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O Globo -Novas Vidas Secas

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NOVAS VIDAS SECASTexto de ANDRÉ MIRANDA

Imagens de CUSTODIO COIMBRA

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NOVAS VIDAS SECASTexto: André MirandaImagens: Custodio CoimbraCapa e projeto gráfico: Maurício TussiCoordenação: Maria Fernanda Delmas e Mànya Millen—ISBN: 978-85-98888-46-0Copyright © Infoglobo Comunicação e Participações S.A.Rio de Janeiro, 2013Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida,em qualquer meio ou forma, nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem aexpressa autorização da editora.

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SUMÁRIO

Introdução

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Mapa As cidades da vida e da obra de Graciliano Ramos no Nordeste

Fotografias Imagens da vida seca

Posfácio José Castello

Linha do tempo A vida do escritor

Agradecimentos

Bibliografia Obras publicadas

Apêndice I Primeiro relatório técnico ao governador

Apêndice II Segundo relatório técnico ao governador

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INTRODUÇÃO

O tempo tem um ritmo próprio no sertão de Alagoas. O matuto Manoel Gardino,um senhor de 83 anos, analfabeto, atualmente sem trabalho, com pouca comida equase nenhuma água, explica o que faz durante o dia: “Ué, vou ficando aqui”, diz,caçoando da pergunta, para ele sem muito sentido.

O tempo de 2013 parece o mesmo de décadas atrás. É o mesmo de quando oalagoano Graciliano Ramos se estabeleceu como um dos principais romancistasbrasileiros. Seus textos trataram das mazelas da seca, das armações políticas, dasrelações sociais no campo e na cidade e da capacidade do brasileiro deperseverar.

O que mudou? A seca deste ano foi a pior das últimas cinco décadas e temdeixado marcas difíceis de curar na população. No campo, famílias de mais de dezpessoas ainda vêm sendo desfeitas pelo fenômeno do êxodo rural, comadolescentes deixando para trás pais e mães em busca de sonhos nem semprepossíveis nas grandes cidades do litoral ou ao sul do país.

A obra de Graciliano Ramos é tão atual quanto a esperança dos muitos matutosde seus livros. É o que mostram histórias coletadas numa viagem de dez dias porAlagoas e Pernambuco, feita em abril de 2013, um percurso pelas vidas deFabianos reais e fictícios.

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CAPÍTULO 1

Não há muitas sombras nas estradas do interior de Alagoas. Mal há vegetação.Com os espinhosos mandacarus, que resistem à seca, e as árvores sem folhas queestão por toda parte, a paisagem é um grande deserto. O estado do gado torna avisão mais árida. Sem comida e sem água, bois e vacas emagrecem, algunsmorrem. Os fazendeiros costumam amarrar os animais mais fracos a cercas oucaules de árvores para evitar que eles caiam. É uma tentativa de adiar a morte, deevitar que o clima exerça sua vontade. Aos poucos, os mugidos silenciam, ascarcaças se acumulam, a vida se perde. Mas, entre os rios sem água, os animaismortos estirados no solo e as plantas cinzentas, a imagem que mais chama aatenção é mesmo a da desolação humana. O homem não consegue viver sem osrios, sem os bois, sem a terra. Só que ele permanece em pé, continua caminhando.O clima faz seu estrago, mas o tempo sertanejo não dá autorização para o homemmorrer.

Já era assim quando Graciliano Ramos de Oliveira nasceu, em 27 de outubrode 1892. Ele escreveu, décadas mais tarde, em “Angústia”, seu terceiro livro,publicado em 1936: “O que lhe interessa na minha terra é o sofrimento damultidão, a tragédia periódica das secas. Procuro recordar-me dos verõessertanejos, que duram anos. A lembrança chega misturada com episódiosagarrados aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da

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ficção”.

A realidade de Graciliano começou em Quebrangulo, município do agrestealagoano próximo a Pernambuco. A ficção veio depois. Quebrangulo teve, há umséculo, as finanças sustentadas pelas riquezas do Ciclo do Algodão, o que levou acidade a contabilizar 30 mil habitantes. Hoje são 12 mil, e uma economia baseadana pecuária de corte. No centro, suas casas bem conservadas e ruas tranquilaslembram o ambiente colonial, aconchegante, de algumas cidades históricas deMinas Gerais. Mas 50% da população vivem alheios ao movimento do centro,trabalhando na roça, em fazendas criadoras de gado ou para a agricultura desubsistência.

Na teoria, por se situar no agreste, próximo à Zona da Mata, Quebrangulodeveria sofrer menos com a estiagem do que as cidades do sertão. A realidade,entretanto, vem desafiando a geografia: em todo o Nordeste, as áreas de sertão,agreste e até Zona da Mata vêm sendo atingidas pelos longos meses sem chuva.

Os primeiros indícios da seca atual apareceram em 2012. Em geral, as chuvasda região se concentram no inverno. É quando, entre os meses de junho esetembro, prefeituras, governos e os próprios donos de terra constroem barragense abrem açudes para reter o máximo possível de água, um excedente quenormalmente permite que se aguente a penúria do restante do ano. No ano passado,porém, as chuvas foram fracas no inverno, insuficientes para preencher anecessidade de água nas outras estações. Também quase não houve o que ossertanejos chamam de trovoadas, chuvas de poucos dias, mas de muita força, quecostumam cair entre novembro e janeiro, e que são fundamentais para que semantenha a produção até a chegada do inverno seguinte.

Com um inverno mais fraco e sem as trovoadas, mais de 90% dos rios dointerior de Alagoas secaram. Poucos açudes se mantiveram com água, e oabastecimento das barragens passou a ser insuficiente para a necessidade dapopulação. A intensidade da seca fez com que Quebrangulo e outros 38 dos 102

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municípios alagoanos viessem a ser reconhecidos em estado de emergência pelaSecretaria Nacional de Defesa Civil. Neste 2013, são mais de 1.300 cidades doNordeste e do norte de Minas Gerais na mesma situação, afetando cerca de 10,4milhões de pessoas.

No caso da cidade natal de Graciliano, a seca tem ainda um fator trágico,quase fantasioso. Em 18 de junho de 2010, durante uma tempestade, uma barragemestourou em Bom Conselho, município de Pernambuco próximo dali. A águacorreu pelos montes, até desembocar, por volta das 14h, em Quebrangulo. Como achuva havia impedido que os serviços de telefonia se mantivessem ativos, acidade não pôde ser avisada. Por sorte, ninguém morreu, mas algumas casas foraminundadas com água a quase dois metros de altura. Uma ponte por onde passava aestrada de ferro inaugurada em 1912 despencou, e até hoje o trem que transportavamercadorias não foi reativado. Por causa das chuvas de 2010, os prejuízos emQuebrangulo passaram de R$ 4 milhões.

Hoje, a água que quase destruiu a cidade é o bem mais desejado por lá.

— A partir deste ano, com tudo o que estamos vivendo, as pessoas não vão termais como honrar seus compromissos — afirma Manoel Tenório (PSDB), prefeitode Quebrangulo desde janeiro. — É preciso que o governo federal faça mais paragarantir o abastecimento de água, com barragens e sistemas de adutora. E tambémé importante que se financie a recuperação da economia. Hoje, recebemos carros-pipa e farelo (uma ração para o gado, feita à base de milho e soja). Mas são açõespaliativas.

Apesar da seca, a prefeitura de Quebrangulo tem planos para dias melhores —de preferência, aproveitando o apelo turístico que o nome do filho ilustre podegerar para a cidade. Além de Graciliano, o único outro quebrangulense conhecidoem âmbito nacional foi o político Tenório Cavalcanti (1906-1987), deputadofederal pelo Rio de Janeiro nos anos 50 e 60, que tinha sua base eleitoral naBaixada Fluminense. Mas as lembranças sobre Cavalcanti são menos nobres e

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bem mais controversas do que as de Graciliano: apelidado de Homem da CapaPreta, o deputado não tinha cerimônia em mandar matar seus desafetos. Numepisódio famoso, ocorrido em 1962, ele chegou a sacar uma arma bem no meio deuma sessão do Congresso e ameaçou de morte seu então colega Antonio CarlosMagalhães (1927-2007).

Graciliano, portanto, não tem concorrência na eleição de símbolo máximo deQuebrangulo. Na principal festa da cidade, comemorada todo 27 de setembro, diade sua emancipação política, a obra dele costuma ser lembrada e o autor,homenageado. Mas não se vai muito além dessas referências esporádicas e decomentários feitos por moradores orgulhosos. Aos olhos dos visitantes, existeapenas uma placa na entrada do município, e nada mais, indicando que o escritornasceu por lá. Mesmo o imóvel que pertenceu à família de Graciliano e quecontinua de pé, bem ao lado direito da prefeitura, não tem referência alguma sobreo passado.

— Temos vontade de fazer algo com a casa, talvez um museu. E outra coisa emque já pensei foi convocar um plebiscito para alterar o nome da cidade, deQuebrangulo para Graciliano Ramos — conta o prefeito. — Acho que seria degrande valia para a nossa imagem.

Passado mais de um século, a casa onde nasceu Graciliano mantém pouco daarquitetura original. A fachada foi alterada, perdendo os detalhes coloniais paraparedes lisas, pintadas com uma cor clara, entre o verde e o azul. Os móveis daépoca se perderam, e ninguém sabe dizer bem como era a disposição dos quartosnos tempos em que a família do escritor morou em Quebrangulo. A casa foimudando de donos até chegar, há cerca de 40 anos, às mãos de Sebastião SilveiraLima, fazendeiro que mora em Maceió e que vai a Quebrangulo apenas de 15 em15 dias.

A prefeitura, no passado, tentou comprar a casa, mas Sebastião se recusou avendê-la. Ainda assim, volta e meia turistas passam por Quebrangulo, perguntam

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sobre o imóvel e tiram fotos. Costumam ser recebidos pela sorridente GerusaNascimento, de 68 anos, uma espécie de governanta e guardiã da casa na ausênciado dono.

— Não há mais nada do Graciliano aqui, mas as pessoas vêm visitar mesmoassim. Já teve até ônibus de Recife parando aqui em frente. É um prestígio para agente — explicou Gerusa, antes de voluntariamente tocar no assunto que afligetodos aqueles que vivem na cidade e que, indiretamente, está relacionado àhistória de Graciliano. — Mas as coisas não andam muito boas, por causa da seca.

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CAPÍTULO 2

A grande obra da literatura brasileira a tratar do tema da seca foi publicada em1938. O título era direto e resumiu bem o sentimento de milhões de nordestinos.“Vidas secas” foi o quarto livro lançado por Graciliano Ramos — depois de“Caetés” (1933), “São Bernardo” (1934) e “Angústia” (1936) — e, hoje, é seuromance mais representativo, com 120 edições no Brasil e traduções para mais de20 idiomas.

