nãocainessaporquesaidocircuito,devolvendoacartaaquemdedireitoerecebendoporissoseushonorários.

27

barroco, paradoxal seria um modo de ensinar mediante uma estratégica

"imitaçãodoinconsciente"–assimcomosedizdavidadealguémquefoiuma

"imitaçãodeCristo".

Muitobem,pelosresultados,podemosconcluirqueestaestratégiaerrou

a política de fio a pavio, já que deu na constituição de um idioma chamado

lacanêseumatransmissãopífiadaclínica,apoiadanaimitaçãodasanedotasdo

que dizem que Ele fazia com seus pacientes (muitos deles tornados

"apóstolos").Umamigodeuummurronoseuanalista,quandoestelheenfioua

mão no bolso, para tirar dele o dinheiro com o qual devia pagar a sessão. A

respostaescandalizadadoterapeutaagredidofoi:"masLacanfaziaassim!"Ou

seja,ofrutodofamosoensinamentopeloexemploterminousendoummodode

pareceranalista baseadonapapagaiada, noqualpassouaparte "façamcomo

eu" e foi esquecida a parte "não me imitem". Se do lado freudiano restou o

"froidexplica",doladolacanianosobrouo"lacanfazia".Istoreflete,aliás,osdois

impassesemespelhodofreudismoedolacanismocomo"linhas"psicanalíticas.

Se,paraofreudismo,asregrastécnicassãosacrosantas,aprendidasnaanálise,

nãopornadadenominadadidática,enateoriaqualquerumpodeopinaroque

bem entender, que será publicado no Psychoanalytic Quarterly; para o

lacanismo, a teoria é sagrada e intocável, visto que se origina na palavra

revelada,mas,napráticaanythinggoes,valetudo,jáqueoanalistaseautoriza

porsimesmo(comoensinaestamesma"palavrarevelada")...

Emtodocaso,mancadaounão,qualseriaoembasamentoteóricodetal

estratégia?Sabemosquearelaçãodecadanovosignificantecomoconjuntode

todos os outros é semprede exterioridade, devido a queum significante não

podeaomesmotempopertenceraumaclasseenomeá-la.SuspeitoqueLacan

teria tentado fazer com que sempre a sua enunciação estivesse defasada em

28

relaçãoaoconjuntodosseusenunciadosteóricos.Nuncaseriapossívelpinçar

Lacanàclassefechadadoqueeledisseontem.Aideiaeradequetantoatrama

dos seus conceitos como seu modo de entramá-los não pudessem ser

encerrados em uma totalidade harmônica, e apresentados como doutrina ao

modouniversitário.Estaseriaalógicadaquelainsistênciaemnãorepetir-see

dizersemprealgodiferente:nãoeraparaestarnamoda,masaocontrário,para

sepôrforademodasemcessar.Estarsempremarginalaocorpoteóricodasua

própriadoutrinaterminasendopropostocomoumaética,eseriaamesmaque

cabeaoanalistaenquantoanalistadodiscursodosneuróticos.

Deummodogeral, esteensinoestava feitodeenunciados teóricosque

eramconstantementereconsideradoserefeitos,aopontoqueparapararcom

estaderiva,aortodoxiaestabeleceuqueapenasoúltimoseriaobom.Daínos

dizemqueexisteumprimeiroLacan,superadoporumsegundo,umterceiroe

um "ultimíssimo", que seria oúnico a se considerar.Aultimaversãode cada

conceito é a que vale, as outras estariam caducas. Como alguns aqui sabem,

discordo, penso que cada período leva ao limite um ponto teórico e a

formalização que o sustenta, e o período seguinte se apoia neste ponto de

chegada, que é também um ponto de impasse, para deslocar, subverter ou

recolocar o conceito em uma nova leitura que inclui ao mesmo tempo que

superaaanterior...

