O Governo Goulart e o Golpe de 64- Caio N. Toledo.pdf

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  • Caio Navarro de Toledo

    O Governo Goulart

    E o Golpe de 64

  • ndice

    Um governo no entreato golpista

    O "golpe branco" ou "a soluo de compromisso"

    A crise poltico-institucional na verso parlamentarista

    Um governo no trapzio

    A politizao da sociedade esquerda e direita

    mobilizam-se

    O golpe poltico-militar

    Concluses

    Indicaes para leitura

  • Um governo no entreato golpista

    O governo Joo Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o signo

    do golpe de Estado. Se, em agosto de 1961, o golpe militar pde

    ser conjurado, em abril de 1964, no entanto, ele deixaria de se

    constituir no fantasma que rondou e perseguiu permanentemente o

    regime liberal-democrtico inaugurado em 1946 para se tornar nu-

    ma concreta realidade.

    No dia 25 de agosto de 1961, Jnio Quadros resignava sem ao

    menos completar sete meses na Presidncia da Repblica. Na carta-

    renncia autntica pardia e pastiche da carta-testamento de Ge-

    tlio Vargas, como observaram diversos autores , Quadros no for-

    mulou uma nica razo convincente para explicar e justificar o seu

    teatral gesto. Se, naquele momento, a denncia do golpe janista

    soava como uma mera especulao, hoje restam poucas dvidas a esse

    respeito. A rigor, a renncia constitua-se no primeiro ato de uma

    trama golpista. Julgava o demissionrio que os ministros militares

    no apenas impediriam a posse de Joo Goulart, como tambm procu-

    rariam impor, juntamente com o massivo e sonoro "clamor popular",

    o retorno do "grande lder". Na sua fantasia, Quadros voltaria,

    pois, nos "braos do povo".

    As iluses do renunciante, contudo, logo se desvaneceram. Nem

    os ministros militares e, menos ainda, as massas populares tomaram

    qualquer iniciativa no sentido de reivindicar a volta de Quadros.

    Em vrias partes do pas, os setores populares e democrticos sai-

    riam s ruas para defender, isto sim, a posse de Joo Goulart, a-

    meaada por um arbitrrio veto militar, plenamente respaldado pela

    UDN e demais setores conservadores. As manifestaes populares,

    associadas com as de polticos democrticos e de militares nacio-

    nalistas, conseguiram impedir o golpe militar que se configurava

    em agosto de 1961.

    Assim, com a diferena de poucos dias, duas tentativas de gol-

    pe se sucediam: a de Jnio Quadros e a dos setores militares. Trs

    anos depois, tendo sido alcanada uma forte coeso ideolgica no

    seio das Foras Armadas, os militares impuseram, juntamente com a

    significativa mobilizao poltica das classes dominantes e de se-

    tores das classes mdias, uma nova ordem poltico-institucional no

    pas. Os setores populares e democrticos, a partir de ento, pa-

    gariam um preo muito elevado pela resistncia oferecida aos gol-

    pistas em 1961.

    Foi, portanto, no entreato de alguns ensaios golpistas e de um

    golpe poltico-militar, plenamente vitorioso, que existiu o gover-

    no Joo Goulart. Nos seus dois anos e meio de vigncia (setembro

    de 1961 a maro de 1964), um novo contexto poltico-social emergiu

    no pas. Este novo quadro caracterizou-se por uma intensa crise

    econmico-financeira, freqentes crises poltico-institucionais,

    extensa mobilizao poltica das classes populares, ampliao e

    fortalecimento do movimento operrio e dos trabalhadores do campo,

    crise do sistema partidrio e acirramento da luta ideolgica de

    classes.

    Este perodo da histria poltica brasileira significativo

  • ainda pois nele se intensificam e se condensam alguns dos impasses

    e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as con-

    tradies sociais so processos constitutivos da formao social

    capitalista e de seus regimes polticos, ento o perodo de

    1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida po-

    ltica brasileira posto que nele ocorreu uma polarizao poltica

    e ideolgica com dimenses inditas e com caractersticas singula-

    res. Para os que vem nos conflitos e nos antagonismos o sinal da

    desagregao social, os "tempos de Goulart" s podem ser encarados

    como trgicos "tempos do caos e da anarquia".

    1964 , pois, um marco divisor e uma referncia obrigatria em

    qualquer avaliao sobre o passado recente. Decorridos menos de 20

    anos da queda do regime liberal-democrtico, no deixam de ser a-

    inda conflitantes as interpretaes sobre o perodo Goulart. A

    nosso ver, motivaes antagnicas parecem estar presentes em algu-

    mas dessas interpretaes. As esquerdas no obstante reconheam

    os reais avanos sociais e polticos ocorridos no perodo , bus-

    cam, fundamentalmente, investigar as razes dos limites e das im-

    possibilidades da democracia burguesa com caractersticas "popu-

    listas". A direita, ao definir os "tempos de Goulart" como a ex-

    presso acabada de toda a perversidade social (subverso, cor-

    rupo, crise de autoridade, desordem etc), procura justificar a

    implantao do regime autoritrio e a perpetuao do poder de Es-

    tado militarizado.

  • O "GOLPE BRANCO" OU

    "A SOLUO DE COMPROMISSO"

    O veto militar

    Com a renncia de Jnio Quadros, o Congresso Nacional, reunido

    extraordinariamente no dia 25 de agosto de 1961, dava posse, na

    Presidncia da Repblica, a Ranieri Mazzilli (presidente da Cmara

    dos Deputados). Tal soluo era encontrada em virtude de se encon-

    trar ausente do pas o vice-presidente da Repblica, Joo Goulart.

    Imediatamente, os meios de comunicao do pas passavam a di-

    vulgar verses cuja veracidade seria confirmada nos dias seguin-

    tes segundo as quais haveria, da parte de expressivos crculos

    militares, uma forte oposio posse constitucional de Joo Gou-

    lart na Presidncia da Repblica. As notcias iam mais longe: a-

    firmava-se que os ministros militares no apenas desaconselhavam o

    retorno imediato de Goulart, como estavam decididos a det-lo no

    momento em que pisasse o territrio nacional. Ao mesmo tempo que

    difundiam estas informaes, vrios jornais da chamada grande im-

    prensa expressando a opinio poltica dos setores conservadores

    das classes dominantes conclamavam as Foras Armadas a assumirem

    um papel decisivo na crise poltica que se configurava com a re-

    nncia de Jnio Quadros. Em outras palavras, tais setores estimu-

    lavam e apoiavam o golpe militar.

    No dia 28 de agosto, atravs do presidente-interino, os trs

    ministros militares buscaram impor ao Congresso a aprovao de uma

    breve nota onde sem qualquer justificativa era vetada a posse

    de Goulart. Por uma expressiva maioria, os congressistas manifes-

    taram-se contra aquela arbitrria e ilegal exigncia. No dia 30,

    os ministros militares voltariam carga. Atravs de um manifesto

    nao, agora se dignavam a explicitar as razes do veto a Joo

    Goulart. A certa altura, afirmava o documento: "Na Presidncia da

    Repblica, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal

    ao chefe do governo, o sr. Joo Goulart constituir-se-, sem d-

    vida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que dese-

    jam ver o Pas mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil".

    Todas estas "previses" eram feitas na base do passado poltico de

    Goulart. Na tica dos militares e dos demais setores civis golpis-

    tas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia de "negativo" na vida

    poltica brasileira: demagogo, subversivo e implacvel inimigo da

    ordem capitalista. Seria o "diabo" to vermelho como o pintavam?

    Goulart: por um capitalismo "humano" e "patritico"

    Nos primeiros anos de sua rpida trajetria poltica, os es-

    treitos laos de amizade mantidos com o ex-ditador seu vizinho

    de estncia na longnqua So Borja (RS) transformavam Goulart em

  • figura altamente suspeita aos olhos dos setores antigetulistas.

    Como deputado pelo Rio Grande do Sul, eleito em 1950, Goulart so-

    freu contundentes ataques pela imprensa; esteve seriamente ameaa-

    do de perder o mandato parlamentar, pois raramente comparecia

    Cmara Federal. Dedicava-se s suas tarefas de presidente do Dire-

    trio Estadual do PTB e, desde ento, orientava toda a sua ao

    poltica em direo ao movimento sindical. Destacando-se neste ti-

    po de atividade, foi escolhido, em 1953, por Vargas, para o cargo

    de ministro do Trabalho.

    Foi um "deus nos acuda". Como admitir, num Ministrio do Esta-

    do, indagavam os setores de direita e liberais conservadores, o

    "chefe do peronismo brasileiro", o "demagogo sindicalista", o

    "corrupto negociante"? Pior ainda, prognosticavam: controlando e

    manipulando a classe operria e as massas populares, a partir do

    Ministrio do Trabalho, Jango se constituiria numa pea importante

    para o sucesso de um novo golpe de Estado que estaria sendo engen-

    drado pelo "maquiavlico" Vargas.

    Como ministro do Trabalho, Goulart diariamente acusado de

    insuflar greves e de pregar a luta de classes. Seu maior sonho,

    afirmam ainda seus crticos, seria o de implantar no Brasil a "Re-

    pblica sindicalista" nos moldes do justicialismo peronista. Fa-

    zendo blague, mas iradamente, um influente peridico das classes

    dominantes denunciava que Jango, ao invs de ser ministro do Tra-

    balho, transformara-se num autntico "ministro dos Trabalhado-

    res"... Diante desta lamentao, a resposta de Goulart seria ex-

    tremamente elucidativa. Numa entrevista, expressou com muita cla-

    reza a estratgia do Estado democrtico-burgus quanto questo

    sindical: "(...) essa confiana do proletariado na secretaria de

    Estado que dirijo deveria constituir-se num motivo de tranqilida-

    de (para os patres), e nunca de alarme. Pretender-se-ia, talvez,

    que o operariado brasileiro, j to desencantado, no acreditasse

    nos poderes constitucionais?" (grifo nosso).

    Como herdeiro de imensa fortuna pessoal e grande proprietrio

    de terras ("um latifundirio com saudvel instinto de propriedade

    privada", como afirmou um de seus colaboradores), Goulart era, tal

    como seus crticos de direita, um fiel defensor do capitalismo. No

    entanto, asseverava ele, sua diferena em relao a estes residia

    na sua aspirao a um capitalismo mais "humanizado" e "patriti-

    co"; ou seja, Jango dizia opor-se quilo que hoje se convencionou

    chamar de "capitalismo selvagem". "No passa de torpe intriga o

    boato de que sou contra o capitalismo. frente do Ministrio do

    Trabalho estou pronto a estimular e a aplaudir os capitalistas que

    fazem de sua fora econmica um meio legtimo de produzir rique-

    zas, dando sempre s suas iniciativas um sentido social, humano e

    patritico."

