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O Grande Hu-Há Roxo - Uma Comédia da Percepção

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1 – Joe’s Show

Joe podia sentir a atenção crescente da plateia, o empenho total dos operadores de câmera e o envolvimento emocional de sua convida-da aumentando de forma gradativa.

“Isso vai ser bom”, ele pensou.– Só queremos nossa filha de volta – a mulher soluçou. – Só que-

remos tirá-la de lá.– Para aqueles que acabaram de sintonizar nosso canal – disse Joe

em tom suave –, a filha da sra. Westheimer, de 19 anos, tornou-se parte de (ou foi levada por?) uma seita. Sra. Westheimer, quando a senhora viu sua filha ou ouviu falar dela pela última vez?

A mulher usava um lenço de papel, com o qual secava os olhos, dando batidinhas, borrando a maquiagem empapada por lágrimas.

– Já faz mais de um ano agora. Eles raptaram minha filha logo depois que ela completou 18 anos.

– A senhora diz que eles “raptaram sua filha” – Joe ressaltou. – Eles vieram e sequestraram mesmo sua filha?

– Eu não sei o que fizeram para convencê-la a ir – disse a sra. Westheimer, com um gemido. – Eles transtornaram a mente dela ou fizeram uma lavagem cerebral nela, ou algo assim. Um dia ela era nossa filha, doce e encantadora. No dia seguinte, ela estava louca, pregando todas essas ideias malucas. Então, quando vieram atrás dela, ela sim-plesmente entrou naquele carro, mesmo a gente tendo implorado, mes-mo a gente pedindo para que ela ficasse.

Joe afagou o queixo e pareceu pensativo por um instante.– Quando a senhora começou a perceber que ela estava aderindo à

influência ideológica dessa nova religião?A sra. Westheimer inspirou, o nariz congestionado pelo choro, e

conteve o soluço seguinte.

Parte 1

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O Grande Hu-Rá Roxo12

– Começou com coisas sem importância. Encontramos esses car-tões e livros pela casa, que diziam, sei lá, coisas esquisitas.

– Por exemplo?– Veja. Eu tenho um aqui. – A sra. Westheimer retirou um quadra-

do de papel-cartão do bolso e o entregou a Joe.O lado que estava voltado para Joe tinha um texto de três pará-

grafos em uma fonte sem serifa legível, mas minúscula. Ele apertou os olhos e começou a ler em voz alta para que a plateia ouvisse.

– A Invocação de Atem. – Ele levantou os olhos de relance. – É a-te-e-eme. Atem. Aqui diz: “Quando sua vida está pronta para uma mu-dança, quanto tudo está sombrio e piorando, quando suas possibilidades parecem ter acabado, peça a ajuda de Atem. Atem é O Precursor do Caminho. Ele é a conexão com os deuses e deusas de todos os tempos, com os demônios e anjos da consciência maior, com os espíritos e guias do mundo invisível. Está pronto para mudar seu mundo?”. E seguem mais algumas coisas assim.

Joe levantou os olhos para alcançar a plateia, os telespectadores em casa e os cartões com suas falas.

– Já vimos isso antes – ele disse. – Já ouvimos os gurus e pregadores mentirosos despejarem esse tipo de baboseira antes. O apelo sedutor aos que perderam a esperança, aos nossos amigos e familiares que estão tão mal, tão perdidos e confusos a ponto de se agarrarem ao menor fio de falsa esperança que aparecer. E a promessa de ajuda sobrenatural, de alguma bênção que aparecerá de forma mágica se você apenas doar todos os seus bens mundanos ou trair seu livre-arbítrio ou submeter-se a qualquer humilhação que lhe impuserem.

– Sra. Westheimer, pode nos dizer uma coisa? Como era a vida de sua filha quando ela ficou, ahn, transtornada com tudo isso?

A mulher enxugou os olhos mais uma vez; a maquiagem agora escurecendo as órbitas, dando-lhe uma aparência vazia, como de um zumbi, mas que conflitava com sua entonação patética e os soluços de quando em quando.

– Ela teve lá seus problemas. Que adolescente não tem? Mas ela era uma criança carinhosa, de verdade. Meio nerd, sabe. Ela lê muito, passa muito tempo na frente do computador, essas coisas. Nunca foi muito popular, na verdade. Ela só se envolveu com um garoto durante todo o período do ensino médio. A gente devia ter se preocupado mais depois do incidente com as drogas...

Joe se inclinou para chegar mais perto.– Drogas?

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Joe’s Show 13

– A erva. Ela estava fumando maconha no porão e a gente a pegou.– Tudo bem, então, vamos ver se eu entendi – começou Joe, en-

quanto uma das câmeras fechava o foco nele. – Ela era uma desajus-tada? Talvez não tão bonita quanto algumas de suas amigas? Passava muito tempo sozinha? Começou a se voltar para as drogas?