Inspirada em muitas das histórias que Graciliano acompanhou desde ainfância, a trama de “Vidas secas” mostra como uma família de retirantes —guiada pelo pai, Fabiano, e acompanhada pela cachorra Baleia, dois dospersonagens mais famosos da literatura nacional — parte em busca de umacondição mais humana para a sobrevivência. Não há um trajeto definido no livro,mas as paisagens descritas pelo autor ainda estão presentes em vários cantos dointerior do Nordeste, não somente em seu estado natal.

Em 1895, a família de Graciliano deixou Alagoas para viver em Buíque,cidade do sertão de Pernambuco próxima a Garanhuns e hoje com 52 milhabitantes. Porém, apesar do número maior de pessoas, na memória coletiva deBuíque há ainda menos sobre o escritor do que em Quebrangulo. Apenas suabiblioteca municipal, inaugurada em maio de 2002, leva o nome de GracilianoRamos. Em conversas com uma dezena de buiquenses, poucos sabem dizer quem

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exatamente foi o escritor. Mesmo um vaqueiro sentado numa calçada a menos dedez passos da biblioteca afirma que nunca ouviu falar nele.

Há alguns anos, havia, ao menos, uma placa numa casa que pertenceu aos paisde Graciliano, indicando aos visitantes quem foi o famoso morador. Umproprietário recente, contudo, resolveu não apenas tirar a placa como reformarcompletamente o imóvel antigo, transformando-o numa loja de confecção, igual atodas as outras. É essa loja que funciona hoje na casa onde o escritor morou. Osvizinhos ainda lembram que havia uma placa lá há uma década, mas uma jovemvendedora da loja, perguntada sobre Graciliano, responde com carinha de espertacomo quem fosse ganhar um prêmio: “Não é nossa biblioteca?”

O mesmo tempo que fez com que Graciliano passasse a ser praticamenteignorado em Buíque não privou a cidade das vidas secas que o autor descreveu nopassado. Buíque teve que decretar estado de emergência para tentar combater osefeitos da estiagem. Sua situação é tão ruim ou talvez pior do que a dos municípiosalagoanos: como a Barragem do Mulungu, a principal que abastece a cidade, secouquase completamente, seus moradores não recebem água nos encanamentos dascasas desde janeiro. Até mesmo o hospital municipal vem dependendo de carros-pipa.

Para suprir a necessidade, uma nova categoria profissional proliferou emBuíque: o vendedor de água. Os donos de casas e fazendas que contam com poçosartesianos perceberam a carência e passaram a oferecer o excedente a seusconcidadãos. Não de graça, claro. Mil litros de água, se comprados diretamente napropriedade do dono do poço, custam cerca de R$ 10. Já se comprados com osentregadores que percorrem diariamente a cidade, custam entre R$ 25 e R$ 30.

Assim, é raro caminhar mais de cinco minutos por Buíque sem ver alguémcarregando um balde de água — no carro, na moto, no cavalo, na cabeça ou ondemais houver espaço.

— Gasto R$ 120 por mês com água, numa casa onde moram apenas duas

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pessoas — conta a técnica de enfermagem Ieda Maria Sousa. — Tenho quereaproveitar a água o tempo todo. A que usamos para lavar roupa também é usadapara a descarga. E estamos sempre economizando. Mas o nordestino é um cabraforte. A gente dá um jeito.

O que todos se perguntam é até quando é possível dar um jeito. Na zona ruralde Buíque, num terreno com duas casas geminadas, duas famílias, que reúnem umtotal de 17 pessoas, dividem 16 galões de água diariamente. Gastam R$ 40 e cercade três horas para, todos os dias, sair de casa, ir até uma fazenda mais ou menospróxima, pegar a água e voltar. Os filhos, inclusive os menores, têm que se revezarna tarefa de trazer numa carroça puxada por cavalos os galões cheios.

— Não dá para ficar aqui, não. No ano passado, fui para São Paulo trabalharna colheita de cana. Voltei em novembro, mas quero ir de novo para São Paulo —diz Flávio José da Silva, rapaz de 22 anos que, quando está em Buíque, dependede bicos para ter alguma fonte de renda.

O drama se estende ainda mais porque a água não é um bem necessário apenaspara a higiene e para matar a sede. O que qualquer sertanejo bem sabe, eGraciliano Ramos explorou em exaustão em seus livros, é que a natureza e ohomem se misturam no campo. Mas, na seca, quem deveria viver unido acabamorrendo separado. Em vários pontos do percurso entre Buíque e Alagoas, odrama nordestino mostra uma de suas facetas mais duras: o gado morto,abandonado na beira da estrada, sem dono ou responsável.

Para quem depende exclusivamente da agropecuária, perder um animal é quasecomo enterrar um parente próximo. Os cemitérios de gado, que estão em todos oscantos, em todas as cidades afetadas pela seca, atraem urubus e exalam um cheirodifícil de se esquecer.

— Não estou nem comendo carne de boi, porque a gente vê tanto bicho mortona estrada que isso me dá um enjoo muito grande — afirma a feirante buiquenseJosefa Correa dos Santos, de 50 anos. — Por causa da seca, tudo o que eu vendo

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aqui na feira está muito caro. E, como está caro, eu mal consigo vender. É umnegócio muito ruim. É a pior seca que eu já vi.

Em Buíque, enquanto Josefa trabalha na feira, crianças correm em torno de umboi morto, dentro de uma fazenda, a menos de dez metros de uma estrada de terra.Pequeninas, elas passam por entre a cerca de arame farpado com o intuito de atirarpedras nos urubus que comiam os restos do animal.

Para as crianças, trata-se de uma brincadeira. Para a cidade, um sinal datragédia.

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CAPÍTULO 3

"Resolvi estabelecer-me aqui na minha terra, município de Viçosa, Alagoas, elogo planeei adquirir a propriedade São Bernardo, onde trabalhei, no eito, comsalário de cinco tostões”, escreveu Graciliano Ramos em “São Bernardo”, seusegundo romance. O livro conta a história de Paulo Honório, homem de origemhumilde, empreendedor, que vai acumulando riquezas, numa típica trama deascensão social que, aos poucos, torna-se uma de derrocada pessoal.

A paisagem escolhida para ambientar a trama foi uma das mais agradáveispelas quais Graciliano passou, uma cidade na Zona da Mata alagoana que, porsuas belezas naturais, ganhou o apelido de Princesa das Matas. Foi em 1899 queseus pais, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos, deixaramPernambuco e se mudaram para Viçosa. A família viveu lá poucos anos, tirandosua renda de uma loja de tecidos, localizada na praça principal da cidade. Oimóvel existe até hoje e conserva sua fachada histórica, mas abriga o Arquivo daprefeitura — sem placas ou referências sobre Graciliano Ramos.

Atualmente com cerca de 26 mil habitantes, Viçosa tem metade do tamanho deBuíque, mas é claramente mais preservada e desenvolvida. Lembra Quebrangulopelos prédios históricos e pelo ambiente acolhedor, mas é maior, com umcomércio mais robusto. Além disso, a cidade tem uma movimentação turísticaregular, muito por causa de suas belezas naturais. É nas redondezas de Viçosa que

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fica a Serra Dois Irmãos, com cachoeiras, trilhas e o local onde o líder negroalagoano Zumbi dos Palmares foi morto, em 20 de novembro de 1695.

Só que, com a seca, o volume de água no início de 2013 não foi suficiente paradar vazão às cachoeiras de Viçosa. O município teve que decretar, em meados deabril, estado de emergência. O panorama se tornou crítico quando o Rio Caçambasecou, e a prefeitura precisou reativar uma pequena barragem, não utilizada havia12 anos, para tentar acumular água.

— Minha geração nunca havia visto uma seca como esta — afirma o radialistae escritor Audálio Honorato, autor do livro “Viçosa viva”. — Antigamente, aspessoas passeavam de canoa no Rio Paraíba. Este ano, o rio se transformou empedras. Eu lembro quando apareceram os primeiros carros-pipa por aqui há unsmeses, e muitos moradores nem sabiam o que era.

Perto de Viçosa foram gravadas cenas do filme “São Bernardo” (1971), deLeon Hirszman, com roteiro baseado no livro de Graciliano. Manoel dos PassosVilela, o Vô, hoje com 64 anos, foi figurante em “São Bernardo”. Seu papel eramínimo: sem diálogos, ele viveu um deputado estadual que aparecia todo vestidode branco numa estação de trem, ao lado do governador.

A participação de Vô no filme não lhe rendeu cachê — ele apenas teve oalmoço pago pela produção —, mas a experiência já indicava o futuro profissionalque teria. Não o de ator, cuja carreira se resumiu a “São Bernardo”, e sim o depolítico. Vô foi vereador cinco vezes e está no segundo mandato de vice-prefeito.O Vilela em seu sobrenome revela um parentesco com o antigo senador TeotônioVilela (1917-1983) e com o filho dele, Teotônio Vilela Filho, atualmentegovernador de Alagoas, ambos naturais de Viçosa.

O apelido de Vô vem da juventude, época em que deixou a zona rural paraestudar numa escola do centro da cidade. Como era mais alto e aparentava sermais velho do que os outros alunos, passaram a chamá-lo de Vô. O título tem tudoa ver com seu jeitão tranquilo, bem-humorado, de quem gosta de contar histórias

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sobre o passado misturando realidade e fantasia. O próprio Vô admite que suamemória é ruim.

Talvez por isso, para ajudá-lo a se recordar, Vô tenha fundado há 15 anos oCentro de Tradições Populares Synfrônio dos Passos Vilela — Museu do Vô. OCentro, que leva o nome de seu pai, fica numa casa que pertenceu a seu sogro eque abriga desde maquetes até bonecos do folclore viçosense. Numa sala no fimdo corredor de entrada, a que Vô diz ser a mais visitada, há uma série de fotos depessoas que já morreram, numa seção batizada de “Amigos do Vô”.

O próprio Vô abre as portas do museu num fim de tarde de uma sexta-feira efaz questão de procurar algum objeto que remeta a Graciliano Ramos. Tenta naestante de livros, mas não encontra qualquer de suas obras. Depois pensa, andapor uma sala repleta de imagens religiosas, reafirma que tinha certeza de que haviaalguma coisa, vai até os fundos da casa e, bem no fim, no fim mesmo, retira umquadro encostado na parede para revelar, por trás, um tecido escuro com o rostode Graciliano pintado em branco.

— Eu sabia que tinha — brada Vô. — O Graciliano foi uma grande influênciapara todos da região. Ele olhava o futuro. Para ele, o futuro não era um carro. Erauma locomotiva. Não era uma asa-delta. Era um avião. Não era um barquinho. Eraum transatlântico.