    Pouco mais de oito meses permaneceria no Ministrio do Traba-

    lho do segundo governo Vargas. Enquanto Goulart defendia publica-

    mente um aumento de 100% para os trabalhadores que ganhavam sal-

    rio mnimo, Vargas, atravs de seu ministro da Guerra, tomava co-

    nhecimento de um documento ("Memorial dos Coronis") assinado por

    81 oficiais do Exrcito. Nele se advertia o Exrcito e a Nao dos

    perigos do "comunismo solerte sempre espreita", do "clima de ne-

    gociata, desfalques e malversao de verbas", da "crise de autori-

  • dade" que solapava a coeso de "classe militar" etc. Em nenhum

    instante o nome de Jango era citado no "Memorial", mas a conse-

    qncia da sua divulgao pela imprensa foi a sua imediata demis-

    so do Ministrio do Trabalho. (Entre os signatrios do documento,

    redigido pelo ento ten.cel. Golbery do Couto e Silva, estavam mi-

    litares que, dez anos mais tarde, afastariam Goulart definitiva-

    mente da vida poltica brasileira: Amaury Kruel, Syzeno Sarmento,

    Slvio Frota, Ednardo D'vila, Euler Bentes, etc.)

    Como vice-presidente da Repblica, durante o qinqnio desen-

    volvimentista de Juscelino Kubitschek, Joo Goulart no deixaria

    de estar sob o fogo cerrado da direita e de setores liberais-

    conservadores. No manifesto de agosto de 1961, os ministros mili-

    tares alinhavam algumas acusaes: "No cargo de vice-presidente,

    sabido que usou sempre de sua influncia em animar e apoiar,

    mesmo ostensivamente, manifestaes grevistas promovidas por co-

    nhecidos agitadores. E, ainda h pouco, como representante oficial

    em viagem URSS e China Comunista, tornou clara e patente sua

    incontida admirao ao regime destes pases, exaltando o xito das

    comunas populares".

    Desta forma, na tica dos polticos e militares, comprometidos

    com as ideologias liberal-conservadora e de direita, de nada adi-

    antava Goulart reiteradamente afirmar a sua crena no capitalismo.

    Deixavam, pois, de reconhecer que a atuao poltica de Jango (se-

    ja na condio de ministro de Trabalho, seja na de vice-presi-

    dente) contribua objetivamente para um melhor controle do Estado

    burgus sobre as atividades sindicais. Igualmente, aqueles setores

    deixavam de perceber que tal como concebia e exercia suas fun-

    es polticas e administrativas Jango era uma eficiente porta-

    voz, nos meios sindicais e populares, da ideologia populista do

    Estado protetor e "acima das classes". Obstinadamente reacionrios

    e intransigentemente anticomunistas, no conseguiam deixar de re-

    presentar Jango na figura de "perigoso agitador" e de "demagogo

    sindicalista".

    A luta pela legalidade

    Nem todos os setores sociais e polticos, no entanto, inter-

    pretavam nessa direo a trajetria poltica de Joo Goulart. No

    viam, pois, razes para lhe negar o direito de assumir a Presidn-

    cia da Repblica. Ideologicamente, estes setores afinavam-se com o

    nacionalismo reformista, com a liberal-democracia, com a esquerda

    revolucionria. Governadores de estados, parlamentares federais e

    estaduais, sindicatos de trabalhadores, entidades de empresrios

    (CONCLAP), estudantes e alguns setores militares, se manifestavam

    em defesa da ordem constitucional.

    Dos governadores estaduais que declararam seu apoio posse de

    Goulart (Carvalho Pinto, So Paulo; Ney Braga, Paran; Mauro Bor-

    ges, Gois e Leonel Brizola, Rio Grande do Sul), foram estes dois

    ltimos os que mais intensamente se empenharam na" "defesa da le-

    galidade". Contudo, foi a partir de Porto Alegre que se unificou a

    oposio nacional ao golpe militar, em virtude da decidida ao

  • poltica de seu governador e da adeso do III Exrcito, sob o co-

    mando do gal. Machado Lopes. Brizola mobilizou amplos recursos de

    seu estado, chegando, inclusive, a se dispor a distribuir armas

    populao civil para combater eventuais ataques das foras golpis-

    tas. Atravs das emisses da "Rede da Legalidade", acompanhava-se

    o desenrolar dos acontecimentos em todo o pas e articulava-se o

    movimento antigolpista em nvel nacional.

    Militares nacionalistas (o mal. Lott fora preso por ter lana-

    do um manifesto contra o golpe), altos-oficiais do Exrcito, orga-

    nizaes militares sediadas nos estados do Par, Minas Gerais, Rio

    Grande do Sul, So Paulo, Gois, Guanabara e at mesmo em Bras-

    lia, almirantes, associavam-se ao movimento contra a soluo cons-

    piratria. Apesar de proibidas e reprimidas, manifestaes popula-

    res sucediam-se nos grandes centros urbanos (passeatas, comcios,

    panfletagem etc). Vrias entidades de classe condenavam os golpis-

    tas e defendiam a posse de Goulart. Inmeras greves polticas em

    diversos setores (txtil, transportes, bancrios, metalrgicos,

    porturios, etc.) culminam numa greve nacional em "defesa da lega-

    lidade", deflagrada pelo Comando Geral da Greve (CGG), embrio do

    CGT. A UNE decretou "greve nacional"; na Bahia os estudantes cria-

    vam a Frente de Resistncia Democrtica.

    A "soluo de compromisso"

    O Congresso Nacional, expressando o sentimento geral dos seto-

    res democrticos e populares, negava-se, no primeiro momento, a

    transigir com os golpistas. Contudo, os dois grandes partidos con-

    servadores (UDN e PSD) articulavam, desde as primeiras horas da

    crise, a chamada "soluo de compromisso": a emenda constitucional

    que institua o regime parlamentarista no Pas. Se o golpe militar

    era derrotado, um golpe poltico, no entanto, era perpetrado con-

    tra o regime vigente, pois a carta de 1946 proibia, taxativamente,

    toda e qualquer reforma constitucional num clima insurrecional. Um

    outro significado deste "golpe branco" que a emenda parlamenta-

    rista retirava a eleio do presidente da Repblica do mbito po-

    pular, transferindo-a para o espao reduzido da Cmara Federal.

    Por 236 votos a favor e 55 contra (40 eram do PTB), a emenda

    constitucional era aprovada no Congresso Nacional. Os congressis-

    tas julgavam-se vitoriosos, pois afirmavam ter evitado uma "guerra

    civil" no pas. Na verdade, o Congresso, atravs de sua maioria

    conservadora e liberal-democrata com o incentivo dos militares

    dissidentes e com a anuncia dos golpistas , adiantou-se em ofe-

    recer tal soluo, pois o avano das foras populares passava a se

    constituir numa ameaa poltica indesejvel. Para os idelogos

    burgueses da Cincia Poltica, o Congresso Nacional, neste epis-

    dio, dava uma excelente lio daquilo que denominam de "realismo

    poltico" ou da "arte de conciliao".

    Alguns analistas afirmam, hoje, que o parlamentarismo no se

    configurava, naquela conjuntura, como uma sada poltica inescap-

    vel. Argumentam que o tempo corria na direo favorvel manu-

    teno do regime presidencialista, posto que o crescimento da par-

  • ticipao popular e a ampliao dos setores polticos e militares

    antigolpistas punham na defensiva e em minoria as foras reacion-

    rias. Como sugere o ex-deputado Almino Afonso: "Com mais alguns

    dias de resistncia poltica do presidente Joo Goulart teria ha-

    vido a soluo normal, que seria a sua posse dentro do sistema

    presidencial". Ao contrario disso, Joo Goulart no apenas concor-

    dou com a emenda constitucional, como se apressou em escolher uma

    solene efemride nacional para ser empossado. No dia 7 de setembro

    de 1961, Joo Belchior Marques Goulart recebia no Congresso Nacio-

    nal a faixa presidencial, sob o manto do regime parlamentarista.

    De acordo com a emenda parlamentarista, o Poder Executivo pas-

    sava a ser exercido pelo presidente da Repblica e por um Conselho

    de Ministros (Gabinete Parlamentar), a quem caberia a "direo e a

    responsabilidade da poltica do governo, assim como a administra-

    o federal". Ao presidente competiria nomear o presidente do Con-

    selho de Ministros (primeiro-ministro) ou chefe do governo e, por

    indicao deste, os demais membros ministros de Estado. Na verda-

    de, transformava-se o presidente da Repblica em autntico chefe

    de Estado, perdendo a sua iniciativa de elaborar leis, orientar a

    poltica externa, elaborar propostas de oramentos, etc. O governo

    se efetivava fundamentalmente atravs do Conselho de Ministros

    que, por sua vez, dependia permanentemente do voto de confiana do

    Congresso Nacional. A emenda constitucional n 4, nas suas Dispo-

    sies Transitrias, previa a realizao de um plebiscito que vi-

    esse a decidir acerca da "manuteno do sistema parlamentar ou

    volta ao sistema presidencial". Tal consulta popular devia ocorrer

    nove meses antes do trmino do perodo presidencial de Goulart.

    Sob rdeas relativamente curtas, Joo Goulart iniciava, assim,

    seu governo na verso parlamentarista. Mas, conforme confessaria a

    um assessor, faria ele de tudo para abreviar a vida do novo regi-

    me. Recusava-se a representar o papel de uma "Rainha Ehzabeth".

    Queria governar, no apenas reinar...

  • A CRISE POLlTICO-INSTITUCIONAL

    NA VERSO PARLAMENTARISTA

    Na curta existncia do regime parlamentarista (setembro de

    1961 a janeiro de 1963), o pas veria sucederem-se trs Conselhos

    de Ministros, alm de se defrontar com o agravamento de sua situa-

    o econmico-financeira e se debater ainda com novas crises pol-

    tico-institucionais. Administrativamente ineficiente e politica-

    mente invivel, o parlamentarismo sistema natimorto, como alguns

    o denominaram teria os seus dias contados dentro da vida repu-

    blicana brasileira.

    Do ponto de vista econmico, o governo parlamentarista no a-

    penas herdava as profundas distores da poltica desenvolvimen-

    tista do governo Kubitschek como tambm tinha de fazer face s

    conseqncias imediatas das medidas econmico-financeiras postas

    em prtica pela fracassada administrao Quadros. No perodo Ku-

    bitschek, ao se optar por um elevado nvel de investimentos e ao

    se manter as importaes de equipamentos necessrios ao de-

    senvolvimento econmico, apelou-se para um progressivo endivida-

    mento externo. No perodo 1956/60, mostram os dados oficiais, o

    dficit nas transaes correntes (mercadorias e servios) alcanou

    a elevada cifra de 1,2 bilhes de dlares. De outro lado, "como o

    investimento externo fazia-se com a regalia da Instruo 113, isto

    , sem cobertura cambial, o atendimento do dficit fez-se, princi-

    palmente, atravs de emprstimos a curto prazo e de atrasos comer-

    ciais, aumentando o endividamento externo" (Cibilis Viana, Refor-

    mas de Base e a Poltica Nacionalista de Desenvolvimento). A taxa

    inflacionria elevou-se significativamente nos ltimos anos do go-

    verno Kubitschek, agravada fundamentalmente pela "deteriorao das

    relaes de troca, acmulo de estoques invendveis de caf adqui-

    ridos pelas autoridades monetrias; crescimento insuficiente da

    oferta de produtos agrcolas e oligopolizao do comrcio ataca-

    dista de gneros alimentcios" (Idem, ibidem). No perodo desen-

    volvimentista anterior, houve um acentuado descompasso entre o

    crescimento do setor industrial e o da agricultura. Ainda segundo

    o autor acima, "a produo agrcola apresentou a taxa anual mdia

    de crescimento de 4,3% inferior a de todos os demais perodos".