Amarginalidadepraticadanateoria,podemosconjecturar,oeratambém

emrelaçãoatodosaquelesqueoseguiameacreditavamnoquedizia.Lacanse

posicionava sempre em exclusão interna tanto em relação à teoria como em

relação à sua Escola e seus discípulos, o que só podia acarretar problemas

institucionais de todo o tipo. No mínimo, pela ciumeira que esse constante

furtar-seprovoca.Sim,estoufalandodaestratégiahistéricadecausarodesejo

do Outro, ou vocês duvidam da histeria de Lacan? Era, em todo caso, uma

29

políticaassumidadeensinar,enãoépornadaqueobservaqueodiscursoda

ciência temquase amesmaestruturaqueodahistérica (adoraria saberqual

seriaadiferença,nuncadescobri).Sempreinsistiuemsituar-se,desdeoinício,

naposiçãodeexceção.Éomais-umeomenos-um.Adotaparasiasfigurasde

ÉdipoemColona,abandonadopor todos,pornãocederummilímetrodoseu

desejo,deAntígona,emparedadavivapelasuairredutíveladesãoaumacausa,

deFiloctetes, traído,roubadodofalo(asuaespada),eabandonadonumailha

desertapeloscompanheiros.

Desde o "fundo sozinho, como sempre estive em relação à causa

psicanalítica", até a dissolução, passando pelo comentário de que Joyce

almejavadar trabalhoaos críticosdurante300anos, emboraelenãoousasse

sonhartãoalto,podemosconjecturarqueLacanquisparasiomesmodestino

deSadeoudeKafka(querodizer,oqueelesmanifestaramquerer,nãooquede

fatotiveram).Queasuaobradesaparecessecomele,vistoquenãotinhamais

como renová-la depois de morrer. Um pouco no espírito de après moi, le

deluge42, talvez.Nesse caso, l'échec,o insucesso, o fiasco, le ratage, a falha,a

mancada, le manque, a falta, a carência, o desencontro, le non rapport, o

insucesso,oesquecimento,l'oubli,assimcomoseumodelotopológico:letrou,o

furoelacoupure,acortadura,tambémaqueda,lachute,seriamossignificantes

doseudesejo.Cabe,portanto,perguntarseLacannãooteriaqueridoassim.Seo

fracasso não faz parte da lógica do seu ensinamento levada até as últimas

consequencias43.

Freudensinavacomoprofessor,precisamenteporquequeriaconvencer.

Aclarezadidáticaeraasuapolíticadetransmissão.Oquefaziacomoanalista,

eraoutracoisaenãocoincidiacomomododeensinarateoriadoquefazia.Já

no caso de Lacan, quando diz ensinar como analisante,haveria que entender 42LuisXV43LacanJ.SeminárioXI:"Nãohácausasenãodoquemanca[cloche]"

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issoaomenosdetrêsmodosdiferentes:primeiro,ensinaoqueelemesmonão

sabe; segundo, em vez de dizer o que faz, faz o que diz –não se limita a

descreverofuncionamentodoinconsciente,mostracomofuncionadefato(são

os equívocos, os neologismos, os paradoxos, as anfibologias, as frases

indecidíveis, etc.) e, terceiro, impede qualquer fechamento numa totalidade

conceitual.

Aquiestariamimplícitasastrêsposiçõesquemencioneiantesreferentes

à tarefa de analisar-se: a do psicanalista, a do "psicanalisante" (neologismo

lacanianoqueveioparaficar)eadopsicanalisado.Opsicanalistaseriaoagente

da tarefa do seu paciente, que põe seu inconsciente a trabalho. Como este

último não é passivo: ele se analisa com seu analista, assim como se diz de

alguemqueescrevecomumacaneta,Lacandescartaotermo"psicanalisando",

que se refere literalmente a quem sofre passivamente a análise do outro, e

propõedenominarospacientesde "analisantes".Mas, transformaralguémde

pacienteemanalisanteé tarefadeanalista;umanalisantenãovemdado. Jáo

psicanalisadoseriaaquelequedeummodoououtrodeuumfimàsuaanálise.