Foi em Viçosa que Graciliano estreou no universo literário, com a publicaçãodo conto “O pequeno pedinte”, no jornal “O Dilúculo”, um periódico feito poralunos do Internato Alagoano, onde ele estudava. A data foi a de 24 de junho de1904. Graciliano tinha 11 anos e escolheu para tema de seu conto um menino quepassava os dias pedindo esmola pelas ruas.

“Quantas noites não passara dormindo pelas calçadas exposto ao frio e àchuva, sem o abrigo do teto. Quantas vergonhas não passara quando, ao estender apequenina mão, só recebia a indiferença e o motejo. Oh! Encontram-se muitoscorações brutos e insensíveis”, escreveu Graciliano.

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Parece um tanto ingênuo imaginar que, aos 11 anos, aquele que seria um dosgrandes autores da literatura brasileira já demonstrava preocupações quanto aosproblemas sociais do país. Mas também seria injusto ignorar que, em praticamentetoda a obra de Graciliano, questões como a exclusão de um menino de rua foramexploradas. Tanto na obra literária quanto na política.

E foi em ambas que sua trajetória se encontrou com Palmeira dos Índios,cidade onde escreveu a maioria de seus livros, casou-se duas vezes, teve seis deseus oito filhos e foi eleito prefeito.

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CAPÍTULO 4

Leva-se, de carro, cerca de meia hora de Viçosa a Quebrangulo. E mais meia horade Quebrangulo a Palmeira dos Índios. Só que o tempo da modernidade não é otempo da seca. O gado, para sobreviver, não pode esperar muito por alimento eágua. Homens e mulheres, por mais calejados que estejam por anos e anos de seca,também não.

Alguns, quando não têm família, vão embora. Outros se rebelam, mas às vezesé difícil escolher contra quem direcionar sua revolta. Os governos, para quemmora numa pequena casinha no meio do campo, a horas de distância de algumcentro urbano, parecem inalcançáveis. Os vizinhos, por mais que sejam objeto deciúme e intriga, principalmente quando aparecem com uma caixa d’água cheiasabe-se lá como, em geral passam pelas mesmas dificuldades. E Deus? Deus,repetem todos, significa a salvação.

Logo em Paulo Jacinto, um município no caminho entre Viçosa e Quebrangulo,de 7.500 habitantes, pode-se ter uma ideia dos efeitos da seca sobre umapopulação desesperada. Numa sexta-feira, um carro-pipa leva água para distribuirentre as casas, mas não há o suficiente para todas. Desde fevereiro, quando a secase agravou, os motoristas dos carros passaram a alternar as residências de PauloJacinto para as quais dariam água. Quem não recebe numa ocasião tem suaoportunidade três dias depois.

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O que se segue, porém, é tão duro de descrever quanto de lembrar. As pessoasgritam. Não por dinheiro, comida ou terra. Gritam por água. Os moradores dePaulo Jacinto cercam o caminhão e exigem que o motorista encha todos os baldes.Aposentada, com 56 anos, Marlene Lopes da Silva consegue encher dois. Elaprópria carrega um em cada mão, enfrenta uma fila, briga com o motorista e depoisretorna para casa ao lado do marido, Miguel Antônio da Silva, de 90.

— O motorista disse que Deus ia reclamar comigo porque eu peguei água nasegunda-feira e voltei hoje. Como ele pode dizer uma coisa dessa? — afirmaMarlene, entre a revolta e o choro. — Eu fico oito dias sem lavar roupa. Só temosagora esses dois baldes para cozinhar, tomar banho e até beber. Por isso, meufilho, dizem que é pecado rezar para pedir chuva, mas eu peço. Só Deus sabe osofrimento de Paulo Jacinto. Eu tenho até achado a comida estranha. Não sei se aágua que trazem para a gente tem qualidade. Tenho muito de medo de estaremdando uma água ruim para o povo de Paulo Jacinto.

Enquanto Marlene se lamenta, um grupo de moradores consegue puxar amangueira do carro-pipa para dentro de uma casa, com o intuito de encher umacaçamba. Dois policiais chegam para tentar manter a ordem, mas há mais de duasdezenas de pessoas em torno do carro-pipa. Continuam reclamando, gritando,exigindo o direto à água. Ao se despedirem, dizem, um por um: “Deus os leve”.

A fé não é exclusiva dali. Deus é lembrado em muitas das respostas dosalagoanos que vivem no campo e dependem das chuvas para cultivar a terra epoder dar de beber e de comer ao gado. Nos municípios próximos a Palmeira dosÍndios, cenas como a de Paulo Jacinto vão se repetindo, a qualquer hora, de dia,de tarde, de noite ou madrugada adentro. Pela estrada, pessoas carregam baldes.Nos leitos dos rios ou nos açudes secos, os mais humildes tentam retirar o que forpossível. Cavam buracos no solo úmido, rezando para que algum sinal deesperança escorra da terra.

— Há dois anos não chove direito. E agora piorou. A única coisa que a gente

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pode fazer é esperar que Deus mande alguma coisa — afirma a dona de casaMaria Solange Soares, que mora com cinco filhos e o marido numa casinha detaipa na beira da rodovia BR-316, perto do município Estrela de Alagoas (de 17mil habitantes), e recebe a ajuda do Bolsa Família.

Apesar de menos comuns do que na época de Graciliano Ramos, as casas detaipa ainda são fáceis de se avistar no interior do estado. Elas são feitas numaestrutura de galhos de árvore cobertos por barro, e são mais conhecidas no Sul dopaís como casas de pau a pique. São extremamente quentes e bem pequenas,sobretudo para famílias que às vezes passam de dez integrantes. Costumam terimagens religiosas e fotos dos filhos nas paredes. A sala serve de quarto dedormir; o quarto de dormir, de sala de jantar; o banheiro fica na parte de fora,geralmente atrás da cozinha. Na de Maria Solange, a telha do teto foi malfeita edeixou frestas por onde entram constantes fachos de luz.

Não muito longe dali, num povoado isolado do município sertanejo de Santanado Ipanema (45,5 mil habitantes), mora José Maria Vieira da Silva, de 56 anos.Ele tem nove filhos, mas apenas três vivem em Alagoas. Quatro já desistiram detentar a sorte na seca e foram para São Paulo. Outros dois, de 18 e 20 anos,estavam na casa de amigos, bebendo e festejando. Iriam embora, também para SãoPaulo, dali a dois dias.

— Quando tem chuva, tem serviço nas fazendas. Quando não tem, aí é oproblema — explica José Maria. — A gente recebe R$ 120 por mês de BolsaFamília, mas não dá para muita coisa. Eu compro feijão e farinha, mas hoje em diaaté a farinha está cara. Todos os anos a gente plantava alguma coisa aqui noterreno, mas nesses meses foi impossível plantar. Nada cresce, não tem água. Osdois bois que a gente tinha morreram de fome. Por isso os meninos param osestudos e vão para São Paulo, para trabalhar na colheita de laranja.

A história de José Maria tem um quê de Brasil esquecido, uma vida longe doscentros urbanos e muito distante do convívio social. Ele é descendente quilombola

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e sempre viveu na zona rural. O terreno da casa onde vive há cerca de uma décadaveio por projetos de assentamento de reforma agrária, e ele ainda deve R$ 17 milem prestações ao banco para quitar o valor da moradia. Mesmo assim, com opassar dos anos, foi promovendo algumas melhorias. Hoje sua casa é feita detijolos e tem, por exemplo, uma antena parabólica para receber sinal de TV — umdispositivo comum em grande parte das moradias da zona rural, até mesmo as maispobres. No mesmo terreno, ao lado da casa de José Maria, um de seus filhos moracom a mulher e um bebê numa casa de taipa.

— Quando eu era moço, fui estudar no Mobral (o antigo Movimento Brasileirode Alfabetização, criado pelo governo militar no fim dos anos 1960), mas meu paime tirou e me jogou para a enxada. Então não sei ler. Só sei assinar meu nome apulso — conta. — Se eu pudesse, com certeza também iria para São Paulo. Aquiestá muito ruim para sobreviver. Antes a gente até pescava, mas, com o rio assimhá dois anos, não dá.

O Rio Ipanema passa bem em frente à casa de José Maria, mas estácompletamente seco na região. Descendo um barranco íngreme, é possívelcaminhar pelas pedras no que outrora foi o fundo do rio. O que marca a paisagemseca é um jumento morto, jogado lá por alguns moradores. Sem água, o Ipanemaacabou se tornando mais um cemitério de gado.

Seguindo um pouco adiante, mais para dentro do sertão, alguns dos povoadosdo município de Pão de Açúcar (com 24 mil habitantes) não têm água encanada edependem de carros-pipa. Só que o abastecimento não chega para todos emtempos de seca. Existe o que os moradores chamam de pontos de referência, trêsou quatro casas que recebem toda a água em suas cisternas para, depois, repassaraos vizinhos.

— A gente precisa andar até o ponto de referência e trazer a água em baldes nacabeça — diz Maria Feitosa de Oliveira, de 32 anos, que divide uma casa comoutras seis pessoas. — Como não temos boi, nem carro, não dá para ir mais longe

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buscar água. Temos que pegar com a vizinha, só que, quando chega nossa vez,sobra pouca água. Não temos o suficiente para todos.

Maria Feitosa foi uma das que já desistiram da vida sertaneja e se retirarampara São Paulo. Mas, há três anos, ela voltou para cuidar da mãe doente:

— Se não fosse por isso, eu não estaria mais aqui. Lá eu trabalhei com faxina,com lanchonete, tinha o que fazer. Aqui o emprego é difícil.

São muitas as histórias dessas novas vidas secas presentes no interior deAlagoas, muitas delas comparáveis à trajetória da família do fictício Fabiano.Nenhum morador que encontramos nas pequenas casas da zona rural, porém,jamais havia ouvido falar em Graciliano Ramos.

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CAPÍTULO 5

Graciliano Ramos deixou Viçosa em 1905, para estudar em Maceió. Ficou cincoanos na capital alagoana, onde, ainda adolescente, passou a colaborarregularmente com jornais e revistas, publicando sonetos e assinando compseudônimos como Feliciano de Olivença, Soares de Almeida Cunha e SoeiroLobato.

Exatamente no dia em que completou 18 anos, em 27 de outubro de 1910, elese mudou para Palmeira dos Índios, município que seria a base para sua vidapública, tanto de escritor quanto de político. Hoje, Palmeira dos Índios écertamente a cidade mais lembrada quando se fala de Graciliano Ramos — o quenão significa que Palmeira dos Índios se lembre bem do autor.