    Com o aumento da populao urbana (75% entre 1952 a 1961) e um au-

    mento do poder de compra dos assalariados em geral, houve, conse-

    qentemente, a expanso da demanda de alimentos. Com o insuficien-

    te crescimento da produo agrcola para o mercado interno, pas-

    saram a ocorrer, a partir de 1961, agudas crises de abastecimento,

    gerando inquietaes sociais e movimentos reivindicatrios de

    grande extenso nos campos e nas cidades.

    Alm desses problemas, o governo que se empossava tinha de en-

    frentar as graves conseqncias da reforma cambial precipitadamen-

    te realizada por Quadros. Atravs da famigerada Instruo 204 da

    SUMOC, instituiu-se o regime de liberdade cambial (enganosamente

    denominado de "verdade cambial"). A partir de agora, as importa-

    es passavam a ser realizadas a taxas de mercado livre, ficando

    suprimidos os subsdios governamentais s compras de petrleo,

  • trigo e papel. Na justificativa oficial, buscava-se alcanar o e-

    quilbrio das transaes com o exterior, altamente comprometido no

    governo Kubitschek. A eliminao dos subsdios teve como con-

    seqncia uma brusca e imediata alta do custo de vida, particular-

    mente daqueles produtos que eram fundamentais no oramento das

    classes trabalhadoras.

    Um gabinete de "unio nacional"

    No dia 8 de setembro de 1961, o Congresso Nacional aprovava o

    primeiro Conselho de Ministros; era ele presidido por Tancredo Ne-

    ves, conhecida figura do PSD mineiro. Goulart e Tancredo denomi-

    naram o gabinete de "unio nacional". Uma vez mais, pois, a frmu-

    la da "unio nacional" era desenterrada do arsenal ideolgico das

    classes dominantes a fim de encobrir a existncia de conflitos e

    antagonismos no interior da conjuntura poltica. Na verdade, o

    primeiro gabinete representava uma ntida derrota do movimento po-

    pular que, alguns dias antes, havia empolgado o pas. Como as es-

    querdas viriam a denunciar, tratava-se de um autntico "gabinete

    de conciliao": "conciliao para evitar que fossem colhidos os

    frutos da vitria popular. Conciliao com os imperialistas, con-

    ciliao com os golpistas" (Paulo M. Lima, in Revista Brasiliense,

    n 22).

    A vitria das foras politicamente conservadoras do Congresso

    evidenciava-se mediante a composio do Gabinete, onde 4 ministros

    representavam o PSD e 2 a UDN; ao partido do qual o presidente da

    Repblica era o presidente nacional, PTB, coube apenas uma pasta:

    o Ministrio das Relaes Exteriores, na figura de Francisco San

    Tiago Dantas. O importante Ministrio da Fazenda teve sua respon-

    sabilidade entregue ao banqueiro Walter Moreira Salles ideologi-

    camente identificado com os manuais ortodoxo-conservadores em ma-

    tria de poltica econmico-financeira. Procurava-se, assim, con-

    quistar o apoio do FMI e das autoridades financeiras norte-

    americanas.

    Em matria de poltica econmica, pode-se afirmar que "o pro-

    grama do Conselho de Ministros obedecia aos mesmos princpios con-

    servadores enunciados nos efmeros governos Caf Filho e Jnio

    Quadros, revelando-se, sob muitos aspectos, antagnicos ao iderio

    do nacionalismo desenvolvimentista" (Cibilis Viana, op. cit.). Se-

    gundo este programa, por exemplo, no se fazia nenhuma crtica

    reforma cambial implementada pelo governo anterior. No seria es-

    te, no entanto, o pensamento que orientava a assessoria econmica

    de Goulart (Goulart e Tancredo tinham assessorias distintas). Com-

    posta de petebistas e nacionalistas-reformistas, a assessoria de

    Goulart buscaria influir sobre a orientao conservadora do gabi-

    nete ao defender, por exemplo, o fortalecimento do setor estatal

    da economia. Nos seus primeiros pronunciamentos, Goulart faria

    crticas ao regime de "verdade cambial" e postularia a realizao

    das Reformas de Base.

    Embora majoritariamente conservador, o gabinete de Tancredo

    Neves, logo nos seus primeiros meses de existncia, tomou duas de-

  • cises amplamente apoiadas pelos setores progressistas e nacio-

    nalistas. A rigor, contudo, estas duas medidas nada mais faziam do

    que concretizar estudos oriundos do governo Quadros. Por proposta

    do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos (um nacionalista

    quase solitrio na "constelao entreguista" da UDN), o Conselho

    de Ministros cancelava todas as autorizaes feitas ao truste nor-

    te-americano Hanna Corporation (companhia de minerao que explo-

    rava jazidas em Minas Gerais). A outra deciso que repercutiu fa-

    voravelmente nos meios progressistas do pas foi o restabelecimen-

    to das relaes diplomticas com a URSS (rompidas no governo Du-

    tra, em plena "guerra fria"). Dava-se, assim, continuidade pol-

    tica externa independente cujos princpios bsicos ("no interven-

    o de um Estado nos negcios internos de outro" e "autodetermina-

    o dos povos") foram enunciados no governo do contraditrio Jnio

    Quadros.

    Exatamente dois meses depois, uma prova decisiva teria de en-

    frentar a poltica externa independente do Brasil. Em Punta Del

    Este, Uruguai, reunia-se a Organizao dos Estados Americanos (OE-

    A) a fim de debater a situao de Cuba, aps seu governo revolu-

    cionrio ter-se definido oficialmente pelo socialismo. Alm da ex-

    pulso, proposta pelos EUA, pretendiam estes fazer aprovar sanes

    contra o governo presidido por Fidel Castro. O Brasil se ops a

    qualquer forma de sano (militar, econmica, rompimento das rela-

    es comerciais e diplomticas) contra Cuba. No entanto, aprovou

    uma declarao onde se afirmava a "incompatibilidade entre um re-

    gime marxista-leninista e os princpios democrticos do sistema

    interamericano". Cedendo parcialmente s fortes presses norte-

    americanas, o governo brasileiro se absteria na votao que propu-

    nha a expulso de Cuba da OEA.

    As relaes norte-americanas/brasileiras sofreriam ainda um

    srio abalo quando, duas semanas aps o encerramento da reunio da

    OEA, o governador Leonel Brizola, cunhado de Joo Goulart, de-

    sapropriou os bens da Companhia Telefnica Nacional, no Rio Grande

    do Sul, subsidiria da International Telephone & Telegraph (ITT).

    "O Departamento do Estado protestou, energicamente, classificando

    o ato de Brizola como um 'passo atrs' nos planos da Aliana para

    o Progresso (...) E o Congresso dos EUA, diante da perspectiva de

    outras estatizaes, votou a emenda Hinckenlooper, que determinava

    a suspenso de qualquer ajuda aos pases que desapropriassem bens

    americanos, sem indenizao imediata, adequada e efetiva" (Moniz

    Bandeira, O Governo Joo Goulart).

    Diante de futuras tentativas de encampaes (Carlos Lacerda,

    governador da Guanabara, anunciou demagogicamente que expro-

    priaria empresas estrangeiras em seu estado), o governo federal

    apressou-se em declarar sua disposio em negociar um acordo geral

    com as empresas de servios pblicos de propriedade estrangeira.

    Procurava, assim, o governo brasileiro demonstrar sua "boa vonta-

    de" face ao capital estrangeiro; ao mesmo tempo tentava limpar o

    terreno dos possveis obstculos que poderiam dificultar as con-

    versaes a serem mantidas, nas semanas seguintes, entre os presi-

    dentes do Brasil e dos EUA.

    Assessorado pelo embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Cam-

    pos, e por Moreira Salles, o presidente Goulart no discurso pro-

  • nunciado perante o Congresso norte-americano e no comunicado con-

    junto dos presidentes do Brasil/EUA procura tranqilizar a opi-

    nio pblica e os homens de negcios norte-americanos quanto aos

    caminhos a serem trilhados pelo governo brasileiro nos prximos

    anos. Entre outros temas, Goulart manifestou a adeso de seu go-

    verno aos "princpios democrticos"; defendeu enfaticamente a par-

    ticipao do capital privado estrangeiro no desenvolvimento brasi-

    leiro; aprovou o princpio da "justa compensao" nos casos de de-

    sapropriaes de empresas estrangeiras operando no Brasil, etc.

    Embora revelasse preocupaes quanto s dificuldades de execuo

    do programa reformista da Aliana para o Progresso, Goulart elogi-

    ou a iniciativa de Kennedy (provocada pela Revoluo Cubana). Ad-

    vertindo sobre os perigos que representaria o fracasso deste pro-

    grama para os "povos democrticos", o presidente brasileiro fez

    seu o iderio reformista de Kennedy: "Aqueles que tornarem impos-

    svel a revoluo pacfica, faro inevitvel a revoluo violen-

    ta".

    Apesar de todas as "juras de fidelidade e de amor" feitas por

    Goulart democracia e ao capital estrangeiro, o pas pouco lucra-

    ria com a festejada viagem de Goulart aos EUA e Mxico. Como ob-

    servou um estudioso: "(...) o FMI e os outros principais credores

    do Brasil voltaram sua atitude de esperar-para-ver dos ltimos

    anos do governo Juscelino. Sentiam-se pessimistas. No confiavam

    em que Jango tivesse o desejo, nem o poder de continuar o duro

    programa antiinflacionrio empreendido por Jnio" (Thomas Skidmo-

    re, De Getlio a Castelo).

    A campanha das Reformas. Goulart X Gabinete

    Internamente, a viagem de Goulart aos EUA rendeu-lhe alguns

    proveitos; pela primeira vez, em toda a sua carreira poltica, a

    direita mais conservadora prestou-lhe homenagens. A UDN, atravs

    de seu lder na Cmara, Herbert Levy, saudou a sua performance nos

    EUA como a de um verdadeiro estadista. Porm, muito curto seria o

    perodo de trguas que a oposio conservadora concederia ao go-

    verno de Goulart. A partir do dia 1 de maio, a guerra novamente

    lhe seria declarada.

    Em reiteradas oportunidades, o presidente da Repblica tinha

    se pronunciado acerca da urgncia de o Executivo e de o Congresso

    aprovarem as reformas estruturais exigidas para a superao dos

    graves problemas econmicos, sociais e institucionais enfrentados

    pelo pas. No obstante se pudesse afirmar que era praticamente

    consensual no Gabinete, no Congresso, nas Foras Armadas, nas

    associaes e confederaes rurais, na Igreja, nas organizaes de

    trabalhadores rurais, etc. o reconhecimento da necessidade da

    Reforma Agrria, as concepes acerca do seu sentido social e po-

    ltico, da sua extenso e das pr-condies legais sua realiza-

    o eram conflitantes. No seu discurso de 1 de maio, em Volta Re-

    donda, Goulart chamou sobre si a fria dos conservadores. Embora

    no explicitamente, Jango se ops forma moderada e conciliadora

    pela qual o gabinete de Tancredo Neves vinha encaminhando o debate

  • do anteprojeto de Reforma Agrria de autoria do ministro da Agri-

    cultura, o conhecido usineiro pernambucano Armando Monteiro (PSD).

