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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU “O FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO DE ARTHUR SCHOPENHAUER” Dissertação de Mestrado em Filosofia apresentada à coordenação do curso de Pós- Graduação Stricto Sensu da Universidade São Judas Tadeu, como requisito para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação do professor Dr. Mauricio Keinert. SÃO PAULO 2010

“O FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO … Agradeço aos meus pais por sempre acreditarem em mime permanecerem ao meu lado em todos os momentos, ruins e bons, de mais esse percurso,

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

“O FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO

DE ARTHUR SCHOPENHAUER”

Dissertação de Mestrado em Filosofia

apresentada à coordenação do curso de Pós-

Graduação Stricto Sensu da Universidade São

Judas Tadeu, como requisito para a obtenção

do título de Mestre, sob a orientação do

professor Dr. Mauricio Keinert.

SÃO PAULO 2010

Gutierrez, Leandro Cardoso

O fundamento da moral no pensamento de Arthur Schopenhauer / Leandro Cardoso Gutierrez. - São Paulo, 2010.

xx f. ; 30 cm

Orientador: Mauricio Keinert Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São

Paulo, 2010.

1. Schopenhauer, Arthur, 1788-1860. 2. Conduta. I. Keinert, Mauricio. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878

DEDICATÓRIA

Dedico este pequeno estudo primeiramente aos meus pais e também a Eliani, a primeira e a única, e aos professores e amigos Paulo Jonas de Lima Piva, Mauricio Keinert e Plinio Junqueira Smith, com a esperança de ter a honra de o mesmo estar a altura de todos eles.

Agradecimentos Agradeço aos meus pais por sempre acreditarem em mime permanecerem ao meu lado em todos os momentos, ruins e bons, de mais esse percurso, assim como também em toda minha vida, demonstrando o que é um amor verdadeiro. Em razão do acidente que sofri no dia 23/01/2010 que quase ceifou minha existência, agradeço ao médico Dr.Marcos R. Gregorini por com excelência ter salvado minha vida e ter se mostrado uma pessoa superior todo o tempo como também a toda a equipe médica que me acompanhou e zelosamente cuidou de mim em minha recuperação na UTI e internação, em especial ao enfermeiro Daniel. Também em razão do acidente sofrido agradeço aos parentes que me ajudaram e também a meus pais. Agradeço a minhas tias Terezinha Pereira Cardoso, Aparecida Cardoso Santos,Bernadete Pereira Cardoso da Silva,todas mulheres de bondade inigualável. Meus tios Joaquim Pereira Cardoso, Jorge Vicente da Silva. Meus primos Alexandre de Oliveira Santos, Alexandra de Oliveira Santos, Márcia Rodrigues Cardoso de Souza, Marcelo Rodrigues Cardoso, Adalberto Brito de Souza, Cecílio Giroto Junior, Heloisa Vicente Cardoso da Silva e Adriana Vicente Cardoso da Silva. Todos me mostraram extrema lealdade, virtude indispensável a qualquer pessoa como também a família maravilhosa que tenho. Agradeço aos meus amigos Luciano Alves Pereira e Luis Alberto Alves Pereira pela lealdade extrema e companheirismo. Agradeço ao professor e amigo Alexandre Calegaro Moraes por me ajudar tanto em 2005 quando passava por um momento muito difícil. Agradeço a meu amigo Cônego Antônio Hélio Augusto Ferreira, que dentro da fé que possui, fé essa que não tenho e nunca terei, também se mostrou leal e me ajudou que de todas as formas pôde. Agradeço a minha amiga Silvia Regina Fratezi Martins pela ajuda indispensável para a realização deste trabalho Agradeço ao meu amigo Emerson Ferreira Rocha pelo auxilio durante as aulas e também depois delas. Também agradeço aos meus inimigos e traidores, alguns disfarçados de amigos, que através de seus atos de extrema covardia, agressão e abandono em momentos difíceis, ensinaram-me a força da sublimação do ódio que senti por eles, força essa que foi indispensável para o término deste trabalho. Mas “o mundo dá voltas” e um dia os verei deformados e mutilados arrastando-se pelo chão sangrando a ponto de se afogarem no próprio sangue! Agradeço a toda Universidade São Judas Tadeu pelos momentos felizes que me proporcionou e em especial a coordenadoria de Pós Graduação nas pessoas de Simone, Daniel e Selma que me ajudaram de maneira impar e atenderam muito bem minha família enquanto estava internado.

Agradeço ao CAPES, na esperança de ter correspondido com um bom trabalho, pela bolsa sem a qual jamais teria realizado este mestrado. Que ele continue existindo e realizando sonhos e conseqüentemente tanta felicidade. Não foi só por mim. Agradeço ao professor Plinio Junqueira Smith, grande intelectual e também a professora Regina André Rebollo, também grande intelectual, pela maneira especial com a qual me receberam e pelos ensinamentos preciosos que recebi deles. Agradeço ao professor e orientador Mauricio Keinert, exemplo de ser humano, por ter se mostrado não apenas um professor, mas um amigo, que me ajudou de todas as formas e acreditou em mim e em minha capacidade jamais me abandonando, tratando-me como um irmão. “Jamais te esquecerei Mauricio”!Carregarei comigo sua lembrança para onde eu for. Agradeço de maneira especial ao professor Paulo Jonas de Lima Piva, por ter me recebido na Universidade São Judas Tadeu de forma tão carinhosa, por ter acreditado em mim, me encorajado nos momentos difíceis, ter me dado todas as dicas referentes ao mundo acadêmico e ter se mostrado sempre um homem de extremo caráter e bondade, não só comigo, mas com todos os alunos. Dificilmente encontrarei em minha vida, que como a de todos é curta, outra pessoa que como ele seja tão grandiosa. Tudo isso faz dele um homem superior. A homens como ele deveria pertencer o domínio da terra! Sem ele jamais teria conseguido, jamais teria chegado até aqui. A ele devo praticamente tudo e enquanto eu viver carregarei em meu peito essa gratidão e seu rosto jamais desaparecerá da minha memória. Quem sabe um dia o acaso me dará a oportunidade extremamente feliz de agradecê-lo da maneira que ele merece, já que essas simples palavras não podem fazer isso. Também espero ter um dia a felicidade de poder ser considerado por ele um irmão, coisa que seria uma das maiores honras da minha vida. A ele meu eterno “muito obrigado”.

Quantum of solace

Sou capaz da maior glória de todas que é você! Sou capaz dos seus lábios, olhos e cabelos.

Sou capaz do seu rosto inteiro. Do seu corpo inteiro.

Do seu gozo de viver feliz.

Em você, por maiores que sejam as batalhas, Descanso como nunca,

Descubro o que sempre quis e sabia que queria. Encontro as ternuras perdidas da minha vida,

E faço a lua e as estrelas parecerem mais bonitas do que são: eu as ouço.

Mudo de palavras e digo que tu és minha maior vitória. Tu és o sonho que reclama vida por mérito de beleza sem fim.

Tu és a sombra onde descanso com frutos frios e calmantes. Lugar onde ninguém pode chegar,

Minha maior quantidade de consolo.

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. (Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas) “Perfeição é a morte”. (Olavo Bilac, Tarde)

Resumo

O presente trabalho possui a finalidade de expor e investigar profundamente o

fundamento da moral do filosofo Arthur Schopenhauer, assim como também pontos

relevantes de toda sua filosofia, como, por exemplo, as questões da representação e da

metafísica da vontade, e também sua crítica a moral kantiana. Assim essa exposição não

conterá apenas o pensamento que se encontra em sua obra “Sobre o fundamento da moral”,

mas também o de sua obra capital “O mundo como vontade e representação”. Em relação a

sua obra “Sobre o fundamento da moral” pretendemos demonstrar a importância da

experiência e do sofrimento humano como meios de encontrar o primeiro princípio da moral,

isto é, o fundamento moral que para ele trata-se da compaixão, que consequentemente deve

estar ligada a ambas, segundo o próprio autor, não encontradas na fundamentação da moral

kantiana, e que possuem em todo o pensamento de Schopenhauer extrema relevância.Depois

da investigação do fundamento da moral apresentado pelo autor nos permitirá, através, da

explicação metafísica desse mesmo fundamento, penetrarmos na filosofia do autor em seus

pontos mais obscuros que nos levarão até uma tentativa de elucidação da questão proposta:

“compaixão e ilusão de individualidade não podem coexistir”, questão essa diretamente ligada

como já dissemos a sua filosofia e por isso mesmo de extrema importância.

Palavras- chave: 1. Fundamento da moral. 2. Schopenhauer. 3. Kant. 4. Ética.

5. Pessimismo. 6. Compaixão. 7. Vontade.

Abstract

This essay has as main goal deeply expose and investigate philosopher Arthur

Schopenhauer’s moral foundation, as well as relevant points of his whole philosophy, for

instance, representation and metaphysic willing issues, as also his kantiana moral criticism.

Therefore, this exposition will not just contain the thought found is his work “About moral

foundation”, but also from his capital work “the world as willingness and representation”.

According to his work “About moral foundation” we intend to show the importance of the

experience and human suffering as tools used to find the first moral principle, the moral

principle that for him is about compassion, that consequently might be connected to both not

found at Kantiana’s moral foundation according to the author, and that can be found

extremely relevance at the whole Schopenhauer thought.

After the moral foundation investigation showed by the author, it will be possible

through a metaphysics explanation from the same foundation, to get into the author's

philosophy darkest points that will lead us to an attempt to elucidate the question

posed: "illusion of compassion and individualism can not exist", an issue directly linked as we

have said his philosophy and therefore of the most importance.

Key word: 1. Foundation of morals. 2. Schopenhauer. 3. Kant. 4. Ethic. 5. Pessimism.

6. Compassion. 7. Will.

ÍNDICE Introdução................................................................................................................... 1 1. Crítica de Schopenhauer a moral kantiana ......................................................... 12 1.2. Negando a metafísica do povo............................................................................ 21 1.3. Crítica à forma imperativa da moral kantiana................................................. 25 1.4. Crítica à admissão dos deveres a nós próprios.................................................. 34 1.5.Crítica ao fundamento da ética kantiana ........................................................... 39 1.6. Crítica à lei moral kantiana ............................................................................... 45 1.7. Crítica ao princípio máximo da ética kantiana e a suas formas derivadas...... 50 2. Da compaixão como único e verdadeiro fundamento da moral .......................... 67 2.1 A visão cética sobre a moral................................................................................ 72 2.2 Provando a existência da compaixão e demonstrando-a como único e verdadeiro fundamento da moral............................................................................. 78 2.2.1 Das virtudes da justiça e da caridade .............................................................. 84 2.2.2 Da real existência da compaixão ...................................................................... 88 2.3 A Representação e a Vontade ............................................................................. 95 2.4 A Explicação metafísica da compaixão............................................................. 106 Conclusão ................................................................................................................ 115

1

Introdução

No ano de 1837, a Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague,

propõe um concurso, no qual seus concorrentes deveriam apresentar uma investigação

sobre a seguinte questão:

“Tendo em vista que a idéia originária da moralidade ou de seu conceito

principal da lei moral suprema surge como uma necessidade que lhe é

própria, embora não seja de modo alguma lógica, não só na ciência que tem

por objetivo expor o conhecimento do ético, mas também na vida real, na

qual ela se apresenta em parte no juízo da consciência sobre nossas próprias

ações, em parte em nossos juízos morais, sobre o comportamento dos outros,

e tendo em vista, além disso, que vários conceitos morais principais, nascidos

daquela idéia e dela inseparáveis, como, por exemplo, o conceito de dever e o

da imputabilidade, fazem-se valer com a mesma necessidade e no mesmo

âmbito – e, ainda, que nos caminhos que segue a pesquisa filosófica de nosso

tempo parece muito importante investigar de novo este objeto – quer a

Sociedade que se reflita e se trate cuidadosamente da seguinte questão:

A fonte e o fundamento da filosofia moral devem ser buscados numa

idéia de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções

fundamentais que dela derivam ou em outro princípio do

conhecimento?”1

Arthur Schopenhauer propõe-se não só a responder a questão, mas, também, a

esclarecer todos os enigmas que envolvem a questão moral. Não poderia ter intuito

diferente, um filósofo que pensava ter a Filosofia a missão de decifrar o mundo e o seu

significado. Schopenhauer é adepto da filosofia kantiana na qual o mundo é fenômeno e

“coisa em si”, mas em seu pensamento não há a renúncia da busca pelo conhecimento

da “coisa em si”, considerado por Kant inatingível por ser algo transcendente. Assim, a

metafísica deve ser para Schopenhauer imanente e através da experiência não só pode

como deve desvendar aquilo que o mundo tem de oculto e que existe de maneira

impassível. Esse oculto, para ele, é a vontade. Tal era seu desejo ao escrever sua obra

prima: O Mundo como vontade e como representação. Nesse livro Schopenhauer

1 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.3

2

concentrou todas as suas forças e conhecimento. Para ele, os grandes mistérios do

mundo estavam ali esclarecidos. Schopenhauer tenta em toda a sua filosofia desvendar o

enigma do mundo, sua verdadeira essência, aquilo que ele realmente é sem nenhuma

alegoria ou religiosidade – a filosofia deve permanecer cosmologia e não teologia –, as

causas do sofrimento humano e, consequentemente, encontrar um significado para a

existência do homem, a sua finalidade; dar a ele uma meta a ser atingida que o levaria à

libertação da dor, a chamada “salvação”, já que para ele, o mundo é e sempre será um

sofrimento infinito. Assim compreende-se que não apenas decifrar o mundo, mas

também encontrar a redenção da humanidade é o seu interesse, o que faz de sua

metafísica, uma metafísica que culmina sem nenhuma dúvida na ética.

Tal pensamento extremamente pessimista, de que o homem é um ser sofredor

em meio a um inferno ilimitado que é o mundo e que o mesmo deve buscar o meio de

sua “salvação” também se alicerça em sua metafísica da vontade, fruto de sua busca

incansável pela verdade da vida como acima explicamos e tal busca só é possível pela

metafísica que, para o nosso autor, é a única capaz de responder perguntas como “Qual

o motivo do sofrimento?”, “Qual o sentido da vida?”, “O que é o mundo?”. Sem a

metafísica jamais essas perguntas poderiam ser esclarecidas por completo. Assim, o

filósofo que realmente estiver comprometimento com a verdade, jamais poderá

esquecer-se da metafísica ao questionar qualquer coisa. Surge assim o primeiro

problema apontado para a consecução da investigação e seu estudo sobre o tema, pois,

segundo nosso pensador, a Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague

exige que o ensaio apresente o fundamento da ética por si só, sem o apoio de nenhum

sistema filosófico, ou seja, sem nenhuma metafísica, o que para Schopenhauer é algo

quase impossível de se fazer dada a importância que, como vimos, ele atribui a

metafísica.2

Mas, mesmo assim, como veremos, a metafísica será de grande importância para

Schopenhauer tentar desvendar, depois de apresentá-lo, a essência daquele que seria o

único fundamento da moral realmente válido. Em seu ensaio intitulado Sobre o

fundamento da moral, que será o centro das nossas investigações e com a qual

concorreu ao prêmio oferecido pela Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de

2 “Acrescentando-se que a Sociedade Real exige que o fundamento da ética seja exposto separadamente e por si só, numa monografia curta, fora, portanto de sua conexão com o sistema de qualquer filosofia que seja, quer dizer, da metafísica propriamente dita, isso deve não só dificultar a sua realização, mas até torná-la incompleta”- Schopenhauer, A.Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes: São Paulo 2001. P7

3

Copenhague, Schopenhauer apresenta toda a sua investigação sobre o tema. Esse ensaio

foi publicado posteriormente, mais precisamente em 1841, juntamente com outro ensaio

intitulado Sobre a Liberdade da Vontade (1839) sob o título de Os Dois Problemas

Fundamentais da Ética, o último, diferentemente do primeiro, foi premiado pela

Sociedade Norueguesa de Ciências de Dronthein que promoveu o concurso. Desde o

inicio até o fim do ensaio Sobre o fundamento da moral, percebe-se sua intenção, não

apenas de responder a questão proposta e decifrar os mistérios da moral, mas também,

de atacar ferozmente alguns pensadores de sua época, os “sofistas” de seu tempo, como

Fichte, Schelling e, principalmente Hegel, o que o faz “ter-se identificado com

Sócrates”3 na luta contra os sofistas que não possuíam nenhum comprometimento com a

verdade. E também de demonstrar que, com exceção das palavras de Rousseau, tudo

aquilo que até então havia sido dito sobre a moral em toda a história da filosofia não era

suficiente para apresentar algo realmente satisfatório em relação à questão moral.

O ensaio de Schopenhauer sobre a moral possui em si quase todo seu

pensamento. Impossível seria entendê-lo sem conhecer suas outras obras e também

algumas características principais de sua filosofia, na qual, a moral e a vida ética, como

já vimos, possuem extrema importância. Sobre essa importância comenta David E.

Cartwright: em seu texto: “A filosofia de Schopenhauer foi motivada desde o seu inicio

até o seu final por preocupações morais” 4, apesar de ele ser mais conhecido por seu

profundo pessimismo vindo de sua metafísica da vontade.

No pensamento de Schopenhauer a moral em sentido estrito refere-se às ações

éticas, a compaixão e outra na ética em sentido amplo que nada mais é do que a negação

da vontade e esta por sua vez leva em consideração a metafísica da vontade e

representação apesar de em um primeiro momento parecerem coisas totalmente

diferentes, a primeira, de alguma forma conduz a segunda.

O exame dos textos necessários para a compreensão da fundamentação moral de

Schopenhauer será feito no segundo capítulo desse trabalho de forma pormenorizada5.

Assim, nessa parte introdutória de nossa dissertação, estamos apenas apresentando a

forma com a qual Schopenhauer trata do assunto em exame e também de que maneira o

3 Roger, Alain In: Schopenhauer, A.Sobre o fundamento da moral trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo 2001: p.. 15 4 Cartwright, E. David. “Schopenhauer`s Narrower Sense of Morality”. In: The Cambridge Companion to Schopenhauer. (Edited by Christopher Janaway). Cambridge: Cambridge University Press, 1999.p. 252 5 Nos referimos a obra capital do autor O mundo como vontade e como representação, onde é apresentado os dois lado do mundo, fenômeno e “coisa em si” e também a doutrina da salvação através da negação da vontade.

4

apresentaremos. Passemos então adiante, e nos empenhemos em conhecer os pontos

principais de seu ensaio sobre o fundamento da moral e como ele será por nós

apresentado e investigado. Schopenhauer inicia seu trabalho examinando

primeiramente a própria questão proposta pela Sociedade Real Dinamarquesa de

Ciências de Copenhague e traça a forma com a qual tal questão deve e vai ser estudada

por ele. Primeiramente, como já citamos, a ausência da metafísica será o primeiro

problema a ser resolvido pelo pensador. Sem a metafísica a explicação do fenômeno

ético irá se restringir apenas ao campo psicológico como o próprio autor afirma6, mas

mesmo assim, como já mencionado, indo além do que foi proposto pela Sociedade Real

Dinamarquesa de Ciências de Copenhague, ao final do seu ensaio, como veremos ao

final do segundo capítulo desse trabalho, ele retoma a metafísica e com ela tentará

encontrar a origem do seu fundamento da moral que dará as bases para a interpretação

da questão proposta por nós e que será apresentada mais adiante ainda nessa introdução.

Juntamente com a ausência da metafísica, ainda será apontado por Schopenhauer

outro problema a ser superado por ele e que também existiria pela forma com a qual a

Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague apresenta a questão a ser

solucionada: “Além disso, a pesquisa teórica do fundamento da moral subjaz a peculiar

desvantagem de poder ser tomada pelo minar do próprio fundamento, que poderia

acarretar o desmoronamento do todo edifício”7. Assim, o filósofo que tentar responder à

questão proposta deve se esforçar ao máximo para que nada que venha do exterior possa

penetrar-lhe a alma no momento em que se debruçar sobre a questão e estar atento em

suas observações, pois, em um tema como esse, é difícil manter-se distante da

“investida febril das santas convicções do coração” 8.

Dessa forma, com a ausência da metafísica, Schopenhauer terá de partir dos

próprios fatos, da experiência interna ou externa dos homens e neles tentar encontrar a

solução para a questão proposta: “Em contrapartida, com a separação, posta nessa tarefa

como necessária, entre a ética e a metafísica, nada mais resta senão o procedimento

analítico, que parte dos fatos, quer da experiência externa, quer da consciência” 9.

6

Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001.p.8-9 7 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p..6 8 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p..6 9 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.8

5

Assim, tomando o máximo de cuidado para não se influenciar por nada que possa viciar

a visão da verdadeira essência da moral, como acima vimos, Schopenhauer apresentará

aquilo que ele considera o verdadeiro fundamento da moral: a compaixão. Somente ela,

segundo o autor, pode dar origem a um ato que realmente não possua nenhuma forma de

interesse egoísta, característica essa que, como veremos, define a verdadeira ação

genuinamente moral. Mas antes de chegar até a apresentação desse fundamento,

Schopenhauer dedicará metade de seu trabalho a uma crítica exaustiva daquela que seria

a última e mais bem sucedida, apesar de em sua visão estar errada, tentativa de explicar

e fundamentar a moral antes dele: a fundamentação moral kantiana contida no livro

Fundamentação da metafísica dos costumes.

Para Schopenhauer, Kant foi o primeiro filósofo a dar uma concepção realmente

procedente à moral. Kant afirma que o ato verdadeiramente moral é aquele que não

possui nenhum interesse pessoal seja ele qual for. O genuíno ato moral não possui em

nenhum momento egoísmo e tal afirmação encontra-se no livro de Kant acima citado.

Para Schopenhauer esse, juntamente com a separação entre moral e Eudemonismo10,

que na realidade é apenas aparente na moral kantiana, seria o grande mérito de toda

filosofia moral de Kant. Mas essa mesma concepção da moral, a única procedente até

então, encontrar-se-ia totalmente destituída de uma fundamentação filosófica sólida.

Kant teria encontrado o verdadeiro conceito da moral, mas se perdido completamente

em raciocínios improcedentes e vazios quando passou a tentar fundamentá-lo. E é

exatamente sobre essa fundamentação, considerada por Schopenhauer improcedente,

obscura e totalmente sem sentido, que recairá sua crítica dura e muitas vezes sarcástica.

Mas também não podemos deixar de citar que a crítica de Schopenhauer à moral

kantiana possui argumentos de sua própria filosofia onde a razão é mero instrumento da

vontade, e como tal, não poderia ser livre a ponto de criar uma moral como Kant

pretendia11, ou seja, uma moral baseada em uma razão prática. Aliás, importante

ressaltar que, como veremos no primeiro capítulo desse trabalho, Schopenhauer irá

afirmar em O mundo como vontade e como representação, que a chamada “razão

10 Estudaremos no primeiro capítulo de maneira mais profunda a crítica de Schopenhauer ao eudemonismo e entenderemos porque o mesmo, segundo o autor, não pode estar em nenhum momento ligado ao ato moral genuíno. 11 Esse ponto é de extrema importância não só para a compreensão da crítica de Schopenhauer a moral kantiana, mas também para a compreensão de toda a filosofia Schopenhaueriana. Estudaremos essa questão, que pode ser encontrada no quarto livro de O mundo como vontade e como representação, no segundo capítulo desse trabalho e exporemos como a razão, objetivação da vontade está a serviço dela.

6

prática”, quando o assunto é a ética, poderia apenas levar o homem ao Eudemonismo e

o melhor exemplo dessa afirmação seriam os pensamentos e regras sobre a vida dos

estóicos, mas deixemos esse ponto para ser explicado no momento oportuno.

Voltando à critica à moral kantiana, eis as palavras de Schopenhauer que,

desdenhando quase tudo aquilo que havia sido dito sobre a moral até Kant, afirma a

necessidade de criticar a moral daquele do qual se considerava sucessor filosófico:

“Kant deu a essa ciência uma fundamentação que tinha reais vantagens diante das

anteriores e, em parte, porque é a última mais significativa que aconteceu na ética”12.

Mas esse não é o único motivo que faz com que Schopenhauer tenha de criticar a moral

kantiana. Como ele mesmo diz “Os contrários se esclarecem” 13e a sua fundamentação

da moral “Nos pontos essenciais, opõe-se diametralmente à de Kant” 14. Dificilmente

não se entenderá quando chegarmos ao segundo capítulo desse trabalho onde a

fundamentação da moral de Schopenhauer for apresentada, o quanto ela realmente, em

seus pontos essenciais, é totalmente oposta a moral de Kant e, por isso mesmo, a

necessidade de mostrá-la destituída de fundamento. Segundo David E. Cartwright

Schopenhauer “Em vez de criticar Kant com a intenção de corrigir ou melhorar as

perspectivas Kantianas em uma visão filosófica teórica de Kant, Schopenhauer almeja

demolir a ética de Kant, para poder abrir terreno à formação e erguimento de sua própria

fundamentação moral”15. Assim, seguindo o “conselho” do autor, antes de examinarmos

a sua fundamentação da moral logo no primeiro capítulo, nós o dedicaremos ao estudo

da crítica feita por ele à moral kantiana cuja essência se encontra no livro

Fundamentação da metafísica dos costumes. Para Schopenhauer essa obra contém o

fundamento da ética kantiana. É nela que estão os pontos essenciais de seu pensamento

moral que serão desenvolvidos de forma mais detalhada na Crítica da razão prática. E

também é nela que se encontra um grande problema da ética: “Há mais de meio século

ela repousa no confortável encosto que Kant ajeitou sob ela: O imperativo categórico da

12 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 15 13 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.15 14

Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P..15 15

Cartwrigh, E. David. “Schopenhauer`s Narrower Sense of Morality”. In: The Cambridge Companion to

Schopenhauer. (Edited by Christopher Janaway). Cambridge: Cambridge University Press, 1999.p. 253

7

razão prática” 16 que também é chamado de “lei moral”. Aos lermos as observações

de Schopenhauer a esse respeito, notamos que o pensador não apenas discorda da ética

kantiana, mas vê em seu imperativo categórico um mal que precisa ser retirado da ética,

algo que atrapalha as investigações sobre a moral e abre espaço pra tantos outros

devaneios. Schopenhauer nos chama a atenção que o imperativo categórico foi usado de

maneira irrefletida por muitos escritores sem o necessário aprofundamento do seu

conteúdo. A partir dele criou-se uma “Prolixa e confusa teia de frases com a qual

entendem tornar ininteligíveis as mais claras e simples relações da vida – sem jamais se

perguntarem em tal feito se, porventura, uma ‘lei moral’ está realmente escrita na nossa

cabeça, peito ou coração como confortante código moral” 17.

Sem nenhum exame mais preciso a ética kantiana foi aceita por todos e tida

como base para as mais diversas criações de sistemas éticos que, por mais que se

esforçassem em ser originais, tinham como fundamento oculto o imperativo categórico

kantiano. Assim combater a ética kantiana não é apenas um meio de Schopenhauer

começar a explicar sua ética, como dissemos, mas também de purificar o pensamento

sobre a moralidade de um erro ainda não percebido. Sem nenhuma modéstia

Schopenhauer coloca-se como aquele que irá desfazer esse terrível engano e colocar a

ética mais uma vez em “Total perplexidade”18 na qual ela deve permanecer até que ele

demonstre o verdadeiro fundamento da ética que, de uma vez por todas, destruirá a ética

kantiana. Já o livro Crítica da razão prática, também de Kant e que também investiga a

questão moral, será avaliado apenas algumas vezes por Schopenhauer que terá o intuito

de usá-lo apenas para demonstrar ainda mais a inconsistência da moral kantiana contida

no já citado Fundamentação da metafísica dos costumes. A crítica de Schopenhauer à

moral kantiana recai como dito, em sua fundamentação que é o imperativo categórico.

A idéia kantiana de que o fundamento da moral seja uma lei, um dever, uma espécie de

regra que pode ser encontrada na mente humana sem necessitar de nenhum elemento

empírico, é o absurdo que Schopenhauer quer retirar da moral. Essas afirmações de

Kant sobre a moral a tornam para Schopenhauer abstratas e mesmo em sua fidelidade ao

autor da Crítica da razão pura, devem, como já dito, serem retiradas da moral. Assim, a

16 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.15-16 17 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P.16 18 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.16

8

ausência de qualquer experiência faz com que a moral kantiana seja algo sem nenhum

sentido. Segundo Maria Lucia M. O. Cacciola, a experiência possui um papel

fundamental no pensamento de Schopenhauer. Como já visto é através da experiência

que Schopenhauer irá concluir a vontade como a “coisa em si” 19. A filosofia de

Schopenhauer parte sempre do sensível, do empírico, é através dele que a verdade, a

decifração do mundo pode ser alcançada. Tal método também se aplicaria a questão

moral que faz parte, evidentemente, desse mundo a ser decifrado, assim, tudo aquilo que

é considerado pelo autor como abstrato e que pretende fundamentar a ética deve ser

demolido. Maria Lúcia M. O. Cacciola comenta em seu livro Schopenhauer e a questão

do dogmatismo, que a fidelidade de Schopenhauer para com a filosofia kantiana e a

importância que a experiência possui para ele baseada nessa mesma fidelidade: “Sua

declaração de fidelidade a Kant está, pois, ligada ao que ele vê como sendo o cerne da

filosofia crítica: a recusa de toda e qualquer transcendência e a firme resolução de

manter-se no domínio da experiência, cuja totalidade é o mundo” 20.

Assim, a tentativa de Kant em apresentar uma moral que em nenhum momento

necessita de qualquer tipo de experiência, ou seja, está totalmente desligada de qualquer

elemento empírico para existir e, ainda mais que isso, só é verdadeira por nele não estar

fundamentada, excluindo assim, toda e qualquer ligação com o mundo objetivo, e isso

inclui os homens, é algo abstrato demais: ela não teria base sólida alguma para se apoiar

sendo apenas uma “petição de princípios”, palavras que pairam no ar, uma total

contradição com aquilo que o próprio Kant apresentou em sua obra prima A crítica da

razão pura. A única forma de imaginar um dever como guia da moral seria com o

auxílio da idéia de punição e recompensa que fazem do ato moral com base neles

praticado uma obrigação a um comando e não um ato espontâneo e genuíno, ou seja,

sem nenhum tipo de interesse egoísta por parte de quem o pratica. Tal visão da moral

possui suas raízes em uma lei divina, ou seja, na teologia tanto rejeitada por

Schopenhauer: “Cada dever é também necessariamente condicionado pelo castigo ou

pela recompensa e assim, para falar a linguagem de Kant, essencial e inevitavelmente

hipotético e jamais, como ele afirmou, categórico” 21.

19 No segundo capítulo de nosso trabalho estudaremos O mundo como vontade e como representação como já dissemos e explicaremos o processo através do qual, através da experiência Schopenhauer conclui, a partir do nosso próprio corpo, o “em si” como sendo a vontade. 20

Cacciola, Maria Lucia, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, FAPESP, São Paulo, 1994. P. 171 21 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.26 - 27

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Mais a frente, quando criticará de forma específica o fundamento da moral

kantiana, Schopenhauer dirá: “Portanto ele não fundamenta – o que peço que se note bem – seu princípio

moral em qualquer fato da consciência que seja demonstrável, algo como

uma disposição interna. Menos ainda em qualquer relação objetiva das coisas

no mundo exterior. Não! Isto seria uma fundamentação empírica. Mas sim

conceitos puros “a priori”, quer dizer, conceitos que não têm nenhum

conteúdo da experiência externa ou interna, que são, portanto, puras cascas

sem caroço, é que devem ser o fundamento da moral “22.

Importante salientar que a moral de Schopenhauer tem como ponto de partida o

sofrimento humano que, como dissemos, é infinito nesse mundo. Uma moral como a de

Kant que, como veremos mais à frente, não considera primeiramente o homem em todas

as suas dores e aflições não merece, pelo menos de um filósofo como Schopenhauer que

possui um método onde a experiência é imprescindível nenhum espaço para qualquer

tipo de aprovação: a moral deve estar voltada ao homem e ao seu sofrimento. Eis mais

um traço marcante do pensamento moral schopenhaueriano que o fará tentar derrubar a

moral kantiana.

Como veremos no primeiro capítulo, onde apresentaremos a crítica de

Schopenhauer a moral de Kant de forma pormenorizada, essa “moral do dever”, longe

de ser capaz de fundamentar o ato genuinamente moral, ou seja, aquele praticado sem

nenhum interesse pessoal é, na realidade, como vimos acima na visão de Schopenhauer,

nada mais que puro egoísmo não podendo conter em si uma intenção destituída de

interesse pessoal. Assim, um dever que em nada se apóia, jamais poderia fundamentar a

moral de qualquer maneira. Frente a esse dever, a única coisa que Schopenhauer

consegue enxergar é a moral teológica onde se busca ser recompensado ou poupado de

algum castigo qualquer, que através dele, teria sido recolocada na Filosofia por Kant,

sendo esse seu verdadeiro intuito. Dessa forma, segundo Schopenhauer, Kant teria

entrado na mais profunda contradição ao tentar tornar a teologia aceitável para a

Filosofia, ou, pelo menos, se voltado a ela de maneira inconsciente, coisa que, ele

mesmo, já havia impossibilitado em sua Crítica da razão pura mais precisamente na

Dialética Transcendental.

22 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.35

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Depois, no segundo capítulo, apresentaremos a fundamentação moral do próprio

Schopenhauer que, para sua melhor compreensão, deverá ser acompanhada com um

estudo dos dois principais pontos de toda a filosofia Schopenhaueriana: a vontade como

sendo a “coisa em si” da filosofia kantiana e também o mundo como representação

dessa vontade, ambos estudados exaustivamente pelo autor em sua obra capital: O

mundo como vontade e como representação. Interessante citar comentários do próprio

Schopenhauer e de um de seus comentadores sobre essas duas questões para a melhor

compreensão das mesmas nesse momento da nossa introdução, lembrando que esses

dois pontos serão examinados de maneira mais profunda no segundo capítulo deste

trabalho, como já explicado, o que faz das citações abaixo pequenas explicações, um

simples resumo daquilo que será apresentado mais a frente em sua completude.

“Sobre a vontade como sendo a “coisa em si” kantiana e sobre a representação

como fruto dessa vontade Schopenhauer afirma: “Essa COISA EM SI ( queremos

conservar a expressão kantiana como formula definitiva), que enquanto tal, jamais é

objeto, porque todo objeto é apenas seu fenômeno e não ela mesma, se pudesse ser

pensada objetivamente, teria de emprestar nome e conceito de um objeto, de algo dado

de certa forma objetivamente, por conseqüência , de um de seus fenômenos”23. José

Thomaz Brum confirma tal afirmação em seu livro O pessimismo e suas vontades:

“Essa força obscura vital é o aspecto do mundo que não pode ser reduzido à

representação, é o mundo como coisa em si, o mundo enquanto vontade”24.