A sra. Westheimer assentiu.– Alguma vez ela mencionou qualquer pensamento sobre... suicídio?– Suicídio? Não... Quer dizer... Ela nunca disse... Talvez... Eu não

sei... Se ao menos a gente tivesse incentivado a menina a se abrir mais... – Os soluços sacudiram todo o seu corpo.

– Está tudo bem, sra. Westheimer. Não estamos culpando vocês. Mas essas seitas são oportunistas. São predadores, alimentam-se dos membros fracos e perturbados da sociedade. Eles veem um adolescente confuso, desesperado e em apuros e logo oferecem sua suposta ajuda. E não revelam o preço até que seja tarde demais.

– Mas, diga-nos, sra. Westheimer, o que essa seita faz? Em que seus membros acreditam?

– Bom, essa é a parte assustadora – ela disse. – Eles dedicam suas vidas ao fim do mundo.

– Ao fim do mundo?– Eles rezam para alguma coisa. Ela tem um nome engraçado. E,

quando rezarem para ela o suficiente, eles esperam que ela venha e o mundo acabe. Eu tenho medo...

– Do que a senhora tem medo, sra. Westheimer?– Tenho medo de que todos se matem.Joe adotou uma expressão ainda mais séria e ficou em silêncio por

um instante para que as câmeras pudessem captá-la. – Essa coisa que esperam que venha: o que é? Um óvni? Um

monstro? Algum tipo de desastre?– Eu não sei. Eu só sei que o nome... o nome disso é...– Que nome dão a essa coisa?A voz dela titubeou.– O Grande Hu-Rá Roxo.O estúdio ficou em silêncio por um instante e, então, a plateia

explodiu em gargalhadas, com alguns poucos gritos se destacando no tumulto generalizado. Joe permitiu que a reação continuasse, fazendo uma expressão profundamente preocupada e pensativa até que o pior da confusão passasse.

– É assim mesmo que chamam essa coisa? – ele perguntou. – O Grande Hu-Rá Roxo?

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A sra. Westheimer assentiu, tímida:– Eu disse que era um nome engraçado.– O que é exatamente um Grande Hu-Rá Roxo?Ela meneou a cabeça.– Eu não sei. Mas uma coisa eu digo: não foi desse jeito que cria-

mos nossa filha. Nós não ensinamos nossa menina a acreditar em Hu-Rás de qualquer cor. Nós demos a ela uma sólida educação religiosa.

– Que religião a senhora segue, sra. Westheimer?Os soluços pararam e ela levantou os olhos com orgulho.– Pertencemos à Legítima Igreja Ortodoxa da Segunda Vinda de

Elvis.A plateia rolava de rir. Joe gritou, sobrepondo-se ao barulho.– Estaremos de volta logo após os comerciais!

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2 – Quero Ver Dinheiro

– Foi péssimo. – Jerry Hull era careca, corpulento, sua voz um pouco mais berrante do que as pintas alaranjadas de sua gravata. – Que diabos foi aquilo?

– Eu achei muito bom – Joe disse. – Consegui prender a atenção deles por um tempo. Dava até para sentir a tensão.

– Claro, e aí você deixou sua convidada falar. A gente adorou a mulher quando ela era uma vítima, não uma idiota. E o que era aquele vestido que ela estava usando?

– Foi a produção que escolheu – Joe disse. – Achei que distrairia a atenção das... outras características dela. Quero dizer, uma mulher daquele tamanho, em que roupa se pode colocar?

– Ahan. Aquilo foi televisão vagabunda, Joe. O que está aconte-cendo com seu show, afinal? A gente costumava ter drag queens que eram pilotos de companhias aéreas e viúvas desprezadas de políticos polígamos. Mulheres que rasgavam suas roupas e aquele cara que ten-tou matar o operador de câmera com... o que era aquilo? Um peixe de borracha? Agora são só mamães de filhos que fazem parte de seitas e professoras que são bruxas. Quem se importa com isso? Estou com saudade dos velhos tempos.

Joe olhou pra Jerry.– Esta é só a segunda temporada. E era um dildo, não um peixe de

borracha.– A questão é que – Jerry continuou –, é que está uma porcaria.

Detesto dizer isso desse jeito, Joe, porque você tem sido meu amigo do peito desde que nos conhecemos, há dois anos e meio, mas alguma coisa tem de mudar no show. É melhor que o programa da semana que vem prenda minha bunda na cadeira e atraia mais audiência. E arranje um novo patrocinador. Quero ver dinheiro.

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– Vamos fazer o possível. A produção sempre...– Não, Joe. Você vai fazer o possível. Mais do que o possível. Ou

a gente vai substituir você.Joe engoliu em seco.– Quem você colocaria no meu lugar?– Mark Layton.– Mark Layton? Você acha Mark Layton mais bonito do que eu?– Ele é mais alto que você, Joe, e também tem ombros mais largos.