    Apesar de ter criado importantes assessorias tcnicas (Superinten-

    dncia da Reforma Agrria, SUPRA, e o Conselho Nacional de Reforma

    Agrria), o primeiro gabinete no chegou a enviar nenhum projeto

    de Reforma Agrria ao Congresso.

    A rigor, o que provocou a violenta reao dos setores de di-

    reita foi o apelo do presidente ao Congresso no sentido de este

    realizar uma reforma da Carta de 1946. A reforma constitucional

    reivindicada por Goulart visava basicamente a alterar o 16 do

    Art. 141 que condicionava as desapropriaes de terra "prvia e

    justa indenizao em dinheiro". A vigncia de tal preceito consti-

    tucional, na prtica, impedia pelos altos recursos a serem des-

    pendidos pelo governo a realizao de uma Reforma Agrria que

    implicasse uma ampla redistribuio de terras queles que nela e-

    fetivamente trabalhavam. Diante da proposta do presidente da Rep-

    blica, unem-se proprietrios rurais, setores da Igreja, congres-

    sistas liberais e conservadores, imprensa etc, para denunciar a

    "reforma agrria radical" cogitada, segundo eles, por Goulart. Na

    tica desses grupos, a "revoluo agrcola" deveria se fixar na

    "obedincia aos preceitos constitucionais aliada ao interesse pri-

    oritrio pelo estmulo produo" (Aspsia Camargo, "A Questo

    Agrria", in Brasil Republicano).

    Como observou a autora acima, o discurso de Volta Redonda pode

    ser considerado como um importante marco poltico: seja porque re-

    presentou o primeiro esforo concentrado do governo em torno da

    realizao das Reformas de Base (o segundo momento dessa campanha

    ocorreria a partir de abril de 1963), seja porque significou o a-

    fastamento poltico do presidente da Repblica face ao Conselho de

    Ministros e ao regime parlamentarista propriamente dito. Reconhe-

    ce-se, tambm, nessa data, o incio da intensificao da luta pela

    antecipao do Plebiscito.

    Sem o apoio do presidente da Repblica, o Gabinete Tancredo

    Neves tinha os seus dias contados. Sob o pretexto de terem de cum-

    prir a exigncia legal de desincompatibilizao funcional a fim de

    poderem concorrer s eleies de outubro de 1962, todos os membros

    do Gabinete Tancredo pediram demisso em junho.

    As crises de Gabinete

    A formao do 2 gabinete parlamentarista implicou uma compli-

    cada batalha poltica para o presidente Goulart. Os dois grandes

    partidos conservadores do Congresso, PSD e UDN, uniam suas foras

    para rejeitar o nome do petebista San Tiago Dantas, indicado por

    Jango para presidir o novo gabinete. As razes da recusa eram evi-

    dentes: San Tiago, que fazia parte da chamada "esquerda positiva",

    notabilizara-se, nos meses anteriores, pela conduo da poltica

    externa independente. O febril anticomunismo da direita brasileira

    jamais poderia perdoar-lhe o reatamento das relaes diplomticas

    do Brasil com a URSS; igualmente, a sua intransigente oposio,

    dentro da OEA, a qualquer sano contra Cuba socialista lhe vale-

  • ria a pecha de "traidor da ptria", por parte dos setores conser-

    vadores. Alm do mais, era um elemento da estrita confiana de

    Goulart, estando, pois, inteiramente solidrio na luta que este

    movia contra o parlamentarismo e a favor das reformas de base.

    Sendo forado a buscar apoio no PSD, Goulart apresentou um ou-

    tro candidato: Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado.

    No entanto, esta deciso desagradou as lideranas sindicais com-

    prometidas com a luta pelas Reformas e que, desde o ms de junho,

    vinham defendendo a formao de um "Conselho de Ministros naciona-

    lista e democrtico". Diante da negativa face ao nome de San Tiago

    e da eminente aprovao do Conselho de Ministros a ser chefiado

    pelo conservador Moura Andrade, o Comando Geral da Greve (CGG) de-

    cretou uma greve geral em todo o pas para o dia 5 de julho. No

    dia anterior, porm, o senador do PSD desistia da sua indicao a

    primeiro-ministro. Apesar da renncia de Moura Andrade e dos in-

    sistentes apelos de Jango, a greve foi mantida. Na Guanabara, es-

    tado onde se concentrou praticamente todo o movimento paredista,

    os militares do I Exrcito sob o comando do general nacionalista

    Osvino Alves colaboraram com os grevistas; no cederam veculos

    de seu uso para transporte pblico e tambm participaram das nego-

    ciaes para a libertao dos lderes sindicais reprimidos pela

    polcia do reacionrio governador da Guanabara, Carlos Lacerda (S.

    Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais Brasileiras). A greve con-

    siderada pelo lder comunista Jover Telles como a maior da hist-

    ria do movimento operrio brasileiro foi igualmente vitoriosa

    pelo fato de o presidente Goulart sancionar, uma semana depois, a

    lei que instituiu o 13 salrio, uma das principais reivindicaes

    da greve geral.

    O novo gabinete, presidido por Brochado da Rocha (PSD), rece-

    bia voto de confiana no dia 13 de julho. Tratava-se de um gabine-

    te de centro com orientao reformista. Nos seus dois curtos meses

    de existncia, este conselho distinguiu-se basicamente por duas

    iniciativas polticas. A primeira consistiu num projeto de lei en-

    viado ao Congresso visando antecipar a realizao do Plebiscito;

    propunha-se o dia 7 de outubro, data marcada para as eleies da

    renovao do Congresso e escolha de alguns governadores de estado.

    Nova derrota de Goulart e do gabinete; nova greve geral seria de-

    cretada pelas lideranas sindicais. Embora tivesse uma extenso

    menor do que a anterior, a greve foi igualmente vitoriosa pois, na

    madrugada de 15 de setembro (data fixada para a paralisao dos

    trabalhadores), o Congresso aprovou um projeto conciliador dos

    pessedistas Gustavo Capanema e Benedito Valadares. O Plebiscito,

    finalmente, tinha agora seu dia definido: 6 de janeiro de 1963. No

    entanto, a greve no reivindicava apenas a convocao do referen-

    dum popular; exigia, tambm, a sano da Lei de Remessa de Lucros

    (aprovada pelo Congresso mas ainda no regulamentada pelo Executi-

    vo), a elevao dos nveis de salrio mnimo na base de 100%, etc.

    Posto que o governo prometeu realizar estudos no sentido de aten-

    der quelas reivindicaes, o Comando Geral do Trabalhadores

    (CGT), recentemente criado, suspendia a greve.

    A segunda importante iniciativa do Gabinete Brochado da Rocha

    consistiu numa mensagem enviada ao Congresso na qual se solicitava

    a autorizao deste para que o Conselho de Ministros pudesse le-

  • gislar, atravs de decretos, sobre as Reformas de Base, remessa de

    lucros, regulamentao do direito de greve, abuso do poder econ-

    mico, etc. Expressando os interesses dos proprietrios e das asso-

    ciaes rurais, bem como da burguesia associada ao capital multi-

    nacional, a aliana PSD/UDN fechava a questo contra a "delegao

    de poderes" pedida pelo gabinete. Prevendo a iminente derrota no

    plenrio do Congresso, Brochado da Rocha demitiu-se. Desta forma,

    o Congresso cedia quanto convocao do Plebiscito, mas a sua

    maioria no abriria mo de sua condio de intransigente defensora

    dos interesses das classes proprietrias e dos setores politi-

    camente conservadores e de direita. Uma vez mais, Brizola se en-

    carregaria de expressar a insatisfao dos movimentos populares e

    das correntes polticas nacionalistas e de esquerda: "O povo no

    poderia esperar outra coisa de um Congresso constitudo, em sua

    maioria, de latifundirios, financistas, ricos comerciantes e in-

    dustriais representantes da indstria automobilstica, empreitei-

    ros e integrantes da velha oligarquia brasileira" (apud M. Victor,

    5 Anos que Abalaram o Brasil).

    A campanha do plebiscito

    O terceiro e ltimo Conselho de Ministros, presidido pelo ex-

    ministro do Trabalho, Hermes Lima, duraria pouco mais de 4 meses.

    A rigor, a partir de meados de setembro de 1962, o comando do Exe-

    cutivo passava praticamente para as mos do presidente da Repbli-

    ca. Como viria a assinalar mais tarde o ltimo premier do governo

    parlamentarista: "Vivia-se no pas uma atmosfera mais presidencia-

    lista que parlamentarista" (Hermes Lima apud M. Bandeira, op.

    cit). Nesse sentido, deve-se reconhecer que o Gabinete provisrio

    oficialmente empossado dois meses depois estava inteiramente

    solidrio com o mais importante objetivo poltico perseguido por

    Goulart naquele momento: articular as foras polticas e sociais

    do pas a fim de derrotar o parlamentarismo na eleio plebiscit-

    ria de 6 de janeiro.

  • Pode-se afirmar que este gabinete esteve inteiramente envolvi-

    do com a campanha do Plebiscito. Excluda a direita mais ardorosa-

    mente anticomunista e antijanguista (a maioria da UDN IPES/ IBAD,

    imprensa conservadora, etc), poucos "moveram uma palha" em defesa

    do parlamentarismo. Em contrapartida, inmeras foram as entidades

    e organizaes que se empenharam na batalha poltica pelo retorno

    do presidencialismo. Importantes figuras polticas nacionais (al-

    gumas delas particularmente interessadas em se candidatar, em e-

    leies diretas, para a sucesso presidencial de Jango) apoiaram

    ostensivamente a derrubada do regime parlamentarista. Entre eles

    se incluam Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, Cid Sampaio, Ma-

    galhes Pinto, Juraci Magalhes e Carlos Lacerda (a UDN, partido

    dos trs ltimos, defendia a manuteno do parlamentarismo).

    Durante a campanha do Plebiscito, importantes figuras da ofi-

    cialidade militar posicionaram-se a favor da volta do presidencia-

    lismo. Poucas razes igualmente tinham os trabalhadores para apoi-

    arem o regime parlamentarista. Nas ltimas semanas de 1962, a CNTI

    (Confederao Nacional dos Trabalhadores na Indstria) conclamava

    os trabalhadores brasileiros a comparecer ao referendum: "Todos,

    no, dia 6 de janeiro de 1963, assinalem o NO: NO espoliao do

    pas; NO aos exploradores do povo; NO carestia e fome. Por-

    tanto, companheiro, um NO grande ao parlamentarismo". A rigor,

    para os trabalhadores, a luta pela retomada do presidencialismo

    significava, simplesmente, dar um "voto de confiana" ao presiden-

    te da Repblica que vinha defendendo publicamente a realizao de

    reformas fundamentais na estrutura da sociedade brasileira. No dia

    6 de janeiro de 1963, depois de uma intensa e dispendiosa campanha

    poltico-publicitria contra o regime parlamentarista comandada

    por Goulart e financiada por setores da burguesia brasileira ,

    cerca de 13 milhes de eleitores compareciam s urnas. Numa pro-

    poro de 5 votos para 1, rejeitava-se o regime implantado na cri-

    se poltico-militar de agosto de 1961.