Assim, neste segundo capítulo, com a interpretação que Schopenhauer dá ao

mundo, explicada de forma detalhada, e que acima foram apresentadas apenas de

maneira sucinta, e com o estudo pormenorizado do seu fundamento da moral,

apresentaremos aquela que é nossa interpretação sobre esse fundamento: a compaixão e

a “ilusão da individualidade”, que nada mais é do que fenômeno e por isso mesmo

ilusão, Véu de Maia, não podem coexistir.25 Na compaixão não existe espaço para a

individualidade, pois nela o agente do ato moral volta-se para a “coisa em si”. O ato

moral genuíno, isto é, aquele motivado pela compaixão exige que a individualidade

desapareça por completo. É nele que, como bem diz José Tomaz Brum, surge o

23 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo:p.169 24 Brum Thomaz José, O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro 1998. p.23 25 A idéia de individualidade como ilusão e do mundo como “Véu de Maia” serão melhor explicadas por nós no segundo capítulo deste trabalho ao estudarmos o mundo como representação cuja explicação está contida nos livros I e III de O mundo como vontade e como representação.

11

“Mistério da unidade dos seres” 26, única coisa capaz de explicar o fenômeno moral

genuíno. Apenas fora do fenômeno a ação genuinamente moral é possível e, por isso

mesmo, aos olhos daquele que permanece no fenômeno quase incompreensível.

Para chegarmos a essa conclusão é necessário um exame minucioso do terceiro

livro do ensaio Sobre o fundamento da moral, onde Schopenhauer apresentará a sua

explicação metafísica da compaixão, indo além do que foi proposto pela Sociedade Real

Dinamarquesa Ciências de Copenhague, com o intuito não só de completar sua análise

sobre o tema proposto, mas também, de decifrar o seu próprio fundamento da moral que

ele mesmo em alguns momentos define como algo misterioso.

Agora nos preparemos então para conhecermos aqueles que seriam, segundo

Schopenhauer, os grandes erros da moral kantiana, tão aceita por todos, e apontados

com tanto prazer por Schopenhauer, como ele mesmo nos diz em seu ensaio Sobre o

fundamento da moral:

“Confesso o prazer especial com que ponho mãos à obra agora para retirar da

moral seu amplo encosto – imperativo categórico – e declaro francamente

minha intenção de demonstrar que a Razão Prática e o imperativo categórico

de Kant são suposições injustificadas, infundadas e inventadas para provar

que também a ética de Kant carece de um fundamento sólido. Com isso, a

moral é de novo entregue à sua total perplexidade, na qual deve permanecer

antes que eu me ponha a expor o princípio moral verdadeiro da natureza

humana, fundado em nossa essência e indubitavelmente eficaz”27.

Também devemos salientar que o que apresentaremos em seguida é a crítica de

Schopenhauer a moral kantiana e não uma investigação profunda sobre a mesma.

Estudaremos assim, a interpretação de Schopenhauer sobre a moral kantiana tão

somente, citando e explicando a moral kantiana em seus pontos necessários para o

melhor entendimento de tal crítica.

26 Brum Thomaz José, O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro: 1998. p.47 27 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 16

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1. Crítica de Schopenhauer a moral kantiana

É no segundo livro do ensaio Sobre o fundamento da moral que Schopenhauer

inicia sua crítica ao fundamento da moral kantiana. Como vimos na introdução deste

trabalho, Schopenhauer considera a concepção kantiana do ato moral a melhor até então

formulada, isto é, a concepção de que o único ato moral verdadeiro é aquele que se

apresenta totalmente destituído de todo e qualquer interesse pessoal por parte de quem o

pratica. Mas essa seria a única contribuição verdadeiramente substancial dada por Kant

a ética, já que o mesmo soube, segundo Schopenhauer, conceituá-la de forma ímpar, ao

mesmo tempo em que não soube fundamentá-la. Portanto, a crítica que recai sobre a

moral kantiana não está baseada em seu conceito e sim em sua fundamentação e

também, como não poderia deixar de ser, na própria filosofia de Schopenhauer que de

modo algum poderia aceitar uma razão prática capaz de estabelecer padrões morais de

conduta. Nessa parte da crítica que oferece uma “visão geral” sobre o assunto,

destacam-se três pontos interessantes que não podem ser deixados sem exame. O

primeiro deles são os motivos pelos quais Schopenhauer escolhe a Fundamentação da

metafísica dos costumes para realizar sua crítica à moral kantiana, o segundo é a sua

análise do Eudemonismo que, apenas aparentemente, Kant teria retirado da moral, e o

terceiro diz respeito a visão que nosso autor tem de que Kant quis, ao conceber a sua

moralidade, dar-lhe bases teológicas, mesmo que ocultas, de maneira consciente ou não,

que, como veremos pormenorizadamente, Schopenhauer recusa com veemência, assim

como recusa qualquer forma de visão teológica do mundo. Dessa forma, antes de

entrarmos na primeira parte da crítica à moral kantiana, que se refere a sua forma

imperativa, na qual Schopenhauer encontrará vários pontos que irão minar a moral

kantiana no seu modo de pensar, estudaremos esses pontos relevantes e como eles são

essenciais para a compreensão de todo o restante da crítica que recai sobre a moral de

Kant através de duras e irônicas palavras do nosso pensador.

Já na introdução encontramos alguns dos motivos pelos quais Schopenhauer

quer dedicar-se a crítica da moral kantiana a partir da Fundamentação da metafísica dos

costumes. Para ele a sua crítica conduziria o leitor mais facilmente a sua própria

fundamentação moral já que a de Kant é totalmente oposta a sua. Além de que a

tentativa de Kant em sua obra sobre a moral teria sido a mais bem sucedida até então.

Também é importante lembrar que, segundo Schopenhauer, a Fundamentação da

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metafísica dos costumes contém todas as bases para a moral kantiana além de que a

mesma apresentou a única definição procedente sobre o que realmente é um ato moral

genuíno falando-se em Filosofia. No que se segue Schopenhauer ainda afirmará, com as

próprias palavras de Kant, que a Fundamentação da metafísica dos costumes é a busca

do princípio primeiro da moralidade e que, como tal, deve ser separada das

investigações acerca da moralidade. Nela reside a base, o fundamento preciso, daquilo

que seria a ética kantiana. Outra justificativa não filosófica refere-se ao próprio Kant:

“Além disso, ela tem ainda a vantagem significativa de ser a mais antiga de suas obras

sobre a moral, quatro anos apenas mais nova que a Crítica da razão pura, sendo assim

do tempo em que, embora ele já estivesse com sessenta e um anos, a influência

prejudicial da sua idade sobre seu espírito ainda não era perceptível” 28. Vemos que

Schopenhauer está preocupado com a própria capacidade intelectual de Kant, tamanha é

sua aversão à fundamentação da moral kantiana, já em relação à Crítica da razão

prática, Schopenhauer será menos complacente e dirá que nela já é possível notar, como

também na segunda edição da Crítica da razão prática os efeitos da idade responsáveis

pela deturpação de sua obra imortal, a Crítica da razão pura, o que também teria

acontecido com nas “Primeiras razões metafísicas da doutrina da virtude”, peça lateral

a “doutrina do direito”. Ainda salientando o pensador dirá que a Crítica da razão

prática, contém essencialmente aquilo que está estabelecido na Fundamentação da

metafísica dos costumes, o que fará com que Schopenhauer analise essas obras, em seus

próprios dizeres, de “modo secundário e acessório” 29. Apesar dessas colocações do

autor, ao estudarmos a sua crítica à moral kantiana, veremos o quanto a Crítica da razão

pura será de extrema importância, pelo menos em alguns de seus pontos, para que todo

seu pensamento crítico possa, não só ser entendido, mas também analisado.

O segundo ponto a ser ressaltado por nós nessa introdução à critica da moral de

Kant é a questão do Eudemonismo que em nenhum momento pode fundamentar

qualquer moral segundo Schopenhauer. Tal crítica ao Eudemonismo se deve ao fato de

que ele é um meio de atingir a felicidade, o bem viver ou, ao menos, a idéia de viver

com menos sofrimento possível. O ato moral deve estar sempre destituído de qualquer

vantagem que possa surgir depois de praticado a quem o pratica. Aquele que “age

28 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 21 29

Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 22

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moralmente” tendo em vista alcançar qualquer tipo de benefício na verdade não age

moralmente e é exatamente isso que acontece com a moral Eudemonista: age-se visando

um fim, ou seja, a ação moral, a virtude, é apenas um meio de se atingir algo almejado

anteriormente a ela. Agir moralmente não significa necessariamente que aquele que

assim age será feliz com essa ação. Na maioria das vezes, o oposto é o que encontramos

na moralidade quando, por exemplo, agimos de determinada maneira por considerar

essa maneira a correta a ser seguida ainda que ela vá contra tudo o que queremos e que

nos fará feliz30. Schopenhauer vê na moral kantiana essa mesma afirmação de

incompatibilidade entre moral e Eudemonismo, pois a mesma aponta essa necessidade e

pretende ser destituída de egoísmo. Sobre essa separação irrecusável entre moral e

Eudemonismo nosso autor comenta: “O grande mérito de Kant na ética foi tê-la

purificado de todo Eudemonismo. A ética dos antigos era eudemonista, e a dos

modernos, na maioria das vezes, uma doutrina da salvação”.31 Quando Schopenhauer

fala em “ética dos antigos” ele está se referendo, em especial, aos cínicos e estóicos que,

para ele, possuíam uma forma diferente, especial de Eudemonismo.32

No inicio do referido capítulo de O mundo como vontade e como representação

Schopenhauer dirá que depois de ter efetuado todas as considerações pertinentes a razão

como faculdade de conhecimento e sobre os resultados e também sobre os fenômenos

que dela surgem, resta-lhe ainda falar da razão prática: “Após as considerações sobre a

razão enquanto faculdade especial e exclusiva do homem, e sobre aqueles fenômenos e

realizações próprios da natureza humana, falta ainda falara da razão na medida em que

conduz a ação das pessoas, portanto, podendo nesse aspecto ser denominada

PRÁTICA”.33 Schopenhauer refere-se aqui ao uso da razão como meio de encontrar o

melhor meio de viver, isto é, como meio de encontrar o caminho que apresenta-se com

menos obstáculos possíveis, ou a forma de viver que nos conduz a uma vida sem

sofrimentos ou com menos sofrimentos possíveis É nesse ponto de sua obra capital que

aparecerá suas reflexões sobre a moral Eudemonista “dos antigos”. Para Schopenhauer

30 Sobre essa questão também devemos dizer que agir moralmente não implica sempre em irmos contra a nossa felicidade ou interesses, mas sim que o ato moral verdadeiro não deve se preocupar com eles. Dessa forma nem todo ato moral genuíno nos fará infelizes ou irá contra algo que desejamos. 31 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 19 32 Tal investigação a esse assunto encontra-se no livro O mundo como vontade e como representação, mais precisamente em seu livro primeiro no capítulo dezesseis ao qual Schopenhauer nos remete caso queiramos nos aprofundar um pouco mais no assunto. Assim, estudemos essa parte da obra do filósofo. 33 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, São Paulo: p.138 - 139

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o homem diferentemente dos animais possui a presença de conceitos abstratos em sua

consciência. Os animais possuem apenas o contato intuitivo e imediato enquanto que

nós, homens, conhecimento abstrato: “O homem, ao contrário, em virtude do

conhecimento in abstracto abrange, ao lado do presente efetivo e próximo, ainda o

passado inteiro e futuro, junto com o vasto reino das possibilidades”, Abrangemos, ao

lado do presente efetivo e próximo, ainda passado inteiro e o futuro junto com o vasto

reino das possibilidades. Divisamos livremente a vida em todos os lados, a vida

distante, além do presente e da realidade efetiva “34. Interessante lembrarmos de

Parerga e Paralipomena, onde a vida inteiramente vivida no presente pelos animais é

fruto de “inveja” para o autor: “O animal é presente corporificado, a tranqüilidade

visível de que assim se investe, muitas vezes envergonham nosso estado,

frequentemente intranquilo e insatisfeito à causa de pensamentos e preocupações”35. Na

citação de Schopenhauer expostas acima, ele quer nos mostrar que o homem tem a

possibilidade, diferentemente do animal, de, através dos conceitos abstratos, realizar

uma ação utilizando-se da razão, fazendo dela prática. É através dela que podemos ter,

dentro do possível, domínio sobre nossas vidas. Podemos nos lembrar do passado, viver

o presente e lançar olhos ao futuro que sempre contém em si uma infinidade de

possibilidades, grande parte delas, imaginadas por nós mesmos em nossos temores,

ansiedades e desejos. A partir do momento, que depois de todas essas reflexões

advindas dos conceitos abstratos sobre nossas vidas, agimos guiados pela razão ela se

tornará prática. Na razão prática nossas ações não são guiadas pelo momento, ela tem

em vista, por exemplo, o futuro incerto que carrega nossos desejos e temores e contra ou

a favor deles pode nos ajudar. Esses conceitos abstratos que nós humanos possuímos ao

mesmo tempo em que pode nos ajudar, nos atormentam com as mais diferentes

expectativas que podem variar de simples temores até o medo da morte.

Nunca a razão por si só poderá produzir um ato, por exemplo, bom ou mau, ela

será apenas um meio de por em prática a bondade ou a maldade. A razão em si mesma

não é boa nem má, apenas pode se aliar “A razão se encontra unida à grande maldade

quanto à grande bondade, que o seu auxilio confere grande eficácia seja a esta primeira

ou à segunda, que ela esta igualmente preparada e disponível para executar

34

Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo:p.139 35 Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In: “OSPENSADORES” Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo: 1997 p. 282

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metodicamente e de maneira conseqüente tanto os propósitos nobres quanto os vis” 36.

Mas esse tema será apresentado em local apropriado quando nos dirigirmos à critica da

moral kantiana propriamente dita, agora voltemos ao Eudemonismo, também existente

graças a essa razão. Para Schopenhauer o ponto mais alto que o homem pode atingir

através do simples uso da razão é a sabedoria estóica que não possui em nenhum

momento uma ciência ou regras para a virtude, ou seja, ela contém apenas: “Um

conjunto de preceitos, de regras, para viver segundo a razão afastando-se o quanto mais

de problemas e sofrimentos” 37. Diante de perguntas como “O que devo fazer para

impedir que tal mal me aconteça?” ou “Como devo agir para ter mais tranqüilidade em

minha vida?”, a razão aparece como meio para se alcançar as respostas desejadas. Dessa

forma a ética estóica difere completamente dos sistemas morais como, por exemplo, os

de Kant, do Cristianismo dos Vedas entre outros que ele cita. A finalidade dessa ética é

como já afirmamos a felicidade ou pelo menos o bem viver dentro do possível. É

possível notar assim nos estóicos, e também nos cínicos citados em Sobre o fundamento

da moral como também possuidores de uma ética Eudemonista, uma forma de

pessimismo em relação a existência. Ambos querem fazer com que a razão os eleve

acima dos males mais diversos que a vida pode oferecer em seu decurso; a vida possui

mais possibilidades ruins que boas. Assim a melhor maneira de viver é submetendo a

vida à razão que nos trará uma existência, senão feliz, pelo menos com um número

menor de tormentos. Schopenhauer irá concluir sua exposição dizendo: “A ética estóica,

tomada no seu conjunto, é de fato uma tentativa bastante apreciável e digna de atenção

para usar a grande prerrogativa do homem, a razão, em favor de um fim importante e

salutar, a saber, elevá-lo por sobre os sofrimentos e dores aos quais cada vida está

exposta”38. Schopenhauer também criou a sua Eudemonologia em Aforismos para a

sabedoria de vida, texto que faz parte de Parerga e Paralipomena, onde também tenta

construir uma doutrina de bem viver não só para os filósofos, mas para todos aqueles

que possuem a capacidade de pelo menos tentar submeter sua vida a razão, onde

conclui, entre tantas outras coisas que a vida não existe para ser gozada, mas para ser

vencida e superada assim como também que “Quem quiser obter um balanço da própria

vida em termos eudemonológicos, deve fazer a conta não segundo os prazeres dos quais

36 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.141 37 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.146 38 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.146

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conseguiu escapar” 39. Com as explicações acima fica claro perceber o motivo que faz

do Eudemonismo uma fonte imprópria para qualquer fundamentação da moral, o porquê

Schopenhauer e também Kant o recusam.

Agora, depois de analisarmos esses dois primeiros pontos importantes dessa

introdução à critica da moral kantiana, vamos estudar a recusa da moral teológica por

parte de Schopenhauer que é claramente mais óbvia. Tal estudo é importante, em nossa

visão, pois Schopenhauer nessa introdução faz um comentário bem interessante a

respeito da moral kantiana, mais precisamente sobre a obra Critica da razão prática,

onde, segundo Schopenhauer se reconhece cada vez mais a teologia moral “Como sendo

aquilo que Kant quis” 40.

Devemos entender assim a crítica que o mesmo faz a toda e qualquer moral

teológica, que para ele não pode fundamentar a moral, pois a mesma já estaria viciada

desde o seu surgimento com o interesse pessoal por parte de quem pratica o ato moral

nela fundamentada. Schopenhauer vê na moral teológica o simples interesse pessoal.

Ela é uma moral que se baseia apenas em seguir a vontade de um Deus, também

podendo ser vista como uma lei, que, de alguma forma, premia aqueles que a observam,

enquanto pune aqueles que não a observam. Sendo assim, aquele que pratica um ato

moral com base na crença religiosa, estaria praticando-o tendo em vista apenas as

vantagens que o mesmo lhe traria ou a tentativa de escapar da ira divina que sobre ele

recairia pela inobservância de sua lei. Assim, na moral teológica, o que de fato existe é

apenas o total interesse pessoal. A pessoa para a qual é dirigida a ação não possui de

fato importância para aquele que desenvolve o ato moral, ela seria apenas um meio para

alcançar a graça divina por observância de sua lei ou fugir de sua punição. Tal ato seria

fruto de puro egoísmo. Ainda seguindo a concepção de Kant sobre o ato moral genuíno,

de que o ato moral deve estar destituído de interesse pessoal por parte de quem o pratica

Schopenhauer não consegue aprovar a moral teológica, pois, nela o que de fato existe é

o desejo de ser recompensado ou a tentativa de fugir da ira divina, além de que a pessoa

para a qual é feito o ato moral não possui nenhuma importância, ela é penas uma meio

de se atingir os dois objetivos acima explicados, isso faz com que a moral teológica se

apresente como uma moral na realidade falsa, viciada, onde o que realmente existe é o

39 Schopenhauer, A. Aforismos para a sabedoria de vida, trad. Jair Barboza, Martins fontes, são Paulo: 2006 p. 141 40 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 22

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interesse por parte de quem pratica qualquer ato nela baseada. Não é a própria pessoa

que por compaixão, fundamento da moral de Schopenhauer, como já visto, que por sua

própria consciência decide praticar o ato e sim seu desejo de recompensa que diz:

”ajude”,seu medo de ser punido que diz: “estenda a mão a seu irmão” Como tal ato

poderia ser moralmente genuíno? Diante do que foi dito apenas o interesse, o egoísmo

surge como fonte desse ato baseado na teologia.

Schopenhauer também afirma que a moral teológica é a moral dominante no

mundo. A maioria dos atos morais realizados possui nela o seu fundamento, e a maioria

dos filósofos dela tentou escapar sem nenhum sucesso. Eis um dos pontos principais

sobre o qual se apóia a crítica a fundamentação moral kantiana feita por Schopenhauer.

Segundo ele, o próprio Kant em seu livro Crítica da razão pura, teria destruído

totalmente o que chama de “teologia especulativa”, com a demonstração de que a

existência de Deus jamais poderia ser confirmada. Vejamos o que o próprio Kant diz a

respeito em sua Crítica da razão pura: Ora, afirmo que todas as tentativas de um uso meramente especulativo da

razão na Teologia são totalmente infecundas e, pela sua natureza íntima,

nulas e vãs; que, porém, os princípios do seu uso natural de modo algum

levam a uma Teologia.41

Sem essa teologia especulativa, a “certeza” de uma moral teológica seria

impossível. Mesmo assim, o próprio Kant não teria conseguido escapar da teologia para

fundamentar sua moral, o que a tornaria completamente sem sentido por carecer de um

fundamento filosófico autêntico. Kant teria partido da própria ética para atingir Deus,

fazendo o contrário do que até então havia sido feito, quando se partia de Deus para se

encontrar uma ética. Essa conclusão é atingida por Schopenhauer a partir da observação

do caráter imperativo da ética kantiana, cuja crítica estudaremos mais a frente. O fato de

a moral kantiana estar baseada em um dever, dá a nosso pensador o material necessário

para ver nela a teologia, encontrar nela a primeira grande contradição que não poderia

conter, ou seja, a teologia que como vimos de nenhuma maneira pode fundamentar o

genuíno ato moral.

A crítica de Schopenhauer a Kant, porém, não para apenas frente à questão

teológica, ela estende-se a outros pontos de extrema importância que nosso filósofo

investiga e corrige de forma dura e muita vezes até irônica; para ele muitos argumentos

41 Kant I. Crítica da razão pura, In: OSPENSADORES” trad. Valerio Rohden e Udo Moosburger, Nova Cultural, são Paulo: 1996 p. 390

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apresentados lhe parecerem simplesmente absurdos e sem nenhum sentido, e todo o

tempo percebe-se a insistência em demonstrar não só a total falta de fundamentação do

conceito dado por Kant à sua moral, como também sua incoerência. Vejamos o

pensamento de Schopenhauer a respeito: Porém, desde que Kant destruiu o fundamento da “teologia especulativa”, até

então tido por firmemente válido, e em seguida quis que ela, que tinha sido

até ai o suporte de toda a ética, fosse inversamente sustentada pela ética para

conferir-lhe uma existência apenas ideal -, pensa-se menos do que nunca

numa fundamentação da ética por meio da teologia, pois não mais se sabe

qual das duas é a carga e qual o apoio, caindo-se por fim num “circulus

vitiosus.42

Segundo o que Schopenhauer diz acima, Kant teria tido a intenção de inverter o

que até então existia em relação à teologia. Deus que até então havia sido a base da

ética, depois de ter sido retirado do pensamento humano por Kant em sua Crítica da

razão pura, passou a ser sustentado pela ética pela própria vontade de Kant em sua

fundamentação da moral.

Mas, como já foi dito, o pensamento de Kant sobre a moral possui seu mérito ao

apresentar aquele que seria o único conceito realmente aceitável da moral. Além do que,

segundo Schopenhauer, a moral kantiana fez surgir nos intelectuais de sua época um

maior interesse pela moral, juntamente com o conhecimento do Budismo e Bramanismo

que chegavam à Europa. Diante do aparecimento dessas novas visões de moral e de

mundo, os velhos fundamentos da moral haviam desaparecido e necessária era uma

nova fundamentação moral como o próprio Schopenhauer afirma: Como conseqüência, os fundamentos antigos da ética apodreceram, apesar de

ter ficado a confiança de que ela mesma nunca pode afundar. Daí surge a

convicção de que se tem de lhe dar outros apoios que não mais os até hoje

existentes, adequando-os aos conhecimentos avançados da época. Sem

dúvida, é a compreensão dessa necessidade cada vez mais sensível que

motivou a sociedade Real para a presente e significativa pergunta do

concurso.43

Como nota-se nas palavras acima, Schopenhauer apresenta sua época como

sendo carente de um conceito que realmente pudesse fundamentar a moral. Uma época

42 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 11-12 43 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 12

20

que graças a evoluções culturais das mais diversas, como o conhecimento do Budismo,

do Bramanismo, percebeu de uma só vez, que todos os fundamentos da moral até então

apresentados haviam falhado. Tal fracasso não se deveria apenas à destruição da moral

com bases teológicas, mas também, à moral Eudemonista, que Schopenhauer chama de

“moral dos antigos”, gregos de modo geral, e que também se encontra presente entre os

Cínicos e Estóicos. Como já apresentado, nessa moral, o que existe é a pretensão de

apresentar virtude e felicidade como idênticas, a prática da virtude seria uma forma de

se atingir a felicidade. Podemos concluir que Schopenhauer resumia tudo o que havia

sido apresentado por fundamento da moral até então como fundamentos eudemonistas

ou teológicos, que não teriam no ato moral um fim em si mesmo, mas sim um meio de

se atingir algo. No Eudemonismo o fim a ser atingido através da virtude seria a própria

felicidade, não se preocupando com outras pessoas, e na moral teológica, que seria a

moral dominante nos filósofos modernos, a salvação ou qualquer outra coisa que

estivesse relacionada com o divino e suas vontades ou leis. Salvação ou felicidade

seriam assim o fim de todo ato moral que se constituiria dessa forma de pleno interesse

egoísta.

Depois dessa introdução que apresentou os aspectos gerais da crítica de

Schopenhauer à moral kantiana, passemos a estudar os aspectos mais específicos dessa

crítica nos quais podemos encontrar seus fundamentos.

21

1.2 Negando a metafísica do povo

Schopenhauer é profundamente ateu e para entendermos melhor a sua crítica à

moral kantiana, precisamos compreender os motivos de seu profundo ateísmo, o que ele

pensa a respeito das religiões e da crença em deus ou em deuses e, ainda, qual o motivo

que faz com que essas crenças não possam em nenhum momento serem verdadeiras e

até que ponto ele as respeita.

É como metafísica do povo que Schopenhauer denomina a religião e a crença em

deus em geral. Para ele as religiões, apesar de falsas, são compreensíveis, pois surgem

como tentativas de explicar a existência de alguma maneira. O homem menos capaz

intelectualmente ao se deparar com a existência e todos os seus mistérios, ao ter o

espanto metafísico que sobre todos os homens recai, necessita de uma explicação

convincente ou pelo menos confortante para a sua vida. Assim a religião possui seu grau

de relevância ao ser uma tentativa de interpretação do mundo, vista pelo erudito como

uma alegoria da vida criada para tentar interpretar o mundo ou para se conseguir alguma

consolação. Nesse ponto o pensamento de Schopenhauer se aproxima ou se iguala ao

pensamento de David Hume que em suas obras História natural da religião e Diálogos

sobre a religião natural trata do assunto vendo a religião como uma tentativa de

explicação do mundo, uma alegoria do mundo, e também como um meio de os homens

diminuírem seus infortúnios pelo menos psicologicamente. Os homens atormentados

pelos horrores da vida precisam de um mito consolador e assim criam um deus com o

qual podem contar ou que lhes ofereça a salvação ou a diminuição de suas dores. Assim

o ser divino tem sua origem na angústia, na dor, na preocupação dos homens que

precisam de algum tipo de solução, ainda que impalpável, para suas necessidades.

Ainda, não esqueçamos que para Schopenhauer O “em si” é a vontade cega que faz do

homem um ser destinado ao sofrimento por sua insatisfação ininterrupta, somado isso a

outras dores do mundo o homem precisa de um consolo e por isso cria um deus, um ser

com o qual “pode” contar, ao qual “pode” pedir paz, reverenciar, pedir ajuda; um ser ou

seres que regem o mundo e o têm sob seu poder. Imaginar tal ser ou tais seres traz ao

homem um conforto momentâneo ou até mesmo um conforto que ele pode carregar por

toda a vida; a fraqueza dos seres humanos e sua impotência diante dos infortúnios do

mundo faz com que eles necessitem dessa presença mágica, presença essa que é criada,

assim como também todos os efeitos provenientes dela. Dessa forma deus nada mais é

22

do que uma criação do próprio homem em sua egoísta e incessante vontade que domina

a razão. Isso se segue a um povo inteiro, que como o povo judeu se intitula o povo

escolhido de deus e até em guerras pede a ajuda desse mesmo deus movimentando a

esperança de toda uma nação. É assim que se resume o Teísmo Para Schopenhauer,

como uma criação humana frente as suas necessidades na procura de algum tipo de

salvação ou uma tentativa de interpretar a vida e o mundo. Assim que se entende o

Teísmo e alguns dos motivos pelos quais nosso pensador não acredita e nem poderia

acreditar nele. Agora vejamos outro motivo que faz de Schopenhauer um ateu, esse

motivo é o velho e conhecido problema do mal, também apresentado David Hume em

seu livro Diálogos sobre a religião natural, para Hume e Schopenhauer como nós

poderíamos acreditar que um deus perfeito, bondoso, misericordioso, onipotente,

onisciente é criador desse mundo se no mesmo existe tanta dor, horrores dos mais

diversos, ou seja, tanto sofrimento, se seus filhos, isto é, os homens e os animais, tanto

sofrem e se os raríssimos momentos de paz dos quais desfruta a humanidade são tão

curtos e extremamente frágeis? O sofrimento do mundo jamais poderia coexistir com a

idéia de um deus perfeito e misericordioso. Em nenhum momento poderíamos ver esse

mundo como a obra de um deus todo poderoso, e, pior ainda, misericordioso, tal

pensamento só pode ser fruto de uma mente não só egoísta, como também de uma

mente totalmente desprovida de um autêntico raciocínio filosófico coerente. O mundo

caso seja obra de algum ser superior a ele, esse ser só pode ser uma espécie de demônio

que se diverte com a dor dos homens. Longe de esse mundo ser o melhor dos mundos

possíveis, ele é o pior dos mundos possíveis, contendo a pior das vidas possíveis. Nosso

autor expressa esse pensamento por várias vezes em sua obra, mas é em Parerga e

Paralipomena que podemos encontrá-lo de maneira mais explícita, eis uma passagem:

“Se o sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa

existência é o maior contra senso do mundo”.44 Percebemos que Schopenhauer em

nenhum momento admite que a vida possa ser alguma coisa a mais do que sofrimento

ou necessidade, tal visão extremamente pessimista não se deve apenas a sua metafísica

da vontade, mas também a simples observação do mundo e da vida das pessoas. O

sofrimento humano possui um papel extremamente importante no pensamento de

Schopenhauer ele será mais uma vez usado para negar a existência de deus dessa vez

44 Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In: “OS PENSADORES”, Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo: 1997 p. 277

23

em sua visão Panteísta. Para ele a crença de que um ser onipotente, onisciente e

misericordioso tenha criado um mundo cheio de sofrimento ainda pode, mesmo sendo

absurda, ser pensada já que poderia ser apresentada como porquê desse sofrimento a

imperscrutabilidade de sua vontade, mas “pensar que deus, o próprio deus criador é o

infinitamente atormentado, ou seja, que deus é o próprio mundo sendo a própria criação,

e somente nesse pequeno mundo, o que morre uma vez em cada segundo, isto por atos

livres, o que constitui um absurdo. Mais fácil seria identificar esse mesmo mundo com o

próprio demônio do que com um deus”45. Dessa maneira jamais um deus seja ele qual

for poderia se transformar nesse mundo tão terrível e condenar-se por própria vontade a

um sofrimento sem fim, tal pensamento seria um absurdo para o qual, diferentemente do

Teísmo, não cabe nenhuma desculpa. Ainda que Teístas possam dizer que na terra

existe certa ordem, ou uma estrutura própria, que apenas poderia ser proveniente de um

deus qualquer, ou seja, que basta olhar para uma possível ordenação do mundo para

constatar a existência de um deus, Schopenhauer não dará a mínima atenção para esse

argumento, pois não só para ele, mas também para David Hume basta um olhar mais

atento para o mundo, basta olhar mais de perto para o mundo e ver que o que de fato

existe nele é a desordem brutal e ininterrupta, longe de qualquer ordem ou estrutura bem

idealizada o mundo e os seres que nele habitam são desordenados e jamais poderiam ser

vistos como criação de um deus com todas as qualidades que já mencionamos.Entre os

seres o que existe é a guerra inacabável, o desejo infinitamente insatisfeito, o sofrimento

diante do qual somos impotentes. O mundo é ruim, as pessoas em sua maioria são ruins,

basta olhar para a história e veremos as mais cruéis histórias de traições, guerras, tudo

movido pelo egoísmo humano e por sua maldade, na terra são a tristeza a amargura que

existem e que sempre saem triunfante, os momentos de paz são como pequenos

intervalos entre um momento de dor e outro, dessa forma a visão de que o mundo, por

sua ordenação, só pode ser a criação de um deus é totalmente equivocada não

procedendo de maneira alguma. Longe de todos esses males serem causados apenas

pelos próprios homens, eles também existem por si mesmos e são elas as doenças, os

acidentes, o homem nunca sabe o que o espera, pode ser qualquer coisa, desde a loucura

até a morte ou a agressão fatal de outro homem: “Pois o mundo constitui o inferno, e os

45 Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In: ”OSPENSADORES”, Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, Os Pensadores, São Paulo: 1997 p

24

homens formam em parte os atormentados e noutra, os demônios” 46.Assim a religião

deus ou os deuses estão completamente descartados. Aquilo que para David Hume é

argumento para se suspender o juízo e levantar a possibilidade de deus não existir, para

Schopenhauer é o suficiente para negar a sua existência.

Como já dissemos, a metafísica do povo surge pelo espanto que o homem sente

frente aos mistérios da existência e também pela necessidade de uma salvação por causa

da terrível e incessante vontade que conduz sua vida, Também a religião não se resume

apenas no Teísmo. Ela possui outra forma totalmente diferente que é o Budismo e o

Hinduísmo, religiões nas quais o pensador se inspira para criar seu próprio pensamento.

No Budismo a figura central é o Buda, ou seja, o príncipe Sidarta Gautama que

abandonou tudo, inclusive sua vida de riquezas, por compaixão da humanidade presa no

sofrimento da vida para dar-lhe o caminho que conduz a salvação, depois de seis anos

Sidarta atinge a iluminação, torna-se o Buda, sendo a partir de então aquele que

despertou para a verdade universal ensinando que a vida é sofrimento do começo ao

fim, e passa a guiar seus discípulos. Schopenhauer concorda plenamente com as quatro

verdades de Buda que guiam o homem a iluminação ou até a santidade, são elas a

existência, a origem, a cessação e o caminho da cessação do sofrimento. O próprio

Schopenhauer defenderá essa visão de mundo em seu pensamento e também a exemplo

da religião Budista irá propor ao homem um meio de libertação do sofrimento, de

salvação através da negação da vontade, algo bem próximo do ascetismo de Gautama.

46 Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In”OS PENSADORES” Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo: 1997 p. 285

25

1.3 Crítica à forma imperativa da moral kantiana

O imperativo categórico é a base do pensamento kantiano sobre a moral, alicerce

do edifício ético formulado por Kant, mas antes de estudarmos a crítica que

Schopenhauer faz a ele, vamos estudar a gênese do mesmo.Ela se inicia com a idéia de

Dever. É bom ressaltar que a crítica de Schopenhauer à moral kantiana possui dois

momentos um deles diz respeito a forma imperativa que possui, o outro a seu

formalismo.

O ato moral para Kant é aquele que não possui nenhum tipo de interesse pessoal.