E tem cabelo bom.Joe passou a mão em seu cabelo impecavelmente engomado.– Cabelo melhor que o meu?– Eu não dou a mínima para a porra do seu cabelo, Joe! Franca-

mente, sempre tive cá minhas dúvidas com relação a você. Eu achava que você era muito sem sal e sem açúcar, molenga e, sabe, meio asque-roso. Eu só quero ver um programa de televisão mais empolgante, para variar! Certo? Semana que vem. – Jerry parou por um instante e então colocou um tom de lamento e súplica na voz. – Joe, por favor?

Joe correu os dedos sobre o rosto cheio de vincos.– Eu... Sim, Jerry. Eu vou dar um jeito.– Tudo bem, então – Jerry abriu um largo sorriso, de repente. – A

gente vai pegar sushi e algumas brasileiras, como você sugeriu?– Não – disse Joe, sua voz era um eco fraco de seu padrão profis-

sional. – Acho que não estou com fome.

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3 – Invocação de Atem

Joe vestiu uma capa de chuva preta sobre o terno que usou no pro-grama e saiu vagando ao entardecer. Nuvens cinza e a luz do crepúsculo se esparramavam sobre uma cidade que pulsava e rugia. Aos ouvidos de Joe, no entanto, a cadência de fundo de Nova York diminuía enquanto a trilha sonora de uma narrativa interna ficava cada vez mais alta.

“Eles não gostam de mim”, choramingava a mente de Joe. “Eles me assistem na televisão e o que eu faço não é bom o suficiente. Eu não sou melhor do que qualquer outra porcaria no ar. Que humilhação!”

Joe fazia terapia e sabia que tinha algumas “questões” com relação a reconhecimento e aprovação. Mas isso era mais que algumas questões. Jerry não gostava dele. Não gostava de verdade. As pessoas que assistiam, as pessoas por quem ele fazia tudo isso, não gostavam dele. A aprovação das pessoas: era para isso que ele existia, para isso que vivia, era isso que o motivava a acordar de manhã, engomar o cabelo e ir para o trabalho.

“Eles não gostam de mim. Eles não gostam de mim. Eu sou um lixo! Lixo! Lixo!”

Só havia um lugar para onde ir agora.A loja de bebidas era um farol de luzes coloridas: garrafas, com

líquidos cor de âmbar, verdes e vermelhos, atrás de uma vitrine de vidro espesso e iluminadas pela claridade que vinha dos fundos. O simples ato de olhar para as garrafas na vitrine já fazia Joe sentir o entorpecimento se aproximando devagar e a voz interior se aquietar ou, ao menos, balbuciar até ficar incompreensível. Lá dentro, um caixa mal-humorado passou o cartão Visa de Joe e entregou um litro de Old Mystery em um saco de papel pardo. Joe guardou o cartão no bolso e abriu a tampa da garrafa com um giro firme.

– Ei, cara – o caixa reclamou. – Espere até chegar lá fora, falou?

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Duas horas depois, Joe já tinha tomado metade da garrafa de O.M., mas não sentia nem de perto todo o alívio que tinha imaginado. Sua voz interior estava só um pouco mais calma, mas agora muito mais lamurienta, reclamando de si mesma.

“Que chorão de merda”, a voz interior de Joe resmungou. “Eu sou mesmo um lixo. Por que faço isso comigo mesmo? Por que diabos eu simplesmente não calo a boca?”

Ele tentou afogar a voz com outro grande gole de O.M. A bebida queimou em sua garganta e a garrafa tilintou violentamente quando ele a bateu com força no concreto. Joe jamais serviria O.M. a seus amigos de profissão, isso era só para amortecer as terminações nervosas e queimar depressa alguns neurônios.

Ele não sabia direito onde estava. Viu-se sentado na soleira de uma porta em uma rua escura, cheia de armazéns e fábricas ou algo assim. Du-rante o dia, a rua estreita devia ficar apinhada de caminhões e operários. Porém agora, o cara branco, bem-vestido e muito bêbado, ali na calçada, era uma atração para os poucos pedestres esquisitos que vagavam por lá.

“Olhem para mim”, Joe pensou. “Que fracassado de merda. Eles não gostam mesmo de mim.”

Outro grande trago de O.M. desceu queimando e a garrafa foi, de novo, com uma pancada, para o degrau de concreto. Dessa vez ela não tilintou tanto, quebrou, estilhaçando-se na calçada.

“Cacete”, pensou Joe. “Que porra. Não consigo nem ficar bêbado sem foder tudo.”

Ele se levantou cambaleando, passando as mãos pela capa de chuva para tirar os cacos da garrafa quebrada. Verificou, por dentro da capa, o bolso de seu terno, para ter certeza de que estava munido de seu cartão de crédito para outro ataque à loja de bebidas.

Mas o que sua mão pegou não foi o cartão. Ela agarrou um pedaço de papel-cartão. Ele o tirou do bolso e, apertando os olhos, encarou-o à meia-luz. Havia uns poucos parágrafos de texto miúdo. No alto, estava escrito: “A Invocação de Atem”.