    O regime parlamentarista fracassou pois se revelou altamente

    ineficaz do ponto de vista administrativo, como tambm pelo fato

    de ter-se constitudo numa fonte permanente de crises institucio-

    nais e polticas. O carter hbrido e dualista do sistema o pre-

    sidente da Repblica e o Conselho de Ministros, alm de disputarem

    o controle do Executivo, divergiam quanto aos seus programas e

    prioridades de governo dificultava a tomada de decises que a

    realidade econmica e social do pas urgentemente demandava. No

    se sustentam, pois, aquelas interpretaes que atribuem exclusiva-

    mente "m vontade" ou ao "desinteresse" de Goulart a responsabi-

    lidade pela "triste sorte" que veio a ter o parlamentarismo no pa-

    s. Ressalte-se que o gabinete presidido por Brochado da Rocha

    buscou agilizar as decises no campo administrativo e econmico;

    mas as Reformas de Base e outras medidas que estavam previstas pa-

    ra serem implementadas esbarraram na intransigente oposio da a-

    liana PSD/UDN. O Congresso que encerrava a sua legislatura em

    1962, sendo majoritariamente conservador, constituiu-se, assim,

    num forte obstculo ao encaminhamento de polticas de carter re-

    formista oriundas do Executivo (seja da Residncia da Repblica,

    seja do Gabinete).

  • Na crise poltico-militar de agosto de 1961, os dois maiores

    partidos conservadores apressaram-se em instituir no pas um regi-

    me que lhes permitiria deter maiores possibilidades para o contro-

    le do Executivo. Como vimos, em certa medida, foram bem-sucedidos

    nesse intento, pois conseguiram impor limites e barreiras ao

    do Executivo reformista reconhecidamente mais eficazes do que

    aqueles tradicionalmente utilizados em regime presidencialista. No

    entanto, o parlamentarismo forjado a toque de clarim e em ritmo

    marcial no resistiu s inmeras crises polticas que seu fun-

    cionamento provocou e no conseguiu resolver.

  • Um governo no trapzio

    No dia 23 da janeiro de 1963, com a revogao da emenda parla-

    mentarista, Joo Goulart reassumia os plenos poderes que a Carta

    de 1946 conferia ao presidente da Repblica. Aps o malogro da ex-

    perincia parlamentarista, todas as indagaes polticas resumiam-

    se na seguinte: conseguiria o governo presidencialista de Goulart

    superar a crise econmico-financeira, aliviar as tenses sociais e

    afastar as crises polticas que vinham continuadamente desgastando

    a administrao pblica? No seria exagerado afirmar que entre

    os diferentes setores sociais era praticamente consensual o re-

    conhecimento de que da soluo da crise econmico-financeira de-

    pendia fundamentalmente o encaminhamento satisfatrio dos demais

    problemas que afetavam o pas. As propostas que as diversas clas-

    ses sociais e grupos polticos ofereciam para resolver os proble-

    mas da inflao, do dficit da balana de pagamentos, da continui-

    dade do desenvolvimento econmico etc, no deixavam de ter orien-

    taes diferentes e, por vezes, antagnicas. A este respeito deve-

    se ressaltar que os tempos de Goulart constituram-se em anos "ex-

    tremamente frteis" na medida em que neles se processaram intensos

    debates sobre os rumos e direes que deveriam ser trilhados pela

    economia e sociedade brasileiras. Como observou um economista: "Ao

    contrrio dos anos anteriores, em que reduzidas minorias controla-

    vam a formulao poltica, nestes anos novos agrupamentos passaram

    a fazer ouvir sua voz no processo de deciso social. A poltica

    econmica no foi indiferente a este contexto social mais comple-

    xo" (Carlos Lessa, 15 Anos de Poltica Econmica) .

    Como tende a ocorrer em todo regime democrtico-burgus, o E-

    xecutivo anunciava que o seu Plano de Governo tinha condies de

    resolver em profundidade os impasses e as dificuldades enfrentados

    pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta foi

    denominada de "Plano Trienal de Desenvolvimento Econmico-Social:

    1963-1965", tendo sido elaborada pelo economista Celso Furtado

    (ministro do Planejamento), com a colaborao de San Tiago Dantas

    (ministro da Fazenda). A concepo e a execuo do Plano Trienal

    bem como as reaes dos diferentes setores sociais e polticos a

    ele contribuem de forma significativa para entendermos o que foi

    o governo Goulart.

    A anlise da composio do primeiro ministrio presidencialis-

    ta, bem como o exame crtico do Plano Trienal, anunciavam muito

    expressivamente o estilo conciliador que iria predominar durante o

    governo Goulart autntico "governo de trapzio", segundo o jul-

    gamento de um jornalista poltico. No Ministrio encontravam-se

    polticos conservadores do PSD (Antnio Balbino e Amaral Peixoto),

    petebistas do grupo "fisiolgico" (San Tiago Dantas e Jos Ermrio

    de Moraes um dos expoentes da chamada "burguesia nacional"), um

    petebista do "grupo compacto" ou "ideolgico" (Almino Afonso),

    tcnicos "apartidrios" como Celso Furtado e militares "duros" co-

    mo o gal. Amaury Kruel. Por outro lado, o Plano Trienal, na sua

    formulao terica, julgava poder harmonizar e satisfazer interes-

    ses contraditrios de patres e empregados, de proprietrios e

  • trabalhadores assalariados. Quais os principais objetivos e pro-

    postas do Plano?

    Plano Trienal: "combater a inflao com desenvolvimento"

    Diante das duas mais importantes tendncias do comportamento

    da economia brasileira no incio dos anos 60 "acelerao infla-

    cionria" (37% em 1961 e 51% em 1962) e "desacelerao do cresci-

    mento"-(taxa de 7,3% em 1961 e 5,4% em 1962) , o Plano trienal

    pretendia compatibilizar o combate ao surto inflacionrio com uma

    poltica de desenvolvimento que permitisse ao pas retomar as ta-

    xas de crescimento do PIB (em torno de 7%) alcanadas durante o

    perodo de 1957 a 1961. Como reconheciam os setores de esquerda, o

    Plano constitua-se num avano em relao s teses ortodoxas domi-

    nantes, pois buscava combater o processo inflacionrio "sem sacri-

    fcio do desenvolvimento". Paralelamente a estes dois objetivos

    principais, o Plano pretendia contribuir para uma melhor distribu-

    io dos frutos do desenvolvimento econmico, juntamente com "a

    reduo das desigualdades regionais de nveis de vida". Enfatiza-

    va, porm, o Plano Trienal, que se o processo inflacionrio no

    fosse reduzido a limites tolerveis, o Pas com uma iminente hi-

    perinflao (prevista em 100% para fins de 1963, caso o plano de

    estabilizao falhasse) teria toda a sua atividade econmica pa-

    ralisada e, conseqentemente, passaria a ser o palco de perigosas

    lutas sociais.

    Tanto a anlise feita pelo Plano sobre as causas do processo in-

    flacionrio, como as solues ali apontadas, no deixariam de ser

    objeto de intensas polmicas. Do lado do setor externo, admitiam

    as esquerdas que era correta a afirmao segundo a qual a inflao

    era provocada pela drenagem de recursos de recursos para o exteri-

    or (atravs da "deteriorao das relaes de trocas") e pela

    transferncia de renda (na forma de subsdios governamentais) para

    o setor exportador. Contudo, os "remdios" propostos "refi-

    nanciamento da dvida externa" e "entrada de recursos externos"

    para a amortizao de emprstimos anteriormente contrados eram

    praticamente ineficazes como medidas antiinflacionrias; alm do

    mais, amortizar dvidas com a entrada de capitais estrangeiros a-

    gravaria ainda mais o nosso endividamento no exterior. Para as es-

    querdas, o Plano constitua-se numa nova capitulao ao latifndio

    e ao imperialismo: no se propunha a eliminao dos subsdios ao

    setor latifundirio-exportador nem se reconhecia o papel inflacio-

    nrio representado pelas remessas ao exterior de "juros, lucros e

    royalties, e a entrega de enorme soma de recursos pblicos s

    grandes companhias estrangeiras, diretamente e atravs de isenes

    de impostos e favores cambiais" (H. Hoffmann, "O Plano Trienal e a

    Inflao", in Estudos Sociais, n 16).

    Em relao ao setor pblico, a estratgia adotada para reduzir

    a presso inflacionria consistia num "conjunto de medidas de ao

    convergente". Destacava, contudo, a "reduo do dispndio pblico

    programado" como o mais importante fator responsvel pela inflao

    no Pas. Contra esta perspectiva, crticos esquerda advertiam:

  • "(...) o nvel de gastos pblicos no pode ser comprimido se se

    quer que a economia se desenvolva" (Paul Singer, Anlise Crtica

    do Plano Trienal). Como se ver mais adiante, a realidade no dei-

    xar de dar razo a esses crticos.

    Um plano antipopular e capitulacionista

    Para o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, o xito da pol-

    tica econmico-financeira passava a depender da "compreenso geral

    das reas oficiais e no oficiais" acerca da "dramtica situao"

    que enfrentava o Pas. Era voz corrente, nos crculos oficiais,

    que "o Pas no suportaria, no momento, nem reivindicaes salari-

    ais nem a presso por maiores lucros, e as medidas que se adotam

    para evitar que conjuntura desemboque num colapso financeiro de-

    vem ter a compreenso e a colaborao dos dirigentes das classes

    produtoras e dos sindicatos de trabalhadores" (Carlos Castello

    Branco, Introduo Revoluo de 1964). Na perspectiva do gover-

    no, nivelavam-se, assim, as "boas vontades": de um lado, a dos em-

    presrios que deveriam moderar, provisoriamente, o apetite por lu-

    cros crescentes; de outro, a dos trabalhadores assalariados, que

    deveriam deixar de pressionar adiando, pois, suas greves e rei-

    vindicaes por salrios mais elevados. Ora, bem se sabia que

    tais reivindicaes visavam, simplesmente, recompor para a classe

    trabalhadora um nvel de participao menos deteriorado na renda

    nacional. (Como mostrou um economista, a partir de 1958, com a -

    nica exceo de 1961, houve uma acentuada deteriorao do salrio

    mnimo real.) (Francisco de Oliveira, "Crtica Razo Dualista",

    in Estudos Cebrap.) Apesar da sua formulao terica no conside-

    rar os salrios como fatores inflacionrios, na prtica, no entan-

    to, o Plano pedia aos trabalhadores como sempre o fazem os pla-

    nos de "salvao nacional" "colaborao", "pacincia" e "patrio-

    tismo". Mas, acima de tudo, que (novamente) "apertassem os cin-

    tos"...