No inicio de seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes, ele dirá: “Neste

mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como

bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”47.Para Kant essa “boa

vontade” deve ser boa por si mesma, não estar contaminada por nenhum interesse

humano, como por exemplo, ainda que a atitude possa parecer boa em um primeiro

momento, como a do caridoso que ajuda muitas outras pessoas, mas que foi motivado

pelo desejo de sentir-se bem ao ver as pessoas felizes, essa atitude não poderá ser

considerada moral pois, apesar de estar de acordo com o dever, não foi motivada por

ele. Se uma pessoa pratica uma ação apenas porque ela quer praticá-la, essa ação não

possui valor moral algum. O único modo como Kant compreende a possibilidade de um

ato moral genuíno é com a existência de um dever responsável pela motivação do ato

moral: “Para desenvolver porém, o conceito de boa vontade altamente

estimável em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito que reside

já no bom senso natural e que mais precisa de ser esclarecido do que

ensinado, este conceito que está sempre no cume da apreciação de todo o

valor das nossas ações e que constitui a condição de todo o resto, vamos

encarar o conceito de Dever que contém em si o de boa vontade.48

Bom ressaltar que Kant possui em sua fundamentação o intuito de, como ele

mesmo diz, buscar a fixação do princípio supremo da moralidade. Kant não está

interessado em construir uma moral ou definir o que seja certo ou errado.

47 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa Portugal: 2008 p. 21 48 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 26

26

Para Schopenhauer o primeiro erro de Kant se encontra na forma com a qual ele

apresenta a moral: “Tanto a filosofia natural como a filosofia moral, podem cada uma

ter sua parte empírica, porque aquela que tem de determinar as leis da

natureza como objeto da experiência, esta porem as da vontade do homem

enquanto ela é afetada pela natureza; quer dizer, as primeiras como leis

segundo as quais tudo acontece, as segundas como leis segundo as quais

tudo deve acontecer,, mas ponderando também as condições sob as

quais muitas vezes não acontece o que devia acontecer”49

Diante dessa definição Schopenhauer dirá: “Isto já é uma petição de princípio

decisiva. Quem nos diz que há leis as quais nossas ações devem submeter-se? Que vos

diz que deve acontecer o que nunca acontece?”. 50O que vos dá o direito de antecipá-lo

e logo impor uma ética na forma legislo - imperativa como a única para nós possível”51.

além dessa definição ser uma petição de princípio ela contém a suposição inaceitável

por parte de Schopenhauer de que existem leis morais puras em nossa mente, coisa que

durante toda a Fundamentação da metafísica dos costumes, segundo Schopenhauer, não

foi provado por Kant ou demonstrado de nenhuma maneira. A condição pura de leis

morais em nossa mente é afirmada pelo próprio Kant logo no inicio da Segunda Seção

da Fundamentação da metafísica dos costumes: “Do facto de até agora havermos tirado

o nosso conhecimento de dever do uso vulgar da nossa razão prática não se deve de

forma alguma concluir que tenhamos tratado como um conceito empírico”52.

Schopenhauer dirá, a respeito dessa forma pura da moral kantiana: Em Kant o princípio ético apresenta-se como algo totalmente independente

da experiência e do seu ensinamento, como algo transcendental ou

metafísico. Ele reconhece que o modo de agir humano tem um significado

que ultrapassa toda a possibilidade de experiência e, por isso mesmo, a ponte

própria para levar é o chamado mundo inteligível, “mundum noumenon”, o

mundo das coisas em si.53

49 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa Portugal: 2008 p. 14 50

Schopenhauer, A. fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.23 51 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 23 52 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 41 53

Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 20

27

Assim o princípio da moralidade em nada é motivado por algo empírico, o

mesmo é metafísico e de alguma forma espontâneo. Icilio Vecchiotti comenta a

interpretação de Schopenhauer sobre a moral kantiana: Quase todos os críticos defenderam que o imperativo kantiano se apresenta

como um facto imediato de consciência. Mas essa opinião vai contra o

pensamento de Kant. O imperativo é introduzido na Fundamentação da

metafísica dos costumes por um processo totalmente a priori, através de um

raciocínio subtil.54 Assim, a lei moral é apresentada por Kant como algo totalmente a priori, que em

nenhum momento necessita do empírico para existir e ainda mais além, é genuinamente

moral em parte por ser assim. Depois de Schopenhauer lançar os questionamentos

apresentados acima, ele irá apresentar aquilo que ele pensa estar realmente por detrás da

moral kantiana.

Depois de tais questionamentos, Schopenhauer continuará fiel a Kant, quando o

mesmo afirma em sua Crítica da razão pura, que a única forma de adquirir

conhecimentos é através da experiência, coisa que Schopenhauer mais a frente dirá que

Kant se esqueceu em sua Fundamentação da metafísica dos costumes. Schopenhauer

continuará defendendo a experiência como fonte única de conhecimento, e argumenta

que o filósofo deve estudar aquilo que de fato acontece no mundo ou entre os homens

para depois chegar a uma conclusão, seja ela qual for. Schopenhauer irá se valer da

experiência para encontrar o seu fundamento da moral, atento a fatos, a ações humanas,

sempre citando exemplos, Schopenhauer encontrará, por detrás de toda boa ação a

compaixão que para ele é a única coisa capaz de explicar e fundamentar a moral, em

nenhum momento Schopenhauer se esquece da experiência para formular sua tese,

Sendo assim, descobrimos um dos motivos que o faz criticar tanto a moral kantiana:

Kant teria, sem nenhuma preocupação com as experiências morais humanas, definido, e

estabelecido (ou até mesmo criado) a existência da lei moral a ser seguida, o que

constituiria um equívoco, para não dizer um absurdo que vai contra sua própria obra.

No pensamento de Schopenhauer o conceito de “lei” tem sua origem nas

instituições civis criadas pelo homem e também, em um sentido alegórico, no

conhecimento da natureza onde os fatos apreendidos “a posteriori”, que se mantêm

constantes, são também chamados pelos homens de “leis da natureza”. Nos homens, já

54 Vecchiotti, I. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Edições 70, 1986 p. 57

28

que são eles parte da natureza, tal “lei” também existe e se encontra na motivação das

ações humanas, ou seja, na lei de motivação. Cada ação só pode acontecer depois de

uma devida causa, mas em nenhum momento tal ação pode ser vista como originária de

uma suposta lei moral pré-existente na mente humana, mas tão somente como um efeito

que se encerra em si mesmo. Fora esse exemplo de “lei natural” apresentado por

Schopenhauer, não haveria motivos para se acreditar na existência de uma lei moral

que, independentemente de regulamentação estatal ou religiosa pudesse existir “a

priori” na mente dos homens e lhe mostrar claramente o que deve ou não ser feito. Mas

tal foi a tentativa de Kant com sua moral imperativa, que possui em si uma necessidade

absoluta. Juntamente com a afirmação dessa necessidade absoluta. Schopenhauer

reconhece uma “petição de princípio”,: Kant afirma que tal “lei moral” nos dá um

“dever” a ser seguido. Com esse conceito de “dever” presente à “lei moral”, surge não

só a contradição absoluta da moral, kantiana como também o ponto mais fraco em sua

fundamentação. Primeiramente, uma moral que ordena não pode esperar que a atitude

daqueles que a seguem seja realmente genuína; não existiria um “agir moral” de forma

espontânea, realmente desejada, e sim uma ação moral guiada por uma ordem a ser

seguida. Em segundo lugar, Schopenhauer reconhece no “tu deves”, expressão utilizada

por Kant, juntamente com os conceitos de mandamento e lei, nada mais do que a antiga

moral teológica que, em nenhum momento, poderia fundamentar a moral genuína que

como tal se caracterizaria por seu total desinteresse pessoal. Em relação à questão do

“Dever” apresentada por Kant, Schopenhauer explica que não existe nenhuma outra

origem para a introdução de conceitos como lei, prescrição ou Dever, a não ser no

decálogo mosaico, a própria ortografia de Kant no tu deves [du sollt], revelaria, até de

maneira ingênua, essa origem inaceitável que teria de ser da retirada da filosofia. Tais

conceitos como lei, mandamento e dever teriam sua origem na moral teológica e,

portanto permaneceriam estranhos a Filosofia55, Kant estaria simplesmente fazendo uma

afirmação sem nenhuma argumentação ou raciocínio.

Com essas palavras Schopenhauer afirma não só que a moral teológica é algo

que não deve ser levada em consideração pela filosofia como também que a moral

kantiana em sua fundamentação, já se encontra viciada e em contradição com seu

próprio conceito. Além disso, o “tu deves”, presente na obra de Kant ou em qualquer

55 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 25

29

outra teoria sobre a moral, perde todo seu significado fora da teologia. Uma moral que

ordena, impele ou exige só pode ser, no ponto de vista de Schopenhauer, ligada à

religião, pois inerente a si existe sempre o pressuposto de castigo ou recompensa. Sobre

isso Schopenhauer esclarece: Se tais condições – castigo e recompensa – forem abstraídas, o conceito de

dever fica vazio de sentido. Por isso o dever absoluto é simplesmente uma

“contradictio in adjecto”. É simplesmente impossível pensar uma voz que

comanda, venha ela de dentro ou de fora, a não ser ameaçando ou

prometendo. Mas assim, a obediência em relação à ela mesma, que, de

acordo com as circunstâncias, pode ser esperta ou tola, será sempre, todavia,

em proveito próprio e portanto sem valor moral.56

O Dever da moral kantiana começa agora a aparecer como algo vazio, que não

possui em si nada sólido que o sustente, mas o que estaria então tentando Kant revelar

com ele se o mesmo é apenas algo vazio? Ora, se inerentes ao Dever, estão o castigo e a

recompensa posteriores, obviamente que o próprio conceito de Dever e seja mais o que

vier depois dele nada poder pode fornecer de concreto, dessa maneira, mesmo tendo

tentado fugir da teologia ela permanece na teoria moral de Kant, e não apenas ela, mas

também o Eudemonismo como se verá a seguir. O Dever na moral kantiana revela

assim a teologia que seria pelo que entendemos, a sua própria sustentação.

Schopenhauer, mesmo criticando em seu ensaio apenas a Fundamentação da

metafísica dos costumes, obra de Kant que, como vimos, apresenta a sua fundamentação

da moral, não deixa de examinar a Crítica da razão prática, na qual encontra aquela que

seria a prova da contradição kantiana que aparece indiscutivelmente na teoria do

“Soberano Bem”. Para Schopenhauer o “Soberano Bem”, fruto da observância moral,

nada mais é do que a recompensa pela observância da lei moral que se constitui na

unificação da virtude e felicidade, que nada mais seria do que o Eudemonismo retirado

da moral pelo próprio Kant através do seu conceito de ato moral genuíno Assim, a

moral kantiana apresentar-se-ia com uma dupla contradição levando em consideração

todo o seu pensamento sobre a moral: após conceituar o ato moral genuíno como sendo

aquele que está totalmente destituído de interesse pessoal, Kant tenta fundamentá-lo

através de um imperativo categórico que possui em seu íntimo nada mais que a moral

teológica, e, conseqüentemente, egoísta. Depois disso, na Crítica da razão prática, o

56

Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 27

30

“Soberano Bem” faz renascer o Eudemonismo que também nada mais é do que

interesse pessoal. Schopenhauer comenta: Assim é que se vinga a admissão do dever incondicionado e absoluto, que

oculta uma contradição. Por outro lado, o dever condicionado não pode ser

certamente um conceito ético fundamental, porque tudo o que acontece

visando uma recompensa ou castigo é necessariamente uma ação egoísta e,

sendo assim, sem puro valor moral.57

Mas a crítica de Schopenhauer a forma imperativa da moral kantiana não

termina nessas afirmações que já seriam suficientes para entendê-la como contraditória

dentro do pensamento do autor. O “tu deves” possui em si mais uma peculiaridade que

o impediria de ser fonte de uma moral genuína, peculiaridade que recai sobre a própria

vontade do indivíduo que o obedece. O ato moral não deve ser apenas desinteressado,

mas também fruto de uma vontade genuína, deve ser espontâneo, deve acontecer por

pura vontade e não por obediência de quem pratica uma lei seja ela qual for. Qualquer

ato moral que surja tendo uma fonte como a do “tu deves”, não existiria por si mesmo,

e sim, por obediência ou comprometimento de se seguir um preceito ou lei. Dentro

dessa conclusão, a vontade humana no ato moral simplesmente desapareceria por

completo, o que faria com que a fundamentação moral do pensamento de Kant fosse

destruída de uma só vez. Schopenhauer apresenta assim a moral kantiana como carente

de tudo quilo que ela tentou apresentar: Como todo deve está simplesmente ligado a uma condição, do mesmo modo

todo dever. Pois ambos os conceitos têm um parentesco próximo e são quase

idênticos. A única diferença poderia ser a de que o deve em geral pode

repousar sobre a mera coerção, e o dever, pelo contrário, pressupõe o

compromisso, quer dizer, a aceitação do dever – esta tem lugar entre senhor e

servidor, superior e subordinado, governo e súditos. Mesmo porque ninguém

aceita um dever gratuitamente, e cada dever dá um direito. O escravo não tem

deveres porque não têm direitos, mas existe para eles um deve que repousa na

mera coerção.58

Assim, aquilo que até então era a estrutura sólida para fundamentar qualquer ato

moral se transforma em um mero jogo de palavras profundamente contraditório e não

merecedor de ser considerado sequer como pensamento filosófico. Schopenhauer ainda

57 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 28 58

Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 28

31

faz afirmações provenientes de suas conclusões a respeito da moral kantiana que

pretendem demonstrar o real interesse de Kant na sua formulação dos fundamentos da

moral. Ele afirma que o pensador “emprestou” da moral teológica o seu fundamento,

criando uma teologia às avessas que surge da moral, e que, conseqüentemente à sua

aceitação, levaria seu seguidor obrigatoriamente a um deus qualquer, isto é, aceitar a

moral kantiana como procedente significa aceitar consequentemente a teologia. Eis que

nesse ponto de sua dissertação, surge uma “acusação” dura de Schopenhauer ao afirmar

que os “pressupostos teológicos ocultos” na moral kantiana podem ter sido lá colocados

de forma proposital ou por incapacidade intelectual de Kant de raciocinar plenamente.

Schopenhauer comenta essa “incapacidade intelectual” de Kant logo no inicio de sua

dissertação, como já vimos, quando justifica a necessidade de criticar a Fundamentação

da metafísica dos costumes, vejamos o que ele diz: Além disso, ela – Fundamentação da Metafísica dos Costumes - tem ainda a

vantagem significativa de ser a mais antiga de suas obras sobre a moral,

quatro anos apenas mais nova que a Crítica da Razão Pura, sendo assim do

tempo em que, embora ele já estivesse com sessenta e um anos, a influência

da idade sobre seu espírito ainda não era perceptível.59

Notamos nas palavras acima que Schopenhauer desconfia da própria capacidade

de Kant como pensador e indica a “idade avançada” de Kant como responsável pelos

absurdos ditos a respeito da moral em sua fundamentação. Mas essa ainda é a conclusão

mais “leve” sobre o pensamento moral kantiano, Schopenhauer aponta ainda no inicio

de sua dissertação um raciocínio, onde mostra aquele que seria o verdadeiro intuito de

Kant na construção de sua moral e que, caso tal apontamento seja procedente, faria de

Kant, segundo os próprios dizeres de Schopenhauer, um pensador que de maneira

proposital manteve a teologia em sua moral, coisa totalmente contrária a sua própria

filosofia. Schopenhauer irá afirmar ainda sobre a Fundamentação da metafísica dos

costumes, mas com apoio na Crítica da razão prática, que construir uma teologia moral

era o intuito de Kant desde o princípio. Vejamos as palavras do pensador referentes à

Crítica da razão prática: Porém deve-se particularmente mencionar a Crítica da Razão Prática para o

seguinte: em primeiro lugar, a exposição de alto mérito em relação às demais,

e, por certo, composta anteriormente, a exposição das relações entre

liberdade e necessidade (pp. 169-79 da quarta edição), a qual concorda,

59 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 21

32

contudo com a primeira com a que ele dá na Crítica da razão pura (pp. 560-

86); e, em segundo lugar, a teologia moral que cada vez mais se

reconhece como sendo aquilo que Kant quis.60 Talvez tal intuito de Kant já pudesse ser presumido, levando em consideração a

crítica de Schopenhauer a moral kantiana, quando no Prefácio à Crítica da razão pura,

Kant fala sobre sua própria filosofia e também sobre aquilo que seria sua “missão”,

apesar de Schopenhauer não tocar nessa parte da obra de Kant em sua crítica, pensamos

ser interessante colocá-la aqui: Só mediante essa crítica podem ser cortados pela raiz o materialismo, o

fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos livres-pensadores, o fanatismo e a

superstição, que podem tornar-se prejudiciais em geral, e por fim também ao

idealismo e o ceticismo, que são mais perigosos para as escolas e

dificilmente passam para o público.61

Assim, no pensamento de Schopenhauer, Kant não encontrou nenhuma moral,

não quis descobrir o princípio primeiro da moralidade, mas sim, quis construir uma com

bases teológicas. Poderíamos dizer que Schopenhauer pensa ter sido a vontade de

“manter a possibilidade da teologia viva” por meio da moral, o verdadeiro interesse de

Kant ao escrever sua fundamentação moral. Em nenhum momento Kant teria buscado a

verdade sobre a ética, e sim, um meio de, através da filosofia, manter a teologia ainda

possível. Essa é a conclusão que chegamos depois das palavras de Schopenhauer, que

afirma que Kant quis construir uma teologia as avessas. Nosso pensador quis dizer com

isso que Kant através da moral levaria o homem a crença em deus, já que sem algum

deus sua moral não faria sentido. Percebe-se aqui o esforço de Schopenhauer em

destruir qualquer porta para a moral teológica cristã na moral de Kant. Se Schopenhauer

realmente está com a razão ou não, é algo que não nos cabe responder, mas sua

interpretação da moral kantiana é realmente essa.

Tal suposição, ainda que não explícita, pode ser encontrada facilmente na crítica

de Schopenhauer à fundamentação moral kantiana e não pode ser descartada, já que,

como acima vimos nas próprias palavras de Kant, o ceticismo e o ateísmo seriam males

que, através de sua Crítica da razão pura, ele se propunha a combater. Mas já que

60 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 21 - 22 61 Kant I. Crítica da razão pura, In “OS PENSADORES”trad. Valerio Rohden e Udo Moosburger, Nova Cultural, São Paulo: 1996 p. 47

33

Schopenhauer cita a Crítica da razão prática vamos até ela, investigar esses pontos

obscuros dessa crítica.

Esses trechos podem parecer inapropriados por não tratarem de forma exclusiva

da Fundamentação metafísica dos costumes, livro sobre o qual Schopenhauer se

debruça para elaborar sua crítica à moral kantiana, mas eles mostram que a tentativa

kantiana de manter a religião aceitável não se encontra apenas em seu pensamento

moral, mas também em toda sua obra. Muitos partilham do pensamento de

Schopenhauer sobre os pressupostos teológicos ocultos na obra de Kant, como por

exemplo, Michel Onfray, mas, interessante notar, que ninguém cita nosso pensador

como aquele que fez essa afirmação tão claramente. Schopenhauer ainda diz antes de

terminar sua crítica ao imperativo categórico: Dito de forma abstrata, o procedimento de Kant é o de ter dado como

resultado aquilo que teria de ser o princípio ou o pressuposto (a teologia) e de

ter tomado como pressuposto aquilo que teria de ter sido derivado como

resultado (o mandamento). Porém, depois que ele virou a coisa de ponta

cabeça, ninguém, nem mesmo ele, a reconheceu como sendo aquilo que era, a

velha e bem conhecida moral teológica.62 Assim, não teria Kant despertado totalmente do seu sono dogmático. A moral

kantiana nessa primeira crítica aparece como, consciente ou inconscientemente, o que

pode ria ser chamado de erro, um meio de atingir a teologia, aquilo que seria o fim

aparece como princípio, da crença em um deus qualquer surgem mandamentos,

preceitos a serem seguidos, em qualquer crença religiosa o mandamento surge depois

dela, o que Schopenhauer nos diz é que Kant construiu algo invertido, é isso que ele

quer dizer quando acima citamos, “virou de ponta cabeça”.

Mas a crítica moral kantiana continua e agora veremos mais pontos específicos

dela que nos levarão a compreensão de onde Schopenhauer quer chegar ao

examinarmos a sua fundamentação da moral.

62 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 30/

34

1.4 Crítica à admissão dos deveres a nós próprios

Outro ponto interessante da Fundamentação da metafísica dos costumes, diz

respeito aos deveres que teríamos em relação a nós mesmos, ao qual Schopenhauer

também não poupa críticas. Kant afirma que o “tu deves” também existe para o homem

em relação a si mesmo. Assim, não em relação apenas ao mundo e às outras pessoas o

homem possui um dever a cumprir, mas também a si mesmo, existe uma atitude correta

a ser seguida. Tal suposta atitude também será alvo das críticas de Schopenhauer que

continuam duras e irônicas.

Schopenhauer dir-nos-á que só existem dois deveres em relação a nós próprios:

deveres de direito ou deveres de amor.63 Ele afirmará que deveres de direito são para

nós impossíveis de serem realizados, pois sempre fazemos conosco aquilo que

queremos. Jamais alguém poderia afirmar que um homem comete uma injustiça contra

si mesmo, no máximo, tal pessoa que cometeria uma “injustiça” contra si mesmo,

estaria equivocada em relação ao efeito benéfico que o ato praticado lhe traria, o que,

quando descoberto, seria desfeito ou seria ponto de partida para uma reparação.

Já nos deveres de amor a contradição seria ainda mais evidente já que o “amar a

si mesmo” seria algo mais que evidente em todos os seres humanos. Schopenhauer cita

a passagem do evangelho no qual tal verdade seria explicitamente indicada: A impossibilidade de ferir a obrigação do amor-próprio já vem pressuposta

no mais alto mandamento da moral cristã – “Ama teu próximo como a ti

mesmo” (Mateus 22,39) -, segundo o qual o amor que cada um nutre por si

mesmo é tomado previamente como o máximo e a condição de qualquer

outro é complementado, de nenhum modo, pelo ‘ama a ti mesmo como a teu

próximo”, pelo que cada um sentiria que seria obrigado a muito pouco.64 Nessa regra moral, vemos que o amor a si mesmo é considerado o maior de

todos e ela nos pede que amemos os outros com o mesmo amor, com a mesma

intensidade que nós amamos a nós mesmos, pois, o amor que voltamos para nós

mesmos não é de nenhuma forma um dever, e sim, algo espontâneo. Ainda sobre os

“deveres” que temos para com nós mesmos, Schopenhauer nos dirá: “O que se

63 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 31 64 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 31

35

apresenta de costume como dever em relação a nós próprios é, antes de tudo, um

arrazoamento contra o suicídio, fortemente preso a preconceitos e extraído de razões as

mais superficiais.” 65 Esclareçamos sobre o que foi dito acima, pois no pensamento de

Schopenhauer o homem é sempre egoísta, com exceção do momento no qual sente a

compaixão ou nega a vontade, assim pensar apenas em si mesmo ou naquilo que é

melhor para si mesmo lhe é algo natural e não há como isso não acontecer, assim as tais

regras de amor ou dever para consigo mesmo não necessitariam existir em nenhum

momento, já que isso seria algo natural do homem, já em relação ao suicídio, a crítica

de Schopenhauer que, mesmo não sendo um defensor do suicídio, terá elementos um

pouco mais polêmicos de seu pensamento, ele dirá que ele é uma compensação para o

homem que, diferentemente do animal, pode “viver” passado e futuro juntamente com o

presente graças a razão, como já vimos, coisa que aumentaria ainda mais seu

sofrimento. No animal o passado e o futuro não existem, assim como a racionalidade

também não. O animal não experimenta o sofrimento de prever uma situação desastrosa

ou simplesmente ruim, às vezes inevitável, ou de se remoer em sofrimento por um fato

acontecido no passado e que ainda lhe atinge com dor, como acontece nos seres

humanos. Para Schopenhauer os motivos que fazem com que um homem não cometa

suicídio devem ser motivos muito mais profundos do que aqueles apresentados por

Kant. Esses motivos podem ser encontrados em O Mundo como vontade e como

representação. Nesse livro o suicídio é apresentado por Schopenhauer como um ato

vão, sem sentido, pois exterminaria apenas o indivíduo enquanto toda a espécie

permaneceria no sofrimento da vida, a essência de tudo, sempre uma, a vontade,

continuaria a existir assim como a dor. Longe de ser um ato de negação da vida, que

Schopenhauer defende como a mais alta meta da vida, talvez sua única meta, o suicídio

é um ato de afirmação equivocada da vida, fruto do apego aos prazeres terrenos que

tantos nos escravizam ou a própria vida. Como veremos no segundo capítulo deste

trabalho, Schopenhauer é um pessimista e vê na vontade, como dito na introdução, o

“em si” kantiano e também a responsável pela a existência de tudo o que existe.

Libertar-se dessa vontade seria a “missão” do homem e o único meio de acabar com

todo o sofrimento da existência até o aniquilamento total. Suicidar-se seria algo bem

65 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 32

36

distante desse pensamento. Vejamos o que ele nos fala no quarto livro de O Mundo

como vontade e como representação sobre o assunto: Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida, exposta

suficientemente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o

único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no feno individual, na

efetividade, portanto é como Asmus a define, a mudança transcendental do

que a efetiva supressão do fenômeno individual, na efetividade, pelo

SUICÍDIO. Este, longe de ser negação da Vontade, é um acontecimento que

vigorosamente a afirma66.

Mas, depois de fazermos essa observação sobre a visão de Schopenhauer sobre o

suicídio que, como veremos na conclusão deste trabalho, será de extrema importância

para a compreensão da moral de Schopenhauer no tocante à liberdade e,

conseqüentemente, à sua fundamentação da moral, voltemos à sua crítica à Kant e

também à suas ironias sobre o mesmo. Vejamos o que Schopenhauer diz sobre a

questão do suicídio em Kant: Também as razões contra o suicídio que Kant, nas pp. 53 e 67, não desdenha

de alegar, posso apenas, de modo escrupuloso, intitular de mesquinharias que

nem ao menos merecem uma resposta. Temos de rir quando pensamos que

tais reflexões teriam de arrancar o punhal das mãos da Catão, de Cleópatra,

de Cocio Nerva (Tacitus, Anais 6, 26) ou de Arria de Paetos (Plínio,

Epístolas 3, 16)67.

Como vimos o suicídio não é algo moralmente reprovável no pensamento de

Schopenhauer, ele apenas é algo estúpido sem nenhum efeito. Para Schopenhauer o

suicídio pode até mesmo ser visto como a oportunidade concedida pela natureza ao

homem que não resiste aos seus sofrimentos.

Eis abaixo os comentários de Kant a respeito do suicídio em sua Fundamentação

da metafísica dos costumes: Uma pessoa, que por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente

tédio da vida, mas está ainda bastante em posse da razão para poder perguntar

a si mesma se não será talvez contrário ao dever para consigo mesma atentar

contra a própria vida. E procura agora saber se a máxima de sua ação se

poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, porém é a

seguinte: Por amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida,

66 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.504 67 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 32

37

prolongar-se, me ameaça mais com desgraças do que me promete alegrias,

devo encurtá-la. Mas pergunta-se agora se esse princípio do amor a si mesmo

se pode tornar em lei universal da natureza. Vê- se em breve que uma

natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo

objetivo é suscitar a sua conservação, se contradiria a si mesma e portanto

não existiria como natureza. Por conseguinte, aquela máxima não poderia de

forma alguma dar-se como lei universal da natureza, e, portanto é

absolutamente contrária ao princípio supremo de todo dever68.

Mais à frente Kant ainda falará sobre o suicídio: Segundo o conceito de dever necessário para consigo mesmo, o homem que

anda pensando em suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua acção pode

estar de acordo com a idéia de humanidade como fim em si mesma

necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em suicidar-se

perguntará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo com a idéia da

humanidade como um fim em si mesma. Se, para escapar a uma situação

penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um

simples meio para conservar até o fim da vida uma situação suportável. Mas o

homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado

simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado

sempre em todas as suas ações como um fim em si mesmo. Portanto, não

posso dispor do homem na minha pessoa para mutilar, ou degradar ou

matar.69

Esses dois comentários de Kant fazem parte da Segunda Seção do livro

Fundamentação da metafísica dos costumes, na qual são apresentadas a “máximas”

deduzidas do princípio da moral kantiana que é o imperativo categórico segundo o

próprio Kant, e que também será alvo das mais severas críticas por parte de

Schopenhauer. Uma das máximas é a seguinte: “age apenas segundo uma máxima tal

qual que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”70

Importante notar que Schopenhauer sequer deseja tecer algum comentário crítico

sobre essas duas passagens sobre o suicídio em Kant, por considerá-las absurdas demais

para tal. Na realidade, essas observações de Kant sobre o suicídio se encontram

apoiadas também no imperativo categórico, agora, como vimos acima, apresentado

através de uma de suas máximas derivadas.

68 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 62-63 69 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 73 70

Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70 Lisboa Portugal: p.62

38

Ainda existe um último aspecto dos deveres em relação a nós mesmos a ser

criticado por Schopenhauer, para ele, esses deveres seriam na realidade, em sua maioria,

apenas regras de bem viver ou de prudência. Não é por dever que um homem se

resguarda de praticar algo que lhe seria nocivo para sua própria vida. Apesar de

Schopenhauer não afirmar tal posicionamento, entendemos que o que ele quer dizer é

que essas prescrições nada mais são do que formas de “bem viver” ligadas, por

exemplo, à higiene, quando cita os casos de bestialidade e onanismo. Tais preocupações

nada teriam de moral, com exceção, entre os casos que ele cita a pederastia que, por

envolver a corrupção de um jovem seria algo a ser pensado no âmbito moral.

Dessa forma, vemos que Schopenhauer mais uma vez tenta acabar com a noção

de dever encontrada em Kant. Até mesmo esses supostos deveres do homem para

consigo mesmo, nada mais seriam do que regras para se alcançar uma vida mais feliz,

ou no mínimo, uma vida sem problemas. Também aqui, notamos que nosso autor volta

a afirmar, mesmo que de maneira indireta, a dupla contradição, já apresentada no item

anterior, que estaria escondida na moral kantiana: a moral teológica e o Eudemonismo,

ambos incompatíveis que a concepção de moral apresentada pelo próprio Kant. Mesmo

tendo Kant afirmado que não se trata disso quando, por exemplo, ele diz: “Quando, por

exemplo, dizemos: ‘Não deves fazer promessas enganadoras’, - admitimos que a

necessidade dessa abstenção não é somente o conselho para evitar qualquer outro mal,

como se disséssemos: ‘Não deves fazer promessas mentirosas, para não perderes o

crédito quando se descobrir o teu procedimento”71

71 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p.59

39

1.5. Crítica ao fundamento da ética kantiana

Nesse item de seu ensaio, Schopenhauer irá criticar a forma com a qual Kant

conclui a existência do dever e, conseqüentemente, do imperativo categórico e da lei

moral. Podemos dizer que esse é o ponto mais importante da crítica de Schopenhauer a

Kant, pois nele é apresentada de forma pormenorizada a grande contradição que

Schopenhauer aponta como o erro de toda moral kantiana.

Ter feito a distinção em “a priori” e o “a posteriori” foi seu grande feito; seu

erro foi ter tentado levar essa “formula” até a moral, deixando-a sem sentido e vazia.

Vejamos o que Schopenhauer diz: Com a distinção entre “a priori” e o a “posteriori” no conhecimento humano,

ele fez a descoberta mais surpreendente e mais coroada de êxito de que pode

gabar-se a metafísica. Por que se admirar com o fato de que ele procure então

aplicar esse método por toda a parte?72

Schopenhauer verá na Fundamentação metafísica dos costumes, a tentativa, por

parte de Kant, de apresentar uma moral cognoscível “a priori”, rejeitando assim tudo

aquilo que seja empírico. A suposta lei moral kantiana seria previamente admitida sem

nenhuma justificativa, dedução ou prova. Sem nenhuma experiência, qualquer que

fosse. Longe, então, de utilizar-se do empirismo para encontrar sua moral, Kant o rejeita

completamente, afirmando que o mesmo jamais poderia fundamentar a questão moral.

Tal moral deveria ser conhecida em si mesma e não avaliada nas ações desenvolvidas a

partir dela.

Importante ressaltar que, com esse desprezo pelo empirismo, não só a

experiência externa como também a interna seria deixada de lado por Kant.

Schopenhauer afirmará isso claramente: Ele rejeita a experiência externa ainda mais decididamente que a interna, pois

recusa toda fundamentação empírica da moral. Portanto ele não fundamenta –

o que peço que se note bem – seu princípio moral em qualquer fato de

consciência que seja demonstrável, algo como uma disposição interna.

Menos ainda em qualquer relação objetiva das coisas no mundo exterior.

Não! Isso seria uma fundamentação empírica.73

72 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 34 73 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 35

40

Vejamos as palavras de Kant sobre sua própria moral: Ora, a lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exatamente isto que mais

importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão na

filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e

sem ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que

mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de

filosofia (pois esta distingui-se do conhecimento racional comum exatamente

por expor em ciência à parte aquilo que este conhecimento só concebe

misturado); merece ainda muito menos o nome de Filosofia moral, porque,

exatamente por este amálgama de princípios, vem prejudicar até a pureza dos

costumes e age contra a sua própria finalidade.74

Com isso, Schopenhauer dirá que a ética kantiana se apóia em conceitos

totalmente abstratos, conceitos que não se sustentam em nada, mas que seriam capazes

de constituírem uma lei capaz de guiar todos os seres humanos em seus atos. Mas não

apenas dos seres humanos ela seria o guia, como também, nos próprios dizeres de Kant,

de todo ser racional definindo a moral como um comando da razão de maneira

metafísica.

