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J. C. Fantin O Grande Protetor Obra gratuita

O grande protetor

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J. C. Fantin

O Grande Protetor

Obra gratuita

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Prólogo

A caça ao leão

Hoje, Sarobou estava inquieto. Desde que acordou em seu castelo sombrio nas terras do além, ficou

andando para lá e para cá, ansioso, mas ao mesmo tempo com uma expressão de alegria no rosto. Sua armadura,

mesmo negra como a caverna mais tenebrosa das Terras do Sul, reluzia sob a silhueta do Lorde, perdido em

pensamentos, na frente da imensa janela do salão, o qual estava suavemente iluminado pelo brilho fraco do sol,

por causa das nuvens negras.

Este não seria um dia comum, pensaram seus súditos. Aliás, nessa época de ambição, nenhum dia era.

Demônios e cornutuns olhavam-se uns para os outros, curiosos... e nervosos. Estavam com medo da próxima

ação do Lorde, que, quase como se pudessem prever o futuro, sabiam que seria um desastre. Aquele

comportamento significava que o mestre estava pronto para iniciar a próxima caçada.

Então, o Lorde Sarobou saiu de frente da janela e andou até os andares inferiores do castelo a passos

largos, indiscretamente ansioso. Seu braço-esquerdo estava logo atrás, calmo e confiante na próxima ação de seu

mestre. Ao chegar no andar mais profundo, que até os mais corajosos súditos demônios temiam, o Lorde deu um

leve assovio, chamando por algo. As salas e os corredores desse andar eram muito sombrias e sinistras. Havia

sangue na parede e até pedaços putrefatos de órgãos no chão, mas, por algum motivo, havia apenas um leve

cheiro de enxofre no ar, algo que era comum no castelo.

Sons de passos foram ouvidos. Não passos comuns, claro, mas passos de algo que parecia não ser

humano. Sarobou segurava apenas uma tocha e estava com seu braço-esquerdo — que era inseparável — ao seu

lado.

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De repente, das sombras, apareceu um homem alto e musculoso, vestindo poucas roupas, levemente

manchado de sangue. Mesmo tendo a aparência física bastante parecida com a de um homem, apenas olhar já

era o suficiente para saber que não se passava de um humano.

— Pronto para a sua próxima missão, Tenebrius? — Perguntou o Lorde.

O homem sorriu de leve, e algum tipo de magia negra o cercou de repente.

— Alguma vez não estive, milorde?

Os subordinados do Lorde estavam um andar acima, curiosos por saber o que exatamente seu mestre

estava fazendo no andar proibido. Então, finalmente, ouviram um som extremamente sufocante para seus

ouvidos e até para a alma. Era o som de ossos quebrando, pele sendo rasgada e gritos de agonia. Todos que

ouviam, infelizmente, sabiam o que significava, e começaram a correr.

Do grande pórtico de entrada para o andar mais profundo, saiu Sarobou, com seu braço-esquerdo ao seu

lado, e uma criatura inimaginavelmente sinistra e grande de trás dos dois. Os poucos súditos demônios que ainda

estavam no salão — novatos — ficaram paralisados, olhando para os olhos da besta, vendo-a exercitar as asas

para um voo iminente. Olharam mais atentamente para o ombro do monstro, que havia um símbolo conhecido

por todos no castelo.

Era o símbolo do braço-direito.

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Capítulo 1

Após a Batalha das Cruzes

Depois de tanto tempo desde a perda do pai, Richard finalmente vai para a Festival Anual dos Guerreiros.

É um tipo de festa, onde todos os considerados cavaleiros no reino de Rarstead se encontram para celebrar suas

vitórias do passado, principalmente a da Batalha das Cruzes, a qual os soldados do reino atacaram o

acampamento dos bárbaros Infestis — Inimigos que ameaçavam Rarstead — e saíram vitoriosos.

Richard Lionfist — ou Rich, como era chamado — ainda era bastante jovem, mesmo que seus olhos

castanhos, cansados pela fatiga da noite anterior, mostrassem alguém mais velho do que seus sutis 22 anos.

Tinha cabelos loiros, comuns em seu clã, e sempre treinava excessivamente para se manter em forma e com

técnicas de combate sempre ao nível de um cavaleiro renomado. Gostava de caminhar, do ar livre e de aventuras.

Era ingênuo, o suficiente para que seus amigos questionassem sua inteligência, mas, mesmo assim, era uma

pessoa muito gentil.

No tal festival, Rich encontrou-se com dois amigos — Barton e Hadrian — , que o receberam com fortes

abraços.

— Por onde você andou, Rich? Não nos vemos há mais de duas semanas! — exclamou Hadrian, com os

braços abertos. — Parece que não gosta mais de beber vinho conosco!

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Rich olhou para baixo, como se estivesse arranjando uma desculpa, e olhou de volta para o amigo, dessa

vez com um olhar mais confiante:

— Ando ocupado com alguns assuntos do rei...

— Sim, agora lembrei, você está começando a trabalhar para a coroa, não é?

— Estou precisando de mais moedas no fim do mês. — Ele respondeu.

— Poderíamos sair mais vezes, Rich. Vamos caçar javalis como nos velhos tempos! Barton e eu sempre

caçamos juntos! Agora é a época em que os animais saem mais de suas tocas!

— Esses "velhos tempos" eram o mês passado, Hadrian — corrigiu Rich.

— Richard... Sempre lembrando que eu sou péssimo em memória! — gargalhou Hadrian.

Rich olhou para o sol, procurando saber que horário era.

— Vamos entrando, pessoal.

Era o pátio na frente do castelo de Rarstead, local onde a maioria dos eventos do reino acontecia. O sol

brilhava, com poucas nuvens no céu, algo comum no verão. Apenas cidadãos reconhecidos como cavalheiros,

convidados de honra e pessoas mais nobres do reino podiam participar do festival, e mesmo assim pouco faltava

para lotar o local. Aliás, a grande maioria dos homens e mulheres — inclusive Rich — estavam ansiosos pelo

evento principal que iria ocorrer no palco feito especialmente para isso: o grande teatro sobre a Batalha das

Cruzes.

Faltava pouco para a peça começar, e os três amigos começaram a jogar conversa fora.

— Sei exatamente porque você está tão ansioso pelo teatro, Rich! — Barton brincou.

Richard sorriu de leve, mas logo ficou sério. Ele não gostava que os amigos zombassem dele.

— Sim, claro! — Hadrian riu — Eu havia me esquecido! Isabel será uma das dançarinas, não é mesmo?

Rich não perde uma oportunidade para vê-la!

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Isabel. Realmente era o principal motivo dele ter ido ao festival. Sobrinha do rei, era uma linda jovem, de

cabelos escuros e olhos azuis. Richard nunca esqueceu e provavelmente jamais esquecerá daqueles olhos.

Parecia... que transmitiam uma mensagem apenas de olhar. Uma mensagem que Richard sempre quis saber o

que significa, como se ela o tivesse mandado uma carta, mas que ele não conseguia abrir.

Desde o dia em que os dois se encontraram pela primeira vez — ainda crianças — , uma paixão quase

indecifrável, algo que nem o próprio Richard entendia, surgiu. Uma paixão que apenas aumentou com o passar do

tempo, à medida em que ela crescia, cada vez mais bonita.

Richard ficou praticamente perdido em pensamentos, e preferiu não ouvir as zombarias dos amigos.

— Sim, Rich, é uma belíssima mulher, mas não acha esse seu apego um pouco... impossível de se realizar?

— Questionou Barton, e olhou para Rich, que estava com um olhar um tanto afastado da conversa — Não que eu

esteva tentando lhe desinteressar, mas ela é da nobreza, a sobrinha do rei! Mesmo você começando a trabalhar

para a coroa, você não conseguirá chegar perto dela. Há muitas outras mulheres bonitas por aí, Rich. Se eu fosse

você, desistiria dela.

— Eu a amo, meu amigo. É isso o que importa.

Um grande sino tocou, anunciando que a peça estava para começar. Richard sabia que primeiro ocorria a

dança, depois o espetáculo — para ele, o espetáculo de tudo era a sua amada Isabel. Todos os convidados

pararam para apreciar o que ocorreria naquele palco, e, logo, as dançarinas começaram a sair das coxias.

O jovem Lionfist prestou muita atenção nas mulheres, mas, claro, apenas uma delas o interessava. Era

uma mais bonita que a outra, sendo até mesmo difícil de decidir qual era a mais bela! Ele apertou um pouco mais

os olhos e tentou ir um pouco mais para frente no meio da multidão. A cada segundo que passava, sua ansiedade

crescia e sua respiração, assim como os batimentos de seu coração, ficavam mais rápidos.

E, pelo que pareceu ser muito tempo depois, Isabel finalmente apareceu no meio de todas as outras.

Para Rich, foi a que mais se destacou, e a mais encantadora. Quando a viu, seu coração disparou ainda

mais. A cor do vestido da moça combinava perfeitamente com os olhos. Era algo perfeito.

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As mulheres começaram a dançar para a abertura da peça. Richard não tirou, nem por um segundo, os

olhos de sua amada.

— Por que você não fala com ela?

— O que disse, Barton?

— Ela está solteira. Por que você não vai falar com ela? Você nunca conseguirá conquistá-la se ficar

apenas olhando!

— Eu sei, amigo. Até hoje não tive coragem... mas talvez algum dia eu superarei a timidez e conseguirei

falar com ela. Assim eu espero, pelo menos. — Afirmou Rich.

— Você tem 22 anos! Não acha que deveria ter uma mulher em seus braços?

Richard não conseguiu responder essa pergunta. Hesitou em falar algo, e cravou seu olhar em Isabel

novamente. Ficou por toda a apresentação das dançarinas quase sem se mover, apenas apreciando, e pensou um

pouco na palavras de Barton.

— Depois da peça eu irei falar com ela, com certeza! — prometeu Richard, com seu habitual sorriso de

determinação.

— Promete?

— Sim, prometo! — Rich lembrou-se que nunca havia quebrado uma promessa com um amigo, e jamais

iria fazê-lo.

O teatro estava para começar, pois a dança tinha acabado e as dançarinas voltaram aos camarins. A peça

apresentaria uma versão poética do que foi a Batalha das Cruzes, o confronto que preveniu que o povo de

Rarstead sofresse por algum provável ataque dos Infestis, que eram conhecidos pela violência usada por eles nas

invasões. Richard tinha apenas 12 anos na época, e seu pai participou do ataque.

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A peça começou. Arte não era o forte de Rarstead — pelo menos não para as dezenas de cavaleiros que

protegiam e moravam na cidade e no castelo do rei — e Richard não conhecia nenhum dos atores. Mas foi um

bom teatro, bem apresentado e bem escrito. Era, certamente, o melhor que Rich já havia visto.

— Ó, rei Susanno IV, por que precisas de destruição com os demônios Infestis? Amigos podemos ser! —

perguntou o ator vestido de anjo. — Por dentro demônios podem ser, mas para insanidade a cura sempre existe.

— Nesse caso — concluiu o rei — destruição é a cura.

Hadrian sempre admirou a batalha. Foi algo que deu fama aos guerreiros do reino. Ele olhou para Rich e

perguntou, cochichando:

— Hey, por que você não trouxe seu pai? Ele iria gostar de ver!

— Seu idiota! Você esqueceu de novo! — arremeteu Barton, dando um soco no ombro de Hadrian,

irritado — O pai de Richard morreu nessa batalha! — Hadrian se assustou com a reação do amigo, mas deu-lhe

razão e se arrependeu.

Richard fingiu que não havia escutado, mas sentiu um apertar no coração ao ouvir aquilo.

— Você está bem, amigo? — questionou-se Barton.

— Faz dez anos desde que eu recebi a notícia de que ele estava morto. Foi muito difícil para mim, mas eu

tenho que superar. Não preocupe-se com isso, Barton. — O jovem, mesmo parecendo não se importar muito,

ainda estava abalado, mesmo depois de tanto tempo. Mas ele sabia que a vida haveria que ter continuado.

Lamentar algo tão antigo era algo que não o ajudaria.

Mas não havia dia que Rich não acordava de manhã em sua casa e não pensava como seria melhor se seu

pai ainda estivesse vivo. Era um sentimento que o jovem teme nunca desaparecer. Seu pai e ele foram, de certa

forma, inseparáveis. Richard tanto aprendia quanto se divertia com ele, a morte de alguém tão próximo

certamente o abalou mais do que qualquer coisa pudesse abalar.

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Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos. Aquela era uma hora de comemoração, uma hora em

que todos esqueceriam as mortes que ocorreram e gritariam em comemoração à uma das maiores vitórias de

Rarstead, a hora de sorrir e rir.

E Richard não era, de forma alguma, uma exceção. Sua família era a Lionfist, famosa pelos cavaleiros

destemidos que nasceram com esse sobrenome.

O clã do leões.

— A peça está acabando, Rich. — Comentou Barton, que havia um leve e malicioso sorriso em seu rosto.

— Vai falar com Isabel?

— Alguma vez eu já quebrei uma promessa? — Sorriu de volta o apaixonado.

Richard estava ansioso. Dessa vez ele não iria falhar! Que momento melhor surgiria para falar com ela?

Mas talvez um possível fracasso não dependesse dele.

O dia fortemente ensolarado de Rarstead foi extinto por breves, mas muito perceptíveis, segundos. Como

se o dia se tornasse noite por um eclipse extremamente rápido. Como se a própria escuridão tivesse golpeado o

sol, que se recuperou logo em seguida.

Contudo, a multidão no pátio do castelo mal teve tempo para ter esses pensamentos, pois todos já

haviam olhado para cima e avistado o dragão.

Uma besta gigantesca, com asas maiores ainda. Grotesca, com enormes dentes que poderiam facilmente

mastigar rochas, e garras capazes de deixar uma cabana em pedaços em apenas um golpe. Capaz de fazer até o

mais forte dos cavaleiros tremer de medo. Grande o suficiente para voar com 7 homens montados.

Nesse momento, músicos pararam de tocar, os festeiros de agitar, as dançarinas de bailar, a plateia de

conversar, e os ébrios de beber. Como se o mundo inteiro parasse, quase hipnotizado, olhando para a fera

sobrevoando o local.

— PROTEJAM-SE!! — Berrou um guarda, muito inquieto. — Corram para a cobertura mais próxima!

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Todos da multidão entraram em pânico. Nenhuma palavra descreveria melhor esse momento do que

pânico. Um momento ímpeto de pessoas se empurrando e gritando.

— Guardas, preparem-se para um ataque direto! — Comandou um general;

— Bryce!! Onde está você!? — Gritou um homem procurando por seu irmão mais novo;

— Mamãe, socorro! — Desesperou-se uma criança nobre em prantos.

O dragão continuou apenas sobrevoando o local, como se estivesse procurando alguma coisa com seus

ameaçadores olhos, que mais pareciam um portal para o inferno. Todos os guardas se prepararam para uma

ataque do monstro. O reino já havia recebido ataque de feras mitológicas, como enormes cães das sombras,

gigantes e até espécies variadas de trolls, mas nunca um dragão tão enorme.

Richard estava no meio da multidão, correndo para a cobertura mais próxima com Hadrian e Barton, e

olhava incessantemente para os lados, procurando algo.

— O que houve, Rich!? — Perguntou Hadrian, que estava nervoso e com medo. Os gritos das pessoas

abafaram um pouco o som da voz dele.

— Isabel! Onde ela está!? — Perguntou-se o jovem, com medo de que sua amada estivesse em apuros.

Então ele avistou uma dançarina em um lado do pátio, perto da entrada da fortaleza — Ela deve estar perto da

entrada do castelo, junto com as outras! — e começou a correr naquela direção.

— Apenas não morra! — sugeriu Barton.

— Prometo! — respondeu Richard, já um pouco longe. Quando estava na metade do caminho para a

entrada, o monstro finalmente mudou de atitude. Exatamente o momento que todas as pessoas mais temiam.

A criatura mergulhou na direção de alguns guardas que estavam próximos ao portão de entrada — local

que Richard temia que ele atacasse — e começou a golpeá-los com as imensas garras. Em um golpe, dois homens

foram partidos ao meio.

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Sangue respingou a muitos metros de distância — um pouco na roupa de Rich — e a aberração não parou

de atacar. Devorou um homem inteiro, e pisou em outro. A couraça dela era resistente demais, impossibilitando

que fosse machucada por espadadas ou flechas.

— O ponto fraco de um dragão é a barriga e atrás das orelhas! Ataquem ali, seu inúteis! — Berrou um

general. Mas suas palavras chamaram a atenção do monstro, que reagiu como se tivesse entendido exatamente o

que o homem havia falado. Então Rich, assim como todos os próximos, ouviu palavras ameaçadoras de um

demônio saindo da boca do próprio dragão:

— Lohk krrish'rar! — E pegou o general com a boca. A armadura pesada que o homem estava vestindo

não foi o suficiente para evitar que ele fosse mastigado.

Foi uma cena horrível e chocante, mas Rich tinha que se mexer e correr atrás de Isabel— a não ser que ele

também quisesse ser devorado. Começou a ir na direção da porta das fortificações, tendo que se aproximar um

pouco do monstro: a determinação de Rich para encontrar a amada foi o suficiente para ele ignorar que estava

correndo risco de vida aproximando-se da criatura.

A monstruosidade cambaleou um pouco, parecia desequilibrada, como se tivesse perdido as forças por

algum motivo, e alçou voo novamente, dessa vez por pouco tempo. Logo mergulhou novamente, mas agora com

tanta velocidade e força que atravessou as paredes do castelo, que soltou inúmeras pedras e destroços por todos

os lados. Richard ainda estava fora e por sorte não foi atingido por nada, portanto não viu o que estava ocorrendo

lá dentro. Ouviu muitos gritos, tanto de pânico quanto de agonia e, para o desagrado dele, de pessoas sendo

mastigadas e comidas novamente.

Os cidadãos que saiam sem parar, alguns com feridas ou com sangue no corpo, que haviam se protegido

no castelo, estavam impedindo que Rich se aproximasse mais. Ele não podia fazer nada a não ser esperar.

Pareceram ser longos minutos — até mesmo horas — o tempo em que o jovem estava aguardando, que na

verdade foram apenas algumas dúzias de segundos.

Finalmente, outra explosão ocorre em outra parte da parede do castelo. O dragão voou rapidamente para

o alto de uma torre que ficava à vista de todas as pessoas do pátio e pousou lá em cima. Todas os presentes e até

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pessoas de fora das muralhas puderam ver a criatura no alto da torre, e assim o fizeram. Todos estavam

horrorizados com a cena que estavam vendo.

Mas ninguém estava tão horrorizado quanto Richard.

A fera, com sangue nos dentes, saindo da boca e no corpo todo, deu um rugido para o alto sobre a luz

agora fraca do sol, em cima da enorme torre do castelo, saboreando a vitória que havia conquistado e das vidas

que haviam sido perdidas e comidas por ela.

E por algo a mais: agarrada na pata dianteira estava, indefesa e inconsciente, Isabel.

Palavras não podiam descrever os sentimentos de Richard nesse momento. Estava agora com os olhos

arregalados, com o coração batendo tão forte que ele podia até ouvir seu sangue sendo bombeado, e com as

energias parecendo se esvaziar de seu corpo. De uma hora para outra, uma grande festa se tornou um dia que ele

jamais esqueceria ou apagaria de suas lembranças. Richard poderia ter desmaiado agora, mas seu horror se

transformou em ódio. Reuniu todas as energias que podia reunir de seu corpo, e a colocou em uma só palavra:

— ISABEL!!!

O dragão levantou voo, mas dessa vez parecia que não iria voltar. Voou para além das montanhas, ao

norte.

Foram constrangedores segundos de silêncio em todo o reino. O mundo parecia ter parado por alguns

momentos. Pela primeira vez na história, Rarstead havia sido derrotada e não conseguiu combater o inimigo.

Todos, desde os cidadãos que ficaram intactos quanto os guardas que haviam perdido companheiros, estavam

chocados. Não podiam acreditar no que acabaram de ver.

Richard caiu de joelhos. Hadrian e Barton vieram para perto dele. O primeiro perguntou:

— Você está bem, amigo?

Mas o homem que não conseguiu salvar sua dama levantou sem dizer nada. Ainda não conseguia

acreditar no que havia acontecido. Entretanto, não estava chorando. Estava determinado. Os amigos dele

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estavam um tanto assustados com a expressão de Rich. Ele colocou a mão no peito, sentindo seu coração bater

fortemente.

Ele perdeu o pai dez anos atrás. Perdeu a mãe sei anos depois. E agora, perdeu a mulher dos sonhos — ou

assim parecia. Ele estava cansado. Cansado de perder. Cansado de chorar. Cansado de ouvir e falar, mas não agir.

Cansado de não representar a família Lionfist. Queria ser alguém. Queria algo para secar suas lágrimas, algo para

não precisar desistir. Queria vencer, pelo menos uma vez na vida.

Sob o sol reluzente, entre pessoas que bebem para esquecer as mágoas e pessoas inúteis que preferem

esquecer a derrota a conquistar uma vitória, Richard Lionfist olha para cima. Respira mais profundamente para

realçar os sentimentos. Daquele momento em diante, não seria mais a pessoa que ele sempre foi.

— Vou salvá-la. Isso é uma promessa.

Capítulo 2

As presas da jornada

Em uma hora, Richard já havia ido para casa, trocado de roupa e pego algumas moedas. Foi, então, ao

castelo para falar com o rei. Entrou na enorme sala real, onde no fundo havia o trono real e, sentado nele, o rei

Susanno IV, um homem grande e autoritário. Há lendas de que ele matou uma águia em pleno voo com uma

pedrada quando tinha apenas 10 anos. Agora está mais velho e ainda mais forte, com seu 30 e poucos anos.

Rich trabalha no castelo exercendo funções de guarda, escolta e tarefas reais em geral. Portanto, tem a

confiança do rei e a liberdade de entrar no salão real, e usaria essa liberdade para pedir ajuda do mesmo. O

jovem Richard caminhou para perto do trono, onde o lorde estava conversando e dando algumas ordens para

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criados. Observou ao redor: havia mais guardas do que de costume — por causa do ataque do dragão — e seu fiel

administrador real, Bendt, estava ocupado conversando com alguns civis e escrevendo em seu habitual caderno.

Tudo, tanto dentro quanto fora do castelo e tanto os civis quanto os guardas, estavam inquietos.

Em um curto momento em que o rei parou de dar ordens apressadas, Rich aproveitou a oportunidade

para falar com o senhor.

— Longa vida Susanno IV. Poderia falar comigo uns instantes, majestade? — Richard não era muito bom

com formalidades, mas sabia que era muito necessário. O rei era vaidoso e esnobe: gostava quando os outros

demonstrassem respeito.

— Você é Richard Lionfist, não é? — Lembrou o soberano — Fale. Mas seja breve.

— Sua sobrinha, Isabel Sapphirestar, foi raptada pela besta que nos atacou agora a pouco e levada para o

norte. Eu gostaria de pedir ajuda à vossa majestade para salvá-la das garras do monstro.

O senhor feudal sequer demorou para dar uma resposta.

— Admiro sua coragem e determinação, rapaz, mas a resposta é não. Estamos em crise neste momento:

não haveria hora melhor para um inimigo atacar, e o dragão pode voltar.

— Mas... senhor! — exclamou Bendt, o administrador — Ela é a sua sobrinha! Não seria infame de sua

parte deixar alguém tão próximo ser levado sem ao menos uma tentativa de resgate?

— Não! Isabel é importante para mim, mas o reino inteiro precisa de segurança redobrada agora! E não é

apenas isso. Há mais um motivo para não irmos atrás dela...

Rich ficou confuso.

— O que é, majestade?

— Dragões não atacam cidades do nada. E aquilo não era um dragão comum... era uma besta DAQUELE

homem. — Susanno IV estava pávido, de um modo que Richard nunca houvera visto antes.

— "Daquele homem"? — Bendt estava ainda mais assustado — Você quer dizer...

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— Sarobou.

Nesse momento, é como se as palavras do rei penetrassem na alma de todos os presentes. Os guardas

prenderam a respiração e os civis presentes ficaram paralisados ao ouvirem aquele nome. Rich era o único que

não havia mostrado reação. Não entendia o que estava acontecendo ali.

— Do que vocês estão falando? — perguntou o jovem.

— Vá embora agora, Richard. As chances de salvar Isabel são mínimas. Desista. Sinto muito, mas é um

fardo que todos teremos que carregar.

Richard não queria aceitar aquelas palavras do rei. Logo ele alegou:

— Mas, meu senhor! Quero muito salvá-la! Não é mesmo possível fazer alguma coisa?

— Basta! — Vociferou o rei, batendo o punho no braço do trono com o que parecia ser toda a sua força —

Esse assunto está acabado!

Richard se retirou por conta própria. Seria inútil enfrentar o rei novamente — se o fizesse, seria colocado

para fora à força pelos guardas. Mesmo assim, estava muito longe de desistir. Para a surpresa dele, Hadrian e

Barton estavam na saída esperando por ele. Perguntaram o que Rich havia feito no castelo, e ele respondeu. Mas

não sabia mais o que fazer. Não sabia onde ir ou com quem falar, mas continuava determinado a salvar sua

amada.

— O que vocês acham que eu devia fazer? — Rich pediu por sugestões.

— Se eu me lembro bem — disse Hadrian, coçando a cabeça — dizem que os sacerdotes do templo de

Samart sabem de tudo. Eles podem lhe ajudar, eu acho.

— Vou para lá, então. — decidiu Rich — Vocês vem?

Os dois amigos negaram e deram algumas desculpas que Richard achou um tanto esfarrapadas, mas ele

não se importou muito. Seguiu para o templo de Samart, onde muitos cidadãos da cidade iam para rezar por

proteção dos deuses.

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Samart é o deus da justiça e da honra — e principal protetor de Rarstead. Dizem que é capaz de dar forças

às pessoas justas, e sempre ajuda os oprimidos a recuperarem sua honra. Lá, Richard logo foi para os andares

inferiores do templo, onde os sacerdotes residem. Ele, então, explicou o que queria a um dos mestres.

— É uma jornada longa e perigosa, rapaz. — O sábio tinha mais de setenta anos de idade, e falava com

uma voz fraca mas irrefutável — O caminho é de difícil travessia, e provavelmente muitos monstros e perigos

estarão no caminho.

Richard lembrou-se do que ocorrera no castelo e falou:

— Senhor, quem é Sarobou?

O sacerdote ficou um pouco mais sério e olhou fixo para Rich.

— Não é ninguém menos que o demônio que aterroriza essas terras há muito tempo. É o devorador de

almas, o lorde da perdição. As mortes que ele causou foram tantas que apenas falar seu nome traz mau

presságio. Mora em seu sombrio castelo situado nas terras do além, no extremo norte do continente. Já foram

feitas várias tentativas de derrubá-lo, mas nenhuma conseguiu sequer chegar às muralhas do castelo negro, por

causa das inúmeras feras e demônios que ele lidera.

— Alguém já chegou a vê-lo? —Perguntou Richard, curioso mas nervoso ao mesmo tempo, pois sabia

que, para salvar Isabel, talvez precisasse enfrentar o tal Sarobou.

— Pouquíssimas, e quase nenhuma sobreviveu. — Respondeu o sábio após tossir um pouco — Há a lenda

de um homem chamado Fulgur, que chegou até a enfrentá-lo, pegando um pouco do poder do lorde e se

tornando o deus das tempestades. Mas é apenas uma história contada à gerações, é claro. — O velho respirou

um pouco mais, e continuou — É uma viagem extremamente perigosa, garoto. Acha que consegue fazer o que um

exército não conseguiu?

— Estou ciente de que é perigoso, sacerdote. Mas eu fiz uma promessa, e sou capaz de morrer por ela.

Não importa o que poderei estar jogando fora, apenas quero salvar a mulher que amo!

O velho senhor parou por alguns segundos e pensou. Após um constrangedor silêncio, falou:

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— Eu só não sei porque Sarobou pegou para si aquela mulher, jovem Richard. Talvez seja apenas para

fazer aventureiros tentarem salvá-la, assim podendo sugar a alma dos que chegarem perto. Portanto, tenha

cuidado: você está fazendo o que ele quer. É claro que se trata de uma teoria, mas é a mais plausível.

— Não me importo. Apenas preciso saber como ir até lá.

— Está bem. Indo para norte a partir daqui você chegará às montanhas e florestas. São perigosas, e eu

recomendo que você vá pelas montanhas: o caminho será mais longo, mas muito mais seguro do que com os

animais selvagens e feras das florestas. Após isso, você passará por terrenos rochosos e vulcânicos: são os Vales

da Lava Negra, famosos por suas lendas e mistérios que guarda.

Richard não perdeu a autoconfiança uma única vez.

— Prossiga — ele disse. O sacerdote limpou a garganta e continuou:

— Após isso, você encontrará algumas colinas e vales de campo. Procure pelo reino de Adrebolomde: é o

último que encontrará antes do seu destino. Logo depois, entrará nas terras do além, que são habitadas por

demônios a serviço de Sarobou: os cornutuns. Portanto, tenha muito cuidado nessa área.

Rich pensou um pouco e então questionou:

— Se aqui em Rarstead já somos ameaçados pelas feras de Sarobou, como esse tal reino de Adrebolomde

consegue ficar tão perto das terras do além?

— Nunca fui para lá, mas ouvi dizer que é uma terra quase impenetrável se você não tiver permissão para

entrar. Na entrada, você achará quatro gigantescas estátuas: procure-as, e você achará o reino.

— Entendo... continue, por favor.

— Sobre as terras do além: fora os cornutuns que dominam aquele território, já ouvi boatos de que nela

nunca chega a luz do sol. É escura e diabólica, repleta de florestas negras e rochedos. Para achar o castelo

sombrio, basta procurar as nuvens negras que o cobrem. É possível vê-las à muitos quilômetros.

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Richard guardou tudo na cabeça. Não queria esquecer daquelas informações preciosas de jeito nenhum.

Aproveitou o momento e perguntou uma última coisa:

— Você tem algum conselho para minha jornada?

— Tendo em conta que ela lavará vários dias, sugiro que você não se meta em problemas e muito menos

chame atenção. Essas terras também são cheias de ladrões! Nunca baixe sua guarda!

— Muito obrigado, senhor. —Rich deu ao velho algumas moedas e foi em direção à saída, pois queria sair

logo da cidade.

— Adeus, Richard Lionfist.

Rich saiu do santuário de Samart e foi para casa. Não queria se despedir de ninguém, pois se a notícia de

sua aventura chegasse ao rei, o mesmo nunca iria deixá-lo sair da cidade. Chegou em sua residência, preparou

seus suprimentos e colocou-os em sua mochila — não eram muitos, mas o suficiente para ele ter tempo de caçar

ou comprar.

Ele lembra de quando treinava habilidades de luta quando era pequeno: o treinador não era ninguém

menos que seu pai, que, inclusive, ao morrer, deixou para o filho seus equipamentos — exatamente o que

Richard estava indo pegar nesse momento. A espada, escudo e armadura de seu pai eram relíquias que Rich

guardava há dez anos, sem tocá-las. Mas agora era hora de mostrar seu espírito forte e honrar sua família.

Contudo, ao abrir o armário, Rich não viu suas relíquias. Não havia nada. A espada, a armadura e o escudo

com estampa de leão haviam desaparecido. Sem rastros, sem absolutamente nada.

Onde ocorrera com seus equipamentos? Haviam sido roubados? Destruídos? Richard não sabia. Ficou

indignado e com raiva. Até que, no chão do armário, ele avistou um papel. Um papel que aparentemente

continha algo escrito. Rich pegou-o e o leu. Havia uma única frase, que o deixou um tanto abismado. Uma

mensagem que confundiu e ao mesmo tempo desconcertou a cabeça de Richard:

"Seus equipamentos nessa jornada não serão lâminas, proteções ou relíquias, mas sim, seu coração."

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Iria para uma jornada para o fim do mundo sem equipamentos? Defender-se-ia sem um escudo? Atacaria

com pedras ou galhos sem uma espada? Se fosse cortado, teria ferimentos graves sem proteção corporal? Não se

sabe. Não dava tempo de forjar novos apetrechos e ele não tinha dinheiro para comprar, além de não poder pedir

ao rei, pois logo o mesmo saberia de seus planos. O que fazer?

Rich não tinha muita escolha: ou ia para a aventura sem apetrechos, ou desistia.

Mas o jovem tinha certeza que desistir não era mais uma opção. Sua ingenuidade superava a mágoa de

não ter equipamentos.

Dormiu em casa, e acordou cedo. Se arrumou, e saiu.

Apenas com uma mochila e as roupas do corpo, Richard marchou silenciosamente para os portões da

cidade. Um jovem determinado a ir ao fim do mundo para resgatar a mulher que deseja. Um jovem que não

desistiria até chegar ao destino.

Caminhou para fora, em direção ao norte. Ao longe via as montanhas e, aos pés delas, uma floresta.

A aventura estava para começar.

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Capítulo 3

O caminho estreito

Richard andou por horas na estrada. Passou por alguns campos e fazendas até chegar a um terreno um

pouco acidentado. Continuou andando, ficou a manhã inteira e mais uma boa parte da tarde a caminho das

montanhas que o sacerdote mencionara. Algumas vezes cruzava caminho com pessoas, e em um ou dois

momentos avistou cervos migrando. O sol brilhava com poucas nuvens no céu, e na maior parte do tempo ouvia-

se apenas o vento lambendo a vegetação e sentia-se o frio suave da brisa batendo em seu corpo.

Finalmente, o jovem chegou ao pé da montanha. O caminho agora estava bifurcado — um lado para a

floresta e o outro, para as montanhas. Obviamente, ele foi para o lado das montanhas. Eram gigantescas e

rochosas, com cânions e encostas muito íngremes, praticamente impossíveis de escalar. Richard sabia que o

caminho era o único modo de subi-la.

Andou pela estrada de chão, até achar um obstáculo inesperado e desesperador: uma enorme rocha que

havia caído sobre a via. Era uma parede de pedra à esquerda e uma enorme queda à direita. A rocha bloqueou

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completamente o caminho, e não era possível escalá-la ou contorná-la. Rich não tinha escolha: só podia ir pela

floresta agora. Voltou à bifurcação da estrada e seguiu para a selva.

Era pôr-do-sol quando ele entrou na mata. Caminhou pela trilha aparentemente natural entre árvores e

mais árvores. O som que se ouvia era o cantar dos pássaros e seus próprios passos — e respiração. Richard já

estava exausto, pois caminhara o dia todo.

Sentou-se aos pés de uma árvore para descansar. Estava faminto, então procurou na mochila por algo

que havia preparado em casa. Quando colocou a mão dentro dela, ouviu um barulho na mata. Rich ficou em

alerta: sabia que não era algo bom. Era o som característico de alguém — ou algo — se movendo entre as

folhagens, arbustos e moitas. Continuou comendo seu lanche, sem abaixar a guarda uma única vez.

Até ouvir um baixo, quase surdo, rugido atrás de si.

O jovem sabia quase exatamente o que era, então começou a correr, deixando a mochila para trás — o

pequeno atraso de pegá-la poderia custar sua vida. Quando correu uns oito metros, uma pantera gigantesca saiu

de onde estava escondida e correu atrás do jovem. Era mais rápida que ele, e quando chegou um pouco perto,

deu um pulo para dar um golpe mortal. Richard temeu que aquele fosse seu fim, e virou-se para,

desesperadamente, tentar lutar contra o animal.

Mas algo fez com que ela caísse no chão morta e inofensiva, com um estrondo tão forte que pareceu uma

pedra lançada por uma catapulta atingindo o solo. Ao examinar o corpo, Rich viu que uma flecha estava

atravessada no coração do animal. Ficou confuso: o que havia acontecido? Olhou em volta, mas estava escuro

demais para ver.

Então ouviu um passo atrás dele e virou-se rapidamente, vendo uma pessoa em armaduras leves, feitas

de pele e couro. Estava usando um elmo que, em conjunto com a escuridão, era impossível de ver quem o estava

usando. Então o cavaleiro misterioso falou em um tom de voz sério:

— Siga-me.

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Richard obedeceu, pois sentiu que seria pior se tivesse ficado — não tinha sequer uma faca para lutar, e

provavelmente aquela fera não seria a primeira. Rich quase se perdeu de seu salvador, que não falava sequer

uma palavra, na a escuridão.

Até que finalmente chegaram à encosta da montanha. Lá havia uma caverna iluminada. Com a luz,

Richard observou que a pessoa tinha um longo cabelo ruivo. Era magra e com uma leve armadura apenas

cobrindo o busto, um pouco dos braços, as pernas, da cintura ao começo da coxa e, claro, o elmo que cobria a

cabeça. Tinha uma corpo um tanto curvilíneo.

Entrando na caverna, viu que não se tratava exatamente de uma caverna. Por dentro parecia uma casa,

um pouco menor que a sua. Um pequeno salão aconchegante, com peles de animais nas paredes e no chão. Tinha

uma fogueira no meio, na qual estava sendo cozinhado algo em uma panela. O salvador de Rich virou-se e tirou o

capacete.

O cavaleiro misterioso era uma mulher.

— O que você pensa que está fazendo nessa floresta sem ao menos uma espada? — Ela perguntou em

um tom de voz raivoso.

Richard ficou um tanto assustado com o comportamento dela, e respondeu timidamente:

— Bem... eu...

— Está arrependido de ter deixado uma mulher lhe salvar? Eu mato você só com socos se eu quiser! —

Ela falava alto e sempre parecia estar brigando.

— Desculpe... — Rich não estava conseguindo sequer pensar direito. Perguntou a primeira coisa que lhe

veio à mente: — Qual é o seu...

— Meu nome é Anakira. Sou a protetora dos animais dessa floresta.

— Mas, então porque...

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— Aquilo não era uma animal comum, seu idiota! Era uma das feras de Sarobou! — Ela parecia aumentar

cada vez mais o tom de voz.

— Uma fera de...

— Sim, um dos monstros do demônio Sarobou! Elas andam invadindo essas terras ultimamente, e eu

espero que não seja culpa sua!

Richard ficou irritado pelo fato de não conseguir completar uma frase sequer, mas controlou-se. Aliás,

Anakira havia salvo sua vida.

— Bem... obrigado por...

— Não fique convencido! Se fosse um animal selvagem eu o deixaria te devorar! Vou perguntar mais uma

vez: por que você está aqui?

— Quando eu fui buscar meus equipamentos em casa, eles haviam sumi-...

— Eles desapareceram? Você deixou alguém roubá-los? Você não passa de uma criança fingindo ser um

cavaleiro! Homens são tão inúteis... — Suspirou.

Richard segurou mais uma vez a raiva. Então continuou:

— Elas não foram roubadas. Havia um bilhe-...

— Um bilhete!? Deixe-me ver!

Richard entregou a mensagem que achou no armário em Rarstead. Ele havia colocado em seu bolso.

Anakira a leu sem dizer nada.

— Pobre rapaz, foi vítima de si mesmo... — Lastimou a moça.

— O que você quer...?

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— O que eu quero dizer? Você não sabe de nada? — Ela parecia surpresa, ao contrário de alguns

segundos antes. Porém, logo voltou a falar alto e raivosamente. — Típico dos homens. Bem, deixe-me explicar.

Você está ouvindo?

Com medo de ser interrompido novamente, Richard apenas balançou a cabeça em sinal de positivo.

— Isso é obra do deus Samart. — Disse ela. Richard surpreendeu-se: era o deus protetor de Rarstead, do

santuário que ele havia visitado para falar com o sacerdote. — É o deus da justiça e da honra, orgulhoso o

suficiente para se intrometer na vida dos mortais.

— Ele que tirou...

— Sim! Ele retirou seus equipamentos para que você mesmo os recuperasse usando sua honra. Para

Samart, um cavaleiro só pode ter seus devidos equipamentos se realmente merecê-los. Você irá entender com o

tempo... — Disse a moça. Richard estava confuso: teria que "recuperar" os equipamentos? Como? Onde? Após

um breve momento de pensamentos sem resultados por parte dele, Anakira voltou a falar com seu tom de voz

ameaçador. — Deixe-me fazer uma pergunta para você: por que você está aqui?

— Estou em uma jornada para salvar a mulher que...

— Oh! Uma mulher, então? Eu já deveria saber! Homens são tão estúpidos... arriscando a vida dessa

forma para salvar uma mulher, com tantas outras no mundo... — Ela riu sarcasticamente.

— Ela não é qualquer mulher! Eu a a-...

— Sim, você a ama, isso dá para saber apenas olhando a expressão no seu rosto. Samart está brincando

com você, rapaz. Irá dar a você uma espada, um machado ou armadura apenas quando você merecer.

Richard ficou em dúvida.

— Você tem certeza diss-...?

— Claro que sim! Olhe! — Anakira pega o papel e tenta rasgá-lo, mas ele parece ter a dureza de diamante

— É papel divino! Apenas pessoas com força de um deus podem rasgá-los ou destruí-los!

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— Isso é ruim... não posso andar por aí sem...

— Não se preocupe, eu lhe ajudo a recuperar sua espada. Sei exatamente um jeito de fazê-lo, mas já é

tarde, amanhã de manhã nós começamos. Você pode dormir aqui, tome — Anakira ofereceu um prato da sopa

que havia preparado —, você precisará de energia.

Richard aceitou a comida, pois estava faminto. Havia deixado sua mochila de mantimentos para trás, mas

não quis se preocupar muito com isso. Quando a fogueira ficou apenas em brasas e o ambiente escuro,

decidiram-se dormir. Rich deitou-se em uma enorme pele de urso no chão — era mais confortável do que ele

pensou que seria — e observou a silhueta Anakira no escuro tirando toda sua roupa e deitando-se em uma outra

pele no lado oposto da sala. Fingiu não ter notado que ela estava nua.

— Qual é o seu nome? — Anakira perguntou.

— Richard, filho de Alven Lionfist — respondeu.

— Lionfist? — Anakira pareceu surpresa — Já ouvi esse sobrenome. É conhecido como o clã dos leões...

Rich reconheceu aquelas palavras. Sempre que alguém ouve o nome completo dele, falam a mesma coisa.

"O clã dos leões". Algo que Rich nunca entendera completamente. Sabe apenas que foi um clã de guerreiros

renomados e conhecidos, mas que ruíram e, por algum motivo, desapareceram do mundo há muito tempo atrás.

Rich sabia que era um dos últimos do seu clã, ainda mais porque seu pai havia morrido.

— Por que está me ajudando, Anakira?

— Por que eu entendo você. O homem que perde seu orgulho deve recuperá-lo com sangue. —

Respondeu a mulher.

Richard não entendeu o que exatamente ela quis dizer com aquilo, e, poucos minutos depois, adormeceu

mais rápido do que esperava.

Era pouco depois do amanhecer, e o sono profundo de Rich foi surpreendido por um leve chute nas

costas.

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— Acorde! — Anakira vociferou, vestindo a armadura leve que usara na noite passada, mas sem o

capacete. Estava mais ansiosa do que no dia anterior. — Levante-se e prepare-se!

— Mas... tão cedo? Por que...

— Apenas faça, idiota! — Anakira não perdia sequer uma oportunidade de interromper — Hoje, você

sairá de seu casulo de medo e hesitações e mostrará sua coragem!

Richard arrumou-se e seguiu a moça. Saíram do aconchego e entraram na floresta, andando na direção

que a encosta da montanha seguia. No caminho, Anakira explicou para ele como era a vida na mata e como lidava

com quem não respeitava aquele território e seus animais.

— O que você faz com...

— Com quem ousa maltratar as plantas e animais? Eu os acerto com uma flecha molhada em veneno

paralisante, e então o deixo. O agressor ficará cerca de seis horas imóvel no chão, à mercê da vida na floresta. Se

será devorado por predadores, ninguém sabe. Mas, se sobreviver, significa que a natureza o desculpou. —

Anakira olhou para Rich com um olhar assustador e sorriu um pouco — Eles provam de seu próprio remédio.

Aquele que tenta usar essa floresta, será usado por ela. Essa é a regra aqui, e eu a coloco em vigor.

— Mas você não usa a... — Dessa vez Rich já esperava ser interrompido.

— Sim, eu mato alguns animais para poder comer. Mas, a cada árvore que é cortada por mim, duas outras

são plantadas com a mesa mão. Os forasteiros que aqui vêm não pensam nem um pouco na vida nessa selva. São

egoístas e não merecem aproveitar os bens que a natureza os proporciona! — Falou, indignada.

— É por isso que você a protege tan-...

— Não apenas por isso. Essa sempre foi minha casa, e não posso ir embora enquanto não achar alguém

para me substituir. — Ela arrancou uma grande flor de uma árvore, e continuou — Isso é, se eu quiser sair algum

dia.

Rich sorriu. Certamente, essa mulher estaria disposta a dar a vida por aquela floresta.

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Andaram por duas horas. Sempre que Richard perguntava: "Aonde estamos indo exatamente?", Anakira

respondia: "É melhor eu não lhe contar agora!", e o jovem ficava ainda mais curioso. Subiram um pequeno morro,

e andaram para uma espécie de caverna. Dentro, Anakira acendeu uma tocha e guiou Rich pelo corredor

subterrâneo extremamente escuro. Richard ficou um pouco assombrado diante da situação. Mesmo com sua

determinação para recuperar a espada ele estava... com medo.

— Estamos chegando — anunciou a moça —, prepare-se. O que você verá a seguir lhe amedrontará um

pouco.

Então os dois chegaram ao final do túnel e viram-se em um grande local fechado, com rachaduras no teto

que permitiam que o local tivesse iluminação do sol.

— À essa hora da manhã, a caverna é mais clara. Por isso acordamos tão cedo.

Mas Richard não mais estava prestando atenção no ambiente. Estava olhando para o centro dele: havia

uma enorme criatura acorrentada numa rocha, aparentemente dormindo.

— Mas o que é iss-...

— Acorde, Ravenous! — Chamou Anakira. Infelizmente, estava se referindo ao monstro.

A criatura assustou-se com o grito da mulher e levantou-se, soltando um amedrontador rugido. Rich a

observou. Era um cão com três cabeças e seis patas. Era enorme, um pouco maior que um leão, e agora tentava

avançar sobre o jovem sem sucesso por causa da corrente. Essa monstruosidade lhe assustou tanto quanto o

dragão de Rarstead havia feito.

— Você lutará contra ele, homem — anunciou a sua guia —, mate-o usando sua coragem.

Richard olhou assustado para ela. Estava mesmo querendo que ele matasse um monstro daqueles sem

nenhuma arma ou equipamento? O monstro o fitou com olhos ferozes e tempestuosos, querendo seu sangue,

desejando matar aquele ser humano indefeso. O jovem deu um passo para trás, parecendo desistir. O ingênuo e

corajoso Richard parecia ter perdido sua vontade de seguir em frente. Por um breve momento, fechou os olhos e

lamentou-se, como se estivesse pedindo desculpas para si mesmo.

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— Não recue agora, cavaleiro — Anakira brincou —, não deixarei você desistir após chegar até aqui.

Mais uma vez, Rich se sentiu pessimista. O que diabos aquela mulher estava falando? A criatura

aparentava poder matar um ser humano facilmente com uma única abocanhada no pescoço, que agora

contorcia-se e forçava-se para tentar se livrar das correntes. Anakira começou a andar na direção do enorme cão

sem medo, e disse:

— Para que servem as espadas, Richard? — Ela esperou brevemente por uma resposta. Como não obteve

nenhuma, voltou rapidamente a falar. —Não servem apenas para abrir cortes ou decapitar oponentes, como

vocês, homens burros, devem pensar. Uma espada serve, principalmente, para demonstrar sua coragem! — Ela,

bem perto do monstro, ergueu sua lança. Por algum motivo, a fera não se importava de ter aquela mulher ao seu

lado, tão próxima: estava de olho em Rich. — Para que serve ter uma espada se você não tem coragem de atacar?

Por que você andaria por um local perigoso se não há coragem para mover-se? Para recuperar sua espada, jovem

Lionfist, você deve recuperar sua bravura matando Ravenous, o devorador do medo!

Nesse momento, Anakira fincou sua lança, que estava erguida ao máximo, na corrente do monstro,

rompendo-a. O cão de três cabeças agora estava livre, correndo na direção de Richard.

Foram curtos mas preciosos e longos segundos. O jovem que recém havia se tornado adulto agora estava

diante de uma abominação que o perseguia: o devorador do medo. Fechando os punhos, o cavaleiro dessa vez

não recuou e manteve sua postura. O jovem cujos sonhos e desejos não mais se limitavam apenas a salvar sua

amada, mas também a se tornar alguém à sombra de sua geração, de seu clã, de seu pai, aquele que morreu por

seu lar e por sua família. Ele não mais podia recuar ou esperar. Encararia monstros, inimigos inabaláveis, o

destino e até os deuses se preciso para mostrar seu valor.

Ele era Richard Lionfist, o herdeiro do clã dos leões.

Ravenous estava agora muito próximo, e finalmente deu um grande salto para um golpe mortal que, se

houvesse medo ou hesitação em Rich, certamente seria um golpe à altura. Mas não dessa vez. O jovem desviou

com um rápido movimento para o lado, e a fera caiu no chão tropeçando em si mesmo.

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Homem e criatura estavam à apenas dois passos de distância um do outro. O segundo começou a

levantar-se, e Rich aproveitou estes poucos segundos para fazer uma postura de ataque.

Nesse momento, o jovem decidiu, de uma vez por todas em sua vida, a nunca mais desistir. Nunca mais

recuar, nunca mais hesitar. Prometeu a si mesmo ser...

...UM CAVALEIRO DE CORAGEM!

Um brilho muito intenso surgiu nas mãos de Richard, algo que fez até o cão recuar. O jovem , como se

soubesse exatamente o que era, juntou as mãos e segurou o que estava desabrochando de sua alma: a sua

espada. Como mágica, surgiu primeiro o cabo em suas mãos, e depois uma brilhante lâmina brotou do guarda

mão. Era a espada de seu pai, agora mais afiada e não mais desgastada, com o punhal vermelho e o pomo feito de

ouro, com a cabeça de um leão esculpida nele. Era mais leve e mais confortável de se segurar. Parecia que havia

sido refeita, forjada novamente por um ferreiro místico.

Ainda em posição de ataque com a espada apontada para seu oponente, Rich preparou-se para o que

vinha a seguir: agora, para ele, não importava mais o que viria. Sua bravura era mais poderosa.

A aberração avançou novamente para dar uma mordida, mas a espada foi mais rápida: Richard acertou o

monstro na boca da cabeça central, perfurando o cérebro e atravessando a cabeça da fera, que morreu na hora.

Ele então empurrou o cadáver com o pé e retirou sua espada. Triunfante, ele a ergueu e levantou um

enorme sorriso, mas não disse nada.

— Parabéns, Rich! — festejou Anakira — Eu realmente pensei que você não conseguiria!

Ele nunca havia recebido sequer uma aprovação dela.

— Então, agora eu...

— Sim, você recuperou sua espada! — Ela realmente estava alegre, mas não o suficiente para perder sua

mania de interromper as frases alheias — Mas isso foi apenas o começo. Haverão muitos outros desafios em sua

jornada, lembre-se disso!

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Rich não desanimou ao ouvir aquilo.

Mas algo aconteceu que o assustou um pouco. Ouviu um barulho e um silencioso rugido atrás dele. Então

ele olhou para trás e viu Ravenous vivo e levantando-se! Richard preparou sua espada novamente e fez sua

postura de combate novamente. Percebeu que o monstro estava completamente curado e não mais sangrava.

Mas, dessa vez, a fera não atacou. Andou na direção do jovem e sentou-se na frente dele. Como um

cachorro domesticado, Ravenous colocou a língua para fora e arfou satisfeito, fazendo Rich estranhar

completamente a ação do cão. Anakira começou a rir.

— Você não precisará mais de sua espada contra ele. Ravenous é um monstro devorador de medo, e só

ataca aqueles que o temem! Ele será tão amigável quanto um gato de estimação agora.

Richard riu, embainhou sua espada e acariciou a fera.

— Obrigado, Anakira.

— O prazer é meu. — Respondeu ela — Mas agora você precisa continuar sua jornada sem mim, Rich.

O jovem teve que aceitar. Aliás, não precisava e nem podia tê-la como companheira ou guia em sua

aventura no momento: Anakira era a protetora da floresta, e sair significaria abandoná-la.

Ambos saíram da gruta e deixaram Ravenous. O cavaleiro pensou, por um momento, com sua imaginação

fértil, se ele pudesse levar o cão com ele em sua aventura. Ele sorriu com a visão da fera destroçando os inimigos

em seu caminho, apenas imaginando como seria ter um monstro de estimação.

— Vá naquela direção — a mulher interrompeu os pensamentos do jovem e apontou o dedo para

noroeste, onde ficava um vale —, e terás um atalho para as terras do além. É melhor você ir logo: tenho que

voltar aos meus deveres.

— Está bem. Obrigado de novo! — Rich correu na direção do vale. Depois de alguns passos, virou-se e

acenou em despedida — Adeus, Anakira!

— Adeus, Richard Lionfist. Sim, lembrarei desse nome.

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Ela ficou o observando andar até desaparecer de vista. Então, foi para a ponta de um penhasco na

montanha em que estava, e sentou-se ali, apenas admirando a paisagem da enorme floresta. Sentiu a brisa bater

no corpo, e aproveitou o momento de paz que estava tendo.

Até sentir uma presença atrás dela. Então a moça olhou levemente para trás e falou:

— Você viu tudo, Jaccob?

Mas não havia nada atrás dela. Nada que se pudesse ver. Mas, mesmo assim, Anakira sabia que estava ali.

— Certamente, senhorita — disse a entidade —, mas eu não entendo. Por que o ajudou?

— Não somos amigos dos reinos, mas não somos inimigos desse jovem. Somos ambos exilados, amigo, e

eu sinto que o jovem Richard também é por dentro. Exilado do mundo até conquistar o objetivo.

— Essas palavras não me fazem muito sentido. — O ser invisível pareceu tossir um pouco, e depois voltou

a falar — Tem certeza de que ajudá-lo é a coisa certa? Isso não apenas o matará? E, se ele sobreviver, não

aumentará ainda mais a ira do Lorde?

Anakira pegou sua lança e colocou-a em seu colo, observando os letreiros que eram visíveis pouco antes

da lâmina. A entidade voltou a falar:

— Recuperar a arma com coragem... você fez exatamente a mesma coisa para recuperar essa lança, não é

mesmo?

— Parece que ocorreu há séculos atrás — a moça começou a falar —, mas fazem apenas oito anos desde

que aquilo ocorreu, Jaccob. Eu amava aquele homem, e ele achou melhor morarmos em uma cabana na floresta,

pois a sociedade dos reinos era podre e maldosa... — Ela abaixou a cabeça e segurou para mais perto a lança —

Uma sociedade que matou meus pais!

Jaccob, o ser invisível, continuou escutando.

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— Ficamos juntos apenas um ano, até ele... o homem que me amava... tentar me matar! — Ela agora não

mais falava, mas choramingava — Então usei essa lança desesperadamente para sobreviver, e o matei. Mas eu

ainda... — Anakira chorou. Lágrimas correram por seu rosto, e seu corpo tremia — ...eu ainda o amava!

— Você ficou sozinha, não é mesmo? — Questionou a entidade.

— Eu me sentia um lixo. Não tinha mais ninguém, mais nenhuma pessoa boa no mundo. A partir daquele

momento, soube que homens são egoístas e não tem coração. Seres que são mais monstros do que humanos,

mais demônios do que anjos. Eu só tinha... a floresta e minha lança, que desapareceu dias após eu matar o

homem que eu amava. Eu já não sabia mais o que fazer. — Ela parou por um momento, e passou-se um minuto

em silêncio absoluto. Então levantou a cabeça, olhou para trás e falou — Então você apareceu.

Os dois continuaram em silêncio. Anakira declinou a cabeça novamente para a lança, e apenas lembrou-se

de si mesmo, muito tempo atrás.

Era apenas uma garota com seus pais. Uma garota, e seus pais. Uma garota, seus pais, uma cabana. Uma

garota, o pai, a mãe, em uma cabana na floresta. Uma vida simples. Simples demais para o mundo. A pequena

família pouco tinha a oferecer ao mundo, por isso era simples. Ofereciam tão pouco ao reino que sequer os

impostos cobrados pela coroa podiam pagar. Por que? Por que, se uma vida, ou três, está longe da sociedade, em

sua humilde casa aos pés da colina na floresta, precisa prestar serviço àqueles cujo nem o rosto se conhece? Não

se sabe.

Até que, certa noite, a cobrança foi longe demais. "Esconda-se!", gritou o pai, e Anakira obedeceu. De um

pequeno buraco na caixa em que se escondera, viu o pai e a mãe sendo mortos. O pai perfurado por uma flecha, e

a mãe decapitada. Eram pessoas do reino. Pessoas da coroa.

Sozinha ficou por um mês, até ser achada com fome em seu lar natural — a floresta — e levada à cidade

para ficar em um orfanato, observando, dia após dia, pessoas obedientes ao sistema corrupto de um reino

adotando as outras crianças. As que não eram adotadas, morriam. Na pequena casa chamada "Orfanato da

Esperança" em Rarstead, ela conheceu um garoto. Foi o primeiro amigo de verdade que ela teve. Alguns anos se

passaram e, quando atingiram o auge da adolescência, fugiram juntos para morar na cabana que um dia foi sua

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casa. Lá, namoraram por um ano. Um ano que Anakira não esqueceu sequer um dia. O melhor ano de sua vida.

Seu lar não era a cabana ou a cidade, mas sim, a selva.

Entretanto, depois desse tempo, vivendo de caçadas e escondidos da sociedade, ele quis voltar ao reino.

Queria dinheiro, queria ter emprego, mais amigos. Disse que estava cansado daquela "imunda floresta". Mas

Anakira queria ficar — obviamente — e então brigaram. Uma briga que libertou o lado desumano no homem,

algo que ela até hoje sabe que existe apenas nos homens. Ele correu para esfaqueá-la, e ela, sem saber se

deixava-se morrer pelo amante ou se defendia-se, ficou parada. Mas, pelo que pareceu ser algo divino da

natureza, um felino grande pulou no homem, atrasando-o e atrapalhando-o. Um animal salvou a vida de Anakira.

O homem, então, esfaqueou o pequeno bicho: uma ação que foi longe demais para a mulher. Ela pegou sua lança

para se defender de mais uma investida do homem que ela amou. Com a distância maior, a lâmina da moça

perfurou o coração dele. Ficou, agora, sozinha na floresta. Soube, de uma vez por todas, que aquele era o seu

lugar. Longe dos homens. Longe de reinos. Longe de moedas de ouro ou assassinos de aluguel da coroa. Longe de

tudo o que explora a natureza.

Mas, alguns dias após decidir-se que seria a protetora da natureza daquela selva, sua lança desapareceu.

Havia apenas um bilhete feito de papel divino.

Sem arma alguma, Anakira não sabia mais o que fazer, e apenas continuou na floresta. Sentia-se inútil,

uma dama sem ajuda, sem absolutamente nenhum outro objetivo a não ser respirar. Estava com fome, pois não

podia caçar sem arma. Logo, em um dia, um cão de três cabeças e seis patas apareceu e a atacou. Mas Anakira foi

incapaz de se defender. Não apenas porque não havia arma alguma mas, sim, porque não tinha razão para estar

no mundo. Se não fosse por mais um grande animal salvá-la, ela teria morrido. Mais um animal a salvou? Por

que? Por que simplesmente não a deixavam morrer?

Anakira foi obrigada a tomar uma decisão. E decidiu que não mais se entregaria à vida: ela conquistaria a

sua própria. Após matar o animal que havia salvo a mulher, o cão correu novamente para cima dela. Anakira

conquistou, depois de tantos anos, CORAGEM. Não via, mas sabia que sua lança continuava com ela. Segurou-a e

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ela apareceu, exatamente nessa ordem. O abstrato se tornou real em um passe de mágica. Ela matou a fera, que

logo após reviveu e se tornou inofensiva.

Ela decidiu-se, de uma vez por todas, que teria uma nova vida. A floresta o amava tanto que se sacrificou

duas vezes para salvá-la. Agora era a vez dela salvar a floresta. Anakira, a amazona protetora dos animais e das

plantas da selva ao norte de Rarstead, nasceu. Viveu por mais oito anos longe da civilização, da ganância, da

ignorância da sociedade do reino e, principalmente, dos homens.

Ela saiu de sua reflexão e levantou-se, olhou para trás e falou:

— E, no fim, foi você que resolveu me ajudar, não é, Jaccob?

— De fato — respondeu o ser invisível —, eu era uma dos poucos que sabiam dos métodos de Samart...

— Você vai ajudar esse Lionfist também?

— Talvez. Veremos. Preciso ir agora, madame.

— Adeus, Jaccob Tidevann.

— Adeus, Anakira Tigerwing.

Capítulo 4

Amizade

Algumas horas após continuar sua caminhada, Richard lembrou-se de algo que lhe deu um certo frio na

barriga: havia esquecido sua mochila na floresta. Deixara para conseguir fugir da fera de Sarobou antes de ser

salvo por Anakira, e dentro dela havia, entre outras utilidades, comida, materiais e remédios. O mais importante

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era uma poção que guardava há muito tempo: uma poção de saúde. Ao bebê-la, todos os tecidos do corpo se

regeneram à velocidades absurdas por alguns segundos, mas, pouco depois, quem beber terá uma grande fadiga.

Mesmo com esse pequeno efeito colateral, uma poção pode salvar a vida de alguém que se feriu em batalha.

Richard acabou de perder tudo aquilo e lamentou um pouco, mas não queria desanimar demais.

Infelizmente, não podia voltar para recuperar a mochila por dois simples motivos: primeiro, demoraria muitas

horas para andar até lá. Iria refazer todo o percurso que fez coma Anakira e todo que ele fizera até onde estava

agora. Segundo, sequer lembrava exatamente onde a mochila estava, pois a floresta era grande.

Continuou andando e tentando apagar aquilo da memória. Bem, da memória ele conseguia apagar, mas

não conseguiria apagar as consequências: ficou faminto em pouco tempo, e não podia caçar apenas com uma

espada. Foi para a selva e tentou improvisar um arco, sem sucesso. não havia madeira muito boa e não achou

nada que pudesse servir de corda de tensão. Então partiu para o "plano B": Fazer uma lança. Não era muito

experiente com arremessos, mas uma lança o ajudaria e daria uma chance de caçar.

Usou técnicas de sobrevivência que aprendera com o pai para lascar e afiar uma pedra para servir de

lâmina, e conseguiu achar uma vara reta para o cabo. Com algumas amarras feitas do tecido retirado de sua

roupa, Richard agora tinha uma lança. Não uma lança capaz de perfurar couraças resistentes, mas era o suficiente

para matar um cervo. Com fome, seus instintos se aguçaram: ele se escondeu e espreitou na selva, esperando ver

algo que pudesse ser sua presa. Caminhou entre os arbustos e folhagens para se camuflar, andando para o norte,

em direção aos Vales da Lava Negra que o sacerdote mencionara no templo de Samart. Andou até achar uma

pequena estrada. Que estrada era aquela?

Ouviu o barulho de cavalgadas vindos de uma direção. Richard escondeu-se atrás de um arbusto, pois

poderiam ser assaltantes de estrada.

O jovem observou dois homens andando à cavalo.

— Que pena, nossa busca falhou! — Falou um deles.

— O chefe não irá gostar disso — o segundo respondeu —, mas fizemos de tudo!

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O primeiro então parou seu cavalo, e o outro fez o mesmo. Este pegou algo do saco que o cavalo

carregava e mostrou para o outro.

— Pelo menos, achamos isso. Algum viajante deve ter perdido. Talvez seja ele nosso alvo.

Richard, que estava perto o suficiente para ouvir a conversa, observou bem o que o homem tinha nas

mãos, e concluiu: era a sua mochila!

— Há alguns mantimentos aqui. Podem agradar o chefe! — Continuou o homem que estava com o

pertence de Rich em mãos.

— Idiota! Nosso objetivo não é achar coisas perdidas, mas sim pessoas! E a que nós procuramos é uma

em especial! — Reclamou o segundo, recomeçando a cavalgar. — Vamos, estamos perto da mina.

O outro concordou, guardou a mochila e bateu as rédeas para o cavalo andar.

Richard decidiu segui-los — sempre escondendo-se — para ver se conseguiria recuperar seus pertences.

Como os homens estavam a cavalo, Rich logo os perdeu de vista. Mas avistou fumaça ao longe, típico de

um acampamento. O jovem tinha quase certeza de que lá havia a mina que o homem mencionara.

No caminho, Richard conseguiu algo que o deixou alegre: acertou uma lebre com a lança! Fez uma

pequena fogueira e a assou no fogo. Comeu e embrulhou um pouco do que sobrou para comer depois. Passou-se

duas horas desde que vira os homens a cavalo. Estava na hora de investigar o que havia na mina que ouviu falar.

Agora reabastecido com o alimento, chegou à entrada de uma caverna. Na frente, havia uma fogueira

quase se apagando, mas nenhum homem do lado de fora. Rich procurou nos bolsos para ver o que tinha. Havia

apenas a mensagem de Samart (ele havia a retirado do fogo depois que Anakira tentou queimá-la), o pedaço de

carne e uma bolsa de moedas. Essa última era o que ele estava procurando. Talvez, com as moedas, Rich podia

convencer os homens a devolverem sua mochila.

Ele, então, entrou na gruta.

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Era de fato uma mina: haviam algumas picaretas no chão e alguns minérios em carrinhos. Andou pelo

corredor subterrâneo até ouvir algumas vozes à frente. As vozes pareciam zombar e xingar alguém ou alguma

coisa, pelo que Rich entendeu. "O que estava acontecendo?" ele pensou, e, conforme se aproximava, as vozes e

as gargalhadas ficavam mais nítidas e altas.