A Invocação de Atem

Quando sua vida está pronta para uma mudança, quanto tudo está sombrio e piorando, quando suas possibi-lidades parecem ter acabado: peça a ajuda de Atem. Atem é o Precursor do Caminho. Ele é a conexão com os deuses e deusas de todos os tempos, com os demônios e anjos

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da consciência maior, com os espíritos e guias do mundo invisível. Está pronto para mudar seu mundo? Diga o que segue, em voz alta:

Eu ofereço minha atenção, a força de minha consciên-cia, a Atem. Eu o faço ao pronunciar estas palavras e per-mitir que minha compreensão delas aumente. Eu impregno estas palavras com minhas emoções, com o poder de meus desejos e minhas necessidades, os sentimentos de meus ga-nhos e perdas, minha alegria, meu pesar, meu amor, minha ira, meu entusiasmo, minha melancolia e meu júbilo. Eu inicio exatamente onde estou agora, com as coisas que te-nho à mão, os pensamentos e instrumentos que já estão em minha vida. Peço que minha experiência do mundo mude de maneira que eu possa fazer melhor uso de meus pensamen-tos e ferramentas. Espero percebê-lo, Atem, seja qual for a forma pela qual você se manifeste em minha vida.

Agora, esteja aberto às formas de Atem. Pensamentos e manifestações de Atem podem ocorrer próximos a corpos de água, à luz do dia ou em lugares dedicados a computa-dores ou tecnologia da informação, ou onde o sol poente brilhe por entre árvores, ou à noite, quando as pessoas inte-ragem e exploram os sonhos e desejos umas das outras, ou em qualquer outro lugar onde a complexidade da interação vá além da capacidade da mente humana consciente. Atem vive nas fronteiras do caos, onde batem as asas da borbo-leta, onde as funções tornam-se assintóticas, no local onde William Blake viu o infinito em um grão de areia. Atem não vem para salvar a Terra, unir a humanidade ou colocar saúde, riqueza e sabedoria em suas mãos. Atem vem para Abrir o Caminho para a diversidade de entidades capazes de trazer tais coisas... e muito mais.

Quando Joe chegou ao final do pequeno texto, ele se deu conta de que o estava lendo em voz alta. E não só em voz alta; ele tinha lido as palavras do cartãozinho em uma versão meio alucinada e definitivamente bêbada de sua voz na tevê. Ele olhou para ambos os lados da rua para ter certeza de que estava sozinho. Dois casais de jovens que caminhavam juntos do outro lado da rua o encaravam com horror e nojo.

“Ah, que se dane”, disse Joe. “Fiz merda de novo.” E saiu em bus-ca de bebida.

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A loja de bebidas estava fechada, mas um pouco mais acima, na-quele quarteirão, havia um bar que derramava uma pálida luminosidade amarelada e um fiozinho de rock de sua porta aberta. Estava quente lá dentro e havia um fedor de fermentação que não vinha só das bebidas. Uma vitrola automática malcuidada, que estava a um canto, murmurava canções que deveriam ser gritadas. Entretanto, parecia que murmurar também era uma tendência entre a clientela. Um segurança, que vagava despreocupado próximo à porta, olhou, cético, para Joe e, em seguida, voltou a seu estado de torpor. Joe encontrou um lugar para se encostar e, batendo com a mão, colocou seu Visa sobre o balcão. Uma piranha boazuda com um vestido cor-de-rosa apertado avaliou os sapatos dele e, ao que parece, decidiu não oferecer seus serviços. Em pouco tempo, ele estava com uma cerveja aguada e uma dose tripla de O.M. nas mãos e abria caminho de forma tortuosa para chegar a uma mesa vazia.

Na mesa ao lado, duas mulheres vestindo ternos pretos trocavam maletas lacradas com um negro baixo e malvestido. Em outra mesa não muito longe, um casal de jovens que mal tinha idade suficiente para frequentar um bar agarrava-se às roupas um do outro, banhando em beijos molhados e embriagados. O seio esquerdo da garota estava quase inteiro à mostra, fora de sua blusa, e a mão dela circulava, insistente, em direção aos genitais intumescidos do garoto. No balcão, a prostituta contava histórias para dois velhos bêbados crônicos. Eles murmuravam entre si e riam. O som monótono da vitrola era de um lamuriento grunge da década de 1990.

Joe percebia muito pouco disso tudo. Ele dava tragos em suas be-bidas e chafurdava-se em desdém por si mesmo, regado a álcool. Sua vida passava como um filme diante de seus olhos, em uma sequência retrospectiva escura e granulada, enquanto a trilha da narrativa interna

4 – Adam

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Adam 21

continuava a escrachar cada ato, qualidade e manifestação de seu ser. E, de fato, enquanto Joe revia sua carreira recente, ela agora lhe parecia insignificante, sórdida e, no geral, um erro extremamente incômodo.

– Porra de vida de merda – Joe murmurou.Ele mal notou quando alguém se esgueirou para o seu lado no

banco, batendo sonoramente um copo de cerveja com um descanso de papelão sobre a mesa.