Kant apresentaria, segundo Schopenhauer, uma razão pura, também produtora

da moral, que existe independentemente do próprio homem, uma razão pura que

existiria por si mesma. A moral se dirigiria não apenas ao homem, mas também para

todos os seres racionais. Schopenhauer, em seu raciocínio, levantará a seguinte questão

em nós: que outros seres racionais são esses que não os homens? Schopenhauer dirá que

impossível é pensar a razão existindo por si mesma, impossível seria vê-la sem o

homem: Do mesmo modo que conhecemos a inteligência como sendo, em geral,

apenas uma propriedade dos seres animais e, por isso mesmo, nunca estamos

justificados a pensá-la como existente independentemente da natureza

animal, assim também conhecemos a razão somente como propriedade da

espécie humana e não estamos autorizados a pensá-la como existindo fora

dela e formando um gênero “ser racional” que seja diferenciado de sua única

espécie “ser humano” e, ainda menos, a estabelecer leis para tais seres

racionais em abstrato.75

Nesse ponto surge para Schopenhauer, mais um grande absurdo na filosofia

moral kantiana que ele irá ironizar com as seguintes palavras: 74 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.59 75 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 37

41

Falar de seres racionais fora do homem não é diferente de se querer falar de

seres pesados fora dos corpos. Não se pode evitar a suspeita de que Kant

teria aí pensado um pouco nos queridos anjinhos ou que tivesse contado com

a sua ajuda para a persuasão do leitor.76

Mesmo que de maneira não explícita, fica-nos claro que Schopenhauer afirma

mais uma vez a existência inequívoca da teologia na moral kantiana. Ao ironizar Kant

falando em “anjinhos”, não apenas está levantando uma simples suspeita, mas sim, mais

uma vez uma “acusação”: existência de religiosidade nos escritos de Kant. Ele deixa

isso claro no parágrafo seguinte dizendo: Em todo o caso, aí se encontra uma pressuposição silenciosa da “anima

rationalis”, que difere totalmente da “anima sensitiva” e da “anima

vegetativa” e que permanece após a morte e que, então, nada mais é do que

simplesmente “rationalis”77

Schopenhauer dirá, depois dessa conclusão que o que se pressupõe estar por

detrás da moral kantiana, tanto na Fundamentação metafísica dos costumes quanto na

Crítica da razão prática, nada mais é do que a razão como sendo a essência imortal do

homem, ou seja, a existência de um “eu” individual e imortal, coisa que, segundo

Schopenhauer, o próprio Kant já havia rejeitado como possibilidade de se conhecer em

sua Crítica da razão pura, aliás, como já citado no inicio desse capítulo. Assim, além

da afirmação da impossibilidade da existência de uma razão criadora de leis morais,

razão que existiria por si mesma, independentemente de qualquer experiência,

Schopenhauer aponta o erro da teologia, que já estudamos contida de forma inequívoca

na moral kantiana.

Em relação à razão, Schopenhauer nos dirá que ela não é a formadora do homem

e jamais poderá ser a fonte do fenômeno, ela pertence ao fenômeno, está condicionada

ao fenômeno, ou seja, ao homem e, fora dele, jamais poderia existir. No pensamento de

Schopenhauer a razão nada mais é do que instrumento da vontade o que impossibilitaria

tal afirmação de Kant. O erro de Kant foi tentar levar até a moral conhecimentos “a

priori”; conhecimentos esses que apenas poderiam nos dar os meios de se conhecer o

mundo, e “legislar” apenas as experiências que nos chegam, mas jamais, estabelecer

padrões de condutas morais existentes por si mesmos. Desprezar a experiência foi o erro

76 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 37 77 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 37

42

de Kant e, por causa desse erro, sua moral permanece praticamente incompreensível e

sem nenhuma sustentação.

Segundo Schopenhauer, Kant se esqueceu que o “em si” das coisas em sua

própria teoria, permanece incognoscível e a contradição do fundamento da lei moral

kantiana está em apresentar essa suposta lei como não pertencente ao fenômeno.

Longe de agir por amor, compaixão, respeito, justiça ou caridade, o homem que

age de forma genuinamente moral, segundo Kant, age por dever. Não há compaixão,

amor ou qualquer outro sentimento, apenas o dever de agir. Assim A moral kantiana é

apenas formal, sem nenhum conteúdo O homem indiferente, insensível, que não se

emociona frente a qualquer situação de sofrimento do homem e age comandado por esse

dever, age mais moralmente do que aquele que, movido por extrema compaixão, salva

outro ser humano de uma situação desastrosa. Schopenhauer afirmará que apenas uma

moral de escravos seria capaz de fazer isso: mover um homem indiferente a uma ação

moral. O medo, mais uma vez, aparece como sendo o responsável pela atitude desse

homem já que não há nenhuma intenção de fazer o bem. Schopenhauer, colocando-se

diretamente contra a moral kantiana, dirá que a intenção de fazer o bem é o único

critério de avaliação de uma ação moral.

Nietzsche também comentará em sua obra Aurora esse pensamento de

Schopenhauer sobre a moral kantiana: É visto como bom tudo o que, de algum modo, corresponde a esse impulso

formador de corpo e membros, e a seus impulsos auxiliares, esta é a corrente

moral fundamental de nosso tempo; empatia individual e sentimento social aí

se conjugam. (Kant ainda está fora desse movimento: ele ensina

expressamente que devemos ser insensíveis ao sofrimento alheio, para que

nossa beneficência tenha valor moral – o que Schopenhauer, muito irritado,

como se pode compreender, chama de insipidez kantiana.78 Assim, a verdadeira sustentação da moral kantiana que permanece todo o tempo

oculta em sua obra é a teologia. Sem ela seria impossível imaginar a moral kantiana

provida de sentido.

A crítica ainda continua sobre o Dever de Kant. Schopenhauer dirá que um

Dever acontecerá necessariamente, ao passo que o próprio Kant afirma que a atitude que

deveria ser praticada em respeito a esse dever, nem sempre acontece. Jamais um dever,

78 Nietzsche F. Aurora, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras, são Paulo, 204 p.102

43

uma necessidade absoluta poderia deixar de ser cumprida, segundo Schopenhauer, é a

noção de uma necessidade absoluta que irá aparecer nas palavras de Kant para a

definição de Dever: “Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”.79 Tal

respeito a essa lei seria inevitável e não fruto de uma escolha por parte do homem. Kant

também afirmará: Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme à

lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso

contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta,

porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando ações

conformes à lei moral, mas mais vezes ainda ações contrárias a essa lei.80

A contradição dessas afirmações fica ainda mais clara para Schopenhauer,

quando Kant diz que não existe nenhum exemplo na experiência que seja

suficientemente seguro para apontar uma atitude cuja disposição se deu por respeito ao

Dever. Assim onde estaria a necessidade de tal ação, ou melhor, como atribuir a ela

necessidade? Em razão dessa observação, Schopenhauer dirá: Já que é justo interpretar um autor sempre pelo mais favorável, digamos que

o que ele quer dizer é que uma ação conforme ao dever é necessária e

objetivamente, mas subjetivamente casual. No entanto não é tão fácil pensar

tal coisa quanto dizê-la: onde está pois o objeto dessa necessidade objetiva,

cujo resultado muitas vezes e talvez nunca se dê na realidade objetiva? Com

toda a justeza de interpretação, não posso deixar de dizer que a expressão da

definição ‘necessidade de uma ação’ não é outra coisa uma perífrase

artificiosamente escondida, bem torcida, da palavra deve.81.

Como já feito várias vezes por Schopenhauer, aqui, mais uma vez, aparece uma

fundamentação da moral baseada na teologia ou que pelo menos abre espaço para o

ressurgimento da teologia. Pode parecer, ao leitor desatento, que Schopenhauer está

sendo extremamente repetitivo, mas o que entendemos é que ele está fazendo em sua

crítica à moral kantiana é mostrar que em todos os pontos dessa moral encontra-se um

vazio, isto é, formalidade, que só pode ser preenchido pela teologia que, por sua vez,

não pode fundamentar a ética de nenhuma maneira. Como dissemos anteriormente,

79 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.31 80

Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.16 81 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.41 - 42

44

Schopenhauer vê em Kant a intenção de recolocar a teologia na filosofia ocultando-a

através de conceitos que em si mesmos nada valem: Esta intenção torna-se mais familiar para nós quando notamos que a palavra

respeito é empregada na mesma definição, onde se queria dizer obediência. A

saber, na nota da p. 16 está dito: ‘Respeito significa apenas a subsunção de

minha vontade sob uma lei. Esta determinação imediata pela lei, e a

consciência dela, chama-se respeito’. Em que língua? O que está dito aqui

quer dizer, em alemão, obediência, então isto teria de servir a alguma

intenção, e esta não é manifestamente outra senão a de ocultar a proveniência

da forma imperativa e do conceito de dever a partir da moral teológica. Como

vimos anteriormente, a expressão necessidade de uma ação, que tomou lugar

do deve, de modo bem torcido e desajeitado, só foi escolhida porque o deve é

precisamente a linguagem do Decágolo. A definição acima – ‘o dever é a

necessidade de uma ação por respeito diante de uma lei’ – diria portanto

numa linguagem sem rodeios e descoberta, isto é, sem máscara: o dever

significa uma ação que deve acontecer por obediência em relação a uma lei.

Este é o nó da questão82.

Fica claro nas palavras acima que Schopenhauer, durante toda a sua crítica à

moral kantiana, a analisa profundamente e através de suas contradições e falta de

sentido chega à conclusão do real intuito de Kant em toda a sua fundamentação moral

que é a teologia. Até mesmo, como foi visto na citação acima, certas palavras foram

colocadas de forma proposital no texto por Kant, para atingir esse fim.

82 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.42

45

1.6 Crítica à lei moral kantiana

“E agora a lei, está última pedra de toque da ética kantiana! Qual seu conteúdo?

E onde está escrita? Esta é a questão principal”. 83Essas são as perguntas que

Schopenhauer irá lançar sobre a chamada lei moral que Kant apresenta em sua

fundamentação. Antes de examiná-la, Schopenhauer pensa ser de suma importância

saber diferenciar o que seja princípio e fundamento da ética.

O princípio da ética segundo Schopenhauer é uma expressão que melhor

conceitua o agir ético. Podemos usar como exemplo, uma velha conceituação do agir

moral bem conhecida pela maioria das pessoas: “Faça o bem sem olhar a quem”. Tal

conceituação diz respeito ao agir propriamente dito, ou seja, ela expressa uma ação de

forma genérica que representa um valor moral a ser seguido, no caso, fazer o bem a

todas as pessoas independentemente de serem essas pessoas boas ou más, conhecidas ou

merecedoras de receberem o bem. Também pode haver uma conceituação do princípio

ético baseada em uma forma imperativa, em uma lei que estabelece padrões de conduta

a serem seguidos.

Diferentemente, a fundamentação da ética, não é uma expressão que conceitua o

agir ético como vimos, e sim, que o fundamenta. A fundamentação da ética expõe os

motivos pelos quais determinadas atitudes éticas devem ou não ser seguidas. Segundo

Schopenhauer, tal diferenciação é extremamente importante, já que Kant teria unido

ambas: Quando retornamos à nossa questão acima: qual o teor da lei em cujo

cumprimento consiste, de acordo com Kant, o dever e em que ela se funda?

Descobriremos que também Kant ligou estreitamente o princípio da moral

com o seu fundamento de um modo bastante artificial.84

Para Schopenhauer até mesmo Kant sentiu a dificuldade em unir o fundamento

da moral com seu princípio. Propor uma proposição sintética “a priori” em relação à

moral, ou seja, leis morais que determinem o comportamento do homem no mundo

objetivo sem nenhuma sustentação empírica é a tarefa que o próprio Kant se impõe.

83 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.43 84 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.45

46

Schopenhauer dirá que a solução desse problema foi “alcançada” através da

tentativa de estabelecer, em relação à moral, a universalidade dessa mesma moral. A

universalidade da lei moral seria seu conteúdo e Kant teria chegado até a seguinte

proposição: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer

que ela se torne uma lei universal”.85 Essa seria a proposição que fundamentaria toda a

sua moral, o que demonstraria o imperativo categórico, e também um equívoco

grosseiro no modo de pensar de Schopenhauer. Segundo ele, uma proposição como essa

só poderia ser encontrada através do pensamento do homem que, depois de iniciar sua

vida e tomar contato com o mundo exterior, analisa a convivência humana, os

problemas dos quais é vítima e as circunstâncias nas quais vive e chega até essa

conclusão. Jamais tal proposição, poderia estar de forma inata na mente do homem,

pois, ela requer experiência.

Para Kant, essa proposição, segundo Schopenhauer, apenas surge no homem de

modo imperativo e a ela não cabe nenhum questionamento em relação a sua origem, o

que, para Schopenhauer, é um total absurdo. Na visão de nosso pensador, a moral tem

de ser empírica já que para o homem apenas aquilo que é empírico pode determinar uma

atitude do ser humano. Pois a moral tem a ver com a ação efetiva do ser humano e não com castelos

de cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria caso em

meio ao ímpeto da vida e cuja ação, por isso mesmo, seria tão eficaz contra a

tempestade das paixões quanto a de uma injeção para o incêndio.86

Nesse ponto da crítica à moral kantiana, é impossível não notar a presença da

própria filosofia de Schopenhauer. Até aqui, vimos uma crítica baseada, quase que

exclusivamente, ou pelo menos na pretensão de Schopenhauer, apenas no próprio

pensamento de Kant. Com exceção da importância do empirismo ressaltada no inicio

desse trabalho, a fundamentação kantiana da moral, foi a base utilizada por

Schopenhauer, para sua própria crítica. Agora, vemos a sua própria idéia sobre o mundo

e os homens aparecer de forma explícita como quando antes estava “oculta”, como que

estabelecendo o inicio de uma ligação entre a primeira parte de sua dissertação e a

segunda, na qual ele exporá o seu fundamento da moral. Assim, surgem as próprias

convicções de Schopenhauer como fonte de questionamento e crítica à Kant.

85 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.62 86 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.52

47

Para Schopenhauer, apenas conceitos abstratos, da forma com a qual Kant os

apresenta fundamentando a moral, não seriam capazes de deter o homem em suas

paixões, egoísmo e maldade.

Aquilo que para Kant é incognoscível, o “em si”, para Schopenhauer pode ser

conhecido e é a vontade. A vontade formadora de tudo, inclusive dos homens, e que dá

a eles não só o desejo incessante, mas também a noção de individualidade no mundo

fenomênico responsável pelo egoísmo. Assim, o homem sempre se encontra dominado,

escravizado por seus desejos e por ele faz absolutamente tudo. Dessa forma, em um

mundo egoísta, no qual a vontade particular sempre se sobrepõe à vontade de todos e,

conseqüentemente, o interesse pessoal é o maior de todos os impulsos para as ações

humanas, como, conceitos abstratos, poderiam ter alguma força para deter esses

impulsos e determinar uma moral não só desinteressada como também universal? Dessa

vez, é a afirmação de Schopenhauer de que o homem é a objetivação da vontade, que

aparece oculta para criticar a real efetividade da moral kantiana. Assim, mais um erro de

Kant, é a junção de princípio moral com seu fundamento e também a sua total ineficácia

frente aos desejos humanos: Por isso, a falta de conteúdo é o segundo erro da fundamentação kantiana da

moralidade. Isto não foi notado até aqui, porque o acima claramente exposto

fundamento próprio da moral kantiana só se tornou provavelmente claro por

completo para poucos entre os que o celebraram e propagaram. O segundo

erro é portanto a falta total de realidade e por isso de efetividade possível.87

Schopenhauer ainda dirá logo abaixo, de maneira bem simples, não deixando

dúvida sobre sua crítica: “Paira no ar como uma teia de aranha de conceitos, os mais

sutis e vazios de conteúdo, não se baseia em nada e não pode por isso nada suportar e

nada mover”88.

Fica claro aqui, como apresentado na introdução desse trabalho, o ponto sobre o

qual recai toda a crítica de Schopenhauer à moral kantiana, mais do que em qualquer

outro momento. Para Schopenhauer a moral kantiana é simplesmente vazia, constituída

de conceitos abstratos que, em nenhum momento, podem sustentá-la. Por detrás de

todos esses conceitos, o que realmente existe é a teologia, que seria a única coisa capaz

de dar sustentação a todo o edifício da moral kantiana.

87 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo 2001: p.52 88 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo 2001: p.52

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Ainda, em sua crítica ao fundamento da ética kantiana, Schopenhauer irá propor

a análise desse fundamento e a teologia ainda aparecerá. Em relação ao fundamento da

razão prática, Schopenhauer dirá: Acharemos então que ela procede de uma doutrina que Kant contradisse

profundamente, mas que, no entanto, encontrava-se, mesmo que

inconscientemente para ele, como reminiscência de um modo de pensar

precedente, no fundamento de sua admissão de uma razão prática com seu

imperativo e sua autonomia. É a psicologia racional, de acordo com a qual o

homem compõe-se de duas substâncias heterogêneas, o corpo material e a

alma imaterial.89

Schopenhauer apresentará um breve histórico das idéias sobre a existência

material e salientará o ponto em que, a moral kantiana, no seu modo de ver, se apóia. A

diferenciação entre a alma e corpo, faria da alma o princípio do homem e, por si mesma,

ela seria cognoscente, não dependendo em nada do corpo. Essa alma conheceria então,

nos dizeres de Schopenhauer, conceitos universais, abstratos, inatos e assim por diante.

Quando a alma atua juntamente com seu corpo, o que acontece é uma atividade

impura, viciosa e não representante da grandiosidade dessa alma. Assim, aquilo que de

fato é puro e verdadeiro no homem está, tão somente, ligado à vontade e à razão dessa

alma enquanto ela não “interage” com o corpo.

Assim, em total “coincidência” com essa visão transcendente da existência do

homem, aparece a razão pura de Kant que, sem nenhuma experiência, seja ela qual for,

é capaz de trazer em si uma lei moral que dite antes mesmo de qualquer fato acontecer

no mundo objetivo, o que se deve ou não fazer. E ainda, mais que isso, jamais tais atos

morais poderiam estar ligados com o mundo objetivo. A vontade determinada, pois, por um conhecimento condicionado

sensivelmente era a mais inferior e, muitas vezes, má, pois o seu querer era

dirigido pelas excitações sensoriais; ao passo que aquele outro era um querer

dirigido tão-só pela razão pura pertencente tão-só è alma imaterial.90

Depois dessas exposições claras feitas por nosso filósofo, ele afirmará ser essa a

fonte do fundamento da moral no pensamento de Kant: De uma reminiscência não claramente consciente de tal concepção proveio,

finalmente, a doutrina kantiana da autonomia da vontade, que, tomada, como

voz da razão pura prática, é legisladora para todo ser enquanto racional e

89 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.63 90 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.65

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conhece meramente razões formais de determinação, em oposição às

materiais, que, como tal, determinam apenas a faculdade de desejar inferior

que age contra a superior.91

Vemos a crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral kantiana, como sendo

a parte mais importante de toda a crítica. Nela fica extremamente claro como

Schopenhauer chegou à conclusão de que Kant tentou reintroduzir a teologia na

filosofia conscientemente ou não. Ainda temos como adiante se verá a importância que

Schopenhauer dá para a avaliação dos atos dos homens, que podem ser vistos e

avaliados, para o encontro daquela que o autor apresentará como sendo a verdadeira

fundamentação da moral. Dessa forma, podemos entender os motivos pelos quais

Schopenhauer considerou ser de suma importância a avaliação da Fundamentação da

metafísica dos costumes, pois os erros nela contidos mostram, ainda que de maneira

incompleta, o verdadeiro caminho a seguir para encontrar-se a verdadeira

fundamentação da moral dentro do pensamento de Schopenhauer.

91 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.66

50

1.7 Crítica ao princípio máximo da ética kantiana e as suas formas derivadas

Depois de investigar e avaliar o fundamento da moral kantiana, Schopenhauer

irá criticar, ainda de maneira mais dura, a máxima derivada da moral kantiana que se

encontra como Schopenhauer mostrou, ligada a seu próprio fundamento: “Dirijo-me

agora àquele princípio máximo da moral que repousa sobre esse fundamento, estando-

lhe estreitamente ligado e mesmo confundindo-se com ele”92.

Apesar de, como visto na citação acima e também no item anterior, o princípio

da moral kantiana se confundir com seu próprio fundamento, nesse momento de sua

crítica, Schopenhauer irá avaliá-lo como se tal não ocorresse: Mas retenhamos apenas o fato de que aquela regra fundamental, estabelecida

por Kant, não é ainda o próprio princípio moral, mas apenas uma regra

heurística para ele, isto é, uma indicação de onde deva ser procurado.93 O princípio da moral kantiana que Schopenhauer analisa é: “Age apenas

segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei

universal”.94

Assim, tendo essa máxima apenas como princípio da moral kantiana,

Schopenhauer irá avaliá-la em si mesma e descobrir nela mais uma contradição no

pensamento de Kant. Tal máxima, segundo Schopenhauer, encontrar-se-ia já viciada

pelo interesse pessoal, ou seja, pelo egoísmo, coisa totalmente contrária à conceituação

de genuíno ato moral feita por Kant, onde verdadeiro ato moral é aquele destituído de

todo e qualquer interesse pessoal.

A avaliação dessa máxima por Schopenhauer irá apontar para a palavra que traz

em si toda a contradição que é a palavra “querer” já que o querer-poder é o eixo em

torno do qual giram as ordens dadas. Para Schopenhauer a elucidação dessa máxima

está em descobrir o que o homem pode ou não querer: É claro que eu preciso de novo de um regulativo para determinar, no aspecto

mencionado, o que eu possa querer, e só por meio desse é que eu teria a

chave para a ordem dada, como se fosse um comando lacrado.95

92 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.67 93 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.68 94

Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.62

51

Esse querer presente na máxima de Kant está, segundo nosso pensador, em

apenas um lugar: em nosso egoísmo que sempre aparece em primeiro lugar em qualquer

ato da vontade humana. Impossível imaginar, para Schopenhauer um querer que não

encontre no egoísmo sua principal fonte. Para ele, a maioria dos atos humanos é

praticada tendo em vista aquilo que os homens desejam para si mesmos; mesmo certas

atitudes que aparentam ter um intuito moral, podem ter, em seu íntimo, uma meta a ser

alcançada que diz respeito apenas ao egoísmo do homem. Assim, muitas vezes, ajudar o

semelhante, pode ser apenas um meio de atingir aquilo que se deseja apenas para si

mesmo. “A indicação contida na regra máxima de Kant para se encontrar o princípio

moral propriamente dito repousa, aliás, na pressuposição tácita de que só posso querer

aquilo com que me dou melhor”96

Assim, o homem ao estabelecer tal regra máxima, coloca-se, em relação a ela,

tanto de forma ativa como também de forma passiva. A “bondade” propriamente dita,

não existe de fato, como, segundo o próprio Schopenhauer, Kant afirmará em sua obra.

Para Schopenhauer, o homem é o animal que mais sofre no mundo, pois ele é

aquele que, diferentemente dos irracionais, possui a plena consciência de si mesmo e,

além disso, pode se lembrar do passado, podendo sofrer com lembranças ruins que nele

se encontrem, e também sofrer frente ao futuro, que sempre se apresenta em sua mente

como incerto e cheio de possibilidades ruins. Assim, o homem tem plena consciência de

tudo aquilo que pode lhe acontecer e a moral, pode, de forma antecipada, livrá-lo de

atitudes que lhe causam sofrimento através do estabelecimento de padrões de conduta

que lhe resguardam sua integridade em todos os aspectos. Essa é a forma que, segundo

Schopenhauer, o homem cria alguns padrões morais, já se colocando como vítima de

alguma atitude que lhe traria sofrimento se contra ele fosse praticada.

Assim, estabelecendo regras de conduta que fazem de certos atos reprováveis, o

homem já está se defendendo antecipadamente ou, de maneira genérica, está tentando se

defender de qualquer coisa que no futuro possa lhe causar mal. Na realidade, o que

existe não é a genuína vontade de fazer o bem, de exercer aquilo que é certo, mas, sim,

praticar algo que, pelo menos hipoteticamente, lhe resguardará de um efeito ruim, caso

95 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: p.68 96 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.68 - 69

52

ele praticasse um ato diferente. No fundo o que existe é apenas o egoísmo, o interesse

pessoal, o desejo de não ser afetado. Podemos exemplificar tal pensamento com um dos

mandamentos: “Não matarás” (Êxodo 20:13). Nele estaria contido, não o interesse

genuíno de respeitar a vida do semelhante, e sim, o desejo de não ser morto por

ninguém.

Esse mesmo raciocínio pode ser levado até atos ainda mais genéricos, como por

exemplo, a caridade. Qual o homem que não gostaria de, em um momento de agonia ou

dificuldade de qualquer forma, receber a ajuda de alguém? Assim, ajudar os

necessitados, famintos e empobrecidos e, mais do que isso, qualificar tais atitudes como

“boas” em si mesmas, é algo que surge do egoísmo, da “previsão” de que tais situações

de total falta de dignidade podem um dia recair sobre o próprio homem que delas se

defende. Nessa defesa, o que na realidade existe é a defesa, de forma antecipada, da

própria vida e de seus interesses.

Esse “querer” kantiano, teria então, nas afirmações de Schopenhauer, sua fonte

em nada mais do que no egoísmo humano. E, como já dissemos, o próprio Kant

afirmará isso: Ele não pode deixar de acrescentar esta conclusão indispensável à ordem em

que consiste o princípio máximo da moral de Kant. Todavia, ele não o faz

logo que ela é estabelecida, pois isto poderia chocar, mas o faz mantendo

uma distância respeitável e no recôndito do texto, para que não salte aos

olhos que aqui, apesar de sublimes instituições “a priori”, é o egoísmo que se

senta na cadeira do juiz e que faz pender a balança; e, depois de ter optado

pelo ponto de vista do lado eventualmente passivo, o faz valer pelo lado

ativo97.

Dessa forma, entende-se claramente, segundo a crítica de Schopenhauer que, da

mesma forma como Kant tentou criar uma teologia às avessas, ou seja, afirmando-a

através da moral, ele também se valeu de princípios morais que, na realidade, estão

fundamentados apenas no egoísmo, e tentou transformá-los em leis inatas na mente

homem. A veracidade de tal afirmação ficará ainda mais clara para Schopenhauer pelas

próprias palavras de Kant que nosso pensador irá transcrever em seu texto com suas

próprias palavras: “Que eu não poderia querer uma máxima universal para mentir,

porque então não se acreditaria mais em mim ou seria pago na mesma moeda”98. Ainda:

97 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.69 98 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.69

53

“A universalidade de uma lei em que cada um, se lhe aprouvesse, poderia prometer com

a intenção de não cumprir tornaria impossível a promessa e a finalidade que com ela se

poderia ter, pois ninguém acreditaria”99. O próprio Kant deixará em suas palavras o

raciocínio de Schopenhauer mais compreensível: Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôr-se-ia em contradição consigo

mesma; podem com efeito descobrir-se muitos casos em que a pessoa em

questão precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela graças a tal

lei natural nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesma toda a

esperança de auxílio que para si deseja.100

Diante dessas palavras de Kant, Schopenhauer afirma, sem ter nenhuma dúvida,

que a máxima da moral kantiana possui como base apenas o egoísmo e pressupõe a

reciprocidade, ou seja, o relacionamento entre as pessoas que, para ser o melhor

possível, necessita de uma regra. Essa reciprocidade seria viável, segundo

Schopenhauer, como uma regra para se estabelecer em nível estatal, mas jamais moral.

O “agir moralmente” nada mais é do que um meio de melhor conviver com as pessoas e

também de evitar empecilhos que poderiam surgir como efeitos de atitudes

explicitamente egoístas. O homem age conforme uma atitude que pudesse ser adotada

por toda a humanidade, já visando sua satisfação e não um bem em si mesmo. Se não

mente, é porque não quer correr o risco de ser desacreditado no futuro; se não faz falsas

promessas, é porque não quer ser vítima de uma possível falsa promessa que alguém a

ele poderá fazer. Assim, como Schopenhauer já disse o egoísmo diante dessa máxima

moral kantiana, é o juiz que decide o que se deve aceitar como uma regra passível de ser

aceita universalmente ou não. Eis as palavras de Schopenhauer que deixam nossa

explicação ainda mais clara: O princípio ‘Age sempre de acordo com a máxima cuja universalidade como

lei tu possas querer ao mesmo tempo’ é a única condição sob a qual uma

vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma’ – assim a

verdadeira interpretação da palavra contradição é a de que, se uma vontade

tivesse sancionado a máxima da injustiça e da falta de caridade, ela a

99 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.69 100 KANT I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.65

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revogaria, mais tarde, ao tornar-se eventualmente parte passiva e, com isso,

contradizer-se-ia.101 Para Schopenhauer fica claro que o suposto imperativo categórico, na realidade

é um imperativo hipotético que surge do egoísmo que, previdente, coloca-se como parte

passiva de qualquer situação ruim e, através dessa abstração, estabelece regras a serem

seguidas para lhe auxiliar caso, em algum momento, essas situações possam vir a

acontecer e lhe afetar. Dessa forma, o desejo da justiça, caridade, amor, respeito e tantas

outras virtudes, são na verdade o desejo de viver em um mundo onde aquele que sofre é

sempre amparado e defendido para que o homem, em seus interesses pessoais se sinta

mais seguro.

Agora, diferentemente de uma pessoa egoísta que, ao sentir-se insegura diante

das incertezas do futuro que lhe fazem querer uma lei moral universal, que pregue a

caridade e a justiça, uma pessoa que se sente segura por confiar em suas forças físicas

ou intelectuais a ponto de imaginar não precisar da caridade e da justiça para bem viver,

iria encontrar em seu querer uma regra que dissesse exatamente o oposto. A injustiça e o

total individualismo seriam o seu desejo e deveriam ser as “leis” a serem seguidas

universalmente. Ficaria assim demonstrado que a falta de um fundamento seguro para

essa máxima kantiana a torna hipotética e também ineficaz para, de fato, trazer uma lei

moral que conduzisse os homens a uma universalidade caridosa e justa. Portanto, à falta de uma fundamentação real do princípio supremo da moral

de Kant, exposta no parágrafo precedente, junta-se, contra a afirmação

expressa de Kant, a oculta natureza hipotética do mesmo, graças à qual ele se

baseia no puro egoísmo, como sendo o intérprete oculto da ordem dada

nele.102

Nessa passagem da crítica de Schopenhauer à moral kantiana, será proveitoso

lembrarmo-nos de Nietzsche, que em seu livro Genealogia da moral, afirmará que os

valores morais nada mais são do que a criação do ressentimento daquele que os cria. O

fraco ofendido pelo forte, em sua insegurança e fraqueza, cria valores morais que fazem

da atitude sofrida uma atitude reprovável e digna de ser combatida por aqueles que de

fato seriam os “bons homens”. Assim, da mesma forma que Schopenhauer nos fala

acima, Nietzsche apresentará uma visão que afirma ser a moral criação do ressentimento 101 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.70 - 71 102 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.72

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do fraco, tendo em vista o egoísmo humano em todos os setores da vida. Na realidade, o

que existe não é a bondade e sim o interesse que, para melhor se satisfazer, cria normas

que o impeçam de ser atingido, o que lhe proporcionaria mais chances de êxito. Ainda,

como intuito dessa valoração de atitudes, também existiria a intenção de impedir o

desenvolvimento dos fortes, apresentando-os como pessoas más, cujo agir deve ser

impedido de alguma forma, até mesmo com a crueldade extrema. Nietzsche diz: Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência

é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma

distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a

desprezar, e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal

como concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu

feito, sua criação: ele concebeu o “inimigo mau”, “o mau”, e isto como

conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente,

um “bom” – ele mesmo!...103

Também, segundo Nietzsche, uma das maiores construções morais contra os

fortes seria a religião, na qual, tudo aquilo que é contra as atitudes dos fortes, é elevada

às alturas como sendo o agir correto. Evidentemente que nosso intuito não é traçar um

paralelo entre o pensamento de Schopenhauer e Nietzsche e muito menos apresentar o

pensamento do segundo como crítica à moral kantiana, mas impossível não tocar no

nome de Nietzsche, quando, nesse ponto da crítica à moral kantiana, nos lembramos que

Schopenhauer afirma ser a teologia, o grande pano de fundo da moral kantiana que,

oculta pela própria vontade de Kant, seria a única capaz de dar sustentação a seu

pensamento de uma moral apenas formal.

Assim essa máxima da moral kantiana não apenas é totalmente ineficaz, pois

jamais ela estaria realmente fundada, por ter em si o querer do homem, em uma

intenção genuinamente desinteressada capaz de suprimir o egoísmo, pelo contrário, ela

é puro egoísmo disfarçado. Schopenhauer ainda afirmará mais, pois, para ele, o egoísmo

é um gigante dentro do homem. Ele vem primeiro em todas as ações humanas, sendo

assim, como se poderia diferenciar, em uma suposta lei a ser seguida onde um dos

princípios de Kant seria: Age somente segundo a máxima que possas ao mesmo tempo

querer que valha universalmente para todo ser racional “104. uma atitude genuinamente

moral de uma atitude egoísta caso essa referida lei realmente existisse? Para

103 Nietzsche F. Genealogia da moral, trad. Paulo césar de Souza, companhia Das Letras, são Paulo: 1999. P. 31 104 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.71

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Schopenhauer, como fica bem claro em todo texto, tais pensamentos de Kant são

absurdos profundos demais para sequer serem levados a sério.

Mas a crítica continua, e, dessa vez, ela alcançará as outras formas derivadas do

princípio máximo da ética kantiana

Nessa parte da crítica, Schopenhauer apresentará aquele que seria o princípio da

moral kantiana: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como

na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca

simplesmente como meio”105.

Em primeiro lugar Schopenhauer dirá que a afirmação de Kant “O homem e,

duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como

meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade” 106. é uma grande contradição: Mas preciso dizer diretamente que ‘existir como fim em si mesmo’ é um não-

pensamento, uma ‘contradictio in adjecto’. Ser fim significa: ser querido.

Todo fim só o é em relação a uma vontade, cujo fim é, como já foi dito, o seu

motivo direto. Só nesta relação é que o conceito de fim tem um sentido e o

perde logo que este lhe é tirado. Esta relação que lhe é essencial excluiu

porém necessariamente todo o ‘em-si’. ‘Fim-em-si’ é a mesma coisa que

‘amigo em si – inimigo em si – inimigo em si – norte e leste em si – acima ou

abaixo em si’ etc. no fundo, porém, passa-se com o ‘fim-em-si’ o mesmo que

com o ‘deve absoluto.107

Mais uma vez, Schopenhauer afirmará com convicção que o que de fato existe

por detrás dessas afirmações é a teologia. Apesar de essa parte da crítica ser

extremamente complexa, entendemos que Schopenhauer quer dizer que o homem

apenas poderia ser um fim em “si mesmo” se existisse uma vontade que assim o

quisesse, e, no caso apresentado, essa vontade apenas poderia ser a vontade de um Deus.

Assim como o imperativo categórico, o fim em si mesmo nada mais é do que mais uma

casca sem caroço, algo que por si só jamais poderia se sustentar. Schopenhauer ainda

continuará dizendo a esse respeito: A coisa não se passa melhor com o ‘valor absoluto’ que deve pertencer ao

suposto porém impensável ‘fim-em-si’. Tenho pois de rotulá-lo, sem

misericórdia, como contradictio ‘in adjecto’. Todo valor é uma grandeza

comparativa e, até mesmo, apresenta-se necessariamente em dupla relação:

pois primeiro é relativo já que é para alguém, e, segundo, é comparativo pois

105 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.73 106 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.71 107 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.75 - 76

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está em comparação com alguma outra coisa, de acordo com a qual é

avaliado. Retirado destas duas relações, o conceito de valor perde todo o

sentido e o significado.108

A crítica ficará ainda mais interessante depois que o homem não pode ter

nenhum dever para qualquer ser que não seja simplesmente o homem Depois,

Schopenhauer ainda nos transcreverá outra passagem de Kant que, em suas próprias

palavras lhe causará uma enorme repulsa e desprezo, nas quais afirma que Kant diz que

a compaixão para com os animais é meramente para exercitar-se.