Palmeira tem, atualmente, mais de 70 mil habitantes e uma economia apoiadana pecuária leiteira. É o terceiro maior município de Alagoas em população, masapenas o 120º em arrecadação. A cidade tem seis universidades e se orgulha deestar se tornando um polo educacional para o interior do estado. Por outro lado, oespaço para a cultura vem diminuindo. Logo no começo de seu segundo mandato,iniciado em janeiro de 2013, o prefeito James Ribeiro (PSDB) fechou a Secretariade Cultura, transferindo suas atribuições para a pasta da Educação.

— Em Palmeira dos Índios, não se faz nada pela cultura, quanto mais para

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preservar o nome do meu pai — diz, por telefone, a alagoana Luiza RamosAmado, de 82 anos, única filha viva dos oito de Graciliano, e que hoje mora emSalvador. — Em Maceió também se faz pouquíssimo. Se você pensar na maiorparte dos políticos que Alagoas tem hoje, dá para compreender a razão.

Além de um busto instalado na entrada da cidade — à boca pequena, muitagente diz que a imagem não se parece em nada com o escritor —, a principalhomenagem a ele em Palmeira dos Índios é a Casa Museu Graciliano Ramos,fundada em 1973. Como o nome sugere, o local nada mais é que a casa onde oautor morou, hoje adaptada para um museu. Ela abre de segunda-feira a domingo,mas recebe apenas cerca de 30 visitantes por semana.

Para se compreender a baixa frequência, basta visitar a Casa. Não o imóvel,que manteve o jeitão antigo, com paredes grossas, salas espaçosas e pé-direitoalto. O grande problema, ali, é a organização do espaço em um museu. A maioriados objetos não tem identificação alguma. Numa sala, há uma rede, gravuras queparecem remeter a “Vidas secas”, utensílios de cozinha, algumas sandálias, umcolete de couro velho e uma espingarda. Qual a relação entre eles? Só perguntandopara tentar entender.

Ainda assim, uma simples pergunta feita aos funcionários que trabalham nomuseu pela manhã — todos muitos simpáticos e atenciosos — fica sem resposta.Ninguém sabe dizer em que cômodo Graciliano Ramos dormia.

— O Graciliano nunca vai deixar de ser uma referência alagoana, mas, no diaa dia, nossa visitação é mais de gente de fora. Acho que o nome dele passou a sertão habitual para os moradores de Palmeira que se tornou menos atraente —explica Marcos Omena, diretor da Casa Museu há dois anos. — Tínhamos umaproposta de fazer em 2012, na celebração dos 120 anos de nascimento doGraciliano, uma programação com exibição de filmes, apresentação de peças eoutras atividades para mobilizar a cidade. O orçamento era de menos de R$ 30mil. Mas não tivemos como executá-lo.

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Fora da Casa, em conversas com os moradores de Palmeira dos Índios,também é raro encontrar algum entusiasmo sobre a obra de Graciliano. Osassuntos que dominam as rodas de conversas na cidade são um processo em cursode demarcação de terras indígenas (a região serviu, séculos atrás, de aldeia datribo Xucuru) e, claro, a seca.

— A juventude daqui é preguiçosa para ler — acredita Ivan Barros, jornalista,promotor aposentado e escritor palmeirense, autor de “Graciliano Ramos eraassim” (1984). — Mas, em termos nacionais, o Graciliano é tido como um ícone.

Barros tem 69 anos e é uma figura conhecida em Palmeira dos Índios. Ele temmais de 20 livros publicados e é proprietário de um jornal semanário (“Tribunado sertão”) e de uma estação de rádio (“Cacique”). Entre 1971 e 1979, Barros foirepórter da revista “Manchete”, no Rio, onde cobriu as mortes de JuscelinoKubitschek (“Eu fui o primeiro jornalista a chegar ao local do acidente”) e deCarlos Lacerda (“Ouvi uma enfermeira dizendo que haviam dado uma injeção noLacerda, mas o pessoal da revista não me deixou publicar”).

Apenas quando passou num concurso para promotor de Justiça, Barros deixoua carreira jornalística de lado e retornou a Alagoas. Mas o que ele nuncaabandonou foi o apreço alimentado desde a juventude pela obra de GracilianoRamos. Em sua casa, guarda com carinho uma série de fotos e objetos ligados aoilustre conterrâneo, com destaque para os exemplares originais do jornal “OÍndio”, editado em Palmeira na década de 20, com participação do escritor.

— Ele deixou uma influência enorme com seus relatórios como prefeito —conta Barros. — Mas não foi um político como os outros. Ele próprio escreveuque, se disputasse a reeleição, não teria mais de dez votos. Mas, ainda assim, élembrado como bom prefeito pelo zelo que tinha com o erário. Há quem diga que aLei de Responsabilidade Fiscal nasceu por inspiração dele.

Já estabelecido em Palmeira como comerciante de tecidos, Gracilianoconcorreu ao cargo de prefeito em 1927, como candidato único. Na época, ele

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vinha escrevendo “Caetés”, seu primeiro romance, passado na cidade e comdireito a descrições sobre a rotina e as relações sociais vigentes em Palmeira. Olivro é narrado em primeira pessoa, sob o ponto de vista de Paulo Valério, umhomem que se apaixona pela mulher de seu patrão, numa história que levará atragédias e arrependimentos.

Mas, antes de lançar “Caetés”, Graciliano fez sucesso com outro tipo depublicação. Ele foi prefeito de Palmeira entre 1928 a 1930. No período, escreveurelatórios para o governo de Alagoas, prestando contas de sua gestão e fazendo umbalanço sobre o que conseguiu realizar em seu mandato. Eram textos que, além dedescrever gastos e dificuldades do município, traziam ironias e reflexões acercado cargo.

“Dos administradores que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas;outros, inimigos de inovações, não se dedicaram a nada. Nenhum, creio eu, chegoua trabalhar nos subúrbios”, escreveu Graciliano. “Cuidei bastante da limpezapública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas geraçõesque por aqui passaram; incinerei monturos imensos, que a Prefeitura não tinhasuficientes recursos para remover. Houve lamúrias e reclamações por se havermexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias,reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cãesvagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dosfazendeiros que criavam bichos nas praças”, acrescentou.

Por sua qualidade, os relatórios circularam na época pelos meios intelectuais.O poeta e editor carioca Augusto Frederico Schmidt foi um dos que tiveramcontato com os textos, e, admirado, ele procurou Graciliano. Resultado: “Caetés”foi publicado em 1933, pela editora Schmidt, de propriedade de AugustoFrederico.

De certa forma, a carreira de prefeito de Graciliano ajudou a dar origem à suacarreira literária.

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CAPÍTULO 6

Os admiradores de Graciliano Ramos adoram contar uma história, um tantofolclórica, sobre uma norma decretada por ele quando prefeito de Palmeira dosÍndios. Com o objetivo de tentar diminuir a desordem na cidade, ele publicou umalei para que fossem multados todos aqueles que deixassem animais à solta nasruas. Até que, certo dia, o fiscal da prefeitura encontrou vacas de Sebastião Ramosde Oliveira, pai de Graciliano, em situação ilegal. E lhe tascou a multa.

Sebastião, então, foi reclamar com o filho. “Como assim você vai me multar?Eu sou seu pai”, disse. Impávido, apoiado na certeza da lisura pública, Gracilianorebateu com uma frase que, verdade ou mentira, poderia servir de exemplo para aatual política brasileira: “Prefeito não tem pai”.

— Muita gente gosta de falar que ele era uma pessoa carrancuda, mal-humorada. Mas minha avó contava que ele não gostava era de conversa besta. Nãorespondia a perguntas imbecis e, por isso, parecia chato — diz José Clóvis SoaresLeite, sobrinho-neto de Graciliano e atual chefe de gabinete da prefeitura. — Sónão tenho como mentir para você: o Graciliano realmente não tem uma presençaforte aqui na cidade. Existe um projeto pronto para fazer um grande centro deconvenções que levaria seu nome, com museu e biblioteca. Mas até agora nada foiacertado.

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Enquanto a prefeitura não se mexe para oficialmente aumentar a projeção donome de Graciliano em Palmeira dos Índios, cabe a fãs e parentes tentar mantersua memória viva. Além de José Clóvis, há algumas dezenas de sobrinhos eprimos do autor vivendo hoje na cidade. Nenhum deles o conheceu pessoalmente,mas a maioria se diz orgulhosa da genealogia famosa.

— Infelizmente, Alagoas tem pouca memória sobre seus filhos — diz oagrônomo Marcos Ramos, de 68 anos, sobrinho de Graciliano. — Se você for aAssaré, no Ceará, vai ver que a economia da cidade gira em torno do poetaPatativa. Mas aqui, nem mesmo a Casa Museu do Graciliano é bem conservada.Aquilo é horrível.

Aos 68 anos, Marcos Ramos é tido como o parente mais próximo e maisatuante na preservação da memória de Graciliano em Palmeira dos Índios. Filhode Amália, uma das irmãs do escritor, ele nasceu na cidade e é um fazendeirorespeitado. Na zona rural, os outros fazendeiros e também os peões o chamam de“doutor” Marcos.

Numa ocasião, há alguns anos, Marcos visitou o terreno de um vizinho, com aintenção de comprar uma vaca a um preço mais em conta. Perguntou o preço eobteve “R$ 2 mil” como resposta. Marcos achou caro e reclamou. Ouviu, então,uma frase de quem sabia quem ele era, mas não sabia como ele era: “Se você achacaro, então vai lá na fazenda do doutor Marcos Ramos que ele vai te cobrar R$ 5mil”.

Uma das propriedades da família de Marcos, hoje sob os cuidados de seu filhoThiago, é a fazenda Traipu. Ela fica em Minador do Negrão, município sertanejovizinho a Palmeira, com 5,3 mil habitantes, e que se tornou parte da mitologia emtorno de Graciliano Ramos por ter sido utilizada, no início dos anos 1960, comolocação para “Vidas secas”. O filme foi dirigido por Nelson Pereira dos Santos eé um dos clássicos do cinema brasileiro, tão importante quanto o livro.

— Na época do filme, a fazenda era do meu sogro — conta Marcos Ramos. —

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Hoje, ela continua do mesmo jeito, principalmente por causa dessa seca. Hámaneiras de conviver com ela, mas é duro. Tínhamos mil cabeças de gado, masprecisamos vender metade para evitar que algum animal morresse. Temos umaçude que, há dois anos, não vê água. Antigamente, a gente ainda cavava no leitodo rio e aparecia água. Hoje não aparece nada. E a paisagem é esta aqui que vocêvê, tudo seco.