    O entusiasmo governamental comeou a se esboar em fevereiro e

    maro, em virtude do apoio que o Plano recebia de associaes das

    "classes produtoras" (a Confederao Nacional da Indstria, CNI),

    de governadores de estados etc; contudo, ele sofreria seus primei-

    ros e fortes abalos com as crticas vindas de setores sindicais e

    das organizaes polticas nacionalistas e de esquerda. Logo nos

    primeiros dias de fevereiro um manifesto do CGT revelaria que se-

    ria tormentosa a administrao do presidente Goulart. Nesse docu-

    mento combatia-se a poltica financeira do Plano Trienal, pois en-

    quanto este deixava intactos os lucros fabulosos do capital es-

    trangeiro, dos latifundirios e dos grandes grupos econmicos na-

    cionais, impunha, por outro lado, maiores sacrifcios s classes

    populares e trabalhadoras. Um crtico de esquerda assinalaria:

    "(...) o Plano Trienal visa a combater a inflao sem reduzir o

    crescimento econmico do pas, no que se manifesta, tipicamente, a

    inspirao da burguesia nacional. Do ponto de vista dos defensores

    do Plano esta seria uma razo suficiente para que os trabalhadores

    o apoiassem. A verdade , porm, que esta no uma razo sufi-

  • ciente, mas uma razo burguesa e, portanto, inaceitvel para os

    trabalhadores" (Jacob Gorender, "O Plano Trienal e o Combate In-

    flao", Novos Rumos, fevereiro de 1963).

    As crticas avolumaram-se e se intensificaram a partir do mo-

    mento em que as conseqncias da poltica de eliminao de subs-

    dios ao trigo e ao petrleo (uma das medidas prioritrias no com-

    bate inflao) comearam a ser sentidas pelos setores populares.

    Em fevereiro, calculou-se que o fim da poltica de subsdios au-

    mentaria o custo do transporte em 40% e o preo do trigo e do po

    em 177%. Nos trs primeiros meses de 1963, o ndice geral dos pre-

    os subiu 16%, enquanto no mesmo perodo de 1962 o ndice de au-

    mento foi de 8%. A condenao ao Plano, unnime por parte dos se-

    tores sindicais e populares e das organizaes polticas de es-

    querda (CGT, PUA, FPN, UNE, "grupo compacto" do PTB, etc), iria

    ter repercusses dentro do prprio Ministrio, na medida em que a

    "diretriz de Almino Afonso no Ministrio do Trabalho, ao fortale-

    cer as direes operrias mais independentes, como o CGT, PUA,

    etc, colidiu com os interesses de Goulart" (Moniz Bandeira, op.

    cit.). Do lado dos empresrios (particularmente da poderosa inds-

    tria automobilstica concentrada em So Paulo) havia "queixas ge-

    neralizadas de falta de crdito". Diante das "violentas crticas"

    destes setores encampadas pela prpria CNI haver, no segundo

    trimestre de 1963, o relaxamento da poltica monetria que far os

    meios de pagamento crescerem de 179,4 bilhes de cruzeiros contra

    a expanso projetada de 74,1 bilhes, "o que afetou definitivamen-

    te o esquema do Plano Trienal" (C. Lessa, op. cit.).

    Os aspectos antinacionais da poltica econmico-financeira do

    governo Goulart ficariam tambm evidenciados quando das conversa-

    es entre Brasil e EUA acerca da negociao da assistncia econ-

    mica norte-americana e refinanciamento da dvida externa. Em maro

    de 1963, San Tiago Dantas viajava a Washington com um forte argu-

    mento para convencer o governo norte-americano a fornecer assis-

    tncia financeira ao Brasil: o Plano Trienal era a decisiva prova

    de que o Pas passava a se enquadrar dentro do receiturio econ-

    mico-financeiro propugnado pelo governo dos EUA e pelo FMI. Mas-

    os EUA, alm de exigirem um compromisso formal por parte do gover-

    no brasileiro de que o plano "no ficaria apenas no papel", impu-

    seram ainda uma nova condio para a concesso do emprstimo soli-

    citado: o governo Goulart deveria resolver com a mxima urgncia a

    questo da desapropriao da AMFORP (American Foreign Power, sub-

    sidiria da Bond & Share). Duas cartas de Goulart foram entregues

    a Kennedy por intermdio de San Tiago Dantas: nelas o governo bra-

    sileiro comprometia-se a cumprir as duas exigncias norte-ameri-

    canas. (Entre os polticos norte-americanos circulava a verso de

    que a chamada "ajuda externa" dos EUA era freqentemente desperdi-

    ada pela m administrao aos governos latino-americanos. No caso

    brasileiro, deixava, pois, de ser informado que, "na verdade, o

    que ocorria no era uma transferncia de capitais dos EUA para o

    Brasil e, sim, ao contrrio, um escoamento de recursos do Brasil

    para os EUA". Entre 1947 e 1960 entraram (emprstimos e investi-

    mentos) US$ 1.814 milhes e "saram no mesmo perodo.... US$ 2.459

    milhes sob a forma de remessas de lucros e juros, deixando um

    saldo negativo da ordem de USS 645 milhes" que, "acrescidos de

  • US$ 1.022 milhes, sob a rubrica Servios, ou seja, remessas de

    lucros clandestinas, perfaziam um total de USS 1.667 milhes. Em

    suma, num perodo de 13 anos, um volume considervel de dlares

    foi transferido do Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportvamos

    muito mais capitais do que recebamos" Moniz Bandeira, op. cit.)

    Para tornar ainda mais complicada a situao do governo brasi-

    leiro nas negociaes de Washington, um porta-voz do Departamento

    de Estado baseado nos relatrios de Mr. Gordon enviados regular-

    mente da embaixada norte-americana no Brasil alertava a opinio

    pblica de seu pas sobre a "perigosa atuao de comunistas" den-

    tro da assessoria tcnica de Goulart. Apesar das duas cartas do

    governo brasileiro (onde se garantia o acatamento s exigncias

    norte-americanas) e de uma solene declarao oficial que negava a

    existncia de "esquerdistas" na assessoria governamental, os EUA

    aprovaram um emprstimo de apenas USS 84 milhes, prometendo USS

    314,5 milhes para o ano fiscal de 1964, caso as medidas de con-

    teno inflacionria fossem efetivamente aqui aplicadas; antes,

    contudo, deveriam elas ser aprovadas por uma comisso do FMI, cuja

    visita ao Brasil estava prevista para meados de 1963. Embora os

    "brios nacionalistas" do governo brasileiro fossem feridos noti-

    ciou-se que San Tiago Dantas ameaara abandonar as negociaes com

    os EUA , "razes pragmticas" fizeram com que as imposies nor-

    te-americanas fossem aceitas, conforme se verificou atravs do a-

    cordo Dantas/ Bell.

    O caso da compra da AMFORP o "escndalo da AMFORP" como fi-

    cou conhecido na imprensa da poca transformou-se em grave pro-

    blema poltico para a administrao Goulart. Enquanto retirava os

    subsdios para o trigo e o petrleo e cortava alguns investimentos

    pblicos, sob o pretexto de combater a inflao, o governo brasi-

    leiro anunciava, em fins de abril, que se ultimavam os entendimen-

    tos para a compra da AMFORP (que congregava 12 empresas de servi-

    os pblicos). San Tiago Dantas e Roberto Campos (que a esquerda

    nacionalista ironicamente chamava de "Bob Fields", por ser ele um

    "refinado entreguista") tinham acertado com os representantes da

    empresa norte-americana o valor da transao: 188 milhes de dla-

    res. Na mesma ocasio, um grupo de trabalho integrado por tcnicos

    brasileiros (CONESP) dissolvido logo a seguir por Goulart ava-

    liava os bens da AMFORP em torno de 57 milhes de dlares. Para os

    setores nacionalistas, estava-se diante de uma imensa negociata,

    pois, alm do preo extorsivo, as 12 usinas norte-americanas esta-

    vam obsoletas, constituindo-se em verdadeiro "ferro velho". Tais

    denncias tiveram ampla repercusso Poltica. Goulart recuou, pro-

    telando a realizao da compra, para desagrado do governo norte-

    americano. (Em outubro de 1964, demonstrando eloqente "boa vonta-

    de" para com os empresrios e governo dos EUA, o governo do mal.

    Castelo Branco adquiria a AMFORP.)

    O prestgio poltico de Goulart foi seriamente abalado neste

    episdio; inclusive os setores conservadores no lhe pouparam du-

    ras crticas, ao ser conivente com negociaes que os grupos na-

    cionalistas classificavam de autntico "crime de lesa-ptria". O

    plano, antes de completar 6 meses de durao, inviabilizava-se po-

    ltica e economicamente. Nem os emprsrios, nem os trabalhadores

    lhe ofereciam qualquer apoio. Em maio, o Ministrio da Fazenda,

  • diante das fortes presses dos assalariados, tomava uma deciso

    inteiramente contrria s projees do Plano, ao conceder um au-

    mento de 70% aos funcionrios civis e militares, quando estava

    previsto apenas 40%. De outro lado, como j foi mencionado, o go-

    verno face s reivindicaes de setores industriais voltaria

    atrs em suas medidas de conteno do crdito.

    O malogro do Plano se revelou de forma completa ao se proceder

    ao balano do ano de 1963: nem desacelerao da inflao, nem ace-

    lerao do crescimento foram alcanadas. Houve, sim, inflao sem

    desenvolvimento. Razo, pois, tinham os crticos de esquerda quan-

    do denunciando a retrica progressista do Plano advertiam para

    os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das me-

    didas concretas ali propostas.

    As reformas: como garantir a propriedade

    e impedir a "convulso social"

    Outra batalha poltica que esteve em pauta durante todo o go-

    verno Goulart foi a das Reformas de Base (Agrria, Bancria, Admi-

    nistrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana, etc). Recorde-se que esta

    problemtica fazia parte dos programas dos trs gabinetes parla-

    mentaristas e agora aparecia como um dos objetivos bsicos do Pla-

    no Trienal. (Como se encarregavam de divulgar os confidentes e

    cronistas palacianos, Goulart queria notabilizar-se na histria

    poltica do Brasil como o "presidente da Reforma Social".) Reco-

    nhece-se, no entanto, que a bandeira das Reformas passou a ser em-

    punhada pelo governo, de forma mais enrgica, no perodo presiden-

    cialista, apenas a partir do instante em que se comeou a perceber

    o malogro do Plano Trienal. Logo nos primeiros meses do ano, an-

    lises feitas pelas esquerdas no apenas denunciavam o "cozimento

    em gua fria das reformas" amplamente agitadas por Goulart du-

    rante a campanha do Plebiscito , como tambm passavam a duvidar

    do contedo efetivamente transformador de que poderiam se revestir

    as propostas governamentais (Caio Prado Jr., Revista Brasiliense,

    n 44). Qual seria, enfim, a perspectiva oficial acerca das Refor-

    mas de Base?

    Assinala um socilogo que, na viso dos governantes, "se no

    houvesse Reformas de Base (...) no se criariam as novas 'condi-

    es institucionais' para o desenvolvimento de outra etapa da eco-

    nomia brasileira" (Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econmico

    no Brasil); significava isso conforme o reconhecimento do pr-

    prio Plano Trienal que as Reformas de Base eram indispensveis,

    ao lado do planejamento, a fim de que o capitalismo industrial

    brasileiro pudesse alcanar um nvel de desenvolvimento superior.