Enfim, Richard chegou à entrada de uma câmara. Escondeu-se atrás de dois barris à sombra e viu, com

dificuldade por causa da semiescuridão, dois homens ridicularizando um terceiro, sentado e amarrado à uma

cadeira. O local estava pouco iluminado: haviam apenas algumas tochas nas paredes. O compartimento onde

estava era, provavelmente, o depósito da mina. Ia das escavações e minerações para esse depósito e, depois,

para fora, onde as matérias-primas eram vendidas. Era, também, onde os trabalhadores recebiam suprimentos e

ferramentas, mas algo chamou a atenção de Rich: haviam jaulas e algumas ferramentas de tortura em um lado da

sala. Qual o motivo para aquilo?

Quando uma das tochas próximas quase se apagou, um dos homens reacendeu-a, fazendo-a brilhar mais

e melhorando a iluminação, assim ajudando para que Richard pudesse ver melhor os homens. Os dois que

estavam de pé não pareciam ser mineradores: estavam vestidos com armaduras de couro e um tinha uma espada

na mão, enquanto o outro tinha um machado de batalha preso ao cinto. Provavelmente, eram guardas.

Então olhou para o homem que estava sendo caçoado: não era um humano, mas, sim, um orc. Rich nunca

havia visto um na vida, mas já lera sobre eles.

Orcs, ou Orcrrims, como eram chamados em sua terra natal, são homens e mulheres que se diferenciam

de humanos normais por sua pele levemente esverdeada e dentes caninos inferiores maiores do que os

superiores. Não se sabe ao certo de onde vem ou como surgiram, mas não são exatamente monstros: são apenas

outra raça de humanos, e não outra espécie. No entanto, isso já é o suficiente para sofrerem preconceito dos

"Homens brancos". São mais altos e musculosos, a pele deles é mais dura e são bravos guerreiros. Mas, ao

contrário do que muitas pessoas pensam, orcs não são animais selvagens e muito menos hostis aos homens: são

respeitosos aos domínios dos homens e à natureza e territórios. Mesmo assim, são muitas vezes discriminados e

às vezes até mesmo caçados. São grandes artesãos e vivem em aldeias e pequenas vilas em Krainir, sua terra

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natal. Tem como tradição forjar armaduras e armas, e era comum ver orcs vestindo pesados equipamentos de

ferro, aço e até raros metais como ouro ou "macrotato", um metal mais precioso que ouro e ainda mais

resistente. Tem também sua própria língua, mas alguns falam a língua dos homens também.

Isso era tudo o que Richard sabia. Observou o orc sentado: estava sujo e com um corte na testa. Encarava

os homens que o ridicularizavam sem dizer uma palavra sequer.

— Então, você acha que pode roubar comida de nosso chefe para dar ao seu "amiguinho"? — Brigou um

dos agressores — Está achando que pode, seu orc sujo!? Você é apenas um escravo dessa mina, e será até

mostrar ser obediente!

Então o pobre orc finalmente falou algo:

— Não há liberdade. Vocês prometeram libertar aqueles que minerassem duzentos carrinhos, e muitos já

passaram do dobro dessa marca. Arrgnurmor. Vocês não passam de lohk mentirosos. Mish'kur rar meqr!

— Eu não entendo uma palavra dessa língua estranha de vocês, seu monstro! — Insultou o segundo

homem — Essas terras são nossas, e não de invasores bárbaros como vocês!

— Tem sorte do seu povo estar vivo, orc — disse o primeiro guarda —, mas não irão durar muito!

— Vocês também não, burkomer. — Respondeu o escravo.

Um dos homens deu um violento soco no rosto do orcrrim. Este caiu no cão junto com a cadeira dando

um murmúrio de dor. Richard achou aquilo horrível e sentiu pena do pobre homem verde. O agressor

amaldiçoou, levantando novamente a cadeira do orc, fazendo-o ficar como estava antes:

— Já estou cansado desses imbecis!

O outro ergueu a espada que tinha na mão.

— Vamos matá-lo, o chefe não vai se incomodar. — disse ele — É uma pena, você era um dos mais fortes

escravos.

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O orc, sangrando pelo corte na testa e pela boca por causa do soco, abaixou a cabeça. O guarda estava

prestes a matá-lo.

— ESPERE!! — Rich ouviu, mas então se deu por conta de que ele mesmo havia gritado.

Os dois agressores viraram-se para o jovem e o orc levantou a cabeça.

— Quem é você? — perguntou um dos guardas.

— Espere, esse não é o homem que o chefe está atrás? — disse o outro, observando bem — Sim, é ele!

Temos que capturá-lo!

— Do que vocês estão falando? — Perguntou Richard. — Aliás, parem de bater nesse... orc!

— Me parece que ele está nos desafiando, Marco — disse um dos guardas, abrindo um sorriso no rosto —

, ele provavelmente é seguidor desses orcs. Não quero vê-lo trabalhando aqui. Vamos matá-lo!

Rich ficou muito confuso com as palavras do homem, mas não teve muito tempo para pensar. O guarda

que havia desejado a morte dele estava agora avançando com a espada erguida.

Richard desembainhou sua espada e desviou do primeiro golpe do agressor.

— Espere! Eu não quero lutar! — Pronunciou ele.

— E o que nós iremos falar ao chefe se ele morrer? — Lembrou o tal "Marco".

— Vamos dizer que foi ele que atacou, oras! — Sugeriu o atacante, dando mais um golpe, que Rich

defendeu com a espada de seu pai.

O jovem Lionfist percebeu, então, que não tinha escolha a não ser lutar. A espada que tinha agora era

mais leve e estava em perfeitas condições, o que lhe dava uma vantagem contra o agressor, que estava

segurando uma espada mais velha. Além disso, Rich tinha algo que o colocava à frente de seu inimigo: coragem.

Isso deixava seus instintos mais aguçados e, seus reflexos, mais rápidos.

Richard desviou de mais um golpe do homem, dessa vez conseguindo segurar o braço dele, torcendo-o e

fazendo-o largar a espada. Então, perfurou o peito do adversário com sua espada. Quando a tirou, sangue jorrou

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do tórax do derrotado, que por alguns segundo tentou, sem sucesso, segurar o ferimento para parar o

sangramento. Então morreu, caindo no chão com um baque quase surdo.

— Reginald! — Gritou o outro. Então olhou com raiva para Rich e gritou — SEU BASTARDO!

Nesse momento, o segundo guarda pegou seu machado e um escudo de pele e ferro e avançou na

direção de Richard, que sabia que, assim como o primeiro, também teria que derrotar esse segundo, que não

parecia muito experiente em batalha com machado e escudo. Rich apenas deu um forte chute no escudo que fez

o inimigo cair. Logo o guarda levantou-se e avançou novamente, dessa vez querendo atacar mais do que

defender.

Foi um erro fatal.

Richard desviou de um ataque e balançou sua espada, cortando exatamente no alvo do inimigo: a

garganta. O agressor se comportou da mesma forma que o primeiro derrotado: colocou as mãos no ferimento,

em vão. Rich deu um golpe de misericórdia e limpou sua espada em seguida. Não gostou de fazer isso, pois não

queria matar ninguém, mas fora obrigado. Havia sido treinado por muito tempo, tanto com seu pai quanto no

quartel de Rarstead, e realmente viu que valeu a pena, derrotando dois guardas. É claro, sua coragem que havia

recém recuperado deixava seus golpes ainda mais mortais.

Rich foi até onde o orc estava, e o desamarrou.

— Você está bem? — Perguntou.

— Sim, graças a você, komer lohk. — Respondeu o outro. — Larmeqr. Obrigado, devo minha vida à você.

— Não foi nada... apenas achei injusto o que iam fazer com você.

— Você não é como eles. É um komer, um honrado, um amigo. Qual é o seu nome?

— Richard Lionfist. Ou apenas Rich.

— O meu é Krognarr. Krognarr Lus Murmurir.

Rich estava quase certo que logo esqueceria daquele nome.

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— O que está acontecendo aqui, Krognarr? Vocês estão sendo escravizados?

— Não apenas nós, mas qualquer desavisado que entre no caminho desses bandidos. Sarmic'rar... Mas

diferente de vocês, lohk, nós, os orcrrims, somos constantemente caçados para servirmos de escravos, por

sermos mais fortes e trabalharmos mais. Esses burkomers irão pagar, cedo ou tarde.

— Há mais de vocês na mina? — Perguntou Rich.

— Metade da minha aldeia. Espere aqui, vou libertá-los e resgatar minha melhor amiga.

— Espere! Você vai sozinho?

— Sim. Aliás, ninguém poderia ir por mim.

— Eu posso lhe ajudar!

— Você faria isso por um estranho? Krak'kur mizzu? — Espantou-se Krognarr.

— Bem... — Rich lembrou-se de que também tinha que achar sua mochila na mina — Também tenho

coisas a fazer aqui.

— Um dia eu irei lhe agradecer, Richr.

— É Rich!

Ambos desceram sorrateiramente o corredor para as próximas câmaras da mina. Ouviram apenas alguns

ruídos de pedras e minérios se quebrando. Era o som de alguém minerando: não alguém, mas várias pessoas.

Realmente parecia ser uma mina imensa.

— Se eu me lembro bem, é por aqui — Sussurrou Krognarr —, deve ser na próxima sala...

— O que você está procurando? — Questionou Richard.

— Minha melhor amiga. Deve estar naquela sala. Lartormish. Siga-me, Richr.

Lionfist não entendia as palavras que o companheiro falava na língua orc, mas estava longe de se

importar. O que o incomodava era o fato de Krognarr não falar seu apelido de maneira certa.

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Andaram mais um pouco e chegaram à uma sala que parecia um local de armamentos. Ironicamente, não

havia guardas. Rich perguntou-se: por que a "melhor amiga" do orc estaria naquele local? Olhou de perto os

equipamentos que a sala continha: as espadas, machados, clavas, escudos, armaduras... tudo estava enferrujado

e em má qualidade, mas já seria o suficiente para matar se fosse necessário. Então o jovem olhou em volta: não

havia ninguém na sala a não ser ele e o orcrrim. Estava quase no ponto dele falar para o companheiro que seria

melhor ir embora da câmara, mas Krognarr achou algo e clamou:

— Achei! Strangnirr! Como é bom vê-la!

Richard viu, então, o orc com uma imensa espada de aço nas mãos. Era diferente das outras da sala: não

estava enferrujada e parecia muito mais mortal. Tinha um pouco mais que dois terços do tamanho do portador.

Sim, realmente uma longa espada!

— Isso é sua "melhor amiga"? — Perguntou.

— Você não conhece a cultura dos orcrrims? — Krognarr parecia realmente boquiaberto com a falta de

conhecimento do jovem — Para nós, nosso melhor amigo é o que nos defende dos inimigos. O "segundo amigo" é

o que nos ensina a lutar e, por terceiro, Dagnarr.

— Quem é Dagnarr?

— É quem nos criou e quem nos abençoa e protege. De acordo com as histórias e lendas, foi o primeiro

orcrrim a surgir!

Rich ficou admirado. Não é de se surpreender que os orcs são grandes cavaleiros. Então perguntou:

— Então essa longa espada é sua melhor amiga?

— Mizzu. Correto. O nome dela é Strangnirr, que significa... como poderei dizer em sua língua?, "guerreira

desmembradora", ou apenas "Guerreira de força".

— Entendo... — Richard escondeu sua expressão de receio pelo nome da espada — Vamos continuar

andando, tenho que recuperar minha mochila.

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— E eu, resgatar meus outros amigos.

Os dois continuaram andando. Os sons de picaretas quebrando pedras ficava cada vez mais alto e o ar

cada vez mais difícil de respirar. Mas, por outro lado, os corredores e compartimentos eram mais bem iluminados

— sinal de que haviam mais guardas que passavam por ali.

Chegaram, enfim, em uma pequena sala de mantimentos, que dava vista à mina: uma gigantesca caverna

subterrânea onde haviam cerca de 15 pessoas trabalhando: todas com roupas esfarrapadas de mineiros. Estavam

presos à parede por uma corrente longa, ou seja, podiam andar pela sala, mas não sair dela. Krognarr cutucou

Rich e apontou três guardas que estavam de olho no trabalho dos escravos. Esses não eram como os dois

anteriores que o jovem matara: estavam mais bem equipados, com armaduras de couro e aço que, apesar de

leves, pareciam resistentes.

O orc sussurrou para chegarem sorrateiramente e matarem os guardas sem eles nem perceberem. E

assim andaram agachados silenciosamente para trás dos três homens.

Mas Richard nunca foi bom em se esconder: acabou chutando uma pequena pedra sem querer. Fez pouco

barulho, mas o suficiente para alertar os três homens.

— Hey, olhem, é aquele orc que foi para o interrogatório! — Disse um deles — E aquele outro me parece

familiar!

Rich teria que lutar novamente. Desembainhou a espada, mas Krognarr fez sinal para guardá-las.

— Fiquei quatro meses nesse lugar trabalhando, sem lutar. Está na hora de reaver o gnarr em meu nome!

Eu luto com eles, Richr.

O jovem ficou perplexo, mas não embainhou sua espada. Admirou e respeitou das palavras do orc, mas

ao mesmo tempo duvidou um pouco. Iria agir e ajudá-lo se preciso, mas apenas se fosse realmente necessário.

Por um lado, não queria deixar Krognarr lutar sozinho contra três guardas, mas por outro lado estava curioso

para saber se ele realmente era capaz.

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O orc segurou sua gigantesca espada em posição de batalha. Esta parecia extremamente pesada e difícil

de manipular, mas o seu portador parecia ter nascido para lutar usando-a. Orcs são realmente admiráveis, pensou

Rich.

O primeiro guarda partiu para o ataque. Estava com uma clava em uma mão e um escudo na outra.

Tentou dar um golpe com a clava: foi inútil, pois Krognarr defendeu sem se esforçar muito e deu um poderoso

chute no joelho do oponente. O chute foi tão forte que fez o joelho se curvar na direção contrária à que foi feito,

dando um estralo que doía até para os que assistiam. O homem gritou de dor e caiu ajoelhado, levantando o

escudo para se defender. Novamente, inútil. O orc deu um golpe com a Strangnirr e partiu o escudo ao meio e

ainda desferiu um corte profundo no homem. Este caiu no chão inconsciente e, futuramente, morto. Rich ficou

admirado.

Os outros dois guardas foram para o ataque gritando. Dessa vez eram os dois juntos. Um deles portava

um gigantesco machado de guerra e o outro, uma espada e um escudo resistente.

— Faça sua arma ser parte de seu corpo, Richr — disse o orcrrim pouco antes de defender um poderoso

golpe do guarda que portava o machado de duas mãos —, e ela matará os inimigos por você. Sinta a essência da

luta.

Defendeu com sucesso o golpe do machado, mas o outro homem veio com sua espada, tentando perfurar

o peito do orc, mas este desviou com um rápido movimento para frente. Aproveitou que sua espada estava

encostada no machado do inimigo e fez um movimento de alavanca para desarmá-lo. Perfurou, então, o

abdômen do adversário, fazendo-o cair no chão em agonia.

Agora só sobrou um inimigo. O homem ficou aterrorizado ao ver seu dois amigos caídos e decidiu fugir.

Mas deu apenas dois passos: com tanto desespero, tropeçou em suas próprias pernas e caiu. Levantou-se e

chacoalhou a cabeça, parecendo se decidir se lutava ou não.

Mas, de qualquer forma, era tarde demais.

Krognarr deu um poderosíssimo golpe com sua espada no lado oposto ao escudo do homem, partindo o

corpo deste em dois. Rich ficou boquiaberto: aquele orc era mais forte do que ele pensava.

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O segundo homem que fora derrotado ainda estava vivo e falou, com a voz fraca, mas com um tom de

zombaria:

— Vocês não irão sair daqui vivos... — cuspiu sangue e tossiu umas três vezes — o meu chefe, Asgeir, irá

acabar com a sua raça orc suja e matará esse idiota humano... aliás — o homem tossiu mais um pouco e

continuou —, ele já estava atrás de você, Richard Lionfist. Seus ossos serão arrancados do...

Então foi interrompido por Krognarr, que o perfurou no pescoço com a espada. Rich ainda não entendia

porque aqueles bandidos o queriam.

Os escravos ouviram a luta e pararam de trabalhar. Rich os olhou mais atentamente agora: no enorme

espaço aberto dessa câmara da mina havia cerca de 14 pessoas minerando. O jovem reparou que, dessas, cinco

eram orcs.

— Krognarr! Tu nillak'lar! — gritou um dos orcs prisioneiros.

— O que ele disse? — Perguntou Richard.

— Ele está feliz em me ver vivo.

Ambos soltaram as correntes dos escravos com chaves que acharam nos bolsos dos guardas. Quase todos

as pessoas saíram correndo para a saída da mina, exceto os orcs, que se juntaram a Rich e Krognarr.

— Onde está o resto? — Perguntou Krognarr aos outros.

— Estão mortos. Que Dagnarr os proteja.

— Vocês foram os únicos que sobraram? — o orc que matou três homens sozinho agora estava assustado

— Burkomer krrish!

Richard olhou para os outros orcrrims: eram três homens e duas mulheres. Realmente estavam com

aparência horrível por causa da sujeira e dos ferimentos. Os homens eram musculosos e altos, com barba mal

feita (provavelmente cortadas com facões quase cegos ou até enferrujados) e marcas de chicote nos braços —

Rich tinha certeza de que haviam mais marcas daquelas nas costas. As mulheres eram diferentes do que o jovem

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pensava: não eram grotescas ou feias. Era muito visível que eram orcs pela pele esverdeada e dentes caninos

inferiores à mostra, mas, com banho e maquiagem, podiam até mesmo ser bonitas.

Mas Rich teve seus pensamentos interrompidos quando uma das fêmeas perguntou a Krognarr:

— E esse Lohk?

— É um komer — respondeu ele —, ele me salvou de ser morto pelos bandidos.

— Meu nome é Richard Lionfist, moça! — Disse com respeito, pois a mulher não parecia muito apegada

aos "lohk".

— Admirável, rapaz. Você tem nossa total gratidão — disse outro orc —, o que podemos fazer por você?

— Se vocês querem ajudar, eu gostaria de recuperar minha mochila. Acho que está onde o chefe deles

está. Há mais desses guardas?

— Ai! — disse a outra mulher orc, com uma voz bastante adolescente — Asgeir! O chefe dos bandidos

tem dois terços dos guardas da mina com ele o tempo todo!

Rich ficou um pouco espantado ao ouvir aquilo, mas agora havia com ele seis orcs para ajudar, o que o

motivou um pouco.

— Nós vamos nos armar, Richr — anunciou Krognarr.

— É Rich!

— Onde você recuperou sua Strangnirr, Murmurir? — Perguntou um deles.

— Na sala de armamentos — respondeu —, e é para lá que vamos primeiro.

Todos os seis orcs foram rapidamente para a sala onde Krognarr achou sua grande espada. Conseguiram

não só armamentos que lhes pertencia mas também suas armaduras. O próprio Krognarr, inclusive, vestiu a sua.

Era pesada e feita de aço e ferro reforçado, algo capaz de parar até uma flecha frágil.

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Todos reuniram-se novamente, e Richard observou os orcs agora. De fato, eram assustadores com seus

equipamentos completos. A mulher que não confiara muito nele agora vestia uma pesada armadura de ferro, que

provavelmente o faria ficar cansado com poucos passos de caminhada vestindo-a. Como uma mulher conseguia

se manter equipada com aquilo e ainda agir tão normalmente a ponto de parecer que vestia roupas normais?

Orcs eram realmente assustadores. Enquanto essa estava com armadura pesada, a outra — a orc de voz

adolescente — vestia uma armadura leve de couro e escamas e portava dois machados. Os três homens trajavam

armaduras ainda mais pesadas que da mulher, provavelmente capazes de parar um golpe forte de clava.

— Vamos logo com isso, lohk — disse um deles —, quero acabar com a raça daquele desgraçado e

respirar ar puro novamente!

— Está bem — respondeu o jovem —, estejam preparados para lutar!

— Já estamos há meses, Richr — disse Krognarr —, nunca subestime o poder de um orcrrim!

Eles então partiram para os corredores que levavam até a sala do chefe. Nenhum deles havia ido até lá,

mas sabiam mais ou menos onde ficava. Dois guardas apareceram, mas correram ao ver o número de inimigos.

Rich e os seis orcs correram atrás deles e chegaram à uma sala vazia. Os bandidos, sem saída, tentaram lutar, mas

foram brutalmente mortos pelo grupo de orcrrims. Depois, mais um grupo de guardas apareceu por trás. "De

onde vieram?", pensou Rich, mas não teve tempo para pensar mais: se juntou para combater dez homens.

Finalmente, apenas o jovem e seis orcs estavam de pé na sala vazia.

— Acho que passamos por alguma porta e não vimos — disse Richard — vamos voltar, aqui não tem

nada.

— Está certo. — Krognarr concordou, acompanhando o jovem, que estava saindo da câmara —

Tormish'tir, garl parthinux.

— O que você acabou de falar? — Perguntou o humano, já saindo da sala.

— "Sigam-me, irmãos de sangue" — replicou o amigo orc —, chamamos assim os de nossa raça.

— Você poderia falar mais...

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Mas as palavras de Rich foram interrompidas por um barulho atrás dele. Ele virou-se e viu que uma porta

de ferro caiu sobre a entrada fechou o acesso à sala! Apenas ele e Krognarr estavam do lado de fora: o resto dos

orcs agora estavam presos.

— Estamos presos aqui! — Gritou a orc de voz adolescente — Eu não quero mais estar presa!

— Ninguém quer, sua boba. — Disse um dos que estava ao lado dela. — Foi uma armadilha de Asgeir! Por

sorte, vocês dois ficaram fora. Obrigado, Dagnarr!

Ouviram-se passos.

Rich e Krognarr viraram-se e viram três guardas bem armados e, atrás deles, um homem que todos os

orcrrims reconheceram: o chefe dos bandidos, Asgeir. Estava vestindo uma armadura com aparência imperial:

mais parecia um general do que um chefe de bandidos. Aparentemente tinha mais que 40 anos de idade e tinha

um cabelo curto branco. Além disso, possuía um olhar ameaçador.

— Seus idiotas! — Bradou o homem. Seus subordinados ficaram amedrontados na hora — Eu mandei

vocês atraírem e prenderem todos na sala!

— Vamos matá-lo aqui e agora, Asgeir! — rugiu um dos orcs — Vamos enforcá-lo com suas próprias

tripas!

— Não precisa ficar tão irritado, seu monstrinho sujo. — O chefe dos bandidos parecia ter certeza da

vitória — Depois de matarmos esse homem e esse orc, mataremos vocês também e capturaremos todo o resto

de seu povo para trabalhar na mina. É só para isso que vocês, orcs, servem mesmo. Para trabalhar como

cachorros e amar sua tal divindade "Dagnarr"...

Richard preparou-se para lutar. Observou um pouco mais o inimigo: realmente parecia experiente em

batalhas. Portava uma espada e um escudo, ambos parecendo muito resistentes. Mas, obviamente, isso não

amedrontava o jovem, apenas o deixava mais cauteloso.

— Aliás — continuou Asgeir, dessa vez falando com Rich —, você é Richard Lionfist, não é? Estive

procurando por você.

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— Eu sei disso. — O jovem afirmou — Por que? Quer que eu seja mais um escravo de sua mina?

— Não exatamente. Fazer você ser mais um escravo também é parte do plano, mas o meu objetivo é

outro. Infelizmente, parece que você não tem o que eu quero...

— O que é!? Fale de uma vez! — Vociferou um orc.

— É a sua armadura, escudo e espada, Richard!! Os últimos exemplares dos equipamentos do clã Lionfist!

São mais valiosas do que qualquer diamante!

— Como você pode ver, Asgeir — sorriu Rich —, só estou com minha espada agora. Samart levou tudo de

mim.

— Hum... — O chefe dos bandidos coçou a cabeça e deu um sorriso — O lendário julgamento de Samart.

Já que eu acho impossível um "garoto" como você reaver sua honra com esse deus, acho que apenas terei que lhe

matar.

— Eu vou conseguir ambos: te derrotar e recuperar o que é meu!

Asgeir deu um grande sorriso e ordenou seus homens para atacarem. Diferentemente dos guardas

anteriores, Rich pôde perceber que esses três eram mais habilidosos. Usavam armaduras em qualidade superior e

provavelmente já haviam matado muitos inimigos no passado.

— Eu pego os dois da esquerda, e você pega o da direita. Depois, acabamos com a raça desse chefe

cretino. De acordo, Richr?

— É Rich!

Nesse momento, o três guardas avançaram com ferocidade para o jovem e o orc. Este já esperava o

ataque de dois homens, mas apenas um veio em sua direção: parecia ser o mais forte de todos. Os outros dois

atacaram Richard!

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Krognarr tentou mudar a situação, mas seu único adversário era forte demais. Atacava com muita

ferocidade usando um grande martelo de guerra que ocupava duas mãos e cujo cabo era tão longo quanto a

lâmina do orc. Trocaram golpes, e nunca um adversário humano havia sido tão difícil.

Enquanto humano e orcrrim lutavam, Rich lutava com dois homens ao mesmo tempo. Um portava uma

clava perigosíssima e outro, um pequeno escudo circular e uma espada curva. Lionfist, que possuía apenas uma

espada, usaria o que havia derrotado os inimigos anteriormente: sua coragem. Era o que o deixava seguro e o

fazia ser mais rápido e mais forte em seus ataques e defesas.

Era o que precisava.

O primeiro, que tinha uma clava, veio correndo com tanta velocidade que Rich conseguiu desviar o

ataque e dar uma veloz rasteira nas pernas do inimigo, fazendo-o cair. O número de inimigos estava agora na

metade, mas apenas por alguns segundos. O de escudo atacou ferozmente, mas seu golpe de espada foi

interrompido pela espada de Richard. Este percebeu que o escudo do inimigo estava afiado nas extremidades: um

corte bem feito poderia ser fatal. O jovem desviou de um golpe de escudo agachando-se, e aproveitou a brecha

para dar um corte na coxa do adversário. O homem caiu no chão em agonia e deixou o escudo cair. Rich sentiu

uma presença atrás dele, pegou o escudo e defendeu-se com ele do ataque do homem de clava.

Por alguns instantes, o jovem lembrou-se de que escudos afiados eram comuns e típicos da guarda de

Rarstead: quando um golpe de sua arma principal falhava, bastava usar o escudo. Mas algo fez Richard sentir-se

muito bem: foi treinado para combater inimigos usando uma arma e um equipamento de defesa. No caso, espada

e escudo. Como era bom poder usar o segundo equipamento novamente!

Seu poder havia dobrado agora. O homem de clava tentou mais um golpe lateral, mas foi interrompido

sem dificuldades pela nova defesa de Rich. Este, estão, empurrou o escudo fazendo o guarda se desequilibrar.

Aproveitando a oportunidade, perfurou o pescoço do homem com a espada, matando-o antes de cair ao chão.

Logo após ouvir o baque do corpo caindo, o jovem virou-se e viu que o primeiro homem estava de pé e

querendo continuar a luta, mesmo com a perna seriamente machucada. Tentou, mesmo debilitado, dar um golpe

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em Rich, que desviou sem dificuldades do ataque e o matou com a arma roubada: cortou o pescoço do homem

com o escudo. Então olhou na direção de Krognarr.

O orc estava de pé com um machucado sangrando no ombro, e o inimigo estava no chão sem um braço e

com quase toda a parte da frente do corpo aberta, com órgãos fora do corpo. Richard juntou-se ao amigo.

— Foram vocês que pediram. — Asgeir disse, preparando-se para a batalha.

Rich começou a pensar em como iria atacar. O adversário dessa vez obviamente era muito mais forte. O

jovem imaginou a batalha por alguns segundos.

Krognarr ficou em fúria e com sede de sague. Correu para Asgeir com a espada levantada, pronto para dar

o primeiro que, se acertasse, mesmo com a armadura pesada do rival, poderia parti-lo ao meio. Mas o homem

era muito mais rápido do que o orcrrim imaginava: deu um simples passo para o lado, desviando do golpe,

colocou a mão no ombro de Krognarr e, com sua espada, perfurou o peito do orc! Este caiu no chão e, logo

depois, morreu.

Então Richard balançou a cabeça. Olhou em volta e viu o orc ao seu lado e Asgeir apenas esperando um

ataque. O jovem havia apenas tido uma pequena premonição. Afastou os pensamentos negativos de si e se

concentrou na luta que estava por vir.

— Eu vou primeiro, Richr — disse o amigo em voz baixa para apenas seu companheiro ouvir —, depois

você. Ele não terá chance contra nós dois.

— Não. Eu tenho mais defesa que você, e esse homem está escondendo algo. Sua posição de batalha é

característico de quem tem velocidade. É uma postura de luta que permite matar o inimigo em segundos.

— Como você sabe disso? Rar'kur runarp!

— Bem, é que... — Richard balançou sua espada para livrar-se do sangue que a cobria — Eu também luto

nesse estilo.

Após dizer essas palavras, o jovem avança cauteloso. Tenta dar um golpe de espada, mas Asgeir defende

com o escudo e dá um rápido golpe com a sua arma, que, se não fosse pela preparação de Rich, teria acertado.

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Este deu um passo para trás e atacou novamente, e mais uma vez foi defendido e contra-atacado. Krognarr

aproveitou a oportunidade e avançou também. Tentou dar um golpe com a Strangnirr no inimigo, mas este, como

se tivesse olhos nas costas e ouvidos sobre-humanos, desviou do golpe, por pouco não acertando seu contra-

ataque no orc.

Os dois aliados tentaram de diversas formas derrubar ou machucar Asgeir. Quando atacavam ao mesmo

tempo, o oponente defendia um ataque e desviava de outro, dando ainda u contra-ataque. Ao atacarem em

tempos diferentes, o homem girava e defendia todas, usando seu escudo para tentar desequilibrar os rivais.

— Arrgnormor! Eu nunca havia visto alguém desviar tão facilmente de meus golpes! — Krognarr

reclamou.

Mas havia algo além do número que lhes dava vantagem: a idade. Asgeir, conforme lutava, cansava-se,

deixando seus golpes e defesas menos rápidos. Não lentos, apenas não tão rápidos quanto no começo da luta.

Talvez fosse essa a chance que Rich e o Krognarr tinham.

Os outros orcs gritavam atrás deles.

— Vão! Acabem logo com isso! — Gritava um;

— Burkomer lohk! Morra! — Berrou a mulher de armadura pesada;

— Deem-me licença! Eu quero ver! — Reclamou a outra mulher.

Talvez os gritos da "plateia" não ajudassem de verdade, mas fornecia uma pequena força moral para os

combatentes. Lutaram mais e mais, e sentiam-se em uma luta que nunca acabaria. Todos, tanto os dois lohk

quanto o orc, cansavam-se aos poucos. É claro que o quase idoso Asgeir cansava-se mais rapidamente, mas a luta

ainda estava longe de acabar.

A luta continuou feroz, até que...

— Já estou farto! Vou acabar logo com isso! — Asgeir vociferou, e, do nada, as forças dele parecem ter

aumentado.

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Krognarr tentou dar um golpe vertical, mas o inimigo desviou com mais rapidez que o normal. Com a

inércia e a força da rajada, a espada Strangnirr cravou-se no chão, e Asgeir pisou nela para dificultar a retirada.

Parecia perfeito para um golpe certeiro no orc.

Não apenas no orc, mas nele mesmo também. Rich atacou nas costas do adversário, mas este foi rápido:

com mais um giro, defendeu o ataque do jovem e mais uma vez contra-atacou. Foi tão rápido e inesperado que

Richard apenas teve tempo de desviar por muito pouco. Ele então viu uma brecha e atacou novamente, mas foi

fraco demais e apenas arranhou a armadura resistente de Asgeir.

Sim, Rich foi treinado para combater de espada e escudo, e era isso que ele tinha em mãos agora. Porém,

não era o seu escudo, o escudo de seu pai. Este era melhor de movimentar e maior, além de permitir formas

melhores de atacar e defender. Estava acostumado com aquele, mas o escudo que possuía, mesmo tendo as

extremidades afiadas (como o de seu pai também), era mais pesado que devia e, além disso, era desconfortável

de prender no braço. Tudo fazia com que o uso do escudo fosse mais difícil para Richard.

Asgeir aproveitou a falta de força no golpe da espada do adversário e agarrou o braço do jovem. Com um

golpe de queda, projetou o jovem no chão e tentou fincar a espada no coração de Rich. O aparentemente

derrotado rolou para longe, salvando sua vida. Krognarr ainda estava tentando arrancar sua espada do chão, mas

havia algo mais importante a se preocupar agora: a sua vida. O chefe dos bandidos atacou e o orc desviou por

pouco: para isso, largou a espada. Asgeir aproveitou a falta de defesa do oponente e deu um chute lateral na

perna dele, quebrando a postura do orcrrim e fazendo-o cair com um dos joelhos no chão. Pronto para receber

um golpe final.

Mas algo aconteceu que nem um nem o outro esperavam.

Richard não aceitou a derrota. Não podia, de jeito nenhum, perder. Se perdesse aluta, mesmo se não

morresse, ia perder um poderoso aliado, além de que não provar que conseguiria atravessar os obstáculos que

viriam adiante. E, é claro, não conseguiria chegar ao objetivo: salvar sua amada Isabel. Ele ficou furioso. Tanto que

correu em direção ao inimigo e o empurrou violentamente com o escudo. Asgeir não esperava que o jovem fosse

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tão rápido. O golpe que arrancaria o pescoço do orc foi desviado, fazendo-o se tornar apenas um corte leve no

braço.

Foi uma reviravolta que fez o homem de meia-idade cair e rolar no chão, mas levantou-se rapidamente.

Talvez não tão rapidamente para defender o próximo ataque de Rich com precisão, pois perdeu o equilíbrio mais

uma vez.

Richard não era mais o mesmo que alguns segundos atrás. O jovem homem de cabelos loiros que antes

estava tão cauteloso agora atacava ferozmente. Asgeir defendia, mas já não estava tão forte quanto antes para

contra-atacar de maneira precisa. Rich atacou mais e mais, até o ponto de conseguir desferir um golpe na perna

do adversário. Este caiu de joelhos.

O jovem preparou mais um golpe.

— Por favor! — O bandido moribundo implorou — Misericórdia!

Richard deu um passo para trás e, com olhos ferozes, respondeu:

— Eu terei com sua vida. Mas apenas com a vida. Os orcs que você escravizou por tantos meses decidirão

o que fazer em seguida. — Proclamou Rich, e deu um golpe em uma área pouco protegida da armadura do

homem. Isso o fez desmaiar, mas não morrer: ele ainda podia viver se fosse tratado.

— Larmeqr, Richr. Isso foi impressionante. — Agradeceu Krognarr.

Ironicamente, até mesmo o próprio Richard se surpreendeu do que havia feito.

O orc pegou sua espada, a limpou e a prendeu em suas costas. Foi para o lado do amigo e observou o

inimigo abatido diante dele.

— Finalmente acabou. Mal posso acreditar que derrotamos esse homem. Trabalhar aqui foi um pesadelo

para mim e todos os 22 orcs capturados de minha aldeia. Em apenas uma semana que fiquei preso na masmorra

antes de ser interrogado e você me salvar, esses burkomer mataram a maioria de nós. É tão bom ver algo assim —

Krognarr agora falava com uma voz mais triste, como se fosse chorar —, finalmente poderei ser livre novamente!

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Ele sorriu. Rich sorriu de volta. Orcs tinham sentimentos que pareciam ser tão fortes quanto dos

humanos...

Mas então o jovem lembrou-se de algo: o local onde os outros orcs estavam presos. Como iria libertá-los?

— Procure por alguma porta que passamos e não vimos! — Disse um orc.

Richard começou a percorrer o corredor na direção de onde vieram. Em um certo momento, à esquerda,

viu uma abertura na parede: era uma entrada secreta que estava aberta! Entrou no compartimento escuro e

puxou uma pequena alavanca: era a que fazia a porta da sala dos orcs se abrir.

Voltou para lá e viu todos os orcrrims agora reunidos em volta de Asgeir desmaiado.

— Então... — Rich começou a falar — O que vocês irão fazer com ele? O matarão, como prometeram-se

desde que foram escravizados?

Todos olharam para o jovem. Logo depois, abaixaram a cabeça, menos o próprio Krognarr, que se

aproximou de Richard e falou:

— Vamos poupá-lo. Não iremos nos rebaixar ao nível de alguém tão bárbaro.

— Mas... Ele matou vários de vocês!

— Orcs não guardam mágoas. Isso é passado. — Denotou.

— Então o que você farão com ele?

— Vamos apenas estancar os sangramentos e deixá-lo aqui. Sabemos que há vários batedores desses

bandidos lá fora, que, quando voltarem, verão o que aconteceu com o mestre. — O orc deu um sorriso — Se ele

morrer ou não, dependerá de sua sorte.

— Vamos logo com isso! — Disse a orc de armadura pesada com pressa — Quero respirar ar puro de uma

vez!

Enquanto os orcs cuidavam de Asgeir (não era necessariamente "cuidar", mas sim "evitar a morte"), Rich

aproveitou para procurar sua mochila. Entrou na sala secreta do chefe dos bandidos — que antes estava muito

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escuro — e acendeu um tocha, iluminando o ambiente. Havia uma cama, baús e uma mesa, além de armários e

uma pequena estante de livros. Olhou em volta e viu vários objetos que certamente haviam sido pilhados, mas

não viu sua mochila. Então abriu o baú e achou algo que fez seus olhos brilharem: um grande saco cheio de

moedas de ouro e objetos valiosos!

Certamente era ouro roubado ou extorquido. Rich pegou uma bolsa que achou e enfiou várias moedas lá,

para levá-las em sua jornada. Encheu tanto que ficou pesada, e não havia esvaziado sequer um terço do baú.

Após fazer a pequena pilhagem, olhou o que havia na mesa de Asgeir. Observou que nela havia um livro fechado

com uma página marcada, o qual Richard leu "O monstro Tidevann" no título. Além disso, viu um mapa aberto.

Era o mapa dos Vales da Lava Negra.

"É para onde estou indo!", pensou Richard. Olhou mais atentamente e, quando deu um passo para olhar

mais de perto, chutou algo embaixo da mesa: era a sua mochila!

Pegou-a e viu que realmente era a sua. Era feita de couro e tecido, costurada por sua mãe. Usou aquela

mochila para várias coisas em sua infância: desde levar materiais para a escola de Rarstead até guardar provisões

para treinamento da guarda real em bosques e florestas. Olhou dentro da mochila e viu tudo o que havia

guardado em perfeito estado: seus alimentos, equipamentos, remédios e, para a alegria do jovem, sua poção.

Pegou o mapa e o saco de dinheiro e colocou-os na mochila. Um dos orcs entrou na sala e viu o baú

aberto.

— Quantas moedas! Tanurrnok! Podemos pegar algumas para nós! — Disse.

— Podem pegar quantas quiserem — Richard sugeriu.

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Capítulo 5

Vale obscuro

Já fora da mina (com todos carregados de ouro e outras utilidades achadas lá), os orcs estavam prontos

para partir novamente para a terra natal dos orcrrims.

— Senhor Richard Lionfist — um dos orcs começou a discursar —, você provou ser um komerlohk, um

lohk honrado. Você estará para sempre em nossas memórias como alguém que salvou o povo de Traknikkazur,

mesmo que apenas seis. Pegue isso para você. — O orc deu para o jovem uma pedra rúnica com um símbolo

desconhecido gravado nela e, o mais perceptível, uma presa cravada nela — Isso é a Simmgnat, uma pedra que só

pode ser entregada para heróis orcrrims e grandes komer lohk. Se apresentá-la para qualquer vila ou grupo orc,

estes lhe respeitarão e confiarão. E, mais uma vez, larmeqr, obrigado. São raros os lohk como você.

— Com sua licença, Barnet — disse Krognarr —, eu gostaria de pedir uma coisa a esse jovem.

— Pode falar, gnarr Krognarr.

— Richr, eu gostaria de lhe acompanhar em sua aventura.

— É Rich! — Disse o jovem — Mas, espere... o que você pediu?

— Você salvou minha vida quando eu estava prestes a ser executado, e depois me salvou novamente

quando Asgeir estava prestes a me matar. Quero lhe retribuir seguindo-o e protegendo-o em sua jornada!

Conheço os vales à frente, serei muito útil.

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— Eu... — Richard admirou a determinação do orc — Mas você não quer voltar à sua terra natal?

Krognarr receou-se, mas logo concluiu:

— Seria muito pior eu deixar meu salvador andar sozinho nessas terras perigosas do que não voltar ao

meu povo.

— Está bem, eu aceito.

Lohk e orcrrim apertaram-se as mãos. Dois grandes amigos!

— Vamos indo, então. Adeus, Krognarr. — Disse outro orc.

— Adeus, garl parthinux! Um dia nos veremos novamente, nesse mundo ou no outro!

A mulher de voz adolescente olhou para Rich e gritou:

— Adeus, Richard! Venha nos visitar algum dia!

Rich abanou o braço de volta em despedida. Krognarr, por sua vez, colocou o punho fechado no peito e se

curvou levemente. Era o sinal de "despedida de honra" dos orcs.

Ao ver o pequeno grupo de orcrrims sumindo de vista na floresta, o jovem e seu amigo deram

continuidade à jornada para as terras do além. Como agora portavam um mapa dos vales da Lava Negra, seria

mais fácil atravessá-la. Andaram por horam para o nordeste até chegarem a um terreno rochoso.

— Aqui estamos — anunciou o orc —, na Lava Negra. É um grande e perigoso local, Richr, portanto, não

baixe a guarda. Nunca!

— O que há de tão perigoso? — perguntou Richard.

— Há muitos grupos de bandidos vivendo por perto, além de muitos mistérios envolverem essas terras. É

aqui que dizem ser o local de cultos demoníacos por parte de grupos adoradores de seres sobrenaturais!

Prantoker'si tu, derr tummark garl si'vizzar! — Ao ver que o jovem não entendeu essas últimas palavras, ele

traduziu: — Tenha cuidado, ou eles terão seu sangue.

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Ambos andaram por uma trilha de caminho acidentado. Eram gigantescas montanhas e encostas rochosas

que pareciam estar lá há milhões de anos. Era possível ver muitas cavernas nas montanhas, que possivelmente

abrigavam animais, monstros e até grupos inteiros de pessoas. O caminho muitas vezes ficou bloqueado por

grandes pedras que caíam, e os dois tiveram muitas vezes que desviar usando outra trilha, assim como Rich fez

antes de se encontrar com Anakira.

Se não fosse pelo precioso mapa, o jovem e o orc já teriam se perdido. O terreno era sempre muito

invariável, fazendo um local ser muito parecido com o outro: era isso o que fazia os dois amigos quase se

perderem o tempo todo. Os únicos pontos de referência eram as trilhas e algumas montanhas distintas

identificadas no mapa.

Depois de árduas horas andando, resolveram descansar por alguns minutos. Já era metade da tarde, e

Richard mal podia acreditar que na manhã do mesmo dia ele lutara contra um gigantesco cão de três cabeças e

seis patas e, depois, invadido uma mina e matado vários bandidos. Nunca havia tido um dia tão interessante em

sua vida!

Após descansarem satisfatoriamente, continuaram a caminhada. Andaram por mais duas horas inteiras.

Era um tanto difícil e desconfortável andar, pois não havia muita terra mas, sim, pedras, rochas e pedregulhos. A

caminhada parecia ficar cada vez mais difícil, até o momento que foram obrigados à subir um morro: ficou pior. A

subida era íngreme, e foi mais uma escalada do que uma caminhada. Ao chegarem à parte mais alta, aonde a

trilha continuava, à direita havia uma furna, onde ouviram um sussurro sinistro.

— Cuidado, Richr! — Cochichou Krognarr — Provavelmente é o lar de alguma criatura! Prepare suas

armas!

— É Rich!

Nesse momento, um monstro saiu da escuridão e veio ao encontro dos cavaleiros. Era algo humanoide

com muitos pelos e olhos ameaçadores: era um troll.

Trolls são criaturas comuns em grandes montanhas. Lembram grandes macacos, mas andam quase eretos

como humanos. Tem quase a altura de um homem, pelos de cor preta, marrom ou avermelhada, pequenos olhos

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e uma boca com grandes dentes, que, ao morderem um homem, podem passar muitas doenças. Mas o maior

perigo desses monstros não são os dentes: são as garras. Longas e afiadas, cortam a carne como se fosse

manteiga e também podem conter doenças.

Essas criaturas são grandes problemas para o homem, pois atacam viajantes e algumas vezes matam o

gado de fazendeiros. São constantemente caçados e, mesmo assim, se reproduzem rapidamente em seus habitats

naturais. São onívoros e, longe dos humanos, sua dieta se baseia em raízes e animais pequenos, mas gostam de

caçar cervos e outros grandes mamíferos. Quando ameaçados, passam para uma postura completamente hostil:

avançam sem controle com suas garras.

Rich nunca havia visto um mas, assim como sabia dos orcs pelos livros que lera, também havia lido sobre

trolls. Lera sobre histórias de vilarejos inteiros destruídos por grupos de trolls famintos procurando por comida, e

por causa desse fato (e por outros) que esses monstros são tão temidos. Mas havia um jeito fácil de lidar com

essas criaturas: fogo. Os pelos do animal contém uma substância inflamável que, ao atear fogo, se transformará

literalmente em uma grande bola de fogo sem controle que, se não for rapidamente controlado e morto,

espalhará o fogo por onde passar. Essas criaturas sabem muito bem disso, e por isso tem muito medo de

qualquer chama que veem.

Mas, naquele momento, não havia tempo para pensar em fogo. O troll se sentiu ameaçado com a

presença dos dois e avançou contra eles.

— Evite ser arranhado, Krognarr! — Alertou o jovem.

Mas o orc mal teve tempo de olhar para o lado: A criatura era rápida e soltava um grito horroroso que

parecia o rugido de um gorila em agonia. Desviou dos golpes e defendeu os ataques diretos da fera com

dificuldade, pois estava acostumado a lutar contra outras espadas, e não contra garras.

Em um momento o troll avançou com tanta fúria que se desequilibrou. Krognarr conseguiu desviar, Rich

aproveitou o curto momento de vulnerabilidade do bichano para dar um golpe.

Foi apenas um, mas bem calculado e, consequentemente, fatal: acertou a cabeça do monstro em um

ponto sem osso, acertando o cérebro e matando-a.

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Richard mal podia imaginar que usaria a espada de seu pai para matar um troll. Com essa curta luta, os

dois perceberam que estavam em seus limites: estava escurecendo e eles estavam exaustos da jornada. Mas

havia a caverna em que o troll se abrigava, o que podia servir para descansarem. Havia madeira de árvores por

perto e, por sorte, todas eram secas, o que facilitaria o acendimento de uma fogueira. Mas havia mais um fato

que piorava um pouco a situação: a fome. Os suprimentos alimentares de Rich eram preciosos, e seria uma pena

gastar mais deles agora.

— Por que nós não comemos a carne do troll? — Sugeriu o orc.

— Tem certeza? — O jovem ficou em dúvida, pois não sabia se a carne daquele monstro era boa de

comer.

— Carne de troll é um aperitivo para os orcrrims. Lingumak'rar! É saborosa!

Richard aceitou, mesmo ainda indeciso. Levaram o cadáver para dentro. Enquanto Krognarr preparava a

carne da criatura, o outro preparava a fogueira. Este, ao acender, olhou direito para o lugar em que estava: a

caverna não era grande, era apenas uma "abertura" nas rochas. Com a iluminação recém adquirida, percebeu que

haviam muitos ossos de animais selvagens no chão, além de algumas roupas rasgadas. Era sinal de que o monstro

já vivia ali há um bom tempo, e tinha até feito vítimas humanas. Havia uma possibilidade assustadora de haver

mais um troll morando ali e que logo voltaria, mas agora eles tinham fogo. Rich tirou essas preocupações da

mente, pois queria relaxar pelo menos até o amanhecer.

Isso se transformou em apenas um desejo passageiro quando, certo momento, ele olhou para o grande

braço do orc e percebeu algo que temera na luta contra a fera:

— Krognarr, você foi ferido pelo troll! Precisa ser tratado!

— Isso? — Ele olhou para o corte sangrando — Não seja impulsivo, Richr. É apenas um corte, e irá se

curar com o tempo.

— As garras de um troll podem transmitir doenças perigosíssimas! Você precisa de remédios!

— Ficarei bem, amigo.

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— Não, não ficará! A probabilidade de você ficar seriamente doente é gigantes-...

— Se eu ficar doente, que seja. — O orc parecia se importar mais com o orgulho de sua força do que

consigo mesmo — Eu irei superar qualquer coisa eu aconteça comigo, Richr. Eu prometo. Salonux'lar.

— É Rich! E tome — o jovem mostrou o frasco de poção de saúde —, isso irá curá-lo. Não tenho os

medicamentos certos.

— Não posso aceitar! — O orc ficou nervoso, mas controlou as emoções — Essa poção é importantíssima,

e não é necessário para um simples corte feito por uma garra de troll! Krak'tirlumpnek!

O jovem, então, cedeu. Viu que, por algum motivo, Krognarr nunca iria aceitar tratamento. Decidiu

arriscar dessa vez, mas sabia que as chances de ocorrer algo no corpo do orcrrim era grande, até maior que 80%.

Rich tentou afastar esse pensamento da cabeça.

Enquanto a carne ardia nas chamas, os dois aventureiros discutiram algumas coisas:

— Diga-me, Krognarr, por que está tão longe de sua terra natal?

— Krainir Lihrkoth, ou apenas Krainir, como mais é chamada, está em um forte pressão por causa da falta

de territórios causada pelos reinos vizinhos, Richr. Está difícil de caçar e estabelecer vilas, bases e até

acampamentos! Sarmic'rarburkomerlohk...

Rich sabia que a palavra "burkomer" significava algo como "desonrados". Portanto, viu que a causa dos

problemas eram os humanos que não gostavam dos orcrrims. Após um curto mas reflexivo intervalo, o orc voltou

a falar:

— Eu e mais 22 garl parthinux viemos para explorar e completar os mapas que tínhamos. Buscávamos o

reino de Rarstead para comprar e vender mercadorias.

— Vocês chagaram perto — Rich disse —, andando um pouco mais para o sul vocês chegariam à minha

cidade natal.

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— Você nasceu em Rarstead? — O orc se surpreendeu um pouco — Eu soube que lá são treinados

grandes cavaleiros reais.

— E é verdade. O rei gosta de mostrar seu poder.

— Eu soube que esse homem é muito rígido... Tínhamos medo de que ele não nos recebesse de braços

abertos.

— Quem, Susanno IV? Ele é um tanto irritado, mas, contudo, é um bom homem. Não sei se iria deixar

vocês entrarem com tanta hospitalidade, mas também não atacaria. — Richard lembrou-se de que o rei havia sido

muito egoísta e arrogante ao falar com ele, mas não quis assustar o orc.

— Conte-me mais sobre você agora, senhor Richard — falou Krognarr, curioso. Mal lembrava o

sobrenome do amigo.

— Eu não sou nenhuma pessoa especial... Tenho 22 anos, filho do cavaleiro real Alven Lionfist e da artesã

Susen Greenchord Lionfist. Eu trabalho, quero dizer, trabalhava para o rei. Acho que é só isso...

— Seu pai foi um gnarr, um guerreiro, então?

— Sim, mas morreu em combate há dez anos. Minha mãe também já faleceu... — Ele baixou a voz e olhou

para o nada, mas logo recompôs-se. — Bem, não gosto de lembrar disso, mas estou tentando superar até hoje.

— É realmente uma pena, Richr. Sinto muito por isso... — O orc colocou o punho no peito, de uma forma

que Richard conseguiu identificar como um sinal de respeito e pêsame. Sussurrou em tom de voz baixo palavras

orcrrims que soavam como orações: — Dagnarr, salonux'tir nat aux charak prantnur ar drugnux lus banarr komer

minarr lud banirr komer minirr. Larmeqr.

— Posso saber o que você disse? — Perguntou Rich, muito curioso.

— Eu disse: "Dagnarr, eu confio em você para salvar o espírito desse pai honrado e mãe honrada,

obrigado". Dagnarr é bondoso com os komer.

— Obrigado, mas acho que não precisava...

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Krognarrr fingiu que não ouviu essa frase do jovem. Para os orcs, vidas não podiam ser tratadas apenas

como fardo.

— Me fale uma coisa agora, Richr: Por que você quer ir às terras do norte?

— O demônio Sarobou sequestrou a mulher que amo. Eu quero resgatá-la, nem que custe minha vida.

O orc assustou-se brevemente, mas manteve sua coragem.

— Entendo. Uma mulher sempre é um bom motivo para arriscarmos a vida. Isso pode purificar a alma.

Rich sorriu e, assim que recordou de algumas coisas que havia ouvido, perguntou:

— O que você sabe sobre Sarobou?

— Nós, Orcrrims, o odiamos. Ele já destruiu muitas tribos e matou muitos de nós com suas malditas

criaturas. Mas sabe-se que ele pode ter alguma fraqueza...

— Irei descobri-la, então.

Krognarr ficou impressionado com a determinação do jovem.

Após comerem (a carne realmente era boa, com o gosto parecido com o de carne de porco), os dois

dormiram no chão: Rich em um pequeno saco de dormir que trouxera na mochila e o orc no chão mesmo. Ambos

com suas armas próximas, caso fossem surpreendidos no meio da noite.

Durante o sono, Rich teve alguns sonhos. Na verdade, não sabia se eram sonhos ou pesadelos, mas

pequenos capítulos de seu passado apareceram em sua mente. Enquanto passava por momentos bons de sua

vida, como o dia em que conheceu Isabel, também havia momentos de medo e depressão. Realmente, era uma

mistura de emoções. Algo que era difícil de explicar.

"Qual é o seu nome?", ouviu-se a voz de Isabel, vinda de muitos anos atrás.

"Richard, vou lhe contar uma notícia muito ruim. Sinto muito. É sobre seu pai.", era agora a voz de um

guarda de Rarstead.

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"Richard, meu filho, hoje estou mais fraca do que o normal... desculpe, querido, mas terá que cozinhar

sua comida hoje...", sussurrou a voz fraca de sua mãe na cama.

"Hoje, mais um de nossos filhos será entregue para Samart. Que sua alma seja poupada e seu corpo,

purificado", disse em voz alta o sacerdote, agora anos antes.

"Mate-o usando sua coragem!", Anakira gritou.

Mesmo dormindo e perdido nos próprios pensamentos involuntários, Rich respirava pesadamente.

Até seu sono ser brevemente interrompido por uma leve picada no pescoço.

Abriu os olhos por menos de dois segundos e viu uma figura humana perto dele. Então, adormeceu

novamente.

Ficou desmaiado por algum tempo. Mas o intervalo que passara desacordado não era mais importante:

Ao acordar, Richard viu-se em uma pequena sala que cheirava a esterco. Estava com as mãos atadas nas costas e

sentado em um chão úmido e asqueroso. Ao seu lado estava Krognarr, já acordado.

— Onde estamos? — Perguntou o jovem, que já estava quase desesperado.

— Em uma aldeia dos Kimanji nessas montanhas. Krak'maptirlumpnek. Eles nos trouxeram enquanto

dormíamos... — Ele forçou as amarras para livrar-se delas, em vão. — Não sei muito quem eles são, mas não

estou gostando da ideia de nos prenderem.

— Uma vez eu li sobre essas montanhas. — Rich recordou-se — Há muitas tribos de nativos daqui que

fazem rituais com sacrifícios de animais e até humanos... É por isso que estou preocupado!

— Se formos mesmo sacrifícios, não podemos ficar parados. Temos que agir!

Richard se esforçou, mas não conseguiu se desfazer das cordas. A sala onde se encontravam estava

completamente vazia. Apenas uma tocha iluminava levemente o local, e havia uma única porta de madeira,

aparentemente trancada. Mas o que realmente deixava o local macabro eram os inúmeros ossos no chão, desde

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costelas e ossos da perna até caveiras. Quantos haviam passado por ali antes de Richard e Krognarr? O jovem

sequer queria pensar nisso.

Após longos minutos de esforço em vão, a porta se abre, e dois homens com vestimentas tribais entram.

Estavam muito sujos e cheiravam mal. Após se comunicarem em uma língua estranha, os dois agarraram Richard.

— Parem!! — Ele gritou, sem poder fazer nada. Debateu-se, mas um dos homens deu um forte soco no

fígado do jovem, que, com a dor, calou-se.

— Não se preocupe-se, Richr. Tirarei nós dois daqui. Eu prometo.

E o agredido respondeu:

— É... Rich!...

Os homens saíram e fecharam a porta, deixando apenas o orc sozinho na sala.

Silêncio. Solidão. Paz. Era isso o que Krognarr precisava.

Olhou para baixo e fechou os olhos. Só poderia usar "aquele" dom se estivesse sozinho. Falou para si

mesmo palavras místicas na língua orcrrim, e contraiu os braços. Um suor denso evaporou de seu corpo.

Enquanto isso, Richard olhava para os lados enquanto era levado pelos dois nativos. Estavam em um

complexo de cavernas — aparentemente, um enorme complexo de cavernas —, com salas e corredores largos e

espaçosos. Todos tinham várias decorações de ossos e animais mortos. As paredes apresentavam pinturas

ancestrais. Haviam homens, mulheres e crianças em todo lugar, fazendo coisas cotidianas, como caminhar de um

lugar para o outro e conversar. Falavam uma língua até então inédita para ele, e suas escritas, vistas em letreiros

e grafites nas paredes cavernosas, também eram desconhecidas.

Rich parecia chamar atenção: todos os nativos olhavam para ele com um olhar de reprovação, mas não

chegavam perto. O porquê daqueles olhares era algo que o jovem nem gostaria de saber. Nada podia fazer:

Estava sem sua mochila e armas, obviamente.

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Finalmente, chegaram ao que parecia ser um gigantesco altar. Na verdade, Um altar comum não chegava

aos pés disso: era uma enorme câmara. No topo havia uma abertura para o céu, e diretamente abaixo dela tinha

uma gigantesca cratera redonda, que ocupava a maior parte do salão. Havia um calor fora do comum naquele

lugar: além das dezenas de pessoas ali reunidas, havia, no fundo da cavidade redonda, lava pura!

Aquilo parecia ser um pequeno vulcão. Um local aparentemente ótimo para um ritual.

Havia uma plataforma feita de rochas e madeira no centro do círculo, com uma estreita ponte dando

acesso à ela. Por ali o jovem passou, e na plataforma ele foi deixado.

"É o fim", pensou Rich. Não podia fazer nada além de esperar que o sacrificassem.

A plateia ao mesmo tempo vaiava e gritava palavras estranhas para ele. Parecia que estavam vendo um

espetáculo.

Então um senhor muito velho, vestido também como os nativos, se aproximou-se do jovem. Com a

apresentação do homem, a plateia vibrou de empolgação. Provavelmente, aquele homem era o chefe da tribo.

Estava usando muitos enfeites pelo corpo e também um tipo de chapéu de chamã.

Ele falou palavras nessa língua bizarra para Richard, e então se comunicou de outra forma:

— Parece que você não entende nossa linguagem ancestral, huum? Talvez esse dialeto chulo funcione. —

O idoso estava falando alto, mas não o suficiente para a plateia escutar — Você é um homem de muito azar. Foi

selecionado por Krikkrir para se juntar ao mundo dos que já foram para alimentar nossos antepassados!

— Me solte! — Rich bradou.

— Então essa é a sua língua. Tenho pena de você! — O velho colocou a mão no queixo e sorriu — Seja

educado, impuro. Será rápido.

— Por favor! Eu faço qualquer coisa!! — O jovem implorou — Mas me solte! Eu não posso morrer aqui,

eu fiz uma promessa! Há mais vidas em jogo!

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— Cale-se!! — O chefe tribal fez um sinal com a mão e uma forte ventania atingiu o corpo de Rich e

formou um tipo de força de impacto que instantaneamente fez todas as centenas de pessoas da plateia pararem

de falar. A lava embaixo deles se agitou ferozmente, como se estivesse reagindo aos poderes sobrenaturais do

homem — Você não tem o direito de falar aqui!

Então o chefe saiu da plataforma. Mas antes dele atravessar totalmente a ponte de acesso, Rich gritou:

— Espere! O que vocês vão fazer!?

O velho virou-se e falou:

— Simples. Essa é a cerimônia de Tirik'kaptuarMinatec. Essa plataforma onde você está é suspensa por

quatro cordas, e os guerreiros da tribo irão tentar rompê-las usando flechas. Boa diversão para você.

O jovem olhou em volta, e viu que o que o velho falara não descrevia corretamente como aquilo

funcionava.

Haviam quatro pilares diagonais, feitos de rochas e madeira que seguravam a plataforma no lugar. Estes,

por sua vez, eram segurados pelas cordas que o chefe mencionara. As cordas sustentavam as vigas que

sustentavam a plataforma. Ou seja, se a corda de um pilas se romper, este cairia. Richard então entendeu: Era

daquele jeito para os guerreiros da tribo atirarem para baixo, na direção do vulcão, evitando que ferissem uns aos

outros, a plateia e a pessoa que seria sacrificada — no caso, Rich.

"Tenho que fazer algo", pensou ele. A "cerimônia" estava para começar, e o jovem Lionfist, impotente,

nada podia fazer além de esperar. A multidão que estava lá como plateia ainda conversava, porém, muito menos

intensamente que antes. Os guerreiros prepararam seus arcos e suas flechas. Parecia que tudo estava perdido.

Rich caminhara até ali, derrotara um enorme cão e derrotara um líder de bandidos... tudo para, no final, morrer

sendo sacrificado?

Os guerreiros tencionaram seus arcos. Iriam começar a atirar.

Mas, um segundo antes do primeiro homem lançar sua flecha, um altíssimo grito de agonia obrigou a

plateia a calar-se. Depois desse silencio repentino, o único ruído que se ouviu foi a flecha errando a corda e

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cravando-se nas pedras pouco acima da lava. Quem havia gritado? O chefe levantou-se do trono onde estava

sentado, pois queria saber o que estava acontecendo.

Outro grito. Dessa vez de outra pessoa, e o som estava mais alto e claro.

O líder dos nativos começou a falar palavras nervosas para os guardas que estavam próximos. Outro grito

foi ouvido. E, pouco depois, mais outro. Cada vez mais alto, cada vez mais perturbador. Chegou um momento que

deu para saber exatamente de onde os gritos vinham: do local onde Rich havia entrado.

Dois guardas próximos à passagem para o local dos gritos saíram por ela para investigar o que estava

acontecendo: após breves sons de batalha, ouviu-se um grito e um gemido, provavelmente desses que haviam

ido investigar.

Então, finalmente o autor da chacina estava entrando pela abertura que dava acesso à sala dos vulcões.

Um homem alto, forte, com um curto cabelo em moicano, e pele esverdeada: era Krognarr. Mas um pouco

diferente dessa vez: havia sangue por todo o seu corpo, mas não estava ferido. Mesmo se tivesse matado dezenas

de pessoas, não faria sentido ter tanto sangue no corpo. Parecia que havia tomado um banho vermelho.

Mas havia mais uma pergunta não respondida: como ele havia se libertado, saído da sala, e mais: como o

orc havia recuperado sua espada?

Essas dúvidas não poderiam ser respondidas agora, obviamente. O orc, parecendo não se importar com o

fato de centenas de pessoas estarem olhando para ele com medo — e guardas vindo em sua direção —,

continuou indo em direção ao lado oposto da sala contornando o buraco do vulcão, eliminando

instantaneamente qualquer um que ficasse em seu caminho.

Ele estava mais rápido e aparentava estar ainda mais forte. O que havia acontecido com ele?

O chefe cansou-se de ver seus homens morrendo e gritou várias ordens. Rich não entendeu as palavras,

mas sim o significado delas: cortar de uma vez as cordas. Todos os guardas, exceto os que estavam resistindo à

fúria do orc, começaram a atirar flechas nas cordas. Três destes, inclusive, atiraram flechas em Krognarr, mas este

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se defendeu usando o escudo de madeira de um dos derrotados. Com reflexos sobrenaturais, o orcrrim matava e

defendia flechas. O que diabos havia acontecido com ele?

— Richr, krinmar'tir pramtmur'kur!! Segure firme!! — Gritou ele.

O jovem não entendeu as palavras, mas decidiu agir: tentou desesperadamente se levantar, mas a

plataforma começou a desestabilizar: um dos pilares de sustentação caiu!

Krognarr decidiu agir mais rapidamente: dessa vez, ergueu um homem que havia desarmado e jogou

contra outros três. Isso lhe deu um pouco de tempo. Tempo o suficiente para correr derrubar dois homens com

empurrões e pular na pequena ponte. Foi, então, para a plataforma ajudar seu amigo.

Enquanto o orc cortava as amarras do jovem com a Strangnirr, este perguntou:

— O que aconteceu, Krognarr?

— Salonux'auxnataiu. Não há tempo para explicar agora, Richr.

— É Rich!

Mais uma corda de suporte se rompeu, fazendo outro pilar cair.

— Ora, vejam só! — Berrou o chefe — Parece que teremos dois sacrifícios ao invés de apenas um! Vocês

não tem chance!

Os dois tinham poucos segundos para agir: mais uma corda estava se rompendo e a ponte que ligava a

plataforma caiu.

