O golpe de 1964 e o regime militar brasileiro · PDF fileconhecido como IV República ou República de 1946.2 O regime democrático e constitucional ... Como eles agiam: Os subterrâneos

Embed Size (px)

Citation preview

  • contemporanea Historia y problemas del siglo XX | Volumen 2, Ao 2, 2011, ISSN: 1688-7638 Ensayo | 209

    O golpe de 1964 e o regime militar brasileiro

    Apontamentos para uma reviso historiogrfica

    Marcos Napolitano1

    1 Doutor em Histria Social pela Univesidade de So Paulo (USP); professor na USP.

    Resumo

    Este ensaio historiogrico sobre o golpe militar de 1964 e o regime militar que se se-guiu, desenvolve-se em trs frentes de relexo: 1) Prope um balano crtico da bibliograia produzida desde os anos 1990; 2) Sugere novos temas e abordagens para uma histria poltica e cultural do perodo; 3) Discute as imbri-caes entre histria e memria nas relexes acadmicas sobre o regime militar. A partir destes trs eixos, so analisados os papis dos atores, instituies e correntes polticas, bem como revisadas as duraes, periodizaes e ritmos histricos consagrados pela bibliogra-ia estabelecida em torno da ditadura militar brasileira.

    Palavras-chave: regime militar, historio-graia, histria poltica, Brasil

    Abstract

    his historiographical essay on the 1964 military coup and the military regime that followed, is developed in three areas of re-lection: 1) It proposes a critical review of the literature produced since the 1990s, 2) it sug-gests new topics and approaches for a political and cultural history of the period, 3) it discus-ses the interplay between history and memory in academic relections on the military regime. From these three areas, the essay analyzes the roles of actors, institutions and political currents as well as revising durations, periodi-zations and historic rhythms enshrined in the existing historical literature on the Brazilian military dictatorship.

    Key words: military regime, historiography, political history, Brazil

    Contempornea02_2011-10-25.indd 209 10/31/11 12:16 PM

  • 210 | Napolitano contemporanea

    No dia 31 de maro de 1964, um levante militar, amplamente apoiado por foras civis, ps im no apenas ao governo reformista do Presidente Joo Goulart, mas tambm ao regime poltico conhecido como IV Repblica ou Repblica de 1946.2 O regime democrtico e constitucional que, por sua vez, nascera de um golpe militar contra o Estado Novo de Getlio Vargas, caia diante de outro golpe contra um dos herdeiros do getulismo em sua fase dita populista-democrtica.3 O esboo de uma poltica reformista, calcada em trs estratgias a nacionalizao da economia, a ampliao do corpo poltico da nao4 e a reforma agrria seria substituda por um regime militar anticomunista e anti-reformista, pautado por uma poltica desenvolvimentista sem a con-trapartida distributivista.

    bem da verdade histrica, no se pode dizer que os governos militares brasileiros que se sucederam entre 1964 e 1985 foram homogneos. Exemplo disso que as dinmicas das polticas setoriais econmica, social, relaes exteriores, direitos polticos e direitos humanos variou signiicativamente de general para general no poder. O que uniicava os grupos militares eram o anticomunismo e a rejeio poltica de massas, ou seja, a incorporao das massas no jogo pol-tico e eleitoral. Estes dois princpios conviviam com a obsesso pelo desenvolvimento industrial e superao do subdesenvolvimento de forma associada ao capital multinacional, criando um ambiente de segurana e desenvolvimento. De resto o regime no tinha uma ideologia ou uma poltica de governo constante e coesa. A Doutrina de Segurana Nacional at fornecia alguns princpios de conduo poltica e organizao do Estado, mas no chegava a ser uma ideologia de mobilizao das mentes e apelo aos coraes. Estava muito mais para um conjunto de diretrizes para ler a Guerra Fria e que se notabilizava pela sua nfase na despolitizao da sociedade e na tutela sobre o Estado por parte das Foras Armadas em nome do controle da subverso interna e defesa do Ocidente.5

    A literatura acadmica sobre o golpe e o regime

    Convivendo com a memria hegemnica sobre o golpe e o regime militar, h tambm uma perspectiva histrica bem estabelecida, construda pela literatura acadmica. Esta perspectiva his-trica, entretanto, mais fruto das relexes feitas por socilogos e cientistas polticos, do que dos trabalhos propriamente historiogricos, feitos por historiadores de ofcio. Entre os temas ligados ao estudo do regime militar, apenas o tema da resistncia, sobretudo a guerrilha de esquerda (e seus desdobramentos) e da censura constitui um campo bem pesquisado e mapeado pelos histo-riadores.6 A sociologia tinha seu foco em questes estruturais, buscando explicaes sistmicas

    2 Para um balano da Repblica de 46 ver Jorge Ferreira, Apresentao, Revista Tempo, UFF, Niteri, 28 (2010); Antonio Lavareda, A democracia nas urnas: O processo partidrio-eleitoral brasileiro 1946-1964 (Rio de Janeiro: IUPERJ/Revan, 1999); Glaucio Dillon Soares, A democracia interrompida (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001).