Palmeira dos Índios fica no limite do agreste alagoano, quase no sertão, etambém decretou estado de emergência por causa da estiagem. Em situações deseca, os fazendeiros costumam alimentar os animais com a palma, um tipo de cactonutritivo, com poucos espinhos e resistente às adversidades climáticas doNordeste. Assim, para se precaver, é comum que os fazendeiros reservem parte deseus terrenos para a plantação de palmas — e, em alguns casos mais extremos, ocacto é utilizado até mesmo na alimentação humana.

A seca de 2013, porém, tem sido tão severa que nem mesmo a palma vemresistindo à falta de água: a planta não tem crescido suficientemente ou temmorrido. Por isso, há fazendeiros apelando para o uso do mandacaru — tambémum cacto, mais resistente que a palma, porém geralmente espinhoso — comoração. O mandacaru é considerado um último recurso para alimentar os animais,mas precisa ser utilizado com cuidado por causa dos espinhos, que devem serarrancados ou queimados. É um risco que os criadores de gado precisam correr.

— De dois anos para cá, nossa produção de leite diminuiu em 80% — relataThiago Costa, filho de Marcos Ramos. — Teve gente que se suicidou porqueperdeu todo o gado.

É numa casinha de taipa dentro da fazenda Traipu que vive, há quase trêsdécadas, Manoel Gardino, o senhor de 83 anos que simplesmente passa seus dias“ficando aqui”. O imóvel é parecido com o que foi utilizado na adaptação para ocinema de “Vidas secas” como moradia para a família de Fabiano. Sem energiaelétrica, Gardino ilumina a casa com candeeiros abastecidos de querosene. Na

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sala, há um sofá de três lugares, uma poltrona, uma estante repleta de fotos edúzias de imagens de santos espalhadas pelas paredes.

— Quando chegamos aqui, a casa tinha metade do tamanho de hoje, mas fomoscrescendo para agasalhar os moleques — diz Gardino.

A paisagem em volta da casa de Gardino é árida, com poucas árvores enenhuma outra habitação à vista. Ele mora com a mulher, Angelita da Silva, e maisdois filhos, de um total de 13 que tiveram. Sete deles se juntaram às centenas desertanejos que saem de suas casas semanalmente para trabalhar em Maceió ou emSão Paulo. Os outros ainda vivem na região, em casas semelhantes à do pai,apostando num futuro com melhores condições.

Apesar da idade que tem, Gardino diz ainda querer trabalhar, mas lamenta nãoencontrar serviço.

— Aqui está tão quente que dói no couro da gente — conta ele. — Está tudo seacabando. Com a seca não tem mais o que comer.

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CAPÍTULO 7

De acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a seca de2013 é uma das piores dos últimos 50 anos, tanto do ponto de vista hídrico quantopor seu impacto social. A informação integrou o relatório das Nações Unidas parao Brasil, publicado em abril. Ainda segundo o MCTI, há registros de outrasgrandes secas em 1877, 1914, 1932, 1945, 1953, 1965, 1993 e 1998. A diferençapara a deste ano, porém, está em sua duração: a estiagem vem desde 2012, e poucagente estava preparada para passar tanto tempo sem água.

No interior nordestino não existe um único morador que consiga ficar alheio aoproblema. Com “Vidas secas”, publicado em 1938, Graciliano ajudou a mostraressa dura realidade ao resto do país. Porém, anos antes, já quando prefeito dePalmeira dos Índios, ele escreveu no relatório de prestação de contas do exercíciode 1928: “O município é pobre e demasiado grande para a população que tem,reduzida por causa das secas continuadas”.

O tempo de Graciliano na seca não durou muito mais. Em 1930, ele renunciouao mandato de prefeito de Palmeira, mudou-se para Maceió e assumiu o cargo dediretor da Imprensa Oficial de Alagoas. Em 1933, foi nomeado diretor daInstrução Pública de Alagoas, órgão que cuidava da educação do estado.

Depois, passou a vida entre Alagoas e Rio de Janeiro, numa bem-sucedida

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carreira de escritor, publicando obras como o livro infantojuvenil “A terra dosmeninos pelados” (1939), até morrer, vítima de um câncer no pulmão, em 20 demarço de 1953. Uma de suas obras mais célebres, “Memórias do cárcere”, umrelato sobre o período em que ficou preso na Ilha Grande, no Rio, durante oEstado Novo de Getúlio Vargas, seria lançada postumamente ainda naquele ano,poucos meses após sua morte.

Mas o que talvez nem Graciliano imaginasse é que as secas continuariamocorrendo por muitos e muitos anos, e seus efeitos não teriam uma soluçãodefinitiva. E que, apesar das poucas referências a ele que existem hoje nas cidadesonde morou, sua obra ainda está presente em muitos dos dramas de quem vive nosertão.

Em Minador do Negrão, próximo à fazenda onde foram rodadas cenas de“Vidas secas”, por exemplo, funciona a Escola Municipal Antônio Sapucaia. Olocal é isolado, no meio de uma estrada de terra sem muitas outras casas à vista,mas serve de ponto de distribuição de água para os vizinhos. Cerca de 50 famíliasdependem dos carros-pipa que apareciam por lá duas vezes por semana.

Numa conversa com Mauricelia Cavalcante, professora do ensino fundamentalda escola, ela própria, sem saber que se tratava de uma reportagem sobre oescritor, faz um pedido que mistura cinema com televisão, televisão com jornal esonho com realidade.

— Já que vocês são da Globo, podiam fazer um novo “Vidas secas” por aqui.Para mostrar como estão as coisas hoje, iguais ao tempo de quando Graciliano eravivo — diz a professora.

É o tempo — cujo ritmo é distinto para Mauricelia, para Gardino, para JoséMaria, para Marlene e para todos os personagens das vidas secas nordestinas —que responde pelas angústias e também pelas esperanças do povo. Ainda emMinador, o fazendeiro Ari Barros aprendeu que apenas o tempo pode curar suasferidas.

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Ari tinha 80 cabeças de gado antes da seca. Hoje, restam oito. Alguns dos 72animais mortos entre dezembro de 2012 e abril de 2013 foram colocados num leitode rio, seco, dentro de seu terreno, formando um desolador cemitério sem lápides,com dezenas de vacas mortas espalhadas pelo solo. Ari diz não ter mais lágrimaspara lamentar a seca. Diz ter morrido um pouco com cada animal que se foi. Dizque o estado é de calamidade e que só lhe resta esperar por Deus.

Ele mesmo define a imagem, com um comentário que pode sugerir umsentimento de orgulho, mas definitivamente está mais próximo do lamento de quemnão tem mais palavras para descrever o impacto da seca.

— Vocês podem rodar à vontade por aí, mas não vão encontrar um lugarmelhor para a fotografia do que aqui — diz Ari. — Até o governador já esteve naminha fazenda para entender a calamidade que é esta seca. Eu tinha gado que nemestava pago, agora tenho que lidar com dívidas de animais que já morreram. Tenhoque pagar R$ 30 mil para o Banco do Brasil e outros R$ 20 mil para o Banco doNordeste. De onde vou tirar o dinheiro? Os governos precisam perdoar as dívidasdo Nordeste, para termos uma chance de recuperação.

Aos 36 anos, com uma filha de 3, ele já pensou em ir embora, mas não querabandonar a fazenda que foi de seu pai e seu avô. Ari, então, sugere cantar umatoada que ele próprio compôs, e, posicionado em meio aos animais mortos, abre ocoração:

“Ô, meu Deus, o que eu faço/Vendo meu gado se acabando/Sertanejochorando/Sem nenhuma remissão/Não existe mais ração/Agora é lágrima etristeza/Chora toda natureza/Quando há seca no sertão.”

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MAPA DAS CIDADES

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FOTOGRAFIAS, POR CUSTODIO COIMBRA

Em Palmeira dos Índios, a pior estiagem dos últimos 50 anos transforma a paisagemnum deserto

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Localizada no sertão de Pernambuco, a cidade de Buíque está desde o início do anosem receber água encanada

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Em Buíque, pequenos moradores brincam ao lado de uma ossada de boi: o que é umadiversão para eles representa o sinal da tragédia para a região

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Perto de Viçosa, crianças carregam baldes, panelas e vasilhas em busca do bem maisprecioso da região: a água

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O solo se torna árido entre as cidades de Estrela de Alagoas e Cacimbinhas, no sertãoalagoano

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O mandacaru é uma das poucas vegetações que resistem à estiagem em Palmeira dosÍndios: o cacto acaba sendo uma alternativa para dar de comer ao gado

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A imagem mais marcante da seca nordestina é o gado morto, que se espalha porestradas e fazendas de Alagoas

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Cemitério de bois em Buíque, cidade onde Graciliano morou na infância

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A paisagem desoladora em Buíque

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Residências em Estrela de Alagoas

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Devoção na casa de Maria Solange Soares à beira da estrada, em Estrela de Alagoas

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Casa de Adilson Vieira da Silva e Adaina Viana em Serrote dos Macacos

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Mina em Cacimbinhas

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Na margem da BR-316, Mara Aparecida Rezende, de 12 anos, passa o dia buscandoágua em uma mina a quase uma hora de casa

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A seca e a modernidade em Estrela de Alagoas

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POSFÁCIO

por José Castello

Graciliano Ramos (1892-1953) é o mais importante romancista da geração de1930, que marca o apogeu do regionalismo brasileiro. “Vidas secas”, de 1938, é oponto alto de sua obra. A grandeza de Graciliano, contudo, ultrapassa os domíniosclássicos do regionalismo e da estética realista e social, embora neles conserveseus fundamentos. Seu apego feroz ao real o transporta, em uma reviravoltatraiçoeira, para uma densa reflexão a respeito da linguagem e da própria literatura.A ficção de Graciliano nos obriga a aceitar o fato de que, sem a língua, não hárealidade. Sem as palavras, o mundo não existe.

Entre os horrores da fome e da miséria absoluta, um segundo horror permeia,de ponta a ponta, “Vidas secas”: a fome insaciável de palavras. Comunicar-se,expressar-se, dizer é, para Fabiano e sua mulher, Sinhá Vitória, como também paraos dois filhos e até para a cadela Baleia, uma questão de vida ou morte. Tãoessencial quanto a necessidade de alimentos. Provavelmente, até, anterior a ela.

O “buraco no peito” de que Fabiano nos fala não é só o vazio de comida, mastambém a ausência de palavras que confiram um sentido ao mundo. Considera-seum homem de imaginação fraca, derrotado pela incapacidade de narrar a própriaexistência. Evita as recordações — que não tem como expressar, preferindo ater-

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se à brutalidade dos fatos. Passa a crer, então, que os pensamentos são perigosos:“Uma ideia boa arrasta consigo outra ideia má”. Enquanto Vitória se agarra à ideiafixa de uma cama de couro, Fabiano protege-se com o manto espinhoso dosilêncio.