— Lohk, rápido! — Falou apressadamente o orcrrim — Pegue isso!

— Minha espada! — Richard ficou surpreso, pegando do orc a espada que fora de seu pai.

— Não há mais tempo agora! — O orc agarrou o corpo do jovem — Vou lhe jogar para a borda!

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Rich ficou extremamente confuso, mas não teve tempo de falar nada: o penúltimo pilar caiu. Com apenas

um ponto de sustentação, a plataforma começou a cair para um lado. O orc aproveitou o embalo e, com toda a

sua força, atirou o amigo na direção da borda.

Foram cerca de dois segundos. Dois segundos que certamente jamais sairiam da cabeça de Richard: ele,

atirado por um orc, aterrissou em terra firme a poucos centímetros da borda. Mas Krognarr...

O orc pegou impulso e se jogou para tentar alcançar o amigo, mas, obviamente, não havia tido o mesmo

impulso. Mas, por milagre, não caiu na lava: conseguiu pendurar-se nos rochedos. A plataforma, junto com o

último pilar, caiu na lava espatifando-se. Por sorte, o magma não respingou no orc.

Ambos, lohk e orcrrim, estavam salvos. Mas não livres dos problemas. O chefe gritou mais ordens, e,

dessa vez, ordens para seus homens matarem os inimigos de uma vez por todas.

Rich estava de pé a salvo, mas Krognarr estava se segurando nos rochedos e não havia como subir

escalando.

— Aguente firme, Krognarr! Vou conseguir uma corda! — Disse Richard.

Mas agora o problema do jovem era o número de inimigos. Com sua espada, conseguiu matar os dois

primeiros inimigos. Ele agradeceu aos deuses pelo fato dos nativos não terem quase nenhuma experiência em

batalhas: eram ruins de luta, sendo derrotados sem dificuldades.

Logo, o jovem aproveitou-se de mais uma coisa: pegou o escudo do primeiro homem que matou. Era de

madeira e bem leve, mas seria o suficiente contra os nativos. Com isso e a sua espada, seu poder agora estava

muito aumentado.

Um guerreiro veio com a espada de madeira e espinhos erguida, gritando palavras estranhas. Richard

apenas defendeu facilmente o ataque do homem e o matou. Depois, mais dois foram vítimas, e um pouco mais

adiante, três.

Vendo tantos serem mortos, os guerreiros se afastaram com medo. O medo que Rich não tinha mais

desde que recuperou a espada. Alguns até fugiram desesperados, querendo viver.

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— Ataquem, imbecis! — Gritou o velho líder, falando também essa frase na língua nativa.

Apenas dois guerreiros obedeceram. Ao ver mais esses dois subordinados morrerem sem piedade, o

chefe dialogou rapidamente com uma figura que estava escondida perto dele o tempo todo. Rich olhou para lá:

um homem muito grande e aparentemente forte, aparentemente com mais de dois metros e meio de altura,

surgiu de um banco que estava atrás do trono. Era, provavelmente, o último recurso dos nativos.

O jovem apressou-se para conseguir uma corda. Nesse momento, todos os guardas covardes estavam

fugindo por suas vidas, junto com a multidão que era a plateia. O gigante agora corria para lutar com Rich. Este

tinha alguns segundos sobrando, então amarrou a corda em uma rocha resistente e atirou a outra ponta no

buraco.

— Venha, Krognarr! — Gritou ele. O orc, então, segurou-se nela e começou a subir. Porém, demoraria um

certo tempo para ele terminar a escalada: Rich teria que lutar contra o homem gigante sozinho.

O jovem uso seus últimos segundos de tranquilidade para observar seu oponente: era muito forte

fisicamente e estava segurando uma grande clava, tão pesada, Richard acreditava, que um humano normal

sequer conseguiria tirá-la do chão.

Ao chegar a poucos metros de seu inimigo, o agigantado deu um poderoso golpe com a clava — um golpe

lento, mas perigoso —, estraçalhando o chão da caverna. Rich, mais uma vez, agradeceu mentalmente pelo

reflexo de ter desviado, dado pela sua coragem. Aquele homem não o amedrontava. Porém, era óbvio que daria

muito trabalho para derrotar.

Richard desviou de mais um golpe lento e poderoso. Além da força, o próprio alcance da clava e do braço

do homem era grande, dificultando qualquer desvio. O único modo de derrotar alguém com essas características

de combate é bem simples: executar um contra-ataque.

No momento que o titânico deu um golpe vertical, estraçalhou o chão por causa do desvio de Rich e este

usou toda a agilidade que podia usar em um único ataque para tentar contra-atacar. Mas o adversário era mais

esperto do que parecia: defendeu e, ainda por cima, deu um fortíssimo soco em Richard, que foi defendido pelo

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escudo. Entretanto, a força do homem foi descomunal o suficiente para quebrar o equipamento de defesa, além

de fazer o braço do jovem sangrar.

O "pequeno" deu uma cambalhota para trás. Seu antebraço estava sangrando por causa dos estilhaços do

escudo que o gigante causara. Agora sem defesa, seria mais difícil.

— Estou quase chegando! — Gritou Krognarr. — Gnup'maptirzuggrosh!

Ouvindo isso, Rich ficou um pouco mais interessado na luta. O gigante, porém, mudou de

comportamento: começou a correr na direção da corda. Certamente, queria impedir que Krognarr continuasse a

escalada.

Então Richard, desesperadamente, pegou um dos pedregulhos do chão — que havia se soltado com um

dos ataques do homem — e atirou-o no agigantado. Acertou em cheio: na cabeça do homem. Este cambaleou um

pouco e viu que estava agora sangrando um pouco. Isso foi o suficiente para deixá-lo muito irritado.

A ira do gigante agora voltou-se para o jovem novamente. Voltou a atacar, dessa vez perigosamente mais

rápido e forte. Isso dava a Rich uma certa chance: os golpes do inimigo estavam um pouco mais desajeitados. O

suficiente para poder tentar um outro tipo de contra-ataque.

O grande homem se preparou para dar um poderoso golpe horizontal, uma pancada que provavelmente

poderia partir uma pessoa em pedaços. O jovem Richard, dessa vez, ao invés de ir para trás, abaixou-se. A calava

passou inofensivamente, mas também perigosamente, perto da cabeça dele. O vento que isso causou balançou

os cabelos dele. Aproveitando o desequilíbrio do homem, Rich usou sua espada para dar um corte nas duas

pernas do adversário. Este caiu ajoelhado, gemendo de dor. O jovem preparou-se para dar um golpe final.

Porém, aquele gigante era diferente dos outros inimigos que Rich já enfrentara. Ao invés de render-se e

preferir uma morte rápida, ele decidiu continuar lutando, mesmo estando debilitado. Havia soltado a clava por

causa da dor do golpe que levara, mas tinha outra coisa que ele podia usar: suas mãos. Antes que Richard

pudesse demonstrar qualquer tipo de reação, o agigantado pegou no pescoço do jovem com toda a sua força,

usando apenas uma mão. Com a outra, pegou e torceu o braço do inimigo, fazendo-o soltar sua espada.

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A pressão era tanta que Rich não conseguia sequer respirar. Estava imobilizado. O ciclópico falou algumas

palavras na língua dos nativos e sorriu, feliz por provavelmente ganhar mais uma luta. Porém, esse sorriso logo se

transformou em nada mais do que um rosto morto e sem expressão quando Krognarr, que já havia escalado e

havia dado um golpe com a Strangnirr no pescoço do homem, arrancando-lhe a cabeça.

Mesmo sem cabeça, a mão do gigante continuou apertando o pescoço de Richard por cerca de dois

segundos. O jovem viu, nesse intervalo, a traqueia do homem expelindo o último ar que sobrara em seus

pulmões, enquanto sangue começava a jorrar. Então o corpo, finalmente, caiu no chão com um baque.

— Obrigado novamente, amigo. — Disse Rich, muito ofegante.

— Sempre que puder eu irei lhe ajudar, Richr.

— É Rich!

Logo depois que uma poça de sangue se formou no chão cavernoso, o chefe dos nativos, no fundo da

enorme sala, praguejou contra os dois:

— Irão se arrepender disso! Irei alimentar a raiva dos deuses atirando-os na lava! Vocês irão desejar

nunca ter saído de casa depois que eu pegá-los!

Krognarr colocou a mão no ombro de Richard e falou:

— Vamos, amigo. Não aguento mais ouvir as palavras desse...

No meio da fala do orc, algo aconteceu com seu corpo. Ele curvou-se com dor e vomitou no chão. Ele

quase caiu de joelhos, mas resistiu.

— O que houve? — Perguntou o lohk, assustado.

— Não é nada! Não há tempo para isso. Vamos logo sair daqui!

Mesmo hesitante, Rich correu junto com o orcrrim. O que diabos havia ocorrido? Primeiro, Krognarr é

solto. Depois, fica mais forte e então passa mal? Eram perguntas que o jovem listou em sua cabeça para

perguntar mais tarde.

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Guardas apareceram no caminho, mas esse não foi o maior problema, que era: para onde ficava a saída?

Decidiram seguir caminho para cima. Se tivesse um caminho no complexo de túneis que levava para cima,

os dois seguiam por ele. Derrotaram todos os guardas no caminho. Correram por vários minutos, entre aldeãos

nativos e animais. Era realmente um formigueiro de pessoas: em uma parte haviam cidadãos apenas

conversando. Em outras câmaras do complexo estavam sendo feitas cerimônias religiosas, e em outra, que

provavelmente era um "harém", estavam sendo feitas orgias.

Continuavam correndo até cansar. Estavam agora em uma área bem acima do nível dos moradores

comuns. Não havia mais guardas atrás dos dois, então eles continuaram andando. Seguiram em frente e sempre

para níveis mais altos. O que realmente chamou atenção de Richard era que agora sequer haviam civis na área em

que estavam. Parecia mais que aquele lugar do "formigueiro" havia sido devastada há muito tempo. Móveis,

tapetes, vigas de madeira, porcelanas... tudo queimado e quebrado. O que havia acontecido lá? Havia até

esqueletos, armas destruídas no chão e corpos queimados. Rich e Krognarr sabiam que tudo aquilo

provavelmente eram vestígios de uma batalha, uma guerra. Um confronto violento que ocorrera há um bom

tempo.

Enquanto andavam, o jovem percebia que o orc estava cada vez mais cansado. Respirava pesado e

dificilmente, e seus passos ficavam mais e mais lentos. Parecia doente.

— O que está acontecendo, Krognarr? — Perguntou Lionfist, preocupado. Seu amigo agora mal conseguia

caminhar.

— Vamos continuar. Krak'tirlumpnek, estou bem. Se pararmos, irão nos pegar...

— Por favor! — pediu Rich — O que está acontecendo com você? Como escapou da cela? Como

conseguiu recuperar a minha e a sua espada?

— Não importa agora. É melhor sairmos. — O orcrrim continuou andando com muito esforço. Richard

tentou ajudá-lo a andar, mas ele não quis. — O que será que aconteceu com esse lugar? São restos de uma

knarrmur, uma guerra!

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— Eu não sei, amigo. Aliás — o jovem olhou para frente e apertou os olhos: viu uma luz forte, que

provavelmente era a saída da cidade subterrânea —, nem quero saber agora. Vamos sair daqui.

Saíram pela abertura e ficaram felizes ao ver a luz do sol: era cerca de meio dia.

Mas havia algo muito estranho nessa entrada: havia dois homens mortos no chão, ambos com a garganta

cortada. Foram mortos a pouco tempo. Além disso, a mochila de Richard estava no chão, À poucos metros dos

corpos! O jovem sorriu ao ver que nela nada estava faltando. Quem havia deixado a mochila ali? Parecia que nada

mais fazia sentido.

— Já chega! — exclamou Rich, confuso e irritado ao mesmo tempo — Me explique o que aconteceu,

Krognarr!

— Richr, mesmo que eu lhe fale o que aconteceu, você ainda não entenderia...

— É Rich!

Nesse momento, os dois ouviram barulhos vindos da caverna: eram guardas furiosos.

— Não sei se consigo lutar agora, Richr... — Ele tossiu fortemente, mas, dessa vez, saiu sangue da boca

dele — Vamos fugir! Rápido!

O jovem concordou. Ambos correram mesmo sem saber exatamente para onde ir. Foram mais rápido que

puderam por um tipo de estrada feita de terra. Ainda estavam nos Vales da Lava Negra, e o terreno era rochoso e

perigoso. Estavam os dois em uma das grandes montanhas do lugar.

— São muitos. — Disse o orc.

E realmente eram: vários guerreiros, uma tropa grande. Richard e o orc continuaram correndo até

chegarem a um tipo de fenda: uma gigantesca rachadura na montanha. Eram cerca de três metros de salto para

chegar à outra ponta e centenas de queda.

— Pule primeiro! — Krognarr disse para o companheiro. Era possível chegar ao outro lado com um pulo.

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Rich pegou um grande impulso e atirou sua mochila para o outro lado para ficar mais leve. Era um salto

arriscado: três metros é uma boa distância e um pequeno erro poderia custar a vida. A queda era fatal.

Enfim, tirou todos os pensamentos negativos da mente e saltou. Pelo breve momento que foi a travessia,

ouviu o vento batendo em suas orelhas. Conseguiu alcançar, mas o pequeno pedaço de rocha onde pisou

quebrou e ele quase caiu: segurou-se na borda por pouco. Com todas as forças, Richard subiu e agora estava do

outro lado da fenda.

— Eu vou agora! — Gritou o orc. Porém, um som de rocha rachando chegou aos ouvidos dos dois. Rich

sentiu o chão tremer abaixo dele. Instintivamente, o jovem pegou a mochila que estava perto dele e levantou-se

rapidamente. O orc gritou novamente — Cuidado, Richr!

O jovem correu para fora da fenda bem a tempo: a enorme rocha em que ele estava em cima se soltou,

despencando muitos metros abaixo. A distância do salto foi de três para cerca de sete metros agora.

— Maldição! — gritou Rich enfurecido. O orc ainda estava no lado em que vários guardas nativos vinham.

E agora todos estavam parados, a poucos metros do orc, preparando-se para lutar com ele. — Venha, Krognarr!

Pule! Você é forte, eu estendo a mão para você! Acho que é possível você atravessar essa distância!

— De fato acho que eu consigo — Disse o orcrrim, simplesmente. Mas, ao invés de se preparar para pular,

ele tirou a espada das costas —, mas não irei. Richr, prometa-me que sairá desses vales vivo.

— O que você está falando!? — Clamou Richard desesperado — Venha! Vamos sair dessa juntos!

— Não. Você salvou a minha vida e a de todos os meus companheiros — ele agarrou fortemente o cabo

da Strangnirr —, e agora está na hora de eu salvar a sua, komer lohk. Esses nativos conhecem melhor as

montanhas do que nós. Mesmo se conseguíssemos fugir, eles nos alcançariam e nos matariam com maior

número. Vá sem mim, eu os seguro por enquanto.

— Não! Não irei deixar! Deixe-me lutar junto com você, então!

O orc olhou para cima. Uma brisa suave soprava, enquanto as nuvens permaneciam no céu como uma

bela paisagem. Aquecendo o coração e a mente daqueles que recebiam os raios brilhantes, o sol dava forças ao

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orc para ele continuar de pé. Respirou fundo, seu pulmão se encheu do mais puro ar. Olhou para seus inimigos,

nervosos e preparados para atacar.

— Adeus, Richard Lionfist.

Ele deu um passo para frente, surpreendendo os inimigos, e deu uma espadada à sua frente. Com um

único golpe, matou dois homens antes mesmo deles caírem no chão. Começou uma batalha brutal entre nativos e

um orc.

— Não! Parem de lutar!! — Rich não podia deixar seu amigo morrer daquele jeito. A força que usou para

berrar foi tanta que ele sequer prestou atenção em um dos inimigos, que estava preparando-se para atirar, com

seu arco, uma flecha no jovem.

Apontou e atirou. A flecha acertou o ombro de Richard, que imediatamente caiu no chão. A dor era

insuportável. A agonia, misturada com o cansaço, fez ele quase desmaiar. Fechou os olhos e apenas escutou a

batalha. Eram homens gritando, armas se batendo e corpos caindo. Após um curto tempo — que para Rich

pareceram-se vários minutos —, ele ouviu um rugido diabólico. Logo depois, muitos gritos e palavras

ininteligíveis, junto com passos de pessoas correndo. O que, aliás, estava ocorrendo?

Richard abriu um pouco os olhos depois de alguns segundos. Mesmo com a visão embaçada, não viu mais

nenhum inimigo, apenas uma figura humana na frente dele. Não exatamente humana, mesmo que parecesse.

Não era um monstro e nem um humano comum: era apenas diferente, estranho. Uma escuridão crescia aos

poucos, como se estivesse anoitecendo rapidamente. Rich então notou que não era a noite vindo: eram seus

olhos se fechando, e desmaiando. Antes que se fechassem completamente, ouviu uma voz falando:

— Venha comigo, mortal.

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Capítulo 6

A maldição dos tentáculos

Richard acordou no conforto de uma cama. Seu corpo pesava, seus olhos ardiam, sua cabeça doía. Era

como se tivesse dormido pouco. O que mais lhe chamou atenção não era o fato de estar vivo, mas sim o

ambiente: um quarto aconchegante, com velas perfumadas acesas em um lado e uma banheira para banho em

outro. Um quarto escuro e sem janela, mas confortável.

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Olhou para seu corpo, e percebeu que seu ferimento da flecha estava fechado e protegido por

bandagens. Ainda doía se tocasse, mas estava livre de infecções. Porém, era difícil de mover o braço esquerdo

com um ferimento daqueles no ombro.

É claro que uma pergunta não saía da cabeça do jovem Lionfist: quem havia o resgatado? Era realmente

um aliado? O que fez com os nativos? Lembrou-se do que havia ouvido antes de desmaiar: "Venha comigo,

mortal"... Era um deus? Um ser onipotente? Alguém... imortal?

Sem querer, cochilou novamente. Pelo cansaço que sentia, percebeu que seu corpo aguentou muito

desde que caiu no sono profundo. Ao acordar novamente, nada havia mudado, estava tudo exatamente como

quando acordou pela primeira vez. Havia cochilado por apenas alguns segundos?

Sua cabeça doía menos agora, e os ouvidos pararam de zunir. Fechou os olhos e concentrou-se em ouvir o

que estava acontecendo fora de seu quarto. Será que Krognarr estava vivo? Se estiver, aliás, mesmo se não

estiver, Rich teria um débito com o orc. Tinha a dívida de uma vida com ele.

Contudo, Richard precisava saber onde estava. Suas roupas, mochila e espada estavam em cima de uma

pequena mesa perto da cama. Mesmo com um pequeno problema para levantar devido ao ferimento, o jovem se

vestiu, colocou sua mochila e prendeu a bainha da espada no cinto. Por um breve momento, parou e pensou

como seria ótimo ter seu escudo e sua armadura. Todavia, talvez nunca mais os recuperasse.

Saiu do pequeno quarto onde descansara e seguiu por um corredor muito mal iluminado. Sentiu-se em

um castelo: as paredes eram de pedra e no chão haviam tapetes que estavam limpos. Portas fechadas pela

extensão do corredor lembrou Rich do castelo de Rarstead. Ele, para se certificar, abriu todas as portas e espiou o

que escondiam, e viu apenas quartos vazios, todos praticamente iguais ao que ele ficou. Esperava ver Krognarr

em algum deles, mas parece que sua esperança estava acabando. Sentiu uma leve pesar por não ter tido a

capacidade de salvar seu amigo. Seria triste demais saber que o orc estaria morto. Mais uma vez balançou a

cabeça e tirou os pensamentos melancólicos de sua mente: não podia nem queria pensar sobre isso agora.

Finalmente chegou ao final do corredor: uma grande porta dupla, feita de madeira, estava aberta. O

jovem entrou e viu-se em um amplo salão. Em um canto, chamas ardiam em uma lareira. Em outro, um grande

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espelho, e em outro havia uma grande estante de livros. Em frene à lareira, uma poltrona aparentemente muito

confortável descansava sobre um grande tapete oval de cor púrpura, algo digno de realeza. No meio da sala, uma

mesa de jantar, bonita e ainda mais luxuosa do que a do castelo de Rarstead, que satisfazia os nobres do reino.

Que diabos de lugar era aquele? Havia sido trazido para o palácio de um imperador?

Richard ouviu atrás de si a mesma voz da aparição que viu momentos antes de desmaiar. Uma voz grave,

que fazia soar um eco sobrenatural no salão:

— Não se assuste, Richard Lionfist.

O jovem imediatamente deu meia volta e retirou sua espada da bainha. O som que o metal fez ecoou por

toda a extensão dos corredores.

Finalmente, viu com um olhar nítido o homem que provavelmente foi o que o salvara, mas não pôde

conter o espanto.

Tinha a altura de um homem alto, mas sua cabeça parecia um polvo. Tentáculos saíam de sua face como

se fossem uma longa barba. Sua pele era roxa e seus olhos, negros como a escuridão do céu noturno encoberto.

Sua cabeça era maior do que um crânio normal e parecia não ter ossos: seu encéfalo estava caído para trás

dentro da cabeça do homem (se é que era realmente um homem). Não tinha nariz, mas dois pequenos buracos

que o permitiam respirar, e sua boca era pequena. Suas mãos tinham pequenos tentáculos ao invés de dedos, e

uma delas segurava um cachimbo. Rich olhou novamente para os olhos da criatura: negros como o fundo do mar,

mas não eram, de maneira alguma, ameaçadores.

— Não se preocupe, garoto. — Disse o estranho — Não irei lhe machucar. Não se importe com minha

aparência, pois eu sou, sim, um humano. Já fui um, pelo menos.

Richard estava sem palavras, mas o homem-polvo realmente não parecia querer machucá-lo. Embainhou

a espada de seu pai e fez a primeira pergunta que surgiu em sua cabeça, que provavelmente é a primeira que a

maioria das pessoas perguntaria:

— O que é você!?

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— Oh, me desculpe por aparecer tão subitamente. Eu sou um pouco tímido e desorganizado. Aliás,

desculpe também pela bagunça!

Rich olhou em volta: tudo estava perfeitamente organizado. Não havia bagunça nenhuma no local.

— Bagunça? — Perguntou.

— Sim, sim. Eu devia ter organizado os livros da estante em ordem alfabética. Que bagunça! É uma

vergonha eu apresentar minha casa nessa condição para uma pessoa assim!

— Senhor... — Richard logo percebeu que aquele homem tinha uma personalidade tão estranha quanto

sua aparência — Não vejo nenhuma bagunça. Eu lhe fiz uma pergunta, e você não me respondeu ainda!

— Sinto muito, jovem! Sou bagunçado demais. Meu pensamentos são bagunçados! Não recebo visitas à

muito tempo... que bagunça!

— Responda minha pergunta, por favor! — Rich controlou-se para não se irritar, assim como fez com

Anakira. — Quem, digo, o que é você?

— Certo, certo... — Ele tragou um pouco de seu cachimbo. — Meu nome é Jaccob Tidevann, e a história

sobre minha aparência é longa e salgada, além de... bagunçada. — Com essas palavras do homem, Richard

pensou: o que seria uma história "salgada"?

Logo, o jovem lembrou-se da pergunta que não deixava sua cabeça:

— O orc, Krognarr... Ele está...?

O tal Jaccob suspirou e fumou mais uma vez seu cachimbo.

— Ele está vivo, homenzinho — Rich ficou aliviado ao ouvir aquilo —, mas está muito ferido e corre risco

de vida. Se não fosse por meus conhecimentos de medicina, ele certamente estaria morto agora. — Com essas

palavras, o jovem imaginou o que havia acontecido na batalha. — Aliás, se eu tivesse demorado mais alguns

segundos, ambos de vocês estariam mortos. Eu assustei os nativos a tempo! A flecha que atingiu seu ombro,

senhor Richard, havia sido banhada em um veneno paralisante que o paralisa completamente em 2 minutos e

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mata em duas horas. Pouquíssimos sabem qual é o antídoto, e por sorte eu sou uma dessas pessoas. — Jaccob

tragou mais uma vez seu cachimbo e, depois de curtos, concluiu: — Eu realmente odeio aqueles nativos... são

tão... bagunçados...

— Muito obrigado, senhor. Krognarr irá se recuperar? — Richard perguntou, o mais educadamente

possível.

— Ele está em uma situação bagunçada, mas acredito que ele estará inteiramente saudável em poucos

dias. Aquele Orcrrim sofreu ferimentos de armas cortantes, mas o mais preocupante foi a doença que ele

contraiu.

— Uma... doença?

— Mal de espinhos, como se conhece pela medicina. Uma doença que é transmitida por garras de troll

contaminadas. — Rich lembrou-se do ferimento que o orc sofrera por causa do troll. — A doença tem esse nome

porque o infectado, após algumas horas, sente uma dor terrível no abdômen, fazendo-o cuspir sangue e perder

suas forças. Pode matar depois de algumas horas... — Lionfist ficou muito agradecido. Mais alguém havia salvo

sua vida. — Venha, sente-se. — Jaccob sentou-se na grande mesa, e Rich também.

O homem-polvo ofereceu chá, e o jovem aceitou, pois estava com sede. Também havia comida, e um

pequeno banquete começou.

— Por quanto tempo fiquei desmaiado? — Perguntou, desconfiando da fome que sentia.

— Dois dias. Seu amigo orc ficará em repouso por mais uns três.

Mais três dias. Ele não pode se dar ao luxo esperar todo esse tempo. Isabel poderia estar sendo torturada

pelo demônio Sarobou, ou sofrendo sozinha em uma cela escura, ou servindo de escrava. Talvez até perto da

morte...

— Aliás, senhor Jaccob — Perguntou, mordendo uma grande coxa de frango —, por que você nos salvou?

Os nativos podiam ter-lhe matado. Qual foi o motivo do senhor arriscar a vida?

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O homem-polvo ajeitou as roupas, alisou sua barba de tentáculos e fumou mais uma vez seu cachimbo.

Em seguida, afirmou:

— Acho que sua pergunta não precisa ser respondida agora, Richard Lionfist.

— Posso pelo menos saber como você sabe meu nome? Por que você tem essa aparência, aliás?

Jaccob incomodou-se um pouco com a pergunta. Pegou dois de seus tentáculos fez um pequeno nó com

eles, e fez a mesma coisa com outros dois. Parecia estar um pouco ansioso ou nervoso.

— Me desculpe, garoto. Ultimamente minha mente está bagunçada, e eu não recebo visitas

frequentemente. Por que não ouve minha história?

"Por que não?", Rich pensou. Ainda precisava recuperar as forças comendo, e estava muito curioso sobre

o que era aquele homem. Concordou com a cabeça enquanto comia um bolinho de carne e ouviu atentamente.

— Nasci de uma família nobre nas cidades portuárias do leste, e, diferentemente do que você deve estar

pensando, eu era um humano normal como você. Meu pai era um importante governador, mas minha mãe eu

nunca conheci, pois morreu poucos dias após meu nascimento. Era a época de caça aos tesouros, e eu fiquei

fascinado pelos segredos do mar, algo que meu pai não gostava. Foi uma época agitada: dezenas de aventureiros

zarpavam em seus barcos quase diariamente para procurar um famoso tesouro amaldiçoado, o Cristal Negro.

Muitos que iam nunca mais voltavam, mas isso parecia até atrair ainda mais aventureiros buscando pelo maldito

Cristal Negro, mas eu queria algo diferente. Quando adolescente, eu fugia de casa apenas para ir na biblioteca do

reino ler livros sobre as lendas das águas. Descobri, então, sobre uma criatura dos mares que matava centenas de

pescadores todos os anos: o grande Tibarnuk.

— Tibarnuk? O que é? — Perguntou Richard, bebendo um copo de vinho branco.

— O temível polvo gigante. Ninguém nunca conseguiu sequer feri-lo. Ao chegar na minha fase adulta,

enganava meu pai e familiares dizendo que ia pescar. Eu, então, junto com meu amigo Henri, navegávamos a

bordo de nosso barco para caçar o temível monstro.

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— Apenas dois homens caçando um monstro que já matou centenas de pessoas? É suicídio! — Assustou-

se Rich, ainda comendo — Mas porque você queria matar o Tibarnuk? Reconhecimento?

Jaccob continuava dando nós em sua barba feita de tentáculos.

— Eu disse que fiquei fascinado por tesouros, e não por mero reconhecimento. Uma lenda dizia que

dentro do enorme monstro havia um baú de tesouro. Foram apenas boatos, mas eu estava disposto a arriscar a

vida por aquilo.

— Vocês acharam?

— Após dois anos inteiros de buscas, sim. O motivo de tantas navegações serem arruinadas pelo Tibarnuk

era o despreparo. Mas conosco seria diferente.

— O que aconteceu?

O homem-polvo já dava nós em si mesmo e fumava o cachimbo ao mesmo tempo.

— O monstro apareceu, e tínhamos um plano: Henri atraia-o para a parte dianteira do barco, enquanto

eu preparava-me para atacar o ponto fraco do polvo: o cérebro. Meu amigo utilizava um frasco contendo uma

fragrância que atraia criaturas marinhas: assim, tínhamos em mente que aquilo faria Tibarnuk colocar sua cabeça

dentro da embarcação.

— Foi um bom plano. Deu certo?

— Em parte. Incrivelmente, conseguimos fazer o monstro subir na embarcação. Ele era desajeitado, sem

coordenação... bagunçado. Parecia ótimo para matarmos ele, mas a monstruosidade tinha uma couraça que

protegia sua cabeça, e seria quase impossível penetrá-la. Lutei cara a cara com ele, então.

— Você, sozinho, lutando contra uma polvo gigante? — Rich ficou impressionado. Talvez nem um grupo

de orcs conseguissem matar algo tão grande.

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— Não sozinho: Henri lutou junto comigo. Cortamos vários dos tentáculos da fera, e foi o suficiente para

conseguirmos chegar bem perto. Após uma longa luta e vários ferimentos, finalmente consegui perfurar um

pequeno ponto desprotegido do monstro. Foi o bastante: o Tibarnuk morreu.

— Incrível! — Disse Rich, muito mais admirado do que antes.

— Sim, fiquei extremamente contente. A fera Se transformou em espuma, deixando apenas uma grande

tartaruga marinha, que provavelmente foi comida pelo polvo, e uma pequena caixa de tesouro!

— Assim, você alcançou o seu objetivo, não?

— A princípio, sim. Abri a pequena caixa alegremente, mas nela havia algo fora do comum: um colar cujo,

pendurado, tinha um tipo de diamante... um diamante negro e, gravado nele, uma figura de um polvo. "É o cristal

negro!", gritou Henri. "É o famoso cristal negro! O tempo todo era Tibarnuk que o tinha em suas entranhas!", ele

dizia. Quando eu fui pegá-lo, ele alertou: "Dizem que é amaldiçoado! Não o toque, por favor!".

— Foi a maldição que deixou você com essa aparência, eu suponho? — Adivinhou Rich.

Agora, Jaccob já tinha todos os pequenos tentáculos de seu rosto amarrados. Parecia um jeito de pentear

ou amarrar uma longa barba. Seu cachimbo já havia acabado, e seu corpo de cor roxa ficou trêmulo.

— Você acertou, Richard. Ao tocar o amuleto, adquiri esta forma. Tentei, naquele dia, me livrar disso,

mas, quanto mais longe eu ficava do Cristal Negro, mais ruim minha saúde ficava. Então eu entendi: quem tocá-lo

fica com a aparência de um polvo, e, quando um portador da maldição morrer, um próximo deverá tomá-la. A

tartaruga que apareceu junto com a caixa justificava isso: há muito tempo atrás, o animal entrou na caixa e tocou

no amuleto transformando-se no Tibarnuk, por isso tinha uma couraça na cabeça, como um casco.

Provavelmente, na forma de polvo, engoliu a caixa para poder ficar o tempo todo com o amuleto e não o perder.

— Então, o tempo todo, Tibarnuk era uma tartaruga?

— Exatamente. Ao voltarmos para a cidade, todos pensavam que eu era um monstro. Henri me apoiou,

mas foi morto pelos próprios amigos e família por se aliar ao "Tibarnuk em forma humana". Fui expulso do reino,

e fugi para cá, os Vales da Lava Negra, onde moro por mais de quatrocentos anos, sem envelhecer ou morrer.

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Veja — Jaccob mostrou o colar do Cristal Negro que estava pendurado em seu pescoço —, estou com essa coisa

desde aquela época e, se eu me separar disso, eu fico doente e morro.

— Realmente, deve ter sido difícil para você... — O jovem, que já acabara de comer, abaixou a cabeça.

— Richard, você quer saber como eu sei o seu nome, não é?

— Bem... sim.

— Desde que recebi a maldição, tenho um estranho poder: posso ficar invisível e etéreo, fazendo eu ser

um verdadeiro fantasma. Posso atravessar paredes, fazer flechas e espadas passarem direto e inofensivamente

por mim e desaparecer. Estive vendo toda a sua conversa com Anakira, e o vi recuperando sua espada. Foi com

esses poderes que espantei os nativos e salvei sua vida, também.

— Você conhece Anakira? — Perguntou o cavaleiro, enquanto tentava esconder seu fascínio pelos

poderes do homem-polvo.

— Sim. Acabei conhecendo algumas pessoas em todo esse tempo. Eu ajudei vocês a sair das cavernas dos

nativos: matei o guardas e me infiltrei na cidade subterrânea. Vi que o orc logo iria se libertar usando um poder

estranho, então peguei seus equipamentos e coloquei-os na saída da cela logo depois de você ter sido levado. Eu

ia trazer comigo a sua mochila para entregá-la a você após o confronto, mas acabei desistindo e a coloquei na

saída do complexo de cavernas.

— Você realmente nos salvou, senhor Jaccob. Por que fez isso?

O homem-polvo bebeu um pouco de vinho, e tornou a responder:

— Em todos esses anos, conheci tanto ladrões e pessoas com más intenções quanto grandes cavaleiros e

até heróis de guerra: mas nenhum era como você, Richard, que vai lutar contra o lorde da perdição Sarobou

apenas para salvar a mulher que ama.

— Você pode arriscar sua vida para salvar uma pessoa apenas por ela ser... diferente?

Jaccob preparou mais um cachimbo cheio e começou novamente a tragar.

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— Richard, nós vivemos tanto e sentimos tão pouco... Um coração de verdade vale mais do que o maior

dos tesouros do mar.

O jovem continuou não confiando muito nesse motivo sentimental mas, dentro de si, sentiu que poderia

ter feito o mesmo. Imaginou que, se uma pessoa boa se arriscar para salvar outra, um laço pode se formar,

eliminando as ruins. E se esse for o real sentido da vida? A maneira verdadeira de viver, o caminho certo a seguir?

Porém, Rich desconfiava que havia mais um motivo para aquele homem o salvar. A suspeita tornou-se

fato quando o Jaccob voltou a falar:

— Além disso tudo — Ele levantou-se da cadeira, ainda fumando seu cachimbo e com a barba de

tentáculos cheia de nós —, você pode ser a chave para a paz nessas terras, Lionfist.

— Eu? Por quê? — Indagou o jovem.

O homem-polvo foi até a estante de livros e procurou por algo.

— Essa bagunça... Deve estar aqui em algum lugar... — Ele pegou dois livro e jogou-os para trás — Acho

que deve estar nesse grupo... não, esse é o de poesias. Deve estar aqui... Não! Esse é inútil. — Jogou para o lado

um livro de capa preta, e jogou na fogueira outro de capa azul — Eu sei! Tenho certeza que havia guardado aqui

em algum lugar. Por que eu não acho? — Abriu um livreto, separou outro, continuou procurando pelo que queria

— Que bagunça! Preciso me organizar! Acho que vou desistir... — Então pegou um grosso livro com as duas mãos

e exclamou: — ESSE AQUI!

Foi até a mesa e largou o pesado livro em cima dela. Rich viu que não havia título: apenas uma capa

escura.

— Que livro é esse?

— Oh, que bagunça... foi difícil de encontrar, mas aqui esta o raríssimo livro sobre as terras do além, mais

precisamente de Sarobou!

— Um livro escrito pelo Lorde Sarobou?

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— Me desculpe, eu quis dizer "sobre" Sarobou. Um antigo explorador vez excursões nas terras do além e

escreveu sobre elas. Lá, encontrou-se com o lorde e quase morreu: foi um dos poucos que viram o demônio e

sobreviveram! Esse livro supostamente diz sobre um ponto fraco dele...

— Um... ponto fraco?

— Exatamente. Vamos ler esse trecho... — Jaccob virou páginas e mais páginas procurando por algo —

Espere um pouco... Acho que eu tinha marcado a página... Raios! Eu marquei a página errada! — Voltou páginas,

avançou mais algumas, até finalmente achar o que queria — Aqui, essa página. Leia em voz alta, por favor,

Richard.

O jovem chegou mais perto e começou a ler.

— "O lorde da perdição Sarobou é alguém, ou algo, que acredito ser imortal. Porém, pesquisado um

pouco, descobri que a imortalidade não existe: nem para deuses, nem para demônios e muito menos para

humanos. Uma maneira de matar é inquestionável, pois tudo o que vive algum dia morre. O lorde não pode, em

hipótese alguma, enganar a própria morte. Um demônio comandante de outros demônios pode ser derrubado,

seja pelo heroísmo do Tigre, a honra de um marinheiro, a força de um orc, a ira de um trovão, o olhar de um

assassino e, principalmente, pelo punho do leão, o protetor. O resto pode não passar de escória. O dia da profecia

chegará, em que essas terras mergulharão na escuridão da nuvem da dor, ou será reinada pela paz do último

guerreiro."

O jovem refletiu um pouco, mas não chegou à nenhuma conclusão.

— Acredito que esse trecho não se refira a animais, pessoas ou coisas abstratas, Richard, mas sim de

grupos específicos de seres humanos.

— O que você está querendo dizer?

— Do seu clã, Richard. Lionfist, o clã do Leão. Você é o último que sobrou, e, provavelmente, o último que

pode derrotá-lo.

— Eu? Por que eu seria destinado a derrotar Sarobou? — Rich estava muito confuso.

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— É apenas uma teoria. Mas há uma coisa que eu preciso lhe dizer: é sobre o seu pai. Eu estava

observando a batalha das cruzes, e vi o seu pai sendo morto.

— Você está falando sério? O que houve?

Jaccob levantou-se novamente, dessa vez com uma postura perturbada e sinistra.

— Seu pai não foi morto por um inimigo Infestis, Richard. Foi uma das feras de Sarobou que o matou.

O jovem espantou-se. Quase caiu da cadeira, seus olhos arregalaram-se. Respirou pesadamente.

— Isso é impossível! — Reclamou — Um general bateu a porta de minha casa naquele dia, dizendo que

meu pai havia sido morto por um soldado inimigo, com uma espada cravada no peito!

— Tudo mentira. Decidiram manter em segredo esse fato por causa do temor que tinham do demônio

Sarobou. Você sabe muito bem, não é?

Rich lembrou-se de alguns dias no passado. O simples falar do nome do lorde deixou todos do salão onde

se encontrava pasmos. Além disso, não queriam que ele saísse do castelo. Será que, no fundo, o rei Susanno IV

não queria de jeito nenhum que o jovem descobrisse a real causa da morte de seu pai?

Pensou mais um pouco: não foi difícil de se alistar na guarda real. No dia que ganhou o emprego no

palácio do rei, sentiu como se o mesmo quisesse tê-lo sob vigilância. Queria aquele homem... ganhar confiança de

Richard?

— O plano do rei de Rarstead era, desde o começo, usar você para derrotar Sarobou. Iriam treiná-lo e,

quando chegasse a hora, atacariam. Provavelmente fez você trabalhar para ele para se certificar de sua lealdade.

Richard não tinha e nem queria saber de mais perguntas.

— Já chega — Disse. — Vou achar Sarobou, resgatar Isabel e matá-lo. Irei agora. Obrigado por tudo,

Jaccob, se eu puder lhe agradecer de alguma maneira... qualquer coisa, peça agora. Estou de saída.

O homem polvo colocou as mãos nas costas e deu uma breve risada.

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— Agora não é hora, ainda. Não permitirei que você saia daqui por enquanto, pois há algo para ser feito.

Não por mim, mas por você. Transforme sua ira em outro sentimento.

— Do que você está falando? Vou agora, já perdi tempo demais!

— Não, Richard. Venha. Você não se arrependerá.

— O que iremos fazer?

— Anakira sabia como recuperar sua espada, e eu sei como recuperar seu escudo.

Ambos foram até uma outra sala, mais pequena, silenciosa e vazia. Havia apenas um grande tapete no

chão e enfeites de armamentos e pinturas nas paredes: nenhuma mobília, sem fogueira, sem estantes de livros.

Uma sala vazia como uma mente vazia. Tão vazia quanto sentimentos vazios. Era como um vácuo cheio, ou um

nada absoluto. Não se sabe o porque, mas aquela sala parecia ter algo a mais.

— Esta, Richard — explicou o homem-polvo —, é o salão dos sonhos. Eu mesmo o reformei: era um

pequeno santuário dos nativos da Lava Negra perdido no tempo. Era usado para fazer orações e pequenos rituais,

todos eles voltados a apenas um objetivo: conectar seu corpo com sua alma. — Jaccob seu um longo suspiro.

Ainda estava com os tentáculos da cara amarrados uns nos outros. — Há um tipo de energia nesse lugar, algo que

desperta seus medos, amores, ansiedades... — Fumou mais um pouco de seu cachimbo, e continuou — Estudei à

exaustão desde que descobri esse lugar, mas nunca consegui desvendar o segredo dessa sala. Mas de uma coisa

eu tenho certeza: será aqui que você recuperará seu escudo.

— O que devo fazer exatamente? — Rich perguntou.

— Irei começar fazendo-lhe uma pergunta: Para que servem os escudos?

Anakira havia feito uma pergunta parecida.

— Para defender-se de ataques inimigos? Contra-atacar?

— Você acertou, mas apenas em parte. "Defender" é apenas a menor e mais simples função de um

escudo. — Essa frase pareceu um verdadeiro déjà vu para o cavaleiro.

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— Quais são as outras?

— Honra, garoto. Você é do clã dos leões, e um leão está gravado no escudo. O escudo que você deixa à

mostra, o escudo que você pendura nas costas ao viajar, o escudo que você coloca à sua frente ao lutar. Você não

está simplesmente mostrando seu escudo: Você está mostrando para todos que tu és da família Lionfist. Você

tem, inegavelmente, honra em seu coração ao mostrar isso sem medo!

Rich retirou sua espada da bainha e olhou seu pomo: Era a cabeça de um leão esculpida. Sempre

questionou-se o motivo de tantas gravuras nos equipamentos de seu pai, e só agora percebeu que já perdeu para

sempre a oportunidade de aprender do pai o que é ter honra. Olhou para Jaccob e perguntou:

— O que deverei fazer agora?

— Esse ensinamento de honra, Richard, é passado de pai para filho. É algo que, no seu caso, já fora

destruído, graças a Sarobou. Tudo o que você precisa fazer é ter com seu pai a aula que você nunca teve. Fará isso

sozinho, e a partir de agora.

— Como irei fazer isso?

— Com seu orgulho. Orgulho de ser quem você é. Saiba que orgulho é, de certa forma, um sinônimo de

honra propriamente dita. — O homem-polvo virou-se e andou na direção da parede — Agora, Richard, você fará

o resto sozinho. Descubra, evolua. Sinta-se honrado: honra e orgulho aumentam sangrando e fazendo outras

pessoas sangrarem. Mas, primeiro, você descobrirá o significado disso. — Chegou na parede em que havia a porta

na qual entraram, e apenas a atravessou — Adeus, Richard Lionfist.

O jovem, agora sozinho, ajoelhou-se e, ainda com a espada na mão, meditou, sem nem fazer ideia do que

pensar ou o que ia descobrir. Apalpou o pomo de leão, respirou fundo, pensou em seu pai. Ainda havia algo

sobrenatural e incrível aquela sala, como que se alguma entidade desse forças aos pensamentos de Rich. Era

estranho mas, ao mesmo tempo, agradável.

O silêncio.

O silêncio que cura a surdez da alma.

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— Veja, Alven! É um menino! — Disse um médico.

— Um menino de madeixas loiras. E com seus olhos! É realmente seu herdeiro. — Falou alegremente o

outro médico do quarto.

— Sou um pai sortudo, então! — Disse Alven.

— Eu quero vê-lo! Por favor, tragam-no aqui! — Pediu a mãe, Susen, ainda respirando pesadamente por

causa do parto.

O recém nascido foi levado para perto da mãe. Ela sorriu.

— É lindo! Alven, como iremos chamá-lo?

— Daremos a ele o nome do avô do meu avô. Já falei sobre ele para você, certo?

— Sim, o grande leão protetor: Richard Lionfist. É um nome lindo para nosso filho!

Agora não mais estão em um quarto com uma cama ensanguentada, mas sim em uma sala, com Alven e

Susen juntos. Susen está com uma enorme barriga de grávida. Alven está falando algo para a mulher.

— Já lhe contei sobre um dos ancestrais dos Lionfist, Richard Lionfist?

— Não... quem ele era?

— O grande protetor! Lembrado nessas terras como o "Leão Protetor", estrangulou um gigante das terras

do Sul para salvar a família! Foi uma grande lenda.

— Talvez seja um bom nome para nosso filho. — Susen coloca as mãos em seu ventre e abaixa a cabeça —

O que você acha? Richard será um bom nome para você? — Perguntou, como se o feto dentro de si

compreendesse suas palavras.

— Isso se for um menino, Susen. Se for uma menina, acho que um bom nome seria algo como Lillynetta.

— Que nome ruim para uma menina! Eu preferia chamá-la apenas de Sofia. E, se for um menino,

poderemos chamá-lo de Jorn.

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— Jorn é nome de bardo! Preferia chamá-lo de Richard, pois o treinarei como guerreiro e o ensinarei os

segredos da honra, coragem e força! — Alven exclamou de uma maneira brincalhona mas não sarcástica.

O cenário mudou novamente: agora estavam o pai e a mãe fazendo um passeio pela cidade. A mãe,

Susen, estava com o pequeno Richard no colo enquanto o pai, Alven, vestindo uma armadura com um escudo

pendurado nas costas e uma espada com pomo de leão, conversava com ela.

— Sinto muito, Susen, mas não terei mais muito tempo para nós mesmos. Estou participando de missões

diretamente ordenadas pelo rei. São missões secretas e muito importantes para Rarstead.

— Mas, querido, não pode me dizer qual o objetivo delas, afinal?

— Como eu já disse, elas são secretas. Mas posso lhe dizer apenas uma coisa: são missões para derrotar

um grande inimigo nosso. E minha ajuda é essencial.

O tempo avançou rapidamente. Vários anos se passaram.

— Mais força, Rich! Não sairá daí enquanto não me desequilibrar com sua espada batendo em meu

escudo.

— Mas pai — reclamou o pequeno filho —, a espada que você me deu é muito leve e feita de madeira!

Quando irei ganhar uma espada de verdade?

— Quando chegar a hora, filho. Agora venha! Ganhe impulso!

Mais anos se passaram.

— Filho, hoje irei lhe ensinar uma postura de combate, que lhe permite acabar com o inimigo em

segundos!

Depois mais outros.

— Até amanhã, Rich. Sairei hoje para acabar com essas pragas que estão nos infernizando desde o ano

passado e querem tomar o que e nosso. Cuide de sua mãe. Com os treinamentos que lhe dei, será fácil.

— Certamente, mas... você ficará bem?

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— Claro que sim. Os Infestis não são páreo para mim.

Alguns anos voltaram. Era uma verdadeira viajem no tempo:

— Você é um garoto engraçado... qual é o seu nome?

— Richard Lionfist. E o seu?

— Isabel Safir... Sapir... Sapphirestar!

Depois, mais vários anos se passaram.

— Sinto muito, Richard, mas terei que ser sincero. — O médico olhou para Susen, que estava na cama

dormindo, pálida e com dor até no sono — Não sei se sua mãe aguentará essa doença. Há uma pequena

probabilidade, porém, de ela sobreviver.

Imagens, sons, toques, gostos, sentimentos, tudo passava rapidamente. Richard não sabia mais onde

estava. Porém, agora uma nova memória apareceu para ele. Era novamente uma lembrança que parecia ter sido

extraída diretamente do túmulo de seu pai.

— Senhor Lionfist, finalmente você veio.

— Sino muito pelo pequeno atraso, vossa majestade.

— Não tem problema. Quero lhe dar uma grande oportunidade.

— O que seria exatamente?

— Uma missão. A missão mais longa, delicada e perigosa de sua vida, meu rapaz.

— Que tipo de missão?

Susanno IV olhou fixamente para Alven, e disse seriamente:

— A missão para derrotar Sarobou. Descobrimos um livro que fala de um possível ponto fraco do Lorde da

perdição.

Alven ficou perplexo. Um ponto fraco do demônio?

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— Serei direto e objetivo com você: — o rei começou a explicar — O poder de seu clã, de alguma maneira,

pode derrotá-lo. Você tem o tempo que precisar para treinar e descobrir o que é esse poder e, quando chegar a

hora certa, partiremos com nosso exército para invadir o castelo nas terras do além e matar o lorde Sarobou!

Lionfist ficou confuso, mas o sucesso de uma missão daquelas poderia conceder reconhecimento do clã

dos leões. O mundo todo poderia saber que eles são: isso reviveria a família. Pensou por um longo tempo, tomou

um copo de água e finalmente chegou à uma conclusão. Parou em frente ao rei e declarou:

— Aceito o desafio, mas sob uma condição.

Uma condição? Pensou o rei.

— O que você está disposto a pedir, senhor Alven?

— Irei treinar meu filho para ele se tornar um verdadeiro cavaleiro. Apenas quando eu tiver certeza que

ele está pronto para qualquer coisa que o enfrentar, irei nessa missão.

— Irá treinar seu filho? — O rei ficou inquieto — Isso demorará incontáveis anos! Precisamos que você

fique forte, não ele.

— Ficarei forte se ele ficar, meu rei. quero apenas que ele seja um homem forte, com coragem e honra,

quando crescer. Nosso clã está sob ameaça de extinção, majestade, por isso quero prepará-lo para carregar esse

peso.

— Você está dizendo bobagens! — Susanno IV já não mais conseguia se segurar — Você está dizendo que

irá morrer se ir nessa missão?

— Se eu morrer, tudo estará perdido. Preciso passar todos os ensinamentos para meu filho antes que seja

tarde demais! Mesmo se eu não morrer, terei feito de meu filho um cavaleiro Lionfist.

— Não. Será perda de tempo! Treine você mesmo e irá sobreviver. Ache uma maneira de derrotar

Sarobou, e as chances de fracasso serão mínimas. Assim, não precisará se preocupar com nada.

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Alven agora tinha que tomar uma decisão. Uma decisão que decidiria não só o futuro dele e do filho

Richard, mas sim do próprio clã dos leões. Se focaria completamente em derrotar o lorde Sarobou para se tornar

um herói, com grandes chances de sucesso, ou dedicaria um tempo para treinar o filho para ser um herdeiro no

caso de fracasso?

Na verdade, o rei não sabia exatamente do que o treino se tratava. Pensava que era uma maneira de

"diminuir as consequências de uma eventual derrota", mas era muito mais do que isso.

— Majestade — Alven tentou novamente argumentar —, eu quero muito mais do que apenas me

precaver. Quero que meu filho entenda o valor de ser um guerreiro! Vou deixá-lo forte, muito forte!

— Já chega. — Interrompeu o rei — É uma condição absurda. Irá gastar seu tempo treinando um garoto e

se dividirá ao ter que pesquisar sobre o ponto fraco de nosso inimigo. Não irei aceitar algo assim.

Alven entristeceu. No fundo, ficou extremamente furioso com a ignorância de Susanno IV. Teve vontade de

fugir, morar em outro lugar...

Mas não podia. Rarstead era seu lar, e tudo pelo que lutou seria perdido se ele desistisse. Antes que

conseguisse pensar em negar a missão, o rei se dirigiu novamente para ele:

— Acabei de pensar em uma proposta melhor, Lionfist. — Uma proposta? Pensou Alven. O que o rei

estava planejando? — O deixarei treinar devidamente seu filho, mas, caso você vá para a missão e fracasse ou

morra, seu filho ficará em seu lugar e trabalhará para mim.

— Você tem certeza, vossa majestade? — Perguntou Alven, surpreso.

— Sim. E não se preocupe, eu cuidarei bem dele. Mas lembre-se que, talvez, o menino Richard terá que

fazer a mesma missão que você fará.

O cavaleiro pensou um pouco. Será que era uma má ideia?

Alven chegou à conclusão que não era. Aliás, seria tanto uma oportunidade de mostrar o valor dos Lionfist

para o mundo quanto a chance de dar o melhor treinamento para seu filho, um treinamento único no mundo, um

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preparo que só o pai podia dar. A vitória em derrotar Sarobou significaria orgulho e fartura para o seu clã no

futuro. Poderia ser, finalmente, um protetor.

Alven pôs-se em pé com postura e falou bravamente:

— Eu aceito.

Richard recebera o treinamento. Porém, ficou incompleto. A aula mais importante de todas foi perdida. É

como se o jovem estivesse fazendo a missão do pai sem a ajuda do rei.

Alven Lionfist. O homem que deu vida à Rich, o que o treinou, o que deu tudo pelo filho e pelo clã.

Isso que significava ser um Lionfist: continuar sendo forte, não importa o que aconteça. Se um inimigo lhe

superar, continue forte. Se o mundo cair sobre você, continue forte. Se tudo deixar de ajudá-lo, continue forte,

aliás, você não precisa de ajuda.

Richard, ainda na exata posição em que estava quando começou a meditação, lembrou-se de tudo o que

já fizera com o pai. Treinamentos com espada, como defender-se com um escudo, como afiar uma lâmina,

ensinamentos sobre movimentos de luta... As caçadas que vez com o pai, os bons momentos que passou com a

mãe, as caminhadas, as trilhas... Tudo tão nostálgico, tão bom, tão prazeroso. Momentos que marcaram a

infância e a adolescência de Rich estavam voltando. Nesse momento, o jovem aprendiz de cavaleiro deixou de

estar em um tranquilo momento meditação e passou a chorar. Lágrimas escorriam de seu rosto, enquanto ainda

segurava a espada.

Não se arrepender, continuar em frente e não voltar atrás com a palavra: isso era ser um Lionfist, isso é

ser um leão, um protetor. Ter orgulho de quem é e do que seus antepassados foram: Isso é ter honra, ser um

cavaleiro, e o mais importante: usar um escudo com estampa da família.

Richard levantou-se. Daquele momento em diante, não seria mais apenas um salvador de donzelas mas

sim um protetor. Um grande protetor. Um leão, protegendo outros leões, o vingador do que matou seu pai. Não

desistiria enquanto não derrotasse Sarobou e, não menos importante, resgatar sua amada.

Era uma promessa.

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Um escudo surgiu em suas costas, amarrado por leves e confortáveis cordas que o prendiam no lugar. Era

o escudo de seu pai.

Finalmente havia o recuperado. O jovem o tirou das costas para vê-lo: era redondo, de cor levemente

esverdeada e com a cabeça de um leão estampada nele, e de tamanho médio. Um leão selvagem, forte, corajoso,

honroso. O escudo tinha as bordas um pouco afiadas, e estava todo polido e sem as marcas, riscos e pequenas

rachaduras que tinha antes. Parecia novo. Além de visualmente renovado, estava mais leve e fácil de manipular

do que antes.

Richard secou as lágrimas, abriu um enorme sorriso e colocou o equipamento de proteção em suas

costas, junto com a mochila. Saiu da sala e foi até a primeira sala em que conversou com o homem-polvo. Jaccob,

no entanto, não estava lá, mas uma misteriosa passagem estava aberta e levava para fora. O jovem tirou da

mochila uma pequena bolsa de moedas e colocou em cima da mesa como agradecimento pela comida e pelo

tratamento e foi embora, agora não só corajoso, mas com honra.

Jaccob apareceu de sua invisibilidade dentro da sala e observou Rich indo embora, finalmente, dos Vales

da Lava Negra.

— Confio em você, Richard — disse.

O jovem estava preparado para continuar sua jornada.

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Capítulo 7

Experiência

Após sair da moradia do homem-polvo, Richard continuou sua imensa caminhada, dessa vez para fora dos

Vales da Lava Negra, um lugar que o jovem teme nunca esquecer. De fato é um lugar sombrio e cheio de

mistérios e lendas. Aliás, ele mesmo acabou de conhecer uma: Jaccob. Na mina onde ajudou Krognarr, viu em

cima da mesa um livro cujo título era algo como "O monstro Tidevann". Gostaria de lê-lo apenas para ver de que

maneira era descrito e visto o homem que o ajudou. Talvez os outros o vissem como um monstro cruel? Um ser

amaldiçoado devorador de sonhos? Ou apenas mais um exilado cuja alma não merece piedade?

Apesar de curioso, Rich tinha certeza de que o livro mostraria o "monstro Tidevann" de uma dessas

formas. O ser humano é assim: teme e despreza o desconhecido, o herege.

Por que o aventureiro estava pensando em algo assim em uma hora dessas? Não se sabe. O que importa

é que ele finalmente recuperou o escudo: o equipamento de defesa cuja manipulação foi exaustivamente

treinada por seu pai e, posteriormente, pelo filho. Tudo o que falta agora é sua armadura: aumentará, e muito, a

duração e a proteção do jovem em batalha.

Continuou caminhando em direção ao norte e percebeu, pelas descrições que ouvira do sacerdote de

Rarstead, que estava praticamente na metade de seu caminho. Sentiu-se orgulhoso e feliz: apenas com metade

da jornada ele já enfrentou um enorme cão de três cabeças, ajudou orcs a escaparem de uma mina de bandidos,

enfrentou um troll e fugiu de uma cidade subterrânea de nativos adoradores de cultos macabros. Além de, claro,

descobrir a verdade por trás de seu pai e conhecer um homem amaldiçoado pelo Cristal Negro.

É claro que muitos desafios estavam por vir: quanto mais para o norte, mais perto de Sarobou o jovem

ficava e, consequentemente, mais problemas encontraria. Richard estará preparado para tudo o que vier,

prometeu a si mesmo ao começar a aventura.

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Porém, mais um pequeno desafio estava por vir: os terrenos acidentados e perigosos dos vales. Aliás,

nesse final as montanhas pareceram estar mais íngremes e ainda mais perigosas. Desfiladeiros faziam pedras

rolar e rochedos perigosamente soltos eram uma ameaça constante. O jovem sabia que um passo em falso

poderia fazê-lo perder a vida.

Caminhou cautelosamente pelos morros, prestando atenção também aos sons: tinha consciência de que

outras criaturas poderiam viver naqueles rochedos. Felizmente, por todo o percurso nenhum animal ou criatura

hostil apareceu. Porém, algo apareceu no meio do caminho. Não era um monstro ou bandido.

Em um certo ponto, o aventureiro ouviu passos e vozes vindo em sua direção. Imediatamente, por

instinto, escondeu-se sob algumas pedras.

Ele reconhecia a voz, mas não o idioma. Espiou e viu, para seu desagrado, o chefe da tribo nativa, junto

com um punhado guerreiros. Estavam eles procurando por Rich? Procurando por Krognarr? Ou apenas caçado?

— Eu sei que você está em algum lugar, prisioneiro! — Alertou, gritando, o velho.

Isso era um problema. Aquele senhor realmente não aceitava a derrota. Algo tinha que ser feito: os

nativos iam encontrá-lo. Teria que enfrentar os inimigos.

O jovem saiu de trás da grande pedra a qual se escondera e ficou de pé na frente dos inimigos.

— Aí está você! — Disse com felicidade o velho, abrindo um sorriso no rosto — Está se rendendo? Está

desistindo da vida?

— Não — afirmou o cavaleiro, respondendo ao sorriso do chefe com outro sorriso —, apenas me cansei

dever você atrás de mim e não morto.

O ancião ficou ofendido e irritado com o comentário de Rich. Deu algumas raivosas ordens para seus

homens na língua estranha deles.

Ao ouvirem, os guerreiros avançaram par atacar o jovem. Dessa vez, pareceu que as ordens foram para

matar, e não capturar. Entretanto, parece que aqueles eram soldados exatamente iguais a aqueles que Richard e

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Krognarr enfrentaram na cidade subterrânea. Mais do que isso: provavelmente viram seus companheiros

morrerem pelas mãos dos dois.

Por isso sentiam medo. Dos vários soldados, apenas dois avançaram corajosamente. Corajosamente,

porém não suficientemente preparados.

Foi fácil para Rich matá-los. O chefe gritou mais ordens, dessa vez ameaçadoras. Os que restaram

pareciam não ter opção, e alguns avançaram com olhares corajosos, mas era possível sentir que ainda estavam

com medo.

No fundo, aqueles nativos não mereciam morrer. Mas, naquela ocasião, o jovem não tinha escolha. Eram

muitos: dominá-los sem matá-los era quase impossível. O chefe, entretanto, despertava uma imensa raiva no

jovem, o que o fazia ter vontade de cortar a cabeça dele.

Três homens atacaram Richard ao mesmo tempo. Como era bom finalmente ter um escudo! Defendeu

um ataque, cortou o peito de um, perfurou o coração do segundo e, com o escudo, cortou a garganta do terceiro.

O escudo de seu pai realmente tornou tudo extremamente fácil. Os golpes desordenados e a pouca experiência

dos nativos em batalha deixava a luta ainda mais simples.

Um por um, os soldados foram caindo ao chão, alguns mortos antes mesmo de ouvir sua própria queda.

Foi uma batalha não muito longa, mas muito brutal. O resto dos soldados tribais — cinco ou seis — fugiram

desesperadamente. Os únicos vivos agora eram Rich e o chefe Kimanji.

— Irá se arrepender profundamente, herege! — gritou o velho.

O cavaleiro de Rarstead ignorou aquelas palavras mas, antes de avançar com sua espada para calar a boca

do infeliz, pensou: será que aquele homem seria fácil de derrubar?

Lembrou-se, então, do que aconteceu no vulcão: O velho usou um tipo de poder sobrenatural, que calou

toda a plateia do sacrifício e agitou a lava. Seria um mago? Um demônio em forma humana? Qualquer que fosse a

verdade, era melhor ser cauteloso.

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De repente, no meio dos pensamentos do jovem, o chefe nativo gritou uma palavra na língua nativa e fez

um sinal com as mãos: uma, em frente ao seu corpo, com os dedos indicador e médio levantados para cima, e a

segunda mão na frente da primeira, mas aberta. Parecia um sinal místico. Porém, Rich mal teve tempo de ver o

sinal de mãos: uma grande bola de fogo foi invocada pelo velho.

Lionfist defendeu-se com o escudo. Se uma bola de fogo daquelas atingi-lo diretamente, ele

provavelmente seria jogado longe e sofreria seríssimas queimaduras. Sim, aquele ancião era, de fato, um mago.

Rich, mais uma vez, agradeceu mentalmente a Jaccob por tê-lo ajudado a recuperar o escudo.

Agora, o inimigo posicionou as mãos de uma forma diferente: a mão da frente aberta, com a palma na

direção de Richard, e a de trás, como antes, apenas com dois dedos levantados, mas dessa vez estavam

apontados para a mão da frente, com a ponta dos dois dedos encostando nas costas dela. Era um outro sinal para

invocação de feitiços.

Outra posição para invocar outro tipo de magia: não era mais uma bola de fogo, e sim uma lavareda

constante. O cavaleiro defendeu-se novamente com o escudo: por sorte, o equipamento de defesa de Rich era

resistente às chamas e não derreteria ou esquentaria demais. Mas o escudo talvez não fosse grande o suficiente

para proteger o jovem de uma fonte tão constante de chamas: elas pareciam estar cada vez mais fortes e difíceis

de defender. Ele tinha que fazer alguma coisa.

Tomou uma decisão difícil, mas preciosa: avançou com o escudo erguido na direção do mago. Este, por

sua vez, redobrou os esforços e as chamas ficaram ainda mais fortes.

— Queime! Arda! — O velho gritou.

Rich, então, tentou algo que, se desse errado, custaria sua vida: jogou-se para o lado, fora da linha das

chamas, dando um giro com o corpo. Perto o suficiente do inimigo, bateu nele com o escudo. Com força o

suficiente para o velho cair no chão e interromper o feitiço. Apontou, então, a espada para o adversário, em sinal

de vitória. Estava arfando pesadamente por causa do esforço e tinha leves queimaduras nos braços: como

pensara, não foi fácil derrotar esse inimigo.

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— Por favor, não me mate! — Implorou por piedade o derrotado — Se eu morrer, meu povo ficará sem

líder! Eu faço qualquer coisa!

O jovem, ainda respirando pesadamente, mas já acalmado, pensou no que o chefe nativo disse: poderia

ser um blefe, ou apenas um método para ganhar tempo e atacar novamente. Porém, não era só Richard que

estava cansado da curta batalha: o ancião também parecia exausto.

Magias eram pouco conhecidas por pessoas normais. O jovem lera uma vez sobre feitiços: precisavam de

um alto conhecimento para serem invocados. Há vários tipos: fogo, gelo, relâmpago... magia pode desde acender

uma vela até reviver os mortos. São poucos os que conseguem dominar as forças da natureza a seu favor, por isso

poucos usam. Rich também sabe que magias gastam um tipo de energia vital e, se usada excessivamente, pode

causar uma fadiga fortíssima e, se usada além dos limites do que o corpo humano aguenta, poderá levar o

usuário à morte. Isso era tudo o que sabia sobre feitiços. Aliás, ele não conhece ninguém de Rarstead capaz de

usá-los, portanto, era um assunto com pouca importância de estudo para ele.