Schopenhauer comentará: Acho, junto com toda a Ásia não islamizada (ou seja, não judaicizada), tais

frases revoltantes e abjetas. Mostra-se, ao mesmo tempo, como esta moral

filosófica que é, como foi acima exposto, uma teologia travestida dependente

totalmente da moral bíblica.109

Uma moral que vê apenas “os seres racionais” como merecedores de

preocupação moral e os irracionais apenas como meios, é, para Schopenhauer, uma

moral de párias. Nada a justificaria senão, como já dito, a teologia que desconhece a

unidade dos seres através de sua essência única que é a vontade ou que coloca o homem

como a “grande e principal criação” de um deus qualquer. Nesse momento, também

aparece o próprio pensamento de Schopenhauer como sendo o crítico da moral kantiana.

Schopenhauer dirá: Que vergonha desta moral de párias, ‘schandálas’ e ‘mletschas’, que

desconhece a essência eterna que existe em tudo o que tem vida e reluz com

inesgotável significação em todos os olhos que vêem à luz do dia.110

Uma moral que vê apenas “os seres racionais” como merecedores de

preocupação moral e os irracionais apenas como um meio é para Schopenhauer uma

moral de párias. Nada justificaria senão, como já dito, a teologia que desconhece a

unidade dos seres através de sua essência única que é a vontade ou que coloca o homem

como “a grande e principal criação” de um deus qualquer Nesse momento, mais uma

vez de forma explícita aparece o pensamento de Schopenhauer como a motivação para

sua crítica à moral kantiana: Mas apesar da crítica de Schopenhauer, essa segunda

máxima derivada da moral kantiana, traz, a seu ver, uma importante visão sobre as

108 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.76 109 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.77 110 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.77

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atitudes egoístas dos homens que usam outros homens como meios para atingirem seus

intentos. Para Schopenhauer a cordialidade é uma invenção humana para esconder os

intentos dos homens. Por causa do egoísmo humano, sempre um homem irá olhar para

outro e imediatamente buscar nele um meio para satisfazer um desejo. Schopenhauer

vai ainda mais longe: Por ocasião de cada novo conhecimento é, na maioria das vezes, nosso

primeiro pensamento se essa pessoa poderia tornar-se-nos útil para algo; se

ela não o pode, então é para muitos, logo que estes estiverem disto

convencidos, propriamente nada111.

Portanto, na linguagem de Kant, segundo as palavras de Schopenhauer uma

linguagem errada, muitas pessoas usam outras como um meio não as respeitando como

pessoas. Mas longe de ser esse linguajar de Kant apenas um equívoco, ele é algo

pensado com um propósito que, como Schopenhauer já disse, é o propósito de trazer à

filosofia a teologia.

Ainda Schopenhauer criticará mais duas outras formas derivadas dessa máxima

kantiana: Schopenhauer comentará: “De modo bem artificial e por um grande desvio,

diz-se com isso: ‘não respeites apenas a ti mesmo, mas também aos outros”. 112

Mesmo, apesar de Kant ter dado de uma maneira errada um fundamento da ética

nessa segunda forma derivada de sua máxima, Schopenhauer vê nesse “fundamento”,

como acima foi dito, uma idéia que pode ser aproveitada para o seu próprio fundamento

da ética: Quão perto ou longe está alguém de pensar em considerar alguém como fim,

ao invés de costumeiramente como meio, resulta de medida da grande

diferença entre os caracteres. O por que isto também acontece em última

instância será por certo o verdadeiro fundamento da ética, para o qual apenas

caminho nas próximas partes do texto.113

Assim, na afirmação de Kant de que o homem deve ser tratado como fim e não

como meio, mesmo que apresentada de maneira errada fornece a Schopenhauer, assim

como a conceituação de Kant de que o ato moral verdadeiro é destituído de qualquer

interesse pessoal por parte de quem o pratica, o caminho para encontrar o seu

fundamento da moral a ser tratado na segunda parte de seu trabalho. Interessante notar

111 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.78 - 79 112 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.80 113 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.80

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que, mesmo criticando negativamente Kant, Schopenhauer continua se valendo, de

determinada maneira, de seu pensamento para a construção, não só do seu fundamento

moral, mas também, como veremos à frente, de todo o seu sistema filosófico.

Estudando a crítica de Schopenhauer a Kant, temos a impressão de que nosso

pensador não quer derrubar seu mestre, mas sim, corrigi-lo. Dentro do pensamento de

Kant, apresentando por Schopenhauer como já bem vimos como confuso e, até mesmo,

como uma tentativa de recolocar a moral teológica na filosofia, encontram-se as bases

daquilo que Schopenhauer apresentará como seu fundamento moral. De certa maneira,

Schopenhauer reconhece ainda mais esse fato com as seguintes palavras: Kant indicou, portanto, na sua segunda fórmula o egoísmo e seu oposto por

um sinal extremamente característico, cujo efeito principal melhor destaquei

e pus às claras por meio de uma explicação ao ter que, de resto, infelizmente,

deixar que apenas pouco do fundamento e sua moral possa ser válido.114

Assim, reconhece o discípulo, não só o mérito do mestre, mas também sua

influência que lhe dará, mesmo de maneira incompleta, a fonte para o seu próprio

pensamento.

Depois da análise dessa que seria a segunda forma derivada da máxima kantiana

da moral, Schopenhauer irá apresentar sua crítica para outras duas que, ao que parece,

apresentam-se para Schopenhauer de maneira ainda mais difícil de ser compreendida

como também ainda mais confusa.

A primeira delas que será avaliada por Schopenhauer é a seguinte: “A vontade

de todo ser racional concebida como vontade legisladora universal”115 Segundo

Schopenhauer, essa derivação, que ele chama de fórmula, apresenta para sua existência

a autonomia da vontade, sem a qual ele não poderia existir. Assim, o imperativo

categórico, possui uma diferenciação de todos os atos morais não desinteressados, pois

nele, o querer por dever não possui nenhum objeto específico, nenhum motivo, como

veremos a seguir, nada o impulsiona. Schopenhauer comentará outra passagem: “Por

causa da idéia da legislação universal, ele não se funda em nenhum interesse”116

A segunda passagem à qual Schopenhauer se refere acima é a seguinte: Pois quando pensamos uma tal vontade, se bem que uma vontade

subordinada a leis possa estar ligada a estas leis por meio de um interesse,

não é no entanto possível que a vontade, que é ela mesma legisladora 114 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.80 115 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portuga: 2008 p.76 116 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.78

60

suprema, dependa, enquanto tal, de um interesse qualquer; pois que uma tal

vontade dependente precisaria ainda de uma outra lei que limitasse o

interesse do seu amor-próprio à condição de uma validade como lei

universal.117

Schopenhauer iniciará sua crítica a essa fórmula moral de Kant, com as

seguintes palavras que, para uma perfeita compreensão do que nosso pensador irá

apresentar, em seguida, como sendo seu fundamento da moral e, conseqüentemente, o

motivo primordial de sua crítica a Kant, devem ser lidas atentamente: Agora peço, porém, que se reflita sobre o que isto quer propriamente dizer:

de fato, nada menos do que uma vontade sem motivo, portanto, um efeito sem

causa. Interesse e motivo são conceitos intercabíveis: interesse não quer dizer

‘quod mea interest’? [qual é o meu motivo?] E isto não é tudo aquilo que

estimula e move minha vontade?118

Aquilo que apresentamos na introdução desse trabalho, ainda que de forma

exaustiva tenha aparecido até aqui, agora surge de uma maneira bem explícita: a moral

kantiana com seu imperativo categórico é nada mais que uma “casca sem caroço”, sua

formalidade, o respeito a uma lei, não pode ser aceita por schopenhauer de nenhuma

maneira. Impossível imaginar, para Schopenhauer, uma vontade sem motivo, uma

vontade que, no seu modo de ver, surge na moral kantiana simplesmente do nada e a

nada se direciona. Vejamos o que ele diz a frente: “O que é conseqüentemente um

interesse, a não ser a atuação de um motivo sobre a vontade? Onde, portanto um motivo

move a vontade, aí ele tem um interesse”. 119

Já que no imperativo categórico existe uma vontade de agir por dever é claro

que, para Schopenhauer como bem vimos acima, existe um interesse, pois sem ele,

nenhuma vontade existe, e se existe um interesse não há ato moral genuíno no

imperativo categórico como Kant propunha. Pode-se notar que diante dessa crítica, a

“teologia de Kant”, para Schopenhauer, fica ainda mais evidente. Seguindo o raciocínio

dele, encontram-se por detrás dessa fórmula, mais uma vez a teologia, como sendo

aquilo que irá sustentar a moral kantiana que, em si mesma, é completamente vazia,

uma simples ação por respeito a uma lei. Essa suposta autonomia da vontade, na

verdade, seria apenas o receio ou a esperança da recompensa vinda de um ser criador,

117 Kant. I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal 2008 p.78 118 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.81 119 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.81

61

no caso de Kant, pela análise de Schopenhauer, Deus. Essa afirmação de Kant parece ter

deixado Schopenhauer bem incomodado, tanto que ele escreve sobre ela o que se segue: Para contradizer tal admissão monstruosa seria preciso apenas reconduzí-la

ao seu sentido próprio, que estava oculto pelo jogo com a palavra interesse.

Enquanto isso, festeja Kant o triunfo de sua autonomia da vontade na

implantação de uma utopia moral, sob o nome de ‘reino dos fins’, que é

habitada por puros seres racionais ‘in abstracto’ que, todos juntos,

continuamente querem, sem querer qualquer coisa que seja (isto é, sem

interesse); querem apenas uma coisa: que todos queiram sempre de acordo

com uma máxima (quer dizer, autonomia).120

Em sua obra capital, Schopenhauer também se expressa em relação ao vazio

citado tanta vezes por ele nessa crítica: Porém o que aqui será mencionado encontra em grande parte o seu lugar em

outro contexto, a saber, no apêndice desse livro em que se contesta a

existência da chamada razão prática de Kant que ele (certamente por

comodidade) expõe como fonte imediata de todas as virtudes e sede de um

DEVER absoluto ( ou seja, caído do céu)121 Assim apresenta-se o mundo da moral kantiana para Schopenhauer: um mundo

onde todos querem sem nada querer. Talvez a maior utopia já tentada por um filósofo.

Um mundo que só a teologia pode dar algum sentido. Mas como dissemos acima, esse

ponto da dissertação revela-nos algo ainda mais interessante: a própria filosofia de

Schopenhauer como fonte para sua crítica a moral kantiana. Se antes ela apareceu de

maneira menos evidente, aqui, ainda que não de forma explícita, o sistema da filosofia

de Schopenhauer apresenta-se de maneira límpida e a vontade, que Schopenhauer

apresenta como sendo o “em si” kantiano, é a responsável por isso. Assim, a crítica não

se dá apenas com base nas contradições do pensamento kantiano, mas também, com

base nas próprias convicções do sistema filosófico de Schopenhauer.

Para Schopenhauer, longe de ser libertadora, a vontade é a grande aprisionadora

do ser humano. Sempre ela será responsável pela escravidão sofrida pelo homem e

também sempre estará voltada para um objeto que irá lhe satisfazer de alguma forma.

Toda vontade possui algum motivo. O homem somente é livre quando, através da razão,

negar a vontade. Vejamos o que Schopenhauer fala em sua obra prima sobre a vontade: “Salvação verdadeira redenção da vida e do sofrimento é impensável sem a

completa negação da vontade? Até então cada um não passa dessa vontade

120 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.81 – 82 121 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo:p.139

62

cujo fenômeno é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e

continuamente malogrado, o mundo tal qual exposto cheio de sofrimento, ao

qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual”122

Diante do parágrafo acima, podemos entender que jamais Schopenhauer poderia

ver realmente algum fundamento na moral kantiana tendo um pensamento como o seu.

Uma “vontade universal legisladora” não possui espaço algum no pensamento de

Schopenhauer. Isso fica claro, quando ele afirma que tudo que move a vontade é um

interesse.

Mas voltemos à crítica a essa vontade universal legisladora de Kant que é

responsável por dar ao homem aquilo que seria, dentro da moral kantiana, o maior de

todos os valores do homem: a dignidade humana. Kant dirá, segundo Schopenhauer,

que a dignidade humana é “um valor sublime e incomparável”. Em relação a isso

Schopenhauer apresentará mais uma vez, em sua crítica, a “casca sem caroço” de Kant: Mas além desse pequeno e inocente reino dos fins, que se pode deixar em paz

como inofensivo, Kant dirige sua autonomia da vontade a uma outra coisa de

conseqüências mais graves, a saber, ao conceito de dignidade do homem.

Esta repousa, aliás, apenas sobre a autonomia dele e consiste em que a lei que

deve seguir lhe seja dada por si mesmo.123

Schopenhauer, fará como fez das outras vezes que vimos, analisará esse conceito

e, segundo suas palavras, encontrará mais uma contradição gritante em Kant. Para

Schopenhauer, todo valor só existe em comparação a outra coisa, sendo assim

totalmente relativo. A relatividade em relação a outra coisa é a essência desse mesmo

valor e sem ela nada pode constituir-se como sendo valoroso. Assim, dentro do

pensamento de Schopenhauer, como propor um valor absoluto, incomparável e

incondicionado? Mais uma vez vemos na interpretação de Schopenhauer o total vazio

da moral kantiana que em nada se apóia.

É interessante percebermos que Schopenhauer encontra as contradições da moral

kantiana com as expressões usadas por Kant para apresentá-la. Tudo aquilo que Kant

diz em sua fundamentação da moral, a leva para um vazio, dentro do qual, não existe

nenhuma sustentação. A total falta de ligação com qualquer objeto torna a moral

kantiana sem sentido para Schopenhauer que dirá: Um valor absoluto incomparável, incondicionado, tal como deve ser a

dignidade, é, por isso, como muitas coisas na filosofia, uma tarefa posta por

122 Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, Unesp,2005 São Paulo:p.503 123 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.82

63

palavras para um pensamento que não se pode sequer pensar, tão pouco

quanto se pode pensar o maior número ou o maior espaço.124

Assim, simplificando o pensamento de Schopenhauer em relação a esse ponto de

sua crítica a Kant, podemos apresentar a seguinte pergunta que irá esclarecer ainda mais

o pensamento exposto: a dignidade do homem é o maior de todos os valores em relação

a quê? Essa pergunta não encontra resposta, para Schopenhauer, na moral kantiana,

portanto, ela só pode levar o leitor ao vazio impensável tratando-se de filosofia.

Schopenhauer dirá: Esta é uma explicação que, por seu sublime tom, impõe-se de tal modo que

não deixa facilmente alguém, que está mais abaixo, aproximar-se para

investigá-la mais de perto, descobrindo então que também ela é apenas uma

hipérbole oca, em cujo interior aninha-se a ‘contradictio in adjecto’.125

Schopenhauer ainda irá criticar a forma com a qual Kant irá concluir sua

apresentação. Assim colocaremos as palavras de Kant sobre o tema na íntegra para

podermos melhor entender o final dessa crítica. Kant dirá: Ora, como uma razão pura, sem outros móbiles, venham eles donde vierem,

posa por si mesma ser prática, isto é, como o simples princípio universal de

todas as suas máximas como leis (que seria certamente a forma de uma razão

pura prática), sem matéria alguma (objeto) da vontade em que de antemão

pudesse tomar-se qualquer interesse, possa por si mesmo fornecer um móbil e

produzir um interesse que pudesse chamar-se puramente moral; ou, por

outras palavras: como uma razão pura possa ser prática – explicar isto, eis o

de que toda razão humana é absolutamente incapaz; e todo esforço e todo

trabalho que se empreguem para buscar a explicação disto serão perdidos.126

Talvez, essa passagem de Kant seja a prova final, para Schopenhauer, do

absurdo moral kantiano. Aquilo que é afirmado por Kant de maneira tão vigorosa e que

atraiu tantos intelectuais para a sua apreciação é explicado e afirmado, mas, no final,

não pode de maneira nenhuma ser compreendido. Como entender então o imperativo

categórico de Kant? Como entender e poder defender algo que em nada se apóia e cuja

própria razão não pode alcançar de nenhuma maneira? Algo que existe em nossa mente

de maneira inata, que move nossas ações e coordenando nossas vontades sem necessitar 124 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo; 2001. p.83 125 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.82 - 83 126 Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.118

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de nenhuma experiência só pode existir em nós de uma maneira: foi colocada em nós

por Deus.

Assim, como vimos em toda essa crítica de Schopenhauer à moral kantiana, a

teologia é a grande vilã que Kant tentou de todas as formas esconder em seu

fundamento da moral. Com certeza, no pensamento de Schopenhauer, basta colocarmos

um deus legislador por detrás do imperativo categórico e veremos a moral kantiana

começar, como que, por encanto, a fazer sentido de um momento para o outro. Aquilo

que a razão em nenhum momento pode encontrar, não está oculto por, de fato, ser algo

misterioso ou inalcançável, mas fim, por não ter em sua explicação aquilo que lhe é

essencial: a vontade de um Deus. Schopenhauer se expressa bem em relação a isso em

suas palavras abaixo: Seria então para se pensar que, se algo cuja existência é afirmada não pode ao

menos ser compreendido de acordo com sua possibilidade, teria de ser

faticamente provado em sua realidade: só que o imperativo categórico da

razão prática não é estabelecido expressamente como um fato de consciência

ou, de resto, fundado na experiência. Ao contrário fomos suficientemente

advertidos que não é para buscá-lo em tais caminhos antropológicos e

empíricos.127

Schopenhauer não poupa ironias: “Quando se resume tudo isso, pode-se

realmente suspeitar que Kant zomba de seu leitor”128. Ainda que fosse possível acreditar

que Kant não estivesse escondendo nenhum Deus por detrás de seu pensamento, tal

afirmação continuaria sem nenhum sentido, permanecendo uma mera crença sem

nenhum fundamento aceitável: Temos portanto de permanecer na convicção de que aquilo que nem é

compreendido como sendo possível nem provado como sendo real não tem

qualquer confirmação de sua existência. Se porém, apenas tentamos

apreendê-lo meramente com a fantasia, representando-nos assim um homem

em cuja mente falasse um puro imperativo categórico, um deve absoluto,

como se possuído por um demônio que conseguisse dirigir suas ações contra

as tendências e os desejos, não avistaríamos, então, com isso, uma imagem

verdadeira da natureza humana ou dos processos de nosso íntimo, mas antes

127 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.84 128 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo 2001. p.85

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reconheceríamos um substituto artificial da moral teológica, à qual ela se

relacionaria como uma perna de pau a uma de verdade.129

Nas palavras de Schopenhauer, vemos sem nenhuma dúvida o que acima foi

dito: sem a teologia a moral kantiana não faz nenhum sentido e, mesmo com ela, é

apenas uma “perna de pau” que nenhum mérito alcança quando o objetivo é

fundamentar a moral que ele mesmo conceituou tão bem.

Com essa idéia acima, concluímos que enquanto a moral de Kant

só é realmente genuína por afastar-se do mundo objetivo, a moral de Schopenhauer, por

sua vez, será somente genuína por nele apoiar-se. A vontade que é o “em si” para

Schopenhauer, não é capaz de, em nenhum momento, estabelecer um padrão moral,

dela, somente o egoísmo pode existir.

Findando sua crítica à moral kantiana ele concluirá: Nosso resultado é pois que a ética kantiana, tanto quanto todas as anteriores,

dispensa todo fundamento seguro. Ela é, no fundo, como mostrei pela prova

estabelecida logo no início da sua forma imperativa, apenas uma inversão da

moral teológica e um disfarce dela em formas bem abstratas e aparentemente

encontradas ‘a priori’.130

Podemos agora apresentar aquilo que Schopenhauer concluiu em sua crítica à

moral de Kant. Primeiramente digamos, que por detrás de todos os seus conceitos,

existe a teologia, sem a qual, ela não faz o mínimo sentido. Kant teria tido essa intenção

ao formular sua moral. Sem a teologia a moral kantiana nada significa, e, a cada

tentativa de tornar esses conceitos aceitáveis, maior é a contradição.

Em segundo lugar, podemos ainda dizer que, as tentativas de Kant em tornar sua

moral aceitável, fizeram com que ela entrasse em contradição com o próprio conceito de

genuíno ato moral apresentado por Kant no qual o verdadeiro ato moral é aquele

praticado sem nenhum interesse. Esse seria o caso apresentado, como já visto, por

Schopenhauer em relação ao Soberano Bem. Interesse e teologia totalmente ligados, em

uma dupla contradição oculta por um apriorismo sem nenhum sentido.

Ainda, não podemos deixar de citar que, segundo essa crítica, Kant teria deixado

de lado a importância da experiência na fundamentação da sua moral, atitude

129 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.89 130 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.85

66

extremamente contraditória com sua própria filosofia que afirma a necessidade da

experiência para a obtenção de conhecimento.

Também temos de destacar a afirmação de Schopenhauer de que a moral

kantina, com exceção de seu perfeito conceito, apresenta uma fundamentação nociva

que precisava ser de toda forma corrigida em nome da verdade.

Mas a crítica à moral kantiana ainda possui seus mistérios. É preciso entendê-la

como peça fundamental para a compreensão da fundamentação moral do próprio

Schopenhauer. Isso será apresentado no próximo capítulo. Mas antes dele iniciar-se,

gostaríamos de colocar a últimas palavras de Schopenhauer sobre a moral kantiana e,

também, sobre seu próprio autor. Com uma ironia interessante, elas nos dão a entender

que ele não apenas quer mostrar os erros de Kant, mas também os erros da própria

teologia que, além de ser totalmente estranha à filosofia depois da obra do próprio Kant,

não passa de crença sem nenhum sentido, movida apenas pela ignorância do homem em

seus desejos mais secretos e inconfessáveis: Se me fosse permitida, no final desta árida investigação, cansativa até para o

leitor, uma frívola e brincalhona analogia para alegrar, compararia Kant,

naquela automistificação, com um homem que, num baile de máscara, corteja

toda a noite uma beldade mascarada, na ilusão de ter feito uma conquista. Até

que, no final, ela tira a máscara e se dá a conhecer como sua mulher.131

131 Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.86

67

2. Da compaixão como único e verdadeiro fundamento da moral

No primeiro capítulo vimos que Schopenhauer rejeita o fundamento da moral

apresentado por Kant, assim como também rejeita o fundamento da moral com bases

teológicas ou Eudemonistas. Sendo assim, qual seria o verdadeiro fundamento da

moral? Onde deveríamos buscá-lo? O fundamento da moral para Schopenhauer é

apenas um: a compaixão. E, respondendo à segunda questão, a busca do verdadeiro

fundamento da moral deve ser feita em apenas um lugar: na experiência, ou seja, na

observação da vida, dos seres humanos e de suas atitudes. Elas revelam a existência da

compaixão e também a mostram como único fundamento da moral, é ela que de forma

exclusiva e desinteressada é capaz de deter os fortes impulsos do egoísmo humano e dar

aos homens a repreensão da consciência. Apenas ela é capaz de ser encontrada em

qualquer homem, desde o mais tosco até o mais intelectual, exigindo sempre pouca ou

nenhuma reflexão, e impondo-se imediatamente frente à realidade dos fatos.132

Perceberemos ao estudarmos o fundamento da moral de Schopenhauer o quanto

ele se afasta em seus fundamentos e definições da moral kantiana. A compaixão não se

funda em um dever, ela é algo espontâneo e inato em todo o homem em qualquer parte

do planeta. Também podemos dizer que a compaixão encontra-se afastada, no extremo

oposto do “em-si”, diferentemente da fundamentação moral kantiana; que esse mesmo

fundamento não é um valor em si mesmo, mas sim, um valor em relação ao sofrimento

do homem e que ele só pode existir se for precedido pela experiência que mostra esse

mesmo sofrimento e faz com que o homem o compreenda. Também a compaixão,

diferentemente do imperativo categórico de Kant, estende-se aos irracionais, ou seja,

aos animais. Com esses apontamentos em relação às diferenças existentes entre o

fundamento da moral de Kant e o fundamento da moral de Schopenhauer, nota-se a

importância que a crítica à moral kantiana possui para poder-se entender a moral da

compaixão defendida por Schopenhauer.

Inicialmente, Schopenhauer irá apontar a dificuldade de encontrar a genuína

motivação para o fundamento da moral apenas de maneira empírica. Em seu modo de

pensar, ainda que existam atos aparentemente morais de maneira genuína que são 132 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.108

68

aqueles que não possuem nenhum tipo de interesse, seria realmente muito difícil haver

certeza de que esses atos seriam realmente desinteressados, pois, mesmo que

aparentemente verdadeiros, os mesmos podem ocultar interesses pessoais que se

utilizam de outras pessoas para atingir um intento puramente egoísta. Para

Schopenhauer, o homem, em seu egoísmo, que é a grande motivação antimoral, pode

muito bem se valer de uma aparência de generosidade, amor, justiça ou benevolência,

para atingir seus intentos, conseguir realizar seus desejos ou até mesmo de forma

previdente, tentando evitar um mal futuro. Nesses casos, as pessoas, frente ao egoísmo

seriam apenas um meio de se atingir um fim, que nada possui de desinteressado. Assim,

no pensamento de Schopenhauer, apenas a aparência de bondade ou justiça não prova

definitivamente a existência do verdadeiro fundamento da moral. Com base apenas

nessa aparência não é possível afirmar que a compaixão realmente esteja por detrás

dela. Nós, por mais que avaliemos bem as atitudes humanas, não podemos ter acesso ao

que realmente as impulsionou, à intenção que moveu o homem nesse ato aparentemente

moral. Mas ainda que nesse mundo o egoísmo seja a regra que move a esmagadora

maioria das ações humanas, ainda que a maldade, o simples prazer de fazer o mal a

alguém e vê-lo sofrer sem nada ganhar, também exista em grande número de pessoas,

ainda que a guerra de todos contra todos seja uma constante e a paz pareça ser apenas

um sonho do qual a desesperança é a senhora, Schopenhauer afirmará sem vacilar em

nenhum momento que pessoas verdadeiramente boas, ou seja, compassivas, ainda que

em número reduzido, realmente existem. Existem pessoas que “Fazem e renunciam sem

ter outro intuito em seu coração que o de ajudar a outrem cuja necessidade eles

vêem”133.

Schopenhauer ainda afirmará que se a possível inexistência de atos realmente

desinteressados, ou seja, de atos genuinamente morais for um fato, continuar a estudar a

moral nada mais é do que um absurdo. Para nosso pensador, seguindo a conceituação

moral apresentada por Kant, os atos desinteressados são o pressuposto para a própria

existência de uma preocupação com a moral. Não há que se falar em moral se não se

acreditar que realmente existam tais atos. Mas se alguém persiste em negar a ocorrência de tais ações, então a moral

segundo esse alguém seria uma ciência sem objeto real, igual à astrologia e à

alquimia, e seria tempo perdido discutir mais sobre seu fundamento. Eu

133 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. .p.130

69

pararia de falar com ele e continuaria falando com aqueles que admitem a

realidade do fato134

Assim, esse ato moral totalmente desinteressado é o único capaz de fundamentar

a moral. Nele não existe o interesse pessoal e o único interesse existente é o de ajudar o

semelhante sem nada ganhar em troca, o que move a ação é o desejo de ver o bem do

outro tão somente. “A ausência de toda motivação egoísta é, portanto, o critério de uma

ação dotada de valor moral”. 135 Esse desinteresse não está apenas ligado a qualquer

vantagem, mas, também, ao que Schopenhauer irá chamar de “aplauso da consciência”.

Algumas pessoas podem fazer o bem sem esperar dinheiro, posição ou reconhecimento

com essa atitude, mas, muitas vezes, o que ela realmente quer é sentir-se bem consigo

mesma, coloca-se através de sua consciência acima do outros, reconhecer-se melhor do

que aqueles que não praticam tal atitude. Nesse caso existe um gozo íntimo e não

observável, e os atos morais também estão viciados, pois, ainda que não exista algo a

ser ganho no sentido material ou social, existe o interesse de um contentamento interno

que move a ação. Tal ato não poderia ser genuinamente moral, pois, mesmo que de uma

forma subjetiva que só traz vantagens diante dos olhos daquele que pratica tal ato, o

interesse existe e o mesmo não pode ter participação em uma moral genuína.

Essas explicações dadas por Schopenhauer como bem podemos observar estão

alicerçadas sobre a concepção moral de Kant no qual o único ato moral genuíno é

aquele que não possui nenhuma forma de interesse pessoal. O que Schopenhauer faz

nada mais é do que tentar ajustar todas as atitudes humanas dentro desse conceito e

assim filtrá-las, para, não só encontrar a atitude genuinamente moral, mas também de

tentar descobrir qual a motivação dessas atitudes. Como dissemos, Schopenhauer afirma

que buscar o fundamento da moral apenas na experiência é difícil, pois mesmo uma

atitude aparentemente desinteressada, pode existir um interesse pessoal, mas mesmo

assim, será avaliando as atitudes humanas de maneira minuciosa e descobrindo nelas a

compaixão como fonte inequívoca da ação, que o nosso pensador irá encontrá-la como o

seu fundamento da moral. Temos então de considerar as ações assim estabelecidas e fatidicamente

dadas às quais se atribui valor moral como sendo fenômeno que estão diante

de nós para serem explicados e, de acordo com isso, para investigarmos o que

134 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.130 135 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. .p.131

70

é que pode mover os homens a ações deste tipo. Tal investigação, se der bom

resultado, tem de trazer necessariamente para a luz do dia a genuína

motivação moral por meio da qual o nosso problema seria resolvido já que

toda a ética tem de repousar sobre ela.136

Depois de fazer essas observações Schopenhauer irá apresentar em seu ensaio

aquela que seria a única motivação verdadeira para o fundamento da moral. Toda a

moral deve nela se basear e fora dela não seria possível encontrar nada que realmente

pudesse ser considerado como destituído de interesse pessoal. Para Schopenhauer, a

única motivação verdadeiramente moral que é capaz de ser o fundamento da moral, é a

compaixão.

Como Schopenhauer bem diz em seu texto, ele não quer apenas sugerir a

compaixão como motivação da moral ou construir um sistema moral, esses não são os

intuitos de nosso pensador, mas sim, demonstrar que ela é a única motivação que pode

fazer nascer no homem uma ação desinteressada e boa, através dos fatos, que como

vimos serão avaliados minuciosamente, para provar a sua existência. Schopenhauer,

mais uma vez, diz ser a compaixão uma realidade irrecusável diferentemente do

imperativo categórico.

Para encontrar essa prova da compaixão como única motivação genuína do ato

moral, do fundamento da moral, Schopenhauer apresentará como necessárias algumas

premissas sobre as ações humanas que, para ele, são indispensáveis para a compreensão

do seu pensamento. E através delas, analisando várias atitudes humanas através de

exemplos históricos ou próximos de nossas vidas em nosso dia a dia, chegará ao que ele

considera a prova da existência da compaixão. Depois disso ele apresentará o que

considera as duas virtudes fundamentais que derivam da compaixão e criam toda a

estrutura moral do mundo.

Mas antes de apresentar o seu fundamento da moral, Schopenhauer dedicará

algumas páginas da segunda parte da sua dissertação na demonstração de que a visão

cética sobre a moral, ou seja, a idéia de que não existem atos desinteressados por parte

de quem quer que seja é equivocada. Importante apresentar suas considerações a

respeito desse tema mesmo que sucintamente, pois as mesmas serão de extrema

importância para a compreensão daquilo que, como fonte da atitude moral genuína

Schopenhauer chamará de grande mistério, não poderia ser visto de forma diferente

136 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. P. 131

71

para Schopenhauer, algo que vai contra o egoísmo do homem levando-o a prática de

boas atitudes. Se como veremos, a verdadeira essência do homem é a vontade cega

sempre insatisfeita, o egoísmo é a regra da qual ninguém é capaz de escapar em um

primeiro momento Dessa forma, a compaixão será algo que merecerá uma explicação

que ultrapasse a nossa experiência, e nesse momento Schopenhauer irá recorrer à

metafísica para tentar encontrar a explicação desse grande mistério que mesmo sendo

improvável acontece frequentemente e do qual não podemos duvidar, apesar de a

dúvida nos fornecer a desconfiança necessária para encontrarmos o verdadeiro

fundamento da moral e não nos deixarmos levar pela primeira atitude aparentemente

moral que na realidade não é desinteressada possuindo algo egoísta a ser atingido por

parte de quem pratica tais atos, vejamos assim a crítica e analise da visão cética sobre a

moral de Schopenhauer.

72

2.1 A visão cética sobre a moral

De maneira geral, no pensamento de Schopenhauer, a visão cética sobre a moral

defende que toda a moralidade nada mais é do que uma tentativa de se “domesticar” o

homem. Diante do egoísmo das pessoas, seria preciso criar normas de conduta para que

todo o mundo não terminasse em ruínas na luta entre os homens por seus interesses

pessoais. Dessa forma, a moral não possuiria nenhum fundamento natural, nada inerente

ao homem lhe mostraria o correto a fazer frente às mais diversas situações que diante

dele apresentar-se-iam exigindo uma atitude moral. Organizar a sociedade deixando-a

em paz, seria objetivo dessa moral que os céticos afirmam ser pura criação do homem.