    3 O termo populismo vem sendo revisto criticamente pela historiograia brasileira e seu uso indiscriminado para explicar o regime que vigorou entre 1946 e 1964 tambm est sendo repensado. Ver Jorge Ferreira e Angela de C. Gomes, Populismo e sua histria (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001)

    4 Aqui me reiro, sobretudo, proposta para permitir que os analfabetos votassem, que poca constituam cerca de 40% da populao brasileira.

    5 Joseph Comblin, A Ideologia da Segurana Nacional: O poder militar na Amrica Latina (Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1980, 3ed).

    6 Daniel Reis Filho, A revoluo faltou ao encontro (So Paulo: Brasiliense, 1989); Jacob Gorender, Combate nas trevas: a esquerda brasileira das iluses perdidas luta armada (So Paulo: Atica, 1987); Marcelo Ridenti,

    Contempornea02_2011-10-25.indd 210 10/31/11 12:16 PM

  • O golpe de 1964 e o regime militar brasileiro | 211contemporanea

    para o golpe e para a natureza do regime. Em linhas gerais, para os trabalhos mais paradigmticos da sociologia o golpe era o eplogo em uma forma de gesto poltica das presses distributivas que diicultavam a acumulao de capital em situaes de dependncia e subdesenvolvimento.7 Depois da vaga sociolgica e das explicaes marxistas para o golpe e para o regime, fortes nos anos 1960 e parte dos anos 1970, a cincia poltica ganhou fora entre os anos 1980 e 1990. Seus autores mais importantes recolocaram a ao poltica como eixo da anlise, relativamente aut-noma em relao economia.

    Dois trabalhos muito inluentes oriundos desta rea de conhecimento foram 1964: A conquista do Estado, de Ren Armand Dreifuss e Estado e Oposio no Brasil 1964/1984, de Maria Helena Moreira Alves.8 Ambos foram, originalmente, teses de doutorado desenvolvidas no exterior, mais precisamente na Universidade de Glascow e no MIT, respectivamente. Ren Dreifuss aprofunda a anlise do papel a conspirao da direita civil calcada no empresariado brasileiro com ligaes transnacionais. Apoiado em vasta documentao, demonstra o a luta por hegemonia levada a cabo pela direo poltica da burguesia associada ao capital multinacional que se concretiza na conquista do Estado. O livro colocou nova luz sobre a organizao empresarial materializada no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e no Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD), rgos que ao lado da Escola Superior de Guerra formaram o think tank golpista e or-questraram a desestabilizao do governo Joo Goulart. O foco de Maria Helena Moreira Alves est mais ligado dialtica entre Estado e oposio, demonstrando a relao ativa e reativa entre os dois campos de fora poltica.

    Outra corrente da cincia poltica, calcada nos modelos tericos funcionalistas que sublinham a racionalidade dos atores institucionais, deu menos nfase ao golpe como resultado da conspi-rao perfeita e de um projeto ideolgico coerente que, negando o regime e o sistema de partidos anteriores, pautou o regime militar nos anos subseqentes. Alfred Stepan foi um dos precursores desta corrente explicativa, expressada no seu livro Os militares na poltica: mudanas de padres na vida brasileira (originalmente uma tese defendida em 1969, na Universidade de Columbia).9 Neste livro, Stepan lana algumas teses de alto impacto na explicao dos fatores polticos que levaram ao golpe. Entre elas, a idia de que as Foras Armadas so um subsistema do sistema poltico mais amplo, pautando sua ao a partir da busca da unidade interna e de uma ao mo-deradora, reequilibrado, ainda que de maneira autoritria, o sistema poltico em crise, ameaado pelas presses ideolgicas e movimentos sociais no institucionalizados. Para Stepan, o golpe militar rompe com este padro de interveno militar na poltica, fazendo com que o Exrcito reaja de maneira inusitada, historicamente falando, aos descaminhos do governo Goulart, ao permanecer no poder sob a forma de um regime autoritrio. A partir deste trabalho inicial, e revisando muitos dos seus pontos, Wanderley Guilherme dos Santos apresenta na Universidade

    O fantasma da Revoluo Brasileira (So Paulo: Unesp, 2010). Sobre a censura, o sistema repressivo e a propaganda ver Carlos Fico, Como eles agiam: Os subterrneos da ditadura miliar (Rio de Janeiro: Record, 2001); C. Fico, Reinventando o otimismo (Rio de Janeiro: FGV, 1997).

    7 Octavio Ianni, O colapso do populismo no Brasil (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1971); Fernando H. Cardoso, Associated-dependent development: theoretical and practical implications en Alfred Stepan (editor), Authoritarian Brazil (New Haven: Yale University Press, 1973); Francisco Oliveira, Economia Brasileira: crtica razo dualista (So Paulo: CEBRAP, 1975).

    8 R. Dreifuss, 1964: A conquista do Estado (Petrpolis: Vozes, 1981); Maria Helena M. Alves, Estado e oposio no Brasil, 1964-1984 (Petropolis: Vozes, 1984).

    9 A. Stepan, Os militares na poltica: mudanas de padres na vida brasileira (Rio de Janeiro: Artenova, 1975).

    Contempornea02_2011-10-25.indd 211 10/31/11 12:16 PM

  • 212 | Napolit