O velho parecia ter gasto o suficiente de sua energia vital.

Rich, então, teve uma ideia: tiraria proveito da situação.

— Poupo-lhe se você me ajudar a sair desses vales para o norte!

— Você quer ir para o norte? — Perguntou o ancião — Para que você gostaria de seguir naquela direção!?

Não há nada lá!

— Isso não é da sua conta. Você vai me ajudar e viver ou prefere morrer aqui, homem? — Ameaçou o

cavaleiro. Ficou contente ao finalmente sentir-se superior ao inimigo.

— Está bem, eu te guio para fora! São apenas mais algumas horas de caminhada! — Afirmou.

Rich, então, o ajudou a levantar.

— Estarei de olho em você. — Alertou ele — Tente alguma coisa que eu corto seus braços e você me

guiará incapaz de invocar magias!

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— Está bem... — aceitou o velho, ainda cansado, mas ainda totalmente capaz de andar — Posso saber seu

nome?

— Richard Lionfist. E o seu?

— Me chame de Bijak.

— Está bem, Bijak... para que lado vamos?

— Para aquela direção. — O sábio apontou para o noroeste — A direção que você provavelmente estava

indo era mais longa.

O jovem aventureiro ainda não confiava muito nas palavras do ancião, mas percebeu que ele parecia

estar sendo sincero. Seguiram por uma trilha e desceram o morro onde estavam, então continuaram seguindo

para o noroeste, uma direção que Rich não seguiria se estivesse sozinho e usasse seu próprio senso de direção.

Em um trecho do caminho, o homem perguntou:

— O que você pretende visitar no norte de Parvatari... digo... como vocês chamam? "Vales da Lava

Negra"?

O jovem decidiu que não mais havia necessidade de guardar aquilo de seu guia temporário.

— Vou me encontrar com Sarobou. Tenho um assunto a tratar com ele: vou matá-lo.

— Sarobou? — Bijak espantou-se e falou consigo mesmo algumas palavras na língua nativa, que Richard

imaginou serem algo como "que insano, irá morrer." — Ele é invencível!

— Não. — Afirmou o cavaleiro — Ele tem um ponto fraco, e eu vou achá-lo. Vocês conhecem esse

demônio?

— Todos: desde as mariposas até os gigantes das Terras do Sul sabem que ele é implacável, jovem

Richard. Ele é uma praga, que ameaça todos os humanos. Se você derrotá-lo, estará ajudando a humanidade

inteira!

— É verdade? — O jovem sobressaltou-se.

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— Você poderá ser um herói para nós, Kimanji! Não acredito que ofereci você aos deuses!

Rich achou engraçado aquela frase. Um homem que desejava sua morte caindo em um poço de lava

agora o chamava de herói. Então, o nome desse povo nativo é "Kimanji". Richard já ouvira esse nome de

Krognarr, mas havia esquecido.

— Por que vocês queriam sacrificar-me?

— Nosso deus, Krikkrir, pede para darmos a energia de um mortal para ele. É o ritual de Tirik'kaptuar

Minatec, que dá essa energia para os deuses a partir de um sacrifício.

Rich lembrou-se de algo que vira na cidade subterrânea, e perguntou:

— Por que tem uma área da cidade que está em ruínas?

Infelizmente, dessa vez o velho preferiu não responder. Olhou para baixo, como se estivesse lembrando

de algo do passado. Até cogitou em dizer algo, mas ficou calado. Mudou, então, de assunto.

— Estamos próximos do fim do vale. — Bijak sequer olhou para o cavaleiro dessa vez. Por que será que o

idoso sequer queria comentar sobre aquela parte destruída da cidade? O que havia acontecido? Certamente, foi

algo que manchou o passado daquele homem — Vamos andando.

Realmente, pareciam estar chegando ao fim. Richard observou ao longe e percebeu que as montanhas

ficavam cada vez menores, como se após elas não houvesse mais morros. Era um tipo de transição de biomas, em

que uma cadeia de montanhas rochosas se transformasse em uma suave planície.

Andaram por mais uma hora inteira, até chegarem a uma montanha que parecia uma das últimas. Não

era muito grande, mas os dois teriam que subir.

— Qual será seu destino ao chegar ao fim de Parvatari? — Perguntou Bijak. "Parvatari", pelo que Rich se

lembra, é o nome que os nativos deram aos Vales da Lava Negra.

— Adrebolomde. Sei que é uma cidade situada sobre alguns vales não-rochosos e tem quatro grandes

estátuas na entrada. Basta eu procurá-las...

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— Nunca ouvi falar de um reino tão ao norte, mas acho que você sabe o que está dizendo.

Finamente ambos chegaram ao topo da pequena montanha. Estava quase escurecendo e várias nuvens

cobriam o céu, além de uma leve névoa bloquear um pouco a visibilidade. Que pena! Isso aumentou a

curiosidade de Rich para ver o que havia além da Lava Negra...

— Há uma grande planície ao norte, e mais ao norte dela é desconhecido para nós, Kimanji...

As palavras do velho foram interrompidas de repente por um estrondo seguido por uma tremedeira no

chão. Como se um gigante tivesse pisado no chão. Imediatamente, Rich e Bijak viraram-se, e se depararam com o

que parecia ser um humano, mas tinha uns quatro metros de altura, era largo e principalmente, era feito de

pedra. Como um boneco vivo.

— Cuidado, Richard! É um golem de rocha!! — Gritou o chefe nativo.

O monstro deu um soco no chão, que, se não fosse pelo reflexo rápido de Rich, o soco o teria esmagado,

porque ele era a mira.

O cavaleiro observou melhor a criatura: era, de fato, um golem.

Golems eram grandes "esculturas" feitas de algum material que ganham vida de alguma maneira. Lionfist

já havia lido um pouco sobre eles, e lembra-se que há duas maneiras de um golem surgir. A primeira é partir de

magia: usada por grandes magos para derrotar inimigos com facilidade, os sábios invocam essas criaturas, que

seguem seu comando e se tornam verdadeiras máquinas de matar. A segunda é quando surgem naturalmente:

não se sabe exatamente como rochas se tornam vivas sem interferência humana, mas acredita-se que algumas

plantas mágicas podem tornar a superfície a qual elas se fixam em algo vivo. Rich observou que o monstro que os

desafiava realmente tinha raízes e algumas folhas em seu corpo. Era um selvagem.

Apesar de tudo, golems não tem inteligência. Os selvagens atacam qualquer coisa viva que encontram,

sendo um real pesadelo para viajantes (inclusive, claro, para Richard e Bijak nesse momento). Essas criaturas nem

sempre são feitas de pedra: algumas são de terra, outras de gelo, mais raramente é possível encontrar golems de

água e há relatos de pessoas que encontraram golems de lava e até de ouro!

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Isso era tudo o que o jovem sabia. A fera descontrolada continuou atacando os dois.

— Atire fogo nele, Bijak! — Sugeriu ele, gritando.

— Fogo não irá funcionar contra isso! — Respondeu o velho. Essas palavras pareceram atrair a atenção do

gigante de pedra, que começou a ir em direção a ele.

O ancião, então, fez um sinal de mão diferente do que fez com o jovem. Dessa vez, saiu um tipo de vapor

brilhante das mãos do mago. Logo, Rich entendeu que aquilo era um tipo de ar incrivelmente gelado, pois as

partes do golem afetadas ficaram cobertas por uma grossa camada de gelo.

O idoso, após alguns segundos lançando a magia, quase caiu no chão e estava arfando por causa do

cansaço: aquela magia parecia usar muito mais energia que as de fogo.

O monstro, porém, pareceu não ser muito afetado pelo frio: se debateu e quebrou quase todo o gelo que

o envolvia. O jovem aproveitou a distração do gigante e tentou bater nele. Obviamente, foi sem sucesso: a espada

apenas arranhou a dura rocha. O golem ficava cada vez mais irritado, e quase acertou Rich ao golpear o chão com

violência.

Bijak, então, conjurou outra magia: atirou uma bola de ar gelado na cabeça do golem, congelando-a.

Aquilo esgotou o velho, mas também praticamente cegou o monstro, que agora estava descoordenado. Numa

tentativa de acertar alguém, o homem-rocha deu mais um poderoso soco no chão em direção àquele que

congelou sua cabeça.

E, dessa vez, acertou.

— Bijak!! — Gritou Richard. Mas já era tarde demais.

O que era o corpo do idoso agora era uma massa de sangue, carne e ossos. O que há alguns segundos era

o chefe dos Kimanji agora era algo morto e desfigurado. Sangue foi espirrado a vários metros do local, o que

deixou uma boa parte do monstro coberto de vermelho.

Rich praguejou. E praguejou mentalmente também quando percebeu que o golem agora queria matá-lo.

O gigante deu um soco em direção a ele: dessa vez, estava tão perto que era quase impossível de desviar. O

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jovem apenas defendeu-se com o escudo. Foi tão forte que ele foi arremessado para trás, caindo do precipício da

montanha. O monstro estava tão descoordenado que caiu também.

Richard rolou ladeira abaixo nas rochas, descendo a montanha, por um breve momento vendo o golem se

espatifar e se quebrar no caminho.

Quando o jovem finalmente parou de rolar, já estava no pé da montanha em um chão macio coberto de

grama. Apoiou-se para levantar, mas caiu novamente: colocou a mão na lateral de seu abdômen e, assim que

olhou para sua mão, viu que estava sangrando perigosamente. Havia se cortado em alguma das pedras pontudas

da montanha.

Começou a entrar em choque, sentiu-se fraco pela falta de sangue no organismo. Sangrava mais e mais,

sua vida estava, aos poucos, se esvaziando. Não conseguia pensar direito, teve uma vontade irrefragável de

dormir. Em sua mente, pensamentos estranhos e aleatórios passavam rapidamente. Tentou, insistentemente,

pensar em algo.

Iria morrer naquele lugar? Iria perder a luta para salvar sua amada? Estaria ele derrotado por causa de um

golem?

Nada parecia melhorar, nenhum pensamento parecia adiantar. Uma lágrima correu de seu olho, mais

sangue jorrou e mais desesperado o jovem se tornou ao ver que iria morrer. Ninguém por perto, ninguém para

espantar a própria morte, ninguém para devolvê-lo a vida. Não queria fechar os olhos, não queria desistir. E, mais

importante, não queria deixar Isabel sofrer nas mãos do demônio.

Acelerou ainda mais os pensamentos. O que ele podia fazer? Não podia parar o sangramento: era grave

demais para ser estancado pelos recursos que tinha. Curar-se. Essa era a palavra que ele queria que fosse

realizada.

Richard, já praticamente sem forças, caiu no chão. Não mais se movia, sequer parecia ser capaz de se

mover. Um homem moribundo, alguém que chegou apenas à metade se sua jornada. Sozinho, sem ninguém para

chorar por ele, sem ninguém para desejá-lo vivo novamente. Seria esse, realmente, o destino de um Lionfist?

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Aos poucos, o cavaleiro começou a fechar os olhos. Um momento agonizante, onde um homem com

espírito forte parece estar morrendo. É um daqueles clássicos momentos onde sua mente praticamente "viaja"

por sua vida. Rich recordou-se de vários momentos dela, sejam eles antigos ou recentes.

Até que, em um deles, uma luz se acendeu. A lembrança de algo que ele havia comprado.

A poção.

A poção famosa por ser milagrosa, capaz de fechar feridas. Era só uma teoria, mas, talvez, pudesse salvar

a vida do garoto.

Seria sua última batalha: beber a poção de saúde. Sua última esperança. Como se esse pensamento

tivesse lhe dado forças, o jovem abriu novamente os olhos e olhou para sua mochila: estava a cerca de três

metros de si.

Ainda estava fraco, mas ele não podia desistir, tampouco desperdiçar tempo. Colocou a mão no ferimento

e o apertou, sentindo uma dor angustiante, mas que o acordou. Colocou uma de suas mãos no chão e apoiou-se

nela. Após isso, jogou-se para frente usando-a como apoio. Fez a mesma ação com a outra mão. Cada movimento

usava uma força tremenda de seu corpo, como se ele estivesse levando cinco pessoas em suas costas. Ainda

sangrava, estava cada vez mais fraco, cada vez mais próximo de desmaiar.

Até que, finalmente, chegou à mochila. Dessa vez ele não mais tinha forças e caiu no chão novamente.

Deitado, abriu a mochila e procurou pelo frasco lá dentro. Sua visão estava embaçada e seus pensamentos,

esvaziando-se. Seu corpo formigava. Não podia parar, tinha que achar, de alguma forma, o objeto.

Quando sentiu pelo tato o que parecia ser o item, puxou-o de dentro. Olhou-o próximo ao rosto e viu que

não passava de uma maçã que ele guardara. Estava tão mal que mal conseguia diferenciar formas.

Não podia desistir. Pouco tempo lhe faltava: tinha que tentar novamente. Colocou novamente a mão

dentro da mochila e, do fundo, puxou o que sentiu. Era a poção. Abriu-a com dificuldade e bebeu todas as gotas

do líquido.

O gosto era familiar. Era gosto de...

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Ainda estava deitado. Por um momento, lembrou-se do que o médico de Rarstead falara ao vender o

produto: "essa poção faz ferimentos se fecharem e doenças se curarem". Será que curará um ferimento daquela

gravidade?

Pelo menos, ele havia tentado sua última esperança. Sobreviveria ou morreria? Não sabia. Mas uma

enorme tranquilidade subiu-lhe à cabeça. Olhou para baixo, e viu um tipo de vapor saindo da ferida, com o som

de algo que estivesse sendo queimado. A dor voltou, mas era um tipo diferente de dor. Era uma ardência, um

sentimento parecido com o de quando um médico está desinfetando uma ferida.

Como se a poção invocasse um fantasma de médico que tratasse de seus ferimentos.

A poção com gosto de sangue, que ajuda a estancá-lo.

Richard agora não tinha mais força, seja ela física ou mental, para continuar acordado. Fechou os olhos e

entrou em sono profundo.

Sua consciência foi tomada por um sonho, mais precisamente por uma lembrança.

A lembrança de doze anos atrás, quando tinha nove anos de idade.

Richard ainda era apenas uma criança. Um garoto, como qualquer outro, que sequer sabe o que quer na

vida. Quase todos os dias, após uma sessão de treinamento com o pai, o pequeno Lionfist vai para um parque

perto de sua casa para brincar e descansar. Era a melhor parte do dia para ele, principalmente quando seus

amigos, Hadrian e Barton, iam junto.

Se tornou um costume, um lazer no após uma árduo treinamento.

Certo dia, o garoto Richard andou até o parque como em qualquer outro dia sem seus amigos. Ficava

solitário, mas às vezes o menino até que gostava de ficar um pouco sozinho. Após treinamentos tão intensos,

gostava de tirar um tempo para descansar. Essa vez, em especial, havia ido um pouco mais cedo ao lugar, pois

brigara com o pai por causa de uma falha no treino — erros eram comuns, mas nesse dia foi algo que o garoto

nunca havia feito antes: recusou fazer todos os exercícios que o pai exigira por causa de preguiça. Foi uma falha

tremenda, sem sombra de dúvidas, porém o pequeno e imaturo Richard saiu do treinamento furioso e enraivecido.

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Ao chegar no parque, ainda nervoso, viu algo novo: uma pessoa diferente, alguém que ele nunca havia

visto. Não era do bairro da cidade onde morava e, ainda por cima, uma garota. Uma menina com mais ou menos

a mesma idade que a dele. Tinha cabelos negros e lisos, e olhos suavemente azuis como o céu. Usava um vestido

muito mais bem feito e elegante do que os que as garotas do bairro usavam: parecia nobre.

A pequena moça estava de costas, sentada em um dos balanços do parquinho. Porém, estava parada no

lugar, ao invés de estar balançando loucamente e alegremente como Richard e seus amigos faziam quando

estavam juntos. Estaria ela entristecida? O pequeno aprendiz de cavaleiro aproximou-se devagar, sem saber se ela

queria ser incomodada. Conhecia poucas garotas, e quase todas eram frias ou não lhe davam muita atenção. Será

que ele falaria com ela para eventualmente ganhar mais um amigo ou iria para outro lugar?

Antes de decidir exatamente o que fazer, a menina olhou para trás e o viu. Então, perguntou:

— Você mora aqui, amigo? — Ao contrário do que Rich via em outras garotas que conhecia, essa olhava

para ele com um leve, mas explícito, sorriso no rosto. Além disso, suas palavras eram suaves e transmitiam

bondade e sinceridade.

— Não! — Respondeu ele. Por que alguém moraria em uma lugar como aquele?

— Que bom, eu soube de crianças pobres que moram as ruas e nos parques e mal podem comer. Meus

pais chamam essas de "porquinhos", pois são sujos e comem os restos dos outros! Eu não quero ficar doente me

aproximando de uma dessas...

— Você acha que eu me pareço com elas? — Perguntou o garoto, um pouco indignado de ter sido

confundido com um mendigo.

— Eu não disse isso! Eu só perguntei educadamente! Não me culpe! Quero dizer... me desculpe! — Nesse

momento, o menino viu que ela era diferente: falava de forma diferente, agia de forma diferente e,

principalmente, parecia vir de outro lugar. — Por que não se senta nesse balanço aqui do lado, amigo?

Esse foi um dos poucos momentos que uma garota havia sido legal com ele. O pequeno rapaz sentou-se

com ela: que pessoa interessante ele havia conhecido!

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— Qual é o seu nome? — Ela perguntou.

— Richard Lionfist. Filho de Alven Lionfist.

— Acho que jáo uvi esse sobrenome em algum lugar... "Punho de leão"... — O menino já estava

acostumado a ouvir aquilo.

— E o seu?

— Meu nome? É Estrela.

— Estrela? Quem dá um nome assim para a filha?

— Eu mesma — respondeu simplesmente —, eu que me dei o nome de Estrela.

Ao ouvir isso, Rich não se conteve em fazer uma cara de dúvida. Ela era realmente tão distante dele?

— Não faça essa cara, isso me deixa constrangida!

— Desculpe. — Disse o garoto. Lembrou-se, então, de algo que queria perguntar a ela. — De onde você é,

Estrela?

— Eu vim do céu, seu burrinho! — Rich não sabia se isso era uma brincadeira ou se ela estava falando a

verdade — Por isso eu me dei o nome de Estrela! Eu fugi das outras e decidi ficar aqui um pouco. — Ao ouvir isso,

o garoto sequer sabia o que pensar — E você, mora aqui? O que você quer ser quando crescer?

— Eu moro aqui perto, e sou um aprendiz de cavaleiro! Um dia serei tão forte quanto meu pai! Treino

todos os dias até o meio-dia com ele! — Ao ouvir isso, Estrela olhou para um relógio de sol que havia no chão do

parquinho.

— Mas agora são apenas dez horas! Por que está aqui?

— Eu... — Richard conteve-se um pouco e retomou a raiva que estava sentindo antes. Porém, quis ser

gentil com ela e acalmou-se logo — Eu briguei com meu pai. Ele disse que eu deveria dar cem voltas correndo em

volta da minha casa, mas eu fiz cinquenta e disse que não precisava de mais. Meu pai brigou comigo por causa

disso e eu fugi para cá.

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Estrela fez uma cara emburrada.

— Você quer ser um cavaleiro sem se esforçar? Tem que fazer o que o seu pai diz, menino! Só assim você

ficará forte de verdade!

Richard pensou, e sentiu que o que a garota falou era verdade. Um sentimento de culpa o fez abaixar a

cabeça.

— Você tem razão. Quero me desculpar com ele, mas eu não sei como!

— Vá para casa depois e dê a volta em sua casa duzentas vezes! Ele irá lhe perdoar com um grande sorriso

no rosto!

— Isso! — Rich concordou imediatamente — Eu irei dar a volta não duzentas, mas trezentas vezes! Eu

serei um cavaleiro melhor que ele. Não, serei três vezes melhor que ele! — Estrela riu. Porém, ficou séria logo

depois.

— Como saberei que você está falando a verdade?

— Eu estou!

— Não sei. Você tem que prometer que fará isso ao voltar para casa! Não irá almoçar até não terminar

trezentas voltas!

— Sim, eu prometo! — Disse o garoto com a voz mais alta que o normal, fazendo, pela primeira vez, seu

corajoso sorriso.

— Promessa é promessa, Rich! Se você prometer alguma coisa, deverá cumpri-la! É mais importante que

sua vida, lembre-se disso! Promete que nunca quebrará uma promessa?

Ambos estavam tanto brincando quanto falando sério. Rich não podia ignorar aquilo: deveria levar para a

vida toda. Além disso, deveria agradecer a si mesmo por ter encontrado uma nova amiga. Entretanto, um certo

sentimento aumentou dentro dele. Que sentimento era aquele? Era parecido com afeto... um apego.

— Eu prometo, Estrela!

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E assim passaram o resto da manhã não apenas conversando, mas brincando. Esse sentimento de apego

crescia cada vez mais no garoto.

Finalmente, quando o relógio de sol chegou perto do meio-dia, ambos sentaram-se um do lado do outro

na beirada de um pequeno playground. Estavam com os pés suspensos, levemente sujos e sorridentes.

— Estrela, por que você nunca veio aqui antes? — Perguntou o menino.

— Eu moro um pouco longe nessa cidade. Eu fugi de casa por que minha mãe não queria que eu saísse

para brincar... Então eu escapei e corri para o mais longe possível!

— Espere... Você não disse que havia vindo do céu?

— Não, seu bobinho! Eu brinquei com você! Eu moro no castelo de Rarstead!

— Você é... uma nobre?

— Eu não gosto quando as pessoas me chamam assim. Somos todos seres humanos, todos do mesmo

mundo, com cabeça e corpo, dois olhos e dois ouvidos. Somos iguais! Por que temos que ser tão diferentes?

A garota não era apenas bonita, era também inteligente.

— As pessoas do castelo dão nomes a elas mesmas? — Perguntou o garoto.

— Não, mas eu não estava brincando com você. Eu não gosto de ser chamada de "nobre" ou ficar sendo

admirada pelo dinheiro de minha família. Eu quero ser tratada como todos, e por isso digo que meu nome é

"Estrela".

— Então você tem um nome de verdade? — Rich, então, teve uma ideia. — Que tal assim: vamos voltar ao

início. Pergunte o meu nome de novo! Assim você irá falar o seu!

— Você é um garoto engraçado... — Ela riu — Qual é o seu nome?

— Richard Lionfist. E o seu?

— Isabel Safir... Sapir... Sapphirestar!

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Um sorriu para o outro e ficaram assim por alguns breves e belos segundos.

Logo depois, uma velha mulher, aparentemente irritada, apareceu. Aproximou-se dos dois e falou em um

tom de voz assustadoramente severo:

— Isabel, venha já aqui! Estamos procurando-te há horas!

O garoto assustou-se, e antes que sua nova amiga pudesse dizer ou fazer algo, a velha pegou-a no braço e

a puxou para longe.

— Você receberá um bom castigo por isso, mocinha! Não pode sair e ficar falando com essas pessoas da

baixa sociedade! Venha! — E puxou ainda mais forte a garota com o nome-fantasia Estrela.

— Adeus, Richard! Eu gostaria de vê-lo mais! — Disse ela, enquanto era arrastada cada vez mais longe do

menino.

— Até mais, Estrela. Quero dizer, Isabel!

Rich abriu um pouco os olhos. Em doze anos, poucas foram as vezes que o jovem aproximou-se dela.

Porém, aquele sentimento de "apego" crescia cada vez mais conforme o crescimento dele. Isso era amor. O

jovem ficava cada vez mais apaixonado. A morte do pai e o falecimento da mãe não conseguiram sequer afetar

essa paixão.

Era a última pessoa viva que ele se importava. A única, a mais importante.

Richard estava extremamente cansado. A "fadiga" que a poção teoricamente causava era verdadeira. Ele,

porém, esforçou-se para se levantar.

Pensou.

Se ele não tivesse brigado com o pai aquele dia, teria conhecido a garota?

Apoiou os braços no chão. Levantou a cabeça, abriu mais os olhos e serrou os dentes, demonstrando o

esforço.

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Se ele não tivesse conhecido a menina Estrela, teria se esforçado para dar mais trezentas voltas? Iria

agradar o pai como o fez de verdade após aquele dia?

Estava de joelhos agora. Uma versão vazia e solitária de um soldado abatido na guerra, pronto para

levantar-se dar a vida para lutar novamente.

Ele saberia o que é uma promessa?

Agachado. Faltava pouco. "Use as forças que foram concedidas às suas pernas", pensou.

Percebeu, então, que ama tanto a família quando sua amada.

O que seria preciso, depois de tudo pelo que passou? Haveria algum modo de honrar sua família como

último representante? Haveria alguma forma de agradecer Isabel por torná-lo forte? Ou talvez apenas alcançar

seus sonhos, fazer algo a mais na vida para não ser apenas mais uma peça nesse quebra-cabeça chamado

Sociedade?

Sim, havia uma forma, e bem simples: Chegando ao fim dessa jornada e derrotando Sarobou.

Desse momento em diante, refez a promessa de quando viu o dragão levar sua amada para as terras do

norte. "Vou salvá-la".

Lionfist agora estava de pé, sentindo uma leve brisa da manhã batendo em seu corpo. Havia passado uma

noite inteira. Pegou sua mochila e, calmamente, começou a caminhar, mesmo com o corpo muito cansado. Olhou

para si: suas roupas estavam rasgadas. Seu machucado, fechado e seguro: apenas uma pequena cicatriz ficou em

seu lugar.

Olhou em volta, e percebeu que a forte névoa da noite anterior havia sumido. Estava, agora, diante de

uma paisagem de planícies verdes. Algumas árvores encontravam-se em pontos variados do imenso gramado. O

céu estava quase totalmente limpo, com apenas algumas nuvens pintadas. Mais ao fundo, haviam mais

montanhas mas, diferentemente do Vales da Lava Negra, eram verdes e bonitas e não rochosas. Em algum lugar

no meio daqueles montes, estaria situada a cidade de Adrebolomde.

Sentindo o sol em seu rosto e o vento em suas costas, despediu-se silenciosamente da Lava Negra.

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A "cidade das estátuas" é o seu próximo destino.

Capítulo 8

À procura de estátuas

Rich continuou andando para o norte. Olhando para os lados a todo momento, procurava alguma forma

que se parecesse com uma estátua naquelas colinas e montanhas que o cercavam.

"Quatro gigantescas estátuas", recordou, e então pensou: "Não deve ser tão difícil de achar." Que

estátuas seriam essas? Ele começou a imaginar: Seriam estátuas de criaturas lendárias? De grandes cavaleiros?

De magos famosos? Ou será que "estátuas" não significasse algo como rochas, ou algo mais simbólico?

Não importa. Aliás, aquele terreno onde Richard estava — entre os Vales da Lava Negra e as Terras do

Além —, parecia gigantesco. Algo o deixou confuso: se estava perto de um reino, por que não via viajantes,

fazendas ou camponeses? Em Rarstead, era comum ver fazendeiros, peregrinos e até nobres passeando em

caminhos e estradas dentro de um raio de dezenas de quilômetros da cidade. Será que estava tão longe assim de

Adrebolomde? O que aquela cidade tinha de especial, aliás?

Recordou-se de sua conversa com o sacerdote em sua cidade natal: "Uma terra impenetrável se não tiver

permissão"... Richard usou sua imaginação fértil para desenhar em sua mente uma cidade rodeada por fogo. Ou,

também, um reino acima das nuvens: isso explicaria a ausência de pessoas fora dele.

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Qualquer que fosse a verdade sobre o lugar, ele tinha que chegar até lá: sua comida estava acabando,

suas energias estavam se esgotando e agora sua roupa estava rasgada e suja. Por sorte, ainda tinha muito do

dinheiro que saqueara da mina onde resgatou os orcs, e por isso estava tranquilo com o fato de poder comprar e

negociar tudo o que gostaria. Podia até mesmo comprar um cavalo para chegar ao destino mais rapidamente, e,

talvez, até mesmo contratar mercenários para ajudá-lo nas lutas, mas isso já não estava em sua lista de

prioridades.

Ao pé de uma das montanhas, Rich viu uma cachoeira que enchia um rio: ao contrário da Lava Negra,

essas terras tinham rios e lagos em abundância. Foi até lá para abastecer-se, pois estava tanto com sede quanto

cansado e com vontade de deitar-se.

Assim fez: Encheu seus cantis, bebeu a água pura e cristalina do rio e tomou um banho. Após isso, tirou

sua roupa de cima, que estava encardida e em pedaços, e simplesmente a atirou para um lado. Não queria mais

usá-la.

Deitou-se, então, aos pés de uma grande árvore que ali havia. Era uma coisa que ele gostava de fazer, e

aquilo o relaxaria. Um cochilo não faria mal algum a ele.

O jovem já havia praticamente esquecido o que era "descansar" desde que começou sua aventura. A

sensação de conforto que sentia era ainda melhor do que lembrava. Sentiu, de leve, os raios de sol em seu rosto

por entre as folhas da grande árvore. A grama macia, a brisa agradável e o som da cachoeira perto de si o

ajudavam ainda mais a tranquilizar a mente e o corpo.

Após alguns minutos — ou horas, Richard realmente não sabia —, acordou de seu sono. Mas não o fez

por que "cansou de descansar", e sim por causa de um familiar som que chegou aos seus ouvidos. Algo que ouvia

com frequência em Rarstead: cascos de cavalo pisando no chão. Imediatamente, Rich sentou-se pensando que

era um outro cavaleiro ou um ladrão.

No entanto, não era algo que poderia representar perigo à vida do jovem, tampouco preocupá-lo: no

outro lado do rio, avistou um belo cavalo, com rédeas feitas de couro e uma grande bolsa pendurada em um dos

lados dele. Mas quem era o dono do animal?

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Richard esfregou os olhos e tapou o sol com a mão. Porém, não avistou ninguém: havia apenas o cavalo

marrom comendo um pouco de grama, sem dono. O que estava acontecendo?

Até que seus ouvidos foram surpreendidos por uma voz. Seu corpo literalmente deu um pequeno pulo,

devido ao susto.

— Você não é daqui, é? — A voz falou. Rich virou-se para o lado de onde vinha o som e deparou-se com

uma linda moça sorridente.

— Não, sou de Rarstead. E quem é você, moça? — O jovem não conteve seu ar de frustração por mais

uma vez levar um susto de alguém.

— Rarstead? Nunca ouvi falar, mas parece uma cidadezinha legal! O que faz aqui? Descansando seus

pensamentos diante desta bela cachoeira ou esperando alguém? — A mulher falava com uma voz alegre, sempre

gesticulando de leve.

Nesse momento, Lionfist aproveitou para analisá-la: tinha a aparência de uma mulher mais velha que ele,

porém com menos de quarenta anos. Tinha cabelos negros e um pouco longos. Estava usando uma grinalda de

flores em sua cabeça e um longo vestido branco. Tinha olhos esbugalhados e castanhos, que davam a impressão

de uma pessoa extrovertida e animada.

— Eu só estou descansando — respondeu —, caminhei muito para chegar até aqui... — Rich, então, teve

uma ideia: será que ela sabia onde ficava a cidade das estátuas? Logo, lembrou-se das boas maneiras: — Posso

saber seu nome, moça?

— Eu sou Ingrid Steelmare, de Steam City das Terras Centrais. E você? — Ela olhava com olhos bem

abertos para ele, como se estivesse muito curiosa com um simples nome.

O jovem abriu a boca, prestes a responder, mas ela interrompe rapidamente e extrovertidamente:

— Não! Não responda, vou adivinhar. Deixe-me pensar... — Nesse momento, a moça sentou-se na grama

e colocou a mão no queixo — Um nome que expresse sua cara... — Ela olhou fixamente para ele, e seu olhar ficou

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sério e observador. Ficaram assim por alguns longos segundos, e Rich não sabia como se comportar diante de tal

situação. — Já sei! Seu nome é Oktoberlestfeld!

— Não, nem perto disso! — Respondeu dando uma pequena risada. Nesse momento, refletiu

rapidamente: existe alguém com esse nome? E uma reflexão ainda mais importante: Por que ela estava tendo

uma conversa dessas com um desconhecido? — Eu sou Richard Lionfist. Sou filho de...

— Posso adivinhar o nome de seu pai?

— Não, não há necessidade! — O jovem quase tirou a espada da bainha, mas conteve-se com a outra

mão. — O nome de meu pai é Alven. Você vem de tão longe, das Terras Centrais?

— Exatamente! Quer ver como minha cidade natal é? Tenho uma pintura dela no Strength!

— Strenght?

— Meu cavalo, vou lá pegar! — Ela, então, levantou-se e caminhou para a direção de seu cavalo, do outro

lado do rio.

Rich, então, deitou-se novamente e fechou os olhos enquanto Ingrid ia até seu cavalo. Ele só conseguiu

fazer uma pergunta para si mesmo: por que todas as pessoas que conhecia na sua jornada tinham que ser tão

estranhas?

— Voltei! — A moça já estava perto dele, com um pedaço de papel enrolado em mãos. Richard sentou-se

de novo e ela começou a desenrolar o papel. Havia algo estranho: ela não estava molhada por atravessar o rio. —

Olhe! É uma réplica perfeita de Steam City! O pintor é extraordinário.

O jovem observou, e mal podia acreditar no que via. Era uma cidade com casas um pouco diferentes.

Havia uma grande torre em um lado, um templo em outro, um castelo no fundo e era possível ver muitas pessoas

nas ruas. Mas o que realmente chamava atenção era o chão: Parecia um grande nevoeiro que encobria todo o

chão do lugar.

— Tem muita neblina nesse reino? — Perguntou.

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— Não, é uma cidade acima das nuvens!

— Acima das nuvens? — Logo, pensou que a mulher estava delirando e imaginando coisas. É,

obviamente, impossível uma cidade ficar acima das nuvens. Mesmo que ele já tivesse pensado em Adrebolomde

ser um reino do tipo, não podia ser verdade. Portando, decidiu mudar de assunto — Para onde você está indo?

— Para a lendária cidade de Adrebolomde! Para onde mais seria? As terras do além? — Enrolou o papel

novamente e deu uma sarcástica risada.

— Eu também estou indo para lá. — Disse ele, sentindo que acertou em cheio o ponto que queria com ela

— Mas eu não sei o caminho... Você poderia me indicar qual seria?

Ingrid juntou as mãos e sorriu.

— Um companheiro para a viagem! Cavalguei por dois meses sozinha, passei por tantos lugares

repugnantes, mas finalmente achei um cavaleiro para me acompanhar! — Rich sorriu. Havia conseguido. Porém, a

moça falou mais alguma coisa: — Você vai sem camisa?

— Minhas roupas foram rasgadas por causa de um acidente.

— Eu vendo roupas! Posso lhe vender uma bela peça por algumas moedas. Está interessado?

— Claro — Respondeu ele, lembrando que ainda tinha muitas moedas da caverna que saqueara —, posso

vê-las?

— Sim, estão todas no Strength. — Ingrid virou-se, colocou dois dedos na boca e assoviou, chamando seu

cavalo.

Este andou em direção a eles caminhando suavemente. Estava prestes a atravessar o rio.

— Seu cavalo não vai molhar-se quase completamente entrando no rio? — Perguntou o jovem — Não

seria mais fácil ele dar a volta?

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Mas, antes que a moça pudesse prestar atenção em suas palavras, ele olhou de volta para o cavalo e

quase caiu no chão com o que viu. Strength estava atravessando o rio mas não se molhava: estava andando sobre

as águas!

Andava delicadamente por cima da água, apenas com os cascos tocando-a. Era evidente que o animal já

havia feito algo assim antes.

Ingrid percebeu o espanto de Rich e riu, jogando a cabeça para trás.

— Você não está surpresa ao ver um cavalo andar sobre a água? — Perguntou o cavaleiro com uma

mistura de espanto e raiva, pois tudo o que era estranho para ele parecia normal para ela.

Strength já estava ao lado dela. Ainda sorrindo, a moça desamarrou dele uma grande bolsa. Colocou-a no

chão e, enquanto a abria, falou:

— Todas as pessoas de Steam City aprendem esse truque. É uma magia antiga, e só é possível aprendê-la

se você está a mais de dois mil metros acima do solo. É assim que a cidade inteira fica acima das nuvens: Nuvens

são feitas de água, e usamos esse tipo de magia para fazê-la flutuar!

— Você também consegue andar sobre a água? — Perguntou ele, ainda duvidando das palavras daquela...

"maluca".

— É claro que sim. Eu busquei a pintura da cidade e voltei sem me molhar, não percebeu?

Richard compreendeu que Ingrid estava certa. Ainda não acreditava muito em uma cidade flutuante, mas

entendeu que era excitante conhecer pessoas de tão longe. Steam City ficava no centro de Sevenland, o que o fez

pensar: o que será que existe do outro lado do mundo, fora das sete terras?

Sevenland, ou "Sete Terras", como era chamado por alguns, era o enorme continente onde o cavaleiro se

encontrava. Como o próprio nome sugere, é dividida em sete partes: Terras do Oeste, Sul, Norte, Leste, Centrais,

Terras do Além — o destino de Richard — e a gelada ilha de Nortgarr. Cada uma com suas próprias características

e território. São faladas no plural, exatamente dessa maneira. A maior é as Terras do Oeste, com seus desertos e

savanas, e a menor é a Terras do Além, a misteriosa e perigosa terra de Sarobou. O ponto principal de comércio

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de todas elas são as Terras Centrais, com suas grandes cidades e terreno plano. Ao leste encontram-se as Terras

do Leste, famosas por seu comércio naval e pelas florestas densas. Nas do Norte era comum passar por grandes

florestas de taiga ou pinheiros, e era onde encontrava-se Rarstead. As Terras do Sul eram enigmáticas, com

montanhas e vulcões que guardam mistérios e muitas criaturas temidas pelos humanos, além de possuir as

cidades mais antigas de todo o continente: as três cidades de pedra. Já em Nortgarr, que era uma ilha à noroeste

das Terras do Além, nevava quase o tempo todo devido ao frio extremo. Mesmo sendo uma ilha separada, ainda

fazia parte do continente.

Logo, os pensamentos de Richard foram interrompidos quando Ingrid já havia aberto a enorme bolsa que

tirou de Strength.

— Pode escolher! — Disse e, ainda com um sorriso no rosto, mostrou as roupas que vendia. — Cada peça

por quinze yols. Pode levar três peças por quarenta e cinco!

— Isso não muda nada!

— Eu pensei que você não soubesse...

Enfim, o cavaleiro escolheu algumas roupas que gostou. Trocou-as pelo devido preço e vestiu-as.

Enquanto isso, Ingrid preparava seu cavalo para continuar a viagem.

— Está pronto? — Perguntou, já montada.

— É claro. É para que lado?

Ingrid apenas apontou para a direção onde estaria a cidade das estátuas. Os dois então foram, juntos,

para o rumo certo. Ela montada no Strength e ele a pé, por cortesia.

Enquanto viajavam, ela contava sobre como era a vida em Steam City e por onde passou em sua grande

viajem, enquanto ele contava a ela como foi ensinado a ser um cavaleiro e as aventuras que viveu em sua

jornada.

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— Um homem com tentáculos na cara? Não pode ser... — Ela ficou com um olhar inquieto — É o temido

monstro "Tidevann"? Dizem que, se você olhar para ele por mais de cinco segundos, você se transforma em

barro!

Sim, agora Rich sabia como as pessoas viam Jaccob.

Continuaram seu caminho por uma trilha, com Ingrid quase sempre sorrindo e o cavaleiro sempre atento

aos arredores, preparado para enfrentar qualquer ameaça. Naquelas terras pouco tinha além de algumas árvores

e animais inofensivos, como cervos e coelhos.

Era uma grande e bela paisagem sempre que chegavam ao topo de algum morro: grandes montanhas

verdes aquecidas pela luz do sol e volumosas nuvens no céu cobrindo a terra. O jovem mal pôde acreditar que a

apenas um dia atrás estava em montanhas rochosas e perigosas. Sua jornada parecia estar ficando melhor,

porém, sabia que isso não seria duradouro: estava cada vez mais perto das Terras do Além, onde Sarobou, o mais

temido dos demônios, estava. Contudo, a cada segundo que passava ele também estava mais perto de Isabel. Isso

com certeza o motivava, pois estava cada vez mais próximo de cumprir a promessa que fez consigo mesmo.

Em meio à tantas conversas e reflexões, o cavaleiro percebeu que estava escurecendo. Ainda teriam cerca

de duas horas até escurecer de verdade, portanto deveriam se apressar para decidir o que fazer em seguida.

— A cidade das estátuas está perto, Richard. —Observou Ingrid — Nós podemos chegar lá antes de

anoitecer.

Ele decidiu seguir o conselho dela. Aliás, a moça conhecia mais do que ele sobre aquelas terras.

A preocupação do jovem foi, claro, com inimigos. É nessa hora e de madrugada que assaltantes são mais

ativos. No pôr do sol pois normalmente viajantes estão cansados e montam seus acampamentos pouco antes de

anoitecer, deixando de preocupar-se tanto com os arredores: assim, criminosos podem pegá-los de surpresa. E à

madrugada, claro, enquanto as vítimas dormem. A preocupação não saia de sua cabeça, e agora ele estava mais

alerta do que nunca.

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Sentiu uma pequena mas incômoda dor de cabeça. Sua visão ficou um pouco embaraçada e suas mãos

suaram um pouco. "Descansei demais", pensou ele.

Mesmo preocupado com a chance de ser atacado, também estava tranquilizado. Aquele dia tinha sido

muito mais tranquilo do que os demais que passou em sua jornada. Primeiro, porque foi possível beber toda a

água que quisesse sem precisar se preocupar com a economia, pois bebera de um rio. Após isso, descansou e,

logo depois, achou uma guia. Um dia tranquilo, muito mais do que os anteriores. Era nostálgico e, ao mesmo

tempo, tranquilizante. Lembrar-se de que estava ficando cada vez mais forte com o passar dos dias o fez abrir um

pequeno sorriso em seu rosto.

Mas sua sorte e tranquilidade estavam prestes a mudar, de uma forma muito pior do que ele poderia

imaginar.

— Rich, olhe aquele morro! — Apontou Ingrid para um grande monte a mais ou menos um quilômetro de

distância deles — Do topo, é possível ver a entrada da cidade!

O sorriso no rosto do jovem se abriu um pouco mais. Mesmo ainda estando com a leve dor de cabeça,

pensou no fato de estar mais perto de Isabel. Cada passo era, de certa forma, uma grande conquista. Sorriu mais,

apressou um pouco os passos. Será que ele não estava exagerando?

Diante de uma semiescuridão causada pelo pôr do sol, o jovem viu uma pequena silhueta à sua frente.

Uma silhueta um pouco estranha. Estava a uns 50 passos, e parecia uma pessoa caída. O que seria aquilo?

Correu. Ignorou Ingrid ao seu lado e apressou-se para ver o que era. Aquilo parecia, de certa forma,

familiar...

Chegou. Sua cabeça doeu um pouco mais. Sua respiração acelerou, seus olhos arregalaram, obrigando

uma pequena lágrima a cair de seu olho esquerdo. Uma lágrima de tristeza e, ao mesmo tempo, de desespero. O

corpo de bruços parecia-se...

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Rich ajoelhou-se e virou a pessoa de barriga para cima. Confusão e melancolia é o que descreve

perfeitamente o momento que ele estava passando. Enxugou os olhos, pois não podia acreditar no que estava

vendo. Cabelos negros e longos, rosto perfeitamente esculpido, e coração parado. ERA ISABEL!!

Pegou-a em seus braços, apertou-a perto de si. Como era possível? Ela não deveria estar no castelo de

Sarobou?

Não importava mais. Seus pensamentos nunca ficaram tão confusos. Seu coração ficou acelerado, seus

sentimentos pareciam ter explodido de dentro dele. Involuntariamente, como se todo o seu corpo agisse por ele,

o jovem gritou o nome da amada o mais alto que seus pulmões permitiam e até um pouco mais do que isso. Era o

corpo dela, sem sombra de dúvidas. Estava frio, sem o mínimo sinal de vida.

O corpo de Richard agora praticamente não mais obedecia sua mente. Aliás, nem mesmo a mente dele

funcionava. Estava em um estado de transe, como se estivesse sendo controlado por seus sentimentos. Raiva,

ódio, amor, tristeza, angústia... parecia estar tudo junto, mas ao mesmo tempo tudo inexistente. Era impossível

de se saber o que realmente estava passando em sua cabeça.

Um som muito familiar foi ouvido. Um som que Richard foi treinado a evitar e temer. O som de uma

flecha.

Instintivamente e imediatamente, o cavaleiro ergueu seu escudo. Por sorte (ou seria habilidade?), a

flecha acertou a defesa que o jovem levantou. Justamente numa hora dessas? Quem seria?

Olhou para a origem do som e viu, para o seu desagrado, três homens. Eram, certamente, assaltantes, e

haviam sido atraídos pelo grito de Richard. Dois estavam vestindo armaduras leves, um com um grande machado

de batalha e outro com escudo e uma perigosa clava. O terceiro, por sua vez, parecia ser o líder: Não vestia

armaduras e portava um arco-e-flecha (o autor do disparo).

No momento em que Richard analisava os inimigos, Ingrid chegou.

— O que está acontecendo aqui? — Ela desceu do Strength, com um olhar curioso porém preocupado. Ao

avistar o rosto do jovem, viu algo maligno em seu rosto — Rich? Não, você não pode estar...?

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— Calada, mulher! — Exclamou um dos homens, obrigando Ingrid a desviar o olhar. — Apenas nos

passem tudo o que vocês tem de valor e pensaremos em não fazer nada a vocês! Também queremos revistar seu

cavalo.

— Chefe, nós podemos levá-lo também — disse o segundo —, é um animal forte e poderá levar nossas

cargas com facilidade!

— Não, não façam nada com o Strength, por favor! — Implorou a moça.

Richard continuava ajoelhado, diante do cadáver de Isabel, sem expressão no rosto.

— Apenas faremos o que quisermos — foi a vez do líder falar —, e iremos matar quem ficar em nosso

caminho. Podem pegar o que quiserem.

Um deles — o que portava a clava e escudo, que estavam em suas costas — andou para a direção do

cavalo para revistá-lo. Ingrid ficou na frente: não queria, de maneira alguma, deixar aqueles homens levarem

Strength.

— Acha que pode fazer alguma coisa, sua puta? — Disse ele, dando um tapa no rosto dela. Mas sequer

deixou-a cair no chão: agarrou-a, trouxe para perto de si e, com uma mão, agarrou o seio da moça — Podemos

fazer bom uso de você também, se preferir!

— Me... solte! — Disse ela, debatendo-se sem sucesso.

— Pare com essa palhaçada, Helbert — Disse o líder —, apenas vamos levar tudo e deixá-los.

— Você não entende, Raaster — Continuou o molestador — Homens e mulheres fracos desse jeito não

deveriam entrar na cidade! Iria acabar com nossa imagem! — Ele, então, rasgou uma parte do vestido branco de

Ingrid.

— Rich, socorro! — Gritou ela.

Lionfist continuava no chão, apenas ouvindo o desespero de sua guia. Seu corpo parecia não lhe

obedecer. Seus sentimentos agora pareciam dominar completamente seu corpo.

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— Stephen, pegue a mochila desse garoto aí. Ele nada fará... Não sei o que houve com ele, mas não irá se

mover.

O bandido obedeceu e caminhou na direção do jovem.

— Não. Chegue. Perto. — Disse este lentamente, ainda com a cabeça abaixada.

— Então, acho que terei que tirar sua mochila quando você estiver morto! — Bradou o inimigo, tirando

seu enorme machado das costas.

— Rich, faça alguma coisa, por favor! — Gritou Ingrid, com lágrimas nos olhos. O homem que estava com

ela estava segurando-a no pescoço e, com a outra mão, já estava se dirigindo para um local que não devia.

— Apenas mate este homem, Stephen. — Ordenou o líder — Ele não será um incômodo. Está aí,

ajoelhado diante deste... Nada.

Ao ouvir isso, finalmente, Richard começou a se levantar.

— Acho — disse ele, já de pé — que não tenho mais tempo a perder com crianças como vocês. — Ele

jogou de leve a cabeça para trás, dando uma gargalhada estranhamente malévola. Nesse momento, o homem

que tocava Ingrid parou, dando chance para ela olhar para o jovem: havia algo diferente nos olhos dele. Algo...

Maligno. — Terei que desmembrar cada um de vocês, eu acho.

Ingrid foi jogada no chão pelo pervertido, e assistiu a luta.

Foi rápido e violento. Movido pelos reflexos e ódio, Richard desviou de um golpe vertical do machado do

primeiro inimigo, tirando a espada da bainha e desferindo um golpe no peito do adversário. Foi um golpe mortal.

O segundo — que agarrava moça segundos atrás — veio logo depois. O cavaleiro apenas defendeu o golpe de

clava do adversário e desequilibrou o inimigo com um chute no escudo do mesmo. Sem defesas e sem ter tempo

de fazer qualquer ação, o segundo inimigo foi decapitado pela espada que um dia foi de Alven Lionfist.

Ingrid observou, chocada: os olhos do jovem eram selvagens, sua postura amedrontadora e, seus golpes,

cruéis. Matou dois inimigos sem dó nem piedade, sem misericórdia, sem lástimas. Sem sombra de dúvidas, não

era o mesmo Richard que ela conhecera horas atrás.

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O líder dos bandidos, enfurecido, preparou-se para lançar uma flecha no adversário. Este, por sua vez,

simplesmente desviou-se do projétil com uma agilidade incrível, ao invés de apenas defender-se com o escudo.

A manobra de Rich foi o suficiente para chegar perto o bastante de seu inimigo. Sem sequer dar uma

chance de defesa ou contra-ataque do arqueiro, fincou sua espada no peito do homem, dizendo:

— Você furou meu escudo uma vez. Farei o dobro com você.

Dando um urro de dor, o bandido caiu no chão. Rich tirou sua espada das entranhas do homem e o

perfurou mais uma vez. Sangue espirrou para o alto e um grito de agonia foi ouvido pela extensão de centenas de

metros.

Havia se livrado de todos os inimigos com sede de sangue. Porém, o jovem não voltou ao normal. Mesmo

com o adversário já morto, o cavaleiro tirou a espada do cadáver e fincou-a mais uma vez no peito. Era insaciável,

queria matar todos. Destruir até a alma daqueles que odiava, vingar a morte de sua amada.

Isabel. Sua mente lembrou-se dela. O jovem levantou-se e caminhou na direção dela. Ingrid assistia tudo

aquilo abismada: não podia crer que aquele era o rapaz que conhecera.

Ao chegar perto de Isabel, Richard piorou. O golpe que o homem de machado tentou acertar nele acabou

acertando o chão. Pior: acertou a cabeça do corpo da mulher. A cabeça de Isabel estava partida em dois.

A respiração do jovem ficou mais forte. Sua expressão, de loucura e ódio. Teve vontade de matar mais

uma vez.

Olhou para Ingrid. Seu olhar ficou sedento por mais sangue, como um lobisomem uivando sob o luar de

uma lua cheia. Com a espada encharcada de sangue, o cavaleiro andou lentamente mas ameaçadoramente para a

direção de sua guia.

— Pare, Richard! Você foi tomado pelo mal, livre-se disso! — Gritou a moça por clemência.

Da direita para a esquerda, um golpe de espada foi dado. Por milagre, Ingrid conseguiu desviar, fazendo a

espada cortar de leve seu vestido. Strength, que estava perto, se assustou e galopou para trás.

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Richard preparou-se para desferir mais um golpe. Ela, por sua vez, foi obrigada a fazer algo.

Fez uma posição de mãos, um pouco parecida com o que Bijak fez contra o golem.

— Congele! — Gritou.

Um raio branco, potente e barulhento acertou Richard, que o fez cair no chão. Antes de desmaiar, seus

olhos viram, ao fundo, no topo de um morro próximo, a silhueta de um homem em um cavalo. Mesmo estando

muito longe, os olhos daquilo brilharam em vermelho, como se tivessem alguma influência sobre a cabeça de

Richard apenas ao encará-lo.

Ele, então, desmaiou.

Ficou apagado por um tempo que ele não sabe.

Ao acordar com o sol forte brilhando em seu rosto, o cavaleiro pouco se lembra do que fez enquanto

estava... "fora de controle".

— Isabel... — Foi a primeira coisa, para seu desagrado, que lembrou, e, consequentemente, falou ao

acordar.

Rich estava deitado em algum lugar com grama e pensou em fechar os olhos novamente, quando Ingrid

disse, com tom de voz mais sério do que o normal:

— Então você finalmente acordou. Espero que tenha dormido bem, pois eu não consegui.

O jovem olhou para ela: parecia que não havia dormido aquela noite. Seus olhos estavam cansados e, sua

roupa, um pouco rasgada e com algumas manchas de sangue. Ele não entendia, não conseguia lembrar do que

havia feito. Apalpou a bainha de sua espada, mas a mesma não estava ali embainhada.

— Sua espada e escudo — Continuou a moça — estão aqui do meu lado. Estou apenas prevenindo para

que você não faça nenhuma... "barbaridade" novamente.

— Eu não entendo. O que aconteceu ontem à noite?

— Você sequer lembra do que fez? Está pior do que pensei. Não lembra-se de absolutamente nada?

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— Lembro que... — respirou fundo, como se tivesse ficado dentro da água por um bom tempo e

finalmente conseguira encher os pulmões de ar — Um mulher que conheço. A achei morta no chão, então algo

muito ruim aconteceu. Não lembro de mais nada após isso.

— Meu amigo — disse Ingrid, que agora estava mais irritada e inquieta do que nunca —, as únicas

pessoas mortas lá são os três bandidos que você matou sem remorso ou piedade. E, claro, quase que eu me junto

a eles!

— Não! — Rich protestou — Eu lembro: até peguei o corpo dela... Estava fria, e eu gritei alguma coisa...

A mulher, antes de falar novamente, acalmou-se. Não fazia parte dos seus planos de viajem ficar irritada

com algo. Aliás, havia mostrado para Rich que ela era uma mulher dócil e muito sorridente, e não gostava de

contradizer-se.

— Richard, eu vi muito bem que você estava apenas ajoelhado com absolutamente nada em mãos. Tudo

o que você viu foi, sem dúvida alguma, uma ilusão. Foi causada por...

Alguns segundos de silêncio fizeram o cavaleiro inquietar-se um pouco.

— O que aconteceu comigo?

— Maldição. Ilusões, comportamento estranho e... "olhos escuros". Você foi amaldiçoado.

— Como assim? — Indagou o jovem, preocupado consigo mesmo — O que poderia ter me amaldiçoado?

— Lá dentro eu te falo. Você precisa se recuperar e se curar disso.

— "Lá dentro"?

— Ah! — Ingrid deu um largo sorriso — Eu esqueci de te mostrar. Olhe em volta!

Ambos estavam no topo da colina que a moça mencionara no dia anterior. Rich sentou-se e olhou para

um enorme lago à sua frente, e mal conseguiu acreditar no que estava vendo.

Um grande lago, que mais parecia um mar, no meio das enormes montanhas. À beira dele, quatro

estátuas. Gigantescos monumentos, que o jovem acreditou terem sido esculpidos por deuses.

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Era a entrada de Adrebolomde.

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Capítulo 9

A cura para problemas

Rich e Ingrid prepararam-se para chegar até a entrada da cidade, que era em meio às gigantescas

estátuas. Andaram até a beira do lago oposta à dos monumentos. Para chegarem até onde queriam, seria preciso

atravessar aquela grande quantidade de água.

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Ele observou atentamente: era um grande lago, tão grande que até tinha pequenas ondas. Sequer era

possível ver grandes montanhas do outro lado, porém as estátuas continuavam grandiosas. Eram, sem dúvida,

muito maiores do que alguém pudesse imaginar.

— Como chegaremos até lá? — Perguntou o jovem.

— Andando sobre a água, é claro! — Respondeu a moça, entusiasmada.

— Mas eu não sei andar sobre as águas... — Richard estava em dúvida quanto a distância entre eles e as

enormes esculturas — Além disso, dará certo com essas ondas?

— Não se preocupe. Você pode cavalgar no Strength enquanto eu vou a pé. É como uma inversão de

papéis, entende? — Ela nunca parava com suas frases comicamente estranhas. — Eu quero molhar os pés um

pouco mesmo. E você, mocinho, precisa descansar. Quanto às ondas, também não há problema: conheço feitiços

simples para acalmar as águas à nossa frente.

O cavaleiro, então, subiu no grande e forte cavalo, com a cabeça ainda um pouco baixa.

Ele ainda estava em choque pelo que havia passado anteriormente. Estava, ao mesmo tempo, feliz em

saber que o fato de ter visto Isabel não passava de uma ilusão causada por sabe-se lá quem, entretanto ainda

sentia-se abismado pela simples experiência. Era exatamente como acordar de um pesadelo.

Enquanto andavam silenciosamente e calmamente sobre o lago, Richard aproveitou para compreender

algumas coisas com Ingrid:

— Eu tentei mesmo lhe matar?

— Sim — Mesmo falando em algo assim, a moça não perdia a excitação por estar tão perto do destino —,

e por pouco não conseguiu. Por sorte, eu sabia invocar um feitiço de paralisia.

— Eu realmente lembro de algo ter doído muito. Que outros truques você sabe?

— Um mágico não deve revelar seus segredos, garoto.

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O cavaleiro cavalgava e a dama andava sobre o grande lago. Enquanto em quase toda a área dele as águas

pareciam um oceano tempestuoso por causa das estranhas ondas, Ingrid usava sua feitiçaria para deixar a água

perto deles tão calma quanto a de uma banheira.

Ao mesmo tempo que ainda estava em choque, Rich também sentia as dores de cabeça. Nesse estado,

era difícil pensar, fazer qualquer ação delicada e até demonstrar sentimentos. Não se abalava por isso, claro,

porém era algo que já o estava incomodando.

— Por que você está indo para a cidade?

— O quê? — O jovem foi pego em um momento de distração.

— Arebolomde. Por que você vai para essa cidade? — Ingrid não perdia seu sorriso.

— Vou procurar suprimentos e conselhos. — Lembrou-se da noite anterior e então lembrou-se do novo

motivo para ir à cidade das estátuas — Além de, claro, procurar tratamento para minha... "maldição".

— Você vai para onde depois?

— Terras do Além. Tenho uma grande missão para fazer.

Ingrid tentou, mas obviamente não conseguiu esconder seu espanto.

— Você é corajoso! Mas não há nada lá! — Ela distraiu-se o suficiente para quase interromper sua magia

de acalmar as águas, fazendo tudo em volta deles agitar-se. Foi por pouquíssimo tempo, mas o suficiente para

quase fazer Richard balançar-se em Strength. — Pelo menos, nada bom. E indo naquela direção irá apenas piorar

os efeitos de sua maldição.

— Então é um motivo a mais para eu entrar na cidade.

Enquanto aproximavam-se, as estátuas ficavam cada vez maiores e mais grandiosas. Fisicamente, Rich

pensou, era impossível aquilo ser construído por meros humanos.

— E você? — Perguntou o cavaleiro — Por que atravessou tanto terreno para chegar até aqui?

— Vim visitar meu tio. A cada quatro anos eu faço essa viajem.

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— Você faz uma viajem tão grande apenas para visitá-lo?

— Sou uma vendedora de roupas, Rich. Ele é um grande alfaiate e enriqueceu com seus negócios com a

coroa. Eu revendo algumas para ele em Steam City! Esse é, entre outros, o principal motivo de minha visita. As

roupas que levo no Strength foram feitas por mim e, como vem de longe, são valiosas aqui. É um bom negócio

que dá certo há muitos anos. — Ela abriu um grande sorriso.

— Você não parece ser uma mulher de negócios.

— Mas eu sou. Tenho um filho e um marido sem condições de trabalhar.

— O que aconteceu com ele? — Perguntou o jovem, um tanto surpreso. Pela personalidade sorridente de

Ingrid, ela não parecia casada.

— Era um funcionário de obras, mas sofreu um acidente no trabalho e ficou incapacitado de andar

normalmente após aquilo... Assim, eu sustento a família.

Era realmente raro ver uma mulher tão disposta, pensou Richard, ainda mais para querer sustentar uma

família sozinha.

Ingrid apressou-se para mudar de assunto:

— Veja, Rich! Não são lindas? — Disse, olhando com seus grandes olhos para as estátuas na frente deles.

Agora, com a névoa reduzida e perto o bastante, era possível observá-las de verdade e ver o que aquelas

magníficas esculturas eram.

A primeira ficava, por algum motivo, um pouco mais afastada das demais, porém estava em um local

levemente acima das outras, alcançando maior altitude. Era a escultura de um homem, forte e com a postura de

um líder, usando uma armadura com uma grande capa balançante. Portava, em uma mão, uma longa lança,

maior que seu próprio corpo, cravada no chão. Na outra mão, segurava uma espécie de relíquia. O braço estava

estendido, como se a estátua quisesse "mostrar" o pequeno objeto para todos os que viriam a vê-la. Usava

também um estranho elmo.

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A segunda era de um homem vestindo armaduras pesadas. Em seu braço esquerdo estava preso um

grande escudo, parecido com o de Rich, porém maior. O direito estava levantado, deixando o homem em uma

posição vitoriosa, e sua mão estava segurando uma espada. Em sua cabeça, estava uma coroa simples.

A terceira estátua, por sua vez, era uma mulher: a única entre aqueles enormes monumentos. Era,

também, a única usando uma armadura leve. Portava duas espadas curtas, e estava com os dois braços

direcionados um pouco para trás de seu corpo. Sua cabeça, com longos cabelos e um lindo rosto de uma mulher

sedutora, estava curvada para cima, como se ela estivesse rezando ou recebendo energias do sol. Porém, o que

mais chamava atenção nela era um manto que usava encobrindo seus ombros, braços e costas.

E, por último, havia a quarta e última estátua. Era novamente um homem, o mais musculoso dos outros

dois. Tinha um enorme machado em uma mão, enquanto a outra estava estendida à frente de seu corpo, como se

dissesse "pare" para quem o visse. Tinha uma aparência selvagem, e uma enorme pele de urso que cobria sua

cabeça e descia até as costas, como os antigos bárbaros selvagens. Usava uma armadura pesada, porém não tão

bem feita quando as dos demais.

— Elas tem alguma história? — Perguntou o cavaleiro, admirado pelas esculturas.

— Sim. Essas quatro pessoas fundaram Adrebolomde. É a história mais contada em todo esse reino, e

você deveria ouvi-la.

— Você pode me contar?

— Eu não sou uma boa contadora de histórias... — Respondeu Ingrid, com seu sorriso natural — Mas os

vários sacerdotes e anciãos podem lhe contar.

Richard não sabia se iria ter tempo de ouvi-la, mas estava muitos curioso.

Já estavam perto da entrada, entre os pés das estátuas do homem vitorioso e da mulher com manto. Era

um grande portão, com um pedaço de terra à frende. Dando a volta no lago, era possível chegar a pé naquela

entrada, porém, Rich e Ingrid demorariam dias para chegar. Havia também um deque para eventuais chegadas de

navios, porém nenhum estava à vista.

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Haviam alguns viajantes indo e vindo da entrada — muito menos que a quantidade de pessoas que

entravam e saíam de Rarstead simultaneamente, quase o tempo todo. Parecia se tratar de um reino sem muito

comércio com o exterior.

— Essa é a única entrada? — Perguntou o jovem, enquanto Strength finalmente pisava em terra firme.

— Sim. É o único modo de entrar na cidade, pois ela é impenetrável pelos lados.

Ele lembrou-se, novamente, do que o sacerdote falara no templo de Samart: "Uma cidade impenetrável

sem permissão de entrar", por isso não era ameaçada pelas feras de Sarobou. Lembrou-se, também, que já havia

pensado em como ela seria tão protegida. Entretanto, não era rodeada por fogo e tampouco ficava nas nuvens. O

que ela teria de especial?

Sua imaginação foi interrompida quando os dois chegaram no portão. Haviam muitos guardas, todos bem

armados e aparentemente bem treinados. Ficavam, incansavelmente, observando os arredores e principalmente

os visitantes, para verificar se algum pudesse ser uma ameaça. E, certamente, Rich foi um dos suspeitos. Olharam-

no como se ele fosse uma verdadeira ameaça.

— Alto! — Alertou um deles para o jovem, que havia trocado de lugar com Ingrid: ela cavalgando em

Strength e ele a pé — Quem é você?

— Sou Ingrid Steelmare — Disse a moça —, e esse é Richard. Estamos apenas de passagem, eu para visitar

um parente e ele para comprar suprimentos.

— Vocês tem permissão ou passe? — Perguntou o guarda, ainda desconfiado.

— Eu tenho. — Ela tirou um pedaço de papel das bolsas de seu cavalo e mostrou para o homem — Ele é

meu convidado, então pode entrar junto comigo, certo?

— Não. As regras mudaram. Agora, cada indivíduo deverá ter passe individualmente.

Rich olhou para o lado e observou as pessoas que entravam e saiam: Todas mostravam seus passes e

permissões para os guardas. Realmente, o cuidado do reino para a segurança era algo impressionante.

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— Isso é um absurdo! — Disse ela — Eu exijo que nos deixem entrar, ele não fará mal a ninguém!

— As roupas ensanguentadas provam o contrário, madame. — Ele, então, olhou melhor para o papel

entregue — Esse é um passe de permissão para "Ingrid Steelmare", então você pode entrar sem problemas. Mas

ele, não.

— Como faço para conseguir um passe? — Perguntou Richard.