A vulgata nos fez acreditar que o "psicanalista" é necessariamente um

"psicanalisado", porquea condiçãonecessária (eparaalguns, suficiente)para

seranalistaése ter feitoumaanálise.Muitobem,Lacanachaquenão,eaqui

começam as mais sérias resistências contra o ensino lacaniano. Para ele,

psicanalistaéquemconseguesustentarumdiscursonovo,semprenovo,diga-

se,nomeiodosoutrosdiscursosdasociedade.Odiscursodoanalistaéaquele

que estrategicamente consegue interrogar qualquer outro discurso, sem se

fecharelepróprioemnenhumasignificação (se se fechasse,deixariade sero

discursodopsicanalista).Jáopsicanalisanteseriaaquelequenãocedenoseu

desejo de interpelar a sua própria "paixão de ignorância", seu próprio "não

quero saber nada disso". Que ele consiga sustentar tal desejo graças ao seu

analista,ou,commuitafrequencia,apesardele,nãotiranenhumméritoàtarefa

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analisante.Jáopsicanalisado,longedesersinônimodepsicanalistaésinônimo

de local de resistência. O psicanalisado esqueceu a subversão da relação ao

saberqueseoperounelegraçasaoatoanalíticoacontecidoquandoseanalisou.

PorissoLacaninventouacategoriade"analistasdaEscola":eramtodososque,

comoele,sedispunhamatirardoesquecimentooatoanalíticoacontecido.

É com esta referência ao que foi esquecido que passamos ao principal

resultadodofracassodeLacanqueéoprograma"LacanElucidado",soboqual

se formou amaioria dos que aqui estão. E aqui proponhoum intervalo, para

quepossamvoltaràtonaprarespirar.

LacanElucidado

Vamosresumiroessencialdopercorridoatéagora.

Em 1967, quando tudo fazia pensar que o lacanismo era um sucesso

mundial, Lacan anuncia seu fracasso em fazer passar a psicanálise para a

geraçãoseguinte.Soacomoumfracassopessoal,um"fracassei".Poroutrolado,

pareceestardiagnosticandoquehá,napsicanálisemesma,algo impossívelde

transmitir. Sugeri que deviamos pensar a diferença entre o fracasso da

transmissãoeatransmissãodofracasso.Nestesegundocaso,oqueestariaem

jogo seria fazer passar o sintoma de cada análise. Mas, ao mesmo tempo, a

psicanálise mesma pode considerar-se um sintoma em relação ao resto da

sociedade,ouseja,algoquefracassa."Eésóatítulodesintomaquesobreviverá

ounão[àreligião]"44OpalpitedeLacanéquenãosobreviverá.

O seu fracasso pessoal e o da psicanálisemesma se confundem. Neste

sentido, estaria repetindo, a seu modo, a falência de Freud, que tampouco

consiguiufazerpassarapsicanáliseparaageraçãoseguinte.Distosededuzque

algonapsicanálisemesmaseriaintransmissível.Oseuexercícioproduziriauma 44Conferênciadeimprensa,1974.

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resistência impossível de ser reduzida. E temos confirmadas duas das três

impossibilidades de que Freud já falara: analisar e ensinar. A terceira diz

respeitoaoincurável,oquenãopodesereliminadodosintoma.

Comodisse,oimpressionanteéqueestediagnósticodeLacantenhasido

ignoradotantopelosseusdiscípulosdiretos,comopelageraçãoqueseformou

com eles. A partir da terceira geração, aconteceu um fenômeno novo: o

esquecimento daquele fracasso foi ele próprio esquecido. Os analistas

esqueceramquehaviaumfracassoignorado.Eestamosfrenteaumasituação

semelhante à quedescreveuHeidegger em relação àmetafísica ocidental: ela

teriaintegralmentesidoconstituídasobreumesquecimento:odiscursosobreo

ser dos pressocráticos. E o mais grave era que os filósofos nem tão sequer

sabiamquehaviaalgoesquecido.Esqueceramoesquecimento,cujosrastrosele

pretendiaseguir,paralevantarovéusobreoesquecimentooriginário.Tratava-

sedebuscaraverdadedametafísica.Comoapalavragregapara "verdade"é

Aletheia (literalmente: des-esquecer) ela dava nome ao projeto filosófico

heideggeriano.Façonotar, também,queapalavraapokalypsisquerdizerdes-

cobrimento, tirar o véu, e por extensão "revelação". Menciono isso porque a

procura da verdade está em geral associada a esta significação: a verdade é

apocalíptica45. Não tenho certeza de como chamar tal esquecimento de um

esquecimentonocasoquenosocupa,masguardemcomigoahipótesedeque

talvezsetratedeumaoperaçãoderecalque,cujaformaseria"nãoquerosaber

nadadisso".EsteesquecimentodoesquecimentodoensinodeLacanaconteceu

emtrêstempos.