– O que foi que você disse? – perguntou uma voz.Joe levantou os olhos e viu um jovem que segurava um grande

gato cinza. O rapaz parecia ter seus 25 anos, era esbelto e tinha cabe-los pretos rebeldes. Suas roupas, um suéter surrado e jeans desbotados, pareciam bem apropriadas ao local. Ele parecia bem. Na verdade, ele parecia irradiar saúde. E o gato parecia estranhamente grande e expres-sivo, com olhos verde-amarelos que examinavam Joe com uma atenção serena. A presença do rapaz era um tanto sóbria, mas só o suficiente para tirar Joe, ao menos um pouco, de sua confusão interna.

– Vá se foder – disse Joe, surpreendendo-se com sua própria cla-reza e articulação.

– Diga, você não é aquele cara da televisão – disse o rapaz –, Joe... Schmoe?

– Vá se foder – Joe repetiu. – É “Joe’s Show”, imbecil. Meu nome é Joe Maloney.

Joe tomou o último gole de seu O.M.– Ei – o rapaz disse –, eu pago mais um para você.– Certo, beleza. – Joe sorvia a cerveja e, em um instante, outro

copo da bebida estava ali, com seu aroma embriagador. Depois da cer-veja, seguiu O.M. em uma jornada para o interior de Joe.

– Noite ruim, não é? – O rapaz perguntou. – Sabe, estou aqui para ajudar.

– Foda-se. Seja lá o que for que você estiver vendendo, só vou ouvir enquanto você estiver pagando. Merda, talvez nem todo esse tem-po. Eu posso pagar pela porra da minha bebida. Eu não sou nenhum maldito idiota.

– Não, Joe – o rapaz disse. – Não estou vendendo nada. Só quero um pouquinho da sua atenção. E, então, vou mudar sua vida.

– Eu não vou comprar nada. Eu não vou a lugar nenhum com você. Eu vou ficar exatamente aqui com meu Old Mystery.

– Certo. Ei, eu vi alguns dos seus shows. São legais.– A porcaria do show é um lixo. Todo mundo sabe disso. Menos eu.

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– Eu achei divertido. Aquele em que o cara tentou matar o opera-dor de câmera com... o que era aquilo? Uma enguia viva?

– Coisa do passado – Joe murmurou. – Tudo desmoronou. O show é uma droga. Eu sou um lixo. Essa porra desse bar é uma merda. A be-bida não é uma merda. Você é um porre. Seu maldito gato é um porre. E era um peixe de borracha, não uma porcaria de uma enguia.

– Você parece muito mais simpático e fala um pouco melhor no show.

– Vá se foder.– Chega disso – o rapaz afastou a conversa, abanando a mão como

se faz com um peido fedorento. – Hora de cuidar dos negócios.Joe tomou uma grande golada.– Lá vem o papo de vendedor.– Faria alguma diferença se você soubesse que meu nome é Atem?– É um puta prazer conhecê-lo, Adam. Então, vamos lá, fale logo.

O que você está vendendo?– De novo, Joe, eu vou lhe dar algo, mas primeiro você precisa

estar pronto para isso e eu só preciso mesmo da sua atenção completa por um instante. Então, talvez a gente possa começar onde sua atenção já está focada. Dói, não é? Dói pensar que seu show é uma porcaria.

Joe recuou.– Vá se ferrar.– Dói pensar que você é um lixo, não é?Joe quase se retorceu de dor.Atem começou a falar com uma voz suave e ritmada.– Preste atenção em que parte do corpo você sente a dor, Joe.

Perceba onde a sensação começa. Quanto mais você pensar em quanto sua vida é um lixo, mais você vai conseguir perceber como a sensação cresce e se move. Pense no que Jerry lhe disse. Pense em Jerry. Ele não gosta de você, ele só gosta do dinheiro. Não tem nada a ver com você. Você é insignificante. Você é um lixo, Joe. Agora, perceba para onde a sensação vai. Preste atenção em que tipo de sensação é essa. Existe toda uma variedade de sensações: formigamento, pressão, temperatura, movimento, textura. Se a sensação tivesse uma cor, qual seria?

– Uma cor meio marrom, preta, brilhante – murmurou Joe. – Eca.– Bom, muito bom – disse Atem. – Agora, perceba como a sen-

sação, a cor, circula. Conforme você respira, ela pulsa ou se move de forma cíclica. Consegue perceber isso?

Joe assentiu e fez um gesto com a mão, um movimento circular em direção ao centro de seu corpo.

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– Certo, Joe, agora inspire profundamente e, ao fazer isso, reverta a direção da sensação. Faça-a circular na direção contrária. Inverta as coisas.

Joe respirou fundo e, de repente, sentou-se muito aprumado. Seu olho esquerdo arregalou-se um pouco mais.