O poder do Estado em um primeiro momento cria leis referentes à sua organização e

com elas tenta combater através de preceitos que são seus de forma exclusiva, as

tendências egoístas e malvadas do homem. Mas o poder estatal não poderia alcançar

todo e qualquer ato, existiriam transgressões que além de difícil descoberta seriam

também difíceis de serem punidas de alguma forma. Dessa maneira a moral teológica e

a moral dos “bons costumes” seriam a complementação das regras estatais estabelecidas

para a tranquila existência do Estado; complementação que iria até onde o poder do

Estado não pode chegar, tanto porque a lei pode no máximo coagir à justiça, a

observância de suas regras, mas nunca um padrão moral que delas escapasse. Para

Schopenhauer, essa complementação caracteriza a moral dos céticos, que ele não

esclarece quem são mencionando apenas os Pirrônicos sem dar maiores explicações a

respeito do tema e sobre esses pensadores. Apesar de não concordar com tal

posicionamento, Schopenhauer o respeita e pretende criticá-lo com cautela, não apenas

por ver nele alguma procedência, mas também por reconhecer nele como será estudado,

grande responsabilidade pela paz que, mesmo sendo pequena, existiria no mundo. Eis

algumas palavras de Schopenhauer sobre a opinião dos céticos: Também, em época mais recente, pensadores notáveis foram partidários

dessa opinião. Ela precisa, pois de um exame cuidadoso, apesar de ser bem

mais confortável pô-la de lado com um olhar de soslaio inquisitorial, dirigido

para a consciência daquele em que tal pensamento pode surgir.137

Assim mesmo não concordando com o pensamento cético, schopenhauer o

respeita, pois, como visto acima, nem tudo aquilo que parece ser genuinamente moral o

137 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.109

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é. O ceticismo aparece para ele como uma espécie de guia, que, em um primeiro

momento, tira a ilusão do homem sobre a bondade humana: “Encontrar-nos-íamos num

grande e juvenil erro se acreditássemos que todas as ações justas e legais do ser humano

fossem de origem moral”138. Assim essa dúvida inicial é importante, pois tira nossas

ilusões a respeito do homem e nos conduz ao conhecimento da verdadeira moralidade

que apesar de ser difícil de identificar existe sem nenhuma dúvida,a investigação

minuciosa das atitudes humanas exigiria essa dúvida ainda mais para um pensador que

vê o egoísmo e a maldade como regras das atitudes humanas.Já salientamos que para

Schopenhauer existem atos que se revestem de uma aparência moral genuína, mas que

na realidade não passam de puro interesse e tais atos são a maioria. Sobre isso ele

comenta: Na verdade, a legalidade geral exercida no trato humano e afirmada em

máximas firmes como rochas repousa principalmente sobre dois tipos de

necessidade externa: em primeiro lugar, sobre a ordem legal, por meio da

qual o poder público protege o direito de cada um e, em segundo lugar, sobre

a conhecida necessidade do bom nome e da honestidade civil para a

subsistência no mundo, por meio da qual os passos de cada um ficam sob a

fiscalização da opinião pública, que, inexoravelmente severa, não perdoa

nunca nenhum passo em falso neste ponto e guarda rancor do culpado até a

morte, como uma mácula insolúvel.139

Nessa explicação Schopenhauer deixa claro o que ele considera de maneira geral

a maioria dos atos humanos que, num primeiro momento pareceriam genuínos, como

atos egoístas, atos que visam apenas a necessidade dos homens em relação à

sobrevivência entre os demais. Na maioria das vezes o egoísmo é a fonte de um ato

aparentemente moral. O próprio Estado e os costumes nada mais são do que uma

espécie de controle sobre o egoísmo humano, controle esse surgido, não pela bondade,

mas sim pelo interesse pessoal, do egoísmo que pretende através deles se defender. Mas

mesmo sendo eles apenas uma espécie de controle, o pouco que temos de paz deve-se

quase que exclusivamente a eles: “Estes são, portanto, os guardiões da legalidade

pública, e quem vive com os olhos bem abertos concordará que, de longe, deve-se

agradecer só a eles a maior parte da integridade nas relações humanas” 140 Dessa forma

138 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.109 139 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. .p.110 140 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 113

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esses atos aparentemente morais não são nada mais que egoísmo, primeiramente aqueles

que os praticam se resguardam da lei e depois da opinião pública tão severa ou ainda

mais severa do que a própria lei

Vemos assim que Schopenhauer concorda quase que integralmente com a

posição cética sobre a moral. Vejamos o que ele mesmo diz sobre o Estado: O Estado, esta obra-prima do egoísmo racional óbvio, do egoísmo de todos

somado, deu, para a proteção do direito de todos, uma força que ultrapassa

infinitamente a potência de cada um e que o força a respeitar o direito de

todos os outros. Por isso, o egoísmo ilimitado de quase todos, a maldade de

muitos e a crueldade de alguns não podem sobressair; a coerção subjugou a

todos141

Tal posicionamento de Schopenhauer é comentado por José Thomaz Brum: O Estado, segundo a filosofia de Schopenhauer, criou a ‘legislação’ para

proteger a vítima da injustiça’. O Estado não é ‘um meio de nos elevar à

moralidade’; ele nasceu do egoísmo metódico, de um egoísmo que visa ‘as

conseqüências funestas do egoísmo’. A imagem que Schopenhauer utiliza é a

da ‘focinheira’. O Estado vigia para que o animal feroz (o homem) não

ultrapasse os limites de um egoísmo restrito à autoconservação.142

É preciso olhar para o Estado e ver o que, na realidade, acontece por detrás dele.

Brum comenta acima a seguinte passagem de Schopenhauer: “É preciso ver os milhares

que se acotovelam uns aos outros num transitar pacífico, diante de nossos olhos, como

se fossem tigres e lobos cujas mandíbulas estivessem seguras por forte focinheira”.143

Dessa forma o Estado nada mais é do que a soma dos egoísmos racionalizados, a razão

como instrumento da vontade cega, trabalha a seu favor criando o Estado como

prevenção para as injustiças, o que se quer através dele não é punir, mas sim evitar que

o mal aconteça, se ele deixasse de existir o que veríamos seria a terrível imagem do

homem entregue ao seu próprio egoísmo e, não conhecendo nenhum limite, praticando

todo tipo de injustiça ou maldade. Vivendo a ilusão do Véu de Maia, a ilusão da

individuação dos seres, o homem afirmaria sua vontade individual em relação aos

demais e o caos reinaria indestrutível. Como bem afirma Renato César Cardoso: “Ecos

hobbesianos surgem então por todos os lados. Homo homini lupus. A vontade é loba da

141 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.118 142 Brum Thomaz José, O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro 1998. p. 44 143 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.118

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vontade...A guerra de todos contra todos é a regra”144. Esse é o posicionamento claro

também de Hobbes que antecede Schopenhauer. Em seu livro Do cidadão Hobbes

afirma: Tendo assim estabelecido os alicerces para o assunto ao qual me propus,

demonstro primeiramente que o estado dos homens sem a sociedade civil (ao

qual podemos corretamente chamar de Estado de Natureza), nada mais é que

uma guerra de todos contra todos, e nesta guerra, todos os homens tem

direitos iguais sobre todas as coisas; e em sequência, que todos os homens

assim entendem esta condição odiosa (até porque a natureza os compele a

isto) desejam livrar-se desta miséria145.

A, em seu livro posterior O leviatã, Hobbes continuará afirmando a mesma idéia

dizendo: “O FIM ÚLTIMO, causa final e desígnios dos homens (que amam

naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição

sobre si mesmos sob a qual os vemos viver no Estado”. 146. Dessa forma a visão de que

no chamado Estado de Natureza o homem é bom a paz existiria por completo é um

grande equívoco não só para Hobbes, mas como também para Schopenhauer.

Assim Schopenhauer apresenta como principal motivação antimoral o egoísmo:

“A motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal, é o egoísmo,

quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem estar”147. Ele esclarece sendo mais

explicativo: O egoísmo, de acordo com sua natureza, é sem limites: o homem quer

conservar a sua existência incondicionalmente , a quer incondicionalmente

livre da dor à qual também pertence toda a penúria e privação, quer a maior

soma possível de bem-estar, quer todo gozo de que é capaz e procura, ainda,

desenvolver em si, outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de

seu egoísmo excita sua má vontade, ira e ódio; procurará aniquilá-lo como

inimigo148

Mas também existem outras motivações antimorais que Schopenhauer cita, entre

elas está a alegria maligna. Na alegria maligna a maldade é o desejo principal, ver a

desgraça e o sofrimento do outro é o objetivo, isto é, nesse tipo de atitude o fim a ser

144 Cardoso César Renato, A idéia de justiça em Schopenhauer, Argumentum, Belo Horizonte, 2008: p. 137 – 138. 145 Hobbes T.Do cidadão, Martins fontes, São Paulo:2002 p. 41 146 Hobbes T. Leviatã, In :” OS PENSADORES”trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Nova Cultural, São Paulo: 1997 p. 147 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.120 148 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.121

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alcançado é o próprio sofrimento de quem sofre a ação, diferentemente de quem, por

exemplo, mata para roubar que tem como fim de sua atitude o roubo. O egoísmo pode levar a todas as formas de crimes e delitos, mas os prejuízos

e as dores causadas a outrem são para si um mero meio e não um fim, aí

entrando de modo apenas acidental. Em contrapartida, para a maldade e a

crueldade o sofrimento e a dor de outrem são fins em si; alcançá-los é o que

dá prazer149

Importante ressaltar que em Schopenhauer egoísmo e maldade não se

confundem. No egoísmo a maldade praticada é apenas um meio para se atingir algum

fim, já na maldade o “fazer o outro sofrer” é o próprio fim a ser buscado. Mas apesar de

tudo o que foi dito Schopenhauer acredita que exista, de fato, uma ação moralmente

genuína. Percebemos que o pensador acredita ser de extrema importância o pensamento

cético sobre a moral, pelo menos no campo da prática, e mesmo, naqueles que possuem

suas atitudes morais pautadas por essa visão, como em todo ser humano, pode-se

encontrar aquilo que ele irá caracterizar como uma atitude moral genuína. Atitude que

poderia passar despercebida pela própria pessoa que a põe em prática. O limite que

definiria uma ação moral genuína de uma que existe apenas como contenção da

violência ou manutenção da paz social seria extremamente tênue, e somente um exame

profundo das ações humanas poderia nos revelar qual ação é apenas uma convenção

social e qual é um ato moral genuíno: “Mas também é certo que há ações feitas por

caridade desinteressada e por justiça espontânea. Referindo-me apenas à experiência e

não aos fatos da consciência, são provas dessas últimas ações os casos isolados, mas

indubitáveis em que, não havendo nem o perigo da perseguição legal nem também da

descoberta e de qualquer suspeita, foi, não obstante, dado pelo pobre ao rico o que lhe

pertencia”.150

Eis acima uma das maneiras de se identificar o ato genuinamente moral, quando

não há nenhum obstáculo para a injustiça e a mesma não é praticada, como, por

exemplo, o homem pobre que encontra uma maleta cheia de dinheiro e sabendo que

mesmo que fique com ela jamais será apanhado ou descoberto, necessitando dessa

soma, a devolve para seu dono, deixando a injustiça de lado. Sendo assim,

Schopenhauer dirá:

149 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.126 150 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.114

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O conjunto desses escrúpulos céticos não é por certo suficiente para negar a

existência de toda moralidade genuína, mas o é para moderar nossa

expectativa sobre a disposição moral do ser humano e, assim, sobre o

fundamento natural da ética, pois muito daquilo que lhe é atribuído resulta de

outros motivos, e a observação sobre a corrupção moral do mundo prova, à

suficiência, que a motivação para o bem não pode ser tão poderosa, sobretudo

porque ela muitas vezes não se efetiva onde os motivos opostos não são

fortes, muito embora a diferença individual entre os caracteres afirme aqui

sua plena validade.151 Para nosso pensador, a moralidade pode existir sempre, mesmo se o Estado

desaparecesse e o homem ficasse entregue ao seu egoísmo e ainda que a maioria ou

quase todos os homens a ele se entregassem agindo de acordo com suas ordens,

existiriam aqueles que não se deixariam levar por ele e manteriam a justiça e a caridade

pautando suas ações. Agora, analisados e vencidos os argumentos céticos contra a

moral, Schopenhauer iniciará sua investigação que visa encontrar o único e verdadeiro

fundamento da moral. Analisando as atitudes humanas de maneira pormenorizada: esse

será o seu caminhado que percorreremos no próximo item: Proponho, em contrapartida, como finalidade para a ética, a de esclarecer,

explicar e reconduzir á sua razão última os modos muito diferentes de agir

dos homens no aspecto moral. Por isso, resta apenas para a descoberta do

fundamento da ética o caminho empírico, a saber, o de investigar se há em

geral ações às quais temos de atribuir autêntico valor moral – que seriam as

ações de justiça espontânea, pura caridade e generosidade afetiva. Estas

devem ser pois consideradas como um fenômeno dado que temos de explicar

corretamente, ou seja, reconduzir às verdadeiras razões, tendo para isso

indicado, em cada caso, o impulso próprio que move o homem a ações desse

tipo, especificamente diferentes de todas as outras. Esta motivação, junto

com a receptividade para ela, será a razão última da moralidade, e o seu

conhecimento, o fundamento da moral. Este é o caminho modesto que indico

para a ética.152

151 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.117 152 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.119

78

2.2 Provando a existência da compaixão e demonstrando-a como único e verdadeiro fundamento da moral

Depois de estudar a visão cética, contestá-la e afirmar que a ação moral é apenas

aquela praticada sem nenhum tipo de interesse pessoal, sem egoísmo, Schopenhauer

apresentará aquele que é o seu fundamento da moral: a compaixão. Inicialmente ele

apresentará algumas premissas essenciais, sem as quais seria impossível153 compreender

seu pensamento. Eis uma dessas premissas: toda ação deve acontecer por um motivo.154

As nove premissas são apresentadas por Schopenhauer para entendermos o

caminho que ele percorrerá para chegar até a compaixão como o fundamento da moral.

Nas duas últimas premissas, Schopenhauer diz que o egoísmo e o verdadeiro valor

moral não podem coexistir excluindo-se um ao outro, e que todo ato moral só pode

existir em relação à outra pessoa, portanto, deveres com relação a nós mesmos jamais

poderão existir como pretendia Kant. Depois de afirmar que egoísmo e moral genuína

não podem coexistir, Schopenhauer diz que apenas os atos que são voltados para o bem

estar de outro é que realmente podem ser avaliados como sendo morais ou não. Diante

dessas premissas, entendemos de forma definitiva o motivo pelo qual Schopenhauer

tanto criticou a fundamentação da moral kantiana. Nada poderia ser mais distante das

explicações dadas por Schopenhauer às atitudes humanas, do que as fórmulas

apriorísticas da moral kantiana que segundo ele nada podem sustentar e que, muito

menos, podem ser encontradas no homem.

153 Tais premissas são colocadas aqui na integra para melhor compreensão do raciocínio do autor: 1°. Nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente, assim como uma pedra não pode mover-se sem um choque ou impulso suficiente; 2°. ainda menos uma ação para a qual se apresenta, para o caráter do agente, um motivo suficiente pode não se efetuar se um contramotivo mais forte não tornar necessária sua cessação; 3°. o que move principalmente a vontade é o bem estar ou o mal estar, tomados no sentido mais amplo da palavra, como também inversamente bem-estar e mal-estar significam ‘de acordo ou contra uma vontade’. Portanto todo motivo tem de se referir ao bem estar e ao mal-estar; 4°. consequentemente, toda ação refere-se a um ser suscetível de bem-estar ou mal-estar como seu fim último; 5°. este ser é: ou o próprio agente, ou outro ser, que, portanto, participa da ação passivamente, pois ela acontece para seu dano ou para seu proveito e alegria; 6°. toda ação cujo fim último é o bem-estar e o mal-estar do próprio agente é uma ação egoísta; 7°. tudo o que aqui foi dito das ações vale igualmente para as omissões de tais ações, para as quais existem motivos e contramotivos; 8°. em conseqüência das explicações dadas nos parágrafos precedentes, egoísmo e valor moral simplesmente excluem-se um ao outro. Se uma ação tiver um fim egoísta como um motivo, então ela não pode ter nenhum valor moral. Deva uma ação ter valor moral, então um fim egoísta não pode ser seu motivo imediato ou mediato, próximo ou longínquo; 9°. de acordo com a eliminação total dos pretensos deveres para com nós mesmos, efetuada no parágrafo 5, a significação moral de uma ação só pode estar na sua relação com outros. Só com referência a estes é que ela pode ter valor moral ou ser condenável moralmente e, assim, ser uma ação de justiça e caridade, como também o oposto de ambas. Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo 2001. p. 132-133 154 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.132

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Ainda, com base nas premissas dadas, Schopenhauer afirmará que toda a ação

ou omissão tem como base o bem-estar ou o mal-estar. Esse bem-estar ou mal-estar

podem estar relacionados tanto com o próprio agente como também com outra pessoa.

As ações ou omissões que visam o bem-estar com relação a si mesmo podem acontecer

visando várias coisas, como já vimos: reconhecimento social esperança de recompensa

nesse ou em outro mundo (moral teológica), o temor de castigos de um ser

transcendente e criador, recompensas materiais e emocionais que se referem ao já

apresentado “aplauso da consciência” e assim por diante.

Schopenhauer concluirá que a única ação que realmente é desinteressada e pode

ser considerada valorosa moralmente é a ação que visa de forma exclusiva, o bem-estar

de outra pessoa que participa da ação de forma passiva. Schopenhauer dirá: Portanto, a parte ativa no seu agir ou omitir só tem diante dos olhos o bem-

estar ou o mal-estar de um outro e nada almeja a não ser que aquele outro

permaneça são e salvo ou receba ajuda, assistência e alívio. Somente esta

finalidade imprime numa ação o selo do valor moral, que, portanto, repousa

exclusivamente no fato de que a ação aconteça para proveito e contentamento

de um outro155

A ação que visa diretamente o outro deve assim estar diretamente ligada ao bem-

estar ou mal-estar do outro, é neles que essa ação ou omissão encontrará o seu intuito de

forma exclusiva. Assim com essa conclusão, surgirá o problema da motivação da ação

moral: o que pode fazer com que o outro seja, por completo, a minha preocupação no

agir ou no omitir de alguma maneira? Como outro alguém pode se tornar para o homem

a única motivação do seu modo de agir, ou seja, ser o próprio e exclusivo fim da ação?

Para Schopenhauer existe uma única maneira de o outro se tornar a preocupação

exclusiva de alguém. Aquele que dirige suas ações ou omissões diretamente a alguém,

tendo nesse alguém o próprio fim de suas atitudes, deve querer o bem-estar do outro

como se fosse o seu próprio e sentir o mal-estar desse mesmo como se ele fosse seu

próprio. Assim, com esses sentimentos o homem se identifica com a própria pessoa para

a qual seus atos são dirigidos. Nesse processo o egoísmo que é para Schopenhauer a

grande motivação antimoral, desaparece pelo menos no momento em que a ação ocorre,

e o homem se volta para outro homem como se esse fosse ele mesmo. A diferença entre

as pessoas desaparece até o ponto necessário para que a ação destituída de interesse

155 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. .p.134 – 135

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pessoal possa surgir naquele que age. Esse processo acontece, segundo Schopenhauer,

de maneira menos rara do que pensamos e ele é o processo da compaixão.

Schopenhauer defende que a compaixão é o único processo que faz com que homem

participe de forma imediata no sofrimento de outro homem. Schopenhauer afirma: Esta compaixão sozinha é a base efetiva de toda a justiça livre e de toda a

caridade genuína. Somente quando uma ação dela surgiu é que tem valor

moral, e toda a ação que se produz por quaisquer outros motivos não tem

nenhum.156

Segundo Schopenhauer o processo da compaixão é o único capaz de explicar as

atitudes desinteressadas do homem em relação a outrem. Mesmo assim esse processo

permanece um mistério, em seus próprios dizeres, “o grande mistério da ética”. É

apenas através dele que o eu e o não-eu tornam-se, até certo ponto que não é absoluto, a

mesma coisa. Apenas a metafísica seria capaz de tentar lançar luz a esse enigma e

esclarecê-lo de alguma forma, coisa que, segundo o próprio Schopenhauer afirma, não é

o propósito da Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague, mas que

mesmo assim, nosso filósofo tentará esclarecer ao final de seu ensaio como veremos.

Da compaixão surge tudo aquilo que visa o bem estar do próximo, Schopenhauer

divide em duas as derivações dessa compaixão: virtude da justiça e virtude da caridade.

Mas antes de analisar essas duas derivações, Schopenhauer apresentará duas

observações a respeito do tema. Ele dirá que existem três motivações fundamentais nas

ações humanas. A primeira delas é o egoísmo, que visa o seu próprio bem e é ilimitado.

A segunda é a maldade que deseja o mal alheio e pode chegar até a mais profunda

crueldade. A terceira é a compaixão, que quer o bem-estar alheio. A maldade também é

desinteressada, visa o outro como fim, mas ao contrário da compaixão, ela quer o mal-

estar do outro e não seu bem-estar. Essas três motivações coexistem no mundo, mas não

podem coexistir no mesmo individuo no mesmo momento.

Assim, todas as ações humanas surgem dessas três motivações e apenas pela

terceira motivação pode surgir o ato genuinamente moral. A prova “a posteriori” disso

será apresentada por Schopenhauer quando o mesmo diz que o sofrimento, que nada

mais é do que o mal-estar do outro, é a única forma de fazer o homem participar de

maneira ativa da vida do outro. Apenas sentimos o outro quando o outro sofre, ao

156 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p. 136

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contrário, a felicidade alheia não nos chama a atenção. É apenas a necessidade do outro

que faz a barreira da individualidade e, portanto, do egoísmo cair pelo menos até o

ponto necessário para que o homem possa se identificar com o outro. Schopenhauer

falará a respeito disso: Portanto o positivo, o que manifesta por si mesmo, é a dor. Contentamento e

prazer são o negativo, a mera supressão da dor. É nisto, em primeiro lugar,

que se baseia o fato de que só o sofrimento, a falta, o perigo e o desamparo

do outro despertam diretamente nossa participação.157

A felicidade alheia causa apenas a indiferença, não faz o homem participar dela.

O único caso em que a felicidade do outro causa uma participação efetiva dela, é

quando o outro está ligado ao homem por algum tipo de laço, por exemplo, pelos laços

sociais ou familiares. Participamos da felicidade de um filho, pai, amigo, e assim por

diante. Jamais participaremos da felicidade de um estranho. Importante notar que

Schopenhauer já trará aqui, traços de seu pensamento contido em O mundo como

vontade e como representação, onde a dor é o agente positivo, enquanto o bem-estar é o

negativo para a ação.

Schopenhauer afirmará em sua obra capital que a dor é o que nos impulsiona

para a ação, para a “conquista” de nossos objetivos, enquanto o contentamento, o bem-

estar, nos faz ficar parados sem nada produzir. Assim, quando a pessoa se compadece

de outra, ela se torna, pelo menos em parte, aquela pessoa e sente a dor da mesma, esse

impulso positivo a faz agir, da mesma forma como quando ela sofre age, enquanto, da

mesma forma em que quando satisfeita ela simplesmente não age, ela também

procederá em relação ao outro que nada necessita. Schopenhauer afirmará: “A visão

daquele que é feliz e sente prazer pode até mesmo excitar muito ligeiramente nossa

inveja, já que existe em todo homem a disposição para ela e já que ela encontrou seu

lugar de destaque entre as potências antimorais” 158

Mas agora, vale ressaltar um ponto importante sobre a questão da compaixão.

Quando Schopenhauer afirma que a pessoa que se compadece, de alguma forma por

outra pessoa, passa por uma espécie de identificação com ela, ele não está querendo

dizer que aquele que se compadece tem a ilusão de ser, por algum momento, a pessoa

que sofre qualquer tipo de mal-estar. Schopenhauer afirmará que aquele que se

157 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.139 158 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.139

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compadece sente a dor no outro e tem a plena consciência de que ele não é o outro.

Aquele que se compadece sabe que a dor não está em sua pessoa, mas sim na outra e

isso a incomoda. Assim, na compaixão, existe a plena certeza de que aquele mal do qual

o outro sofre não está em quem se compadece. Portanto a compaixão não pode ter seu

motivo encontrado apenas de maneira psicológica, apenas a metafísica poderá tentar

esclarecê-lo.

Esse fenômeno para Schopenhauer é tão real e forte, que é capaz de fazer com

que nós nos esqueçamos de nós mesmos. Ainda que estejamos extremamente felizes e

com nossos desejos realizados em sua totalidade, ao sermos invadidos pelo sentimento

de compaixão, somos levados a esquecer quase que totalmente nossa ventura, e nos

voltarmos para aquele que sofre imediatamente. Ainda, quanto maior for nossa sensação

de bem estar, maior será também a força que a compaixão exercerá sobre nós: “E

mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a nossa

consciência com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a

compaixão”159Tal é o poder dessa compaixão que, como o próprio Schopenhauer diz,

permanece como um mistério no homem. Schopenhauer também afirmará que essa

compaixão é algo próprio do ser humano e não repousa sobre nenhum pressuposto.

Vejamos o que ele diz a respeito para uma melhor compreensão daquilo que ele chama

de compaixão: Porém esta mesma compaixão é um fato inegável da consciência humana, é-

lhe essencialmente própria e não repousa sobre qualquer pressuposto,

conceitos, religiões, dogmas, mitos, educação e cultura, mas é originária e

imediata e, estando na própria natureza humana, faz-se valer em todas as

relações e mostra-se em todos os povos e tempos. Por isso é que se apela para

ela confiantemente em toda a parte como sendo algo presente

necessariamente em todo homem, e em nenhum lugar ela é atribuída a

‘deuses estranhos’. Pelo contrário, chama-se de inumano aquele que dela

parece carecer. Do mesmo modo que ‘humanidade’ é muitas vezes usada

como sinônimo de compaixão.160

Assim fica claro que essa compaixão é algo que está no próprio homem, nos

dizeres de Schopenhauer acima, em sua própria natureza, inerente ao homem de todos

159 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.140 160 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.141 - 142

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os tempos e lugares encontra-se a compaixão. Nada pode ser considerado como fonte da

compaixão a não ser o próprio homem. A educação, a religião, a crença em algum deus,

não são responsáveis por esse fenômeno em nenhum instante. Assim, um ateu, uma

pessoa totalmente destituída de educação e que não faz parte de nenhuma cultura mais

estruturada terá compaixão e, como conclusão, pensamos ser inútil, dentro daquilo que

Schopenhauer afirma sobre ela, tentar tirá-la do homem de qualquer maneira que seja.

Ainda vale ressaltar diante do exposto, que essa compaixão não é algo raciocinado e sim

espontâneo, em nenhum momento no qual a compaixão se apresenta no homem houve

qualquer raciocínio que a ela antecedeu mostrando-a como aquilo que deve ser sentido

ou seguido.

Mas antes de examinarmos esses dois pontos da moral de Schopenhauer,

devemos apresentar uma questão de extrema relevância para a moral da compaixão que

ele defende: Se a compaixão é algo inato, inerente ao homem, não podendo assim ser

ensinada a ninguém, o que faz com que existam pessoas compassivas ao mesmo tempo

em que existam pessoais cruéis? Para essa questão Schopenhauer não apresenta

nenhuma resposta. Segundo o autor a maldade e a bondade não fazem parte das nossas

escolhas. Diante do que foi apresentado acima e do que será apresentado a seguir no

estudo das virtudes da justiça e caridade, a compaixão deveria existir em todos, mas não

é assim que acontece. Schopenhauer então dirá sobre esse ponto: “A maldade é tão inata

ao maldoso como que dente venenoso ou a glândula venenosa da serpente. Também

como ela, ele não pode mudar”. 161 Portanto, se não há como o homem se desvencilhar

da compaixão quando ela surge, também não há como deixar de ser maldoso quando há

maldade em nós.

Avaliamos esse ponto da dissertação de Schopenhauer e concluímos que ele,

mesmo não sendo apresentado dessa forma pelo autor, é o segundo mistério de sua

moral, já que sobre ele não é apresentado sequer uma tentativa de explicação metafísica.

Assim, a moral possui seu campo “restringido”, pois seu estudo pode apenas tentar

explicar o fenômeno da ação moral, mas jamais poderá tentar, de alguma forma criar um

meio de fazer com que as pessoas se tornem boas ou, pelo menos, percam seus ímpetos

malignos. Sobre isso Schopenhauer comenta: Ora, a realidade e a experiência, que sempre se opuseram vitoriosamente às

promessas de uma ética que quer melhorar os homens moralmente e fala de

161 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. .p.190

84

progresso na virtude, provaram com isso que a virtude é inata e não resulta de

pregação.162

A maldade e bondade inatas são o outro grande mistério da moral de

Schopenhauer que como bem podemos perceber, assim como a moral kantiana, não

pretende mudar o homem, mas sim apenas analisá-lo e alcançar as conclusões

necessárias para.

2.2.1 Das virtudes da justiça e da caridade

A primeira das virtudes provenientes da compaixão, segundo Schopenhauer, é a

virtude da justiça. E é interessante o pensamento de Schopenhauer sobre como somos

levados a senti-la em nós, pois, para ele, em um primeiro momento somos levados à

compaixão através de nosso próprio egoísmo. Como já vimos, todos os homens são, no

pensamento de Schopenhauer, inclinados à injustiça e à violência das mais variadas

formas através de nossos desejos que são provenientes da vontade incessante que nos

forma. Assim, tudo aquilo que pode ser um obstáculo aos nossos apetites sempre

famintos e insaciáveis é algo a ser derrubado e ultrapassado sempre. Na luta pela

saciedade, nossos interesses podem causar o sofrimento de outrem que parece ser um

obstáculo a nós, e quando algo é ferido por nós em nossa violência tomamos, através da

experiência, consciência da existência do outro e, consequentemente, da dor que o

mesmo sofre. Assim, aquele que até então era um desconhecido torna-se semelhante a

nós e a compaixão surgirá de forma espontânea contra a injustiça que nós mesmos

cometemos contra outras pessoas: “Ela me grita ‘pare’! e se coloca como arma

defensiva diante do outro, protegendo-o da ofensa a que, não fora isso, meu egoísmo ou

minha maldade me teriam impelido”. 163

Dessa forma se daria o primeiro grau de compaixão no homem; diante de sua

própria maldade ou egoísmo ela aparece e segura as rédeas do ser humano enlouquecido

por seus desejos. Essa virtude de justiça, porém, não aparece apenas em momentos de

ação egoísta. Depois de um primeiro ato de um homem que venha a ferir o bem-estar de

outro, ele estará apto para, pelo resto de sua vida, resguardar a justiça em relação às

outras pessoas em todos os sentidos. Schopenhauer afirma sobre isso: 162 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.193 163 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.142

85

Todavia, não é de nenhum modo preciso que, em cada caso único, a

compaixão seja efetivamente despertada, pois muitas vezes ela chegaria

muito tarde, mas em cada alma nobre a máxima ‘neminem laede’ origina-se

do conhecimento, alcançado de uma vez por todas, do sofrimento que toda

ação injusta traz necessariamente aos outros e que é aguçado através do

sentimento do padecer injusto, isto é, da prepotência alheia.164

Tal sentimento de justiça, vindo da compaixão seria o responsável por pessoas,

mesmo em situações propícias para a realização de tais atos, não furtarem os bens de

seu semelhante, assim como de não roubar, seduzir a mulher do seu vizinho, ou

maltratar as pessoas diretamente de qualquer forma. Importante também dizer que essa

justiça, também impediria o homem de aplicar a outros sofrimentos não só físicos ou

patrimoniais, mas também morais. Antes de humilharmos alguém, de lhe infligirmos

sofrimentos emocionais de toda ordem, essa “voz” da consciência, como Schopenhauer

bem exemplificou, nos gritará para pararmos.

Não há temor de ser pego em uma prática desonesta, de ser preso ou então de

receber a reprovação da sociedade e consequentemente, ser banido dela, a pessoa está à

sós consigo mesma e é a sua consciência apenas, o tribunal que de forma instantânea lhe

dirá o que deve ou não ser feito. Mas é bom salientarmos que essa consciência passa a

atuar em favor da compaixão depois de uma experiência, ela não é, em nenhum

momento, inata no sentido de não precisar de nenhuma forma empírica de

conhecimento, bem pelo contrário, se baseia nos acontecimentos do mundo objetivo

totalmente.

Também é importante ressaltar que a razão exerce um papel fundamental em

relação à compaixão, pois, depois de uma vez sentida, a reflexão racional sobre ela faz

com que o homem crie suas máximas em relação à justiça que podem ser “não matarás”,

“não causar dano ao patrimônio de ninguém”, “não humilhar ninguém”, ou seja, não

causar nenhum tipo de sofrimento a outrem de nenhuma maneira. Tudo isso, surgido,

como Schopenhauer afirma, de uma vez por todas depois da primeira experiência com a

compaixão vivida. Assim, essa razão criadora de princípios, é a responsável por manter

o homem agindo na moralidade, já que a compaixão nem sempre surgirá, por ser ela

espontânea e não surgir sempre no homem.

164 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.145

86

Esse ponto é de extrema importância para a compreensão do pensamento de

Schopenhauer sobre a compaixão. A compaixão é a fonte primeira e também única da

ação moralmente genuína, com ela surgem a justiça e a caridade. Mas mesmo assim ela

não é uma constante no homem, Dessa forma é a razão que, analisando o que foi vivido

pelo homem ao sentir a compaixão pela primeira vez, cria regras de conduta e diz ao

homem o que deve ser ou não feito diante de uma situação na qual a compaixão não

aparece. Manter-se na moral para com os outros não é apenas algo fruto da compaixão,

mas também da razão que, “lembrando-se” da compaixão vivida em certa ocasião,

compaixão essa que é espontânea e que de nada depende, cria, por intermédio dessa

lembrança regras genéricas e as segue por uma forte determinação. Assim, o agir moral

também surge do autodomínio do próprio homem depois que ele toma conhecimento da

existência do outro através do seu sofrimento. Sem essa experiência de conhecer o

outro, não haveria a compaixão. Talvez essa seja a maior diferença entre a moral

kantiana e a moral da compaixão de Schopenhauer. Sem princípios fortemente tomados, seríamos irrevogavelmente abandonados

às motivações antimorais, quando elas fossem estimuladas através de

impressões externas, até transformarem-se em afetos. O que permite manter e

seguir os princípios, a despeito dos motivos que agem em sentido contrário a

eles, é o autodomínio.165

Essa virtude da justiça não é apenas responsável pelos atos justos, mas também

por tentar evitar os atos injustos. Quando alguém se coloca contra uma atitude que

considera injusta é por meio da compaixão e, consequentemente, da virtude de justiça

que surge essa ação que visa impedir uma atitude reprovável.