O primeiro tempo, o do esquecimento da essência da psicanálise,

aconteceu quando declara seu fracasso. Naquela época Lacan foi sendo

45AindaThematrix.

33

abandonado pela maioria dos analistas da primeira geração. Com as suas

saídas,eapósasconhecidasfundações,cisõeserefundações,omestrevirouo

gurúdasegundageração,adenão-analistas,issoéimportante.Oabandonodos

clínicos fez com que Lacan se voltasse para os filósofos e os teóricos, com a

esperançadequeoajudassemalevaratermoo"projetomatema":ummodode

transmissão formalizado. Os psicanalistas por direito adquirido tinham-no

decepcionado. "Me recuso a passar a vocês a carta forçada da clínica", dirá

naquelaépocaaumgrupodeestudantesdefilosofia.A"cartaforçada"éacarta

quevocêpegadobaralhoqueomágico teofereceparapegar.Você crêestar

escolhendo livremente, mas na verdade está tomando a carta que o mágico

desejavaentregar-te.Eporqueaclínicaseriauma"cartaforçada"?Porqueos

clínicossesentemdispensadosde teorizara lógicadoque fazemeacreditam

queaclínicaseexplicaasimesma.

Este foi o segundo tempo, oda apostanos leitores, porqueapostarnos

não analistas era apostarnos leitores.Isso foi repetidoquaseno fim, quando

veio pela primeira e única vez a américa latina. Antes de vir para Venezuela

disse, emParis, a títulodedespedida: "vouconhecermeus lacanoamericanos,

aquelesquenuncameviramnemouviramdevivavoz.Ouvidizerque láeles

me lêem. Quero saber o que acontece quando meu corpo não faz obstâculo

àquiloqueensino."Oqueveioaseguirébemconhecidoeconstituioterceiro

tempo,odoesquecimentodoesquecimento.

Tinha começado esta fala apresentando o conceito de desleitura e

sugerindo que os grandes psicanalistas são consistentes desleitores. Quero

terminarcomentandoadesleituramilleriana,quenosconcerne,namedidaem

queéporelaquepassaoensino(doensino)deLacanhoje.OmododeMiller

desler éooposto doqueBloomdenominaapophrades, o retornodosmortos.

Nesteúltimocaso,tudosepassacomoseosegundopoetahouvesse,elemesmo,

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escrito a obra característica do seu precursor, cuja figura paradigmática é

Pierre Menard, autor del Quijote, de Borges.Miller, ao contrário, não apenas

negaasimesmocomoleitoreasuaobracomoleitura,comotambémpossuio

poderinédito—devidoasuacondiçãojurídicadeexecutortestamentárioede

estabelecedor designado do texto lacaniano—de reescrever o texto mesmo

assinadoJL,apartirdoseupróprioatodeexegeseapagadocomotal.Emoutras

palavras, quem compra a versão Seuilde O Seminárionão está lendo JLmas

JAM, e não sabe. Podem constatar isso a qualquer momento, referindo-se à

única edição dos seminários não adulterada que existe e que está no site

staferla.free.fr,ou,àprimorosaediçãocrítica,aúnicaqueexiste,doseminário,

realizada por Ricardo Rodriguez Ponte, e que está, incompleta porque ele

morreu,infelizmente,emlacanterafreudiana.com.arEstaúltima,emcastelhano.

Emportuguêsnãoexistenadasemelhante,haveriaquefazê-lo.