– Isso é muito esquisito – ele disse.– Sente-se um pouco diferente agora? – Atem perguntou.– Sim – disse Joe. – É estranho, mas, sim, me sinto diferente.– Como a sensação mudou?Joe pensou por um instante.– Quando ela mudou de direção, também mudou de cor. Ela ficou

meio que dourada e brilhante. Antes ela, tipo, me esmagava. Agora eu sinto que ela me põe para cima. E a voz sumiu.

– Legal – continuou Atem. – Agora, mantenha-a circulando na nova direção. Faça as cores ficarem mais intensas, faça a sensação cres-cer e envolver seu corpo cada vez mais.

Joe ainda pendia para um lado, mas, agora, os dois olhos estavam arregalados por igual.

– Perfeito! – Atem exclamou. – Acordado o suficiente para prestar atenção em mim por alguns minutos agora?

– Sabe, Adam, acho que sim. Você conseguiu minha atenção. Não acredito que você fez isso.

– Na verdade, você fez isso – disse Atem, o gato virando-se e aninhando-se tranquilamente em seu colo. – Eu só dei um empurrãozi-nho. Agora eu vou ajudá-lo com o probleminha da sua carreira... e talvez com um pouco mais. E, enquanto isso, você pode me ajudar também.

– Você vai me dar uma ideia para o show? Putz, estou ouvindo.– Nada tão óbvio assim – Atem disse. – Tome alguma coisa, fique

à vontade. Só vou contar uma historinha.Joe tomou um trago e se recostou no plástico rachado do banco.

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Atem tomou um gole de cerveja e o tom de sua conversa mudou só de forma mínima, ficando um pouco mais baixo e lento.

– Você sabe quem é Rex Massenclear?– Claro – disse Joe. – O músico. Era dele aquela música que fez

sucesso uns anos atrás... Como era o nome?– “Sua Mãe Fumou meu Baseado.”– Ah, fale sério.– É sério. Esse é o nome da música.– Massenclear... Não é ele o cara que...?– Sim.– É?– Existem milhares de histórias sobre Rex Massenclear e muitas

delas são verdadeiras ou, pelo menos, verdadeiras o bastante. Ele é, de fato, o Astro do Rock Mais Nojento de Todos os Tempos. Mas, an-tes de avançarmos demais nessa história específica, precisamos de um pouco de música de fundo. Você conhece a Trilha Sonora Astral?

– A o quê?Atem inclinou um pouco a cabeça, como se ouvisse algo ao longe,

além do sussurro e do murmúrio do bar.– Ouça. A vida tem uma trilha sonora, um conjunto de temas mu-

sicais compostos de harmonia, ressonância e padrões de interferência. Música que parece a trilha sonora de um filme. A maioria das pessoas não consegue ouvi-la. Elas sequer sabem dela. Ouça. Ouça com aten-ção. Pode ser que você consiga escutá-la. Você tem de estar em um estado de espírito singular para ouvi-la pela primeira vez. Talvez ela só precise da sua atenção até mesmo para existir. Pode ser que ela exista apenas na nossa imaginação, uma metáfora em forma de música para a miríade de estímulos inconscientes que nos cerca, definindo o tema

5 – O Astro do Rock Mais Nojento de Todos os Tempos

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O Astro do Rock Mais Nojento de Todos os Tempos 25

do momento, os sentimentos e emoções do personagem. Não importa. Uma vez que você a escute, ela estará sempre ali. Agora escute. Assim como em um filme, você vai ouvir os ruídos síncronos do ambiente, os efeitos especiais, as vozes, os sons de fundo... e, acima de tudo isso, a trilha sonora. – Ele bateu com o dedo na orelha. – Apenas escute.

Joe parou para ouvir. O bar estava repleto dos barulhos convencio-nais de um bar. Vozes, copos, o barulho rítmico da vitrola automática inexpressiva. E talvez alguma outra coisa flutuando logo acima disso tudo. Vagamente.

– Ouça – Atem disse. – Está baixa agora. Tipo, um tema de filme de ficção científica de segunda, sinistro e distorcido. Agora está aumen-tando um pouco.

– Sim – disse Joe. – Que doideira. Eu nunca tinha ouvido isso antes.A Trilha Sonora Astral aumentava de volume, um teremim ondu-

lante que convidava a entrar em um mundo de sóbria esquisitice.– Bem, agora, me deixe falar sobre Rex Massenclear – Atem con-

tinuou. – Ele era um garoto de classe média que venerava carros e coelhinhas da Playboy, mas dirigia um carro de merda e nunca conseguia um encontro de verdade. Ele ouvia música o tempo todo, no aparelho de som, na MTV, no rádio da sua lata velha. Rock’n’roll o dia inteiro. E ele queria ser um astro do rock. Queria muito mesmo.

Atem inclinou-se mais para perto. Seu gato olhou para cima e uma passagem improvisada de bateria ressaltou sua seriedade.

– Rex venderia sua alma pelo rock’n’roll.Conforme a bateria rolava, Joe sentiu um instante de pânico. Era disso

que se tratava? Um pacto com o Demônio? Joe fez um esforço para afastar o pensamento, mas uma música agourenta, um teremim enlouquecido e uma guitarra áspera e estridente soaram quando Atem retomou sua história.