    Afirmava o Plano, por exemplo, que as reformas fiscal e agrria

    eram essenciais se se pretendesse a "eliminao de entraves insti-

    tucionais utilizao tima dos fatores de produo". Razes eco-

    nmicas e sociais impunham a urgente realizao das reformas, den-

    tre elas a que mais debates provocou naquele perodo: a Reforma

    Agrria.

    De um lado, era preciso aumentar a produo agrcola (alimen-

  • tos que suprissem as demandas da populao urbana em crescimento;

    matrias-primas para a expanso industrial etc), ao mesmo tempo

    que se buscava criar um mercado interno mais amplo para os bens

    manufaturados. De outro lado, prevendo-se situaes incontrolveis

    de tenses e distrbios sociais, propunha-se uma melhor redistri-

    buio da terra (em mos de um reduzido nmero de latifundirios e

    freqentemente mantida de forma improdutiva). exemplar a este

    respeito o testemunho de um dos mais ntimos colaboradores de Gou-

    lart, acerca da concepo que este defendia de Reforma Agrria:

    "(...) o que Jango tentava fazer no tinha nada de muito ousado

    nem de radical. Ele dizia sempre que, se o nmero de proprietrios

    rurais fosse elevado de 2 para 10 milhes, a propriedade seria

    muito melhor defendida, e simultaneamente possibilidades maiores

    seriam abertas a mais gente de comer mais, de se educar melhor, de

    viver mais dignamente. Por isso que Jango, latifundirio, queria

    fazer a Reforma Agrria para defender a propriedade e assegurar a

    fartura, evitando o desespero popular e a convulso social" (Darci

    Ribeiro, "Governo Goulart caiu por suas qualidades, no por seus

    defeitos", in A Histria Vivida II O ESP, grifos nossos).

    Apesar de no ter nenhum sentido revolucionrio, corresponden-

    do, pois, de um lado, s necessidades da consolidao do capita-

    lismo industrial e, de outro lado, estratgia da dominao soci-

    al burguesa, a Reforma Agrria proposta por Goulart ser objeto de

    intensa e constante oposio por parte dos proprietrios rurais e

    seus setores polticos, de setores da Igreja Catlica, etc. (Re-

    corde-se que, no perodo parlamentarista, idntica foi a reao

    desses grupos. A diferena estava no fato de que naquele momento

    Goulart no tinha ainda formulado oficialmente a sua proposta de

    Reforma Agrria e de Reforma Constitucional.) Tais setores no ad-

    mitiam, por exemplo, a alterao dos preceitos constitucionais sob

    a alegao de que caso isso viesse a ocorrer corria-se o risco

    de ser invalidado o estatuto da propriedade privada no Brasil...

    Alm do mais, conforme assinalou um historiador, as demais refor-

    mas propostas (eleitoral, educacional etc.) poderiam implicar a

    "alterao do equilbrio poltico" e permitia at ento a hegemo-

    nia das foras conservadoras e de direita, particularmente no Le-

    gislativo. A preocupao poltica maior das classes dominantes di-

    ante das possveis mudanas no campo so ressaltadas por uma estu-

    diosa: "Havia, sem dvida, o incontrolvel temor de se ver ingres-

    sar na cena poltica camadas sociais constitudas em 'clientelas

    polticas' que pudessem ser enquadradas, tal como o fora a classe

    operria com Getlio Vargas. Tais temores eram, sem dvida, reali-

    mentados pela acelerao da ecloso de conflitos rurais, que cada

    vez mais se orientavam para a ocupao de terras" (Aspsia Camar-

    go, op. cit.).

    Enquanto setores do PSD apesar dos fortes compromissos do

    partido com os proprietrios rurais chegaram, num primeiro mo-

    mento, a aceitar a discusso do anteprojeto do Executivo, a UDN

    fechava a questo contra qualquer alterao constitucional. Mas, a

    posio do PSD ser outra a partir da Conveno da UDN realizada

    em abril de 1963. (Na cronologia do golpe de 64, esta reunio da

    UDN teve um papel decisivo: nela, ilustres figuras do partido de-

    fenderam a interveno das Foras Armadas e dos EUA a fim de porem

  • termo ao "comunismo legal" de Goulart.) Influenciado pelas mani-

    festaes das chamadas "bases" da UDN, o PSD recuar definitiva-

    mente face s suas primeiras conversaes com o governo. Tal fato

    mostrou-se de forma evidente na votao da "emenda Bocaiva" (e-

    menda constitucional, apresentada pelo PTB, que buscava tornar fi-

    nanceiramente vivel a Reforma Agrria). Por 7 votos (PSD, UDN e

    PSP) contra 4 (PTB e PDC), a emenda seria rejeitada na Comisso

    Especial da Cmara, no ms de maio. Em Plenrio, a emenda foi der-

    rotada, em outubro, graas aliana PSD e UDN aps intensa mo-

    bilizao dos proprietrios rurais, comandados principalmente pela

    Confederao Rural Brasileira(CRB).

    Como ainda observaria a autora acima, a partir do veto na Co-

    misso Especial, os setores nacionalistas desencadeariam uma cam-

    panha de presso nacional sobre o Congresso para a imediata apro-

    vao das reformas. Atravs de comcios, passeatas, manifestos, os

    setores nacionalistas e populares exigem "reformas j!", ao mesmo

    tempo que denunciam o reacionarismo do Congresso controlado pelo

    PSD UDN e pelo "milionrio IBAD". (Brizola diria que o PSD e a

    UDN, ao exigirem o pagamento prvio e em dinheiro, tornavam a

    questo agrria em autntico "negocio agrrio".)

    De outro lado, aps ter sido batido na Comisso Especial, Gou-

    lart apesar das fortes crticas vindas dos grupos nacionalistas

    e de esquerda volta-se novamente para o PSD. Em busca de apoio,

    aceita mudanas no anteprojeto de Reforma Agrria do executivo, a

    fim de torn-lo "menos radical" e, assim, aceitvel para o conser-

    vadorismo do PSD. Para isso, afastou toda a "assessoria gacha",

    vinculada politicamente a Leonel Brizola, que no concordava em

    fazer "concesses programticas" no anteprojeto. Porm, sero in-

    frutferos os esforos do novo ministro da Justia, Abelardo Jure-

    ma, figura de relevo do PSD, a quem foi atribuda a especfica ta-

    refa de articular a antiga aliana PSD/PTB. (Jurema sintetizaria a

    viso conciliadora do governo atravs de uma famosa frase: "O PSD

    sem o PTB ir para a reao; o PTB sem o PSD ir para a Revolu-

    o".) Idntica misso foi confiada a Tancredo Neves (PSD) ao ser

    indicado lder da bancada do Governo na Cmara. Porm, o fosso en-

    tre o PTB e o PSD aprofundava-se na razo direta da aproximao

    deste com a UDN, os quais se alarmavam com a "agitao social", a

    "desordem" e a "comunizao crescente do pas" promovidas segun-

    do estes por Goulart, pelo PTB e pelas "foras subversivas"

    (CGT, UNE, FMP, etc).

    De outro lado, os setores nacionalistas e de esquerda, criti-

    cavam Goulart pela sua indeciso e indefinio em relao a uma

    srie de medidas concretas de carter nacionalista e popular que

    poderiam ser tomadas pelo governo, independentes de qualquer re-

    forma constitucional. Entre essas medidas algumas delas defendi-

    das pelo prprio presidente em seus discursos ressaltavam as se-

    guintes: regulamentao da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo

    Congresso, mas "engavetada" pelo Executivo); nacionalizao das

    concessionrias de servios pblicos, moinhos, frigorficos e in-

    dstria farmacutica; interveno no mercado de gneros aliment-

    cios; monoplio das operaes de cmbio pelo Banco do Brasil; mo-

    noplio das exportaes de caf pelo IBC; ampliao do monoplio

    estatal do petrleo, etc.

  • Administrativamente pouco se realizava, pois o governo se con-

    sumia em sucessivas crises polticas. Como assinalavam os observa-

    dores polticos, havia do ponto de vista administrativo "uma

    pasmaceira geral contaminando todas as hostes governistas"; da

    mesma forma, o Congresso apresentaria em 1963 um dos seus perodos

    de maior improdutividade legislativa. Esta realidade dava munio

    aos setores de direita que alardeavam a "incompetncia administra-

    tiva" do Executivo e a "crise de autoridade".

    O isolamento e debilidade poltica do governo

    A sucesso de crises polticas advinha das contradies em que se

    debatia o governo: ao mesmo tempo que agitava a bandeira do nacio-

    nalismo e das Reformas solicitando, pois, o apoio das massas po-

    pulares e dos setores polticos de esquerda Goulart, por outro

    lado, protelava indefinidamente a realizao de medidas populares,

    afastava colaboradores ideologicamente progressistas, combatia os

    setores independentes (no pelegos) do movimento sindical, conde-

    nava abertamente iniciativas polticas de esquerda (em abril de

    1963, na cidade de Marlia, SP, usou a tpica linguagem de direita

    ao proibir um congresso "comuno-fidelista"). As concesses rea-

    o no se reduziam a estes fatos, pois o governo reservava os

    cargos mais importantes da administrao federal (particularmente

    aqueles responsveis pelapoltica econmico-financeira) apenas pa-

    ra os representantes das classes dominantes, indicava tambm "du-

    ros" das Foras Armadas para estratgicos postos de comando e man-

    tinha compromissos com o conservador PSD.

    Sob a permanente desconfiana da direita e da esquerda, o go-

    verno Goulart acabaria isolando-se politicamente. A ambigidade e

    a debilidade poltica do governo se mostrariam de forma definitiva

    no episdio do Estado de Stio. No dia 4 de outubro, o presidente

    da Repblica encaminhava ao Congresso mensagem solicitando a de-

    cretao do Estado de Stio em todo o territrio nacional, pelo

    prazo de 30 dias. A justificativa do Ministrio da Justia escla-

    recia que o Executivo necessitava de poderes especiais para impe-

    dir "grave comoo intestina com carter de guerra civil" que pu-

    nha em "perigo as instituies democrticas e a ordem poltica".