"LacanElucidado",então,comodevemsaber,éonomedacoletâneade

conferênciasministradasporMillernoBrasilentre1981e1995.Descrevemo

projeto colonialdeclaradode explicarLacanaosbugres.OovodaAssociação

Mundial foi posto por estas bandas, antes de ser chocado em Paris, fato que

encheu de orgulho ao delegado colonial local, me lembro. O fato é que o

sintagma "Lacan Elucidado" virou o nome de um programa. O programa

sistemático de correção do ensino lacaniano para fazer desaparecer a

orientação anti-ontológica e anti-biologicista que o caracteriza. Sobre isso

falaremos longamente semana que vem. Dito programa foi depois batizado

como"OrientaçãoLacaniana",quasetodososeguem.

"LacanElucidado"éummanifestoiluminista.Declaraaadesãoexplícitaà

Aufklärung,àilustração.Entretanto,oqueestáemjogoémenosjogarluzsobre

a obscuridade barroca do estilo do mestre que reescrever-lhe o ensino.

Simplificar,decidiro indecidido(apostandoaquenãoé indecidível),eliminar

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as ambigüidades, simplificar o discurso com miras a constituir uma Summa

Lacaniana. Esse é o programa milleriano e tudo isso foi feito sob o total

beneplácito de Lacan. Fato comprovado que impõe a pergunta que fiz mais

cedo:"foiissoqueLacanqueria,ousetratoudeumcálculoquedeuerrado?"

Miller não apenas é um leitor fortissimo como também é um autor de

raro talento.Aobramilleriana,assimcomoestásendoconstruída, fundauma

ortodoxia lacaniana e estabelece um Lacan-padrão-mundial, uma Lacanian

StandardEdition. Mas, se JAMé o aufklärer, o "explicador", o exegetamór, é

porqueLacanlhedeuestafunção.Note-sequeseeleprecisaesclareceroqueo

outro queria dizer, isto é sinal de que este último não o diz. E não exagero,

porque aqui está ipsis literis, na primeira página deTélévision, o começo de

tudo.Sãoduasnotinhasdenadapublicadassobotítulode"Advertência",antes

datranscriçãodestaconferênciatelevisadadeLacande1972:

"Pediàquelequevosrespondiaquepeneirasseoqueeuentendiadoqueelemedizia.Oquefoiescolhidoficanasmargensàguisademanuductio."J-AMiller,Natalde1973."Aquelequemeinterrogatambémsabeler-me"JL

Parecepouco,duasnotas,quasenada,mas,naminhaopinião,aquiestá

decididoemseuespíritooprograma"LacanElucidado",eseladoodestinodo

denominado"meuensino",nomeadamente,seufracassoeseuesquecimento.

Aprimeiranotadiz:"[Eu,Miller,]pediàquelequevosrespondia[ouseja,

Lacan] que peneirasse o que eu entendia do que ele me dizia." Trata-se do

seguinte:onormalianoescreveudezperguntasqueopsicanalistarespondeude

improviso frente a uma câmera. Depois da desgravação e transcrição, Miller

mandouaLacananotaçõesdoqueele,Miller, tinhaentendidodaquele jargão

todo,eomestreselecionoualgumasdelas,que foram impressasnasmargens

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dotextoprincipal,atítulodeexplicação.Atítulodemanuductio,comoescreve

Miller.

E o que é um manuductio? Literalmente: "conduzir-te pela mão", é o

corrimão.Refere-seàmãozinhacomo índiceextendidoaplicadanasmargens

dos textos medievais, para indicar as glosas, as anotações marginais, os

comentáriosexegéticos,quenãodeviamserconfundidoscomoescritooriginal.

Os cartórios ainda as usam para indicar o lugar da firma verdadeira. Por

extensão,éocorrimãoqueteconduzpelamãoparaaverdade.Oindexdaigreja

éummanuductio.Éa indicação(aindaodedoíndice)doquesedeve leredo

quesedeveentenderdaquiloqueseleu,assimcomoaespecificaçãodoquenão

sedeve leredoquenãosedeveentenderdoque foi lido.Eu fizumtrabalho

sobre as exegeses doCânticodosCânticosao longo dos anos que ilustra bem

esteprocedimento.ÉaoperaçãodaInquisição.