— Com o contador que estaria aqui perto, que verificaria toda a sua bagagem e lhe entrevistaria. Porém,

ele está de férias e só atende civis! — O guarda deu uma breve risada — Cavaleiros viajantes só podem entrar se

ganharem a confiança do reino, e isso só é possível fazendo missões diretamente para os reis.

— Eu posso fazer uma dessas missões, então! — Disse o jovem, determinado a entrar.

— Não, Rich! — Disse a moça, dando um leve chute nas costas dele de cima do cavalo — Essas missões

podem durar semanas!

O cavaleiro praguejou. Seus suprimentos, como comida e água, estavam quase no fim. Precisava achar um

jeito de entrar.

— Eu juro que não serei nenhuma ameaça, senhor! — Insistiu ele — Eu posso provar de qualquer

maneira!

— Eu entendo, amigo — respondeu o guarda —, mas regras são regras.

Ingrid colocou a mão no ombro de seu companheiro, e disse:

— As regras são rigorosas. Sinto muito, Lionfist.

Um dos guardas, que estava um pouco mais atrás do que falava com o cavaleiro, chegou mais perto, com

um olhar surpreso:

— Espere, você é Lionfist? Richard Lionfist?

— Sim, sou filho de Alven Lionfist, de Rarstead.

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—Então você finalmente chegou! — Disse o guarda sorridente, abrindo os braços. O jovem surpreendeu-

se, pois aquele guarda era familiar.

— Eu lhe conheço? — Perguntou ele.

— Sim, meu nome é Frosh. Eu era um dos guardas de Rarstead até uns anos atrás, mas fui transferido

para cá. Nos conhecemos brevemente um dia, não se lembra?

— Um pouco... vocês sabiam que eu viria?

— Sim, recebemos a notícia de que você estava vindo para cá. Todos estão esperando! Você tem

permissão para entrar.

— Você tem certeza, Frosh? — Perguntou um dos guardas.

— É claro que sim! Desfrute da grande cidade de Adrebolomde, Lionfist!

O jovem sorriu contente. Porém, algo estava estranho. Por que alguém seria tão amigável com ele após

anos? Por que assumir a responsabilidade de deixar um "estranho" entrar?

Os guardas abriram caminho, deixando Ingrid e Richard entrarem. Era um grande portal, e era necessário

atravessar uma espécie de túnel para se chegar realmente à cidade, atravessando um morro por dentro.

Frosh os acompanhava na passagem.

— Você vai se maravilhar com a cidade, jovem Richard! — Disse ele. — Não espera ver as grandiosas

estátuas, conhecer a história dos quatro reis... — o ex-guarda de Rarstead estava realmente feliz em ser um "guia

temporário" — E as mulheres! Amigo, uma é mais bela que a outra!

Ingrid riu ao ouvir isso, enquanto Lionfist fingiu que não ouviu. Porém, ainda tinha um sorriso estampado

no rosto, causa de sua alegria por passar pelos guardas.

— Escute, Richard — continuou —, por que você não passa essa noite no hotel onde eu moro?

Era uma oferta tentadora, mas o jovem mais uma vez desconfiou.

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— Desculpe — a moça impôs-se —, mas nós já decidimos que ele dormirá na residência do meu tio.

— Sim, é muita gentileza, mas não posso. — Concluiu o jovem.

— Está bem, mas você pode pedir minha ajuda sempre que desejar, jovem Rich! — Frosh não perdia o

entusiasmo.

— Aliás — continuou Lionfist —, por que tanta hospitalidade da sua parte? Qual é o motivo de tanta

euforia para a minha entrada?

— Estamos todos ansiosos para ver você derrotar Sarobou, meu jovem. Rarstead estará lhe ajudando em

tudo o que for possível!

Essa frase foi realmente estranha para Richard. Susanno IV não estava tentando impedi-lo de sair do

reino? Algo estava errado.

— Tenho que votar para meus afazeres, amigos — continuou Frosh —, estarei no hotel "Pegadas

Flamejantes" se precisarem de mim. Não hesite se precisar, camarada!

— Até mais.

— Adeus.

O guarda, então, voltou ao portão de entrada.

Richard e Ingrid estavam quase na saída do túnel, quando a moça olha para ele com entusiasmo e seu

habitual sorriso:

— Prepare-se para ver o que sua imaginação não permitiria, Richard!

Essa frase aumentou ainda mais o sorriso no rosto no cavaleiro. Ao saírem do túnel, ele se maravilhou

com a visão da cidade.

Foi encantador ver uma gigantesca cidade que ficava escondida entre a depressão das montanhas. Casas,

templos, torres... tudo parecia antigo, porém em perfeito estado. Era uma cidade feita de pedra: uma ótima

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arquitetura. Torres altas para vigia estavam em toda a cidade, casas de pedra pareciam ter sido construídas por

gigantes. Ao fundo, um grande palácio, com vários detalhes em ouro.

Porém, não eram as casas, os centros comerciais ou o palácio que realmente deixavam a cidade bonita:

eram as estátuas. Em todo canto, haviam estátuas preservadas em perfeito estado decorando Adrebolomde,

tornando-a ainda mais magnífica.

Ingrid observou o jovem boquiaberto e riu.

— É linda, não é?

Richard mal tinha palavras para falar. Enquanto ambos andavam, ele maravilhava-se cada vez mais com a

riqueza de detalhes que a cidade tinha e, principalmente, com as estátuas. Na entrada de um prédio, uma grande

estátua de um cavaleiro em seu cavalo, que estava empinado, apoiado apenas em suas patas traseiras. Em outra

esquina, uma bela mulher nua esculpida em cima de um pégaso. Eram obras de arte que realmente deixavam a

cidade brilhantemente exótica.

— Essa cidade é antiga, não? — Perguntou ele.

— Sim, isso é bem óbvio. Nunca cheguei a perguntar a real idade da cidade, mas acredito que tenha mais

que mil anos.

Enquanto andavam para a residência do tio de Ingrid, o jovem continuava maravilhado com as

construções e esculturas. Entretanto, em um momento, sentiu novamente uma fortíssima dor de cabeça.

— Ingrid — reclamou, mal conseguindo pensar direito —, você disse que iria me explicar o que é essa tal

"maldição" aqui na cidade, certo?

— Meu tio entende melhor, ele lhe explicará. Aguente firme!

Andaram até chegar em uma casa que, na frente, havia uma escultura de um anjo usando uma espada.

Era, perceptivelmente, uma grande loja de roupas. Atrás dela, havia uma grande torre, uma das maiores da

cidade.

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— Chegamos! — Anunciou a moça.

Ela deixou Strength perto da entrada. Ao entrarem, Ingrid apresentou o jovem à atendente da loja, uma

tímida moça chamada Gabriella, e então andaram até os fundos, onde o tio trabalhava costurando e fazendo

roupas.

Enquanto andavam pela loja, Rich percebeu que as roupas eram muito mais bem feitas e bonitas que as

que eram vendidas em Rarstead. A loja em si era bem cuidada: um cuidado que os cidadãos de sua cidade natal

não possuíam. Seria Adrebolomde um "novo nível" de reino?

Ao entrarem na sala, que era um pouco escura e bagunçada, um homem de meia-idade levantou-se de

sua cadeira, onde estava trabalhando em uma peça de roupa, e simplesmente abraçou Ingrid com força.

— Tio Thomas! — Disse ela, com tanta emoção em suas palavras que parecia estar chorando.

— Ingrid! Como é bom vê-la! — O homem estava emocionado. Pareciam se amar como pai e filha.

Thomas tinha cerca de quarenta e cinco anos de idade. Tinha uma barba longa que chegava até o peito, e

era calvo. Vestia roupas praticamente nobres, obviamente feitas por ele mesmo. Tinha um sotaque característico

dos marinheiros das terras do leste, exagerando no tom das letras "o" em suas frases faladas, porém não se

parecia nem um pouco com um. Logo que o viu, Richard sentiu um cheiro ao mesmo tempo estranho e

aromático, e logo viu que em cima da mesa de trabalho do homem havia um charuto descansando sobre um

cinzeiro. Por algum motivo, o jovem lembrou-se de Jaccob e seu cachimbo.

Após a moça e o alfaiate retrucarem algumas palavras carinhosas em tom baixo, inaudível para o

cavaleiro, ela os apresenta um para o outro.

— Thomas, esse é Richard Lionfist. Ele me protegeu até aqui e em troca eu o guiei até aqui. Rich, esse é

Thomas Merble Steelmare. É o maior alfaiate de todo o reino!

— Um dos maiores, querida. — Ele falava sempre como se estivesse falando com reis: educadamente,

honestamente e, principalmente, humildemente. — Um dia, apenas na hora certa, serei o maior.

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— É um prazer conhecê-lo, senhor Steelmare. — Saudou-se o jovem, colocando o punho fechado sobre o

peito, saudação comum feita por cavaleiros e guardas.

— O prazer é todo meu. — Ele virou-se e pegou seu charuto de cima da mesa, começando novamente a

fumar. Observou, então, as roupas do jovem. — Pelo jeito, você comprou roupas da minha sobrinha e mostrou

como lutar vestindo-as.

O homem estava se referindo ao sangue na roupa.

— Um pequeno acidente ocorreu, tio. — Defendeu a moça — Se não fosse por Rich eu chegaria aqui nua,

sem passe e violentada! Ele salvou minha vida, por isso sou grata. — O cavaleiro não conseguiu identificar se ela

estava falando sarcasticamente ou não.

— Entendo. Você é um herói, meu jovem. O que procura em Adrebolomde que não seja ouvir a história

fantástica sobre esse reino ou admirar os belíssimos monumentos dos quatro reis fundadores, enquanto ouve a

história do reino? Ou, talvez, fumar o melhor cachimbo das terras do norte, enquanto admira as estátuas e ouve a

história do reino? — Ele riu, baforando fumaça de cachimbo tanto no jovem quanto na dama. Ela, porém, parecia

estar acostumada, enquanto Richard dificilmente via alguém fumando algo em Rarstead.

— Tio, você está o confundindo!

O jovem apressou-se para falar o que queria, pois perder tempo na cidade não era seu objetivo.

— Vim procurando por suprimentos, a cura para um tipo de doença que estou tendo e também por

respostas para o caminho que estou seguindo.

— Que doença seria essa, meu jovem? — Perguntou Thomas, interessado mais com isso do que com o

destino de Rich. — Sou conhecedor de medicina também, e posso lhe tratar, se puder.

— Não é uma doença... Ingrid disse que é uma maldição. Tenho fortes dores de cabeça e passo por

alucinações. — Mais uma vez, ele lembrou do episódio que passou recentemente. Cada vez que isso acontecia,

seu coração parecia cuspir sangue por causa da angústia.

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— Isso pode ser... — O alfaiate alisou a barba e pensou profundamente. — Maldições são dificilmente

curáveis, meu caro Richard, porém o templo da cidade possui sacerdotes que podem conhecer a cura. Lhe

recomendo visitá-los.

— Obrigado pela informação.

Pelos próximos minutos, os dois homens conversaram assuntos diversos e Rich teve a oportunidade de

descansar. Enquanto isso, Ingrid trocava de roupa em um dos quartos de hóspedes do segundo andar.

Com as conversas, o jovem descobriu que Thomas nasceu em Steam City e, junto com o irmão, que

posteriormente se tornaria pai de Ingrid, mudaram-se aos sete anos para um reino nas terras do leste junto com

o pai, vivendo de pesca. Ele estudou e aprendeu sobre medicina. Com a morte do pai por causa de assaltantes, os

dois irmãos saíram daquele reino. Um voltou para Steam City com sua mulher e o outro, Thomas, viajou para

Adrebolomde para ser alfaiate. Escolheu essa profissão pois era lucrativa e não teria os inúmeros problemas que

encontrou quando tentou ser médico.

Ao revelar para o senhor qual era o lugar que queria ir, Richard recebeu uma resposta um tanto diferente

das que já havia recebido.

— Você é realmente um herói, garoto. Porém, são poucas as pessoas que conhecem as Terras do Além.

Talvez, se você perguntar para o rei ou os anciões daqui, você terá respostas melhores.

— Esse reino se situa tão perto do lar de Sarobou e vocês mal conhecem o que há ao norte? — Rich ficou

um pouco perplexo, pois imaginava que os cidadãos de Adrebolomde soubessem mais sobre aquelas terras

amaldiçoadas.

— Você nunca soube que somos isolados? É perigoso demais ir até as Terras do Além, por isso pouco a

conhecemos. E nossa cidade é impenetrável, o que nos permite viver aqui seguramente.

Agora era a oportunidade de Richard perguntar o que estava em sua mente desde que saiu de Rarstead.

— Como essa cidade é tão segura?

Thomas espantou-se tanto com a pergunta do cavaleiro que quase caiu de sua cadeira.

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— Você entrou na cidade e não viu a Barreira de Firestorm? Ingrid, você não mostrou para ele?

Nesse momento, a moça estava descendo as escadas para a sala onde os dois estavam, com a roupa

trocada.

— Eu realmente esqueci. — Respondeu ela. Sorrindo mais uma vez, ela convidou o jovem — Rich, quer

ver a cidade do topo da torre? Irei lhe mostrar a barreira.

— É claro. — Respondeu ele, simplesmente.

O cavaleiro e a moça subiram por longas escadas circulares. Ao chegarem ao topo e ela abrir a porta para

a sacada da torre, os fortes raios de sol obrigaram Richard a serrar os olhos e esperar para acostumar-se com a

luminosidade.

Quando finalmente seus olhos permitiram-se abrir totalmente, Richard viu a magnífica cidade de uma

posição ainda melhor da que vira ao entrar na cidade. Casas em tons de cinza e branco e estátuas em todo lugar

deixavam a cidade completa.

Agora, o jovem estava no topo de uma das maiores torres da cidade. Podia ver além do que lhe foi

permitido ao entrar: podia ver os limites.

— Veja, Rich! Lá está a barreira que rodeia toda Adrebolomde! — Apontou Ingrid.

Finalmente, o cavaleiro teve a chance de ver a tal "barreira", que deixava o reino praticamente inacessível

pelos lados. Porém, não era feita de fogo e muito menos era uma muralha. O que fazia aquela cidade ser

impenetrável era um completo... nada. Não havia absolutamente nada protegendo o perímetro. Tudo o que havia

além das casas e estátuas eram montanhas.

Porém, olhando mais atentamente, era possível ver algo...

— Não vejo nenhuma barreira cobrindo a cidade, Ingrid... — Disse ele, em dúvida e parcialmente

decepcionado.

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— Não há nenhuma barreira ou muralha protegendo a cidade, Rich. — Respondeu a mulher, sorrindo

emocionada por estar, mais uma vez, vendo aquela paisagem, após quatro anos — O que deixa a cidade quase

impossível de se entrar pelos lados é o simples fato de não haver NADA que ligue a cidade ao exterior. Observe

além das construções, no chão!

O jovem observou, mesmo não tendo entendido completamente a explicação da moça. Assim, finalmente

viu.

Rodeando a cidade, havia uma enorme cratera. Um enorme buraco que provavelmente tinha centenas de

metros de profundidade. Tinha, também, dezenas de metros de largura, impossibilitando qualquer tipo de salto

ou acesso. Adrebolomde era, praticamente, uma plataforma dentro de um buraco.

— Lembra-se que nós passamos por um túnel para chegar até aqui, Rich? — Perguntou Ingrid. — A única

entrada é aquela grande ponte, que na verdade é um morro suspenso que atravessa a cratera!

O jovem impressionou-se. Como seres humanos seriam capazes de cavar tato? Assim como as estátuas da

entrada, que ainda podiam ser vistas de dentro da cidade, era algo que simples pessoas não seriam capazes de

fazer.

Entretanto, uma dúvida atingiu o cavaleiro:

— A cidade não cresce mais do que isso, então? — Era perceptível que a "barreira" já começava alguns

metros após as últimas casas, sem espaço para plantio ou crescimento.

— Mais ou menos. — Ela respondeu, apoiando-se no parapeito da torre e ainda admirando a paisagem —

Em termos de território, ela realmente não tem como passar da barreira. Contudo, a cidade faz um crescimento

vertical contínuo para aumentar a população. Olhe! — Ela, então, apontou para um certo pondo da cidade.

Richard viu, então, uma construção sendo feita em cima de uma grande casa. Um prédio estava sendo

feito sob os telhados da edificação.

Realmente era algo interessante. A cidade era deslumbrante, porém tinha esse problema: o espaço.

Mesmo com um crescimento vertical, Adrebolomde um dia chegaria ao seu limite.

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— Como a cidade recebe alimento e água se não há fazendas por perto?

— A água nós drenamos do fundo da barreira, usando bombas, uma tecnologia nova e muito

interessante. — Ela sorriu mais uma vez, sentindo o vento fresco e agradável em seu rosto — O nosso alimento

vem em parte de algumas fazendas por perto, mas a maioria é importada dos reinos mais próximos. Como essa é

uma cidade rica e praticamente sem classes baixas, nosso comércio é forte com o exterior.

"Apesar de ser um pouco estranha, Ingrid é deveras inteligente", pensou o jovem.

Sua admiração, porém, foi paralisada com mais uma forte dor de cabeça.

— Preciso ir ao templo, Ingrid. — Disse ele, com a mão sobre a cabeça. — Também quero comprar

suprimentos e conseguir informações no palácio. Quero fazer isso tudo ainda hoje!

— Vai procurar a cura para os problemas, não? — Denotou a mulher, ainda sorrindo. — Ótimo, eu vou

contigo então. Eu tenho tempo, não se preocupe. Eu sempre fico entediada quando venho sozinha a essa cidade!

Ambos desceram para a loja e, antes de saírem, Thomas os segurou.

— Vocês já vão sair novamente? Fiquem um pouco mais!

— Eu gostaria, senhor Thomas — Disse o jovem, fazendo uma curta e leve reverência —, mas estou com

pressa. Sua sobrinha logo estará de volta.

Gabriella, a tímida recepcionista da loja de roupas, já havia descarregado as cargas de Strength. Isabel

subiu em seu cavalo e cavalgou com Rich andando ao seu lado.

— Você realmente gosta dele, não? — Perguntou o jovem.

— Ele é como meu "irmãozinho". — Respondeu ela, com um gentil sorriso no rosto e olhos semicerrados.

Andaram pela cidade, atravessando pequenas praças e pontos turísticos. Rich continuava admirando a

belíssima cidade e suas estátuas, mas suas dores de cabeça ficavam cada vez mais fortes.

Ao passar por algumas lojas e tendas, aproveitou para comprar alguns suprimentos, como comida

durável, um cantil novo de água e uma corda, caso quisesse escalar em alguma parte de sua jornada. Ao comprar

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um kit de primeiros socorros em uma humilde farmácia, ele levantou um pouco sua camisa — havia comprado

outra, sem marcas de sangue — e viu que ainda havia, na lateral de seu abdômen, a cicatriz do episódio em que

caiu da montanha junto com o golem. Seria uma marca que sobraria para toda a vida, que o lembraria da

aventura que teve. Isso, claro, se sobreviver após resgatar Isabel. Mas isso não o preocupava: Viver ou morrer não

mais fazia parte de suas preocupações. Iria o mais longe que pudesse, mesmo se morrer tentando.

Estava, sem dúvida, disposto a não deixar a cena que vira recentemente, com Isabel morta em seus

braços, se repetir.

Finalmente chegaram ao templo. Parecia ser uma das edificações mais antigas de todo aquele reino.

Dentro, haviam pessoas orando, outras conversando e muitas outras deixando moedas em recipientes

espalhados pelo lugar. Pareciam ser oferendas ou, mais provavelmente, doações para pessoas mais pobres.

Altruísmo. Uma palavra que dificilmente era ouvida e praticada entre pessoas.

— Grande sábio Kashadin! — Disse Ingrid amigavelmente, porém respeitosamente, ao sacerdote do

templo. — Trago algo especial para você hoje!

— O que seria, pequena Steelmare? — Respondeu ele. — Mais um pequeno enigma, ou veio apenas para

me vender roupas?

— Creio que seja o primeiro. Esse jovem cavaleiro precisa de ajuda.

Richard observou o homem. Era, ao contrário do velho sacerdote de Rarstead, que o jovem conversara

antes de partir para a aventura, mais jovem e que demostrava mais força do que apenas poder e respeito. Alto e

com um olhar autoritário, Kashadin usava uma longa toga, cobrindo a cabeça com um capuz. Portava um cajado

muito bem esculpido por sinal, que na ponta tinha um brilhante cristal branco.

O jovem apresentou-se para o homem de meia-idade e contou sobre o que acontecera recentemente: as

dores de cabeça e o triste episódio de ilusão que passara na noite anterior.

— O que poderá ser, meu sábio? — Perguntou o jovem após perceber que o sacerdote estava pensativo

há minutos, sem falar nada.

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Ele pareceu ignorar a pergunta de Rich e, após longos segundos, voltou a falar:

— Sinto muito, jovem, mas não conheço essa enfermidade. Maldições são, em sua grande maioria, únicas

e dificilmente diagnosticadas. O pior é que pouquíssimas tem tratamento conhecido.

Richard, ao ouvir isso, ficou inquieto. Suas dores não parariam? E se as ilusões voltassem?

Ao pensar nessas coisas, o jovem sentiu outra dor de cabeça, dessa vez tão forte que quase o derrubou no

chão por causa da tontura. Ele caiu de joelhos e mal conseguia se controlar.

— Por favor, senhor Kashadin! Não há nada que você possa fazer para pelo menos amenizar as dores de

cabeça dele? — Ingrid perguntou, quase desesperada pela angústia do amigo.

— Não, mas creio que possamos tirar algo disso.

A mulher não entendeu direito as palavras do homem. Este então segurou a cabeça do jovem e abriu seu

olho com firmeza, vendo a escuridão que se formou em volta da íris. A ação do sacerdote chamou atenção de

todas as pessoas do templo, mas isso se intensificou ainda mais quando o homem, que raramente se

impressionava, ficou com uma expressão de pavor em seu rosto. Após alguns segundos, o sacerdote soltou o

cavaleiro, firmou novamente sua postura, fez sinal para os dois o seguirem e andou para os fundos do templo.

Richard não entendeu muito bem a atitude do homem. Esfregou os olhos e o seguiu, junto com Ingrid.

Após encontrarem-se em uma sala nos andares subterrâneos do lugar, isolada das demais, Kashadin

apenas falou:

— Isso é uma maldição de um dos fiéis servos de Sarobou.

— Sarobou? — Richard ficou, de um momento para outro, abalado.

— Morphos. O braço-esquerdo de Sarobou, quase tão temido quanto seu mestre. Acredita-se que esse

homem amaldiçoe as pessoas que o veem, torturando-as e assim se divertindo. É um cruel e confiável agente do

lorde da perdição.

— Isso é horrível! — Disse a moça, assombrada.

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Porém, dúvidas surgiram na mente no cavaleiro.

— Braço esquerdo?

— Sarobou tem muitos súditos em seu castelo, meu jovem. São os cornutuns, metade demônios e

metade humanos. São fortes e devotos ao seu mestre, sendo uma grande ameaça a qualquer ser vivo que pise

nas terras do além! — O sacerdote sentou-se e se tornou um pouco nervoso ao contar aquilo, como se esses

servos do Lorde já tivessem trazido dor a ele. — É claro, além das feras que ele adora domesticar.

— Sim, já passei por um momento desagradável com uma delas... — Contou Richard.

— Entre feras e meio-demônios, há dois indivíduos que se destacam entre os serventes do Lorde: O

braço-esquerdo, chamado de Morphos, conhecido por ser um tipo de "segundo no comando" do castelo e

inseparável de seu mestre, e o braço-direito...

— Quem é esse? — Ingrid ficou curiosa. Já havia ouvido algumas histórias sobre o castelo sombrio do

Lorde, mas nunca tão detalhadamente. O cavaleiro lembrou-se da silhueta que vira pouco antes de desmaiar,

após quase matar a moça: os olhos vermelhos e hipnotizantes... certamente era o braço-esquerdo.

— Não se sabe seu verdadeiro nome, mas é alguém que dizem ser capaz de arrasar cidades inteiras, pelo

fato de transformar-se em um besta gigantesca. Talvez seja o mais forte de todos os servos!

O jovem hesitou em falar, pois uma questão lhe veio à cabeça: Talvez tivesse que enfrentar, além de

Sarobou, seus dois súditos mais poderosos. Precisava, além de recuperar sua armadura, de companheiros para o

ajudarem. E, claro, curar sua maldição.

— Não há mesmo nenhuma cura para a maldição que estou sofrendo?

— Não, meu jovem. Ninguém nesse reino saberá.

Richard enfureceu-se por dentro. Entretanto, Ingrid pensou em algo:

— Mas você não disse que outras pessoas já foram amaldiçoadas por esse tal de "Morphos"? Nenhuma

foi curada?

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Kashadin escondeu a infelicidade de sua alma e até tentou abrir um leve sorriso, mas não conseguiu fazer

uma expressão de segurança.

— Morphos sempre causou apenas pesadelos terríveis aos que caíam na maldição. Era tão horrível que

muitos preferiam morrer à continuar tendo pesadelos. Morphos ganha forças e se alimenta de experiências ruins

das pessoas! — O sábio parecia estar sentindo, mesmo que bem pouco, a desgraça das pessoas que caíam na

maldição. — É a única maldição conhecida que deixa os olhos dos "infectados" escuros, por isso concluí que quem

o deixou desse jeito foi esse cretino, Richard.

— Mas havia uma cura? — A moça perguntou novamente.

— Sim. Metade dos que eram submetidos a isso sobreviviam. Porém, maldições diferentes nunca

apresentam tratamentos iguais. Nunca ouvi falar sobre a que você contraiu, jovem cavaleiro, portanto não tenho

cura. Sinto muito.

— Então precisarei de companheiros fortes para a jornada, para compensar minha debilidade... —

Cochichou, para si mesmo, Lionfist.

Agora foi a fez do sacerdote fazer alguma pergunta:

— Se você contraiu a maldição vindo para cá, qual é o seu objetivo nessa cidade?

— Minha armadura foi retirada de mim pelo deus Samart. Vim à procura de respostas de como recuperá-

la... — Mentiu parcialmente.

— Já ouvi falar sobre isso... não sei como eu ajudaria, mas há outros sábios no palácio que provavelmente

podem lhe ajudar, meu caro.

Todavia, ainda havia algo estranho. Frosh, o guarda que o deixou entrar em Adrebolomde, disse que

"todos" esperavam a chegada do jovem, porém esse sacerdote nunca ouvira falar nele. Não fazia ideia do destino

da jornada, também. Havia algo errado, algo que provavelmente não era bom.

Precisaria partir rapidamente, pois tinha um plano em mente que acabou de criar: Tentar recuperar sua

armadura indo ao castelo, pois lá talvez houvesse alguém que conseguisse ajudar, e depois disso procuraria por

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mercenários ou pessoas úteis para acompanhá-lo nas Terras do Além. Pelo menos duas pessoas fortes. Seriam

muito úteis para lutarem pelo jovem quando ele estivesse incapacitado pelas dores de cabeça.

O cavaleiro agradeceu Kashadin e lhe deu um pequeno saco de moedas. O sábio acompanhou ele e Ingrid

para a saída. Mas, antes de sair, Rich perguntou uma última curiosidade:

— Qual era a cura da maldição dos pesadelos? — Indagou, curioso, enquanto separava-se do homem.

— Deixávamos a pessoa oito dias sem dormir.

Já fora do templo, Richard anunciou para Ingrid aonde queria ir em seguida: o palácio da cidade.

Enquanto o jovem andava e a moça cavalgava montada em Strength, eles conversavam.

— Por que não contou que vai às terras do além? — Perguntou a mulher e, quem diria, mostrando uma

expressão de seriedade em seu rosto.

— Acho que ele não ia gostar da ideia. — Ficou evidente que ela não gostava que as pessoas mentissem.

— E você? Por que ele te conhecia tão bem? Visita muito o templo?

— Eu vendo roupas do meu pai para ele. Faço um preço especial de três peças por trinta yols! — Disse

ela, sorrindo novamente.

— Vende cada uma individualmente por dez?

— Sim. Como sabe?

— Não sei, apenas presumi. — Brincou ele.

Era possível ver o enorme palácio de longe, mesmo com prédios sendo construídos em todo lugar. As

estátuas ainda impressionavam: Na entrada de um hospital, havia a belíssima escultura de um homem montado

em um enorme javali lutando contra uma serpente com asas. Quem inventava aquelas coisas?

Aquele reino parecia pacífico e muito bom de se viver. Comerciantes trocando mercadorias com clientes

em um lado, crianças brincando em uma fonte em outro, guardas discutindo em outro. Era simples, sereno,

tranquilizante de se ver. Era um exemplo de cidade, pois Rarstead tinha, em uma mesma rua comercial

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importante, bêbados brigando ou fazendo farra, pessoas nobres mostrando seus luxos com suas carruagens e

miseráveis pedindo comida em troca de nada. Por que uma diferença tão grande?

Provavelmente, inteligência. Enquanto a grande maioria da população de sua cidade natal não sabia ler,

em Adrebolomde isso se invertia. Era uma mistura de igualdade e justiça.

Agora, Richard entendia o porquê de apenas confiáveis poderem entrar: um ignorante pode infectar

milhares de inteligentes. É um fato, o mundo é assim: os afortunados se aproveitando dos pobres, os fortes

sofrendo por causa dos fracos. Um mundo de inveja, ignorância e gula. A cidade das estátuas se isolava

simplesmente para evitar isso.

Enquanto andavam, o jovem teve uma sensação estranha. Olhou para trás, porém não viu nada além de

pessoas normais na rua. Após sentir novamente, olhou novamente por cima do ombro, e viu brevemente alguém

se escondendo em um grupo de pessoas. A sensação de estar sendo seguido o incomodava, então apressou o

passo junto com Strength, que levava Ingrid.

Logo, os dois já estavam na entrada do palácio para falar com os sábios que lá viviam. Com um pouco de

discussão com os guardas, finalmente conseguiram ter acesso à parte interna. Parecia ser exatamente um lugar

de nobres: Grandes quantidades de comida à vontade em uma grande mesa, chão praticamente forrado com

tapetes importados, paredes cheias de obras de arte, grandes janelas e até o teto foi transformado em uma

grande obra de arte, ilustrando uma luta épica entre quatro heróis. Seria eles os "Quatro Reis"?

E, claro, sem contar as várias estátuas que eram esculpidas até mesmo dentro do salão.

Havia inúmeros cidadãos e funcionários do palácio por todo o lugar, fazendo visitas e trabalhando,

respectivamente. Mas onde estava o rei?

— O rei Achilles VII fica sempre em uma área separada. — Disse a mulher para o cavaleiro. — Por que não

falamos com um dos grandes sábios de Adrebolomde? Um deles talvez possa o ajudar, Rich!

O jovem concordou. Foram até o velho eremita que lia um grosso e antigo livro, sentado aos pés de uma

grande estátua de uma mulher com um falcão nos ombros. Enquanto lia, fumava uma espécie de narguilé.

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— Grande sábio, nós pedimos a sua ajuda. — Disse Richard, respeitosamente, ao idoso. Este tinha um

olhar cansado, porém expressava sabedoria de alguma forma.

Ao ver o jovem cavaleiro, o ancião sorriu.

— Olá, jovem guerreiro e olá, donzela. Se eu fosse quarenta anos mais novo, eu poderia dar a minha mão

para vocês beijarem, mas acho que já passei muito da idade. — Ele riu. Suas palavras transmitiam simpatia. — O

que desejas? Quer que eu leia o futuro? Ou apenas uma xícara de chá?

— Não senhor, obrigado. Estou aqui em busca de um pequeno conhecimento.

— É mais um que quer saber como esculpi quatro das cinquenta e sete estátuas desse palácio?

— Não, meu caro ancião. Vim saber como recuperar algo que tem muito valor para mim. O que o senhor

sabe sobre o deus Samart?

— O suficiente para eu ensiná-lo a meditar. Mas, antes de qualquer pergunta ser respondida, digam-me

seus nomes.

— Eu sou Richard Lionfist, filho de Alven Lionfist — O jovem já se acostumara com essa apresentação há

tempos. — Essa é Ingrid Steelmare. Eu vim de Rarstead e ela, de Steam City.

— Posso adivinhar seu nome? — Disse a moça, radiante, para o mago.

— Não, Ingrid! — Interrompeu o cavaleiro. — Não é necessário.

O velho tragou seu narguilé e começou a falar, soltando uma grande quantidade de vapor aromático pela

boca.

— Eu sou o mago Darimistes, muito prazer. Diga o que desejas, jovem guerreiro.

— Fui pego pelo julgamento de Samart, e preciso saber como recuperar minha armadura. O senhor sabe

como?

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— Isso é raro de se ver. Deveras interessante Samart se importar com alguém tão jovem. Mas poucos

passam por seu julgamento sem morrer ou desistir, e recuperar a armadura é a parte mais difícil de todas, jovem.

Eu sei como recuperar o escudo, deseja saber como?

— Não senhor, já tive meu escudo de volta.

— E a arma? Oh não, para isso você deveria matar alguém...

— Senhor Darimistes, eu só quero saber como recuperar minha armadura! — Richard estava quase

perdendo a paciência.

— Para recuperar esse equipamento, você deverá continuar seguindo em frente. Você saberá como

recuperá-la no caminho para o seu último confronto. Boa sorte com sua jornada, pequeno guerreiro! Lute, e

conseguirá salvar aquela que merece seu suor.

— Como você... — O cavaleiro confundiu-se ao extremo com as palavras do mago, como se alguém

tivesse dado uma forte martelada em sua mente.

— Todos que respiram meu vapor aromático se conectam com minha mente, meu jovem. Sinto muito

pelo seu pai e mãe, foram boas pessoas.

O jovem ficou, ao mesmo tempo, impressionado pelo dom do mago mas ao mesmo tempo indignado pelo

fato de não ser possível recuperar sua armadura ali. Entretanto, não podia duvidar das palavras daquele eremita.

Continuaria sua jornada para salvar Isabel, custe o que custasse.

— Obrigado, meu sábio. Eu tenho coisas a fazer, então estou indo.

— Porque tanta pressa? — O velho deu mais uma grande tragada em seu narguilé, mais uma vez soltando

vapor por todo o redor dele, e continuou — Você não achará companheiros de viajem saindo agora. À noite, você

poderá ir à taverna "Vale do machado": lá, há muitos mercenários e pessoas que ficariam felizes em lhe

acompanhar. — Outra vez, o cavaleiro se impressionou com os poderes daquele homem. — Por hora, sente-se

aqui e ouça a história desse reino, você não se arrependerá.

— Eu não sei se devo, senhor... — Disse o jovem, equivocado.

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— Vamos, Rich! — Disse Ingrid, já sentada. — É uma dádiva ouvir a história de um dos magos oficiais do

palácio!

O jovem não queria perder tempo. Porém, parecia não ter muita escolha. Sentou-se ao lado da moça e à

frente de Darimistes, em cima de um confortável tapete.

O mago tragou mais uma vez seu narguilé, e ajeitou-se para começar a contar a história: fechou o livro

que estava aberto em seu colo, colocou o narguilé mais perto de si e limpou a garganta.

Com uma cena rara daquelas, em que um grande eremita de Adrebolomde conta a história do reino com

suas palavras e usando sua grande sabedoria, as pessoas que estavam andando, conversando, admirando as artes

em volta e descansando, reuniram-se para ouvir também. A maioria parecia já saber da história, mas

provavelmente jamais haviam ouvido daquele homem.

Algumas sentaram-se, outras ficaram de pé. Mas todas, absolutamente todas, sem exceção, estavam

extremamente interessadas e ansiosas para ouvir.

Em meio a vários cidadãos da cidade das estátuas e diante de um dos maiores sábios que veria em sua

via, o jovem cavaleiro ficou mais interessado na história. Agora, não mais tinha pressa, e queria ouvir como

aquele reino foi construído.

Vendo que uma grande quantidade de pessoas já estava reunida diante de si, Darimistes sorriu, fumou

mais uma vez seu famoso vapor aromático, e começou a contar a grande história de Adrebolomde e dos quatro

grandes reis.

Capítulo 10

Os quatro mitológicos

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Há muito tempo, desde a época em que a escuridão era mais procurada que a luz, desde que o que

matava era mais lembrado do que o que salvava, quando o mundo via mais sangue que água e mais morte do que

nascimentos, haviam quatro heróis que eram reconhecidos por todo o continente.

Não se sabe quando se conheceram, mas reza a lenda que os quatro, após se encontrarem

coincidentemente pela primeira vez em um castelo abandonado, lutaram para ver qual era o melhor. Após quatro

dias de luta, ninguém morreu. Ninguém venceu. Todos eram fortes demais para morrer e fracos demais para

matar. Se tornaram grandes companheiros e, então, fizeram missões importantes juntos, assim ganhando

respeito e conhecimento dos locais onde passavam.

Os quatro, ao ouvirem o boato do surgimento de um demônio maligno, que parecia ser invencível e traria

mal ao mundo, aceitaram a missão de matá-lo. Após uma longa viajem que passou dos lendários Vales da Lava

Negra, entraram no território hostil. Em seguida, adentraram o castelo sombrio e finalmente enfrentaram o

temível demônio Sarobou, o lorde da perdição!

Uma luta épica e brutal foi travada entre os guerreiros e o chefe dos cornutuns. Depois de uma grandiosa

batalha, capaz de causar inveja até em um confronto entre deuses, os quatro heróis foram derrotados.

Porém, ao invés de matá-los, o Lorde ofereceu uma segunda opção. Sarobou é orgulhoso. Sim, é maldoso

ao extremo, mas também honrado. Disse que eles foram os segundos e oferecer uma experiência tão memorável,

então pediu aos quatro cavaleiros que construíssem uma cidade próxima às terras do além, isolada, mas única.

Teriam que, por meio desta, mostrar que apenas uma cidade tão grandiosa pudesse sobreviver perto do grande

Lorde Sarobou, e nada mais passaria dela.

Se prometessem fazer algo tão grandioso quanto isso, o Lorde os recompensaria com "relíquias" únicas.

Logo, os quatro, sem aparentar ter muita opção, resolveram aceitar o desafio. Sarobou deu a eles o título

de "Derrotados na batalha, mas vitoriosos na vida". Seriam vistos como heróis semideuses por toda vida, tendo

seguidores e, consequentemente, uma grande população forte para sua futura cidade.

O primeiro herói era Mantenak, o mais sábio e calmo de todos. Possuía uma sabedoria incrível, e era o

maior conselheiro dos quatro. Evitava brigas e acalmava discussões, porém gostava mais de obedecer ordens, e

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por isso não era o líder. Nascido nas Terras Centrais e um dos grandes heróis de Steam City e dos Campos

Dourados, o grande Mantenak já foi uma espécie de "mito" para aqueles que acreditavam em seus poderes de

profetizar o destino dos honrados. Após a batalha nas Terras do Além, ganhou de Sarobou o fragmento da

Relíquia do Olhar. Esse objeto sagrado lhe dava a visão de tudo ao seu redor num raio de centenas de metros e,

além de o fornecer visão, também podia tirar a dos inimigos. Passou a usar sempre em uma mão o fragmento e

na outra sua lança, que já havia empalado feras mitológicas.

O segundo cavaleiro era Leonard Firestorm, o lendário matador e feras. Cresceu em um pequeno vilarejo

nas Terras do Oeste, e diz-se que desde os nove anos já matava trolls. Aos vinte, decapitou o rei Barbatius II,

tornando-se um herói por salvar o povo do reino de Maldivar da política corrupta do senhor faudal. Líder dos

quatro heróis, era inseparável de sua espada de ouro, que ele chamava de "carniceira", e de seu escudo,

"homúnculo". Gostava de sempre ir na frente e tinha sede de sangue na batalhas, além de ter um prazer quase

desumano em liderar a equipe. Ganhou do Lorde outro escudo, o "Escudo Terra", que substituiu o anterior.

Bastava Leonard bater nesse escudo com sua espada para um terremoto chacoalhar a terra da forma que ele

quisesse.

Ninara Charminleigth, a terceira e única mulher dos quatro, era a mais ágil e podia partir um tigre em três

pedaços usando suas duas espadas, nomeadas de "Tornado" e "Tufão". Nascida em um porto das Terras do Leste,

era uma belíssima ruiva de olhos verdes, e usava até sua sedução para conseguir o que queria. Foi reconhecida

por suas lutas pelo fim opressão militar, matando até os líderes para se sentir "livre". Respeitada ao extremo e

idolatrada pelos pobres e dignos de sua terra, Ninara prometeu derrotar Sarobou para livrar os navegadores dos

monstros do mar, que atacavam navios pesqueiros e de carga. Após sua derrota contra o Lorde, foi prometido

que ele não mais traria problemas aos mares. Além disso, ela ganhou a Faísca Azul, um manto transformava o

usuário em água na hora que ele quisesse, fazendo-o se tornar um ser mortal em forma humana, mas invencível

como um ser de água.

E, por Ultimo, Urferus. Sua origem é incerta, mas acredita-se que foi criado por ursos em florestas nas

Terras do Norte. Há muito tempo atrás, após o fracasso de exércitos, salvou o reino de Rarstead e vários outros

dos arredores do monstro Griffarnert, o maior golem de pedra já visto, que transformava uma casa em destroços

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apenas ao pisar nela. Urferus matou a fera, transformando-se em um herói. É o mais calmo dos quatro guerreiros

e considerado o mais forte fisicamente. Usava seu grande machado, chamado de "O Epílogo", por ter sido

batizado trazendo o fim de Griffarnert. Usava também, em sua cabeça e costas, a pele de sua suposta mãe ursa,

que ele acreditava o proteger de qualquer perigo. Recebeu do Lorde o Colar de Presas do Filho do Apocalipse, que

fazia a pele do usuária impenetrável, com o único ponto fraco de poder ser cortada por ouro.

Juntos, os quatro cavaleiros, agora mais fortes do que nunca, encontraram um bom local plano para se

construir um reino: em meio a quatro montanhas. Reuniram fiéis e pessoas de confiança e construíram o que hoje

é o palácio. Depois, conforme mais habitantes apareciam como voluntários para construir, a cidade cresceu. O

processo durou alguns anos, mas foi relativamente rápido. Os quatro heróis batizaram o reino com o nome de

Adrebolomde, que significaria algo como "separador" em línguas ancestrais, por ser a cidade que separaria a terra

dos homens e as de Sarobou.

Quando finalmente ficou pronta, com metade do tamanho atual, uma discussão muito importante veio:

quem seria o rei, o líder daquele reino grandioso. Mantenak, apesar de sua sabedoria e por ser o mais indicado a

ser o representante da cidade, preferia ser apenas um conselheiro. Isso fez Leonard e Urferus concorrerem ao

cargo, pois tinham sede de poder e orgulho pelo respeito que tinham. Além disso, durante a reunião de fiéis, que

ocorreu algumas semanas antes, Leonard acabou apaixonando-se por Ninara, porém ele não sabia que ela já

estava começado um relacionamento com o homem criado por ursos. Um triângulo amoroso foi formado,

fazendo os dois não apenas brigarem pelo poder de Adrebolomde, mas também pelo coração da única mulher do

grupo.

Até que, certo dia, ambos decidiram acabar com isso em uma única luta, diante da cidade inteira

prestigiando. Uma sangrenta luta foi travada entre o homem-terremoto e o indestrutível. Antes mesmo de

começarem, era quase eminente a vitória de Urferus, porém poucos sabiam do material que era feita a espada de

Leonard: ouro. Isso o levou à vitória naquele duelo.

Como punição, Urferus seria obrigado a deixar a cidade e esquecer Ninara, que viria a se casar com

Leonard, o vencedor e primeiro rei do reino. Mantenak permanecia o mais neutro de todos, sem querer brigas

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entre eles e tentando acalmá-los, porém dessa vez ele não conseguiu. O homem-urso teria que ir embora para

sempre em no máximo uma semana.

Entretanto, os planos de Urferus eram diferentes. Decidiu, além de sair para sempre do reino, levar a

moça consigo. Uma semana após a batalha, no dia em que se despediria, já curado dos ferimentos da luta,

invadiu silenciosamente o castelo e chegou até onde Ninara estava, em seu grande e luxuoso quarto, situado um

andar acima dos outros aposentos. Leonard só voltaria para o castelo na manhã seguinte, pois havia saído para

negócios na cidade. Após uma longa conversa, ambos acabaram caindo em tentações e, com a moça ainda noiva,

tiveram uma longa noite de amor. Ninara apaixonou-se mais por Urferus do que por Leonard, convencendo-a a ir

embora de Adrebolomde junto com o homem-urso.

Quando Leonard entrou no quarto de sua noiva, no amanhecer do dia seguinte, não viu ninguém, apenas

uma corda amarrada em um dos pilares do enorme quarto que seguia até a janela e, dela, para o pátio fora da

edificação. Olhando pela janela para baixo, ainda viu os dois correndo, saindo das dependências do palácio e

entrando na zona comercial da cidade.

Leonard descobriu tudo e não deixaria, em hipótese alguma, que sua futura esposa caísse nas mãos do

derrotado por ele. Com a raiva e a fúria em seu coração, não permitiria a saída do casal recém formado e de mais

ninguém.

Andou para uma enorme varanda na parte da frente do palácio, que dava visão à quase todo o reino. Com

seu escudo encantado e espada de ouro em mãos, Leonard bateu um no outro com fúria. Um terremoto foi

formado, derrubando pequenas construções, assustando os moradores e, principalmente, dividindo terras. O

perímetro inteiro da cidade se tornou um grande abismo, e assim surgiu a grande Barreira de Firestorm.

Sem saída para fora do reino, Urferus e Ninara tinham que bolar outro plano. Leonard, após o estrago que

acabou de causar, iria atrás dos dois. Entretanto, não sabia onde estavam, e pediu para Mantenak usar a Relíquia

do Olhar e descobrir onde os traidores se encontravam, e o justo homem obedeceu. Sabendo a localização exata

deles, tanto Leonard quanto Mantenak foram ao encontro.

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Mas havia algo que o rei não vira. Uma montanha, que ficava quase exatamente do lado oposto ao

palácio na cidade, não sucumbira totalmente perante o abismo. Milagrosamente, ela havia apenas parado no

meio da enorme queda, formando uma ponte para o lado de fora. Seria o escape dos traidores.

Quando Leonard e Mantenak encontraram Urferus e Ninara, estes já estavam atravessando a "ponte

natural".

Algo seria decidido ali, naquele momento.

Após uma longa conversa, os quatro heróis, que pouco tempo atrás eram grandes amigos, tornaram-se

inimigos. Leonard queria matar tanto Urferus quanto Ninara para vingar-se. O homem-urso, por sua vez, mataria

o rei e seu ajudante, Mantenak. Já este, o justo que evitava brigas, não queria mais aqueles três perturbando a

paz e lutaria contra os três. E Ninara, sem opção, teria que batalhar também.

Nuvens se fecharam sobre Adrebolomde, e trovões caíram dos céus, rasgando a imensidão acima dos

quatro heróis. Era como se a própria natureza fosse apreciar a épica batalha que estava prestes a acontecer.

Grande parte da população do reino saíram de suas casas e uma plateia foi formada. O céu ficou mais escuro, o ar

mais pesado, o chão mais duro. O que as pessoas do reino estavam prestes a presenciar não era algo de

humanos, mas sim de deuses.

Finalmente, os quatro heróis fizeram uma decisão: tirariam todos os sentimentos de seus corações, e

lutariam até a morte naquele momento. O que sobrasse seria o novo rei de Adrebolomde. Todos contra todos.

Como eram guerreiros que já passaram tanto por perdas quanto por vitórias, a luta começou sem ninguém

hesitar.

O que estava acontecendo não era uma "luta" ou "confronto". Parecia muito mais uma guerra, em que

cada herói era um exército inteiro.

Mantenak, com seu fragmento, cegava os três oponentes temporariamente, enquanto os atacava com

sua longa lança. Leonard causava terremotos não no chão, mas no ar em volta dele, algo que aprendera algumas

semanas atrás usando o Escudo Terra. Isso, além de fazer seus golpes com a Carniceira ficarem mais fortes, fazia

os adversários caírem no chão com o impacto. Ninara quase nunca se feria, pois se transformava em água usando

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a Faísca Azul, a atacava os adversários na hora certa com Tornado e Tufão. Já Urferus usava sua força e seu

machado Epílogo para tentar partir os inimigos em dois e, claro, era praticamente invencível por causa do Colar

de Presas do Filho do Apocalipse.

Urferus só podia ser ferido por Leonard e sua espada de ouro. Este, por sua vez, tinha sempre um tremor

em volta de seu corpo, tornando difícil qualquer tipo de investida. Ninara só podia ser ferida em forma humana e

Mantenak era habilidoso e cegava quem tivesse maiores chances de o acertarem. Isso fez a "guerra" se tornar

incrivelmente longa. Um atacando o outro, sem hesitarem pela amizade que tiveram, sem sentir remorso.

A batalha durou longas horas.

E o tempo para que um desfecho fosse decidido durou ainda mais... ou pareceu durar.

Houve um momento onde não mais ouvia-se armas se batendo, gritos de dor ou esforço, passos de

desvios... Nesse momento, os únicos sons audíveis eram o da respiração e do coração pulsante dos que assistiam.

Não havia mais batalha, sangue, suor, ódio, violência. Só um estava de pé. A plateia, extremamente

chocada com o que estava vendo, apenas assistiu, sem poder nem querer intervir.

Urferus estava deitado, ensanguentado, talvez desmaiado. Uma enorme poça de sangue foi formada

embaixo de si. Porém, era possível perceber, mesmo que apenas com muita atenção, que ele continuava

respirando. Leonard também estava caído, com um dos braços virado para a direção contrária da natural,

sangrando. Aliás, seu corpo inteiro parecia um pouco deformado por causa do abuso de seus tremores de ar.

Tanto o Escudo Terra quanto a Carniceira estavam no chão, ao lado de seu corpo aparentemente moribundo.

Ninara, a bela e ágil ruiva de olhos verdes, agora mal era reconhecível. Seu rosto e toda a sua pele, pelo excessivo

uso da Faísca Azul, estavam literalmente "descascados". Sua beleza se foi, junto com todo o seu poder de luta.

Mantenak, por sua vez, estava agora sem uma das pernas e estava com uma das espadas de Ninara fincada em

seu estômago. Olhava fixamente para o céu, deitado de barriga para cima, porém nada via. Seu uso abusado do

fragmento da Relíquia do Olhar o deixou cego.

Quatro heróis no chão, quase mortos, apenas sentindo a presença de um quinto. Um quinto elemento, de

pé, calmo, com as mãos nas costas, apenas olhando os heróis em estado deplorável. As pessoas que assistiam não

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mais sabiam o que estava acontecendo. Viram apenas os mais prestigiados seres humanos que já conheceram

agora inúteis no chão, diante de Sarobou, que os olhava aparentemente sem saber o que fazer.

— Senhores e senhoras de Adrebolomde! — Disse o demônio, com uma voz assustadoramente e

anormalmente alta — Esses foram os heróis temidos pelos humanos, invejados pelos deuses e desejados pelo

inferno. Foram corajosos o suficiente para me enfrentarem, valorizados o bastante para construir uma cidade

perto de mim, e ambiciosos a ponto de morrerem por causa disso. Eles não devem ser esquecidos, tampouco

desonrados ou mortos sem dignidade. Porém, a mesma terra que lhes trouxe virtude também os levou à ruína.

Essa é a prova de que o poder corrompe até mesmo os mais fortes seres humanos. Entretanto, eles cumpriram

seus deveres, fundando esse reino tão perto de minhas terras. Adrebolomde merece ser lembrada e guardada

para todos os tempos nesse lugar, sendo uma sobra de algo maior, uma criação divina. Irei levar os quatro, mas

vocês podem ficar com o reino! Sejam não um fardo para os mortos aqui, mas um aviso para os que estarão

mortos se passarem dessa terra. Pois eu, sem músculos, criei semideuses e os destruí. Que isso sirva de aviso.

Os quatro continuavam quietos, apenas escutando a voz do sábio mestre cornutum.

O que se passou a seguir não foi obra de algo visível ou compreensível. Uma luz suprema e soberana

surgiu, obrigando a todos que assistiam a fechar os olhos. Aliás, a luz era tão forte que nem as pálpebras

protegiam os olhos. Foi por uma curtíssima fração de segundo, como um raio. Quando a população de

Adrebolomde abriu os olhos, Sarobou não estava mais ali. Os quatro heróis não estavam mais deitados e quase

morrendo. Ainda estavam entre os cidadãos, porém em outra forma. O que todos virem foi Mantenak, Leonard,

Ninara e Urferus em pé diante de todos. Não vivos, claro, mas em forma de estátuas. Não se sabe como chegaram

até ali ou o que exatamente aconteceu naquele décimo de segundo de luz, mas eram monumentos gigantescos

Adrebolomde foi fundada novamente.

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Capítulo 11

Perseguição

— Que bela história, não é mesmo? — Disse Ingrid, sorrindo.

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Richard concordou com a cabeça.

— Essa história é ridícula! — Disse um homem, aparentemente um turista. — É apenas uma lenda, não é

possível que estátuas daquele tamanho tenham sido construídas em um espaço de tempo tão curto!

Todos os presentes o ignoraram, menos Darimistes, que retribuiu as palavras do descrente com uma

risada baixa e uma tragada de seu narguilé. Não era visível se o sábio estava sendo sarcástico ou apenas se

divertia com palavras como aquelas.

—Vamos, Ingrid. — O cavaleiro afastou-se e andou em direção à saída, agradecendo o ancião com um

gesto.

Já estava escurecendo, e a moça devia voltar para a loja do tio para fazer alguns preparativos para o dia

seguinte. Aliás, não estava em Adrebolomde para turismo, mas sim para negócios. Rich preferiu não acompanhá-

la agora, pois queria dar mais uma volta na cidade para ver o que descobria, principalmente porque queria um

companheiro para sua jornada. Em algumas tavernas, mercenários apresentam seus serviços, e era isso o que o

jovem queria ver. Para tanto, ele ainda tinha uma enorme quantidade de moedas de ouro, os objetos de troca

usados no continente de Sevenland, chamados de "yol". Lembrou-se do episódio em que as saqueara após

resgatar Krognarr. Aliás, onde estaria o orc agora?

Provavelmente, ainda na caverna de Jaccob. De acordo com as palavras do homem-polvo, o orcrrim

deveria ficar em repouso por mais dois ou três dias, o jovem não se lembrava direito.

Seu amigo agora provavelmente não voltaria mais para ajudá-lo em sua jornada, então o jovem tirou-o da

cabeça. Já era noite, e Richard já estava caminhando por cerca de uma hora. Era incrível o fato dele não estar

cansado. Porém, ainda podia ter mais um ataque da maldição de Morphos, o que o deixava um pouco perturbado

e preocupado.

Finalmente, cavaleiro achou um tipo de taverna. Uma das grandes, na qual podia-se ouvir berros e

risadas de homens bêbados. Rich percebeu também que os andares superiores do lugar tratavam-se de um

bordel, ou algo do tipo, apenas pela aparência externa. A entrada estava fechada.

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O jovem leu a placa: "Vale do Machado". Exatamente o que Darimistes havia mencionado. Perto da

entrada, que era uma grande porta dupla de madeira escura, havia mais uma das inúmeras estátuas da cidade.

Curiosamente, essa escultura era de um orcrrim montado em uma espécie de javali. Tinha um grande machado

em uma mão e um pergaminho em outra. "Será que cada uma dessas estátuas conta uma história?", o jovem

pensou com sua mente tão fluída. Na entrada ainda tinha uma pequena mas visível placa com as palavras: "Seja

convidado e entre, ou entre e seja convidado! Bata na porta!". Richard fez exatamente isso.

Bateu na grande porta dupla de madeira. Após alguns segundos apenas ouvindo o gargalhar dos bêbados,

a porta abriu-se um pouco, mas apenas o suficiente para poder ouvir e falar com quem estivesse do outro lado.

— Você tem convite VIP? — Perguntou uma voz feminina do outro lado.

— Bem... — O jovem sequer sabia o que isso significava — Não tenho. Eu apenas queria entrar para

passar um pouco o tempo. Meu nome é Richard Lionfist.

A porta abriu-se mais um pouco, agora revelando quem havia recepcionado o cavaleiro. Era uma jovem

moça de cabelos loiros, usando um vestido perigosamente curto e com um decote que pouco escondia.

— Senhor "Lionfist"? — Disse a moça, abrindo um estranho porém atraente sorriso em seu rosto — Creio

que não trará problemas. Seja bem-vindo! Fique à vontade!

O jovem agradeceu e entrou. Era realmente uma bela taverna: um grande bar, várias mesas espalhadas (e

muitas delas já ocupadas), mulheres nada inocentes e até um pequeno palco, onde músicos estavam tocando

uma alegre música ambiente.

Armas antigas e peles de animais enfeitavam o salão. Havia comida e bebida em abundância nas grandes

mesas, e uma fogueira ardia no centro, aquecendo todo o lugar. Bêbados riam em suas mesas com os amigos,

prostitutas acompanhavam clientes até os andares superiores, pessoas dançavas ao ritmo da música.

Mas o que realmente chamou a atenção de Richard foi que, em algumas mesas, haviam grupos de Orcs.

Pouquíssimos foram vistos pelo jovem enquanto andava pela cidade, e agora vários eram vistos nas mesas. Ao

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contrário dos humanos, que eram a maioria, os orcs eram mais sérios e pareciam gostar mais apenas do descanso

e da comida do que do vinho e das piadas entre amigos.

Richard sentou-se no balcão ao lado de alguns cavalheiros.

— Um pouco de vinho, por favor. — Pediu ao barman.

Aquele vinho era um pouco pior do que o que ele bebia com Hadriam e Barton em Rarstead, chamado

"Sangue do centauro", mas era suculento, um dos melhores que já tomara. O homem que estava sentado no seu

lado, um rapaz um pouco mais velho que o jovem, que tinha uma barba meio longa em seu rosto e vestia uma

armadura de couro, falou:

— Você é novo aqui, não?

— Só estou de passagem.

— Parece estar aqui para algo mais a não ser beber, não é? — O homem olhou com um ar suspeito, mas

estava evidentemente bêbado.

— Só conhecendo o lugar. — Rich percebeu a chance e então perguntou: — Amigo, você sabe onde eu

posso arranjar um mercenário para me auxiliar em uma aventura?

— Mercenários? — O cavaleiro barbudo riu e quase caiu de sua cadeira. — Veio ao lugar certo, mas ao

mesmo tempo no errado, se é que me entende.

— O que quer dizer?

— Está vendo toda essa quantidade de orcs? São todos loucos por um pouco de sangue derramado.

Todos uns malditos mercenários!

— E qual é o problema? — Richard perguntou, sem saber exatamente se o homem era sincero com as

palavras.

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— O problema é que... — Ele soluçou, e então continuou. — Eles preferem servir a homens com túnicas

nobres, e não a jovens com escudos redondos. O que eu quero dizer é que eles são ainda mais caros do que essas

putas!

No momento, a música tocada passou de calma e alegra para uma de dança. Algumas pessoas deixaram

suas mesas e foram até perto do pequeno palco para dançar.

— Eu tenho dinheiro o suficiente para levar todas elas para casa, amigo! — Disse Rich, que então

percebeu que também estava ficando embriagado.

Após ambos rirem freneticamente, o cavaleiro barbudo voltou a falar:

— Por que não fala com os orcs e pede seus serviços?

— Boa ideia. Estou indo.

Richard levantou-se e caminhou até uma das mesas de orcrrims. Eles pararam de conversar, comer ou

beber, e olharam para o cavaleiro.

— Eu soube que vocês são bons guerreiros procurando por aventuras.

— É verdade, lohk — respondeu um dos orcs —, mas não para quem não tiver dinheiro.

— Narinsi'aux? — Perguntou outro. Parecia interessado.

— "Quanto você tem?", perguntou ele. — Traduziu o primeiro. — Eu e Nastor somos os únicos nessa

mesa que sabemos falar sua língua.

— Quatro mil yols para dois ou três dias de trabalho.

Nesse momento, foi como se um raio caísse bem no centro da mesa. Seis dos oito orcs sentados se

levantaram e encararam o jovem com os olhos arregalados. Até mesmo os músicos pararam de tocar, vendo a

rara cena em que aqueles brutais orcs se impressionam com algo. Rich sorriu satisfeito diante de tal situação.

— Para onde iremos? — Perguntou o tal "Nastor", o segundo orcrrim que falava a língua dos homens, de

uma forma como se ele já tivesse sido contratado.

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— Terras do Além. — Respondeu Lionfist.

Agora, a situação era outra. Todos os orcs que estavam de pé sentaram-se novamente. Encararam-se e

trocaram breves palavras entre eles. Agora, toda a taverna estava em silêncio. Não silêncio absoluto, mas,

comparando com o barulho que era ouvido no lugar a alguns segundos, parecia que todos os presentes haviam

morrido.

De repente, um deles começou a rir de leve. Diante do silêncio, todos ouviram. Logo, o orc que estava do

lado deste começou a rir também. Depois outros dois e, antes que percebesse, todos os orcrrims e até outras

pessoas da taverna estavam rindo freneticamente. Richard ficou sério, pois percebeu que era ele o motivo de

tantas risadas.

Após longos e até constrangedores segundos de gargalhadas por parte dos mercenários, um deles, que foi

o primeiro a falar com o jovem, controlou-se e voltou a falar:

— Meu jovem, nós nos abrigamos aqui exatamente para nos protegermos das feras de Sarobou.

Ninguém, nem por dez mil yols, iria naquelas terras para morrer por você! — E voltou a rir com os companheiros.

Rich ficou irritado com aquilo. Nem sequer os orcs, famosos por serem guerreiros brutais e fortes, teriam

coragem para segui-lo. Caminhava de volta para o lugar no balcão onde estava sentado anteriormente, até que

uma voz o chamou.

— Hey, garoto, venha aqui. — Disse a tal voz. O jovem virou-se e viu que quem o havia chamado era um

homem solitário em uma mesa, que usava um capuz para esconder sua cabeça.

Richard andou até lá e sentou-se.

— Quem é você? — Perguntou.

— Meu nome não importa, tampouco o que faço. Você quer alguém para acompanhá-lo até as terras de

Sarobou, não é? — A voz dele era, de alguma forma, enigmática. Seu rosto era escondido pela sombra do capuz.

Estava sentado confortavelmente em sua cadeira e com os braços cruzados, como se estivesse fazendo negócios.

—Exatamente. Você é um mercenário também?

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— Não. Mas sei de alguém que seria perfeito para esse preço.

— E quem é essa pessoa?

O homem aproximou-se, deixando sua postura relaxada de antes.

— A sombra. — Disse, quase cochichando. — Infelizmente, não posso lhe contar mais detalhes, pois

senão o propósito dela não existiria.

— Como assim?

O homem respirou fundo, voltou a sentar-se confortavelmente em sua cadeira e voltou a falar:

— Vá para o andar de cima. Lá, no fundo do corredor, vire à esquerda e, depois, entre no segundo quarto

à direita. É um tipo de "quartel general oculto" dos orcs. Fale com o líder deles, Marknarr, e pergunte sobre a

sombra. — O homem misterioso deu um grande gole em sua caneca de vinho e, após, falou novamente: — Vá

agora. Não posso mais falar com você.

— Obrigado. — Agradeceu o jovem, e andou em direção às escadas. O estranho voltou a relaxar em sua

cadeira. Nessa posição ele parecia meramente mais alguém que desejava apenas o descanso e o álcool, e não

confusões. "Um disfarce?", pensou Rich.

Cumprimentou o cavaleiro barbudo que conhecera a pouco e subiu as escadas para o segundo andar.

Passou por algumas prostitutas enquanto subia e, uma vez no segundo andar, seguiu em frente no corredor. Era,

de fato, um bordel, com vários quartos, quase todos com as portas fechadas, pois estavam sendo ocupados.

No meio do corredor, uma das "funcionárias" agarrou no braço de Rich.

— Está perdido, mocinho?

— Não... Eu só quero... — Ele achou melhor não revelar onde estava indo — Ir ao banheiro!

Ele soltou-se e rapidamente andou para o fim do corredor. De lá, virou à esquerda, que deu em mais um

corredor com acesso a vários quartos. Entrou, então, no segundo quarto à direita, seguindo as instruções do

homem misterioso da taverna.

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Entrando, viu que realmente não era um dos quartos comuns do bordel. Era uma grande sala, com

algumas camas e com inúmeras armas e armaduras penduradas ou guardadas em algum lugar. Era realmente um

quartel general brilhantemente escondido em um bordel. Era, de certa forma, um esconderijo bem posicionado.

Havia um Orcrrim perto da porta, que, ao perceber a presença do jovem, logo o questionou.

— A entrada de lohks é proibida aqui. — Disse. — Vá embora! Se procura um mercenário dos nossos, há

vários na taverna.

— Vim falar com Marknarr. — Respondeu Richard. — É sobre um assunto importante...

— Você? Falar com ele? — O orc riu com um ar de desprezo. — Você não parece ser alguém normal, pois

sabe desse esconderijo. Porém, apenas outros orcrrims podem falar diretamente com ele!

Rich pareceu não ter saída. Contudo, lembrou-se de algo.

— Isso pode fazê-lo mudar de ideia? — O cavaleiro mostrou a pedra rúnica que ganhou ao salvar os orcs

da mina de Asgeir anteriormente. Ele havia deixado como um amuleto, preso em seu cinto.

— Simmgnat! — Exclamou o porteiro. — Você é um komer lohk. Confiaremos em você. Pode entrar.