– Na verdade, Rex tentou vender sua alma. Ele pegou emprestados livros de magia negra da biblioteca pública. Quase foi atropelado por um caminhão quando esperava na encruzilhada, à meia-noite. Mas pa-recia que o mercado de almas como a dele não estava muito promissor. Qualquer pirralho do heavy metal que tinha o sonho de ser uma estrela do rock queria fazer um pacto com o Demônio. E, além do mais, parece que não havia mesmo nenhum demônio que comprasse almas por ali.

– Então, Rex tentou fazer a coisa do modo difícil, com aulas de guitarra, prática e bandas adolescentes de garagem. Ele aprendeu acor-des. Compôs músicas. Foi quando escreveu “Sua Mãe”, aos 17 anos. Ele ensaiou e fez shows no ginásio da escola e na sede local dos Alces. Mas, é claro, ele nunca teve mesmo muito talento e foi tudo uma perda de tempo.

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– Então, Rex teve uma revelação. Bom, na verdade ele teve um barato em razão das drogas, mas, enquanto estava sorrindo para a pulsação de um vaso de fícus no apartamento de seu baixista, uma coisa interessante lhe ocorreu. Na realidade, primeiro aconteceu que ele peidou. Ele cascou um daqueles, poderoso, longo, fedorento, tipo queijo. Ele e os amigos riram até não poder mais, imersos em gases anais, e essas gargalhadas todas eram tão boas, tão maravilhosas, que Rex quis continuar assim para sempre. A partir da visão de mundo singular de Massenclear naquele momento, aquilo era uma revelação, um sinal sobre o curso definitivo de sua vida.

– Ele tomou uma decisão naquele momento, criou um plano de ação. Se ele conseguisse mostrar a seu público alguma coisa deles mes-mos; se eles olhassem para ele e pudessem se identificar com ele, ele os conquistaria.

– Em geral, quando olhamos para um astro do rock ou para uma celebridade, vemos um pouco do que queremos ser, alguma forma ideal de nós mesmos, alguém que podemos imitar, com quem podemos nos parecer. Vivemos, de forma indireta, por meio de nossos heróis da mí-dia. As pessoas amavam Elvis porque ele era só um garoto comum que cantava bem. Quando assistiam ou ouviam Elvis, conheciam, só um pouquinho, a sensação de ser o máximo. As pessoas queriam ser Elvis e viviam a vida por meio dele. E o simples fato de fazer isso já as modi-ficava, causava mudanças profundas em sua neurologia, mudanças que influenciavam seus pressupostos a respeito do mundo.

– Mesmo no caso de alcoolismo ou uso de drogas, Keith Richards, por exemplo, essas ainda são características que o típico fã de rock ad-mira de alguma maneira. Keith Richards faz isso por nós e podemos sonhar em ser livres, ousados, corajosos, loucos desvairados, ou seja lá o que for. Vemos nessas pessoas algumas partes de nós mesmos que querem muito agir daquela forma, que agiriam como doidas varridas se tivessem o dinheiro, o tempo ou os fãs para isso.

– Rex cascou um, seu mundo se remodelou e ele decidiu que fa-ria o lance do astro de rock de um jeito um pouco diferente. Seu plano não era mostrar para as pessoas os aspectos de liberdade e ousadia repri-midos nelas mesmas; em vez disso, ele queria mostrar a elas as partes delas mesmas que as deixavam com nojo. Existem algumas coisas que escondemos em nosso inconsciente que, se tivéssemos escolha, teríamos vontade de liberar: nossa criatividade, nossa paixão, nosso amor, nossa espiritualidade. Existem algumas partes reprimidas da consciência que, se pudéssemos optar, é provável que nossa escolha ainda fosse esconder: coisas que fazemos e dão nojo até em nós mesmos, nossas deficiências,

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nossos pudores, as partes de nós mesmos que escondemos dos outros a todo custo. Algumas celebridades já exibiram um pouco disso de certa forma, embora, na maioria das vezes, tenha sido por acidente e não de propósito. Sid Vicious, por exemplo, ou Ozzy.

Uma guitarra de heavy metal fez um solo astral.Joe coçou a cabeça.– Por que alguém iria...?Atem continuou.– Talvez, ver essas coisas em outra pessoa as torne mais seguras para

nós. Se pudermos ver Rex Massenclear cutucar o nariz e esconder a sujeira debaixo da cadeira, isso vai fazer com que o fato seja muito menos nojento quando nos pegarmos fazendo a mesma coisa. Ou talvez seja como tirar a casca de uma ferida: dói um pouco, parece meio nojento e você sabe que não deve ser higiênico, mas você simplesmente quer continuar.

– Desculpe, mas é nojento de qualquer forma – Joe disse com ênfa-se. – Foi assim que ele conseguiu sucesso? Cutucando o nariz em público?