Asegundanotinha,publicadaembaixodaprimeira,estáassinadaJLediz,

domodomais singelo: "aquele queme interroga", Miller, no caso, detrás da

câmera fazendoasperguntasemoff queele ia respondendo, "aquelequeme

interroga",então,"tambémsabeler-me".Podemosconsideraraprimeiracomo

umpedidodeautorizaçãoaoOutro,easegunda,comoarespostadesteúltimo

referendando a demanda recebida. As duas notas tem exatamente a mesma

estruturaqueasduasoraçõesdofamosoparadoxo:

"Aoraçãoquesegueéfalsa"

"Aoraçãoqueantecedeéverdadeira"

E aí temos anunciado, com esta mãozinha virtual nas margens desse

textolacaniano,oiníciodoqueseráoprograma"LacanElucidado".Istofoiem

1973.Opassoseguintefoioprogressoquevaidoeletambémsabeler-mea"Tu

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esoúnicoquesabesler-me",chanceladopeloofício,assinadoemcartório,um

ano mais tarde, nomeando o futuro genro como executor de toda a obra

publicávelsobaassinaturaJL.Emtodocaso,énaquelasduasnotinhasdoano

anteriorqueseconstituialendaeacatástrofedolacanismo.

O que se seguiu foi caracterizado por Jorge Jinkis como "a maior

operaçãoderecalquedahistóriadapsicanálise."Paranãocairnaesparrelada

extrapolação,alaZizek,dosconceitosdonossocampo,haveriaquetratarcom

cuidadoestaideiadeumrecalquedaenunciaçãodeLacan,cujoagenteseriao

discursodeMiller.Comodizia,proponhopensá-lonomesmosentidoemque

Heidegger diagnosticava um esquecimento primeiro, duplicado por um

segundoesquecimentoque apagaos rastrosdo anterior. E se isto épensável

paraametafísicaocidentaldesdePlatão,porquenãooseriaparaapsicanálise

comoumtodo?

Lacan teria tentado recuperar o conceito e a função do significante,

neutralizadopor umahermenêutica do tipo "o charuto é o falo", habitual em

Freudenosfreudianos,semconseguir.Aclínicadainterpretaçãoterialevadoa

melhor sobre a clínicado ato. Este seria oprimeiroesquecimento.O segundo,

estaria na obra de JAM, cujo curso, um verdadeiro campeão de audiência,

representa aquele sucesso mediático qualificado por Lacan de fracasso da

transmissão.Omillerismoéumamonumentalcatedralemobraserigidasobre

asruinasdoprecursor.Eesteseriaosegundoesquecimento,queselaasorteda

enunciaçãodeLacan.

Comodisseantes,concordocomLacanemqueMillerolêcomoninguém.

Éumleitorforte,setemalgum.Porissomesmo,mostraralógicadeseuatode

desleitura é uma tarefa imprescindível e urgente, porque Miller apagou as

pegadas intencionalmente. Se der tempo, vou demonstrar isso na próxima

reunião,lendoumaauladocursodeMillerde2011,denominadaDaontologiaà

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ôntica, na qual, demodomagistral, acompanha o ensino de Lacanparipassu

paraconcluirocontráriodoqueLacandissenostextosaqueeleserefere.Éum

verdadeiropassedemágicae,comodisse,éumaobraprima.