O jovem sorriu em agradecimento, e começou a andar. Em toda a sala havia seis orcs, todos sentados ou

deitados em alguma cama. No fundo, um orc de meia idade estava sentado em uma poltrona. Provavelmente, era

o líder. Rich caminhou até lá, sendo seguido pelo olhar desconfiado dos orcrrims que não estavam dormindo.

— Quem é você, lohk? — Disse Marknarr. Ele tinha uma voz muito autoritária — Se procura mulheres, já

deve ter percebido que está no lugar errado. — E deu uma breve porém sarcástica risada.

— Você é Marknarr, certo? — Perguntou o jovem. — Procuro apenas por uma informação.

— Claro. Se você sabe desse esconderijo, deve ser alguém especial. Mas não use muito de meu tempo.

Richard observou o orcrrim. Era careca, porém tinha uma longa barba branca. Um de seus olhos era

escondido por um tapa-olho. Estava usando uma leve armadura de pele de animais. Escorado na parede, à sua

esquerda, estava um enorme machado, ainda maior que a Strangnirr de Krognarr. Não havia percebido antes,

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mas uma mulher orc estava sentada no chão ao lado do chefe, costurando couro para uma nova armadura. Rich a

ignorou e falou, simplesmente:

— Procuro pela "sombra".

Marknarr deu um leve sorriso e disse:

— Sombras estão em todos os lugares, mas ao mesmo tempo em nenhum. Antes que perceba, estará

morto por subestimá-las, e a luz é o que as faz desaparecer. Sombra é escuridão, e o que você vê ao se distrair e

fechar os olhos.

— E?

— Garoto lohk, sequer eu sei quem ou o quê isso é. Eu apenas a chamei uma vez.

— O que você quer dizer?

— Que a sombra não responde, apenas faz.

— Senhor — Rich já estava perdendo a paciência —, eu não estou te entendendo. Explique-se, por favor.

— Está bem, está bem. Vou parar de brincar. — A mulher orc ao lado dele riu, como se ele tivesse recém

contado uma piada. — A "sombra", como alguns conhecem, se trata do maior assassino dessas terras e

provavelmente o maior de Sevenland. Ninguém sabe ao certo sua identidade, muito menos como ele é.

— Ele só aceita participar de assassinatos? Estou pensado em contratá-lo para ajudar-me em uma missão

nas Terras do Além...

Marknarr pensou um pouco e só então respondeu.

— Eu não sei. Mas negociações podem ser possíveis. Aliás, a única pessoa que iria às Terras do Além com

você é ele.

— Por que?

— Há boatos de que a sombra já assassinou um dos servos do próprio Sarobou e saiu sem ser visto!

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Richard não conseguiu conter seu entusiasmo ao ouvir aquilo.

— Uma habilidade como essa será extremamente útil em minha missão. Onde eu o encontro?

— Não é tão fácil. Para contratá-lo, é necessário enviar uma carta com o nome, localização e informações

de quem você quer matar e com a quantidade de exatamente três mil yols. Depois disso, só basta esperar notícias

de que o alvo esteja morto. — Ele ajeitou-se em sua poltrona, passou a mão na barba e estalou os dedos. — Caso

haja necessidade ou as informações da carta sejam vagas demais, a sombra o convocará para uma conversa

pessoal, e será cobrado um valor de mil yols adicionais.

Rich cruzou os braços, pensando em uma maneira de contatar o tal assassino diretamente. Não podia

esperar que uma carta fosse enviada, então teria que ir até ele.

— Para onde as cartas vão?

— Para uma casa abandonada, um pouco depois da fronteira com as Terras do Além. Como fica em um

local aparentemente perigoso, ninguém consegue ou sequer tem coragem de ir até lá. Quem entrega as cartas

são soldados equipados, que vão de cavalo, largam a carta e voltam o mais rápido possível. Ainda assim, alguns

morrem.

— É para lá que eu vou. Sabe me dizer onde exatamente fica essa casa abandonada?

— Tome. — Marknarr deu ao jovem um pequeno mapa. — Esse é o rascunho que o meu mensageiro fez

ao entregar minha carta para a sombra. Fique com você, não irei mais precisar dela.

Logo, uma certa curiosidade tomou conta do cavaleiro, fazendo-o perguntar:

— Quem você mandou matar?

O orc riu.

— O líder de uma tribo rival. Ele foi encontrado com a garganta cortada e seis órgãos perfurados com

precisão cirúrgica. E, claro, com a assinatura do assassino feita à faca nas costas. — Marknarr riu mais uma vez,

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aparentemente contente por ter tido sucesso no contrato. — Boa sorte, garoto. Você é louco de ir até aquele

lugar, porém eu confio em você.

— Obrigado! — Agradeceu o jovem, e saiu pela porta de onde entrou.

— Você acha que ele irá sobreviver? — Perguntou a mulher orc.

— Ele morrerá antes de ver a tal casa. Porém, foi divertido falar com ele. — Marknarr riu mais uma vez.

Já fora do Vale do Machado, Richard caminhou a caminho da casa de Thomas para passar a noite. No dia

seguinte, sairia para continuar sua grande jornada e procurar a tal "sombra".

Já era quase madrugada, e poucas pessoas eram vistas nas ruas. O jovem estava um pouco tonto por

causa do vinho que bebera, mas estava se sentindo bem. O medo de ser tomado pela maldição de Morphos ainda

o deixava preocupado.

Enquanto caminhava, sentia uma estranha sensação. Algo que ele já havia sentido antes, porém agora era

mais forte. Que sensação era aquela? Rich não conseguia lembrar-se. Era como um ruído em seus ouvidos, uma

ligeira pressão em seu peito, um eco em sua mente.

A sensação de estar sendo seguido e observado.

O cavaleiro olhou rapidamente para trás e viu o vulto de alguém se escondendo atrás de uma parede.

Apressou seus passos. Dessa vez, o barulho que o perseguidor fazia era mais alto, pois foi obrigado a correr um

pouco. Richard tentou despistá-lo andando por becos e trechos escuros que sequer conhecia. Continuou ouvindo

passos e até o barulho de aço batendo. Olhou mais uma vez para trás e via agora dois vultos. Os perseguidores

não eram pessoas comuns: estavam armados.

Dobrou em um beco e esperou ali. Ao sentir que os que o seguiam estavam perto o suficiente, Rich

apareceu e deu um golpe rápido com seu escudo em um deles, forte o bastante para fazê-lo cair sem consciência

no chão.

O segundo tirou sua espada da bainha, e o jovem fez o mesmo. O homem parecia estar com medo e

nervoso. Usava roupas pretas para se esconder melhor nas sombras e usava um capuz em sua cabeça,

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escondendo sua identidade. Porém, também usava, por baixo das roupas, armadura, visíveis pelo volume. O

homem no chão não usava roupas pretas e era, para o espanto do jovem, um dos guardas de Adrebolomde! Ao

tentar um ataque, o perseguidor que sobrou foi facilmente desarmado por Richard, que o empurrou na parede

com uma das mãos e, com a espada na outra, ameaçou.

— Quem são vocês? — Perguntou o cavaleiro.

— Por favor, não me faça nada!

A voz era familiar. Rich tirou o capuz e a identidade do homem foi revelada. Era Frosh, o guarda que

deixou o jovem entrar na cidade!

— O que você está fazendo, Frosh!?

— Fui mandado para cá! — Ele estava extremamente nervoso. Isso o obrigou a falar toda a verdade. —

Fui designado a segui-lo até a casa onde iria passar a noite, para sabermos sua localização. Eles estão atrás de

você, Rich!

O jovem ficou confuso.

— Quem? Quem está atrás de mim?

— Toda Rarstead! Susanno IV mandou uma tropa para pegar você!

O cavaleiro, então, entendeu. Seria levado de volta, pois saiu para a sua missão sem permissão do rei.

— Droga! — Pestanejou o jovem. — São quantos?

— Cerca de trinta. Vieram a cavalo, por isso chegamos antes que você e montamos uma... — O

perseguidor engoliu a seco.

— Uma o quê?

— Uma emboscada. Renda-se! Você não tem chance!

A raiva tomou conta do jovem. Junto com...

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"Merda!", pensou ele. A dor de cabeça! Por que justo agora?

Por um momento, Rich fechou os olhos por alguns segundos, arfando, por causa da dor. Ao abri-los, viu

Frosh, à sua frente, parado, com os olhos negros. Parecia não estar sequer respirando...

Richard ouviu o som de galopes. Largou o ex-guarda de Rarstead e escondeu-se atrás de uma parede. Os

passos de cavalo ficaram mais altos, até o jovem sentir a presença de alguém na rua. Espiou, e viu um homem

usando uma grande capa que cobria seu corpo inteiro montado no cavalo negro. Usava um elmo estranho e

sinistro. O maior problema era... os olhos. Olhos vermelhos brilhantes, a única coisa visível em seu rosto. E pior:

estavam olhando para Rich.

Nesse momento, era como se a própria morte tivesse penetrado em sua mente. Uma escuridão

sobrenatural penetrou em sua cabeça, uma visão perturbadora apareceu em seus olhos. Era a mão do próprio

demônio varrendo a paz de sua mente, a espada do medo cortando sua coragem. Era horrível, tenebroso,

doentio. Era como se o pesadelo em pessoa estivesse ali, na sua frente. Era o homem que havia aparecido pouco

antes dele desmaiar nos braços de Ingrid.

Richard parou de espiar e, sentindo a maior dor de cabeça de sua vida, ajoelhou-se. Agora, podia ver a

própria escuridão em seus olhos. Tentou não fazer barulho, mas isso foi impossível. Gemeu de dor, pediu

mentalmente para que aquilo parasse. Mas, estranhamente, também ouviu um gemido de dor vindo de alguma

direção. Era abafado, um murmúrio de alguém com agonia. O som vinha do homem no cavalo. Ele estava...

sofrendo? Porém, apesar do inimigo não parecer estar bem, Rich estava muito pior.

Mas não podia ser daquele jeito. Deveria, a todo custo, levantar-se para enfrentar seu inimigo. Como

salvaria Isabel de Sarobou se não pode nem ao menos lidar com um dos subordinados dele, Morphos? Colocou

uma das mãos no chão. A dor quase o fez cair novamente. As visões maléficas foram combatidas por sua

coragem, o sofrimento superado por sua força, a escuridão iluminada por sua vontade de seguir em frente. Ainda

escondido, Rich agora estava de pé mais uma vez.

Com a espada segurada por sua mão direita e o escudo preso em sua esquerda, Lionfist saiu de trás da

parede e decidiu enfrentar Morphos em pessoa. Mas a sensação foi como a de pular em uma lagoa termal em

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que, apesar do dia estar frio, a água permanecia confortavelmente quente. É uma surpresa agradável, uma

pancada com um travesseiro de penas. O inimigo em seu cavalo não estava mais ali. Havia sumido. O jovem não

sabia se agradecia ou praguejava por isso.

Tanto Frosh quanto o segundo homem estavam mortos. Ambos com os olhos negros. Richard os deixou

ali, e voltou para a casa de Thomas.

A dor de cabeça havia passado, mas ainda havia algo. Era como se a ferida estivesse se cicatrizando.

Continuou andando, um pouco tonto. Agora não mais pela bebida, mas pelo esforço mental que fizera. Sentiu um

sono tão forte que, se caísse no chão, dormiria ali. Era cerca de meia noite.

Ao finalmente chegar à casa de Thomas (quase havia se perdido), foi recebido por Ingrid.

— Rich! — Ela o abraçou sorrindo e rapidamente se afastou, mudando sua expressão para uma mais

séria. — Por onde andou? Me deixou preocupada!

— Eu estou bem. Pelo menos, consegui as informações que eu precisava.

— Muito bem. Venha para dentro, rápido. A cidade está uma loucura! Foram encontrados corpos de

guardas pela cidade. Estamos em alerta, temendo um ataque!

Rich espantou-se, mas fingiu que não sabia de nada. Foi para o quarto de hóspedes, onde havia uma

confortável cama à sua espera, e deitou-se. O sono foi quase instantâneo.

Ao acordar com os raios de sol batendo em seu rosto, o jovem sentiu-se novo. Ainda sentia a maldição,

mas a dor de cabeça havia passado.

Agora, não conseguia decidir o que fazer a seguir. Não podia ficar com Thomas e Ingrid, mas também não

podia ir embora. Se realmente houvesse uma tropa de Rarstead atrás dele, com certeza estariam bloqueando a

saída. Tinha que achar uma maneira de passar pelos guardas sem ser visto, mas isso seria quase impossível, pois a

segurança de Adrebolomde era muito rigorosa, como havia visto o entrar.

Ao tomar um café da manhã com Ingrid e o tio, Richard explicou a situação a eles.

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— Você não conseguirá passar pelos portões silenciosamente, Rich, muito menos correndo. — Disse

Thomas, tomando um quente e amargo chá. — Mas, talvez, você possa se aproveitar da situação da cidade.

— O que você quer dizer? — Perguntou o jovem, fazendo uma careta por causa do gosto amarguíssimo

do chá que o alfaiate oferecera.

— Vários guardas foram encontrados mortos nas ruas essa noite. Não se sabe exatamente o que os

matou, mas seus corpos provavelmente estão sendo levados ao necrotério da cidade neste momento. Se você

conseguir chegar até lá e roubar uma das armaduras deles...

— Um disfarce? — Interrompeu Ingrid. — Perfeito! Ótima ideia!

— De fato. — Concordou o cavaleiro. — Acho que é a chance mais plausível de eu fugir. Irei agora mesmo.

— Mas tenha muito cuidado, meu jovem. — Continuou Thomas. — Mesmo disfarçado com capacete e

todas as vestimentas deles, os guardas estarão alertas e você ainda pode ser descoberto facilmente. Ande com

cuidado, Rich.

— Eu serei cauteloso. — Tomando os últimos goles do chá, Lionfist saiu de casa e andou em direção ao

necrotério da cidade sem perder tempo.

Tentou evitar ao máximo qualquer guarda. Aliás, não se sabia quem era guarda de Adrebolomde e quem

era de Rastead. Seria um enorme desafio se alguém o descobrisse. Talvez, seu reconhecimento deixaria

praticamente impossível uma chance de sair disfarçado, pois os guardas dos portões ficariam ainda mais alertas.

De qualquer forma, Richard estava sendo o mais cuidadoso possível. Não era muito bom em ser discreto,

mas andava em meio à multidão da rua para não chamar atenção. Estava com seu escudo e espada (que já eram

inseparáveis), mas usava uma capa em volta do seu corpo para não as verem.

Já estava na metade do caminho. O dia estava ensolarado, e as pessoas estavam mais agitadas do que o

normal. Tantos guardas mortos sem motivo... Era obra de Morphos? O que diabos havia acontecido na noite

anterior, afinal?

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O jovem, perdido em pensamentos, sem querer esbarrou em alguém. Por sorte, era apenas um senhor de

idade. Pediu desculpas, e, ao se virar dando mais um passo, bateu de frente com mais alguém. O problema era

que, dessa vez, era um guarda.

Para evitar ser reconhecido, Rich rapidamente saiu do caminho. Após dar mais alguns passos, olhou de

leve para trás e percebeu que aquele guarda estava agora o seguindo, junto com outros dois homens.

"Droga!", pensou. Havia sido descoberto, pelo menos em parte.

— Hey, você! Pare! — Gritou o guarda. O cavaleiro ignorou, e dobrou para um beco. Continuava sendo

seguido e, ao olhar para trás, viu seis homens o seguindo.

Dobrou novamente e, logo depois, mais uma vez, procurando despistá-los. Antes que percebesse, estava

correndo para não ser pego. Ouvia o barulho de aço batendo atrás dele, cada vez mais perto. Já estava quase

desesperado quando, em certo momento, viu-se em uma pequena rua sem saída.

Olhou para trás e viu todos os seis guardas olhando para ele, todos arfando por causa do esforço.

— Identifique-se! — Disse um deles.

— Richard. Vocês são de Rarstead, certo?

— Não. Somos guardas daqui mesmo! — Disse ele, abrindo um sorriso no rosto. Os outros à sua volta

fizeram o mesmo. — Foi feito um acordo entre Achilles VII e Susanno IV para lhe capturar! Estamos todos atrás de

você!

— Mas os guardas dos portões não me reconheceram quando eu entrei!

— Quando soube-se que você havia entrado na cidade, só então os guardas foram informados de seu

retrato falado e da perseguição. — O que falava desembainhou sua espada, e todos os outro cinco prepararam

suas armas também. — E então? Vai render-se ou teremos que levá-lo à força?

— Dizem que a opção mais difícil nos fortalece, certo? — Brincou o jovem, desembainhando a espada que

fora de seu pai.

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Os guardas entreolharam-se, e, após alguns segundos, dois deles avançaram.

Não seria uma luta fácil. Eram seis contra um, e Rich nunca havia lutado em tamanha desvantagem. Nos

Vales da Lava Negra havia derrotado inúmeros soldados de Bijak, mas eles eram inexperientes e usavam armas e

armaduras de péssima qualidade. Agora seus oponentes eram treinados e usava armaduras de médio peso ou

pesadas, e armas tão afiadas e perigosas que talvez nem o escudo do jovem pudesse defender por completo.

Mas isso não o desanimou. Continuava confiante com a coragem de sua espada e valente pela honra do

escudo. Para os dois primeiros guardas que vieram, Richard usou sua talvez única vantagem: a agilidade. Desviou

com uma velocidade incrível do golpe de machado de um dos guardas. Aproveitando-se da oportunidade, cravou

fundo sua espada em um lugar estratégico do adversário: na axila. A lâmina chegou ao coração e o homem

morreu em segundos.

Porém, o segundo era mais rápido e estava mais preparado do que o jovem esperava. Deu um violento

golpe de clava em Rich, que defendeu-se com o escudo. Se tivesse um segundo de desvantagem, estaria agora

com o crânio em pedaços.

O cavaleiro olhou rapidamente para o lado: mais dois homens estavam vindo. Três homens treinados e

com equipamento de boa qualidade contra apenas um jovem de espada e escudo. Richard esquivou-se por pouco

de mais dois ataques ao mesmo tempo, e tomou distância. Como conseguiria vencer uma luta dessas?

Os três avançaram furiosos pela perda do primeiro. Rich sentiu algo em seu coração. Queria vencer e

estava determinado a lutar até o fim mas, ao mesmo tempo, sentiu que estava prestes e perder de verdade.

Conseguiu defender um ataque de espada com seu escudo e desviou por pouco da clava do homem que

teve o golpe parado anteriormente, e, usando uma agilidade por muitos considerada incrível, defendeu outro

golpe de espada com a sua. Mas não era, nem de longe, o necessário.

Se perdesse ali, ou acabaria morto ou, mais provavelmente, voltaria para Rarstead como prisioneiro e

arma de guerra, como o único capaz de derrotar Sarobou, mas no futuro. Não podia esperar esse tempo. Tinha

que salvar sua amada o mais rápido possível.

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Defendendo-se e esquivando-se dos ataques sem poder atacar, o jovem foi, aos poucos, pressionado na

direção de uma parede. Se encostasse nela, ficaria sem espaço para recuar e não teria nenhuma chance. Tinha

que fazer algo...

Ao chegar bem perto da parede, Rich estava cansado. Já usou quase toda a sua força para defender e

recuar. Mais uma vez, sentiu uma derrota iminente. Até que, certo momento, se descuidou com uma defesa e

caiu no chão. Os guardas já estavam quase cantando vitória.

Até que aconteceu. De uma estreita porta aberta perto de onde o cavaleiro caiu, alguém (ou algo) saiu e,

com uma gigantesca espada de duas mãos, acertou em cheio um dos inimigos, matando-o antes de perceber o

que havia acontecido. Richard estava tonto, mas observou brevemente seu salvador. Como estava contra o sol,

teve que apertar os olhos. Era um homem alto, musculoso, usando uma armadura de couro tacheada

improvisada. Seu cabelo era um corte moicano curto e, sua pele, esverdeada.

Era um orc. Aliás, melhor do que isso.

— Krognarr! — Gritou Rich, alegre.

— Phametux! Levante-se! Nem começamos ainda! — Respondeu o amigo, com seu costume de confundir

a língua orcrrim e a dos humanos.

O jovem fez. Levantou-se com a ajuda dele.

— Por que você está aqui? — Perguntou Richard, curioso.

— Sem tempo para explicar agora. Tanurrnok, estou feliz em te ver, mas temos que dar conta desses

burkomer primeiro!

O cavaleiro humano concordou com a cabeça e sorriu em coragem. Humano e orc contra quatro guardas.

— Confio em você, Strangnirr. — Disse o orcrrim para sua espada.

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Os dois guardas da frente avançaram. Tiveram seus ataques facilmente defendidos e, então, contra-

atacados. Um deles morreu com um corte do escudo de Rich, e o outro desviou por muito pouco da grande

espada do orc. Agora, os outros dois soldados se juntaram ao que restou. Eram três contra dois.

Uma desvantagem numérica era meramente uma fantasia naquela situação. Ao avançarem

corajosamente, todos os guardas tiveram seus ataques defendidos mais uma vez. Krognarr fincou sua espada no

coração de um através da armadura e deu um violento chute no estômago de outro, derrubando-o. O terceiro

defendeu o ataque de Richard com seu escudo, mas foi atacado pelo lado e morreu pela lâmina da Strangnirr

também, logo após Krognarr dar o chute no outro inimigo. Este, perdendo a coragem, levantou-se e tentou fugir,

mas tropeçou em seus próprios pés e caiu novamente.

Antes que fosse tarde demais para o pobre guarda, Rich deu um chute em sua cabeça, fazendo-o

desmaiar. Assim, o homem não teria que ser morto.

Humano e orc ficaram ali por mais uns dois minutos, arfando em cansaço, olhando o que haviam feito.

Cinco adversários mortos e um desmaiado.

Rich ficou contente de ter escapado daquilo, mas tinha uma pergunta em sua mente: "O que faria

agora?", e, logo, mais algumas surgiram.

— Não era para você estar de cama agora? — Perguntou, um pouco irritado, a Krognarr.

— Krak'tirlumpnek. Estou bem. Orcrrims são resistentes a veneno e doenças. Eu apenas desmaiei e

acordei algumas horas após você sair do lar de Jaccobr.

— É Jaccob! E nós temos que sair daqui. Vamos à casa de Thomas, lá nós decidiremos o que fazer a seguir.

— Rasnek. Ótimo. Vamos, Richr.

— É Rich!

Limparam o sangue das armas e caminharam a caminho do lugar seguro.

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Era realmente bom o fato de Krognarr ter voltado. Era um poderoso aliado, certamente o melhor que

poderia ter naquele momento. Seria ideal para a busca à "sombra".

— Como você conseguiu entrar na cidade?

— Masslurr'rar. Encontrei, ao caminhar para essa cidade, três cavaleiros mortos em algum lugar. Os

revistei e um deles tinha um passe. — "Claro", Rich pensou. Os três bandidos que matara. Cada vez que ele

lembrava desse episódio, sentia uma ínfima mas perceptível dor em seu peito por causa da visão perturbadora

que teve. — O que fará agora, parthinux'lar? — Continuou o orc, mudando de assunto.

— Não sei. Eu iria me disfarçar de um dos guardas para passar despercebido pelos portões, mas acho que

não será possível. Você tem alguma ideia?

— Sim, e uma bem simples. Farei de conta que lhe capturei perto da saída, e o entregarei aos guardas. Ao

abaixarem a guarda, os atacarei e então fugiremos. Podemos roubar um dos cavalos do estábulo logo depois.

— Parece que não há planos melhores... — Rich coçou a cabeça e fez uma suave careta. — Está bem,

faremos isso o quanto antes. Pegarei minha mochila na casa de Thomas e então iremos.

Ao chegarem na casa segura, Thomas recebeu Richard. Krognarr ficou do lado de fora, de vigia. O jovem

explicou o que faria para o homem e foi para o segundo andar, onde estava sua mochila.

Era necessário ter cautela e pressa ao mesmo tempo. Logo, achariam os guardas caídos e reforçariam as

ruas com mais guardas a serviço do rei. Quanto mais demorassem, mais impossível seria a fuga.

No corredor, encontrou-se com Ingrid.

— Rich! — Exclamou ela. — Você está péssimo! O que houve?

— Houve um pequeno acidente. Não consegui pegar uma armadura dos guardas, mas encontrei um

amigo para me ajudar a sair da cidade. Estou saindo agora.

— Como irão sair? Quem é esse seu amigo?

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— Iremos causar uma distração. Então, atacaremos os guardas e logo depois partiremos. Não se preocupe

— Ele sorriu, com seu habitual olhar corajoso —, tenho um forte aliado comigo agora.

— Como não irei me preocupar? — Disse ela, com um olhar aflito sobre ele. — Você quase morreu ao

virmos para cá!

— O que quer que eu faça, Ingrid? — Disse ele. — Eu não posso ficar mais tempo aqui!

— Você pode. — Ela disse, agora mudando para uma expressão tênue e introvertida. — Você salvou

minha vida. Devo isso a você.

Richard ficou confuso, mas ao mesmo tempo retraído. Que tipo de sensação era aquela? E mais: por que

estava sentindo aquilo naquele momento?

— Eu tenho um objetivo. Não posso parar em nenhum momento e morrerei por ele. — Disse o jovem.

Mas era óbvio, pelo seu olhar e tom de voz, que estava apenas tentando arranjar uma desculpa. Ingrid não quis

ouvi-lo, mas entendeu seu comportamento.

— Uma pequena pausa fará um mal muito grande?

Ela estava escorada na parede. Ao falar essas palavras, uma força intuitiva, quase sobrenatural,

aproximou o corpo de Rich para perto dela.

— Não. — Disse ele, simplesmente. — Uma pequena pausa não fará diferença.

Nesse momento, depois de alguns segundos apenas entreolhando-se, os lábios dos dois se encostaram.

Seus olhos foram fechados e, seus corações, impulsionados. O beijo se intensificou à medida que seus corpos se

aproximavam. Entrelaçados, fizeram aquele momento se tornar maravilhoso. A cada movimento, algo a mais era

incrementado no próximo. Era como alcoolizar-se com simples toques, excitar-se com desejos.

Até que, certo momento, Rich separou-se dela.

— Não posso, Ingrid. Algo a mais me chama... Eu não sei...

— Eu entendo, Rich. Desculpe. Vá.

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— Adeus.

— Adeus.

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Capítulo 12

Batalha de fuga

Ao entrar em seu quarto, Rich finalmente pegou sua mochila e saiu. Thomas também se despediu, dando

um forte aperto de mão.

— Krak'kurmisst? — Perguntou Krognarr, ao ver Richard fechando a porta de entrada da loja atrás de si.

— Está pronto?

— Sempre devemos estar. — O jovem nunca cansava-se de dizer suas palavras corajosas. — Tome

cuidado. Vamos evitar outro confronto como o de antes!

— Entendo. Tormish'tir aux.

Como sempre, o humano não entendeu as palavras na língua orc, mas não achou necessário.

Andaram pelas ruas em direção ao portão de saída. Viram mais guardas do que o normal, então Richard

usou um capuz improvisado para disfarçar-se. Krognarr ficava sempre alerta, como que se esperasse que alguém

fosse atacá-lo a qualquer momento. Rich, por sua vez, andava com a cabeça um pouco abaixada para esconder

seu rosto sob a sombra do capuz, mas não abaixava a guarda nem por um segundo.

Já estavam na metade do caminho, e ninguém os reconheceu. Seria a discrição ou apenas sorte?

Era visível que havia cada vez mais guardas conforme os dois distanciavam-se do centro de Adrebolomde.

Alguns guardas tinham o apelido de "brutos": eram os guardas reais. suas habilidades em luta eram formidáveis e

usavam armaduras e armas pesadíssimas. Talvez um deles, sozinho, poderia derrotar Krognarr. Nenhum foi visto,

mas Richard tinha quase certeza que pelo menos um deles estaria nos portões. O único ponto fraco desses

brutamontes era a velocidade: por causa dos equipamentos extremamente pesados, eles são lentos.

Em algumas ruas que passava, o jovem e o orc viram pessoas suspeitas sendo revistadas.

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— Isso é loucura. — Disse o Rich para seu amigo. — Parece que sou uma ameaça para o reino! Por que

querem tanto assim me achar?

— Jaccobr me disse. — Respondeu o orc, com sua habitual pronúncia errada de nomes. — Você parece

ser a única esperança contra o Lorde, e não querem que você vá sozinho para lá apenas para morrer. Querem que

você vá conforme eles mandarem.

— Para o inferno! Não vou me aliar à uma cidade que mentiu para mim e quer fazer de mim uma mera

arma!

Krognarr riu um pouco, como se pensasse: "Gosto do seu jeito de pensar".

Continuaram a caminhada. Certo ponto, já um pouco perto da entrada, sentiram alguns olhares sobre

eles. Rich rezou mentalmente para não ter sido reconhecido.

— Vamos por outro caminho, Richr. Eles estão desconfiando de nós.

— É Rich!

Dobraram para a esquerda e entraram em um beco. Seguiriam por um caminho alternativo e assim

chegariam na saída, onde o cavaleiro fingiria ter sido capturado por Krognarr.

Entretanto, os dois não imaginavam que já tinham sido reconhecidos. Logo, alguns guardas os seguiram

de longe, e mais à frente outros planejavam encurralá-los. Quando o humano e o orc notaram que já haviam sido

descobertos, era tarde demais.

"Droga!", ouviu Richard, mas então percebeu que ele mesmo havia falado. Estavam encurralados por

cerca de dez guardas.

— Não podemos lutar aqui. — Disse o orcrrim. — Venha!

Krognarr começou a arrombar uma porta ao lado com um chute. Não foi o suficiente, então preparou

outro chute.

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O corredor de beco onde estavam era estreito, e, assim que o orc deu o primeiro golpe na porta, todos os

guardas correram para cima deles. Um segundo chute potente foi realizado, e a porta foi arrebentada. Era um

depósito de seda e tecidos.

Ambos entraram pela porta com os guardas já os alcançando. Para ganhar um pouco de vantagem, Rich

subiu rapidamente em uma caixa e, com a espada, cortou um fino cabo que sustentava uma lâmpada. Ela caiu no

chão espalhou líquido inflamável já em chamas por um grande espaço. Logo, o material do depósito começou a

pegar fogo, e a sala foi rapidamente tomada por um incêndio. Isso impossibilitou os guardas de continuarem

seguindo o cavaleiro e o orcrrim.

Porém, o incêndio já havia tomado proporções muito maiores que o jovem esperava. O fogo se espalhou

e muita fumaça começou a se formar, subindo aos céus e chamando atenção não só da localidade, mas do reino

inteiro.

"Incêndio!", gritava um cidadão próximo. "Protejam-se!!", gritou um guarda. "Não deixem as chamas

espalharem-se!", berrou um morador próximo, temendo por um incêndio em sua residência. Rich lamentou-se,

por um segundo, pelo dano que estava causando em uma cidade tão bela. Enquanto isso, Krognarr parecia ter

gostado daquilo.

Alguns guardas ainda tentavam percorrem o depósito em busca deles, mas foram abalados por uma

explosão de fogo. Um se levantou e lutou contra o jovem. Era apenas um e estava despreparado: foi rapidamente

derrotado.

— Temos que fazer algo! — Disse o cavaleiro para o orc, já começando a sentir-se fraco pela falta de

oxigênio.

— Chamamos atenção demais. A cidade inteira estará atrás de nós agora! — Respondeu Krognarr. —

Vamos nos separar! Banarrsarmic'rarkraklhamunk'maptir! Vá pelos telhados subindo a escada e eu fujo pela

porta da frente desse depósito!

— Entendi! Nos encontraremos no portão, então. — Rich estava confiante, mas temia pelo destino do

orc. — Tenha cuidado!

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— Salonux Dagnarr! Nós conseguiremos.

Krognarr arrombou com facilidade a porta próxima a ele e começou a lutar contra alguns poucos guardas

que tentaram impedi-lo de prosseguir. Richard subiu as escadas do depósito, quase se queimando com o calor, e

subiu mais uma para ter acesso ao telhado.

Já em cima do edifício em chamas, o jovem deu um salto para chegar ao próximo telhado. Foi fácil, pois as

casas e prédios de Adrebolomde ficavam bem próximas umas das outras. Suspirou aliviado por sentir uma

refrescante brisa e, com mais um salto, alcançou mais um telhado. Viu, então, bem em frente aos seus olhos, uma

flecha cravando-se na chaminé da casa onde estava. Alguns guardas estavam tentando acertá-lo!

Os arqueiros não pareciam muito bons e erraram todos os tiros. Após mais alguns pulos, encontrava-se

agora em cima de um prédio que não tinha um telhado: apenas um terraço. Estava preparando mais um pulo,

quando ouviu uma voz familiar vinda da porta que dava acesso ao interior do edifício.

— Muito bem, senhor Lionfist. Vejo que chegou bem mais longe do que eu esperava!

O jovem voltou-se para a pessoa que havia falado.

Cabelos brancos e curtos. Um homem de meia idade. Mais parecia um general do que...

Enquanto isso, Krognarr estava em apuros. Já havia derrotado cerca de cinco inimigos, e acabou de

decapitar mais um. Agora estava praticamente livre de guardas, pois os que sobraram, uns dois ou três, fugiram

para buscar reforços.

Exceto um: um "bruto". Um guarda real, alto e fortíssimo, usando armaduras pesadas capaz de, apenas

com a malha externa, parar uma flecha de aço.

— Finalmente, um inimigo à altura! Larmeqr, krak'tirgnarruroth! — Disse o orc, emocionado e

preparando-se para o que seria um dos raros confrontos realmente honráveis em sua vida.

— Digo o mesmo. — Respondeu o guerreiro. Sua voz ficava abafada e mais grave por causa do capacete.

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O orc não queria, de maneira alguma, perder tempo. Deu um golpe com a Strangnirr, que foi defendida

com a manopla do adversário. Este tinha um enorme machado de combate, que usou para desferir um golpe que

seria mortal em Krognarr. Mas não foi.

O orc defendeu-se usando sua espada. Teve que usar duas mãos para conter a pressão do ataque, uma no

punhal e a outra no próprio gume, entre as duas extremidades afiadas da lâmina. Mesmo assim, o orcrrim foi

obrigado a encostar um dos joelhos no chão por causa do poderoso ataque, e sua mão sangrou.

— Bela defesa. Pena que será sua última. — Disse o atacante.

Uma multidão se formou em volta dos dois como uma plateia. A maioria parecia realmente interessada

na luta. Aquilo parecia uma briga entre gladiadores.

O guarda deu mais um golpe, dessa vez horizontalmente. Krognarr abaixou-se para desviar e aproveitou a

chance para dar um golpe com a Strangnirr. Foi inútil: o golpe foi parado, novamente, pela pesadíssima armadura

do inimigo. Mas pareceu ter pelo menos doído com o impacto. Provavelmente machucou, mesmo que bem

pouco.

Mais um golpe vertical do guarda de elite. Esse foi desviado pela lâmina de Krognarr. Quando o machado

do homem cravou-se no chão, o guarda usou uma força enorme para tirá-lo do chão e dar outro ataque

consecutivo. O orc mais uma vez defendeu, mas não havia esperado um ataque tão repentino. Após a defesa, viu

que havia sofrido um corte no braço e estava sangrando.

O adversário pareceu se orgulhar de finalmente ter acertado um golpe, mesmo que parcialmente. Esse

orgulho gerou o desdém do homem. Foi seu maior erro: apenas pensou que já havia ganhado a luta.

Krognarr desviou de mais um ataque e, dessa vez, sem o inimigo esperar, contra-atacou. Atacou fincando

sua lâmina no peito do guarda. A armadura mais uma vez defendeu o ataque desviando-o, mas foi tão forte que

ela quebrou-se um pouco. Agora o inimigo tinha um pequeno buraco exposto na parte da frente. Isso fez o

homem voltar a prestar atenção na luta.

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Um pouco de medo tomou conta do guarda. Agora, parecia estar mais na defensiva. Mesmo assim,

atacou novamente o orcrrim com um ataque horizontal. Esperava que a lâmina fosse desviada, mas foi bem

diferente: Krognarr rolou no chão por debaixo do enorme machado. O lohk desequilibrou-se com o golpe cego, e

a adição disso o deixou de costas para o orc. Este, aproveitando o momento, deu um poderoso golpe diagonal em

um ponto estratégico das costas do oponente. Nessas armaduras, as costas não eram tão protegidas quanto a

frente.

Dessa vez, o golpe fez o inimigo sangrar. Cortou superficialmente, mas vez o guarda gritar de dor.

novamente frente a frente, os adversários prepararam-se para uma investida final. O orcrrim continuava

confiante e o lohk ficou assustado, mas estava determinado a eliminar o oponente.

"Vou matá-lo agora", pensou. "Vou atacar e deixá-lo contra-atacar, então usarei meu punho para

derrubá-lo no chão e então ele não poderá desviar de mais um ataque. Eu serei o vencedor, com certeza!",

cochichou para si mesmo.

A plateia estava excitada com a cena. Alguns pareciam torcer pelo orc e, outros, pelo guarda.

Finalmente, o homem atacou com o machado. Já estava preparado para atacar novamente o orc, pois já

estava esperando um golpe da Strangnirr. Porém, o plano não deu certo.

Ao invés de contra-atacar com a lâmina, Krognarr apenas desviou-se para o lado e avançou abaixado,

simplesmente agarrando a perna do inimigo. Então, fez pressão para cima. A única perna que estava no chão foi a

perna que o orcrrim havia acertado anteriormente. Por estar um pouco machucada, o homem perdeu totalmente

o equilíbrio, e por causa das costas estarem feridas ele não conseguiu fazer mais nenhuma ação para se defender,

pois a dor era insuportável.

O guarda caiu no chão. O estrondo causado pelo impacto chegou a fazer o chão tremer. Rapidamente,

Krognarr deu o golpe de misericórdia na única brecha que havia: o buraco que havia aberto anteriormente na

armadura.

Krognarr Lus Murmurir era o vencedor.

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Após sua vitória na luta, o orc avançou em direção aos portões pensando estar atrasado para o encontro

com Richard. Mas não estava. Olhou para os telhados e viu seu amigo humano falando com... "Aquele homem".

— Asgeir! — Disse o jovem, completamente confuso. Por que o líder de bandidos que raptou os orcs

estava na cidade?

— Surpreso, jovem Lionfist? — Perguntou sarcasticamente o homem de meia-idade. Não tinha sinais de

estar machucado e muito menos debilitado. E pior: tinha, agora uma nova armadura. Parecia, ao mesmo tempo,

mais resistente e mais leve que a que usou no começo da aventura de Richard.

— O que você está fazendo aqui?

— Creio que você não ouviu muitas histórias sobre Rarstead quando era mais jovem, garoto. — Asgeir

deu uma leve risada, como se já tivesse ganho uma luta eminente. — Eu fui um soldado importante na própria

batalha das cruzes, servindo como imediato. Aqueles malditos Infestis haviam matado um amigo meu e, mesmo

após a rendição daqueles cretinos, eu matei vários deles apenas por vingança!

Rich ficou surpreso. Asgeir era de Rarstead? Como nunca ouvira falar dele? Entretanto, mesmo com essas

informações sendo confusas, elas faziam sentido. O modo de luta que aquele homem usava — o mesmo que o de

Richard — só era ensinado em Rarstead.

— Matar inimigos já rendidos é crime!

— Exatamente. Fui rebaixado e assim que possível eu fugi para formar minha própria tropa.

— Tropa de bandidos, você quis dizer! — O cavaleiro não conseguiu conter sua raiva.

— Sim, de fato. Um grupo de bandidos. — Asgeir deu um pequeno sorriso, mas continuava com seu olhar

ameaçador. — Eu fui curado pela sua preciosa cidade e me prometeram que, se eu conseguisse te capturar, me

dariam além de seus equipamentos que tanto procuro, o posto de general oficial de Rarstead!

Agora tudo fazia mais sentido. Porém, não era hora de ficar pensando no passado, mas sim lutar pelo

futuro, o objetivo que está movendo Richard. Ele tinha que, naquele momento, derrotar seu rival ou fugir.

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— Parece que palavras não funcionariam com você para me deixar passar, não é mesmo?

— Absolutamente não. Estou ansioso por isso desde que recebi tratamentos pelos ferimentos que você

me causou!!

Rich estranhamente gostou daquela situação. Seria uma batalha no mínimo interessante.

Por um lado, ele não mais tinha Krognarr para ajudá-lo na luta. Mas agora tinha algo que podia valer

tanto quanto: o escudo de seu pai. Mal houve tempo de Asgeir pensar em um ataque quando o próprio Richard

atacou.

Foi, obviamente, um erro.

O ex-líder de bandidos rapidamente deu um contra-ataque, assim como o jovem fazia.

Porém o erro do jovem foi panejado e, o contra-ataque de Asgeir, previsto. Rich usou a brecha que abriu

ao defender e deu um golpe com sua espada. Entretanto, o homem de meia-idade parecia estar ainda mais

rápido que anteriormente. Desviou o ataque.

Ambos afastaram-se. Enquanto Asgeir impressionou-se com a habilidade de alguém tão jovem, Richard

chocou-se pelos reflexos e velocidade de um homem em idade tão avançada.

Mas havia algo mais... o olhar do ex-líder de bandidos. Havia algo neles. Como se ele estivesse se

divertindo, como se não se importasse de seu inimigo ser forte como ele. Como se ele simplesmente

menosprezasse as habilidades de Rich.

Mas... por quê?

Dessa vez, foi o próprio homem de meia- idade que avançou. Ele usou um tipo de ataque que o jovem

nunca vira antes. Primeiro, um golpe com a ponta da espada. Richard defendeu. Logo depois, outro golpe

horizontal e, imediatamente após isso, um vertical. Era tão rápido e imprevisível que o jovem foi obrigado a

defender tanto com o escudo quanto com a espada. Asgeir aproveitou a brecha para dar um poderoso chute no

rival.

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O cavaleiro caiu no chão e rolou para se defender de mais um golpe do adversário, que certamente seria

um golpe fatal. Levantou-se e pôs-se em posição defensiva, abalado por quase ter morrido.

Mas agora o Rich entendeu aquele olhar. Era um olhar de vitória, como se ele já fosse tão habilidoso que

o jovem não tivesse chances de ganhar. Como se a diferença entre a força dos dois fosse como a distância entre o

sol e a lua.

Ao mesmo tempo, Lionfist estava possuído por uma raiva extrema por ser subestimado e com receio de

ter quase morrido a alguns segundos. Mas aprendeu, com Anakira, que nunca deve ter medo. Que é o dever de

um cavaleiro ser corajoso e nunca amedrontar-se com a força do inimigo.

Asgeir, confiante mais uma vez, avançou. Rich defendeu sem muitos problemas os primeiros ataques e

sabia que aquilo era apenas uma distração. O inimigo estava apenas esperando uma chance de contra-atacar. O

cavaleiro usou uma minúscula brecha para finalmente tentar cortar o adversário, já preparado para mais um

contra-ataque do inimigo.

O homem que futuramente seria general desviou e, ao contrário do que o jovem previa, ele não apenas

contra-atacou, mas usou novamente o mesmo golpe que quase o matou pouco antes: um golpe para frente,

outro na horizontal e outro na vertical. Como o jovem havia acabar de atacar, não teve tempo para formar uma

defesa eficiente. O golpe vertical cortou a testa de Rich. Sem nem ter tempo de sentir dor, Asgeir deu um

poderoso soco no jovem e, logo depois, um pontapé no estômago.

Richard caiu perto da beirada do terraço onde estava.

— Levante-se! — Gritou o homem. — Quero acabar com você lutando! — Ele riu vitorioso.

O "derrotado" olhou para baixo e viu Krognarr derrotando alguns guardas e andando em direção ao

portão. E, perto da saída, cerca de trinta soldados e guardas da cidade se reuniram. O orc não teria chance contra

tantos inimigos.

— Seu amigo orc receberá o que merece! Aliás, o que todos os da raça dele precisam! — Ainda vitorioso,

o ex-líder de bandidos já estava impaciente. — Venha! Não se importe com aquele homem-verde sujo!

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Rich sentiu ódio. Levantou-se e avançou para um ataque em Asgeir, mas foi inútil, pois o homem

defendeu com facilidade e deu um poderoso soco em um rim do jovem. Ele caiu novamente na beirada do

terraço. Enquanto mal se movia no chão por causa do sofrimento, ouviu um grito.

— Avancem!

Aquela voz era familiar, mas não era de Krognarr. Era de outro orc.

Olhou novamente para a rua e viu Marknarr, o líder dos orcrrims mercenários, trazendo todos os seus

seguidores atrás dele. Uma legião de cerca de quinze orcs.

— Protejam Krognarr e o komerlohk, Richard Lionfist!

O jovem não conteve a emoção e Asgeir não conteve seu desprezo.

— Marknarr! — Gritou o jovem. — O que está fazendo!?

O orc líder demorou alguns segundos para visualizar Richard em cima de um prédio próximo.

— Você é um komer Lohk! Um honrado, um companheiro para nós! — Todos os orcs aliados deram um

grito de coragem. — Você é como um garlparthinux, um irmão se sangue! Proteger você é como proteger a nós

mesmos!

Lionfist sorriu. Asgeir, que também ouvia, fez uma cara de reprovação.

— Abriremos caminho para você, leskognarr! — O líder dos orcrrims preparou-se para a batalha.

— Vamos, parthinux! — Gritou Krognarr, se juntando à tropa. — À batalha!

Nesse momento, uma "guerra" começou entre orcs e soldados de Adrebolomde. Os humanos mais fracos

foram rapidamente eliminados, sobrando apenas os brutos e os mais fortes ou experientes.

Eles estavam lutando e arriscando suas vidas para que Richard pudesse fugir. O jovem, por sua vez, não

conseguia sequer derrotar o inimigo que estava à sua frente.

Que tipo de cavaleiro ele era? Que tipo de "protetor"?

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E, principalmente, que tipo de Lionfist?

Ganhou muitas batalhas em sua aventura, e essa parecia impossível. Porém seu pai o ensinou que todo

inimigo pode ser derrotado. Que ninguém é invencível. Rich tinha que continuar lutando. Continuar em frente,

usando a coragem de sua espada e a honra de seu escudo.

Tinha que ser um cavaleiro digno do sobrenome "Lionfist".

O jovem levantou-se. Asgeir estava preparado e tinha um sorriso estampado em seu rosto, ainda se

sentindo vitorioso. Havia acertado alguns golpes, mas Richard prometeu a si mesmo, naquele instante, que só

desistiria ao morrer.

Estava na hora de enfrentar o inimigo não como um aprendiz de cavaleiro, mas como um homem.

— Venha! Irei lhe derrubar novamente! — Asgeir, dessa vez, posicionou-se de uma forma que não

aparentava apenas querer derrubar o inimigo no chão.

— Vamos acabar com isso.

Ao invés de um atacar para o outro defender, os dois avançaram ao mesmo tempo. Com ataques, defesas

e contra-ataques, a luta se desenrolou. Rich sentiu seus músculos doerem pelo esforço, mas não podia parar

agora. Tinha que continuar até derrotar seu rival.

Assim, usou o que parecia ser sua maior senão única vantagem: a energia. Asgeir estava em sua meia-

idade, e sua juventude provavelmente já havia morrido.

O jovem lutou com todas as suas forças e usando seus reflexos para defender-se dos poderosos ataques

do ex-líder de bandidos. E percebeu, conforme a luta se desenrolava, que o inimigo ficava cansado com o tempo...

Exatamente como fora na mina dos orcs.

Asgeir não esperava tamanha vitalidade. Nunca demorava muito para derrotar um adversário, porém

essa luta parecia estar mais longa que qualquer uma que já tivera.

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Já cansado, usou seu típico ataque triplo em Richard novamente. Mas seu corpo já estava debilitado pelo

cansaço, fazendo o golpe ficar lento e previsível demais. Richard desviou-o com o escudo que uma vez fora de seu

pai, e contra-atacou com a espada.

Em cheio: A lâmina perfurou o peito do inimigo um pouco para a esquerda, atingindo o pulmão. Ao retirar

a espada do corpo do homem que futuramente seria general, ele cuspiu sangue e caiu de costas.

— Como? — Disse Asgeir. Cada frase o fazia cuspir mais sangue. — Você é apenas um garoto! — Ele

tossiu, obviamente com sangue. — Suas habilidades de luta são apenas uma sombra das minhas!

— Eu sou um Lionfist. Nada iria me amedrontar, e muito menos você. Ficarei mais forte a cada inimigo

derrotado até eu chegar ao meu objetivo.

— É inútil! — Asgeir mais uma vez tossiu sangue e quase se afogou com ele. — Você jamais conseguirá

derrotar Sarobou sozinho! Nem um exército conseguiria! — Ele colocou a mão no peito e tentou respirar fundo,

sem sucesso. — E tudo isso por causa de uma simples mulher! Ela já deve estar morta! Você...

Mas suas palavras foram cessadas quando Richard fincou sua lâmina na garganta do homem, penetrando

tão fundo que cravou no chão, do outro lado do corpo do homem moribundo.

— Você brincou com meu orgulho. Nunca subestime meu clã, nem nesse mundo nem no próximo!

Asgeir agora estava morto. Rich, mesmo cansado e respirando pesadamente, seguiu em frente. Viu que a

batalha entre orcs e soldados inimigos continuava. Alguns orcs já estavam no chão, derrotados, e não paravam de

chegar reforços inimigos da cidade.

O jovem pulou mais duas ou três casas e desceu para o chão. Correu alguns metros e se juntou à luta.

— Richr, estamos em apuros! Krak'maptirnatdangrafur! São muitos! — Disse Krognarr, segurando a

cabeça de um soldado que havia recém decapitado.

— É Rich!

— Vá, komerlohk! — Gritou Marknarr, lutando contra um bruto com a ajuda de mais dois orcs.

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— Mas... e vocês?

— Tentaremos abrir caminho e então iremos atrás de vocês dois! Estamos cansados dessa cidade

também!

Rich ajudou a dar o golpe final no bruto derrotado.

— Eu não sei como lhe agradecer, Marknarr. — Disse o jovem.

— Você está fazendo um favor para nós. Não aguentávamos mais esse reino cheio de burgueses!

O cavaleiro lohk sorriu, com a cara cheia de sangue pelo corte sofrido por Asgeir.

Mas não seria fácil sair correndo. Reforços inimigos chegaram de todos os lados. Os dois teriam que lutar

para passar. Ainda haviam muitos inimigos na frente e, logo, o número estaria dobrado. O que fazer nessa

situação?

Porém, quando Richard estava preparado para lutar contra mais três inimigos, o céu pareceu ficar mais...

escuro.

Um som repugnante ecoou por toda a extensão da batalha. Todos olharam para a origem do barulho. No

alto de um prédio alto, estava Morphos, o seguidor de Sarobou, em seu cavalo. Seus olhos vermelhos penetraram

na mente de todos os presentes. Um brilho da própria cor do inferno sob um céu agora escuro.

A dor de cabeça atingiu Rich, e todos os soldados humanos colocaram suas mãos nos ouvidos, como se

estivessem ouvindo algum som ensurdecedor. Seus olhos ficaram negros. Olhando em volta, o jovem percebeu

que não foram só os soldados que foram pegos: cidadãos de Adrebolomde também estavam sofrendo e, claro, os

orcs.

Tanto soldados inimigos quanto orcs e pessoas comuns foram caindo no chão, uma por uma. Os gritos de

agonia eram perturbadores, a imagem do cavaleiro negro ao alto, amedrontador. Richard também estava tendo

visões maléficas: os piores momentos de sua vida estavam aparecendo, como se ele estivesse vendo um fim para

si próprio. Era terrível, e estava fazendo não só ele, mas todos os presentes a perderem a vontade de viver sob

um momento tão agonizante.

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Um relâmpago rasgou os céus, fazendo Lionfist acordar de seu terrível e quase eterno pesadelo.

— Krognarr! Vamos, rápido! — Gritou ele, dando apoio ao orc com seus ombros. — Venham, orcs! Vamos

sair daqui, antes que seja tarde!

Cerca de dez orcs ouviram. Ajudaram-se uns aos outros a caminhar para fora daquele inferno. Morphos

deu mais um pulso de ilusões, fazendo alguns orcs caírem novamente. Richard resistiu o máximo que conseguiu,

mas Krognarr não estava acostumado com tamanha tortura mental. Ele não falava. Seu esforço em ficar

consciente era visível, mas ele mal conseguia caminhar. Os outros orcrrims, mesmo sendo tão fortes quanto ele,

quase não conseguiam ficar em pé.

Richard ouvia algo... Parecia vir da boca do próprio demônio Morphos.

"Vá, encontre o mestre..."

Richard, antes de entrar completamente no túnel para sair da visão do cornutum, deu uma leve olhada

para trás. Todos os soldados humanos inimigos estavam no chão. Alguns tendo ataques epiléticos, outros,

tentando lutar contra as visões, sem sucesso. Os orcs, por outro lado, conseguiam caminhar, mesmo com

dificuldades, e estavam vindo em direção à saída. A maldição parecia atingir mais humanos do que orcs e, por

sorte, Rich já havia se "acostumado" um pouco com esse efeito. Mesmo assim, parecia que uma besta estava

cuspindo fogo em sua mente.

Continuou andando e insistiu para que os orcs não desistissem e continuassem lutando contra a perda de

consciência. Se tivessem ilusões como a que Rich teve anteriormente, as consequências seriam catastróficas.

Foi uma caminhada que pareceu demorar horas, mas foram apenas alguns minutos até estarem fora da

cidade. Por sorte, a dor da maldição era apenas temporária. Richard, Krognarr e cerca de oito orcs conseguiram

escapar. Logo, as dores e visões se foram completamente, e o alívio foi tanto que Marknarr riu.

— Não pensei que ia conseguir sair dessa, komerlohk! — Ele riu mais um pouco. — Vá, continue sua

jornada. Nós iremos começar a nossa também para voltar a Krainir, e lá ver nossos parentes novamente!

— Ótimo, obrigado por tudo, Marknarr. — Disse o humano. — Nós seguiremos em frente.

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Infelizmente, não haviam cavalos, não se sabe o porque. Rich praguejou, mas não queria ficar muito

tempo ali. Ele e Krognarr apenas despediram-se dos orcs mercenários e seguiram para o norte.

Estavam a um passo das Terras do Além.

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Capítulo 13

O lugar não muito distante

Velas ardiam em lampiões velhos e enferrujados. Feno, sangue e ossos putrefatos estavam espalhados

por toda a extensão do calabouço. Às vezes, gritos de desespero e agonia eram ouvidos, enquanto outros sequer

demonstravam reação diante de torturas. Provavelmente porque estavam mortos. Não de corpo, mas em

esperanças.

Além desses poucos mas repugnantes elementos que compunham os andares inferiores do enorme

castelo, não havia mais nada a não ser o forte cheiro de enxofre. Era algo queimando, ou apenas o odor

característico de um lugar habitado por demônios?

Mas é acima desses corredores e câmaras repulsivas em que uma jovem prisioneira se encontra. Era uma

mansão de luxo comparado ao lugar onde outros prisioneiros do Lorde se encontravam.

Uma cama em um lado, um pequeno armário de roupas velhas em outro. Uma lâmpada a óleo no teto,

uma cadeira virada no chão e outra perto da única janela. Era único quarto que tinha uma janela e permitia pelo

menos o mínimo de luz natural banhar o cômodo com a luz fraca, mas quente e prazerosa do sol atrás das

inúmeras nuvens. E, sentada na cadeira, estava a jovem e bela Isabel.

Estava ali, parada, olhando para a paisagem morta das terras do além, admirando (ou seria desprezando?)

a visão que aquela humilde janela proporcionava. Estava vestindo um vestido velho e já rasgado de cor bege.

Estava suja também, e não tinha mais seus habituais luxos que possuía de sobra em Rarstead, à disposição. Mas

isso não a incomodava. Nem as roupas velhas, nem a sujeira, nem o cheiro de enxofre e nem aquele quarto a

deixavam triste.

Era a solidão e o medo da morte.

Por que era a única prisioneira? Por que ela? Qual era o sentido daquilo?

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Queria respostas. Mais do que apenas respostas, alguém para tirá-la daquele inferno. Naquele imenso e

depressivo cenário, noite e dia não faziam mais diferença. Almoço e janta, lazer e trabalho, amigos e inimigos,

coragem e medo... Nada mais existia. Pelo menos, não era visto. Apenas ela, sozinha, em um pequeno e escuro

quarto, em meio ao que se pode chamar de "inferno da superfície": o castelo de Sarobou.

Olhos inexpressivos observavam as terras malditas pela janela, enquanto sua respiração demonstrava

preocupação e desânimo. De repente, a porta de seu quarto, se é que aquilo era um quarto, abriu-se. Era o Lorde.

— Como você está se sentindo, madame? — A voz do demônio era assustadora, como se fosse a voz do

inferno em pessoa. Grossa, ligeiramente rouca e que demonstrava, ao mesmo tempo, sabedoria e maldade.

Isabel apenas virou seu rosto para confrontar aquele que mandou raptá-la.

— Você não é meu amigo e sequer tem direito de me chamar dessa forma. — Disse ela, evitando perder a

compostura. Seus olhos demonstravam coragem, mas, no fundo, um pavor tomava conta de sua alma.

— Estou apenas tentando ser gentil. — Sarobou usava seu famoso capacete que cobria sua face.

Ninguém, com exceção de seus braços esquerdo e direito, sabiam como era seu rosto. — E você sabe que, se não

fosse por minha generosidade, você estaria presa nos andares inferiores, nos calabouços junto com os demais

prisioneiros.

— Eu não tenho medo de você. — Encorajou-se a moça, voltando seu rosto novamente para a vista da

janela. — E suas visitas diárias não me agradam.

O Lorde entrou no quarto e deixou a porta aberta. Escorou-se na parede e cruzou os braços.

— Seu objetivo aqui é apenas sobreviver. Ficará aqui o tempo que precisar até eu decidir o que faço com

você. E então... — Ele estalou os dedos. — Pode me dizer seu nome? Ou você ainda insiste em não dizer?

Isabel não conteve seu ódio. Virou-se novamente em sua cadeira e o enfrentou.

— Já disse que meu nome é Estrela! — Ela serrou os punhos. — Meu tio irá acabar com você! Ele é o rei

de Rarstead e irá mandar o mundo inteiro atrás de você!

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— Interessante seu ponto de vista. Porém, ele mandou apenas uma pequena tropa, que sequer tinha o

objetivo de me fazer algum mal. — Sarobou riu. — Mesmo assim, mandei meu braço-esquerdo matar todos.

Isabel sentiu, mais uma vez, tristeza.

— Por que você está fazendo isso comigo!? — Chorou.

— Quer ir embora? — O Lorde sugeriu. — Pode ir, deixei a porta aberta. Apenas espero que você saiba

lutar contra os guardas de meu castelo.

A mulher hesitou e continuou sentada. Não disse uma palavra. Assim foi por longos segundos, até

finalmente quebrar o silêncio.

— Você pagará por isso. Seja o que for que você quer comigo, você irá pagar. — Ela rosnou. O demônio,

ao ouvir isso, deixou a parede e caminhou em direção a ela. — Eu já disse que não tenho medo de você!

Sarobou chegou mais perto. A moça se esforçou para não demonstrar o medo que sentia. Até que ele, ao

chegar perto o bastante, colocou sua mão suavemente no queixo dela. Estava usando uma manopla, o que fazia

seus dedos serem frios e duros.

— Não há esperança, minha cara. — Ele virou o rosto angelical de Isabel para o seu, aparentemente

inexistente por causa do capacete. — Há apenas uma pessoa que foi corajosa o bastante para fazer uma jornada

aqui. Ele está perto, mas não sei se ele sequer conseguirá ver esse castelo.

Mesmo tão perto do rosto do Lorde, não era possível sequer saber se ele tinha uma cara humana.

— Quem?

— Um jovem chamado Richard Lionfist.

Richard Lionfist? Ela pensou. Lembrava desse nome, porém não a quem ele pertencia. Após desviar o

olhar para baixo por um tempo, com o rosto ainda segurado pelo raptor, finalmente lembrou-se. O garoto que

conhecera quando era pequena, no parque...

Sarobou soltou a moça e ficou de pé perto dela.

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— Por que ele está vindo? E quantas pessoas estão com ele?

— Ele está sozinho. Eu não sei porque ele quer me enfrentar. — Isabel percebeu, pelo tom de voz, que o

demônio estava mentindo. — Mesmo assim, já estou preparando as boas-vindas a ele!

Ele ia rir, mas alguém entrou no quarto. O demônio virou-se e viu que se tratava de Morphos.

— Milorde — Disse o braço-esquerdo —, o garoto saiu de Adrebolomde e está vindo para cá.

— E os soldados que iriam impedi-lo?

— Eles não vão acordar do coma tão cedo. Porém, aquele jovem quase me matou... Cheguei perto

demais. — Disse ele, mais como um pedido de desculpas do que como uma reclamação. — Mas já havia colocado

uma pequena maldição nele. Isso irá nos ajudar, de certa forma.

Isabel não entendia nada do que queriam dizer com aquilo tudo.

— Muito bem. Vamos descer. — O Lorde andou em direção à porta e, antes de sair, virou-se para a moça.

— Espere aqui e descanse, madame. Em breve, darei a você um trabalho especial.

Sarobou saiu e fechou a porta atrás de si. Isabel voltou a olhar para a paisagem, secando suas lágrimas.

Estava tudo tão confuso, tão angustiante e tão amedrontador que o medo a possuía. Haviam-se passado

apenas quatro ou cinco dias, ela não sabia exatamente. Ao voltar seus olhos novamente para o céu, percebeu que

o que ela pensava ser o sol na verdade era a lua cheia. Um gigantesco olho que faz os lobos uivarem, e não as

plantas florescerem.

Levantou de sua cadeira, atravessou o quarto e deitou-se na cama de palha.

"Estrela" perdeu-se mais uma vez na noite.

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Capítulo 14

A casa em sombras

Já estavam quase na fronteira para as Terras do Além quando começou a escurecer. Prepararam um

simples acampamento para não precisarem andar à noite. Era apenas uma teoria, mas o jovem ouviu que as feras

de Sarobou eram mais ativas à noite. Os dois apenas não queriam ser atacados durante o sono, como ocorrera

nos Vales da Lava Negra, então montaram o acampamento em um pequeno esconderijo que acharam, entre

algumas rochas.

— Você faz ideia do que encontraremos nessas terras? — Perguntou o orcrrim, deitando-se em um tipo

de "colchão" de folha que improvisara para dormir.

Richard, logo que ouviu essa pergunta, reuniu em sua mente tudo o que havia ouvido sobre aquele

enorme e misterioso lugar.

Terras do Além era uma área ao norte do continente. Porém, não era o extremo: alguns quilômetros ao

noroeste havia a enorme ilha de Nortgarr, a maior de Sevenland. Possuía as montanhas mais frias do mundo, e

seus mistérios eram tão intrigantes quanto os dos Vales da Lava Negra. Além disso, era habitada por uma

população de humanos resistentes ao frio, chamados Norgueiros. Pelo que se sabe, as feras e cornutuns de

Sarobou não suportavam tamanho frio, portanto não atacavam a enorme ilha.

Nas próprias terras do Lorde, os perigos eram tantos que sequer era possível listá-los. Havia, claro, os

famosos cornutuns, os meio-demônios servos do Lorde. Eram fortes e bem treinados, além de serem muito fiéis

ao seu líder. Também existiam as mitológicas feras que Sarobou adorava domesticar. Eram de simples lobos até

dragões.

Além de todos esses perigos, aquele domínio era cheio de mistérios dos mais variados tipos e as lendas

contavam desde aparições de fantasmas e bruxas até castelos dominados por mortos-vivos. Todas essas lendas,

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claro, vinham de fontes não muito confiáveis, mas eram, de certa forma, amedrontadoras. Se foi construído um

reino inteiro para demarcar aquele território (Adrebolomde), o que diabos as Terras do Além escondiam?

Os pensamentos de Rich cessaram quando ele sofreu mais uma crise de dor de cabeça. Ele não havia se

livrado da maldição ainda.

Tinha que, de alguma forma, acabar com aquilo.

Mas algo além das dores de cabeça o incomodavam.

— Krognarr — Perguntou o cavaleiro, um pouco cabisbaixo —, você acha que somos capazes de derrotar

um homem tão poderoso? Será que o destino quer que nós derrotemos ele, ou estamos apenas fazendo um

esforço em vão? — Ele suspirou, e voltou a falar. — Nós somos fortes o bastante?

O orc pensou um pouco. Olhou para o céu, e falou:

— A força que nasce conosco é apenas o começo, meu amigo. Nossa vontade e esforço nos torna fortes.

Rich olhou para o céu noturno, também. Apesar de já ser cerca de nove horas da noite, não estava tão

escuro. A lua cheia iluminava o ambiente, como se fosse um segundo sol. Era até mesmo... parecido. Nuvens

cobriam praticamente todas as estrelas, deixando todo o lugar mais sombrio. Às vezes, era possível perceber um

rápido clarão ao longe, causado por um relâmpago.

— Você tem razão. Aprendi em minha jornada que, se uso uma espada, tenho que ser corajoso. — Ele

tirou a espada da bainha e soltou o escudo das costas. Colocou um em cima do outro, e os observou. — E deverei,

a todo custo, honrar o que meus pais foram, pois uso um escudo com nosso símbolo gravado nele.

— Lesko.

— O quê?

— Lesko. Leão, em língua orcrrim.

Rich então lembrou-se que Marknarr o chamou de "Leskognarr" na fuga de Adrebolomde.

Aproveitaram a calmaria da noite para finalmente dormirem.

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O lohk, por ainda estar sentindo uma incômoda dor de cabeça, apenas cochilou. Mas foi o suficiente para

ele se apagar do mundo. Pensou, nesse tempo de descanso, em Isabel.