– Cutucando o nariz, dizendo coisas obscenas, peidando, coçando a bunda, babando pra caramba, cuspindo, escarrando substâncias de textura e consistência variadas, dentre muitas outras extravagâncias, al-gumas muito mais nojentas – Atem respondeu. – Mas essas eram apenas as formas mais aparentes. Mesmo que ele só estivesse ali, sentado, sem fazer absolutamente nada, nossa impressão seria de que ele é nojento, incômodo e sujo. E a coisa toda vai ainda mais a fundo no caso dele, ou, para ser mais preciso, é tão superficial que é um lance de poder.

Houve um curto solo astral de guitarra e Atem tomou um pouco de sua cerveja. Joe estava de queixo caído, encarando Atem.

– Mas como ele se saiu fazendo isso? – Joe se sentiu, enfim, forçado a perguntar.

– Ele começou como era de se esperar, adotando uma atitude bizarra em seu show de rock. Ele xingava, cuspia e assoava o nariz sem lenço. Ele babava, ficava bêbado ou drogado, caía e vomitava nele mesmo. Ele fingia borrar as calças e lambuzar tudo em volta. Ele formou um pequeno grupo de seguidores, mas, na verdade, nunca chegou a lugar nenhum. Quer dizer...

Atem fez uma pausa enquanto o teremim voltava.– Quer dizer? – Joe incentivou.– Nunca chegou a lugar nenhum até que Rex fez um pacto.– Achei que você tivesse dito que o Diabo não estava na jogada –

Joe falou.Atem acariciou o gato com indiferença.– Ele fez um pacto comigo.

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Joe tomou um gole do seu já esquecido O.M. Sua cabeça girava mais rápido do que a cabeça de um bêbado deveria girar, fazendo com que ficasse um pouco tonto. Levou alguns minutos para que conseguis-se articular um pensamento.

– É esse o pacto que você vai me oferecer? – Joe perguntou, final-mente. – Fazer de mim o Apresentador de Televisão Mais Nojento de Todos os Tempos? – Ele matutou por um instante. – Eu posso fazer isso sozinho.

– Não – disse Atem. – Não é nada disso. Na verdade, vou oferecer a você justamente o contrário. Veja, Rex Massenclear era, antes de tudo isso, um cara comum, gente boa. Ele era um pouco criativo, embora não tivesse talento nem destaque. Ele era apenas legal. Você, por outro lado, é bem nojento em seu estado natural. Você esconde isso com roupas bacanas e palavras escritas em cartões de fala, mas, na realidade, você é um cara obcecado por si mesmo, fútil, grosseiro, um canalha deprava-do. Você se transforma em um bêbado desprezível e (devo acrescentar?) repulsivo até mesmo diante da menor das críticas. Você é mesmo um lixo. Verdade!

– É isso que venho dizendo a mim mesmo a noite toda – disse Joe. – Se pelo menos existisse um jeito de garantir que, quando as pessoas olhassem para mim, elas vissem apenas o bem, apenas dignidade. Eu poderia salvar minha carreira. Daria para conviver com isso.

– Nossa! Nunca ouvi a Trilha Sonora Astral tão sentimental, tão piegas – Atem comentou. – De qualquer forma, eu me pergunto quando você vai notar que já está feito, que você já mudou.

– O que já está feito?– É quase o que você disse – Atem explicou. – Quando as pessoas

olharem para você, verão apenas o bem, só dignidade. Que diabos, elas

6 – Já Está Feito

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verão muito mais que isso. Elas vão vê-lo fazer coisas que você nunca fez, vão ouvi-lo dizer coisas que nunca disse. No entanto, as qualidades e ações que atribuírem a você são os ideais delas mesmas, não neces-sariamente os seus. Quando as pessoas olharem para você, verão suas próprias ideias de como um cara legal deve ser. Sacou?

– Ceeeerto – Joe falou devagar. – Ahan.– Você vai entender – Atem olhou para seu relógio de pulso. – Já

está quase na hora dessa alucinação acabar. Tem alguma pergunta antes que eu vá embora?

– Tenho – disse Joe. – Afinal, o que aconteceu com Rex Massen-clear? Não ouço mais nada sobre ele há anos.

– Ele se afastou do mundo da música e mora sozinho em um trai-ler no Deserto de Mojave. Ganhou dinheiro suficiente em dois anos de celebridade para viver dessa maneira confortável pelo resto de sua vida.

– Não é o que eu faria se tivesse esse tanto de dinheiro ou fama.– Você não vai ser o Astro do Rock Mais Nojento de Todos os

Tempos. Vai ser, provavelmente, o Apresentador de Televisão Mais In-crível de Todos os Tempos. Sem dúvida você vai trilhar um caminho diferente. Bom, já vou. Curta o resto de sua noite. Lembre-se de beber muita água. – Atem ficou de pé, colocando o gato debaixo do braço.

– Obrigado, Adam – Joe disse. – Foi um banho de realidade.– Mesmo? – Atem se virou e saiu, caminhando devagar ao som de

violões astrais.