Importante notar que a compaixão não depende de nenhuma instituição, do

Estado ou da religiosidade. A compaixão precede todos eles. Todas as tentativas de

fundamentar a compaixão com base em qualquer elemento que não seja o próprio ser

humano será improcedente. Através dela Schopenhauer explica, por exemplo, o

surgimento do próprio Direito: Os conceitos injusto e justo, significando o mesmo que dano e ausência de

dano, ao qual também pertence o impedir o dano, são manifestamente

independentes de toda a religião positiva e a precedem. Há portanto um puro

165 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.144

87

direito ético ou direito natural, isto é, uma doutrina do direito, independente

de todo regulamento positivo.166

Também importante ressaltar que o justo e o injusto estão relacionados sempre

com uma atitude à outra pessoa e podem diferenciar em graus: mais ou menos injusto

ou mais ou menos justo. Schopenhauer explica: O tamanho da injustiça de minha ação é igual ao tamanho do mal que com

ela infligi a outrem, dividida pelo tamanho da vantagem que consegui com

ela; e o tamanho da justiça de minha ação é igual ao tamanho da vantagem

que me traria o dano de outrem dividido pelo tamanho do prejuízo que ele

sofreria com ela.167 Em relação à virtude da justiça o essencial foi explicado, agora temos de nos

debruçar sobre a virtude da caridade, também surgida da compaixão. Para

Schopenhauer a caridade, ainda que não reconhecida por filósofos antigos, sempre

existiu: A caridade existiu prática e fatidicamente em todos os tempos. Mas foi

trazida à baila teoricamente e estabelecida como a maior de todas,

estendendo-se mesmo aos inimigos, em primeiro lugar pelo cristianismo,

cujo maior mérito consiste nisso, embora só em relação à Europa.168

Na virtude da caridade o processo de compaixão se produz de modo diferente da

virtude da justiça, pois enquanto nessa última o homem luta para não causar dano a

outrem ou impede um ato injusto, na virtude da caridade o homem é levado a ajudar

alguém. Livremente o homem se encarrega de estender sua mão a outro que sofre e tirar

ou pelo menos tentar tirá-lo de qualquer situação que lhe traga risco ou então amenizar

seu sofrimento de alguma forma. Essa participação no sofrimento do outro é direta, até

mesmo podendo ser conceituada como instintiva e visa sempre unicamente o bem

alheio.

Lembrando sempre, que tal atitude deve estar destituída de interesse pessoal,

pois até na caridade pode existir algum interesse. Aquele que ajuda com o intuito de

elevar-se perante os outros ao ajudar a pessoa que sofre não está sendo caridoso em sua

ação, nem mesmo aquele que faz a caridade com a intenção de ganhar grandes méritos

no “céu”, ou seja, ser salvo não está sendo caridoso. A atitude deve sempre, tanto na

166 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.148 167 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.150 168 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.159

88

virtude de justiça como na virtude de caridade ter como fim o outro, aquele que sofre ou

aquele que quer se livrar de um mal qualquer. Essa dor que o outro sente é a motivação

da caridade, é por sua causa que o homem age. Ele não sente essa dor, sabe que não é

sua, mas de alguma forma ela se torna sua e por isso a felicidade ou o bem estar do

outro lhe é tão importante e também o fim a que essa atitude se destina.

Aqui se abre um pequeno atalho para a explicação metafísica que em breve

veremos. Schopenhauer não vê de maneira fácil a explicação para esse fenômeno. Em

relação a ele, diz: Isto pressupõe, porém, que eu tenha me identificado com o outro numa certa

medida e, consequentemente, que a barreira entre o eu e o não-eu tenha sido,

por um momento, suprimida. Só então a situação do outro, sua precisão, sua

necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus.169

Assim termina a explicação de Schopenhauer sobre a compaixão e de suas duas

virtudes que são o fundamento de todas as outras virtudes verdadeiras. Mas ainda é

preciso mostrar a base para todas essas reflexões que é apenas uma: provar a existência

da compaixão.

2.2.2 Da real existência da compaixão

Como Schopenhauer pretende provar a existência da compaixão? A resposta a

essa pergunta só pode ser uma: com base na experiência. Dessa forma, analisando

vários fatos cotidianos e históricos, nosso pensador irá tentar demonstrar que tais fatos,

os genuinamente morais, só podem ter origem na compaixão, nada mais poderia ser

responsável pela existência dos mesmos: A verdade agora expressa de que a compaixão á a única motivação não

egoísta e a única genuinamente moral é, de um modo estranho e quase

incompreensível, paradoxal. Quero por isso tentar mudar as convicções do

leitor, demonstrando que ela é confirmada pela experiência e pelas

expressões do sentimento geral humano.170

Através de exemplos simples Schopenhauer irá demonstrar que apenas a

compaixão pode fundamentar um ato genuinamente moral. Por exemplo: se alguém

deixa de matar outrem por não querer ser preso, por não querer ter má fama, por seguir

um imperativo categórico tal ato não teria realmente um valor moral. Somente aquele 169 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.163 170 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.165

89

que deixa de matar outrem, pois pensa nele e toma suas dores por maior que seja o ódio

que contra ele existe, está de fato, sendo moralmente genuíno.

Em relação ao exemplo dado acima, tomamos a liberdade de transcrever aqui

uma história apresentada por Montaigne em seu livro Ensaios que se encaixa

perfeitamente nessa descrição de uma genuína atitude moral: O Imperador Conrado III, assediando o duque da Baviera, não consentiria em

deixar sair da cidade senão as mulheres dos fidalgos que ali se encontravam.

Comprometera-se a respeitar-lhes a honra, mas à condição de saírem a pé e

levando apenas, com elas, o que pudessem carregar; e recusara-se a atenuar

tais condições, por mais humilhantes que fossem as satisfações oferecidas

pelo inimigo. Atentando unicamente para ditames do coração, lembraram-se

as mulheres de levar às costas os maridos, os filhos e o próprio duque.

Impressionou-se o Imperador a tal ponto com essa prova de coragem que

chegou a chorar de emoção. O ódio mortal que votara ao duque, cuja

desgraça desejava, tornou-se menos violento e a partir desse momento ele o

tratou, e aos seus, com humanidade.171

Tal história encaixa-se perfeitamente no pensamento de Schopenhauer.

Interessante notar como as mulheres citadas apelaram para o “coração” do imperador

Conrado oferecendo-lhe um espetáculo que despertaria nele o perdão, o que de fato

aconteceu. Diante dessa história ou de alguma outra parecida, a pergunta de

Schopenhauer seria a seguinte: Que outro sentimento poderia despertar essa atitude no

imperador que não a compaixão? Como poderiam as mulheres sabiamente usaram essa

estratégia que apela para o coração, ou seja, para a compaixão, se ela não existisse, se

ela fosse apenas fruto de uma educação ou algo reservado apenas para uma parcela dos

homens do planeta? Assim a compaixão é algo real, que de fato existe e no coração de

todos: ninguém está isento dela e quando está não é, como o próprio Schopenhauer

afirmou e voltara a afirmar em seguida, digno de ser considerado humano.

Outra prova não só de que a compaixão é a única fonte do ato moral, mas como

também real é o sentimento que toma o homem diante de um fato terrível provocado

pela crueldade que é o oposto da compaixão: “Podemos desculpar qualquer outro delito,

mas não a crueldade” e o motivo disso é que ela é o extremo oposto da compaixão.

Assim não apenas examinando os fatos do cotidiano, mas também a si mesmo,

Schopenhauer conclui a existência da compaixão.

171 Montaigne M. Os ensaios, In: “OSPENSADORES” trad. Sergio Milliet, Nova Cultural, Os Pensadores, São Paulo: 1996 p. 33 – 34

90

Nada segundo Schopenhauer pode nos deixar tão estarrecidos quanto a

crueldade. Nada é mais desumano do que uma atitude cruel. Note-se bem a palavra

“desumano”, indicaria que a compaixão é algo inerente à realidade humana, parte

integrante do homem em todos os lugares. A compaixão não necessita ser ensinada, ela

é pressuposto da vida humana não dependendo da vontade de quem a sente. Mas

deixemos ainda mais explicito esse pensamento. Schopenhauer cita uma história na qual

uma mãe havia torturado e depois assassinado seus próprios filhos: Quando tomamos conhecimento de um ato muito cruel – como, por exemplo,

o que agora mesmo os jornais noticiaram de uma mãe que assassinou o filho

de quinze anos derramando-lhe óleo fervente na garganta e o filho mais novo,

enterrando-o vivo; ou o que nos foi comunicado da Argélia: que, depois de

uma briga e uma luta casuais entre um espanhol e um argelino, este, sendo

mais forte, arrancou o maxilar inferior daquele e o levou como troféu,

deixando o espanhol vivo - , então, seríamos tomados de horror e

exclamaríamos: “Como é possível fazer algo desse tipo?” Qual seria o

sentido desta pergunta.172

O sentido seria apenas um: a falta de compaixão de tais pessoas. Como alguém

poderia ser tão desprovido de compaixão a ponto de cometer algo desse tipo? Nesse

momento, ao deparar-se com tal noticia ou ver tal fato acontecer, o homem não pensa

como alguém pode ser, por exemplo, tão desprovido de fé, tão alheio ao imperativo

categórico ou não se preocupar em ser, por exemplo, preso ou rejeitado pela sociedade.

Nesse momento é a desumanidade, a crueldade que nos assusta, que nos faz lembrar da

compaixão uma vez sentida e que nos remete às nossas experiências pessoais com ela

não nos deixando aceitar tamanha malvadez. Caso a compaixão não existisse, jamais

sentiríamos tamanho repúdio ou até mesmo ira contra alguém que cometesse atos desse

tipo.

Também devemos lembrar que a compaixão se estende não apenas ao homem,

mas também a todos os seres vivos. A compaixão não possui limites, assim, um homem

pode senti-la em relação a um cachorro que sofre ou poderá sofrer qualquer tipo de

incidente e tal exemplo é citado por Schopenhauer:

172 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.167

91

A compaixão para com os animais liga-se tão estreitamente com a bondade

do caráter que se pode afirmar, confiantemente, que quem é cruel com os

animais não pode ser uma boa pessoa173

Aqui há mais uma diferença entra a moral kantiana e a moral de Schopenhauer.

Em Kant a moral se volta apenas para os seres racionais (homens), em Schopenhauer a

moral que não se volta para os animais, na realidade, não pode ser vista como genuína.

A ausência de compaixão para com os animais, aos olhos do autor, só pode ser vista

como algo repulsivo, fruto do judaísmo: A suposta ausência de direito dos animais, a ilusão de que nossas ações em

relação a eles sejam sem significação moral, ou, como se diz na linguagem

moral, que não há qualquer direito em relação aos animais, é diretamente

uma crueza e uma barbárie revoltantes do Ocidente, cuja está no judaísmo.174

Com essa verdadeira defesa dos animais já é possível começar a identificar as

bases para a compaixão e sua possível explicação metafísica no pensamento do filósofo.

Schopenhauer já disse que na compaixão o homem é tomado por algo que lhe faz

participar do sofrimento do outro. Mesmo sabendo que ele não é aquele que sofre, o

compassivo sente de alguma forma a dor do outro e identificando-se com ele age com

justiça ou caridade. Mas frente a isso poderíamos nos perguntar como um homem pode

se identificar com um animal. Mesmo existindo um sofrimento qualquer no animal qual

a semelhança, ou melhor, o que faz com que o homem identifique-se com o animal? As

respostas a essa pergunta encontrar-se-ão inevitavelmente na metafísica. É preciso

dirigir-se à essência da vida e nela encontrar o motivo pelo qual o animal pode ser visto

como merecedor de compaixão: Tem-se de estar cego em todos os sentidos ou cloroformizado pelo “foetur

judaicos” para não reconhecer que o essencial e o principal é o mesmo no

animal e no homem, e aquilo que os distingue não está no primário, no

princípio, no arcaico, no ser íntimo, no âmago de ambos os fenômenos, que,

como tal, tanto num como noutro, é a vontade do indivíduo, mas somente no

secundário, no intelecto, no grau da força do conhecimento, que no homem,

através da faculdade acrescentada de conhecimento abstrato, chamada de

razão, é incomparavelmente mais alto, mas verificado apenas graças a um

maior desenvolvimento cerebral, portanto graças a diferença somática de

173 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.179 174 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.175

92

apenas uma parte, o cérebro, e especificamente em relação à sua

quantidade.175

Assim não há nenhuma diferença essencial entre o homem (racional) e o animal

(irracional), pois ambos são constituídos com base na mesma fonte: a vontade. De

alguma maneira é possível entender isso e o fruto desse entendimento é a compaixão

que se manifesta espontaneamente frente ao sofrimento de um irracional. O homem não

possui um lugar de destaque frente a outros seres que com ele vive sobre a terra, tal

visão só pode ser fruto do equívoco das religiões que insistem em negar a igualdade

entre os seres dando ao homem um lugar de destaque.

Também temos de comentar que a compaixão para com os irracionais acontece

da mesma forma com a qual ela acontece para com os homens. Não é necessário

esforçar-se para compadecer-se dos irracionais. Da mesma forma que nos

compadecemos frente ao sofrimento de um homem, isso também acontece frente ao

sofrimento de um irracional. Schopenhauer cita uma história protagonizada por um

homem chamado Wilhelm Harris como exemplo: Em sua viagem, publicada em Bombaim em 1838, conta ele que, depois de

haver matado seu primeiro elefante, que era fêmea, e procurado o animal

morto na manhã seguinte, todos os outros elefantes tinham fugido do lugar,

só o filhote do animal morto tinha passado a noite ao lado da mãe morta;

esquecendo todo o medo, este veio então de encontro ao caçador, com a mais

viva e clara demonstração de sua dor inconsolável, e enlaçou-o com a sua

pequena tromba para pedir socorro176

Não é necessário dizer que o iniciante caçador desistiu de se tornar um

experiente caçador depois disso. Segundo as palavras de Schopenhauer o mesmo

homem diante de tal cena sentiu um terrível remorso e jamais voltou a caçar.

Resumindo: a compaixão que se volta para um homem é a mesma que se volta para um

animal (irracional) com toda a certeza. É interessante notarmos que a compaixão que

existe para com os irracionais é uma espécie de ponte que nos leva ao verdadeiro

conhecimento do mundo, ao entendermos e visualizarmos a existência da compaixão

pelos irracionais, nossos preconceitos em relação a eles caem, nos vemos perdidos em

uma espécie de ilusão aumentada pelo infeliz moralismo judaico-cristão que tanto

175 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.177 176 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.180

93

engana e cria valores que apenas podem estar baseados para a diminuição dos animais

frente ao homem em uma coisa: no egoísmo.

De certa forma, todos nós sabemos que os animais são dignos de compaixão e de

que ela surge em nós quando vemos esses nossos irmãos, os irracionais, sofrerem. Mas

o egoísmo humano nos faz apelar para a criação de sistemas morais ou religiosos que

tentam de todas as formas rebaixar os animais para mais tranquilamente nos

aproveitarmos deles. Assim, o homem não enxerga o irracional como um ser totalmente

diferente dele, mas sim, quer que o mesmo o seja para dele poder se aproveitar.

Vejamos as palavras de Schopenhauer nesse momento importantíssimo de sua

dissertação: Então os filósofos, inquietados por sua consciência intelectual, tiveram de

procurar apoiar a psicologia racional por meio da empírica e, por isso,

esforçar-se por abrir entre o homem e o animal um abismo monstruoso, uma

distância incomensurável, para apresentá-los, a despeito de toda evidência,

como diferenciados já no fundamento.177

Nessas palavras de Schopenhauer acima, vê-se claramente que a compaixão é

algo tão verdadeiro, que os homens se propuseram devido ao seu egoísmo, tentar retirá-

la de si mesmos através de construções de sistemas filosóficos que de alguma forma

rebaixassem os animais. Depois, eles, com a consciência “tranquila”, poderiam tornar a

ver os animais como inferiores e assim se aproveitarem deles como bem quisessem.

Impressionante a força que a compaixão exerce no homem e como ela é capaz de

produzir tamanhos efeitos nele das mais diversas formas. Negar a compaixão é negar a

si mesmo e consequentemente a verdade de que em todos os seres possuem uma mesma

identidade da qual não se pode fugir. O grande problema é que aceitar essa realidade

seria algo totalmente diferente do que aquilo que foi proposto pela moral judaico-

cristão, como por exemplo, a vida após a morte, a superioridade dos racionais, punição,

castigo e assim por diante.

Entenderemos melhor quando analisarmos a metafísica de Schopenhauer, mas já

podemos adiantar para melhor explicarmos a compaixão, que ela se volta para todos os

seres, pois ela está relacionada com a essência primeira que forma todos esses seres. No

mundo dos fenômenos que só conhecemos através da experiência e da causalidade

inata, não há possibilidade de encontramos uma explicação para ela. Podemos apenas

através do empirismo conhecer a sua existência, mas não no que ela se funda. Se 177 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.175

94

realmente nos debruçarmos sobre os motivos que fazem com que a compaixão exista,

toda a moralidade Ocidental e os valores, os mais diversos, desabarão por completo. Tal

posicionamento é complexo e sobre ele Icilio Vecchiotti comenta: Um dos motivos característicos da polemica de Schopenhauer, nesta como

nas outras obras, é a extensão do principio da caridade aos animais, contra

um costume que tem na sua origem a instrumentalização do animal e na

recusa de qualquer direito que, segundo ele, seria próprio do judaísmo:

também o cristianismo herdou, em algumas de suas formas – de acordo com

o nosso filósofo – essa característica da mentalidade judaica178

Assim, a compaixão que se estende aos animais é algo polemico, pois revela um

mundo que foi ignorado por séculos devido à cultura Ocidental alicerçada infelizmente,

segundo o autor, no judaísmo. Em outras religiões, as mais antigas da humanidade e

também mais conscientes da verdade do mundo, tal distinção não existe e os racionais e

irracionais diferem apenas na forma com a qual existem no mundo, mas não em

essência.

Depois de estudarmos a compaixão como o único e verdadeiro fundamento da

moral, basta agora tentarmos entender qual o motivo que faz com que Schopenhauer a

veja como um grande mistério. Sobre ela nosso pensador comenta: Este processo é, eu repito, misterioso, pois é algo de que a razão não pode dar

conta diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pelo

caminho da experiência. E, no entanto, é algo cotidiano. Todos o vivenciaram

muitas vezes em si mesmos, e até mesmo os mais duros de coração e egoístas

ele não foi estranho. Ele surge todos os dias, diante de nossos olhos, no

singular, no pequeno, em toda a parte onde, por um impulso direto, um

homem ajuda outro sem reflexão e o socorre e, às vezes, até mesmo coloca

sua vida em evidente perigo por alguém que ele vê pela primeira vez, sem

pensar mais, logo que vê a grande necessidade e o perigo do outro179

Nas palavras acima vemos dois obstáculos para a compreensão da compaixão. O

primeiro deles refere-se à nossa razão que não teria como encontrar o seu fundamento.

E o segundo ao próprio ser humano que, em sua esmagadora maioria é egoísta. Mas

porque o homem é egoísta? Por que a nossa razão não possui capacidade de, através do

empirismo, encontrar o fundamento da moral? Percebemos que as questões agora são

outras e necessário será respondê-las para encontrarmos a fundamentação da própria

178 Vecchiotti, Schopenhauer. Rio de Janeiro, edições 70, rio de Janeiro,1986: p. 57 179 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.163

95

compaixão, na qual descobriremos que a mesma se manifesta como negação da ilusão

da individualidade dos seres, ou seja, como negação da vontade, o ponto máximo de

toda a ética de Schopenhauer e a própria finalidade de todo o pensamento de

Schopenhauer. Sendo assim analisemos agora rapidamente os dois lados que o mundo

possui, para Schopenhauer.

Mas antes de estudarmos o mundo como representação e como vontade, seria

importante fazermos algumas observações sobre tudo o que foi dito até aqui.

Primeiramente devemos concluir que o sofrimento humano possui uma importância

enorme em todo o pensamento de Schopenhauer. É ao seu redor que seu pensamento

gira e é nele que seu pensamento encontra a sua primordial motivação. A compaixão

dessa forma não poderia deixar de ter um papel importantíssimo no mundo, pois é a

compaixão responsável, como vimos, pelas virtudes da caridade e justiça, isto é, a

compaixão á a grande responsável por tudo aquilo que existe de “bom” no mundo, sem

ela não existiria nada que pudesse ser considerado bom e aquilo que é bom só o é, pois

interfere diretamente no sofrimento humano diminuindo-o ou acabando com ele.

Mesmo a negação da vontade que é o ápice da ética Schopenhaueriana não é capaz de

gerar atitudes boas em relação a outras pessoas, ou seja, justiça e caridade, dessa forma,

no mundo, aquilo que é bom só o é por estar motivado pela compaixão. Nenhum outro

meio é possível que não a compaixão, é apenas através dela que a chamada bondade e

tudo aquilo que venha a amenizar o sofrimento humano pode existir, agora vamos

entender como o mundo funciona segundo Schopenhauer e consequentemente entender

ainda mais a compaixão e sua motivação.

2.3 A Representação e a Vontade

Segundo Schopenhauer o grande mérito de Kant é a distinção entre o fenômeno

e a “coisa em si”.180 No fenômeno ele reconhecerá a ilusão e na “coisa em si” a vontade,

o fenômeno é o Véu de Maia do qual o homem deve se libertar. Tal pensamento já se

encontraria na doutrina dos Vedas e dos Puranas não sendo, na interpretação de

Schopenhauer de originalidade kantiana; o mundo no qual vivemos nada mais é do que

ilusão e deve ser encarado como um sonho inconsistente e inessencial.

180 Schopenhauer A. Crítica da Filosofia Kantiana, In: “OS PENSADORES”trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Nova Cultural, Os Pensadores, São Paulo, 1997 p. 120

96

Schopenhauer é um grande admirador de Kant como já sabemos, dizendo-se até

mesmo seu sucessor quando em seu pensamento assim como Kant estabelece o mundo

como fenômeno e “coisa em si”, representação e vontade respectivamente. Para ele

Kant teria sido umas das mais brilhantes mentes que o mundo já conheceu. Toda essa

admiração se deve ao fato de Kant ter escrito sua obra prima a Crítica da razão pura, e

desenvolver nela a grande descoberta da metafísica que daria a Schopenhauer parte da

solução frente ao grande enigma do mundo: a Estética Transcendental.

A Estética Transcendental é segundo Kant, o meio pelo qual as sensações se

tornam percepções. Todo o “material” que chega até o ser humano seria dado por duas

simples formas: espaço e tempo. Assim, espaço e tempo não são coisas percebidas, mas

sim formas de perceber. Dentro desse sistema, Kant afirma que o “em si” do universo

jamais poderia ser conhecido. Aprendemos e tomamos contato com o mundo através de

uma maneira já determinada por princípios a priori de nossa razão. A Estética

Transcendental, responsável por transformar sensação em percepção, juntamente com a

Analítica Transcendental, responsável por fazer das percepções conhecimento, são uma

espécie de “filtro”, que coordena nosso saber e fazem-nos ver e entender o fenômeno,

mas não a causa desse fenômeno que permanecerá para sempre um grande enigma.

Assim tudo o que vemos, sentimos, aprendemos, entendemos está relacionado ao

fenômeno. O mundo é o fenômeno do qual jamais conheceríamos a causa.

Diferentemente de Hume, Locke e outros pensadores que defendiam as

sensações como únicas causadoras de nosso conhecimento, Kant afirmará que apesar de

todos nossos conhecimentos realmente virem das sensações, a razão jamais possuiria

um papel passivo diante delas. O próprio homem possui inerente a si mesmo, o meio

pelo qual o conhecimento surgirá nele.

Schopenhauer vê nessas afirmações kantianas a sabedoria que até então ninguém

havia encontrado, e fará dela uma das suas principais fontes de pensamento. Unindo a

Estética Transcendental ao Budismo e hinduísmo, por exemplo, dos quais nunca se

afastará, Schopenhauer afirmará que o mundo nada mais é do que mera representação,

simples fenômeno e fará dele uma total ilusão. Mais uma vez, valendo-se das alegorias

Budistas e Hinduístas, nosso pensador verá no mundo a ilusão da qual poucos se

desvencilharam. O mundo é o já citado “Véu de Maia” que a todos engana e o véu

rasgado pelo Gênio, faz com que sua causa, a vontade, apareça.

Diante dessa conclusão a idéia de individualidade se acaba, pois ela não existe, é

apenas mais um fenômeno, ou como prefere Schopenhauer, uma ilusão criada pela

97

vontade para melhor se objetivar. Eis as palavras iniciais de Schopenhauer no primeiro

livro de O mundo como vontade e como representação: “O mundo é minha representação.” – Esta é uma verdade que vale em relação

a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à

consciência refletida e abstrata e de fato o faz. Então nele aparece a

clarividência filosófica. Torna-se claro e certo que não conhece sol algum e

terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca

uma terra.181

A existência do mundo dependeria do homem. Poderiamos resumir dizendo que

para Schopenhauer não existe mundo sem homem. O fenômeno aparece apenas com o

relacionamento entre ambos. Eis o esclarecimento de Schopenhauer sobre esse assunto: Verdade alguma é, portanto, mais certa, mais independente de todas as outras

e menos necessitada de uma prova do que esta: o que existe para o

conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão somente objeto em relação ao

sujeito nenhuma verdade é, portanto mais certa, mais absoluta, mais evidente

do que esta: tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo

inteiro apenas é objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa

palavra, representação.182

Como dito acima para Schopenhauer esse foi o grande mérito de Kant, o de ter

separado o “em si” do fenômeno. Sobre essa visão de Schopenhauer da Estética

Transcendental kantiana, José Thomaz Brum irá comentar: Em relação à vontade, que é em si e sem razão suficiente, o individuo é

“fenômeno”, uma aparição do intelecto sob forma de individuação. Os

indivíduos, “fenômenos passageiros”, nascem e morrem. Mas a natureza, que

se interessa apenas pela conservação da espécie, é “indiferente” a esse

processo. No “fluxo perpetuo da matéria” que constitui a vida, o individuo é

alguma coisa de irreal. Devemos nos dar conta de que Schopenhauer,

radicalizando o idealismo transcendental kantiano, concebe o mundo

fenomênico como um sonho do intelecto humano183

Thomaz Brum usa a expressão “radicalizando”, já que ao que tudo indica tempo

e espaço assim como o próprio mundo não eram apenas ilusões, miragens, como

Schopenhauer afirmava, Essa interpretação polêmica de Schopenhauer da filosofia

kantiana será essencial para a formulação de sua própria filosofia. O mundo para

Schopenhauer, como visto acima, nada mais é do que uma miragem que existe apenas 181 Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 43 182 Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 43 183 Brum Thomaz José O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro: 1998 p. 34.

98

para o intelecto humano, o mundo está em nós, em nossa forma de conhecer e não existe

em si mesmo, sem sujeitos para conhecer o mundo o mesmo não existiria. Podemos ver

essa “visão radical” sobre a Estética Transcendental de Kant, quando Schopenhauer em

O Mundo como vontade e como representação, cita uma passagem sem mencionar onde

a encontrou e que teria semelhança com outras passagens facilmente encontradas nos

livros sagrados dos Vedas ou Puranas. Eis o texto: Trata-se de maya, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais,

deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é,

pois assemelhasse ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomado a

distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele

toma como uma serpente.184

Mais adiante ele continua: “Sóis e planetas sem olhos para os verem, sem uma

inteligência para os conhecer, são palavras que se podem pronunciar, mas que

representam qualquer coisa tão inteligível como “bocado de ferro madeira”.

A questão é que Schopenhauer toma como ponto de partida para o conhecimento

essa noção de representação que necessita da interação imediata entre os homens e os

objetos para poder existir.185

A noção de conhecimento em Schopenhauer, assim, está ligada à noção de

representação que pressupõe de alguma maneira o envolvimento simultâneo de sujeito e

objeto e que nos faz chegar a uma conclusão curiosa: ao pensarmos no sujeito estamos

pensando imediatamente no objeto e ao pensarmos no objeto estamos pensando

imediatamente no sujeito. Seria impossível pensar em apenas um, ou seja, só no sujeito

ou só no objeto. Sobre isso, Jair Barboza afirmará: “Estamos diante de um amálgama

teórico que nenhum corte, nenhum raciocínio lógico consegue. Onde começa o sujeito

termina o objeto; e onde começa o objeto termina o sujeito”. 186

A representação não revela sua essência o que a faz permanecer uma espécie de

enigma, uma ilusão propriamente dita, algo enganoso, mas em todo o processo de

conhecimento o sujeito é ativo e não passivo, pois possui a priori três formas puras de

184 Schopenhauer A. O mundo como vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 49 185 Para Zair Barboza isso se confirma na frase inicial de o mundo como vontade e como representação “O mundo é minha

representação”, Nela Schopenhauer estaria querendo desviar-se de duas formas tradicionais, mas diferentes de entender o

conhecimento que seriam o idealismo e o realismo, no segundo o ponto de partida é o objeto e no primeiro o ponto de partida é o

homem nessa o homem origina o objeto e naquela o objeto origina o homem. Schopenhauer discorda de tais teorias e estaria

pretendendo combatê-las. 186 Barboza Jair: a decifração do enigma do mundo, Editora Moderna, São Paulo: 1977 p. 29.

99

conhecimento, formas inatas, que são o tempo, o espaço e a causalidade que juntas

formam o chamado princípio de razão que figura como tema da tese de doutorado do

pensador. Mas o começo do conhecimento se dá com o corpo humano, de nada

adiantaria uma cabeça sem corpo para sentir, olhos para ver, ouvidos para ouvir e assim

por diante, sem corpo não haveria conhecimento algum, tudo seria estranho e sem

nenhuma certeza, assim entendemos que as simples sensações em si nada são não

podem nos dar nenhum tipo de conhecimento, é nossa razão ativa que trabalha essas

sensações e nos dá o mundo, ou seja, faz surgir a representação, sem as formas inatas do

conhecimento tais sensações seriam inúteis. O mundo inteiro então é apenas intelectual,

existe na cabeça das pessoas e não em si mesmo, se todo esse processo de conhecimento

fosse de um momento para outro retirado de todos os seres humanos e também dos

irracionais o mundo desapareceria.

Mas se por um lado o mundo é representação, por outro ele é vontade e a

vontade é o “em si” do mundo tido por Kant como transcendente e consequentemente

inatingível.

Mas em um mundo cuja essência é uma vontade irracional e incontrolável só

pode reinar a dor sem fim. Schopenhauer é um pessimista, talvez o primeiro grande

pessimista da história da filosofia.

Seu pessimismo, não é apenas o desabafo de alguém decepcionado com a vida

por não conseguir alcançar seus objetivos ou por ter sido vítima de alguma tragédia

pessoal, mas sim, um pensamento alicerçado em uma coerência profunda que vai desde

a idéia de representação e vontade que começamos a analisar e, ao contrário do que

dizem, não é apenas fruto de uma época difícil, mas de uma análise minuciosa não só da

história e do homem, mas também da vida em todas as suas formas. Com certeza é esse

o motivo que faz de Schopenhauer um filósofo que, na maioria das vezes, é esquecido

ou rejeitado. Schopenhauer nos frustra em cada uma de suas palavras, com ele

retornamos à realidade da vida de maneira radical. Schopenhauer apresenta um mundo

sempre indiferente ao nosso desejo, ele não nos ajuda, não nos dá nenhuma palavra de

alento. O próprio Schopenhauer irá nos dizer de uma maneira lógica o motivo do

desprezo que sofreria dizendo: Na maioria das vezes, entretanto, fechamos os olhos para o conhecimento

amargo como um remédio, de que o sofrimento é essencial à vida e, por

100

conseqüência, não penetra em nós do exterior, mas cada pessoa porta em seu

interior a sua fonte inesgotável187.

Mas que fonte seria essa que faz da vida um sofrimento sem fim? Essa questão é

simples de ser respondida: a vontade. A vontade é a grande fonte de sofrimento de todos

os seres e é ela que faz o mundo ser o inferno que é voltando todos contra todos em um

egoísmo sem fim e fazendo de todos eternos insatisfeitos. Todos trazidos ao mundo,

“tirados” do nada, tendo como essência a vontade sem fim que a tudo e todos chicoteia

sem piedade através de desejos ilimitados. A vontade una torna-se uma multiplicidade

de indivíduos na representação apenas e cada individuo é um sofredor corroído pela

insatisfação e pelos ataques de outros sofredores como ele. Tal é a tragédia da vida em

Schopenhauer, o espetáculo de horror encontrado em cada ser que perdido nesse inferno

se digladia contra tudo e contra todos. E enquanto o retorno à inconsciência, ou seja, a

morte, não vier, só há uma saída para tanta dor: a negação da própria vontade, pois

somos não só criação dessa vontade como também a própria vontade objetivada em

fenômenos dos mais variados. Assim, a essência intima de tudo o que existe é essa

mesma vontade, não há diferença substancial em nada. Homens, animais, vegetais e

assim por diante, são uma única coisa. Ainda essa vontade é cega e nunca deixa de ser

vontade. Não existe nenhum “objetivo maior” no mundo, nenhuma regra ou lei superior

que o dirige. Tudo é e será eternamente um caos no qual o sofrimento é a única “regra”

a ser observada por todos aqueles que realmente desejam conhecer de fato a verdade.

Negar o sofrimento do mundo seria negar a própria vida e ela, a vida, é o grande

problema a ser resolvido por isso nos surge a negação da vontade como única saída, ou

seja, a negação da própria vida, a negação de si mesmo. Ainda que a maioria ou todos

os nossos desejos fossem satisfeitos restaria ainda assim a dor, isto é, o tédio viria até

nós e mais uma vez nos faria sofrer. Depois de um desejo satisfeito o tédio aparece e

domina o homem até que outro desejo apareça e o lance no sofrimento outra vez, dessa

forma, sem paz alguma, como já dito, o homem possui dentro de si a fonte inesgotável

da sua dor que jamais cessa ou lhe dá uma trégua qualquer. Sempre o desejo

inesgotável, a vontade arrasadora nos domina fazendo da vida frustração, tédio, desejo

sem trégua, ou seja, um sofrimento que não possui fim, que é o grande senhor da vida e

de tudo e de todos. O que podemos entender sobre a vida na filosofia de Schopenhauer é

que toda a vida é sofrimento, é dor sem limite já que essa mesma vida é vontade sem

187

Schopenhauer A. O mundo como vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 410

101

limite. Como se não bastasse a guerra que o indivíduo trava consigo mesmo, com sua

própria essência ainda existe a guerra que ele trava com os outros homens como ele,

perdidos no labirinto do egoísmo, cada um é um inimigo em potencial quando formada

a guerra de todos contra todos e se são “bons” o são pelo egoísmo e não pela bondade

mesma, o Estado, como já vimos, é a grande focinheira a administrar toda essa barbárie

que sem ele aconteceria.A vida nada mais é do que vontade que se alimenta de si

mesma.Sendo assim em qual conclusão chegamos? Depois de analisarmos todo esse

pensamento amargo e essa conclusão da vida ainda mais amarga?A conclusão somente

poderia ser uma: seria melhor que tudo o que existe não existisse; seria melhor que não

tivéssemos nascido que tivéssemos continuado no nada da inconsciência, ou melhor,

que ninguém tivesse nascido a inexistência no pensamento de Schopenhauer é preferível

a existência. Tanto é assim que o pensador afirma literalmente ser o ato da procriação

uma traição contra a própria raça, ninguém em sã consciência teria o desejo de ter

filhos, ou melhor, de aprisionar algum ser nesse mundo e vida de martírios inesgotáveis,

Assim a negação da vida sexual também aparece na Filosofia de Schopenhauer

como necessária e como meio de evitar ainda mais sofrimentos. Não poderia haver outra

conclusão sobre a procriação em um pensamento que vê o mundo de maneira tão

terrível. Seria possível dizer que Schopenhauer se compadece dos seres antes mesmo

que eles venham ao mundo. Na negação da vontade está a salvação dos seres antes

mesmo de eles terem nascido, só a negação da vida por completo é aquilo que levaria a

humanidade ao aniquilamento absoluto e finalmente à paz perpetua.