Até ser surpreendido, no meio de seus sonhos, pela mão de Krognarr em sua boca, tapando-a.

— Shhhh... — Fez o orc em sinal de silêncio.

O jovem não entendeu aquilo, mas olhou para o céu e percebeu que apenas algumas horas haviam-se

passado. Conforme seus sentidos voltavam a se aguçar, ouviu uma conversa vinda de mais longe.

Quando o orcrrim tirou a mão da boca do jovem, sussurrou:

— Um cornutum. Está perto...

Rich sentou-se e ouviu atentamente. Realmente, ouviu algumas vozes. Eram graves e demonstravam

antipatia.

— Onde diabos está a fumaça que vi? — Disse a tal voz.

Logo, o cavaleiro entendeu: O autor das vozes havia visto a fumaça da fogueira que fizeram para se

aquecer. Ao olhar para a ela, viu que já estava apagada. A pessoa (ou cornutum) havia visto, porém se perdeu

quando as chamas se extinguiram e a fumaça cessou.

Richard saiu silenciosamente do esconderijo e tentou localizar quem estava falando.

— Tenho certeza! — Dizia a voz. Não se sabia se era um diálogo ou um monólogo. — Eu vi uma fumaça

em algum lugar por aqui. Devem ter humanos em algum local! O chefe ficará contente!

Krognarr continuou no esconderijo, e Rich já podia ver o autor das palavras: Uma pessoa um pouco mais

alta do que o normal, musculosa e com a pele levemente avermelhada. De sua testa, quatro pequenos chifres

eram visíveis. Usava, também, uma armadura média de ferro e couro. Era, de fato, um dos temidos cornutuns de

Sarobou. Por sore, era apenas um. Será que era forte em lutas?

O jovem estava prestes a saber. Decidiu testar o inimigo corajosamente.

Saiu do mato em que estava escondido e enfrentou o futuro oponente.

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— Rá! — Disse o homem-demônio. — Finalmente, achei!

Richard iria tentar trocar algumas palavras, mas não teve a oportunidade: o adversário não esperou nem

um segundo para atacar o cavaleiro com tudo que tinha. Usava uma estranha espada curva em uma mão e um

pequeno escudo, menor do que o de Rich, em outra.

Deu um golpe de espada no jovem, e este defendeu sem muitos problemas, dando um contra-ataque.

Porém, o cornutum tinha reflexos e, aparentemente, experiência também: defendeu usando o escudo.

Continuaram trocando golpes, e o humano percebeu que o servo de Sarobou dava ataques selvagens e com uma

força altíssima, porém sem se preocupar muito com a habilidade e técnica. Sem sequer pensar em alguma

estratégia, tentou furar Richard com a lâmina, que novamente defendeu e executou novamente um contra-

ataque.

Dessa vez, acertou.

Com um ataque vertical, cortou fora o braço do inimigo. Este rugiu de dor, mas não parou de lutar!

Continuou atacando apenas com a espada curva. Sem escudo, suas defesas eram inúteis. Rich cortou mais

uma vez o adversário, porém a pele dele, além de ser vermelha, era escamosa e dura, fazendo o corte ter pouca

profundidade.

Os dois continuaram lutando por algum tempo, até o jovem finalmente desferir um golpe perfurante no

peito do adversário.

— Richr! Espere! — Gritou Krognarr, aparecendo do mesmo lugar que Lionfist apareceu para o cornutum.

— Não o mate!

— É Rich! — Ele logo percebeu que falou isso sem sequer entender o orc primeiro. — Mas, porque não

matá-lo?

— Afaste-se! Prantoker!

Logo, o cavaleiro humano olhou para o inimigo derrotado. Não conseguiria nem imaginar o que estava

por vir.

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Os olhos do cornutum ficaram vermelhos, seus chifres cresceram, um pouco de fogo saiu por sua boca e

seus músculos inexplicavelmente ficaram mais rígidos.

Surpreso, Richard tirou sua espada do corpo do meio-demônio e afastou-se para perto do orc. Logo, o

cornutum pareceu ter voltado à vida. Agora estava ainda mais vermelho do que antes, e chamas saíam de sua

boca ao respirar.

— O que aconteceu com ele? — Perguntou o jovem, assustado.

Entretanto, o orcrrim não teve tempo de responder.

O servo de Sarobou avançou sem pensar contra os dois, ainda com apenas um braço. Mirou o golpe em

Rich, que defendeu com o escudo. Porém, a força no adversário era tanta que derrubou o jovem no chão.

Krognarr deu um poderoso golpe com sua espada, com a força que seria o suficiente para partir um homem em

dois.

O golpe quebrou a armadura e entrou na pele do inimigo, mas parou pouco centímetros depois, ao

chegar à costela. Tudo, desde a pele até os ossos, ficaram mais duros e resistentes!

O cornutum deu um chute no orc, forte o suficiente para jogá-lo longe. Agora, Richard já havia se

levantado, e voltou a lutar. O monstro hostil agora estava absurdamente forte e resistente, mas continuava

descuidado. Essa era, de longe, a única vantagem que o jovem tinha.

Desviou de um golpe de espada que provavelmente o partiria em dois e, com muito esforço, conseguiu

desferir um golpe na perna do adversário. Este sequer demonstrou dor, então virou-se rapidamente e atacou

Richard mais uma vez. Não com a espada, mas cuspindo fogo!

Lionfist defendeu com o escudo e, assim como havia feito com Bijak, desviou das chamas para atacar. O

cornutum tinha reflexo, mas não velocidade o suficiente: Rich fincou sua espada, de baixo para cima, no pescoço

da criatura. A lâmina entrou pela garganta e atingiu o cérebro.

Enfim, o sabe-se lá o que caiu morto no chão, e seu corpo logo transformou-se em cinzas.

Krognar já estava perto quando isso aconteceu.

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— Aux naar krinm'nu runarp... Você não devia ter atacado...

— O que diabos acabou de acontecer? — Perguntou o jovem, sentando-se no chão, quase exausto.

— Eu esqueci de te dizer, amigo... não pensei que fôssemos confrontar um tão cedo.

— Do que você está falando? — Disse ele, já irritado, arfando.

— Você não deve temer os cornutuns quando estão vivos, mas sim depois que eles morrem. — Richard

continuou não entendendo. — Eles tem duas almas, Richr. Quando a humana morre, a outra entra em seu lugar:

a alma de demônio. Burkomerkrrish...

— Então devemos matar todos os cornutuns duas vezes?

— Não exatamente. Quando sua forma humana se fere gravemente, a de demônio começa a entrar em

seu lugar. O processo dura aproximadamente dezessete segundos.

— O que você quer dizer com isso? — Perguntou o lohk, limpando a espada e olhando para o monte e

cinzas que se formaram da morte do inimigo.

— Quero dizer que, ao lutar com um, você deverá matá-lo em no máximo dezessete segundos, antes que

a forma de demônio o possua.

— Entendi! — Disse Richard, entusiasmado. — Então, amanhã partiremos. Eles são fortes e ferozes, mas

lentos! Apenas precisamos nos adaptar.

— Não é só isso! — Continuou Krognarr, em um tom de voz ainda mais sério do que o normal. — Quando

um cornutum morre, seu corpo exala um odor que atrai outros da raça dele.

— Eles ficam malcheirosos ao morrerem?

— Não! Krrish... — Disse o orc, sem nenhum senso de humor. — Ao matar um, outros vão ser atraídos

até o lugar do corpo. — Ele andou em direção ao esconderijo onde iriam dormir. —Temos que sair daqui antes

que mais deles cheguem.

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Rich concordou. Ainda não era meia-noite, então teriam que continuar a caminhada acompanhados da

luz da lua. Se não fosse por seu brilho, a escuridão seria praticamente absoluta.

Pegaram suas mochilas e caminharam, mesmo sem terem dormido, em direção ao local onde podiam

encontrar a Sombra. O terreno das terras do além era uma mistura de "rochoso" e "morto". Tinha florestas e

vegetação, mas eram, em sua maioria, mortas. Como se fosse um inverno sem neve, um incêndio sem chamas.

Era até perturbador e medonho: uma noite de lua cheia, florestas mortas e muitas lendas que deixavam o lugar

digno do nome "Terras do Além".

Não se sabe como, mas a região também tinha uma quantidade razoável de animais selvagens. Viram

ratos, morcegos e até alguns javalis. Mas era possível, também, ouvir o uivado de lobos e até sons de criaturas

estranhas, além de um grito característico de um troll. Richard tinha certeza que ia achar muitas criaturas que

nunca vira na vida.

Finalmente, depois de algumas horas de caminhada, chegaram à casa. Ela realmente existia, e estava no

exato local indicado no mapa.

Mas, pela aparência, sequer podia-se dizer que era uma casa. Era feito de madeira, e estava caindo aos

pedaços. O teto ainda aguentava, mas estava cheio de buracos. Parecia um tipo de "cabana" que já havia sido

abandonada há décadas.

— Richr, não há nada aqui. Vamos achar um outro local para dormir, por favor. — Disse o orc,

aparentemente cansado.

— É Rich! E eu não vou sair daqui até achar a sombra!

— Krak'kurmizzu. Temos que achá-lo. Mas não há nada aqui.

— Vamos vasculhar essa pequena casa para ver se achamos algo, então.

Os dois nem precisaram usar uma porta: a cabana estava tão velha que as paredes estavam cheias de

buracos grandes o bastante para passar uma pessoa.

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Vasculharam a cabana procurando por qualquer pista. Havia apenas um armário, um pequeno forno a

lenha, a estrutura de uma cama destruída, uma mesa com uma velha e simples cadeira e algumas tralhas. Na

estante havia alguns livros de gerações passadas, e embaixo da cama destruída tinha um crânio humano.

Provavelmente, alguém morou nessa casa há muitos anos. Até descobrir, da pior forma, o que as terras

de Sarobou trazem.

Rich saiu da cabana e, do lado de fora, viu uma grande caixa de ferro e madeira. Era necessário uma chave

especial para abrir, mas ela tinha um orifício grande para colocar algo.

Após analisar a caixa com atenção, o jovem se deu por conta que aquilo não era uma caixa qualquer: era

uma caixa de correio, para que os clientes da sombra a contratassem colocando ali a carta com a solicitação e,

junto, um saco com a quantidade certa de dinheiro.

Após observar um pouco, também percebeu que havia alguns sacos de dinheiro com cartas dentro do

caixote. A sombra realmente passava por ali. Krognarr saiu da casa, também.

— Não achamos nada, Richr. Vamos embora, acharemos uma outra forma de ter ajuda. — Ele deu uma

leve risada. — O que acha de nós capturarmos cornutuns vivos para usarmos como nossos próprios soldados?

Runarp laahkin?

— Eu soube que eles são fiéis demais ao mestre... Não iriam lutar contra ele por nada!

Então, de repente, uma brisa suave atingiu seus corpos. Era agradável, mas ainda havia algo. Não foi só os

sons das árvores balançando que Richard ouviu. Era também... Uma voz?

— Capturar cornutuns é uma ideia divertida... — Disse uma voz enigmática.

Os dois pegaram suas armas e olharam para a origem do som. Vinha do telhado da casinha.

Era uma pessoa. Como estava contra a luz da lua, pareceu que era, de fato, uma sombra viva que

aprendera a sair do chão e da superfície dos objetos.

— Quem é você? — Perguntou o jovem, com a espada em mãos, precavendo-se de um ataque.

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A escuridão em pessoa estava confortavelmente sentada na beira do telhado. Uma de suas pernas estava

caída para fora, balançando, suspensa.

— Eu sou apenas alguém. Mas teimam em me chamar de "sombra". — Disse, calma ao extremo, como se

tivesse certeza que nada a faria mal.

— Mostre-se!

— Não recebo ordens de quem não tem dinheiro. Pelo menos, para aqueles que não mostram.

— Aqui está! — Respondeu Rich, tirando sua mochila das costas e, dela, um saco cheio de dinheiro. —

Milhares de Yols! Quero fazer um acordo você!

— Ótimo. Vocês não parecem cavaleiros de outros reinos, então suponho que não irão tentar me

capturar. — Disse a sombra, descendo do telhado.

Saindo da luz ofuscante da lua, a sombra apresentou-se aos dois.

A sombra era, ironicamente, uma mulher. Uma moça aparentemente alguns poucos anos mais velha que

Richard, magra, com a pele morena e cabelos negros, semicompridos e crespos. Tinha orelhas pequenas e um

pouco mais pontudas do que a de uma pessoa normal, e seus olhos eram grandes e um pouco puxados. Usava

uma roupa apertada que cobria deste os pés até os dedos das mãos: era um tipo de traje. Em seu cinto, uma faca

estava presa: esse objeto chamou muito a atenção do jovem. Era uma faca muito diferente, tinha uma cor cinza-

escuro e o punhal era feito de algum material que ele não conhecia.

— Qual é o acordo, cavaleiro? — Disse ela, com um pequeno sorriso estampado no rosto.

— Você me seguiria como guarda-costas em minha jornada?

A sombra escorou-se na parede, cruzou os braços e olhou o jovem com um olhar malicioso.

— Esse tipo de serviço é raro de eu aceitar. Você tem algo que me possa fazer mudar de ideia?

Richard embainhou sua espada e relaxou. Krognarr continuou com a Strangnirr em mãos.

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— Só durará um dia ou dois... — Ele colocou a mão na nuca e suspirou, intimidado e tentando convencê-

la. — Eu tenho cinco mil yols! Não é o suficiente?

Ela cruzou as pernas e relaxou, ainda escorada na parede.

— Eu trabalho como assassina. Não sou uma vadia mercenária. — Ela continuava com um leve sorriso

estampado no rosto, como se estivesse falando sarcasticamente. Seu olhar era, ao mesmo tempo, sedutor e

malévolo. Após uma pausa na fala, ela voltou a falar. — Mesmo assim, para onde você está indo?

— Eu vou lutar contra Sarobou. Preciso de alguém para me ajudar a entrar no castelo e confrontá-lo. —

Disse ele, simplesmente.

A sombra olhou para baixo e deu uma risada.

— Você é mais idiota do que eu imaginava. Eu vivo aqui apenas o evitando, e agora você quer que eu o

confronte? — Disse ela, rindo mais um pouco. Ela tinha sempre um tom de voz calmo e baixo, mas que

expressava segurança e deboche.

— Eu soube que você já assassinou um dos subordinados dele! — Disse o jovem. Aquela mulher o fazia

lembrar de Anakira, do começo de sua jornada.

Ela colocou a mão no queixo e pensou por alguns segundos.

— Quem indicou você a me procurar?

— Um homem misterioso em Adrebolomde, na taverna "Vale do Machado".

Ela deu mais uma leve risada ao ouvir aquilo. Esfregou as mãos e disse:

— Lucio... Aquele idiota realmente achou que eu iria ser contratada para um trabalho desse tipo... — Ela

ajeitou os cabelos e voltou a falar. — Quem é você, homem? E o orc?

— Eu sou Richard Lionfist. Esse é Krognarr... — O jovem ia dizer o sobrenome do orcrrim, mas não se

lembrava qual era.

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— Lionfist, huh? — A moça tirou sua faca do cinto e pareceu brincar um pouco com a arma. — É dito que

será um de seu clã que derrotará o Lorde demônio. Portanto, eu aceito sua oferta sob uma condição.

— Qual condição? — Perguntou o jovem, entusiasmado por finalmente fazer progresso naquela conversa.

— Eu soube que que o castelo do Lorde contém tesouros. Muitos tesouros! — Os olhos dela pareceram

brilhar. — Eu irei lhe acompanhar até dentro do castelo, então saquearei os tesouros do lugar.

— Está bem, eu aceito. — Disse ele, pensando que esse seria o único jeito de fazê-la ir com ele.

— Então, me dê esse dinheiro como pagamento adiantado. — Ela pegou o saco de dinheiro e o colocou

dentro da caixa de correios. — Vamos, já estou pronta.

Richard sorriu, colocou a mochila nas costas e estendeu a mão para um cumprimento.

— Prazer em conhecê-la. Como posso chamá-la? — Perguntou.

Ela, ao invés de apertar a mão do cavaleiro, apertou seu braço. Que tipo de comprimento era aquele?

A moça olhou nos olhos de Rich, com seu olhar malicioso característico, e falou, quase cochichando:

— Chamo-me Lincy.

Ela pegou uma pequena bolsa que estava escondida entre as tralhas da cabana, prendeu em seu cinto e

acompanhou Richard em sua jornada.

A próxima parada seria o castelo do Lorde.

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Capítulo 15

O castelo das tempestades

Mal começaram a andar e o jovem logo estava conversando com Lincy.

— Você mora naquela pequena cabana? — Perguntou, extremamente interessado na vida de alguém que

morava tão perto de Sarobou.

— Não, aquilo é só um ponto para chamarem meus serviços. — Respondeu ela, calmamente . Após

estalar o pescoço, continuou. — Tenho mais de dez esconderijos aqui nas Terras do Além, e eu alterno entre eles.

Rich mostrava-se interessado, enquanto Krognarr continuava indiferente. Ele parecia, de certa forma,

desconfiado. A assassina não parecia interessada em nenhum dos dois.

— Como você consegue viver em um lugar tão perigoso?

— Ninguém nunca me capturou ou sequer me viu enquanto eu me esgueirava. — Ela deu uma ligeira

risada. — Acho que é por isso que me chamam de "Sombra"...

Então, o jovem lembrou-se de mais uma pergunta:

— Por que nós te achamos naquela casa se você mora em tantos lugares diferentes?

— Vocês tiveram sorte. — Disse. — Eu só vou ver meus novos contratos uma vez por semana, à meia-

noite. Chegaram um pouco antes de mim.

— Você passou por nós e subiu no telhado sem que nós víssemos? — Perguntou Richard, empolgado. Já

havia apenas ouvido histórias de pessoas que eram mestres na arte de se ocultar e serem tão silenciosos que

podem se infiltrar em um reino sem serem vistos. Mas o jovem nunca vira um de verdade.

— Não só isso. — Ela respondeu. — Também descobri que você foi pego em um julgamento de um deus!

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Ela mostrou o para o cavaleiro o bilhete do julgamento de Samart.

— Hey! — Reclamou Rich. — Isso é meu! Como você pegou?

— Peguei de seu bolso enquanto você investigava a minha caixa de pedidos. — Ela devolveu o papel

divino, rindo novamente. Dessa vez, Krognarr riu também.

O breve momento cômico dos três cessou-se quando viram, a algumas dezenas de metros à frente, uma

fumaça e sons de conversa. As vozes eram idênticas às que Richard ouviu do cornutum que derrotou naquela

noite. Os três estavam no meio de uma floresta sombria, ainda era noite e não era possível ver muito longe.

Lincy fez um sinal para os dois ficarem quietos e parados. Então, abaixou-se em posição de espreita ao

inimigo. Então, cochichou para os dois companheiros:

— Devem estar em uma clareira atrás desses arbustos e árvores. — A expressão da mulher ficou séria de

repente. — Vamos dar uma olhada.

O cavaleiro lohk fez sinal para Krognarr esperar no lugar onde estava enquanto ele e Lincy investigavam a

origem da fumaça. Andaram pelo meio de alguns arbustos e moitas até conseguirem visualizar a fogueira.

Em volta dela, havia três connutuns sentados em pequenos bancos. No fogo, estava sendo defumada uma

carne de javali. Mesmo com a fogueira e a lua como iluminação noturna, aquela floresta parecia deixar quase

tudo mais escuro e sombrio. Os três estavam conversando.

— Algum dos nossos morreu aqui por perto, posso sentir o cheiro! — Disse um.

— Vamos comer primeiro, por favor. — Falou o segundo, parecendo faminto.

O terceiro permanecia quieto, aparentemente sonolento.

Rich estava planejando algo para seguir em frente sem chamar atenção dos inimigos. Olhou para a direita

e viu mais alguns arbustos. Com sua mente, imaginou uma trajetória entre a vegetação para seguir sem chamar

atenção dos servos do Lorde.

— Talvez, se nós seguirmos por aqueles arbustos, poderemos passar sem ser...

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Porém, quando Richard virou seu rosto para Lincy, ela não estava mais ali. Voltou sua visão, então, para o

pequeno acampamento dos cornutuns.

Os três estavam no chão, mortos, com as gargantas perfuradas, e Lincy de pé entre eles limpando sua

estranha faca.

O jovem não conseguiu conter o espanto que sentia.

— Você podia ter me avisado! — Disse ele, saindo do pequeno esconderijo onde estava.

— Não temos tempo a perder com eles. — Respondeu a assassina, mais uma vez sorrindo do jeito dela.

Rich olhou para os corpos. Tinham um corte pequeno e profundo em seus pescoços.

— Como você os matou sem nem mesmo eu ter visto?

— Eu apenas furo o pescoço em direção ao cérebro. — Ela deu mais uma breve risada. — A morte é

instantânea e eles sequer fazem barulho ao morrer.

— Com quem você aprendeu isso?

Lincy, ao ouvir essas palavras, guardou sua faca e olhou para o céu.

— De uma sombra um pouco mais escura.

Richard chamou o orc e os três continuaram a caminhada.

Andaram pela pequena floresta sombria cautelosamente e o mais silenciosamente possível, sequer

falando algo com medo de haver mais cornutuns aos arredores. Até que, finalmente, chegaram no fim.

Após subirem um morro, viram uma enorme construção. Um castelo. Não tão gigantesco quanto o de

Rarstead e nem tão belo quanto o de Adrebolomde, mas continuava sendo um grande castelo. Possuía duas

pequenas torres saindo do centro e não tinha bandeira alguma para sinalizar quem o possuía ou a que força

militar dava abrigo. Estava cercado por árvores e, entre a construção e eles, apenas um rio os separava. Por sorte,

havia uma ponte que permitiria que os três atravessassem a água. Mas o que mais chamava atenção na

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edificação era o céu acima dela: Nuvens carregadas soltavam, de pouco em pouco, trovões, como se o castelo

chamasse a atenção dos raios. Era um castelo de tempestades.

— Esse é o castelo de Sarobou? — Rich fez a primeira pergunta que lhe surgiu na cabeça.

— Não. — Lincy respondeu. — É apenas um castelo aparentemente abandonado. Nunca vi ninguém

entrando ou saindo dele. Esses relâmpagos são realmente misteriosos, mas nunca vi atividade dentro daquilo.

— Krinmar'maptirspaznuk? — Perguntou Krognarr. Após lembrar-se que Richard não conhecia a língua

orcrrim, ele traduziu. — Nós vamos entrar?

— Não parece muito perigoso. — Disse o jovem, com seu sorriso corajoso. — Estou curioso para saber

que há lá dentro, e nós também poderemos achar algo útil!

— Mizzu. Vamos então, Richr. Estarei com você.

— É Rich!

Os três desceram o morro e atravessaram a ponte. Estavam, agora, diante do castelo. Era maior do que

eles pensavam e os trovões frequentemente quebravam o silêncio das Terras do Além. Agora podendo ver de

perto, percebia-se que havia algumas gaiolas bem grandes penduradas em paredes externas: isso era comum em

fortes militares ou de bandidos e existiam basicamente para dois motivos macabros: o primeiro era para manter

prisioneiros, que eram torturados com frequência pelos guardas do lugar e suas lanças. O segundo era para

intimidação, colocando cadáveres de inimigos mortos, expondo o poder de quem possuía o forte. Mas, nesse

castelo, não haviam corpos ou prisioneiros: as gaiolas estavam vazias.

Richard, Krognarr e Lincy estavam prontos para entrar, mas havia apenas um problema: o portão de

entrada estava fechado.

— Teremos que achar outro jeito de entrar... — Disse o cavaleiro.

Krognarr estava pronto para falar algo em resposta, quando o inesperado ocorreu: A enorme porta dupla

de madeira abriu-se sozinha. Alguém os estava esperando? Os três entraram, preparados para lutar, se fosse

necessário.

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— Cuidado, pode ser uma emboscada. — Cochichou Richard, cauteloso.

— É difícil. — Respondeu Lincy, também cochichando. — Passo por essa região frequentemente, e nunca

vi nenhuma atividade aqui dentro. Esse castelo está abando nado, com certeza.

Seguiram por um corredor parcialmente iluminado por velas. O interior do castelo era bem cuidado, mas

não era tão luxuoso e limpo quanto o esconderijo de Jaccob. Mas o que realmente chamava atenção naqueles

corredores eram os quadros que estavam pendurados nas paredes: eram muitos e pareciam tão velhos quanto o

próprio forte. Alguns estavam rasgados, outros até sem moldura, mas todos possuíam pinturas feitas

aparentemente por povos antigos.

Finalmente, depois de seguir pelo extenso corredor, o grupo chegou à uma grande sala. Em um lado,

havia uma grande mesa redonda. Atrás dela, na parede, uma grande estante de livros. Nas paredes próximas

havia inúmeras armas de guerra penduradas, e em um local específico existiam vários troféus feitos com cabeças

de animais e até uma que era de um cornutum. Aparentemente, quem vivia nesse castelo não era aliado de

Sarobou. Em outro canto da sala havia um grande baú e, ao lado dele, uma armação para armas. No centro, havia

um enorme tapete, um dos mais bonitos que Richard já vira. E, no fim da sala, uma lareira acesa.

À frente da lareira havia uma grande, luxuosa e aparentemente confortável poltrona. E, sentada nela, um

homem.

Este levantou-se. A ação fez Krognarr ficar nervoso e segurar fortemente a Strangnirr, enquanto Lincy

apenas observava. O homem era alto, maior até que o orc, e estava usando uma armadura dourada e

incrivelmente bem polida. Tinha uma barba e cabelos compridos, era musculoso e sua expressão no rosto

demonstrava poder e ambição. Lincy foi a primeira a se surpreender.

— Espere, você é o... — Mas a moça não conseguiu continuar a fala.

— Saudações, guerreiro corajoso, orcrrim inabalável e assassina ávida. — Ele colocou suas mãos as costas

em sinal de respeito, mas ao mesmo tempo de superioridade. Ele usava uma longa capa de cor azul, que se agitou

com o movimento dele. — Eu sou Fulgur Firerain, o deus das tempestades.

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Richard soluçou ao ouvir aquilo e esfregou os olhos. Aquele homem disse que era um... "Deus"?

Desde criança ouviu dos pais e de todas as pessoas conhecidas que deuses eram onipotentes ou apenas

simbólicos. Vivem entre nós, nos observando e avaliando nossas ações, mas raramente interferiam com seus

poderes sobrenaturais. Reza a lenda que o mundo foi criado por três deuses rivais, que criaram a terra como um

eixo que os uniria. Tamanho poder só era dado a filhos dos mesmos, que podia ser controlar os mares, destruir

cidades inteiras ou, no caso do jovem, tirar algo de algum humano para aplicar seu senso de justiça ou apenas se

divertir.

Mas, o que um deus estava fazendo ali, na frente dos três, em forma humana?

— Você é o famoso deus Fulgur? — Indagou Lincy, colocando um dedo no queixo e sorrindo

delicadamente. Ao ouvir pela segunda vez o nome, Rich teve certeza que já o ouviu em algum lugar. — Você é

apenas uma lenda por essas terras.

— Entendo que, em mais de mil anos em que vivo aqui, haja apenas boatos sobre minha existência. — Ele

colocou mais uma lenha em sua enorme lareira e ajeitou sua barba. — Mas eu nunca quis ser famoso, de

qualquer maneira.

Krognarr estava maravilhado por estar vendo um deus em forma humana, ainda mais do que Lincy e Rich

estavam.

— Krinm'kurgnarrek! — Disse o orc. — Eu já ouvi histórias sobre você! Você foi lendário tanto como

humano quanto como deus!

"Como um humano?", perguntou Richard a si mesmo.

— Querem ouvir algumas histórias? — Perguntou o homem, abrindo um sorriso no rosto. — Venham,

sentem-se! A noite é longa!

— Não, obrigado. — Disse o jovem. — Estamos sem tempo. Tenho que continuar minha jornada.

Fulgur fez uma expressão diferente ao ouvir isso. Não era de raiva e nem de frustração. Após, abriu um

grande sorriso e falou:

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— Você não quer ouvir a história do homem que enfrentou Sarobou?

Richard, que já estava de costas para ir embora, virou-se novamente e seus olhos pareciam ter sido

atingidos por um raio, de tão brilhantes que estavam. Agora havia se lembrado: O sacerdote de Rarstead o havia

mencionado. O homem que enfrentou o Lorde, pegou um pouco de seu poder e tornou-se o deus das

tempestades. Estava diante de alguém tão grandioso quanto os quatro fundadores de Adrebolomde.

— Vamos nos sentar, pessoal! — Disse Lionfist, tão animado quanto uma criança.

Cada um pegou uma cadeira para se sentar. Fulgur sentou-se novamente em sua poltrona e começou a

falar.

— Eu era apenas um cavaleiro sem família e com amigos apenas como parceiros de bebida. Era

apaixonado por lutar e sentir o último suspiro de inimigos mortos, aceitando qualquer missão perigosa que me

ofereciam. Com o tempo, me tornei um conhecido cavaleiro e ninguém mais conseguia me deter. Assim, com

tamanha força e habilidades de combate, aceitei a maior missão de minha vida: derrotar Sarobou.

Krognarr logo ficou impressionado.

— Quem te deu essa missão?

— Eu mesmo. Estava cansado de empalar inimigos com tanta facilidade que decidi enfrentar o mais forte

que eu encontraria!

Rich ficou emocionado pela coragem do homem. Lincy sentou-se mais confortavelmente do que devia em

sua cadeira, praticamente deitando-se nela. Então, perguntou:

— Continue. Já ouvi essa história de maneiras diferentes, e quero ouvir a verdadeira agora.

— Eu levei alguns soldados para me ajudarem, cerca de dez. Ao chegarmos no castelo do Lorde, nos

deparamos com inúmeras feras e cornutuns. Como eu era um soldado muito habilidoso — Fulgur colocou o

punho na boca e tossiu —, derrotei a maioria dos inimigos. Todos os homens que levei comigo morreram!

— Incrível! — Disse Richard, sem conseguir conter sua emoção. — O que aconteceu depois?

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— Finalmente, cheguei no grande hall de entrada, onde Sarobou ficava em seu trono. Estava infestado de

inimigos, e o Lorde estava sentado no altar, apenas assistindo as lutas. Eu mal consegui vê-lo direito. Derrotei

todos os adversários, um por um, até finalmente ele levantar e vir lutar comigo pessoalmente...

Vários segundos de silêncio se passaram. Fulgur de cabeça um pouco para baixo, como se estivesse

lamentando, Rich prestando atenção em cada movimento do deus, Krognarr testando a lâmina da Strangnirr para

ver se estava afiada, mas também prestando atenção na conversa, e Lincy atirada em sua grande cadeira,

alongando-se de vez em quando, ajeitando as roupas e brincando com sua faca assassina. Quem havia dado

educação para ela?

Após perceber que já havia se passado muito tempo de silêncio, Richard o quebrou.

— O que aconteceu na luta entre vocês dois?

Fulgur olhou para o jovem e ajeitou-se em sua poltrona, descansando seu braço no braço da poltrona e

apoiando confortavelmente sua cabeça em sua mão.

— Eu perdi. Sofri um ferimento terrível em meu peito e quase morri. — Ele fechou o punho e pareceu

socar o outro braço da cadeira. — Enquanto eu estava deitado, esperando um golpe final, ele me disse as palavras

que nunca vou esquecer.

— O que Sarobou disse? — Perguntou Krognarr.

— "Você é corajoso e digno, meu rapaz. Como recompensa por sua bravura, emprestarei uma parte de

meu poder a você, além de meu castelo. Isso servirá de prova que nenhum humano pode me derrotar."

— Ele te deu o castelo também? — Perguntou o jovem.

— Sim. Vivo aqui desde então. Como recebi uma parte dos poderes do Lorde, me tornei o deus das

tempestades.

Rich sorriu corajosamente. Por algum motivo, aquilo o incentivou a lutar contra Sarobou. Que homem

melhor Isabel iria ter do que alguém que derrotou um ser tão forte?

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Levantou-se de sua cadeira, e começou a andar em direção à saída.

— Vamos, pessoal. Vamos derrotar aquele bastardo!

Mas Fulgur não o deixou dar mais que cinco passos.

— Acho que você não quer saber como recuperar sua armadura, então...

Rich parou no mesmo instante. Poucos segundos depois, hesitou, e a seguir virou-se.

— Minha... armadura?

— Eu sei como recuperá-la. Será útil em sua batalha final!

O jovem transpareceu seu interesse.

— Como eu faço isso? — Ele, então olhou para Krognarr, que estava curioso também. Depois, desviou seu

olhar para Lincy, que estava contente em estar sentada tão confortavelmente, mas também parecia não fazer

ideia de como funcionaria a recuperação.

— Richard — Fulgur ajeitou seu corpo sob a grande e brilhante malha que o cobria —, para que serve uma

armadura?

Perguntas parecidas foram feitas tanto por Anakira quanto por Jaccob.

— Para diminuir os danos que eu sofreria com um golpe? Para dar socos mais doloridos? Diminuir

brechas para inimigos?

— Sim, sim! — Respondeu o deus das tempestades. — Mas essas são apenas funções despretensiosas.

Procuro um sentido mais profundo para seu uso!

Rich quase teve dor de cabeça ao pensar tanto em uma resposta.

— Vantagem? A armadura me concede uma vantagem sobre o inimigo?

Fulgur riu.

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— Você está quase chegando onde quero chegar. Estive te observando dos céus, amigo, e sei que você foi

pego pela maldição de Morphos. Por que você ainda não se livrou dela?

— Eu não sei como curá-la! — Reclamou o cavaleiro.

O deus das tempestades virou-se e andou até o final da sala, onde havia uma porta. Logo depois, apontou

para outra.

— A porta que está ao lado da lareira leva para um grande quarto. — Ele parecia muito mais sério agora.

— Descansem ali. Não tenham pressa, pode ser o último sono de suas vidas. — E saiu.

Richard não queria descansar: queria, de uma vez por todas, encontrar-se com Isabel. Mas seu cansaço

era tanto que podia dormir em pé. Os três entraram no quarto de hóspedes, onde haviam camas, alguns

armários, baús e era iluminada por uma estranha luminária no teto.

Krognarr deitou-se na cama mais distante, deixando a Strangnirr apoiada em uma parede próxima, ao

alcance de suas mãos. Rapidamente cochilou, pois parecia ser o que estava mais cansado dos três. Rich colocou a

espada e escudo que eram de seu pai no chão bem perto da cama, e então deitou-se no colchão confortável.

Lincy apenas deitou-se em uma cama perto da do jovem.

O quarto estava mal iluminado, mas estava arejado e fresco. Era tranquilo, e com certeza era um dos

momentos mais pacíficos da jornada. O cavaleiro estava cansado, mas algo o mantinha acordado. Colocou as

mãos atrás da cabeça e olhou para cima. Uma dor de cabeça leve o atordoou um pouco. Pensou em Isabel, no

momento em que se conheceram, no momento em que ela foi levada por aquela gigantesca besta. Suspirou.

De repente, ouviu um barulho. Era o som dois pedaços de aço se raspando. Olhou para o lado e viu Lincy,

em cima de sua cama, sentada com as pernas cruzadas, raspando suavemente a lâmina de sua faca no escudo de

Rich.

— Hey! — Reclamou o jovem — Não pegue meu escudo sem pedir!

Lincy pareceu sequer ouvir a voz dele. Após o silêncio de alguns segundos, articulou:

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— Belo escudo você tem. Ele tem marcas de queimadura e de lâminas, além de ter as bordas levemente

afiadas para vantagem ofensiva. — Ela apoiou-se na parede em que a cama estava encostada e continuou a falar.

— Você é do clã dos leões, certo?

Richard não viu mais tanto problema naquela assassina com seu escudo. Ele gostou do fato dela

reconhecer sua família.

— Sim. Você conhece ou conheceu algum Lionfist?

— Ninguém de seu clã nunca me contratou ou foi morto por mim. — Ela suspirou. — Mas já ouvi falar

muito. Eram famosos como guerreiros e cavaleiros corajosos e poderosos. — A Sombra, então, analisou a lâmina

de sua faca e molhou os lábios com a língua. — Mas, com o passar de centenas de anos, foram desaparecendo, e

ninguém sabe o porquê.

— Dizem que eu posso ser o último Lionfist vivo.

— Pode ser verdade, pequeno gatinho. — Disse ela, brincando e fazendo seu sutil sorriso.

Os dois ficaram quietos por mais alguns segundos, sem dizer uma palavra sequer. Apenas ouviam o som

dos trovões rachando os céus e do vento passando pelas árvores esqueléticas do lado de fora. Finalmente,

Richard quebrou o quase absoluto silêncio do quarto.

— Conte-me sobre você, Lincy. Deve ter muitas histórias para contar...

— De fato, tenho. — Ela devolveu o escudo para o jovem, e este colocou novamente o equipamento

perto da espada. — Mas, se eu lhe contasse sobre meus assassinatos, a regra de "assassinato silencioso" perderia

o sentido.

— Pode pelo menos contar sobre o seu passado?

Ela brincou com sua faca. Mas, dessa vez, não estava sorrindo.

— Nasci na aldeia de Ka'visha, nas Terras do Oeste. Minha mãe é uma Shakist e o meu pai eu nunca

conheci. Mas sei que sou uma mestiça de Shakist e humano.

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Rich lembrou-se que também já lera sobre os Shakist. Nativos dos desertos e savanas Terras do Oeste, são

chamados também de "homens-gato". São muito parecidos com humanos, mas com um pouco mais de pelos,

orelhas um pouco pontudas e olhos levemente puxados com pupilas parecidas com as de um gato. São grandes

artesãos, mas sua tecnologia está sempre atrás da de outros países e regiões. Tem uma língua própria e são

grandes comerciantes. Tem uma religião politeísta, mas o estado é laico e só a maioria dos Shakist a seguem.

Infelizmente, sofrem muito preconceito por causa da fama que conseguiram como ladrões. Isso era tudo o que o

jovem sabia.

Após esses segundos de lembranças do que havia lido, Lincy voltou a falar.

— Minha mãe era uma ladra e uma assassina profissional, conhecida como a "Sombra". Para conseguir

uma informação valiosa sobre um alvo, teve que seduzir e oferecer seu corpo para um homem para conseguir a

tal informação. Foi daí que eu vim.

Rich ficou chocado.

— Sua infância deve ter sido difícil... — Disse ele.

— Não só difícil, mas também perigosa. — Disse ela, sorrindo maliciosamente de novo. — Minha mãe

contraiu daquele homem uma doença que a fazia tossir muito. — Ela ajeitou-se na cama e guardou a faca

novamente. — Essa doença, além de fatal nos estágios finais, também a impossibilitava de ser silenciosa em

assassinatos.

O cavaleiro logo entendeu onde aquilo ia chegar.

— Então você se tornou a sombra no lugar dela?

Lincy riu.

— Exatamente. Ela me treinou exaustivamente. Aos seis anos eu já roubava moedas dos bolsos de

nobres, e aos dezesseis eu fiz o ritual e me tornei uma assassina.

— Um... ritual? — Rich perguntou.

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— É um ritual secreto. — Falando isso, ela deitou-se na cama e pareceu ficar entristecida. — Desde então,

dedico minha vida a apenas matar.

Richard novamente direcionou seu rosto para o teto, com as mãos ainda atrás da cabeça.

— Você não parece ter muitos amigos, não é?

— Não.

— Você nunca teve vontade de conhecer outras pessoas... — Ele, então, pensou como sua vida seria ruim

e tediosa se não tivesse conhecido Isabel. — Fazer amizades, amar, se apaixonar?

Lincy colocou suas mãos no peito e as juntou como um gesto de abatimento e mágoa. Rich notou um

certo... brilho em seus olhos?

— Richard, eu sou portadora da doença que minha mãe contraiu.

Após essas palavras, nenhuma palavra a mais foi dita naquela noite. Richard adormeceu assim que sua

pequena dor de cabeça passou, e Lincy talvez nem dormiu. Para uma assassina da noite, vivendo no mundo de

escuridão que o luar revela e as velas apagadas desvendam, ela parecia não dormir. Pelo menos, não enquanto

estivesse esperando sua vítima. Provavelmente, dormia de dia. A noite era seu alvorecer, seu chamado, seu

ambiente para levantar-se.

Mais uma vez o cavaleiro sonhou com sua amada. Será que era ele que a perseguia em sua jornada, ou

ela que o perseguia em seu espírito? Soube que era o primeiro quando acordou, ao meio dia do dia seguinte, com

o barulho de um trovão.

Mas não era um relâmpago normal. Não era barulhento e assustador quanto os demais que ouvira ou via

no passado: esse sussurrava. Ele caiu exatamente na janela perto da cama dele. "Venha para a torre mais alta",

disse o trovejar. Era uma mensagem de Fulgur.

Richard vestiu seus equipamentos rapidamente, observando que Krognarr continuava dormindo e Lincy

não estava em sua cama. Ao sair do quarto, deparou-se com a assassina em frente à lareira, sentada no chão. Ela

nem olhou para o jovem, como se já soubesse o que ele ia fazer.

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Procurou as escadas, subiu por elas e, após cansar-se de escalar tantos degraus, abriu a porta que o

levava para a parte externa, no topo da torre. Estava mais perto das nuvens trovejantes do que nunca. Na ponta

do grande mirante acima da torre, estava o deus das tempestades, Fulgur, aparentemente apreciando a

paisagem.

— Você finalmente veio. — Disse ele, virando-se. — Espero que esteja descansado!

— Até demais. — Respondeu o jovem, sorrindo. — Irei recuperar a armadura de meu pai agora, certo?

Fulgur colocou as mãos nas costas. Sua capa balançava com o fortíssimo vento daquela altitude. Os céus,

nervosos, trovejavam em ira. Era impressionante, assustador, magnífico.

— Diga-me, Richard — disse o deus das tempestades, com a voz assustadoramente estrondeante e alta

como um relâmpago —, o que uma armadura representa?

Dessa vez, o jovem sequer precisou pensar muito.

— Poder!

O homem lançou, com a força da mente, um raio na torre do castelo mais próxima à de Rich.

— Você está quase lá, meu jovem. Mas, antes de você recuperar seu equipamento, deverá livrar-se da

maldição de Morphos. Está pronto?

— Como farei isso? — Perguntou o jovem, assustando-se com cada trovoada que passava perigosamente

perto. O som já estava ensurdecedor e, o tremor, como o de um terremoto. Era como se Leonard Firestorm, um

dos fundadores de Adrebolomde, batesse seu escudo a cada trovão que rasgava e iluminava o céu quase escuro

pelas nuvens do dia. Aliás, sequer parecia que a noite havia se passado. Será que a luz abundante dos clarões

deixava a vista do dia mais escura?

— Você irá superar a maldição do mesmo jeito que enfrentou sua jornada até aqui, tão longe.

Rich iria falar algo, mas não teve sequer tempo de reação. Fulgur lançou um raio feroz no jovem!

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Felizmente, não foi um raio normal. Foi algo... diferente. Com o impacto, Richard caiu no chão. A dor de

cabeça da maldição veio mais forte do que nunca. Agora ele havia entendido: o raio despertou o efeito da

maldição.

A dor era tanta que ele não conseguiu mexer-se. Então, sem perceber seus olhos fechando, desmaiou.

Não foi exatamente um desmaio, mas ele teve que lutar contra aquela agonia. Explosões queimavam sua mente,

trovões relampejavam em seu crânio, insetos caminhavam sobre seu corpo e catapultas atiravam pedras sobre

seus olhos.

Tentava gritar, mas seus pulmões não se enchiam corretamente. Tentou mover-se, mas seus músculos

não permitiam. Buscou abrir os olhos, mas sua coordenação estava debilitada. Forcejou pensar em outra coisa,

procurando esquecer um pouco a dor, mas nada respondia. Estava ele...

...morrendo?

Pela segunda vez? Primeiro com o golem, agora com a droga de uma maldição?

Ouviu uma voz. Era a de Fulgur.

— Dou a você seis horas para concluir isso. Caso não consiga, um raio atingirá essa torre e você morrerá.

Boa sorte, Richard Lionfist.

O jovem não via nada, apenas ouviu a grave e estonteante voz em sua cabeça. Seis horas. Teria que

enganar a morte em seis horas. Era como se Fulgur já tivesse feito aquilo, como se outras pessoas já tivessem se

livrado da maldição com ele.

Richard tentou, desesperadamente, sem noção de tempo ou espaço, procurar algo a que se apoiar, a

ajudar-lhe a sair daquilo. Era como se ele fosse uma criança sendo esmagada por uma rocha. A gravidade era mais

intensa, a dor mais perceptível, a audição mais aguçada.

Até que um sonho breve surgiu-lhe na cabeça: ele viu Isabel.

Sentiu um formigamento nas pernas e nos braços e um zunido nos ouvidos. Sentiu-se corajoso e honrado.

Porém, fraco. A dor o debilitava. Fraqueza? Apenas isso? Era o que o fazia cair?

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Precisava de algo. Precisava encontrar um novo "eu" dentro de si. Em sua mente, inúmeras imagens e

objetos apareciam, como se ele fosse uma projeção abstrata da realidade, e Isabel no fim, esperando por ele.

Moveu uma montanha, matou um dragão estrangulando-o, atravessou uma muralha e voou até os céus

escalando o próprio ar. Horas passavam-se, o mundo inteiro girava e mudava. Arqueiros atiravam flechas,

trabucos lançavam pedras em chamas e gigantes atiravam pedaços de penhascos em Richard. Ao mesmo tempo,

um exército de demônios, homens, orcs, tudo o que se pode imaginar, armados e furiosos, corriam em sua

direção. Era uma guerra. Não uma guerra, mas uma luta entre um único cavaleiro contra o universo. A cada

homem que ele matava, a cada montanha que quebrava com o escudo e a cada inimigo lançado a quilômetros de

distância por chutes, o mundo girava um pouco mais rapidamente. Rich tinha um objetivo, apenas um.

Enfrentando tudo o que o enfrentava com a ira de um deus, a energia de um sol e a força de um vulcão, ele abriu

caminho. Buracos negros se formavam em volta dele, chuvas de magma e tempestades de trevas caíam a

centímetros de si. Estava no mundo de sua mente em pleno pesadelo, porém, um pesadelo que ele teria que

superar. Mas ele sentiu algo... algo muito familiar. Eram... os olhos fechados?

Com a força de um gigante e a vontade que nunca tivera, ele alcançou Isabel, abrindo os olhos. A luz de

mais um trovão atingiu suas córneas. Todo o universo que estava em volta de si foi desintegrado por uma luz. A

luz de sua visão voltando. E, logo após, as cores voltando à ativa.

— Muito bem, meu jovem. — Disse o deus das tempestades. Richard esfregou os olhos e enxergou Fulgur

à sua frente.

Olhou para baixo, e percebeu que estava de pé.

— Diga-me mais uma vez, Rich. O que você precisa para recuperar sua armadura?

O cavaleiro olhou para os céus e viu o sol. Passando em frente a ele, mais um raio.

— Força.

Não havia mais dor de cabeça. Sentiu-se livre, confortável, confiança a si próprio. Por vários segundos,

Fulgur o olhava com uma cara sorridente e contente.

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— Parabéns, Richard. Você acertou.

O jovem estava um pouco tonto, mas estava muito contente. Entretanto, algo estava... diferente. De fato,

sentiu-se mais forte, mas não via a armadura em si. Havia errado em algo?

— Eu me livrei da maldição, sinto isso. — Disse ele, colocando a mão na testa e percebendo que estava

muito suado. — Mas, e minha armadura?

O deus das tempestades riu freneticamente. Rich não entendeu a graça.

— Você apenas descobriu como recuperá-la, meu jovem. — Ele voltou a apoiar-se no parapeito da torre.

— Para recuperar seu escudo, você deve apenas seguir em frente! Ao chegar perto o bastante, a sentirá cobrindo

e protegendo seu corpo.

— É isso? Fácil desse jeito?

Fulgur riu mais uma vez.

— Essa é, simplesmente, a parte do equipamento mais difícil de recuperar, e você conseguiu sem sequer

perceber. Você percorreu todo esse caminho para chegar até aqui, enfrentou inúmeros inimigos e descobriu o

que é ser corajoso, ter honra e ser forte. A sua força de vontade o trouxe até aqui e, se você tem força para

concluir essa jornada, terá força para carregar uma pesada armadura.

O jovem, ao ouvir isso, ficou maravilhado. Porém, mais uma dúvida surgiu para ele.

— Quanto tempo eu demorei até levantar-me?

O deus das tempestades pareceu conjurar mais um raio, dessa vez apenas por diversão.

— Dois minutos. É o mais rápido da história. A maioria das pessoas demoram no mínimo três horas ou

apenas morrem. — Ele sorriu contente, e Rich riu entusiasmado. — Você provavelmente está cansado devido ao

esforço, meu caro. Descanse no quarto novamente.

Ao ouvir isso, Rich deu um poderoso soco na porta de onde viera, quebrando-a no impacto. Nunca havia

feito algo do tipo tão facilmente.

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— Não preciso de descanso! Agora quero seguir em frente! — Apesar da colisão que fez a porta se partir

em pedaços, seu punho não doeu. — Para onde vou agora?

Fulgur riu mais uma vez. Então, apontou para um aglomerado de nuvens negras que ficava a vários

quilômetros dali.

— Embaixo daquelas nuvens encontra-se o castelo do Lorde. Agora vá, Richard. Estarei observando você.

Boa sorte.

O cavaleiro não perdeu tempo e desceu as escadas. Sentiu-se tão vivaz que poderia subir todas as escadas

mais cinco vezes sem cansar-se.

Ao chegar no andar inicial, viu Krognarr e Lincy o esperando na sala da lareira.

— Está pronto, pequeno gatinho? — Perguntou ela.

— Sim. Vamos.

O trio saiu do castelo e seguiram para a área mais perigosa das Terras do Além.

Conforme andava, Richard sentiu-se estranho, até chegar ao ponto em que ficou pesado. Nesse

momento, o orc e a assassina o olharam com olhares contentes.

O aprendiz de cavaleiro agora parecia-se mesmo com um. Malhas de ferro e placas de aço cobriam seu

corpo, com tons de cinza e brilhantes.

Era a sua armadura.

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Capítulo 16

A entrada no desconhecido

Agora não apenas com coragem e honra, mas também com força, Richard chega aos domínios do Lorde.

Já estavam praticamente embaixo das tenebrosas nuvens negras. Agora já era possível ver, com nitidez, o enorme

palácio negro. A construção não tinha nenhum nome ou denominação em especial: era conhecida apenas como

"A fortaleza de Sarobou".

A observou, e concluiu: Era muito antiga, até mais antiga do que a de Fulgur. Então, provavelmente o

castelo que o deus das tempestades possuía era um tipo de "castelo reserva", como uma casa de férias ou um

local de trabalho. Era, de certa forma, assustador pensar em como o Lorde tinha domínios e como era

impressionante seu desejo por poder.

Felizmente, o trio não encontrou nenhum cornutum no caminho. Era reconfortante, mas também

suspeito. As Terras do Além eram conhecidas e temidas pela variedade e quantidade de monstros e cornutuns

que a habitavam, todos como servos de Sarobou. Mas tudo o que encontraram naquele terreno foram alguns

cornutuns e animais: nada de dragões, nada de quimeras ou lobisomens e vampiros. E se todas as histórias sobre

aquele lugar fossem apenas fantasia?

Porém, a segurança do jovem estava para mudar.

Já estavam no topo de uma colina rochosa, com uma bela vista sobre o enorme castelo, quando

aconteceu. Primeiro como o som de um fortíssimo vento, depois como um estrondo. Alarmados, os três

esconderam-se nos rochedos, e viram um enorme dragão sobrevoando o local.

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"É ele", pensou Richard. "O mesmo monstro que atacou Rarstead!". Estava exatamente como o jovem

lembrava-se: grotesco, com enormes asas capazes de empurrar tornados para outras direções, garras tão

perigosas que podiam partir um bruto de Adrebolomde sem a menor dificuldade e, claro, uma enorme boca com

dentes tão grandes que eram perfeitamente capazes de mastigar estruturas de metal. Além disso, havia a

possibilidade daquele monstro cuspir fogo, mesmo que não tivesse feito na cidade natal de Rich.

A criatura gritava com um som característico de um dragão. Parecia estar procurando por algo. Estaria a

fera procurando... por Richard?

Mas aquilo com certeza não era um dragão comum. Dragões eram um fascínio de Rich na época em que

ele era criança: ouvia toda e qualquer história que contassem sobre essas lendárias criaturas. Mesmo depois de

sua infância, o aprendiz de cavaleiro adorava ler livros que contivessem dragões. Apesar de acabar desenvolvendo

uma raiva por esses monstros após o recente ataque a Rarstead, Richard não se esquecia do que já havia lido

sobre eles.

Dragões, apesar de quase extintos pela resistência humana, ainda aterrorizam vilarejos procurando por

comida. Existem várias espécies deles: Há alguns, das terras gélidas de Nortgarr, que baforam um ar tão gelado

que podem congelar inimigos. Outros, nas terras do sul, são tão poderosos em cuspir fogo que queimam cidades

inteiras. Há várias teorias e lendas sobre essas feras, mas a hipótese mais famosa e aceita é de que os dragões

tem uma ilha no mundo apenas para eles, e lá tem até sua própria cultura, e grupos deles frequentemente viajam

para o resto do mundo a procura de algo que os interesse. Isso explica o fato dos dragões falarem. Ninguém

conhece a língua deles, e nenhum humano até a presente época já havia se socializado com um. Dragões parecem

ser inimigos naturais dos humanos, uma vez que os atacam ferozmente e sem motivo aparente.

Mas aquele dragão que atacou Rarstead era diferente. Não sabia o porquê, mas sabia que era.

Finalmente, após alguns minutos escondidos para o dragão não os ver, o trio mostrou-se novamente para

a luz do sol. Olharam, então, para a entrada do enorme castelo.

— Sluknux'krinm'paas. Muitos guardas podem estar nos esperando. Há algum plano para entrarmos? —

Perguntou Krognarr, ansioso por uma boa batalha.

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— Só vim aqui para assassinar um dos cervos de Sarobou uma vez — Disse Lincy —, e entrei por uma

porta lateral. Lá há menos guardas, e creio que nos facilitará.

— Está bem. Leve-nos até essa entrada, Lincy.

— Vamos partir alguns burkomer em dois, Richr!

— É Rich!

Os três, então, seguiram silenciosamente para um dos lados do castelo. Lá havia uma porta não muito

grande, que provavelmente era a entrada para cornutuns do castelo. Havia cerca de quatro deles logo na entrada.

Sem esperar, Richard correu na frente. Lincy tentou impedi-lo para esperarem e bolarem um plano, mas o

jovem estava animado demais para ver sua amada novamente. Com a liderança do jovem Lionfist, os três

partiram para uma batalha feroz.

Ao contrário do que ocorreu quando entrou nas Terras do Além, dessa vez foi fácil matar os cornutuns.

Havia apenas uma simples regra: Matá-los antes que um ferimento durasse dezessete segundos. Richard, com a

força que tinha agora, conseguia defender melhor e seus golpes eram muito mais poderosos. Era um cavaleiro

completo: implacável, sem medo da morte, orgulhoso, honrado e com a força de um ciclope.

Com facilidade, os três mataram os quatro guardas.

Rich decidiu fazer o que poderia ser a última reunião entre eles.

— Krognarr, Lincy... — Começou um breve mas interessante discurso — Sei que não somos grandes

amigos de infância. Não somos os melhores e nem mesmo famosos, mas acredito em vocês. Ao entrarmos nessa

fortaleza, talvez nunca mais nos veremos. Apenas peço uma coisa: não morram, por favor! — Ele estalou os dedos

e deu mais alguns passos para perto da porta. — Vocês estão determinados a me ajudar?

Foi a vez de Krognarr falar.

— Amigo, se não fosse por você, eu estaria morto junto com todos aqueles burkomer. Devo minha vida a

você, e ajudá-lo com sua dama é o mínimo que posso fazer. — Ele serrou os dentes e cravou a Strangnirr no chão.

— Sarobou também fez os orcrrims sofrerem, e ele irá pagar!

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Lincy sorriu mais uma vez.

— Pequeno gatinho... — O jovem não gostava daquele apelido, mas não se importava mais com coisas

como essas. — Eu o conheci a pouco tempo, e estou aqui mais pelo dinheiro do que por seus interesses

amorosos. Mas não se preocupe, sou boa no que faço e irei não apenas ajudá-lo a matar aquele demônio, como

também iremos erradicar esses malditos cornutuns dessas terras!

Pelo que parecia, os servos de Sarobou também já haviam trazido desgraça para a assassina.

O trio, então, entrou pela porta. Vários cornutuns apareceram por causa do cheiro que os mortos

soltaram, e também por que foram avisados pelos que estavam de plantão.

Uma batalha mais parecida com uma guerra começou.

Cada inimigo era morto rapidamente. Contra o cavaleiro, o orc e a sombra, os servos de Sarobou não

tinham chance e era eliminados um por um no estreito corredor do castelo negro. Fizeram uma formação de

batalha: enquanto Richard defendia os primeiros golpes dos adversários e quebrava suas defesas, Krognarr

desferia poderosos golpes com a Strangnirr e Lincy cuidava da retaguarda e desarmava os inimigos mais

descuidados com suas habilidades acrobáticas. Isso, somado, foi o suficiente pra os três matarem todos os

cornutuns que atacavam. Cada um em menos de dezessete segundos.

Em certo momento, não havia mais inimigos. Provavelmente, os homens-demônio que existiam naquela

região da fortaleza (ou os que sobraram) haviam fugido. Sarobou, de qualquer forma, seria alertado sobre a

invasão, cedo ou tarde.

Após os três andarem mais alguns metros, depararam-se com uma bifurcação no caminho. Não sabiam

qual levava para Sarobou e qual não.

— E agora? O que faremos? — Perguntou o cavaleiro.

— Si'maptirlagnum — Respondeu Krognarr. — Temos que escolher o caminho certo, senão perderemos

tempo e aquele lorde burkomer fará uma emboscada para nós!

Lincy deu dois passos para frente e olhou para os dois.

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— O orc tem razão, Rich. — Ela coçou a cabeça e alongou uma de suas pernas, como se estivesse se

preparando para algo. — Vamos nos dividir, então. Eu irei pelo caminho da direita.

— Nem pensar! — Bradou o jovem. — Não podemos nos separar uma vez que estamos juntos nesse

castelo! Precisamos uns dos outros!

— Nós temos outra opção? Quer mesmo arriscar se perder nesse castelo ou desperdiçar o precioso

tempo que temos? Se demorarmos, Sarobou saberá com muita antecedência de nosso ataque-surpresa! — Rich,

ao ouvir aquelas palavras, percebeu que a mulher estava certa. — Não se preocupe, pequeno gatinho — Ela

sorriu mais uma vez —, eu serei silenciosa. Caso eu veja que estou no caminho errado, eu voltarei para te ajudar.

— Está bem... — disse ele. — Mas tome cuidado. Confio em você, Lincy!

A sombra sorriu em sinal de despedida. Porém, antes dela entrar no corredor da direita, o jovem mais

uma vez chamou a atenção dela.

— Lincy, só mais uma coisa: Qual era o "ritual" que você mencionara no castelo de Fulgur?

Ela parou, e virou levemente apenas o rosto.

— O ritual foi meu primeiro contrato de assassinato.

— E quem era o alvo?

— Minha mãe.

A sombra andou mais alguns passos, e desapareceu na escuridão.

Richard e Krognarr andaram pelo corredor da esquerda. O jovem ficou abalado pela revelação da

assassina. Mas aquele não era um momento para lamentar: era um momento, acima de tudo, para vingar-se de

Sarobou e salvar o amor de sua vida. Deixaria qualquer tipo de conversa sentimental para depois. Agora, tinha

apenas que superar o mais temido dos seres das terras do norte e talvez do continente inteiro.

O humano e o orc andaram o mais silenciosamente e apressadamente possível pelo corredor. Havia

algumas portas que davam acesso a alguns quartos sujos. Era aquela uma área de dormitórios?

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Andaram centenas de metros e fizeram curvas inúmeras vezes, subindo e descendo escadas. Aquele lugar

era literalmente um labirinto. Estranhamente, não viram nenhum inimigo no caminho, mas não baixaram a

guarda em nenhum momento.

Até que, em certo instante, ouviram gritos. Não vindos da frente, mas de trás deles. Ao olhar, Richard viu

uma tropa de cornutuns correndo atrás dos dois.

— São muitos! — Gritou o jovem para o orc.

— Não conseguiremos enfrentá-los. Vamos correr, Richr!

— É Rich!

Correram pelo corredor, com os servos de Sarobou atrás deles, gritando e rugindo como animais

perseguindo uma presa. Agora, pareciam estar em uma outra área do castelo, menos suja mas ainda mais

sombria que a anterior.

Perceberam que não podiam ficar correndo daquele jeito. Se houvesse mais um grupo de cornutuns na

frente, estariam encurralados e provavelmente seriam derrotados.

— Tive uma ideia, Richr! — Falou Krognarr para o jovem, enquanto ainda corriam.

Dessa vez, o jovem nem teve tempo de corrigir a pronúncia errada do orc.

— O que é?

— Vamos despistá-los. Na próxima curva, você entra em um desses quartos sem eles te verem, e então eu

sigo em frente para eles seguirem apenas a mim.

— Mas... — Respondeu o jovem, arfando — E você?

— Não se preocupe, irei achar alguma maneira de despistá-los ou matá-los. Se eu os pegar

desprevenidos, acho que posso dar conta deles sozinho.

— São mais de dez! Tem certeza?

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— Confie em mim. Siga para a vitória, komer lohk. Eu farei isso por você.

Richard não conseguiu conter sua preocupação.

— Vá, mas não ouse morrer!

— Não irei.

Em uma curva, o cavaleiro dobrou e logo depois entrou em uma porta, escondendo-se. Krognarr, por sua

vez, continuou seguindo em frente. Os cornutuns perseguidores, ao dobrarem também, estavam tão enfurecidos

que sequer perceberam que havia um inimigo a menos fugindo. Ao passarem pelo quarto onde Rich estava, este

espiou e viu o orc dobrando em uma grande porta dupla e descendo uma escada, com os perseguidores ainda o

perseguindo.

Agora, mais uma vez, Lionfist estava sozinho.

E estava mais perto de seu objetivo do que esperava. Andou mais algumas dezenas de metros, passando

das portas duplas onde o orc entrou, e chegando à entrada lateral de uma grande sala oval, com esculturas em

todas as partes e quadros luxuosos nas paredes. Ao entrar, percebeu que, no fim, havia um tipo de altar

gigantesco, com um trono em cima.

Nenhum guarda, ninguém vigiando. Mas era um local onde algo aconteceria.

Ouviu uma outra porta se abrindo, e um trovão relampejando.

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Capítulo 17

Sangue, músculos e lâminas

Lincy, no caminho que dava para sabe-se lá onde, continuou em frente.

Até chegar, no fim do corredor, em uma grande sala. Era uma sala a qual a assassina sonhava entrar

desde que se mudou para as Terras do Além.

"A sala de tesouros!", pensou ela.

A sala não estava escura, mas tinha inúmeras sombras e locais onde poderia se esconder. Observou,

então, a única pessoa além dela naquela sala. Um homem usando uma grande capa negra e um estranho

capacete, de costas para ela, parecendo admirar aqueles tesouros. Sozinho, de pé, apenas olhando para os vários

baús de tesouros e relíquias que aquela sala guardava. Perfeito para um assassinato.

Chegou perto, mais silenciosa que um gato. Uma vítima aparentemente fácil, um sangue a mais

derramado, uma morte a mais na lista da assassina.

Levantou-se e preparou sua faca para furar ou cortar a garganta da vítima. Seu movimentos não faziam

nenhum som. Era uma morte iminente.

Porém, faltando alguns segundos para ela finalmente matar sua vítima, foi surpreendida por um murro. O

homem que logo estaria morto deu um giro e acertou um poderoso soco na assassina. Nesse momento, Lincy

percebeu que ele já a esperava. E pior: ela reconheceu o capacete do guarda misterioso. Não era um cornutum, e

sim Morphos.

— Você realmente achou que eu estaria despreparado, Sombra? — Disse o braço-esquerdo, com uma voz

sinistra a ponto de amedrontar até o mais forte dos cornutuns.

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Após limpar o sangue da boca, a mulher percebeu o quão estúpida foi. Gabou-se de sua habilidade e não

parou para pensar em nenhum momento que aquilo era uma armadilha. Foi a primeira vez, em anos, que falhou

em um assassinato.

Porém, Lincy mostrou-se empolgada, abrindo seu habitual sorriso.

— Morphos... faz um bom tempo, não é mesmo?

— Lincyneth Sha'jiit. Sinto-me feliz por nos encontrarmos novamente.

Ela deu uma leve risada.

— Há anos que eu não uso esse nome. Chame-me apenas de Lincy.

Morphos estalou os dedos e o pescoço, e pareceu curioso.

— Quando nos conhecemos, você fazia questão de ser chamada pelo nome completo. O que houve com

você, pequena sombra?

Lincy, então, dedicou alguns segundos para lembrar-se de como conheceu aquele homem amaldiçoado.

— Eu era uma novata. Não tinha interesse nem cautela em esconder meu nome.