Só Baleia, a cadela, apesar de desprovida da fala, conserva uma tênue fé(fantasia) na existência de ossos para mastigar, embora não os veja nunca. Baleialuta, com seus parcos recursos de cadela, para entender o incompreensível.Também as crianças se debatem. Para o filho mais velho, as palavras e as coisasdivergem, e por isso os nomes se tornam traiçoeiros. Os pais conversam aospedaços e por imagens, perdidos entre o mal-entendido e a repetição. Há nafamília a consciência vaga de que só chegarão aos alimentos quando puderem,enfim, expressar a ideia da fome.

Em momentos de descontrole — como em sua briga com o soldado amarelo—, Fabiano, sem outros recursos, e imitando Baleia, “rosna” de raiva. Tenta daralguma explicação aos filhos a respeito de seus sofrimentos, mas as crianças seaborrecem com as contradições da fala paterna. Tudo é turvo — a fome é turva. Afamília sobrevive no desentendimento. Fabiano se culpa por sua “linguagem seca”.Livres dos nomes, que as crianças desconhecem, as coisas também lhes parecemmisteriosas. Palavras são luzes: são como o sol que resseca a terra. Como suportá-las?

Em uma visita à cidade, as crianças se perguntam, perplexas, como podem oshomens guardar na memória tantas palavras. Faltam-lhes as palavras essenciais —como as que buscam para expressar a morte de Baleia, que, mesmo na despedida,“cumpre suas obrigações de cadela”. A natureza se sobrepõe à linguagem, que seesfarela como as últimas plantas do sertão. Fabiano sente, sempre, “um peso pordentro”, que o empurra para a terra e o aproxima dos cactos.

É um homem que não consegue reter lembranças — e, sem elas, ninguémconstrói um destino. Mesmo quando fala, fala para esquecer, e não para recordar.

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Pergunta-se: seria seu desejo de tornar-se gente um despropósito? Enquanto sepergunta se as crianças pensam, ou são como os animais que se limitam a rosnar,ele se alimenta das precárias palavras que consegue trocar com a mulher. Palavrasfrouxas, pontuadas de assombros, que tornam o mundo pastoso e duvidoso.

A ausência da linguagem leva Fabiano a duvidar da própria existência. Eleexiste mesmo — ou será só um traço vago e inútil que se desenrola no horizontenordestino? Aos poucos percebe que, apesar das suspeitas que alimenta a respeitoda fala da mulher, é ela, ainda assim, quem prolonga sua vida e — como umaSherazade que, em vez de salvar a si mesma, salva o outro — adia a sua morte. Éa fala débil e incongruente de Vitória que, enfim, esboça a vitória do homem sobreo mundo. Rascunha um futuro e delineia uma existência.

“Vidas secas” não é só um relato sobre a miséria extrema e o horror da seca.Prisioneiros da fome e do deserto, Fabiano, Vitória e seus filhos lutam, todo otempo, em busca de um instrumento que os alce acima das coisas. A natureza —seca, inóspita, aterrorizante — não pode ser um destino. Alguma coisa a mais — ohumano, que só nasce revestido em palavras — deve surgir para que seja possíveldomá-la. A vida é seca não só porque é miserável, mas também porque ésilenciosa. Sem a possibilidade de falar, sem o poder de dar nomes às coisas, nãohá para Fabiano e sua família sofrimento que termine.

José Castello é jornalista e escritor, colunista do caderno Prosa, do “Globo”

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LINHA DO TEMPO

1892 – Nascimento em Quebrangulo (AL): no dia 27 de outubro, Maria Amélia daà luz Graciliano, o primeiro de seus 16 filhos com Sebastião Ramos.

1914 – Em busca de oportunidades no Rio: deixa Palmeira dos Índios (AL), paraonde a família se mudara, para tentar a sorte nas publicações cariocas. Trabalhacomo revisor no “Correio da Manhã”, em “A Tarde” e “O Século”.

1915 – De volta a Palmeira dos Índios: após a morte de três irmãos e um sobrinho,vítimas da epidemia da peste bubônica, o escritor volta à cidade, em setembro.Um mês após a chegada, casa-se pela primeira vez, com Maria Augusta. Elamorreria em 1920, no parto do quarto filho do casal.

1925 – A criação do primeiro romance: Graciliano dá início à produção de“Caetés”, que narra o trágico romance envolvendo João Valério, Adrião e MariaLuísa.

1928 – Prefeitura e o segundo casamento: um mês após assumir a prefeitura, oescritor se casa pela segunda vez, agora com Heloísa Leite de Medeiros, 17 anosmais nova, com quem teria mais quatro filhos. No mesmo ano, termina de escrevero romance “Caetés”.

1932 – “São Bernardo’’, romance na sacristia: os primeiros capítulos do segundoromance são escritos na sacristia da Igreja Matriz de Palmeira dos Índios. O

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romance conta a ascensão de Paulo Honório, de criança órfã a grande fazendeiro.

1933 – Lançamento dos primeiros livros: cinco anos depois de pronto, “Caetés” épublicado pela Editora Schmidt, do Rio de Janeiro. No ano seguinte, será a vez de“São Bernardo” ser publicado pela Editora Ariel, também do Rio.

1936 – Prisão em Maceió e cárcere no Rio: perseguido e preso em Maceió comosuposto simpatizante do socialismo, é mandado para o presídio de Ilha Grande, noRio de Janeiro. Em agosto, no cárcere, publica “Angústia”.

1937 – Depois da prisão, um prêmio federal: sem ser acusado formalmente,depois de oito meses Graciliano é libertado. No mesmo ano, escreve “A terra dosmeninos pelados”, que recebe o Prêmio de Literatura Infantil do Ministério daEducação.

1938 – Lança “Vidas secas’’, seu apogeu: a saga de Fabiano e sua família nodesolador semiárido nordestino, retrato das vítimas da seca que continuam lutandopela sobrevivência, tornou-se um clássico da literatura brasileira.

1945 – Romance de formação: lança “Infância”, romance de formação de tonsautobiográficos, em que narra sua meninice em Alagoas. Em agosto, a convite deLuís Carlos Prestes, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro.

1950 – Tragédia familiar: o filho mais velho do escritor, Márcio Ramos, suicida-se aos 34 anos após matar um companheiro de pensão durante umdesentendimento. Graciliano fica profundamente deprimido.

1952 – A visita aos países da Cortina de Ferro: entre abril e junho, o escritorvisita a União Soviética e a Tchecoslováquia, além de França e Portugal. Emsetembro, durante uma viagem a Buenos Aires, passa por uma cirurgia. No dia 5de outubro, muito doente, retorna ao Rio de Janeiro.

1953 – Publicação póstuma de suas memórias: no dia 20 de março, o escritormorre na Casa de Saúde São Vitor, no Rio, vítima de um câncer no pulmão. Em

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novembro, a viúva, Heloísa Ramos, lança a primeira obra póstuma, “Memórias docárcere”, que descreve os meses na prisão.

1963 – “Vidas secas” vira filme: Nelson Pereira dos Santos adapta o célebreromance para o cinema. O filme, um marco da produção brasileira, foiselecionado para o Festival de Cannes, na França, em 1964.

1972 – “São Bernardo” no cinema: Leon Hirszman leva para as telas a história dobruto Paulo Honório, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro.

1982 – Cartas de Graciliano: Heloísa Ramos publica “Cartas”, uma compilaçãoda correspondência pessoal de Graciliano. Dois anos depois, Nelson Pereira dosSantos adapta “Memórias do cárcere” para o cinema, com Carlos Vereza no papeldo escritor.

2012 – Inéditos reunidos em “Garranchos”: o pesquisador Thiago Mia Salla reúnemais de 80 textos do escritor publicados na década anterior ao lançamento dosseus primeiros romances, como colaborações para o jornal de Palmeira dosÍndios, cartas e crônicas.

2013 – Edição comemorativa de “Caetés”: o lançamento será feito pela EditoraRecord durante a Flip, em Paraty. A edição trará a capa original feita por TomásSanta Rosa, além de uma carta inédita de Graciliano, artigos da época e atuaissobre a obra do escritor.

2014 – No próximo ano, ensaios e crônicas: a Record prevê para março de 2014uma edição comemorativa de “Memórias do cárcere”, publicado originalmente em1953. Também estão previstos um livro de depoimentos e entrevistas e outro deensaios e crônicas sobre o cangaço.

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AGRADECIMENTOS

por André Miranda

Em abril de 2013, saímos do Rio, eu e o fotógrafo Custodio Coimbra, em direçãoa Alagoas. A ideia, que vinha sendo planejada por Mànya Millen, editora docaderno Prosa do “Globo”, e por mim desde o ano anterior, era percorrer cidadesidentificadas na obra de Graciliano Ramos, além das localidades onde ele morou.Queríamos, com isso, fazer um caderno especial dedicado ao autor, para serpublicado perto da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que haviaanunciado Graciliano como seu homenageado.

Dois dias depois de chegarmos a Alagoas, porém, percebemos a necessidadede mudar um pouco o foco. A seca, sobre a qual líamos desde criança em jornais,livros e, sobretudo, na obra de Graciliano, era a pior das últimas cinco décadas.Todas as nossas entrevistas com moradores, sobre qualquer assunto,invariavelmente passavam pela seca. A paisagem nos assustou; as histórias nostocaram. O cenário fez com que desviássemos levemente o rumo.

Dali, ainda em Alagoas, foram dezenas de conversas entre mim e Custodio, emais uma dúzia de trocas de e-mails entre nós, Mànya e também a Maria FernandaDelmas, editora do “Globo a Mais”, o jornal para tablet do “Globo”. Todos juntosfomos alinhando como seria o formato da reportagem. No quarto dia, Mànya já leu

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uma proposta que enviei do que seria a abertura do texto e deu sugestões. Nosétimo, Maria Fernanda escreveu dizendo que começava a se reunir paraviabilizar a transformação da reportagem num e-book.

O resultado foi uma edição especial do “Globo a Mais”; uma edição especialdo caderno Prosa; e este livro digital. A Mànya e Maria Fernanda, amigas e ex-chefes, todos os agradecimentos possíveis, por sempre acreditarem no trabalho epor ajudarem a melhorá-lo. Agradeço também às equipes do Prosa e do “Globo aMais”, pela paciência, pelo apoio e pela ajuda.