Miller temumprogramacuidadosamentepensadopara resituardeum

modonaturalistaumlacanismofilosoficamentefenomenológico,perfeitamente

adequadoaosentidocomum.Aliás,épor issoque temtantosucesso.Sucesso

prognosticado por Lacan.Mas, não cabe pensar que ele foi secretamente seu

artífice? Em relação a isso, eu tenho duas hipóteses, ambas improváveis e

perfeitamenteindemonstráveis.Umairianadireçãode"Lacanoquisassim",a

suaformaseria,parafraseandoRobertoCarlos:"jáqueestátudoperdido,que

tudoomaisváproinferno".Ouseja,comodisseantes,talcomoSadeoucomo

Kafkanofinaldesuasvidas,Lacanteriaqueridoqueseulegadofosseapagadoe

extinto, e o agente desta extinção teria sido, sem saber, seu herdeiro. Outra

possibilidadeseriaconsideraroódiodesteúltimopelopesodaherançaqueo

enverga.Quemelhorvingançaque fazer comoodiabo,dequemdizemquea

suamaiorfaçanhafoiconvencertodomundoquenãoexiste?Millernãoexiste

(ele disse isso a Lacan, quando este sugeriu que "Os quatro conceitos",

estabelecido, fosse assinado por ambos: "eu não passo do seu transcritor, a

minhapresençanãocontaparanada...éapenasolugardepassagemdevossa

palavra"...). Tratar-se-ia apenas de Lacan... elucidado. Em outras palavras,

purgado de lacanismo. Não temos café descafeinado, cerveja sem alcool,

cigarros semnicotina e sucos sem açucar? Pois bem,Miller nos entrega uma

psicanáliselacanianadeslacanizada.

Deixo então este assunto em forma de pergunta, e passo a um último

comentário, com o qual termino. Acabei de ler uma biografia de São João da

Cruz, poetamístico espanhol do século xvi, que Lacan cita em "Mais, ainda",

elogiosamente,juntocomMestreErkhart,SorJuanaInésdelacruz(biografada

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por Octavio Paz) e a famosa Santa Teresa D'avila (em relação à qual devo

observardepassagemque,concluirqueasantagoza,analizandoaestátuade

Bernini,meparecetãoprocedentequantoafirmarquealguéméfelizolhandoa

fotodoperfildeFacebook).

San Juan de la Cruz, então, trata-se de introduzir seus textos entre os

escritosdaquelesmísticosque,segundoLacan,sãooquehádemelhorparase

ler—eacrescentaquehaveriaqueincluirseusprópriosEscritos:emsériecom

asobrasmísticas,atenção,nãocomNielsBohr.Eimediatamentediz:"vocêsvão

pensarque..." Lacandiz:"vocêsvãopensarque..." Eoquêvãopensarvocês?

queacreditoemDeus!Não!,acreditonogozodamulher,noqueeleédemais

(enplus)emrelaçãoaofalo..."etc.Acitaçãoéconhecida,eaprofissãodefédo

velhomestrenogozofemininotambém.

Antesdeprosseguir, valenotarqueos tais escritosmaravilhososde se

ler,segundoLacan,sãoacoisamaisenfadonha,maischataquetenteiencarar

navida.NãotenhocertezaseeleserefereaostratadosemprosadeSãoJoão,

que são comentários explicativos intermináveis, redundantes, dos seus

próprios textos místicos, ou às alegorias poéticas, que seriam os escritos da

experiênciamísticaemsi.Sejacomofor,trata-sedeumaliteraturaentediante

deumgrautalqueperseverarnelaresultaumatodedevoçãouniversitária,ao

menosparamim.

Emtodocaso,nãofalodosescritosmísticospelotemadogozo,quenão

vemaocasoagora,masporqueobiógrafodeSãoJoãoescreveumacoisaque

captouminhaatenção.Dizqueomonge,enquantoescreviaeeralido,foiquase

mandadoparaafogueiraváriasvezescomoherege,peloefeitoperturbadorque

a descrição da experiênciamística fazia nos leitores,mormentemembros da

igreja e alguns doutores leigos, incluindo-se os inquisidores, que queriam

excomungá-lo e, como disse, queimá-lo. E então... foi canonizado! E ali,

finalmenteoneutralizaram,poistodomundopassouarezar-lheenuncamais

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foi lido.Não sei se Lacan estavaounão apardessesdetalhes,masnaminha

opinião,SãoJoãodaCruzéafiguraquemelhorpoderiarepresentarodestino

da obra escrita de Lacan, que também foi canonizado (esse seria o "Lacan

Elucidado")paraserrezadoenuncamaislido.Nessesentido,diriaqueaaposta

comumquenosuneseriaadecisãodepararderezar-lheevoltaralê-lo.

Obrigado.