Em sua obra capital, O mundo como vontade e como representação, ele irá nos dizer

que aquilo que Kant definia como “em si” incognoscível, é a vontade. Tudo o que existe

é obra de uma vontade cega, eternamente insatisfeita que se alimenta de si mesma nas

mais variadas formas. Schopenhauer explica: Coisa em si, entretanto, é apenas Vontade. Como tal não é absolutamente

representação, mas Toto genere diferente dela. É a partir daquela que se tem

todo objeto, fenômeno, visibilidade, objetividade. É o mais íntimo, o núcleo

de cada partícula, bem como do todo. Aparece em cada força da natureza que

faz efeito cegamente, na ação ponderada do ser humano: ambas diferem, isso

concerne tão somente ao grau da aparição, não à essência do que aparece.188

188 Schopenhauer A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 168 - 169

102

Somos então não só criação dessa vontade como também a própria vontade

objetivada em fenômenos dos mais variados. Assim, a essência intima de tudo o que

existe é essa vontade, não há diferença substancial em nada. Homens, animais, vegetais

e assim por diante, são uma única coisa. Ainda essa vontade é cega e nunca deixa de ser

vontade. Não existe nenhum “objetivo maior” no mundo, nenhuma regra ou lei superior

que o dirige. Tudo é e será eternamente um caos no qual o sofrimento é a única “regra”

a ser observada por todos aqueles que realmente desejam conhecer de fato a verdade.

A cada desejo satisfeito, sobrevém-nos o tédio e depois dele mais uma vez uma

nova vontade que nos arrasta, irrevogavelmente, para um novo sofrimento. A vontade

não cessa. A vida seria um ciclo interminável de desejo, sofrimento, tédio e novos

desejos atormentadores que existem sem nenhuma razão de ser; de uma forma ou de

outra, a paz jamais seria possuída por nós. Essa vontade manifesta-se no mundo dos

fenômenos, mesmo sendo una, de diferentes formas. É ela que está em todo tipo de

vida, desde uma planta até o homem e assim, dividida e sendo vontade sempre

insatisfeita, causa a guerra de todos contra todos, o sofrimento inesgotável e a dor sem

fim. Eis a fonte do egoísmo e das motivações antimorais no homem.

Não existe nenhum Deus, nenhuma justiça, sobrevivência de consciência após a

morte, ou seja, não há nenhuma esperança de qualquer tipo de redenção que não seja o

nada e a negação de si mesmo. A negação da vontade, em todos os seus aspectos, é a

chave para encontrarmos esse nada salvador do qual o universo jamais deveria ter saído

se é que um dia esse nada existiu. Eis as palavras de Schopenhauer: A salvação é algo completamente alheio à nossa pessoa, e aponta para uma

negação e supressão necessária à salvação dessa pessoa189

Com uma confessa admiração pelo Budismo, no qual vê a maior e mais perfeita

alegoria que já existiu sobre a vida, o universo e suas verdades, como também, a maior

e mais sábia religião que já existiu, sua negação da vontade encontra ainda mais vigor

em sua filosofia. A lenda de Sidarta Gautama, o príncipe que abandonou absolutamente

tudo, se tornou um asceta e se desvencilhou das ilusões do mundo e de todos os desejos,

alcançando assim a paz do Nirvana e tornando-se o Buda. É nessa alegoria perfeita que

traz em si as regras para nossa própria “salvação”. Tanto em relação à luta contra a

vontade como também, como já vimos, em relação à luta contra a ilusão criada pela

vontade que seriam o fenômeno da individualidade, tempo, espaço, etc. Poderíamos

dizer que o pensamento de Schopenhauer é quase que o próprio Budismo sendo 189 Schopenhauer A. O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 414

103

afirmado de uma maneira laica, se é que tal afirmação seria possível. Não apenas pela

compaixão, mas também pela negação da vontade, podemos encontrar atos virtuosos

como os atos dos “santos”, por exemplo, que foram “santos” por negarem a vontade

mesmo que de forma inconsciente, a misericórdia, o perdão nada mais são do que

negação da vontade.

Em um mundo criado por uma vontade cega, irracional e não direcionada a nada,

o sofrimento é o grande imperador de todos os seres. O homem, objetivação mais

perfeita dessa vontade, teria a capacidade de se conhecer como sendo vontade, entender

seu “destino” eterno e trágico e, através de seu raciocínio, negar-se com o intuito de

acabar de vez com todo o sofrimento do mundo. Schopenhauer afirma: Salvação verdadeira, redenção da vida e do sofrimento, é impensável sem a

completa negação da Vontade até então cada um não passa dessa Vontade,

cujo fenômeno é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e

continuamente malogrado, o mundo tal qual exposto, cheio de sofrimento, ao

qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual190.

A vida assim, mais uma vez explicada, não é ruim por ter muitos problemas, ela

é ruim por ser o próprio problema. Mas apesar de Schopenhauer ter apresentado todo

esse pensamento como se o mesmo fosse totalmente original na filosofia, poderemos

encontrar em outros pensadores afirmações ou suposições bem parecidas com as dele.

Lembremo-nos dos Estoicos e Epicuristas, que, de uma forma menos radical, se é que

Schopenhauer pode ser visto como possuidor de algum radicalismo, também ofereceram

ao mundo um pensamento com regras de vida que exigem certa abstinência de desejos

ou que, pelo menos, tentam minimizá-los, fazendo o homem voltar-se apenas aos

desejos realmente úteis visando o não sofrimento. Que dizer então dos cínicos que se

abstinham de tudo, vivendo na mais profunda pobreza para se afastar dos males do

mundo? De uma maneira evidentemente diferente, mas nem por isso totalmente afastada

do pessimismo de Schopenhauer, tais pensamentos já apresentam desprezo ou

comedimento para com relação às vontades que o homem possui.

Mas é em David Hume que encontramos aquela que talvez possa ter sido uma

das maiores inspirações de Schopenhauer para a construção de todo seu sistema

filosófico. No livro Diálogos sobre a Religião Natural, Hume apresenta uma crítica

extremamente procedente em relação a todo tipo de crença em Deus. Talvez, pela

primeira vez na história da Filosofia, um pensador, e essa é nossa interpretação, afirma

190 Schopenhauer A. O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 503

104

que a crença em Deus é algo destituído de razão e levanta a possibilidade da

inexistência desse mesmo Deus. Nesse texto simplesmente extraordinário podemos

encontrar as seguintes palavras: Olhe para o Universo ao nosso redor. Que quantidade imensa de seres,

animados e organizados, sensíveis e ativos!Você admira essa prodigiosa

variedade e fecundidade. Observe, porém, mais de perto as existências

dotadas de vida, que são os únicos seres dignos de consideração. Como são

hostis e destrutivas uma para com as outras!Quão incapazes todas elas, de

prover à sua própria felicidade! Como são odiosas e desprezíveis aos olhos

do observador!Tudo isso não nos oferece senão a idéia de uma Natureza

cega, embebida de um grande princípio vivificador, que despeja de seu

regaço sua prole defeituosa e degenerada, sem qualquer discernimento ou

cuidado materno.191.

Se Hume tivesse afirmado que esse princípio vivificador ao qual se refere fosse a

vontade e não tivesse feito distinção entre “criaturas” e “criador”, que no caso seria esse

princípio vivificador, poderíamos ver nas palavras acima o melhor de todos os resumos

do pensamento Schopenhaueriano. Também não é difícil encontrar a fonte do ateísmo

de Schopenhauer nessas palavras, que, coloca o sofrimento do mundo, como o maior

argumento contra a existência de um Deus bondoso e que nos criou para a felicidade

eterna ou, até mesmo, passageira em uma vida finita.

Como apresentado a dor do mundo, o sofrimento dos seres e o caos do universo,

de alguma forma, já haviam sido mostrados por outros filósofos, mas nunca, tiveram

uma compreensão tão apurada, uma analise tão detalhada e uma aceitação tão profunda

como em Schopenhauer. Nunca houve uma acusação tão grave e detalhada contra a

vida; nunca a idéia da existência de um Deus foi mostrada de forma tão absurda e no

extremo da incoerência. Podemos dizer que Schopenhauer foi o filósofo que aplicou o

mais duro “golpe” em todo e qualquer tipo de otimismo que, para ele, nada mais poderia

ser do que uma piada de mal gosto.

Nosso filósofo simplesmente mergulha nessa visão pessimista da vida e a

estende a tudo e a todos. Todos sofrem! Não é apenas o homem o centro das atenções de

Schopenhauer. Não é raro vermos exemplos que mostrariam que o mundo é

essencialmente. O homem é a objetivação da vontade que mais sofre, pois é capaz de

conhecer pelo intelecto sua condição miserável e ainda se preocupar com todas as dores

que podem acontecer voltando seus olhos para o futuro incerto, ou então, sofrer pelo 191 Hume D. Diálogos sobre a religião natural, , Martins fontes, São Paulo,1992: p158 -159

105

passado, com traumas, vergonhas e lembranças ruins. Já os animais não possuem essa

consciência de si mesmos, vivendo apenas o presente, mas nem por isso, deixando de

sofrer.

Mas sendo o homem racional, ele também pode pensar e entender, como já

dissemos, a si mesmo e a sua situação de penúria interminável. Assim, através de seu

conhecimento é alcançada libertação da vontade, libertação essa que deve se estender a

tudo e a todos como o próprio filósofo nos diz: “O conhecimento, ao contrário, fornece

a possibilidade de supressão do querer, de redenção pela liberdade, de superação e

aniquilamento do mundo”. Schopenhauer não quer apenas o fim da dor de um

indivíduo, ele quer o fim do mundo, pois enquanto existir vida existirá a dor.

O Gênio, aquele que venceu o mundo, nada mais é do que aquele que vê por trás

das aparências do fenômeno, que vê através da grande ilusão da vida o “em si”, causa e

algoz de todo tipo de representação instável e caótica; é aquele que vê a vontade e nada

mais. Ele é capaz de vencer a si mesmo, ou seja, vencer a vontade até mesmo em seu

maior nível: a vontade de reproduzir-se. Ter filhos: o Gênio jamais cometeria esse crime

horroroso:

Afastando-se da vida por completo, suprimindo toda vontade em completo

ascetismo, alcançaria a paz, aquilo que, como vimos, foi chamado de Nirvana, em forma

alegórica pelos Budistas e Hinduístas. Tal luta de certo não é fácil, mas para nosso

pensador não impossível, somos como na alegoria de Bhagavad Gîtâ, Arjuna

desanimado na frente de batalha ao ver que deveria guerrear com seus próprios parentes,

mas mesmo que essa luta seja dolorosa, ela é, simplesmente, o único meio redenção.

Assim os “lamentos” de nosso autor sobre o mundo em nenhum momento

podem ser encarados como um protesto ou luta por um mundo melhor, pois o mundo é e

sempre será sofrimento, a única coisa que nos resta é negar a vontade e acabar com o

próprio mundo, com a vida vencendo assim o sofrimento. Quando Schopenhauer

denuncia os abusos cometidos contra os homens ou animais, sua intenção não é

despertar os homens para novas atitudes contrárias a esses abusos, mas sim lhes abrir os

olhos para a verdade do mundo e para seu sofrimento infinito, a saída é apenas uma:

acabar com a vida, pois ela é o problema a ser resolvido.

Mas como Schopenhauer descobriu o “em – si”, ou seja, a vontade?:

Esquecendo-se da representação e de tudo que lhe pertence, o homem faz parte do

mundo, ele é mundo, possui um corpo, então o enigma do mundo encontra-se nele. Por

fazermos parte do mundo é que podemos decifrá-lo, encontrar a sua essência verdadeira.

106

Experimentamos a realidade do mundo cotidianamente, a realidade do mundo é a nossa

realidade, investigando nós mesmos encontraremos a verdade, o nosso íntimo possui a

resposta, já a representação, simples Véu de Maia, nada pode nos dizer, mas somos

parte dessa mesma representação, temos dentro de nós o “em-si”, ou melhor, somos o

“em-si”. A verdade do mundo não submetida a representação está em nós. É por esse

modo que ele decifra o enigma, não partindo de fora, mas de dentro, distante das formas

de conhecer onde está o “em-si”, isto é, a vontade. Nosso corpo, não como

representação, mas como objetivação da vontade. Ele é única coisa que temos além da

representação, o conhecemos como representação e de forma imediata como vontade, se

nos perguntássemos: ‘O que somos?”A resposta é imediata: vontade. Todas as coisas

são vontade, por analogia chega-se a essa conclusão, não há motivo para não serem.

Essa vontade está além do fenômeno e é impassível, eterna. Schopenhauer estende a

tudo essa verdade. Tudo é apenas uma coisa: vontade objetivada e o homem é a mais

perfeita objetivação dessa vontade que não pode ser confundida com vontade humana

que nada mais é do que uma simples parcela dessa vontade.

2.4 A Explicação metafísica da compaixão Ao final de seu ensaio, Schopenhauer, como ele mesmo já havia dito,

apresentará mesmo sendo essa explicação desnecessária diante do que foi pedido, a

explicação metafísica do fenômeno da compaixão. É através dela que o autor tentará

entender como é possível a existência da compaixão, isto é, decifrar esse grande enigma

que se apresenta aos seus olhos e do qual como vimos resultam todas as virtudes

existentes no homem. Mais uma vez, ao inicio do suplemento, Schopenhauer defende

que a ética deve estar apoiada em algo demonstrável, segundo suas próprias palavras, ou

no mundo exterior ou na consciência, ao contrário de Kant, cuja moral repousa em um

simples conceito. Ainda aqui vemos a necessidade de criticar Kant para formular, ou

melhor, para explicar, o seu fundamento da moral. Schopenhauer afirma que a tarefa

exigida pela Sociedade Real Dinamarquesa já foi cumprida, ou seja, o fundamento da

ética já foi apresentado, como foi pedido em sua integralidade, ele é a compaixão, o que

será feito a partir daqui é a explicação metafísica desse mesmo fundamento, para

apresentar e provar a existência desse fundamento não seria necessária essa explicação

metafísica, mas como o próprio Schopenhauer afirma mesmo defendendo que o

fundamento da ética já foi apresentado: “Entretanto, vejo muito bem que o espírito

107

humano ainda não encontra aí o seu contentamento e repouso”.192Assim o que se segue

é a explicação da compaixão através da metafísica, para Schopenhauer, apesar de em

seu ensaio ter demonstrado a existência da compaixão e ela como único fonte de

qualquer ato genuinamente moral, ela, a própria compaixão continua sem nenhuma

explicação, como ele mesmo disse sobre ela, um grande mistério.Schopenhauer tentará

explicar nesse suplemento de onde surge a compaixão, o que ela é e como tal coisa pode

existir em um mundo onde o que reina, como vimos, é a perversidade e a crueldade,a

grande questão é: Como pode existir a compaixão? Como vimos a visão de mundo de

Schopenhauer não é a das mais agradáveis, o homem sendo um ser dominado e guiado

pelo egoísmo teria de ser na maioria da vezes ou sempre, ruim, mas como vimos o

fenômeno da compaixão acontece sempre e é mais habitual do que pensamos, surge

assim a questão: Como a compaixão é possível? Sobre essa questão o autor irá se

debruçar e tentar resolve-la. Para nosso filósofo a ética possui um tremendo valor

metafísico e para justificar isso ele cita vários casos onde pessoas prestes a morrer

preocupam-se com suas atitudes durante a vida, tendo como mais valorosas as atitudes

nas quais fizeram o bem a seu semelhante esquecendo-se de seus feitos honrosos e

grandiosos e, também, em qualquer momento, no qual uma recompensa por tais atos

derivados da compaixão surgisse ela seria negada, pois aquele que a nega os valores que

existem por detrás dela. Dessa forma a metafísica afirma-se mais uma vez como

necessária colocando-se inseparavelmente da ética. Mesmo assim Schopenhauer aponta

para as dificuldades de tal tarefa dizendo: “Eu só vejo a saída de contentar-me com um esboço geral, de dar mais

indicações do que desenvolvimentos, de apontar o caminho que leve ao alto,

mas não trilhá-lo até o fim e, acima de tudo, de dizer apenas uma pequena

parte daquilo que eu, sob outras circunstâncias, aduziria aqui”193

Na realidade essa explicação metafísica está ligada diretamente ao pensamento

metafísico de Schopenhauer e a sua Filosofia em sua integralidade, por isso é necessário

apresentarmos as questões da representação e da vontade que serão de extrema

importância aqui onde o dito “mistério” da compaixão será desvendado.

192 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.205 193 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.163

108

Pelo menos onde será apresentado de maneira sucinta uma tentativa de

elucidação que deve ter obrigatoriamente o conhecimento da metafísica da vontade e da

representação.

Logo no inicio, do suplemento, Schopenhauer explica o procedimento

metafísico, o abandono da experiência, mas deixa bem claro que de nenhuma maneira

filiar-se- á aos sistemas metafísicos pós-kantianos chamados por ele de delírios e contos

de fadas194. Como ele mesmo diz a compaixão que até então foi apresentada como

elucidação torna-se o problema a resolver e explicá-la é outro grande problema, logo de

início Schopenhauer nos apresenta algumas características dessa compaixão que são de

grande importância para a sua compreensão. É a compaixão natural, indestrutível e inata

em todo homem195. Dessa forma já teríamos o ponto de partida para os questionamentos

concernentes a compaixão nessa última investigação: por que a compaixão é inata,

indestrutível e natural no homem?O que faz com que ela seja assim?Antes, porém

Schopenhauer irá explicar o que faz de um homem um homem bom ou um homem mau.

Em suas próprias palavras “Um homem que, em virtude de seu caráter, não gosta de ser

contrário aos desejos de outrem, mas de preferência lhe presta ajuda e assistência

quando pode,será chamado em consideração a isto, de um homem bom”196 Mais à frente

nosso pensador dirá que para um homem bom, como o acima mencionado, existe uma

distância pequena ou quase inexistente com o mundo, isto é, entre ele e o mundo

praticamente não há diferença, distância alguma.Que dizer então de alguém que dá a

vida por outrem?A conclusão, segundo Schopenhauer só pode ser uma: entre ele e o

outro não havia diferença, quando alguém faz o bem ele o faz, pois entre ele e o outro

não há diferença, de alguma maneira isso acontece. Diferentemente o homem chamado

de mau é aquele para o qual essa diferença, essa distância é enorme, entre ele e o outro

não há nenhuma ligação, para seus olhos a diferença entre ele e o outro é gigantesca e

isso o faz ser egoísta e quando não malvado, essa diferença para o homem cruel, ou

seja, para aquele que de maneira maligna se alegrar com o sofrimento alheio é ainda

maior e por isso mesmo é que surge as suas atitudes terríveis em relação ao

outro.Vemos assim, que bondade e maldade para Schopenhauer estão ligadas em suas

explicações com um princípio de identificação com o outro para quem a ação é dirigida. 194 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes: São Paulo: 2001. p.210 195 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes: São Paulo: 2001. p.212 196 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.211

109

Será de extrema importância como veremos, termos estudado a metafísica da vontade e

também, como já dissemos, a representação, pois é nesses dois pontos principais do

pensamento de nosso autor que encontraremos a resposta para essa aproximação

responsável pela compaixão e pelos atos morais surgidos da compaixão, únicos que

podem ser considerados moralmente desinteressados.

Ainda para a pessoa extremamente generosa, Schopenhauer dirá sobre a

diferença entre os homens: “Em contrapartida, para o homem bom esta diferença não é

de nenhum modo tão grande, e, mesmo nas ações generosas, ela aparece como

suprimida, uma vez que se favorece o bem alheio às custas do próprio e que, portanto, o

eu alheio é equiparado ao próprio e, onde muitos outros há para se salvar, o próprio eu

lhes é totalmente sacrificado, desde que o indivíduo entregue sua vida por muitos”197.

Com as palavras acima fica claro que existe para aquele que faz o bem uma

espécie de identificação com a pessoa que recebe o bem, tanto que na maioria das vezes

o benfeitor cria para si mesmo um problema ao ajudar o outro ou até mesmo perece,

como já citado existem casos em que aquele que ajuda perde sua própria vida, um

membro e mesmo assim o faz de bom grado. Como seria possível isso se ela não se

identificasse com outro de alguma maneira já que para Schopenhauer o mundo é tão

terrivelmente cruel e em regra as pessoas egoístas? Assim começa de maneira sucinta a

aparição daquela que seria a explicação para a compaixão. Podemos já identificar que

sua mais importante característica é a identificação, de alguma maneira com aquele que

sofre. Enquanto para o egoísta pleno a distância e a diferença entre ele e os outros, é

enorme, para o caridoso essa distância e diferença parecem ser para Schopenhauer

muito pequena. Nosso pensador vai ainda mais longe dizendo que tal diferença é

praticamente inexistente em alguns casos.

Em alguns casos aquele que faz a caridade chega até mesmo a dar sua própria

vida em razão de outra ou de outras vidas, assim, a diferença, entre ela e as outras

pessoas, na realidade, parece não existir, o que há é uma identificação em casos como

esse, total, integral, no qual aquele que pratica a caridade entrega-se por completo para a

salvação de outrem. Em relação a essa questão Schopenhauer faz um pergunta

realmente interessante e que esclarece ainda mais o que será dito:

197 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.213

110

“Pergunta-se agora se a apreensão da relação entre os próprios eu e o alheio,

que está no fundamento das ações do caráter bom, é errada e repousa num

engano ou se isso não acontece, pelo contrário, com a apreensão oposta, em

que se apóiam o egoísmo e a maldade”198

O que Schopenhauer pergunta é se no momento em que uma pessoa

considerada boa pratica uma caridade seja qual for, essa sua identificação é

equivocada, se na realidade não existe identificação alguma, ou se aquele que é

egoísta a age pensando apenas em si mesmo, em sua total diferenciação com os

outros é que está equivocado. Schopenhauer aqui já levanta a primeira

indicação do que será a explicação apresentada por ele para a compaixão.

Nosso pensador levanta, em nosso entender, a possibilidade de não existir uma

diferença de fato entre as pessoas. Mas se assim o fosse que motivo faz das

pessoas egoístas? Schopenhauer afirmará isso dizendo que empiricamente o

egoísmo é com rigor justificado, pois a experiência nos mostra isso

apresentando-nos o outro distante de nós, fazendo com que a diferença entre o

outro e nós seja plena, assim o egoísmo seria a opção mais óbvia a ser tomada,

já que a experiência demonstra a diferença entre nós e os outros. Mas ainda

assim Schopenhauer continuará: “Em contrapartida, seria de se notar, em

primeiro lugar, que o conhecimento que temos do nosso próprio eu não é, de

nenhum modo que se esgote e que seja claro até seu ultimo fundamento”199.

Segundo Schopenhauer conhecemos o nosso corpo não inteiramente a

partir da intuição que o nosso cérebro tem, a partir dos dados de nossos

sentidos. Assim essa intuição é muito pequena e de nenhuma maneira consegue

penetrar naquilo que nós realmente somos, seja lá o que somos não nos é

acessível de nenhuma maneira integralmente. Para nós nossa essência

permanece um mistério que pelas nossas sensações não nos é dado. Segundo

Schopenhauer o conhecimento que temos de nós mesmos é extremamente

198 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.212 199 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.212

111

superficial200 , sendo assim somos nós mesmos o enigma que se conhece apenas

como fenômeno.

Dessa forma, aquilo que realmente somos permanece totalmente

desconhecido, o que nos é entregue como conhecimento de nós mesmos é

extremamente pequeno e assim se justificaria o egoísmo sempre como vencedor

em todos os casos, pelo menos em um primeiro momento, pois nele somos

realmente diferentes um do outro totalmente. Mas isso como dissemos, se dá

através de um conhecimento superficial que não atingiria a nossa essência,

porque atos compassivos de generosidade e justiça continuam acontecendo. Se

mesmo tendo esse conhecimento superficial de nós mesmos que nos diz que

somos diferentes por completo dos outros, continuamos a ver atos de autêntica

moral, ou seja, atos de compaixão acontecendo o que é que isso significaria?

Significaria que talvez a nossa parte mais essencial, mais íntima, mais real, não

tenha essa diferença, pode ser que através de um conhecimento superficial de

nós mesmos essa parte na qual seriamos iguais a todos os outros fique

escondida, não revelada, mas atuando, isto é, fazendo diferença em nossa vida e

até mesmo regendo certos atos. Schopenhauer sobre isso dirá sobre essa parte

mais essencial d todos nós: “Resta apenas uma possibilidade de que ela seja em

todos a mesma e idêntica”201Assim é preciso que a identidade entre todos os

seres exista de alguma maneira para que a compaixão exista. Sem essa unidade

a generosidade, bondade etc., seriam de certa forma inviáveis, impossíveis.

Voltando para sua metafísica Schopenhauer dirá que toda a multiplicidade dos

seres repousa sobre o espaço e o tempo, somente por eles a individualização

dos seres é possível. Para Schopenhauer, espaço e tempo são apenas formas da

nossa própria faculdade de intuição, não pertencendo ao objeto propriamente

dito, não são pertencentes às coisas em si mesmas em seus dizeres, espaço e

tempo pertencem apenas ao fenômeno que é falso, Véu de Maia.

200 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.213 201 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001.p.213

112

Assim começa a surgir a explicação da compaixão, se espaço e tempo são

apenas ideais, isso significa que eles não são pertencentes à “coisa em si”, ou

seja, não existem de fato, não possuem nenhuma ligação com a verdadeira

essência do mundo e se é através deles que surge a individualidade pois são

eles o “principium individuationis”202. Assim a individualidade como todo

fenômeno é uma mera ilusão, ela não existe por si mesma, de uma maneira

misteriosa somos todos a mesma coisa, a mesma essência e por isso nos

identificamos a ponto de esquecermos nossa ilusória individualidade, a

multiplicidade dos seres, e termos compaixão um do outro, deixando de lado o

egoísmo.

Na realidade nossa essência é uma, apenas uma coisa que no fenômeno

manifesta-se de diversas formas, formas essas que não podem ser a “coisa em

si” de nenhuma maneira, são apenas fenômenos e como tal devem ser

encarados. De alguma forma em algum momento a “coisa em si” sempre una

aparece e nesse momento o múltiplo desaparece e a compaixão surge. O

homem vê no outro a mesma essência que possui em si mesmo e o ajuda sem

nenhum tipo de interesse. Segundo Schopenhauer essa doutrina que afirma a

unidade dos seres não é algo novo e sim bem antigo, já estando presente nos

livros dos Vedas e Upanishads, até mesmo na escassa filosofia segundo

Schopenhauer, de Pitágoras ela está presente. Schopenhauer diz: “O espaço e

tempo são, porém estranhos à “coisa em-si”, quer dizer, à verdadeira essência

do mundo; a multiplicidade também o é necessariamente.” 203. Aqui o enigma já

está quase que totalmente resolvido, depois disso, Schopenhauer ainda afirmará

que o entendimento de que o eu e o não eu não são diferentes, não é o

entendimento errado, com isso ele afirma que a distinção entre os seres, ou seja,

a multiplicidade é que é a errada e, quando o homem age tendo em vista essa

multiplicidade, essa separação, ele age de maneira errada. A multiplicidade dos

202 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.218 203 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.218 - 219

113

seres é na verdade o erro a ser suprimido, é a ilusão, o Véu de Maia do qual o

homem deve se libertar. A compaixão, então, aparece como inicio dessa

libertação, pois ela tem em seu intimo essa essência, ou seja, todos os seres na

realidade são apenas uma mesma coisa, por isso a compaixão é possível.

Enquanto em um primeiro momento o homem é levado pelo egoísmo ilimitado,

em um segundo momento esse egoísmo é refreado pela realidade de que todos

os seres são a mesma coisa. A unidade dos seres é o motivo pelo qual existe a

moral, isto é, a compaixão seria, portanto a base metafísica da ética a unidade

de todos os seres, aquilo que faria despertar a compaixão e necessariamente a

cessação da ilusão da individualidade, a consciência de que sua essência

verdadeira encontra-se imediatamente no outro. Agir conforme a bondade

então é agir pela sabedoria, aquele que age através da bondade demonstra

conhecer essa verdade pelo menos naquele momento.

O mais interessante dessa explicação do fundamento da moral que seria

a unidade dos seres é que aquele que pratica o bem, que age justa ou

caridosamente não apenas está colocando-se no lugar do outro, não é uma mera

identificação psicológica com o outro de maneira nenhuma, como o autor bem

diz “O autor se reconhece a si próprio a sua essência verdadeira, imediatamente

no outro”, aquele que age compassivamente simplesmente é o outro, em sua

essência é o outro. Mas ainda que o homem generoso não seja um intelectual é

possível observar nele a compaixão fruto desse conhecimento profundo que até

mesmo alguns eruditos se esqueceram de ver.

Como vimos a individuação nada mais é do que mero fenômeno que

segundo Schopenhauer, surge entre espaço e tempo que são nossas faculdades

mentais de conhecimento, assim toda a individualidade é mera representação e

por assim dizer, ilusão tão somente. Sobre a compaixão como fruto desse

conhecimento Schopenhauer nos falará: “Minha essência interna verdadeira

existe tão imediatamente em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim,

na minha autoconsciência”204 Isso seria a palavra em sânscrito “ta-twam-asi” que

204 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.219

114

significa “isto é tu”, é exatamente desse conhecimento que surgem toda a

bondade, doçura e atos altruístas. Assim a conclusão a qual chegamos é que a

bondade só pode existir quando a representação cessa, quando a ilusão se

desfaz, na representação a bondade é impossível, pois nela, como já vimos,

reina a crueldade e a guerra de todos contra todos. A bondade nada mais é do

que dirigida para aquele conhecimento de que todos os seres são em essência a

mesma coisa, na realidade o que Schopenhauer quer dizer é que todos os seres

são a mesma coisa, na realidade a individuação como visto é apenas fenômeno,

mas o “em si” na realidade é a mesma coisa, assim, todos os seres, são na

realidade unos, são uma mesma coisa. No ato de generosidade, por exemplo, a

barreira criada pela representação a essa verdade é quebrada. Assim o grande

mistério da compaixão estaria resolvido, é a unidade existente entre os seres a

responsável pela compaixão e, consequentemente, por todo ato de

generosidade justiça e caridade. Schopenhauer afirma que o outro nada mais é

do que nós mesmos ao dizer: “mas quem, animado pelo “neikos”, penetrasse

hostilmente no eu odiado opositor e chegasse até seu íntimo mais profundo,

neste descobriria, para seu espanto, a si próprio “205. Mais uma vez a afirmação

de que o que acontece na compaixão não é apenas uma identificação

psicológica, não, é algo que transcende isso, o outro é o próprio agente da ação

generosa, todos nós somos apenas uma coisa tão somente, uma mesma essência

por uma ilusão dividida, individualizada, mas que em determinados momentos

apresenta-se como é, isto é, una.

205 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.219

115

Conclusão

Vimos a moral kantiana desabar segundo Schopenhauer e depois a sua própria

moral surgir como única procedente. Estudamos a visão de mundo do autor, onde o

mesmo é representação e vontade. Falta-nos agora apresentarmos a justificação da

questão oferecida ao inicio deste trabalho.

Como vimos o mundo é representação e vontade, a representação é a ilusão, o

chamado “Véu de Maia”, nela tudo é ilusório, sua verdadeira essência, a vontade, não

está submetida a ela. Vimos também que fazemos parte desse esquema, sendo assim,

somos vontade, mas também somos nosso “eu” ilusório, ou seja, não existe

individualidade, tudo é apenas uma mesma coisa, a essência universal é a

vontade.Assim, já que tudo é vontade cega e incessante, o mundo é uma guerra total,

todos contra todos. Quem não se desvencilhou da ilusão da representação agirá sempre,

ou quase sempre, de maneira egoísta, sendo assim, necessária foi a explicação

metafísica do fenômeno da compaixão. Na representação não há espaço para a

“bondade”, é preciso que o Véu da ilusão rasgue-se e a verdadeira essência do universo

apareça. Assim a compaixão não poderia ter outra explicação, no momento em que ela

acontece a ilusão cessa, mesmo que temporariamente e a nossa verdadeira essência

aparece, “vivemos” a verdade de que somos apenas uma mesma coisa, a representação

naquele momento acaba, deixamos a ilusão e agimos conforme a verdade. Impossível

seria existir a compaixão se a ilusão continuasse. Schopenhauer deixa bem claro que na

compaixão não há apenas uma mera identificação com o outro, mas nos descobrimos no

outro, somos o outro. Sobre a compaixão nosso pensador dirá: “Isto pressupõe, porém,

que eu tenha me identificado com o outro numa certa medida e, consequentemente, que

a barreira entre o eu e o não – eu tenha sido, por um momento suprimida. Só então a

situação do outro, sua precisão, sua necessidade e seu sofrimento tornar –se – ão

meus”206 com ‘eu’ schopenhauer quer dizer fenômeno e consequentemente ilusão. Nada

pode ser tão claro quanto isso. Sidarta Gautama iniciou sua busca pela iluminação

depois de ter sentido compaixão, ela abre as portas para a negação e para o desejo de

vencer a ilusão, tanto que, segundo a lenda, a sua última tentação foi sua própria

imagem. Concluindo, no momento da compaixão a ilusão da individualidade não pode 206 Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001. p.163

116

existir, ambas não podem coexistir. É por isso que alguns dão a própria vida por outros,

pois saberia de alguma maneira que aquele que socorre é ele mesmo, nesse momento

não vivem a representação. Pensamos ter esclarecido a questão por completo, mas

daremos mais exemplos dessa interpretação. Nietzsche que através do seu Zaratustra

defendeu o egoísmo foi um grande crítico da compaixão, por ser ela, em nossa

interpretação, em seu pensamento o inicio do fim da individualidade que ele tanto

tentou manter: Tanto a compaixão como a passagem que ela torna possível para a

negação da vontade, são, pois alvos da crítica de Nietzsche, que identifica ambas como

ideais cristãos “207. Não é difícil encontrar tais críticas em Nietzsche, escolhemos uma

que bem demonstra isso: “Piedade para todos” – seria dureza e tirania contra ti mesmo,

meu caro”.208

Mas mesmo assim vencer a compaixão seria para Schopenhauer impossível, pois

enquanto o homem existir, ela existirá e com ela a cessação mesmo que momentânea da

individualidade.

207 Cacciola M. Lucia Schopenhauer e a questão do dogmatismo, Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, FAPESP, São Paulo: 1994 208 Nietzsche F. Além do bem e do mal, trad. Armando amado Junior, WVC, São Paulo: 2002 p. 97

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