    Explicitamente eram indicadas algumas das situaes internas que

    perturbavam a ordem institucional: "manifestaes coletivas de in-

    disciplina" nas polcias militares de alguns estados; "sublevao

    de graduados e soldados" (Revolta dos Sargentos) que punha em ris-

    co a disciplina e hierarquia militares; as freqentes reivindica-

    es salariais que passavam a "ser fatores de agravamento da crise

    poltico-social" (na ocasio ocorria a greve dos bancrios em So

    Paulo e o PUA anunciava a decretao de uma greve geral caso aque-

    la paralisao fosse julgada ilegal por parte da justia traba-

    lhista) e, por fim, o fato de existirem governadores de importan-

    tes estados "conspirando contra a Nao". A ira de Goulart e de

    seus ministros militares voltava-se particularmente contra o go-

    vernador da Guanabara que, em entrevista a um jornal norte-ameri-

    cano (Los Angeles Times), havia ridicularizado a autoridade do

    presidente da Repblica, alm de insinuar que os militares brasi-

    leiros estavam confusos e desorientados diante de uma administra-

  • o inteiramente "desastrosa" para o pas. Coerente com a "vocao

    golpista" de seu partido, Carlos Lacerda conclamava o Departamento

    de Estado a deixar de lado sua "passividade" face grave situao

    em que se encontrava o Brasil, presidido por um "totalitrio mo-

    da sul-americana" e que "descambava para a esquerda". No havia

    dvida de que o Estado de Stio objetivava, imediatamente, a in-

    terveno na Guanabara e a conseqente derrubada do conspirador-

    mor da UDN. (Carlos Lacerda afirmaria, posteriormente, que havia

    escapado, naqueles dias, de um atentado por parte de um comando

    pra-quedista a mando de Goulart. Embora a denncia fosse negada

    por oficiais militares, a UDN e o PSD conseguiram aprovar a cons-

    tituio de uma Comisso Parlamentar de Inqurito a fim de apurar

    a denncia de Lacerda.) Logo a seguir, caso manifestasse solidari-

    edade ao seu aliado da Guanabara, poderia "rolar a cabea" do go-

    vernador de So Paulo, Adhemar de Barros acusado de fornecer ar-

    mas (contrabandeadas da Bolvia) a grupos paramilitares ("milcias

    patriticas"). Mas, indagavam os setores de esquerda: quem garanti-

    ria que Miguel Arraes tambm no fazia parte da "lista de sanea-

    mento" elaborada pelos militares, com a inteira complacncia de

    Goulart? Idntica pergunta faziam as lideranas sindicais e popu-

    lares de todo o Pas acerca do destino que viriam a ter as organi-

    zaes em que militavam.

  • Embora por razes distintas, todos os grupos polticos e asso-

    ciaes de classe direita e esquerda opuseram-se conces-

    so do Estado de Stio (apenas os setores "pelegos" do movimento

    sindical e frao do PTB tradicionalmente fiel a Goulart tentaram

    o apoio intil medida de fora). Os setores nacionalistas e de

    esquerda viam no Estado de Stio uma grave ameaa s liberdades

    democrticas e aos movimentos progressistas. Afirmava, por exem-

    plo, uma nota do CGT: "Somos, por princpio, contrrios ao Estado

    de Stio porque entendemos que a manuteno e ampliao das liber-

    dades democrticas so meios insubstituveis e necessrios s lu-

    tas contra os inimigos do Brasil e aos interesses da povo". A di-

    reita, por seu lado, via no Estado de Stio uma tentativa de golpe

    tramada por Goulart a fim de permanecer no poder, tal como o fize-

    ra Getlio Vargas em 1937. Diferentemente da ditadura estadono-

    vista, estaramos, ento, face a uma "ditadura esquerdizante",

    proclamavam os setores de direita.

    Quem dar o golpe?

    Nos meses seguintes ao frustrado pedido de Estado de Stio

    retirado pelo governo to logo se deu conta da fragorosa derrota

    que sofreria no Congresso , ressurgiria, mais vigorosamente ainda

    na cena poltica, o fantasma do golpe de Estado. Na viso da di-

    reita era Goulart quem o articulava atravs de seu "dispositivo

    militar" e com a colaborao de setores de esquerda. Enquanto a

    direita promovia uma sistemtica campanha alarmista, verberando o

    "golpe de Jango", as esquerdas que no deixavam de denunciar a

    trama golpista da direita levantavam suspeitas e desconfianas

    face ao governo. Ainda no ms de outubro, como assinalou um cro-

    nista poltico, as esquerdas se sentiriam "abandonadas por Gou-

    lart".! Alguns fatos pareciam comprovar essa observao: substitu-

    io de Bocaiva Cunha ("grupo compacto") . por Doute1 de Andrade;

    contactos com o PSD; autorizao da chamada "operao Arraes"

    (treinamento o IV Exrcito, cujo objetivo foi o de fazer uma "cla-

    ra advertncia" ao "governador esquerdista" de Pernambuco) e a

    condenao, por parte do governo, de um congresso das foras popu-

    lares e de esquerda programado para fins de outubro em Recife. Em-

    bora criticassem o governo, em virtude de suas constantes "idas e

    vindas", as esquerdas entendiam que no lhes convinha romper poli-

    ticamente com Goulart. Levavam em conta, para tal deciso, o avan-

    o golpista da direita. Novamente a esquerda nacionalista buscaria

    convencer Goulart de que a sua nica "sada", diante do seu cres-

    cente isolamento poltico, era vincular-se de forma inequvoca e

    definitiva com os setores populares e progressistas. Esta tambm

    seria uma condio fundamental, argumentavam os setores de esquer-

    da, para a efetiva realizao das Reformas de Base e para se impe-

    dir o golpe.

    Uma longa entrevista de Goulart, concedida em novembro a uma

    revista de ampla circulao em todo o Pas, ao mesmo tempo que

    provocava contundentes crticas da direita (os lderes da UDN i-

  • dentificavam no depoimento do presidente um "esforo de preparao

    de ambiente subversivo"), ia, por outro lado, reforar as expecta-

    tivas das esquerdas de influrem sobre a composio de um novo Mi-

    nistrio e de um novo programa de governo. No depoimento, em tom

    pessimista e quase pattico, Goulart reiterou a urgncia das re-

    formas ("desejo evitar que a crise caminhe para um desfecho cati-

    co e subversivo"); denunciou as "foras reacionrias" anti-

    reformistas; responsabilizou a "deteriorao das relaes de tro-

    cas" como principal causa das dificuldades cambiais do Pas e de-

    fendeu enfaticamente a "interveno dos trabalhadores na vida p-

    blica". Interpretando recente deciso poltica da Frente de Mobi-

    lizao Popular, Miguel Arraes, aps se referir ao importante de-

    poimento de Goulart, iria expressar o programa das foras popula-

    res face ao governo. A certa altura, afirmava a nota do governador

    de Pernambuco: "(...) se o presidente da Repblica, fiel sua

    formao poltica e aos compromissos que tem com as massas traba-

    lhadoras, deseja superar nossa aguda crise interna e manter nossa

    poltica externa independente, ele precisa apoiar-se nas 'foras

    populares' e com elas estabelecer um novo governo, capaz de elabo-

    rar e executar um programa democrtico, nacionalista e progressis-

    ta". Mais abaixo era esclarecido que, no "novo governo", deveria

    estar garantida a "participao de representantes das 'foras po-

    pulares' em (seus) setores fundamentais".

    Durante o ms de dezembro, a FMP particularmente o seu setor

    "brizolista" acalentou a esperana de ver Brizola ocupar o cargo

    de ministro da Fazenda, em substituio a Carvalho Pinto. Para a

    direita, que se alarmava com a intensa mobilizao popular (um dos

    slogans dizia: "Contra a espoliao, Brizola a soluo"), a no-

    meao teria o sentido inequvoco de uma "provocao" e seria a

    prova definitiva da consolidao da esquerda dentro do governo.

    (Afirmavam os "brizolistas" que o novo ministro, logo aps a sua

    posse, decretaria a "moratria no plano internacional".) Governa-

    dores de Estado (com a exceo de Pernambuco, Sergipe e Piau),

    PSD e UDN ameaaram com represlias imediatas. No plano interna-

    cional, os EUA atravs da embaixada no Brasil declaravam que

    suspenderiam todas as operaes de financiamento e assistncia,

    alm de bloquearem suas relaes comerciais com o pas (Carlos

    Castello Branco, op. cit.). Depois de alimentar, por algumas sema-

    nas, as iluses das esquerdas, o prprio Goulart que tinha ainda

    vivo na memria o episdio da desastrada indicao de "Bejo" (Ben-

    jamim Vargas) para a chefatura de polcia do Distrito Federal em

    1945 encarregou-se de "jogar gua fria" na febril agitao dos

    brizolistas. Para o Ministrio da Fazenda foi designado um ban-

    queiro, Nei Galvo. Segundo era voz corrente, tratava-se de um bu-

    rocrata "despreparado para o cargo"; um "homem de centro-direita"

    (Brizola diria que, com este ato, Goulart afastava as foras popu-

    lares da "ante-sala do Ministrio da Fazenda"). Igualmente tal de-

    ciso desagradou fraes das classes dominantes, pois Carvalho

    Pinto tido como um eficiente administrador vinha, segundo es-

    ses setores, tentando revitalizar algumas medidas de estabilizao

    propostas pelo Plano Trienal. A demisso de Carvalho Pinto repre-

    sentou, assim, o rompimento de um dos ltimos elos que a burguesia

    brasileira ainda mantinha com o governo de Goulart.

  • O balano do ano de 1963 revelaria de forma dramtica o fra-

    casso da poltica econmica do governo: o ndice geral dos preos

    alcanou 78% (previa-se 25%); a taxa do PIB chegou ao ponto mais

    baixo que se conhecia nos ltimos anos, 1,5%; o dficit da caixa

    do Tesouro Nacional atingiu 500 bilhes de cruzeiros (previa-se

    300 bilhes); os meios de pagamentos cresceram de 65% (previa-se

    34%). Sem crescimento econmico e com uma vertiginosa inflao, o

    descontentamento passa a ser generalizado: nunca o Pas assistiu,

    num curto perodo de tempo, ao surgimento de tantos movimentos

    reivindicatrios. Os "tempos de Goulart" singularizam-se dentro da

    histria poltica brasileira: neles, a poltica deixou de ser pri-

    vilgio do parlamento, do governo e as classes dominantes, para

    alcanar de forma intensa a fbrica, o campo, o quartel.

  • A POLITIZAO DA SOCIEDADE ESQUERDA E DIREITA MOBILIZAM-SE

    O recrudescimento da luta de classes no incio dos anos 60 foi

    responsvel por uma intensa politizao de inmeros movimentos so-

    ciais, alm de implicar transformaes no sistema partidrio e na

    vida parlamentar.

    Uma das dimenses da crise do sistema partidrio brasileiro

    residiu no fato de que os partidos polticos legais em nmero de

    13 nas eleies de 1962 mostravam-se incapazes de refletir, em

    toda a sua extenso, a correlao de foras existentes no interior

    da formao social. Igualmente era reconhecido que tais agremia-

    es polticas reproduziam com pouca fidelidade a diversidade das

    tendncias e dos conflitos ideolgicos que perpassavam a realidade

    social do Pas (O. Brasil de Lima Jr., O Sistema Partidrio Brasi-

    leiro).

    A crise do sistema partidrio: FNP versus ADP

    A "crise de representatividade" dos partidos polticos eviden-

    ciava-se por alguns sintomas caractersticos; nas duas ltimas e-

    leies, verificou-se tanto um aumento do nmero de votos em bran-

    co e nulos ("votos de protesto"), como o nmero de alianas e co-

    ligaes (em alguns estados, assistiu-se formao de "esdrxu-

    las" alianas entre o PTB e UDN; 47% dos eleitos pela Cmara Fede-

    ral vieram de coligaes).

    A luta ideolgica de classes que se expressava pelo confron-

    to entre diferentes orientaes acerca das reformas sociais ("ra-

    dical", "modernizao-conservadora", anti-reformismo) e ac