Na viagem, lamentei em vários momentos ter passado dez anos no “Globo”sem descobrir a amizade de Custodio Coimbra. Com seus anos de experiência nafotografia, Custodia agia como um garoto, acordando às 4h para começar afotografar “com uma luz melhor”, como ele dizia. Todos os dias ele trazia novashistórias que havia pesquisado na internet ou em jornais locais e que nos ajudarama definir um roteiro de viagem. Custodio lia versões do texto, conversava sobre ocaminho das fotos e discutia o trabalho com a empolgação de um iniciante.Ficamos amigos e, espero, possamos fazer no futuro novos trabalhos como estejuntos. Também na viagem, tivemos o auxílio de Miguel Ferreira, um alagoano quegostava de contar piadas e que foi nosso motorista e companheiro durante dezdias. Obrigado, Miguel.

Durante a elaboração do texto, além de Mànya, Maria Fernanda e Custodio,algumas outras pessoas leram e fizeram sugestões, praticamente todas pertinentes eaceitas. Entre elas, destaco Josy Fischberg, Télio Navega, Bernardo Araújo eGuilherme Freitas, amigos que souberam enxergar os exageros e identificar asqualidades do que escrevi.

Como a reportagem foi publicada em diversos formatos, houve mais de umdesigner envolvido na concepção visual do trabalho. O projeto do Prosa foi feitopor Chico Amaral e executado por Cristina Flegner. O do “Globo a Mais”, porTélio Navega. E o deste livro digital, por Maurício Tussi. Para a internet, foram

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feitos mapas que deram conta de ajudar o leitor a se guiar pelos temas dareportagem. Eles ficaram a cargo de Gabriela Allegro. Também foi feito um vídeo,reunindo depoimentos e imagens captados pelo Custodio, cuja direção foi deRicardo Mello. A todos esses, obrigado pelas palavras gentis e porcompreenderem a proposta.

Da mesma forma, nada disso teria começado sem o apoio do “Globo”. Eugostaria de citar cada uma das pessoas da redação que em algum momento, antes,durante ou depois da publicação da reportagem, fizeram comentários. Mas o medode ser injusto em algum esquecimento é maior do que o desejo de agrupar todos.Faço, então, uma menção a Sandra Sanches, diretora da Unidade O Globo daInfoglobo, e Ascânio Seleme, diretor de Redação do “Globo”, como forma deagradecimento coletivo. Sandra e Ascânio acreditaram no projeto e o autorizaramdesde o início. Num ano em que jornais brasileiros cortavam custos e diminuíamsuas edições, eles incentivaram a reportagem neste formato, com um texto único,mais aprofundado e maior do que se costuma publicar na imprensa.

Durante os dez dias da viagem e também no tempo de preparação para areportagem, conversei com algumas dezenas de pessoas. Não tenho o nome detodos, mas cito Luiza Ramos Amado, Ricardo Ramos Filho, Marcos Omena,Roberia Leite, Ivan Barros, Maria Solange Soares, José Maria Vieira da Silva,Ivonete da Silva, Adilson da Silva, Adriana Viana, Marcos Ramos, ThiagoAmorim Costa, Manoel Gardino, Angelita da Silva, Ari Barros, GerusaNascimento, Manoel Tenório, José Teixeira Ferro, Mauricelia Cavalcante, CíceraFeitosa Dantas, Ester Gomes da Silva, José Clóvis Soares Leite, Marlene Lopesda Silva, Miguel Antônio da Silva, Sidinéia Tavares, Manoel dos Passos Vilela,Audálio Honorato, Josefa Correa dos Santos, João Bezerra Cavalcanti, Ieda MariaSousa, Samuel Décio, Flavio José da Silva, Adriano Gonzaga Mello, MariaMadalena Feitosa, José Lima de Oliveira, Maria Feitosa de Oliveira, Tamires dosAnjos e Davino dos Santos Neto.

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Nem todos esses aparecem em “Novas vidas secas”, mas obrigado pelashistórias contadas. E um obrigado particular à família de Graciliano, em especiala Luiza Ramos Amado, sua filha, que sempre foi solícita em todos os nossoscontatos. Da mesma forma, agradecemos a ajuda do Grupo Editorial Record,editora da obra de Graciliano, que disponibilizou os relatórios do autor quandoprefeito de Palmeira dos Índios.

Por fim, um último agradecimento ao próprio Graciliano Ramos, a tudo o queele fez pela literatura brasileira. Esta história é dedicada à sua memória.

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BIBLIOGRAFIA

Bibliografia oficial organizada pelos herdeiros.

1. Os livros mais importantes, publicados em vida ou póstumos:

“Caetés” (1933)

“São Bernardo” (1934)

“Angústia” (1936)

“Angústia”, edição 75 anos (2011)

“Vidas secas” (1938)

“Vidas secas”, edição especial 70 anos (2008)

“Infância” (1945)

“Insônia” (1947)

“Memórias do cárcere” (1953)

“Viagem” (1954)

“Linhas tortas” (1962)

“Viventes das Alagoas” (1962)

“Garranchos” (2012)

2. Os infantojuvenis, que tiveram organizações diferentes, conforme seus editores:

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“A terra dos meninos pelados” (1939)

“Histórias de Alexandre” (1944)

“Alexandre e outros heróis” (1962)

“O estribo de prata” (1984)

3. Os livros de correspondência:

“Cartas” (1980)

“Cartas de amor a Heloísa” (1992)

4. As coletâneas de contos:

“Dois dedos” (1945)

“Histórias incompletas” (1946)

5. O romance produzido coletivamente:

“Brandão entre o mar e o amor” (1942)

6. As traduções

“Memórias de um negro” (1940), de Booker T. Washington

“A peste” (1950), de Albert Camus

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APÊNDICE I

PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRAS DOS ÍNDIOS

RELATÓRIO ao Governo do Estado de Alagoas — 1929

Exmo. Sr. Governador:

Trago a V. Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura dePalmeira dos Índios em 1928.

Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados,entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condiçõesem que o Município se achava, muito me custaram.

COMEÇOSO principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros,

segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeirainúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento,os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinhaa sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores dequarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.

Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontreiobstáculos dentro da Prefeitura e fora dela — dentro, uma resistência mole, suave,

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de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis.Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhordo que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.

Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos:saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não semetem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não seenganam em contas. Devo muito a eles.

Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse serpior.

RECEITA E DESPESAA receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a

71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque nãome gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que nãofaria se elas não estivessem determinadas no orçamento.

PODER LEGISLATIVODespendi com o poder legislativo 1:616$484 — pagamento a dois secretários,

um que trabalha, outro aposentado, telegramas, papel, selos.

ILUMINAÇÃOA iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é

de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz.

OBRAS PÚBLICASGastei com obras públicas 2:908$350, que serviram para construir um muro no

edifício da Prefeitura, aumentar e pintar o açougue público, arranjar outro açouguepara gado miúdo, reparar as ruas esburacadas, desviar as águas que, em épocas detrovoadas, inundavam a cidade, melhorar o curral do matadouro e comprarferramentas. Adquiri picaretas, pás, enxadas, martelos, marrões, marretas, carrospara aterro, aço para brocas, alavancas etc. Montei uma pequena oficina para

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consertar os utensílios estragados.

EVENTUAISHouve 1:069$700 de despesas eventuais: feitio e conserto de medidas,

materiais para aferição, placas. 724$000 foram-se para uniformizar as medidaspertencentes ao Município. Os litros aqui tinham mil e quatrocentos gramas. Emalgumas aldeias subiam, em outras desciam. Os negociantes de cal usavam caixõesde querosene e caixões de sabão, a que arrancavam tábuas, para enganar ocomprador. Fui descaradamente roubado em compras de cal para os trabalhospúblicos.

CEMITÉRIONo cemitério enterrei 189$000 — pagamento ao coveiro e conservação.

ESCOLA DE MÚSICAA Filarmônica 16 de Setembro consumiu 1:990$660 — ordenado de um

mestre, aluguel de casa, material, luz.

FUNCIONÁRIOS DA JUSTIÇA E DA POLÍCIAOs escrivães do júri, do cível e da polícia, o delegado e os oficiais de justiça

levaram 1:843$314.

ADMINISTRAÇÃOA administração municipal absorveu 11:457$497 — vencimentos do Prefeito,

de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente;impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetosnecessários à secretaria, telegramas.

Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordináriovai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçadospelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando quea coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado,que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se

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derrubou a Bastilha — um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua — umtelegrama; porque o deputado F. esticou a canela — um telegrama. Dispêndioinútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, quenós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.

ARRECADAÇÃOAs despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas

porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aquios contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem.

Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muitopenosa. O Município é pobre e demasiado grande para a população que tem,reduzida por causa das secas continuadas.

LIMPEZA PÚBLICA — ESTRADASNo orçamento limpeza pública e estradas incluíram-se numa só rubrica.

Consumiram 25:111$152.

Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade olixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturosimensos, que a Prefeitura não tinha suficientes recursos para remover.

Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamenteguardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandeimatar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças,guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.

POSTO DE HIGIENEEm falta de verba especial, inseri entre os dispêndios realizados com a

limpeza pública os relativos à profilaxia do Município.

Contratei com o dr. Leorne Menescal, chefe do Serviço de Saneamento Rural,a instalação de um posto de higiene, que, sob a direção do dr. HebrelianoWanderley, tem sido de grande utilidade à nossa gente.

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VIAÇÃOConsertei as estradas de Quebrangulo, da Porcina, de Olhos d’Água aos

limites de Limoeiro, na direção de Cana Brava.

Foram reparos sem grande importância e que apenas menciono para que estaexposição não fique incompleta. Faltam-nos recursos para longos tratos derodovias, e quaisquer modificações em caminhos estreitos, íngremes, percorridospor animais e veículos de tração animal, depressa desaparecem. É necessário quese esteja sempre a renová-las, pois enxurradas levam num dia o trabalho de mesese os carros de bois escangalham o que as chuvas deixam.

Os empreendimentos mais sérios a que me aventurei foram a estrada dePalmeira de Fora e o terrapleno da Lagoa.

ESTRADA DE PALMEIRA DE FORATem oito metros de largura e, para que não ficasse estreita em uns pontos,

larga em outros, uma parte dela foi aberta em pedra.

Fiz cortes profundos, aterros consideráveis, valetas e passagens transversaispara as águas que descem dos montes.

Cerca de vinte homens trabalharam nela quase cinco meses.

Parece-me que é uma estrada razoável. Custou 5:049$400.

Tenciono prolongá-la à fronteira de Sant’Ana do Ipanema, não nas condiçõesem que está, que as rendas do Município me não permitiriam obra de tal vulto.

OUTRA ESTRADAComo, a fim de não inutilizar-se em pouco tempo, a estrada de Palmeira de

Fora se destina exclusivamente a pedestres e a automóveis, abri outra paralela aotrânsito de animais.

TERRAPLENO DA LAGOAO espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa,

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um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero.

Buraco por toda a parte. O aterro que lá existiu, feito na administração doprefeito Francisco Cavalcante, quase que havia desaparecido.

Em um dos lados do caminho abria-se uma larga fenda com profundidade quevariava de três para cinco metros. A água das chuvas, impetuosa em virtude dainclinação do terreno, transformava-se ali em verdadeira torrente, o queaumentava a cavidade e ocasionava sério perigo aos transeuntes. Além dissooutras aberturas se iam formando, os invernos cavavam galerias subterrâneas, eaquilo era inacessível a veículo de qualquer espécie.

Empreendi aterrar e empedrar o caminho, mas reconheci que o solo nãofendido era inconsistente: debaixo de uma tênue camada de terra de aluvião, queuma estacada sustentava, encontrei lixo. Retirei o lixo, para preparar o terreno epara evitar fosse um monturo banhado por água que logo entrava em um riacho deserventia pública. Quase todos os trabalhadores adoeceram.

Estou fazendo dois muros de alvenaria, extensos, espessos e altos, parasuportar o aterro. Dei à estrada nove metros de largura. Os trabalhos vãoadiantados. Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações detoda a ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para acidade. Chegaram lá pedreiros — outras reclamações surgiram, porque as obrasirão custar um horror de contos de réis, dizem.

Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito,contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que não nos resignemos àsmodestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros. Até agora as despesas comos serviços da Lagoa sobem a 14:418$627.

Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nasmãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso,transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o

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distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.

(Os gastos com a estrada de Palmeira de Fora e com o terrapleno estão,naturalmente, incluídos nos 25:111$152 já mencionados.)

DINHEIRO EXISTENTEDeduzindo-se da receita a despesa e acrescentando-se 105$858 que a

administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.

40$897 estão em caixa e 11:004$050 depositados no Banco Popular eAgrícola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o depósito.

Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhumaespécie. A Prefeitura ganhou: livrou- se de um tesoureiro, que apenas serviria paraassinar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os tesoureiros não fazemoutra coisa, e teve 615$050 de juros.

Os 40$897 estão em poder do secretário, que guarda o dinheiro até que eleseja colocado naquele estabelecimento de crédito.

LEIS MUNICIPAISEm janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com

lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias deazeite.

Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura.Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo,convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.

Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era umdelgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, comaparência de primeiro livro de leitura do Abílio Borges. Um furo. Encontrei nofolheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo.

Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui agüentar-me,

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até que o Conselho, em agosto, votou o código atual.

CONCLUSÃOProcurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há

curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.

Evitei emaranhar-me em teias de aranha.

Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados;outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguemimpostos.

Não me entendi com esses. Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, eescreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalívelmaroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, maispreciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem nãocompreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quempretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras doscaminhos.

Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.

Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos osmeus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.

Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.

Não me fizeram falta.

Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anosdependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz eprosperidade.

Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.

GRACILIANO RAMOS

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APÊNDICE II

PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRAS DOS ÍNDIOS

2º RELATÓRIO ao Governo do Estado de Alagoas — 1930

Exmo. Sr. Governador:

Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V. Exa. mostrabem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura Municipal dePalmeira dos Índios. E nas contas regularmente publicadas há pormenoresabundantes, minudências que excitaram o espanto benévolo da imprensa.

Isto é, pois, uma reprodução de fatos que já narrei, com algarismo e prova deguarda-livros, em numerosos balancetes e nas relações que os acompanharam.

RECEITA — 96:924$985No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam

em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985.

E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favoreslargamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo àsextorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados,escorchados, esbrugados pelos exatores.

Não me resolveria, é claro, a pôr em prática no segundo ano de administração

Page 74: O Globo -Novas Vidas Secas

a eqüidade que torna o imposto suportável. Adotei-a logo no começo. A receita em1928 cresceu bastante. E se não chegou à soma agora alcançada é que me foramindispensáveis alguns meses para corrigir irregularidades muito sérias,prejudiciais à arrecadação.

DESPESA — 105:465$613Utilizei parte das sobras existentes no primeiro balanço.

ADMINISTRAÇÃO — 22:667$748Figuram 7:034$558 despendidos com a cobrança das rendas, 3:518$000 com a

fiscalização e 2:400$000 pagos a um funcionário aposentado. Tenho seiscobradores, dois fiscais e um secretário. Todos são mal remunerados.

GRATIFICAÇÕES — 1:560$000Estão reduzidas.

CEMITÉRIO — 243$000Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será

insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não mepermitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortosesperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.

ILUMINAÇÃO — 7:800$000A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o

fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo queassinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.

HIGIENE — 8:454$190O estado sanitário é bom. O posto de higiene, instalado em 1928, presta

serviços consideráveis à população. Cães, porcos e outros bichos incômodos nãotornaram a aparecer nas ruas. A cidade está limpa.

INSTRUÇÃO — 2:886$180Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e

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Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada poroperários, sociedade que se dedica à educação de adultos.

Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. Asaspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosaignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionarregularmente, como as outras.

Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, ahabilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorarsonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.

UMA DÍVIDA ANTIGA — 5:210$000Entregaram-me, quando entrei em exercício, 105$858 para saldar várias

contas, entre elas uma de 5:210$000, relativa a mais de um semestre que deixaramde pagar à empresa fornecedora de luz.

VIAÇÃO E OBRAS PÚBLICAS — 56:644$495Os gastos com viação e obras públicas foram excessivos. Lamento, entretanto,

não me haver sido possível gastar mais. Infelizmente a nossa pobreza é grande. Eainda que elevemos a receita ao dobro da importância que ela ordinariamentealcançava, e economizemos com avareza, muito nos falta realizar. Está visto queme não preocupei com todas as obras exigidas. Escolhi as mais urgentes.

Fiz reparos nas propriedades do Município, remendei as ruas e cuideiespecialmente de viação.

Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem emcurvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminhoque vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, temlugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa. Sempreme pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.

ESTRADA PALMEIRA A SANT’ANA

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Abandonei as trilhas dos caetés e procurei saber o preço duma estrada quefosse ter a Sant’Ana do Ipanema. Os peritos responderam que ela custaria aí unsseiscentos mil-réis ou sessenta contos. Decidi optar pela despesa avultada.

Os seiscentos mil-réis ficariam perdidos entre os barrancos que enfeitam umcaminho atribuído ao defunto Delmiro Gouveia e que o Estado pagou comliberalidade: os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar ao povo, nãoserviriam talvez ao contribuinte, que, apertado pelos cobradores, diz sempre nãoter encomendado obras públicas, mas a alguém haveriam de servir. Comecei ostrabalhos em janeiro. Estão prontos vinte e cinco quilômetros. Gastei 26:871$930.

TERRAPLENO DA LAGOAEste absurdo, este sonho de louco, na opinião de três ou quatro sujeitos que

sabem tudo, foi concluído há meses.

Aquilo, que era uma furna lôbrega, tem agora, terminado o aterro, um declivesuave. Fiz uma galeria para o escoamento das águas. O pântano que ali havia,cheio de lixo, excelente para a cultura de mosquitos, desapareceu. Deitei sobre asmuralhas duas balaustradas de cimento armado. Não há perigo de se despenhar umautomóvel lá de cima.

O plano que os técnicos indígenas consideravam impraticável era muito maismodesto.

Os gastos em 1929 montaram a 24:391$925.

SALDO — 2:504$319Adicionando-se à receita o saldo existente no balanço passado e subtraindo-se

a despesa, temos 2:504$319.

2:365$969 estão em caixa e 138$350 depositados no Banco Popular eAgrícola de Palmeira.

PRODUÇÃO

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Dos administradores que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas;outros, inimigos de inovações, não se dedicaram a nada.

Nenhum, creio eu, chegou a trabalhar nos subúrbios.

Encontrei em decadência regiões outrora prósperas; terras aráveis entregues aanimais, que nelas viviam quase em estado selvagem. A população minguada, ouemigrava para o Sul do país ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoadosque nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas.Vegetavam em lastimável abandono alguns agregados humanos.

E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão. Umaprincesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muitoescavacada.

Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei aspatifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nasquestões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; faciliteio transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor.

Estabeleci feiras em cinco aldeias: 1: 156$750 foram-se em reparos nas ruasde Palmeira de Fora.

Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcosmisturados com gente. Nunca vi tanto porco.

Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal,estrada de rodagem e uma escola.

MIUDEZASNão pretendo levar ao público a idéia de que os meus empreendimentos

tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E,comparados a outros ainda menores, demonstraram que aqui pelo interior podemtentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de

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imaginação ou microscópio.

Quando iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era deque ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem.E argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderiaser executado pelo Município.

Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem. Ou as obraspúblicas de Palmeira dos Índios são pagas pelo Estado. Chegarei a convencer-mede que não fui eu que as realizei.

BONS COMPANHEIROSJá estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido

era do povo, em segundo lugar porque tornaram fácil a minha tarefa uns pobreshomens que se esfalfam para não perder salários miseráveis.

Quase tudo foi feito por eles. Eu apenas teria tido o mérito de escolhê-los evigiá-los, se nisto houvesse mérito.

MULTASArrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não

vão bem.

E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passamdespercebidas. As infrações que produziram soma considerável para umorçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelaspessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dosque vão trepando.

Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multascontra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasseem paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhetransforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.

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Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando uminfeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heróica:encomendava-se a Deus e ia à capital. E os prefeitos achavam razoável que oscontraventores fossem punidos pelo sr. secretário do Interior, por intermédio dapolícia.

REFORMADORESO esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente

combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Emconformidade condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenascom os pobres-diabos sem proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aosvencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo deobras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à Divina Providência.

Belo programa. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os amigosque pagam, os que administram, os que hão de administrar. Seria ótimo. E existiriapor preço baixo uma Prefeitura bode expiatório, magnífico assunto paracommérage de lugar pequeno.

POBRE POVO SOFREDORÉ uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante

forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolamo próximo com juros de judeu.

Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, querestradas, quer higiene. É exigente e resmungão.

Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada umdos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelosoutros.

PROJETOSTenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da

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produção e, conseqüentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou deestiagem arruínam as searas, desmantelam tudo — e os projetos morrem.

Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos.

Há pouco tempo, com a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se nasruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes que por ali transitassemem noites de escuro.

Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança,arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolandode cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas eoutros órgãos apreciáveis.

Julgo que, por enquanto, semelhantes perigos estão conjurados, mas doismeses de preguiça durante o inverno bastarão para que eles se renovem.

Empedrarei, se puder, algumas ruas.

Tenho também a idéia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja.

Mas para que semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei compormenores os planos a que me referia quando eles estiverem executados, se istoacontecer.

Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É umapretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande.

O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura umsujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.

Paz e prosperidade.

Palmeira dos Índios, 11 de janeiro de 1930.

GRACILIANO RAMOS

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