Mais uma vez, ela lembrou-se do que ocorreu no passado. Tinha apenas dezoito anos, e iria cumprir mais

um contrato de assassinato. A vítima era o líder de um grupo de guerreiros. Porém, ao chegar ao local em que o

homem estivesse sozinho e indefeso, viu-o morto, com Morphos parado ao lado do corpo... olhando-o. Logo, o

braço-esquerdo notou a presença da mulher, que havia se descuidado pelo espanto de ter perdido a vítima. Ele,

ao invés de matá-la ou fazer qualquer coisa com ela, decidiu cumprimentá-la, pois adorava o trabalho de

assassinos. Ela soube, então, que Morphos havia matado aquele homem para transformá-lo em um general

Cornutum.

— Eu não me importo em o que aconteceu nesses anos. Apenas digo que não terei a mesma piedade que

tive naquela época. Você deve saber que não há como fugir de minha maldição, não é mesmo? — Disse o

homem. Seu olhos, aos poucos, começaram a brilhar em vermelho.

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Mas havia algo que o braço-esquerdo não previra. Lincy, após conhecê-lo a muitos anos atrás, estudou-o

lendo livros. Soube, então, de como funcionava a maldição do homem.

— Eu sei como não cair em sua maldita maldição, homenzinho. — E riu, preparando-se para lutar.

Ele se irritou. Tirou um enorme machado das costas para lutar corpo-a-corpo. Porém, os reflexos da

Sombra foram mais rápidos. Ela pegou uma pedra que estava no chão e a jogou em um lampião pendurado no

teto, a única fonte de luz na sala.

— Você precisa ver a pessoa para amaldiçoá-la... — Cochichou a assassina, perdendo-se totalmente na

escuridão. Aquela seria uma luta cega.

A partir daquele momento, nada mais era visto, apenas ouvido. A escuridão era total.

A sala dos tesouros tornou-se uma zona de extremo silêncio. Lincy não podia enxergar, mas podia ouvir. O

mesmo valia para Morphos. Ambos apenas prestando atenção nos sons em volta deles. Um movimento errado

resultaria em um deles morto.

A assassina era extremamente habilidosa em mover-se sem fazer barulho, porém sempre movia-se em

lugares onde podia ver onde estava pisando. Esse não era o caso agora.

Certo momento, ao dar um passo, pisou em um punhado de moedas. O barulho foi o suficiente para

Morphos virar-se e dar um poderoso golpe com o machado na direção do som. Com um rápido desvio, Lincy

salvou-se de ser partida ao meio.

— Você não se esconderá para sempre, mulher Shakist!

Ela, então, tomou mais cuidado. Andou em círculos em volta dele e, mesmo sem vê-lo e apenas sentindo

sua respiração, procurou uma brecha. Porém, o braço-esquerdo já tinha um plano. Ele deu um golpe em uma

área qualquer do chão, e então parou cada músculo para ouvir a reação do ambiente em volta dele. Com o susto,

provavelmente a Sombra se descuidaria e revelaria a sua localização.

E assim foi. Ele ouviu mais um barulho de moedas atrás dele. Deu meia volta e desferiu mais um poderoso

golpe onde ouvira a moeda. Não haveria chance de Lincy desviar. Porém, não havia nada ali, e seu machado

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cravou-se no chão. Ao levantar a cabeça, sentiu um certo... formigamento?, em seus membros. Sentiu também

que estava molhado no peito.

Então, percebeu: estava com a garganta cortada. Lincy, sorridente, já estava limpando sua faca.

— Às vezes, uma distração vale mais que o silêncio. — Disse ela, satisfeita. Havia jogado uma moeda no

lado oposto ao que estava, para distrair o homem e conseguir a brecha que queria.

Morphos não falou mais nada, e caiu no chão, afogando-se com o próprio sangue.

Mais uma vítima havia morrido nas mãos da Sombra.

Assim que se certificou que o homem estava morto, Lincy acendeu novamente as luzes da sala e pensou

em começar a saquear os tesouros do castelo, mas hesitou.

Por que não havia ninguém além de Morphos naquela sala? Onde estavam os guarda-costas do braço-

esquerdo? Algo estava errado. Provavelmente, o próprio Sarobou havia os colocado em algum lugar. Eram os

cornutuns mais fortes de todos, que Morphos recrutava amaldiçoando homens guerreiros e transformando-os

em seus seguidores fiéis.

Não podia ficar sem fazer nada. Tinha que ajudar Richard. Saiu da sala por uma porta lateral, e seguiu por

um caminho desconhecido. Por que iria ajudar Lionfist se isso não fazia parte do acordo? O plano dela não era

apenas chegar até o castelo e saquear os tesouros?

Mesmo assim, sentiu que estaria fazendo o certo se o ajudasse. Saiu por uma porta na lateral da sala, e

seguiu por um caminho desconhecido.

Enquanto isso, Krognarr, que havia descido para um andar inferior para distrair os guardas, continuava

correndo, com vários cornutuns atrás dele.

Suas pernas já estavam ficando cansadas. Sua respiração, pesada. Porém, parecia ter mais resistência que

os inimigos, pois todos já estavam diminuindo o passo. O que o orc faria em seguida? Não sabia. Temia ter que

enfrentar todos.

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Mas algo o distraía mais do que o número de inimigos: era o lugar onde estava. Pareciam túneis de

calabouços, mas sem objetos de tortura em lugar algum. Era um corredor muito largo e alto. Parecia ser um andar

no subterrâneo, com paredes feias de tijolos, mas, curiosamente, não havia nenhum quarto ou porta para se

entrar. Era apenas um imenso corredor. Um corredor muito macabro e assustador: Havia ossos, órgãos e sangue

por toda a parte, alguns recentes e outros aparentemente com centenas de anos de existência.

Algo que também chamava atenção não era visto, mas sim cheirado: um odor leve, mas presente, de

enxofre permanecia por toda a extensão do enorme corredor. Não havia motivo para aquele lugar existir. Pelo

menos, não um motivo para humanos.

Era uma espécie de... toca?

Continuou correndo, com a tropa de servos do Lorde ainda atrás dele. Certo momento, sentiu um

impacto. Como se uma flecha em chamas acertasse seu peito, ou como se alguém tivesse virado um balde de

água em seu corpo. Foi uma espécie de choque. Isso fez o orc parar no mesmo instante.

Assim que parou e alguns breves segundos de passaram, um som ensurdecedor de um tipo de voz o

atingiu. Não era um grito, e sim um rugido. Nesse momento, todos os perseguidores correram de volta ao lugar

de onde vieram, fugindo, sem hesitar. Eles... sabiam o que era aquele rugido? E, para assustar até mesmo os

cornutuns, famosos por não temerem nenhum tipo de inimigo, aquele rugido não podia significar algo bom.

Agora, Krognarr estava sozinho. Pelo menos, na quase escuridão em que se encontrava, era o que

parecia. Não sentiu medo, mas sim uma certa indeterminação. Certamente, existia alguma fera naquele corredor.

Era uma toca para algo grande.

Uma pressão em seu espírito surgiu. A mesma pressão que sentiu segundos atrás, antes do rugido. Mas,

dessa vez, era mais forte: a "coisa" estava se aproximando.

O orcrrim tirou a Strangnirr das costas e preparou-se para lutar contra o desconhecido. Esperou.

Passaram-se vários segundos. A pressão era cada vez maior, como se estivesse mergulhado num oceano,

afundando-se cada vez mais.

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Agora, não sentia mais apenas a presença, mas podia ouvir. Um som sem muito significado. Eram...

passos? E estavam aumentando, como uma pessoa chegando perto. Aquilo tudo era um humano. Finalmente, a

tal "coisa" revelou-se. Não era uma fera, era um humanoide. Um tipo de humanoide que Krognarr conhecia muito

bem: era um orc!

Estava com uma enorme espada nas costas e usava poucas roupas. Os dentes, a pele: era, de fato, um

orcrrim. Mas com certeza não era um comum.

— Rar'mapnetaux? — Perguntou Krognarr na língua orcrrim.

O outro orc o olhou e sorriu.

— Desculpe, mas não falo essa língua.

Krognarr espantou-se. Um orc que não falava a língua orcrrim? Isso era impossível. Os ensinamentos de

tradições, cultura, honra e principalmente a língua é passada de pai para filho. Um orc sem esses ensinamentos é

como um peixe que não sabe nadar.

— Quem é você?

O estranho parecia estar animado. Andou um pouco mais para frente, entrando mais na área iluminada e

permitindo que Krognarr o visse direito. Seus olhos eram selvagens e ameaçadores. Era musculoso, e tinha

inúmeras manchas de sangue na roupa e pele.

— Meu nome é Tenebrius. Sou o comissário e imediato de Sarobou, mas sou mais conhecido como braço-

direito. E, não sei se você sabe, mas o Lorde é destro. — Ele riu, como se tivesse contado uma piada sem graça,

daquelas que apenas o contador ri.

Krognarr percebeu que estava diante do segundo homem mais poderoso daquele castelo. Mas uma

pergunta lhe veio em mente: Por que alguém tão importante estava em um lugar como aquele, sujo e sequer

usando roupas adequadas?

— O que é você? Quem soltou aquele rugido? — Perguntou, já esperando uma certa resposta, a que ele

mais temia.

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— Fui eu que soltei aquele rugido, pouco antes de me transformar. Há muito tempo atrás eu fui um

cornutum. Sarobou me concedeu alguns poderes, e agora sou um orc. Um orc que se transforma em dragão!

Krognarr indignou-se.

— Você se transforma em dragão?

— Sim! Fui eu que raptei a amada daquele tal "Richard", e também fui eu que amedrontei todos os que se

estabeleciam perto dessa região. Inclusive uma tribo nativa, que moravam nessas terras e eu matei quase todos

eles! — Aquele "orc", se é que era mesmo um orc, parecia estar louco. — Eu disse que eles deviam sair desse

continente e nunca mais voltar. Qual era o nome deles... Kimanji?

— Nós nos encontramos com alguns vindo para cá!

— Claro. E você provavelmente viu o estrago que fiz nas malditas cavernas deles. Acharam que estariam

seguros morando nas montanhas, mas jamais estarão fora de meu alcance!

Tenebrius era insano. Estava fanfarronando-se com seu esplendor.

— Como diabos alguém pode se transformar em um dragão?

— Não foi fácil! Fui um experimento de Sarobou para ter soldados mais fortes. Ele colocou uma alma de

dragão junto à minha, mas não surtiu nenhum efeito. Então, ele me enfeitiçou e me transformou em um orc!

Apenas desse jeito eu consegui liberar os poderes de uma verdadeira besta! Me tornei um verdadeiro orc, um orc

perfeito!

Krognarr ficou enfurecido.

— Você não é um orcrrim! Você jamais será um!

— Sou um orc muito maior que você!

Krognarr não conteve sua raiva. Atacou o inimigo com ferocidade. Este defendeu facilmente usando a

enorme espada que tinha nas costas, que era um pouco menor que a Strangnirr.

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— Um orc puro não faria o que você fez! Um orc puro entende as tradições de nosso povo! Você não é

nem um bebê orcrrim!

Tenebrius apenas riu. Os dois trocaram golpes poderosos com as espadas. Lutaram pelo que pareceu

horas, quando na verdade passaram-se apenas alguns minutos.

Orcrrims tem seu próprio espaço. Respeitam outras raças e culturas e, mesmo sofrendo um enorme

preconceito por parte dos humanos, nunca os atacam. Guerras só são causadas por aqueles que não respeitam o

espaço e cultura orcrrim. Mas Tenebrius matou centenas de nativos Kimanji apenas por espaço, obedecendo

ordens de um corrupto demônio tirano, e ainda recebeu dons desumanos apenas por poder. Ele não era um orc.

Um orc não age desse jeito. Ele era apenas um monstro.

Ao dar um golpe, Krognarr descuidou-se e cambaleou, e Tenebrius deu um poderoso chute no adversário.

Sua força era extraordinária. Krognarr caiu no chão, mas logo levantou-se.

— Eu sou um verdadeiro orc! Sou mais forte que você! — Disse o braço-direito, abrindo os braços em

sinal de esplendor. — Os falsos são vocês, fracos e sem glória!

Krognarr ficou tão enfurecido que atacou outra vez. O adversário, mais uma vez, defendeu-se e contra-

atacou, dessa vez acertando um golpe de raspão no braço do companheiro de Richard. Enquanto olhava para o

sangramento, este pensou: por que aquele "orc dragão" voltou à sua forma normal para enfrentá-lo?

Provavelmente, ele pode apenas ficar um certo tempo na forma de besta. Ou havia alguma restrição...

— Vocês, orcs inferiores, deveriam ser dizimados! — Tenebrius voltou com as ofensas. Riu freneticamente

e perversamente. — Eu começarei meu legado, acabando com sua raça!

Krognarr já não tinha mais paciência. Iria, naquele momento, acabar com aquilo. Disse, com uma voz clara

e ameaçadora.

— Vou lhe mostrar, falso orcrrim, o que é um de verdade.

— Mostre-me então! — Respondeu Tenebrius, confiante. — O que irá fazer? Cobrir-se com barro?

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Krognarr já não falava mais. Pelo menos, não na língua conhecida pelo braço-direito. Concentrou-se,

abaixou a cabeça e recitou:

— Dagnarr, Mahlamek, Jaghet Midfrak. — Seu corpo começou a suar. Sua pele ficou com uma textura

estranha. — Saloux'tir'paas nat tummark strang, maqr'tir ir karsap. Prant'tir'paas malaf knarrmur, maqr'tir ir

salouxsap. Rar'tir Krognarr lus Murmurir, Dagnarr kom!

Tenebrius não entendeu uma palavra. Por um momento, pareceu rir da atitude do invasor, mas logo sua

expressão mudou.

Krognarr começou a suar sangue. Não havia feridas em seu corpos, mas seu corpo sangrava. Seus

músculos enrijeceram-se, suas veias saltaram. Não parecia o mesmo orc. Ele, então, olhou novamente para o

inimigo e disse:

— Usei isso para arrebentar as cordas que me atavam e a porta que me prendia nas cavernar Kimanji.

Agora, irei usar para acabar com você.

— O que... é isso!? — Perguntou Tenebrius, amedrontado por um instante.

— Chama-se Dagnarr Strang, a força de Dagnarr.

Krognarr pensou na tradução para sua recitação: "Dagnarr, Mahlamek, Jaghet Midfrak. Deem-me suas

forças, e eu darei a razão. Ajudem-me na batalha, e eu darei meu respeito. Sou Krognarr lus Murmurir, seguidor

de Dagnarr!". Pensou em falar para o inimigo, mas ele não entenderia o significado.

Então, sem perder mais tempo com explicações, Krognarr atacou usando a Strangnirr com uma

velocidade impressionante. O adversário tentou defender, como já havia feito antes, mas sua espada se partiu em

dois com a força infringida pela Strangnirr. Após esse golpe simples mas poderoso, Tenebrius desequilibrou-se e,

além de perder a arma, também abriu uma brecha para o atacante desferir mais um golpe. O braço do braço-

direito foi decepado, e logo depois seu coração perfurado.

Moribundo, caiu no chão, aparentemente morto, em uma poça com o próprio sangue. O braço-direito, o

famoso carniceiro do Lorde, agora estava junto com os corpos que deixara em sua toca.

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No centro do castelo, Richard observou o local onde estava. Aquele grande salão era o local central do

castelo? O trono, no alto de um grande altar, era o local onde Sarobou ficava? E, mais importante: Por que não

havia ninguém vigiando aquele lugar tão importante?

— Você realmente não me decepcionou, Lionfist. — Disse uma voz sombria, vindo de algum lugar que o

jovem desconhecia.

O cavaleiro virou-se, olhou para cima e para baixo, já preparado para uma batalha. Agora, com espada,

escudo e a recém-recuperada armadura, estava mais forte do que nunca.

— Quem é você? Onde você está? — Gritou o jovem. — Apareça e me enfrente, Sarobou! Sei que é você!

No exato momento em que terminou de falar, uma porta se abriu. Dessa vez, no teto. Era um alçapão,

acima e um pouco à frente da posição do trono. E, dessa passagem do teto, uma pessoa apareceu, amarrada,

pendurada por uma grossa corrente.

Era ela. Amordaçada, amarrada, imobilizada. Dessa vez, viva: e real. Era Isabel. Estava inconsciente, e,

assim que a corrente parou de descer, no meio do caminho entre o chão e o teto, balançou por alguns breves

segundos, e então parou totalmente. O corpo de uma bela donzela, frágil e sensível, apenas respirando entre

cordas, correntes e uma roupa rasgada. Por um curto momento, Rich lembrou-se das visões proporcionadas por

Morphos, da ilusão da mesma mulher, só que sem correntes e sem... vida. Balançou a cabeça, e seu sentimento

de mágoa e tristeza transformou-se em nada além de ódio.

Teve uma vontade imensa de despedaçar quem quer que tenha feito aquilo com sua amada. A vontade

não mais de um jovem aventureiro, mas de um homem querendo redenção e vingança. Era, ao mesmo tempo,

bárbaro e heroico.

Apertou com força a espada que fora de seu pai. Alongou o braço do escudo e ajeitou a ombreira da

armadura. Não sairia daquele salão sem ela. Jamais.

Ouviu mais uma vez a voz sombria, agora muito mais perto.

— Você veio até aqui apenas para salvá-la?

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Richard virou-se rapidamente, fazendo um movimento de esquiva para manter distância, pois a voz

pareceu vinda de uma distância próxima demais. E havia vindo. Agora, à sua frente, estava um homem alto, com

armaduras negras, uma grande capa e um elmo, tão sombrio e fechado que cobria seu rosto. Tinha uma estranha

espada em sua cintura.

— Quem é você? — Perguntou Lionfist, já praticamente sabendo da resposta.

Não era possível ver a expressão do cavaleiro negro, mas era possível perceber que estava... confiante e

resoluto. Suas mãos estavam nas costas e sua cabeça levantada. Uma postura, no mínimo, insensata. Após um

breve momento, o estranho falou:

— Já fui chamado por vários nomes. O meu primeiro, pelo que me lembro, foi Ravjar, o domador. Depois

tornei-me Falguf, o justo, e depois, Maldaz, o apocalíptico. Também já fui chamado, em tempos remotos, de

apenas "Soldado nº 232", "O demônio" e "O destrutivo". Após centenas de anos, mudei de nome novamente, e

me tornei Nautilef, o senhor das terras malditas. Mas hoje, após tanto tempo, sou chamado de Sarobou, o lorde

da perdição.

A raiva, no exato momento dessa revelação (que já era óbvia), tomou conta de Richard.

— O que diabos você pensa que está fazendo? — Gritou o jovem, procurando por respostas. — Por que

raptou Isabel? Por que aparecer assim, tão perto de mim, tão confiante, como se soubesse que eu viria? Se você

me quer, por que não me trouxe para cá usando seu maldito dragão?

O Lorde riu.

— Você é mais estúpido do que eu pensava. Parece que você não compreende a história e sentido de sua

jornada ou dessas terras — Sarobou deu um passo para trás e sacou sua espada negra —, e parece que sequer

sabe sobre sua família.

O cavaleiro ficou confuso.

— Do que você está falando?

— Por que você é o último Lionfist, jovem Richard?

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Nesse momento, o ódio subiu tanto à cabeça de Rich que ele avançou com a espada. Assim, o recém-

formado cavaleiro Richard Lionfist enfrentava o maior dos demônios do continente de Sevenland, Sarobou, o

lorde da Perdição.

Rich lutava ferozmente, em postura defensiva mas com ataques poderosos, usando toda a sua força. Mas

não surtia efeito: Sarobou usava apenas sua espada, tanto para defender quanto para atacar. A mão desocupada

ficava, o tempo inteiro, em suas costas. Enquanto um dava tudo de si para atacar com a espada e defender com o

escudo, o outro lutava tranquilamente, usando apenas uma mão. O que era aquele homem? Como era possível

alguém ser tão habilidoso?

Em um momento, Richard tentou acertar o adversário perfurando-o, mas este desviou a lâmina do jovem

e deu um simples mas quase mortal golpe no ombro do cavaleiro. Por sorte, Rich conseguiu desviar, mas sua

ombreira rachou. Tomou certa distância para pensar em alguma estratégia.

O Lorde parecia estar se divertindo com tudo aquilo.

— Você está tão fraco... — Disse ele. — Acho que você precisa de uma pequena motivação.

Ele, então, estalou os dedos. Como estava usando uma luva de manejo metálica, uma faísca foi gerada.

Nesse momento, algo aconteceu. Richard sentiu algo se movendo atrás dele e, ao virar-se, viu que Isabel estava

agora acordada. Rich ficou sem expressão enquanto observava a mulher que amava finalmente mostrando-se

viva. Não sentiu tamanha emoção desde o momento em que a viu subindo no palco das dançarinas na Festa

Anual do Guerreiros. Ela acordou confusa, atordoada e, obviamente, incapacitada de fazer qualquer ação.

Após vários segundos totalmente hipnotizado pela cena, o Lorde voltou a falar.

— Ela não me disse seu nome desde que meu braço-direito a trouxe para cá. É, de fato, corajosa.

Rich, novamente, transformou todos os seus sentimentos em ira pelo sequestrador. Voltou-se para

Sarobou e disse ameaçadoramente:

— Jamais o perdoarei. Eu não morrerei ou sairei daqui até matá-lo!

Sarobou riu novamente. Isso foi como um sinal de desafio para Rich, que o atacou mais uma vez.

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Agora, o cavaleiro lutava ainda mais ferozmente do que antes. Todo o impulso que economizou em sua

jornada seria usado ali, contra o maior inimigo que enfrentaria em sua vida. Quando a visão da moça adaptou-se

ao ambiente e permitiu que ela visse o que realmente estava acontecendo, viu o homem que mal lembrava quem

era lutando ferozmente contra seu sequestrador. Tentou gritar, mas a mordaça em sua boca a impedia. Tentou

contorcer-se, mas era inútil e seus movimentos apenas a balançavam de um lado para o outro na ponta da grande

corrente.

Não conseguia entender. Tentava, sem sucesso, entender o porquê daquele jovem ter andado tanto para

encontrá-la. Será que ele havia realmente vindo para salvá-la? Ou apenas pelos conhecidos tesouros do castelo?

Pela aventura? Pelo heroísmo? Seria ele um suicida? Não conseguia entender se era um motivo complexo demais,

ou se estava tão confusa a ponto de não perceber o óbvio.

Por mais alguns segundos, o humano e o demônio lutaram. O que pareceu uma luta injusta e interminável

acabou simplesmente quando um deles parou de lutar. Era Richard.

Estava, agora, totalmente parado, com os joelhos flexionados e respiração pesada, ainda segurando sua

espada. Estava tremendo. Isabel começou a lacrimejar.

— Você lutou bem, garoto — disse o Lorde, com sua voz sinistra e sombria —, mas chegou ao seu limite.

Lutando tão ferozmente e usando equipamentos pesados, não teria como aguentar tanto: usou toda a sua

energia e adrenalina para me derrotar, mas sequer tocou-me. Seus músculos recusam-se a se mover, seu corpo

renuncia à sua vontade. Eu ganhei, Richard, pois essa luta já estava decidida no momento em que você entrou

aqui.

Rich percebeu que seu adversário tinha razão. Suas energias estavam tão esgotadas que nem falar era

possível. Continuou estático, na mesma posição, mas recusou-se a cair. Continuaria de pé.

Sarobou deu dois passos para o lado e cravou sua espada negra no chão.

— Vou aproveitar esse momento para te explicar algumas coisas, meu jovem. — Disse ele, com sua

habitual postura com as mãos nas costas, como se fosse começar um discurso. — Você faz parte do clã Lionfist, o

meu primeiro e maior rival. Foljorn Lionfist foi o primeiro dessa lendária família — A voz do Lorde ficou ainda mais

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sombria —, e também meu primeiro inimigo. Uma batalha foi travada entre nós em um dia de caos, mas ninguém

venceu. Quando me tornei Maldaz, o apocalíptico, Foljorn quis me enfrentar novamente.

A voz voltou ao cavaleiro parado, mas ele continuava exausto.

— Por que vocês... — Ele arfava e respirava com dificuldade. — Por que vocês lutaram?

Após uma breve risada, o Lorde voltou a falar.

— Desde que nasci, tenho um poder ancestral de dominar e sugar o poder daqueles que eu quiser. Desde

criança eu era conhecido como "Ravjar, o domador", pelo fato de eu conseguir domar feras apenas com um olhar.

É um poder demoníaco, que me permite sugar a alma de qualquer um que seja mais fraco do que eu. Sugando

uma alma, meu poder cresce, mas minha aparência fica cada vez mais demoníaca. Estou tão poderoso e tão

grotesco que escondo todo o meu corpo.

— Você não... respondeu minha pergunta!

O demônio ficou em silêncio por alguns segundos, e então voltou a falar.

— Na época que conheci o primeiro Lionfist, eu já era tão poderoso a ponto de manipular ou sugar a alma

de qualquer ser humano. Mas Foljorn era diferente: Todos os que tinham seu sangue, ou seja, seus filhos e netos,

eram totalmente imunes ao meu poder. Por isso o desafiei. Como eu estava narrando, nos desafiamos mais uma

vez, e finalmente um vencedor foi aclamado.

Rich já sabia quem havia sido, mas perguntou mesmo assim:

— Quem ganhou?

— Eu matei Foljorn naquela luta. Seu filho, Trynmed, jurou vingança, e um testamento foi escrito.

— Um testamento? — Perguntou Rich, ainda paralizado.

— A profecia. A partir daquele momento, os Lionfist estavam destinados a me derrotar, e eu a eliminá-los.

Isso era passado de pai para filho, de filho para neto e de neto para bisneto. Assim foi por séculos: Eu matei, um

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por um, os membros de seu clã, o clã dos leões, e sugando suas poderosas almas, ficando cada vez mais

poderoso. Porém, a imunidade de vocês ao meu poder nunca terminou.

Richard lembrou-se do trecho do livro que leu junto com Jaccob. Era, realmente, sobre uma "profecia".

— A profecia diz que, se eu não for morto, em certo momento sobrará apenas um Lionfist. O último

Lionfist. Esse é você, Richard. Com essa batalha, o destino não só das Terras do Norte, mas de todo o continente

de Sevenland.

Rich não conteve seu espanto. O que isso significava?

— Entende agora, último? Sua jornada até aqui não foi apenas para salvar essa garota que você ama, mas

para salvar toda Sevenland!

Agora, o jovem sequer sabia o que pensar. Toda a profecia de centenas de anos para chegar àquele

momento. Era esse o motivo de seu pai prezar tanto pela segurança e treinamento do filho: o testamento não

podia ser interrompido. Enquanto uma parte de sua mente era iluminada com a luz da verdade, outra mergulhava

na escuridão do mar abissal da culpa. Ele havia perdido a batalha destinada a ele.

Mas ainda havia uma pergunta.

— Por que você a raptou então? — Perguntou, tentando virar a cabeça para vê-la mais uma vez, sem

sucesso por causa da exaustão.

Sarobou soltou uma risada sarcástica, como se estivesse menosprezando os pensamentos do jovem.

— Eu já disse: você é imune ao meu poder. Minhas feras, quanto mais poderosas, mais fracas ficam perto

de você. — O Lorde tirou sua espada do chão. Era, obviamente, para dar um golpe final em Richard. — Você não

percebeu que Morphos quase morreu ao chegar perto de você? Que Tenebrius, mesmo em forma de um

poderoso dragão, cambaleou quando você chegou perto dele em Rarstead durante o ataque? — Ele levantou a

espada, pronto para dar um golpe no ponto vital do jovem, imobilizado com o próprio corpo. — Eu tenho visão

sobre tudo o que os meus servos veem, jovem, e sei que você percebeu. Morphos apenas conseguiu afetá-lo com

a maldição pois aquilo é um poder dele, não meu. Assim, raptei a única pessoa que você parecia se preocupar,

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atraindo-o para meus domínios. O plano deu mais certo do que eu imaginava. — Após mirar com precisão,

levantou ainda mais a espada, em um ângulo perfeito para decapitar o inimigo. — Adeus, Richard Lionfist. Foi

divertido.

Ouvindo a conversa, Isabel soube a verdade: Rich a amava. Em uma mistura de sentimentos e

pensamentos, ela fez a primeira coisa que lhe veio à cabeça: com a língua e os dentes, conseguiu tirar a mordaça

de sua boca, e gritou.

— RICHARD!! NÃO! NÃO MORRA!!

Sarobou começou a execução de um golpe. Nesse instante, era como se o tempo em si ficasse mais lento.

Richard, ouvindo finalmente após tanto tempo a voz de Isabel, esforçou-se o máximo para mover-se, mas seus

músculos ainda não respondiam. Era como se sua mente tivesse se esquecido de como executar um simples

movimento. Desesperadamente, ordenou com todas as suas forças para seu corpo obedecer, mas parecia

impossível.

Era o fim?

Havia perdido?

Com esse brevíssimo momento de balançar da espada negra de Sarobou, que pareceu longo demais,

Richard apenas esperou pelo pior. Quando a lâmina estava prestes a chegar em seu pescoço, um barulho alto

ricocheteou no ar. Que som era aquele? Era um som familiar. O choque entre duas espadas. Na verdade, outro

tipo de "choque": um relâmpago, colocado no impacto entre duas espadas. Esse choque interrompeu o percurso

da espada negra de Sarobou a pouquíssimos centímetros do pescoço de Richard. Um ou dois segundos depois, o

primeiro a falar foi o Lorde.

— Rápido como um raio, não é mesmo, deus das tempestades?

Juntando algumas forças, Richard olhou para cima. Seu salvador era Fulgur!

— Sarobou. — Disse ele. — Não o deixarei matar mais ninguém. Irei fazer o que devia ter feito na

primeira vez que te vi: matá-lo.

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Sarobou afastou-se um pouco e riu.

— Está mesmo tão confiante, Firerain? Lembre-se que fui eu que lhe dei seus poderes.

— Eu não me importo. Irei derrotá-lo agora e evitar que essa profecia se realize!

O Lorde sobressaltou-se, ansioso por uma luta com um inimigo tão interessante.

— Parece que você sabe exatamente os resultados da profecia, e quer evitá-la.

— De fato. Se o último Lionfist o matasse, a paz iria reinar sobre Sevenland. Se o Lorde da perdição

eliminar todos os Lionfist, nada mais ficará em seu caminho e você poderá atacar todo o continente com suas

feras, mergulhando Sevenland na escuridão! Irei impedi-lo antes que você faça algo a pessoas inocentes!

Os dois brandiram suas espadas e se atacaram. O choque das lâminas foi parecido com o de uma

explosão. Richard, ainda paralisado, ficou transtornado com o que iria acontecer. E sua preocupação aumentou

ainda mais com a próxima frase do Lorde:

— Não, Fulgur. Eu já iniciei o ataque a Adrebolomde.

Sentado e recuperando-se da fadiga da luta com Tenebrius, Krognarr agarrou uma pedra do chão e afiou a

Strangnirr. Enquanto isso, pensou em como estariam seus dias se não tivesse se aventurado com Richard. Seria

melhor? Pensou ele. "Certamente que não", concluiu. Aventuras e lutas o deixavam forte. O faziam sentir-se vivo,

faziam-no sentir-se... um orc.

Seus pensamentos foram abruptamente interrompidos com um som. Um som grotesco.

Olhou para o poderoso inimigo que havia derrotado, e o viu levantando!

Como era possível? Krognarr havia cortado fora o braço do falso orc e perfurado seu coração com sua

grande espada. O que via era... real? Tenebrius estava, de fato, vivo? O que estava acontecendo com aquele

dragão orc? Quando o servo do Lorde finalmente se levantou e Krognarr já estava preparado novamente para

lutar, com uma explícita expressão de espanto em seu rosto, mais uma vez o som grotesco foi ouvido. Só então

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que o companheiro de Rich percebeu que aquele som era, na verdade, Tenebrius rugindo. Não de dor por seu

membro perdido e nem de ódio.

— Foi divertido, orc inferior — Disse ele, com uma voz um tanto cômica —, mas meu mestre me chama

para o dever.

— Arrgnurmor! Como você está vivo, burkomer?

Tenebrius fez uma expressão de dor e abaixou a cabeça.

— Meu sangue é a chave para minha transformação. — O falso orc começou a... suar sangue? — Adeus,

orc inferior. Sevenland agora pertence ao Lorde!

Krognarr abriu a boca para falar algo, mas não teve tempo de pronunciar sequer uma palavra. Seu inimigo

cresceu de tamanho ao som de ossos quebrando-se e músculos rompendo-se. A dor que o braço-direito sentia

era iminente. Asas brotaram de suas costas, suas mãos transformaram-se em patas de réptil, com garras

enormes. Sua cabeça também entrou em uma monstruosa transformação. Em segundos, o que antes parecia um

orc transformou-se em um dragão. Tenebrius, o braço-direito, a fera mais forte do Lorde. O monstro causador de

ruínas.

— Rasnek knarrmur, nast parthinux! — Disse o monstro. Nessa forma, ele parecia saber falar em orcrrim.

Krognarr tentou impedir seu rival de ir embora, mas a fadiga causada pela Dagnarr Strang mal o deixava

andar.

A última coisa que viu foi a enorme besta indo embora. Metros adiante, um portão abriu-se, iluminando o

local, e Tenebrius saiu pela abertura, voando.

O voo de Tenebrius foi seguido por mais monstros. Todos os que estariam no castelo estavam na verdade

escondidos em lugares diferentes das Terras do Além. A revoada do exército do Lorde.

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Capítulo 18

Ruínas em construção

Enquanto isso, em uma das belas casas da tão antiga cidade, uma jovem moça se apoia no parapeito da

sacada, observando a cidade se movimentando, o mundo girando. Sentia uma certa... aflição?

O céu ficou mais escuro. Nuvens negras vindas do norte aproximavam-se. Porém, os relampejos de

trovões não eram mais vistos no extremo norte, logo depois as nuvens, onde normalmente caíam. O céu estava

mais calmo, mas não mais claro. Como uma maré subindo calmamente sobre a areia da praia. O sol enfraquecia-

se sobre as nuvens que agora estavam encobrindo a cidade das estátuas.

— Tio... — Disse a mulher, com um olhar preocupado. — Você acha que Rich conseguirá o que foi buscar?

— Acredito nele, minha cara. — Respondeu o senhor alfaiate, sentado em uma confortável cadeira de

balanço à porta da sacada. — Mas ele será apenas um tubarão atacando um barco, tentando alcançar os

marinheiros. Basta utilizar a sorte e a inteligência para subir a bordo e lutar com suas futuras presas. Mas ele

ainda precisará voltar para a água para respirar.

Ingrid olhou para trás e sorriu. Confiava no cavaleiro, por mais improvável que fosse seu objetivo. Voltou

a observar as ruas de Adrebolomde: crianças brincando nas arruelas, todas com expressões felizes e alegres em

seus rostos, caçando-se umas às outras, com os pais ou mães igualmente sorridentes assistindo. Uma mãe, em

especial, repreendia o filho por uma malcriação. Um casal de idosos andando lado a lado, aproveitando o resto

que aquele dia oferecia. Um cachorro deitado ao lado de um artista de rua descansando, esperando, com as

orelhas erguidas, o dono dar um pedaço de seu lanche para ele. Um pintor desenhando uma réplica de uma das

belíssimas estátuas, olhando para a obra e logo depois pincelando em sua tela. Uma banca de frutas frescas, com

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a vendedora tendo, aparentemente, um dia melhor do que o normal, com um largo sorriso estampado no rosto

enquanto um nobre cliente elogiava seu trabalho. Os pássaros sobrevoando as torres da cidade, vespas

construindo um ninho em um telhado próximo de onde a moça estava. Era um dia tranquilo? Um final de tarde

normal para a cidade impenetrável? Uma delicada e enfeitada cabana em meio a uma tempestade de neve? Um

solitário camelo em um deserto sem fim?

As nuvens negras já cobriam toda a cidade. O sol, já fraco com o fim da tarde, agora mal era visto. Os

operários das ruas já acendiam lampiões, e as mães e pais das crianças já chamavam os filhos para voltarem para

casa. O pintor recolhia suas ferramentas, com medo que uma chuva estragasse sua obra de arte.

A jovem Steelmare prestou atenção no cachorro do artista de rua. Agora não mais prestava atenção à

comida do dono, mas estava atento ao céu. Latiu. Objetos chamaram sua atenção. Objetos voadores. Pássaros?

Tudo começou com uma visão perturbadora. Uma torre, de repente, tombou em chamas. Uma fera

voadora capturou soldados de patrulha, que estavam de guarda em um telhado próximo, e os devorou em pleno

ar. Outras duas feras apareceram, pousando nas ruas e atacando os cidadãos. Depois, um enorme cão com asas

de morcego pousou uma imensa caixa de ferro. Era um caixote de transporte. Cerca de vinte cornutuns saíram

dela e começaram o ataque. Depois, inúmeros monstros deixaram outras caixas em outros pontos da cidade.

Adrebolomde, a cidade impenetrável, cujo único modo de acessá-la é pelos portões... ou pelo céu. O Lorde sabia

disso melhor do que qualquer um.

Diante de tantas feras sobrevoando o reino, uma delas chama atenção, a maior de todas. Tenebrius. Com

um voo raso por cima das construções, expeliu fogo por todo o percurso, incendiando todas as casas por onde

passava. Uma delas, que tinha um reservatório de um gás inflamável no teto, explodiu. Ingrid caiu no chão com a

onda de impacto. Thomas veio ao seu socorro.

A moça levantou-se. Seu tio mandou-a entrar em casa e ficar em segurança, mas ela deu uma última

olhada na rua. As crianças, que antes brincavam alegremente, agora gritavam e procuravam por seus pais em

meio à morte e à confusão. Inclusive uma mãe, que antes brigava com seu filho por causa de uma malcriação,

agora chorava pela perda dele. O casal de idosos não estava mais junto, pois a velha mulher implorava pela vida

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do marido, que estava sendo levado pelos cornutuns. O cachorro defendia corajosamente o dono ensanguentado

e ferido dos inimigos e feras. O pintor estava desesperado, pois não só sua obra, mas sua casa inteira estavam em

chamas, e procurava desesperadamente uma fonte de água para tentar salvar a única família que tinha do fogo. A

vendedora de frutas estava empalada por uma longa lança, com sua banca inteira no chão sendo pisoteada pelas

pessoas e invasores. As feras cuspidoras de fogo colocavam toda a cidade em chamas, baforando seu hálito

vermelho e matando até os pássaros em seu caminho. Um dia aterrorizante. O começo da ruína para a cidade que

foi penetrada. Um castelo em chamas. Um urso afogando-se no mar. A cidade que Sarobou construiu e teria o

prazer de desmanchar.

O que aquelas pessoas haviam feito de mal? Qual foi o erro? Qual era o motivo para tudo aquilo?

Ingrid e Thomas desceram as escadas, vendo a tímida atendente de sua loja, Gabriella, escondida

embaixo de uma mesa, temerosa, antes de uma enorme pedra invadir a casa e esmagá-la. Os dois saíram por uma

porta dos fundos e correram para o primeiro lugar seguro que lhes veio à cabeça: o templo. Ao chegarem, viram o

lugar em chamas. Kashadin, o sacerdote, estava morto nas escadarias.

A moça não conteve seu medo e angústia. Pediu, mentalmente, por um salvador. Esperou por um anjo,

uma mão divina, qualquer coisa que salvasse as pessoas inocentes da cidade. Thomas a puxou para não ser vista e

os dois correram para qualquer lugar que julgassem protegido. Guardas eram inúteis, as feras pareciam infinitas,

a destruição não parava.

"Richard", Pensou.

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Capítulo 19

O punho do leão

A luta continuou até um dos dois "deuses" sangrar. E era o único que aparentemente sofreria com um

sangramento: Fulgur. O deus das tempestades recebeu um leve golpe com a espada negra do Lorde no ombro,

sangrando e perdendo a placa da armadura naquele lugar. Richard permanecia imóvel, ainda segurando a espada

que já fora de seu pai. Porém, sua respiração já havia normalizado.

Mas o jovem estava perplexo: sequer um deus era capaz de derrotar Sarobou?

— Estou muito mais poderoso desde a última vez que nos vimos, Fulgur. — Disse o demônio com um tom

de voz vitorioso. "Por Samart", pensou Rich, "Esse ser é invencível?"

Fulgur ignorou a dor e voltou a lutar. Dava golpes rápidos e poderosos, mas o Lorde parecia ler seus

movimentos e os defendia sem dificuldades — inclusive os contra-atacando. O deus das tempestades já havia

usado muitos ataques de ângulos, posições e estilos diferentes, mas de nada adiantava. Sarobou parecia apenas

prever o futuro para saber onde seria seu próximo golpe, e sequer ofegou diante de um oponente tão poderoso.

Ele não tinha sentimentos? Nunca sentia medo, aflição, alegria, raiva, rancor? O que havia acontecido com ele no

passado, exatamente?

Fulgur, ao perceber que jamais derrotaria seu inimigo daquela forma, usou toda a sua fúria: seu corpo foi

tomado por uma poderosa corrente de energia, fazendo pequenos raios saíres de seu corpo, como se ele fosse

uma pequena nuvem tempestuosa. Ao avançar novamente sobre o Lorde, seus ataques lançavam raios e estavam

ainda mais poderosos e rápidos.

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Mas Sarobou continuou lutando normalmente. Os relâmpagos que saíam do corpo de Firerain pareciam

não surtir efeito. Rich impressionou-se e preocupou-se. Isabel, ainda pendurada, via a luta, abismada pelo poder

de seu sequestrador. Lionfist finalmente conseguiu mover-se um pouco mais, e olhou para trás, visualizando sua

amada. Os dois olharam-se por longos segundos, enquanto faíscas de trovões rebatiam-se por toda a sala e, sob o

controle de Fulgur, não acertavam os dois.

Enquanto Rich a olhava com um olhar apaixonado e valente, a jovem Sapphirestar tinha um olhar sensível

e amável. Como se os dois comunicassem-se pelos pensamentos, passassem mensagens através de telepatia,

como se apenas suas expressões dissessem tudo o que queriam dizer. Aliás, Isabel já sabia que ele a amava, pois

Sarobou havia dito. Enquanto os primeiros pensamentos da moça ao ver o jovem foram algo como "O que ele

está fazendo aqui?", agora transformaram-se em "Será que ele e eu sobreviveremos?". Sentiu, no fundo se sua

alma, uma vontade. A vontade de viver. A vontade de viver e passar pelo menos mais alguns momentos com ele.

Após incontáveis trocas de golpes com espada e clarões tão fortes a ponto de parecerem ter vindo de

uma verdadeira tempestade, Fulgur caio no chão, quase inconsciente. Havia recebido um golpe no peito, o que o

fez sangrar muito. O Lorde foi vitorioso mais uma vez.

— Eu ganhei, meu pequeno aprendiz. — Disse ele.

— No que você se tornou, Sarobou? Treinei tanto por todos esses anos para perder novamente?

O Lorde limpou a espada em sua capa e, logo após isso, a guardou.

— Fulgur, você é apenas uma chuva de fogo sobre um mar. Não importa o quanto você caia para cima de

mim, o fogo não derrotará a água. Eu apenas evaporarei e voltarei na forma de chuva. Você é apenas uma cópia

da chuva que é meu poder. — Sarobou chutou o corpo de fulgur de uma forma que ele ficasse de barriga para

cima e depois pisou em cima do ferimento que causou em sinal de vitória. A dor do deus das tempestades foi

tanta que ele desmaiou. — Adeus, senhor Firerain, a sombra do homem que eu já fui uma vez.

Parecia estar acabado. O homem mais poderoso, um deus, alguém capaz de derrotar um exército inteiro

com seus raios, foi derrotado por Sarobou. Havia esperança?

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O Lorde tinha apenas mais um trabalho antes da dominação: matar o último Lionfist. Retirou sua espada

de sua bainha e virou-se para ver o jovem cavaleiro do clã dos leões. Ao virar-se, esperava ver Rich na mesma

posição que o deixou: imóvel e com a espada inofensivamente sendo segurada por sua mão. A garota pendurada,

desesperada e ainda em prantos, exatamente do jeito que ele gostava: desespero, descrença na vida, apenas

esperando pela morte. Assim seus inimigos comportavam-se antes de morrer, e assim foi até aquele momento.

Até aquele momento.

Entretanto, ao virar-se, viu Richard em pé, com olhos corajosos fitando o Lorde. Havia recuperado as

forças.

— Obrigado pelo tempo, Fulgur. — Disse ele, referindo-se ao deus das tempestades sem consciência.

Sim, havia esperança.

— Você recuperou suas forças mais rápido do que eu esperava... — Disse o Lorde, parecendo apreensivo.

— Estou impressionado.

— Não preciso de seus elogios e frases de impacto, seu bastardo.

Richard, ainda fitando o Lorde, pensou no que ele havia feito de errado anteriormente. Lutava com o

escudo sempre à frente, e atacando com a maior força possível quando via uma brecha, que na verdade não

existia. Todo ataque que o Lorde executava fazia o jovem recuar um pouco e levantar o escudo, exatamente do

modo que foi ensinado. O que estava errado? Não foi rápido o suficiente? Não bateu com força? Esquivou-se

mal? O que diabos faltava?

Então, após uma curta mas preciosa reflexão, Richard agiu. Não avançou como antes, ferozmente mas

precatado sobre o inimigo. Ao invés disso, colocou seu escudo cuidadosamente e carinhosamente no chão.

— O que você está fazendo, "último"? — Perguntou o Lorde, muito curioso com a ação do jovem.

— Eu apenas relembrei algumas coisas que aprendi em minha jornada até aqui. — Rich girou sua espada e

assumiu a postura de combate. — O símbolo de minha família é importante demais para você ficar "batendo"

nela. Além disso, você também não está usando escudo.

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Sarobou gargalhou.

— Se você quer desse jeito, que seja!

Os dois, juntos, como se estivessem sincronizados, avançaram para uma nova luta.

Porém, dessa vez, Richard lutou de uma forma muito diferente. Como estava sem escudo, usou todos os

seus reflexos para atacar e defender com a espada. Era como se ele "imitasse" os movimentos do Lorde,

acompanhando atentamente os movimentos da lâmina dele.

Havia lembrado de tudo o que aprendeu em sua jornada. Tinha a coragem de usar uma espada, por isso

atacava e defendia sem medo. Aprendeu com Anakira e ao lutar contra o monstro Ravenous. Tinha honra por

carregar um escudo com o símbolo do clã Lionfist, por isso não usou esse equipamento: derrotaria o Lorde com

equipamentos iguais aos do inimigo. Aprendera com Jaccob e no silêncio do Salão dos Sonhos. E, além disso tudo,

estava mais forte do que nunca: tinha a força de um verdadeiro leão, que conheceu com o teste de Fulgur. Tudo o

que ele usou para concluir sua jornada estava novamente usado contra o mais forte inimigo que enfrentaria, o

inimigo que nem mesmo o primeiro Lionfist conseguiu derrotar. Deixara o escudo no chão apenas assistindo,

como se todos os antepassados estivessem ali, o apoiando e apreciando sua honra. Sua espada balançava

ferozmente e rapidamente acompanhado com destreza devido à coragem do jovem ao manuseá-la. Seus reflexos

eram a representação da força inigualável, que o fazia ignorar a dor dos ferimentos sofridos e forçar os músculos

a golpear mais forte. Sua armadura não mais pesava, e sua vontade de viver era absoluta. Não apenas de viver,

mas de salvar Isabel.

— Vai, Richard! Não ouse perder! — Torceu a moça.

Sua armadura se quebrava aos poucos com os leves golpes acertados. Sua pele sangrava com os cortes

sofridos, sua espada faiscava com defesas bem-sucedidas. Sua força aumentava conforme sua vontade de vencer

crescia, e sua coragem era imbatível. O Lorde foi obrigado a tirar uma das mãos das costas para se defender com

a manopla da armadura. Como era possível uma evolução tão repentina!?

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— Eu sou eterno! — Gritou Sarobou, cambaleando com um dos poderosos ataques de Rich. — Um

simples humano não pode me derrotar! Nenhum Lionfist seria mais forte que o primeiro, e eu o derrotei! — Ele

mal conseguia atacar agora. Um grande pedaço de sua armadura negra foi quebrado.

Logo, temendo pela derrota, o líder dos cornutuns dá um largo passo para trás e tira um escudo que

guardava escondido embaixo de sua capa, que era, anteriormente, uma parte de sua armadura que cobria as

costas. Richard também recua, pegando novamente o escudo de seu pai. Agora, os dois rivais usavam, além da

espada, um escudo. Sem perder nem um segundo, eles voltam a lutar.

Exatamente o que Richard queria: lutar da forma que ele mais sabia lutar.

Usando a espada para dar golpes principais e o escudo para secundários, além de usar para defesa, o

jovem logo aprendeu exatamente a maneira de lutar repelir os cortes do adversário e quebrar a defesa dele.

Sarobou possuía uma camada de malha negra por baixo da armadura, mas podia ser facilmente cortada. O Lorde,

ao compreender que seria derrotado, apelou para uma ajuda externa.

— Guardas! — Gritou. Richard sentiu-se injustiçado. — Ajudem-me! Soltem as feras do castelo! Matem

esse garoto!

Após demorados segundos, nenhuma resposta foi ouvida.

— GUARDAS!!

Então uma resposta finalmente foi dada. Mas não dos guardas dos andares superiores e nem dos

inferiores.

— Sinto muito, mas você não irá trapacear. — Disse a misteriosa voz. Tanto o Lorde quanto Rich olharam

em volta, procurando pelo dono da fala. E o encontraram ao olhar para as portas duplas de onde o jovem havia

entrado. E viram Krognarr aparecendo das sombras, carregando o corpo de um grande cão vermelho. — Agora

entendo, nast gnarruroth. Suas feras também ficam fracas à medida que você enfraquece, não é mesmo?

Sarobou praguejou.

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— Feiticeiros do castelo! Matem todos nessa sala! — Gritou, dirigindo-se para uma sacada que havia no

enorme salão onde se encontravam. Sua última esperança era que os poderosos feiticeiros cornutuns, liderados

por Morphos, soltassem seus poderosos feitiços em seus inimigos.

Porém, novamente não obteve resposta. Ao olhar para as plataformas superiores, viu três magos mortos

e Lincy sentada sobre o parapeito da sacada, limpando sua faca com um pano.

— Acho que seus amigos magos não poderão ajudá-lo agora, pequeno Lorde! — Disse ela.

Sarobou praguejou mais uma vez. O "plano B" dele fracassou. Esperou um taque de todos os inimigos

juntos, mas tanto o orc quanto a assassina permaneceram parados, apenas assistindo. Richard voltou a lutar,

orgulhoso.

A batalha continuou. Richard já havia sofrido alguns ferimentos e estava um tanto cansado. O Lorde, por

sua vez, permanecia intacto, porém parte de sua armadura havia se quebrado e ele estava ofegante por causa do

esforço. Não cansava-se assim desde...

Mas algo estava errado. Rich percebeu que o Lorde pareceu não estar se esforçando tanto quanto antes.

Era o cansaço? Impossível. Estava simplesmente mais lento voluntariamente, como se ele estivesse rendendo-se.

Por que ele faria algo daquele tipo?

Os dois trocaram golpes até um momento em que o demônio de armaduras negras tentou um arriscado

movimento ofensivo. Richard desviou o ataque com o escudo e fez a investida que esperou fazer por todo o

tempo em que ficou andando e pensando em sua jornada: desferiu um poderoso e profundo corte com sua

lâmina no peito do oponente. Um sangue estranho jorrou, e um grito assustador de agonia saiu da boca do Lorde.

Com isso, ele recuou. Lincy sorriu e Krognarr jogou o corpo da fera no chão, satisfeito. Isabel suspirou. Rich

relaxou e descansou os braços.

— Eu venci, Sarobou. — Disse ele. — Renda-se agora, e morrerá rapidamente.

Porém, ele viu algo que o amedrontou: os chifres que saíam do capacete do Lorde cresceram. Este riu.

— Você não sabia? Sou o líder e o primeiro cornutum.

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Agora Richard entendeu tudo: Dezessete segundos. Já havia se passado cerca de seis.

Sete. Richard avançou rapidamente para conter o inimigo. Oito. Sarobou defendeu o primeiro ataque e

contra-atacou. Nove. O jovem atacou mais uma vez horizontalmente, mas o adversário defendeu-se mais uma

vez. Por Samart, como era possível ele continuar lutando tão bem após sofrer um ferimento tão grave? Dez. O

Lorde atacou, Richard defendeu-se. Onze. Contra-atacou, perfurando a armadura — e o braço — do inimigo.

Doze. Sangrando novamente, Sarobou moveu o braço para tirar a lâmina de sua carne. Treze. Deu um chute no

escudo de Rich, tentando afastá-lo. Com esse movimento, Krognarr começou a correr na direção deles para

ajudar seu amigo, e Lincy, com um salto, desceu da sacada em que estava e fez o mesmo que o orc. Quatorze.

Richard, sendo ainda mais rápido que de costume, tentou um ataque para decapitar o oponente, mas errou:

acertou diretamente o capacete do Lorde, arrancando-o fora. Quinze. O rosto de um pesadelo em pessoa foi

mostrado. Seus olhos brilhavam em vermelho, sua pele parecia sugar toda a luz que a tocava, sua boca mais

parecia uma fenda para um submundo. Seus olhos brilharam ainda mais, e seus chifres estavam muito maiores.

Richard havia calculado errado: já se passaram dezessete malditos segundos.

Uma aura negra se estendeu por todo o salão, até mesmo por todo o castelo, e a força da transformação

foi sentida por todo o território das Terras do Além. Suas feras, atacando Adrebolomde e migrando para o sul,

sentiram um fervor em suas almas. Tudo ficou um pouco mais escuro no salão do Lorde, como se o próprio mal se

apoderasse daquela sala. Partes da parede e do teto da enorme fortaleza caíram, e as nuvens ficaram mais

escuras. Lincy e Krognarr caíram no chão, tomados pelo poder do demônio em sua forma maligna. Fulgur ainda

desmaiado, teve um espasmo em todo o seu corpo. Rich agora estava sozinho contra Sarobou em sua forma de

Maldaz, o apocalíptico. O devorador do mundo. O início da digestão para uma nova era. O rei dos cornutuns, o

domador, o pesadelo, o mal.

Nas florestas ao norte de Rarstead, nas montanhas perigosas dos Vales da Lava Negra, nos campos

próximos à cidade das estátuas... todo o ser vivo considerado inteligente olhou para os céus, e todos viram a

enorme revoada de milhares de monstros voadores liderados por Tenebrius. Enfurecidos, tomados pelo

nostálgico poder real do Lorde da perdição. Cavaleiros das cidades e vilas prepararam-se para uma iminente

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batalha, uma jovem amazona protetora da selva preparou sua lança, o monstro Tidevann sacou sua espada de

marinheiro. Estava começando.

Richard sentia-se no fundo do oceano, esmagando-se com a pressão da água abissal onde não se chega a

luz. Porém, não permitiu que seu corpo caísse. Deu um passo, usando toda a sua força, vendo o Lorde bem à sua

frente, usufruindo do poder que à séculos não se apoderava. O humano Lionfist, determinado, deu mais um

passo, mesmo com um mundo inteiro sobre seu corpo e sua alma. Sarobou o olhou e recitou algumas palavras

em uma linguagem ancestral. Rich deu mais dois apressados passos.

Mais palavras foram ditas. Richard já estava perto o bastante. Deu mas espadada, mas foi defendida pela

do Lorde. O impacto gerou um tipo de raio negro que acertou uma parede, quebrando-a quase inteira. Isabel,

pendurada atrás do jovem, inexplicavelmente continuava consciente, olhando com olhos lacrimosos a cena diante

dela. Pediu mentalmente ao deuses que ajudassem naquela situação. Sarobou, sem perder tempo, deu um golpe

com a espada, que foi defendido pelo escudo de Lionfist. A força foi tanta que Rich caiu com um dos joelhos no

chão. Mais palavras amedrontadoras foram ouvidas. O tempo pareceu diminuir o ritmo. Todo o ambiente em

volta ficou ainda mais escuro. Aquele castelo estava transformando-se em um inferno.

Richard olhou para trás e fitou Isabel. Os olhos dos dois se encararam por poucos mas infinitos segundos.

Richard levantou-se novamente com todas as suas forças, avançando com a espada. A moça ousou se esforçar

para gritar, mas nenhuma palavra saiu de sua boca. Um estouro negro ocorreu no salão do mestre, lançando

magias negras por toda a extensão do castelo e dos domínios do lorde. Um tornado de poder demoníaco surgiu

da perfuração no coração do ser infernal causada pela lâmina Lionfist. Os cornutuns, os dragões, as feras,

qualquer monstruosidade com o poder dele foram sugados por quilômetros pelo buraco negro. As nuvens

escuras se dissiparam, e relâmpagos surgiram na região do forte. Tudo em segundos, tudo em um único golpe. As

feras do Lorde desapareceram dentro do redemoinho de energias negras, e o mundo escutou o silêncio por

centésimos de segundo. Mais uma explosão ocorreu, soltando rajadas de puro poder possesso para todas as

direções. Isabel fechou os olhos, sua corrente se partiu, ela caiu no chão. O universo pareceu se apagar por alguns

instantes.

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Memórias dos monstros de Sarobou percorreram toda a extensão do impacto. A morte, o fogo, a

destruição, os choros de desespero, os gritos de agonia, as ordens do tirano, o mal. Esse total, por um curto

momento, passou do abstrato imaginário para o real concreto. Era a morte.

Estavam mortos?

A salvação se resumiu a esse sacrifício?

A assassina nunca mais veria um corte causado por sua lâmina no pescoço de seu alvo? O orc jamais veria

seus companheiros de batalha novamente?

O leão rugiria?

A donzela, a estrela, não conheceria o que era o amor? Não dançaria mais naquele mundo? Viu, naquele

momento, o fantasma de Richard Lionfist se despedindo, dando um último "adeus" a ela. O seu salvador. Havia

perdido o homem que havia feito uma enorme jornada, aprendendo o que significava ser corajoso, usar a honra e

possuir a força. O homem que havia morrido para salvá-la. O último Lionfist, cumprindo sua parte na profecia. O

real destino.

Seu sonho, ou pode-se dizer pesadelo, foi interrompido com o leve, porém caloroso e confortável, brilho

do sol em seu rosto. Não estava sentindo nenhuma dor, sua angústia havia cessado. Abriu os olhos lentamente.

Sua visão estava embaraçada, como alguém que abre os olhos embaixo a água. Quando sua percepção se

acostumou à claridade a ao ambiente onde estava, percebeu que se encontrava nas ruínas de uma grande

fortaleza. E à sua frente, viu o rosto de um homem. Não sentia o chão, pois estava sendo carregada. Quando o

sentido da fala pareceu retornar ao seu controle, ela não hesitou e tentou soltar alguma frase. Mas foi

interrompida por quem a estava carregando: Richard.

— Shhh... — Disse ele. — Está tudo bem. Apenas fiz o que prometi a mim mesmo. Eu nunca quebro uma

promessa.

Sem perder um simples segundo de suas vidas, eles se beijaram apaixonadamente.

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Capítulo 20

A simples história de uma promessa

Mais um dia de sol nascia em Sevenland. Um dia um pouco mais claro, o sol um pouco mais quente, o céu

um pouco mais limpo. Após um curto momento de escuridão profusa, o continente inteiro parou em silêncio.

Marinheiros das Terras do Leste tiraram seus chapéus em sinal de acatamento. Shakists e nômades das

Terras do Oeste pararam de caminhar em suas peregrinações para admirar um céu tão novo para eles: o céu com

nuvens brancas. Comerciantes ricos das cidades das Terras Centrais simplesmente largaram suas sacolas de

dinheiro para apreciarem o desaparecimento das nuvens negras tão presentes naquele território. Os abalados e

feridos das Terras do Norte, os mais prejudicados, ficaram boquiabertos ao verem todas as feras do Lorde

desaparecerem tão rapidamente. Até mesmo os vilarejos gelados de Nortgarr e as cidades montanhosas das

Terras do Sul, que pouco se incomodavam com as Terras do além, perceberam que algo havia limpado essas

nuvens negras repentinas vindas do território maldito.

Um dia... diferente. Um dia novo. Um dia que marcaria a era da paz.

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— Você está bem, Richard? — Perguntou Fulgur, com a mão em seu ferimento no peito, que foi enfaixado

provisoriamente por Lincy. — Você parece abalado. Não está feliz por tudo ter finalmente acabado?

Havia se passado quase um dia inteiro desde o "ocorrido". O jovem ficou quase todo esse tempo apenas

esperando sua amada acordar.

— Estou apenas cansado. — Disse ele, sentado em uma rocha perto do local onde o Lorde desaparecera.

Não havia um corpo, apenas cinzas. Estava esperando, ansiosamente, que Lincy cuidasse dos ferimentos leves

que Isabel sofrera com tudo aquilo. — Acho que terei que dormir por dias quando chegar em casa...

O deus das tempestades riu.

— Por sorte, meus ferimentos curam-se rapidamente. — Ele, então, mudou de assunto. — E agora,

Richard? O que fará?

O jovem alongou sua perna e sorriu.

— Eu não sei. Gostaria de voltar para Rarstead, mas não sei se me aceitarão novamente. Construir uma

casa no campo, talvez? Sempre odiei o barulho das cidades. — O cavalheiro, que havia tirado sua armadura,

olhou para uma das peças de metal dela. — E, claro, terei que reparar todo o meu equipamento. Acho que minha

espada ficou um pouco cega, também.

— Amigo, lembre-se que, sempre que precisar de ajuda, suba para algum lugar alto e grite o meu nome.

Eu ouvirei e estarei sempre ao seu dispor.

— Obrigado.

A conversa dos dois foi interrompida quando Krognarr apareceu.

— Richr...

— É Rich!

O orc limpou a garganta.

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— Estamos com sorte. Vasculhei o exterior do castelo e achei cinco cavalos em um pequeno estábulo aqui

perto. Poderemos usá-los para voltar, talvez.

— Ótimo! — Disse o jovem. — São cavalos de sobra.

Logo, Lincy também apareceu, com parte de suas roupas removidas.

— A garota está bem — Disse a meio-shakist. —, apenas sofreu alguns hematomas e escoriações leves.

Ela está tomando um banho em um lago aqui perto, pois disse que estava tão suja que sentia coceiras...

Rich a agradeceu com um gesto, e então perguntou:

— Eu não sabia que você era conhecedora de medicina...

Ela sorriu maliciosamente, como sempre.

— Aprendi sozinha. Em algumas de minhas missões de assassinato, eu me machucava e tinha que me

curar sem nenhuma ajuda em território hostil.

Richard não parava de se admirar com as habilidades dela.

— O que você fará agora, Lincy?

Ela agachou-se, como se estivesse descansando e alongando os músculos da coxa.

— Continuarei minha vida da maneira que ela sempre foi... — Ela tirou a faca do cinto e olhou para ela. A

faca que matou Morphos. — Mas acho que mudarei de esconderijo. Será muito mais fácil me contratar agora,

uma vez que essas terras não são mais perigosas. — Ela pôs-se de pé novamente e caminhou para uma direção

das ruínas do castelo. — Aliás, como parte do acordo, tenho posse dos tesouros de Sarobou, certo?

— Sim. É seu.

— Obrigada. Irei juntar algumas quantidades e esconder outras para eu pegar posteriormente.

Ela saiu, descendo pelas escadas de acesso à sala do tesouro.

— E você, Krognarr? — Perguntou Richard.

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— Voltarei para Krainir Lihrkoth com uma grande história para contar aos meus companheiros! — Disse,

simplesmente.

— E você, Fulgur?

— Só estou aqui de passagem. — Disse o deus das tempestades, sorrindo. Sua barba estava suja e

embaraçada. — Estou indo agora mesmo para meu castelo. Tenho nuvens para alimentar. — Brincou ele.

— Mais uma vez, obrigado. Você não apenas fez eu recuperar minha armadura, como também salvou

minha vida.

— Eu que o agradeço, Richard. — Disse ele, levantando-se e caminhando para uma área à frente das

ruínas. — Você livrou toda a Sevenland do mal. Como eu á te disse, pode pedir pela minha ajuda à qualquer

momento, que eu responderei. — Fulgur virou-se para o jovem e abriu seus fortes braços. — Adeus, Lionfist.

— Adeus.

Mesmo sem nenhuma nuvem no céu, um quase silencioso relâmpago acertou-o, o que apagou sua

existência do mundo dos homens.

Momentos mais tarde, enquanto Lincy selecionava as joias e moedas para levar para seu esconderijo,

Krognarr descansava por causa da fadiga do Dagnarr Strang e Isabel banhava-se, Richard andou até o topo de

uma colina próxima à fortaleza destruída. Lá, sentou-se à beira de uma árvore morta. Daquele ponto, tinha uma

enorme vista para uma grande área das Terras do Além. Percebeu que parte da vegetação, que antes era morta e

cinza, ganhou um pouco de vida, como se a natureza estivesse começando a prosperar novamente após tão

pouco tempo depois da morte do Lorde.

Era uma vista apocalíptica, mas, ao mesmo tempo, belíssima.

Ficou sentado nos pés da árvore apenas apreciando a paisagem e até pensou em tirar um cochilo. Sentou-

se confortavelmente e fechou os olhos. Sua mente esvaziou-se dos problemas por alguns segundos — ou seriam

minutos? — enquanto pensava em como se sentia feliz por ter cumprido seu objetivo, sua promessa, sua missão,

seu destino. Não fez pelo heroísmo, pelo dinheiro ou pela fama, mas sim pelo amor que tinha. Ternura tanto pela

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família Lionfist quanto por Isabel. Para tornar-se forte, cumprir sua missão como cavaleiro honrado e, claro,

ganhar a coragem que nunca teve. Esse era o jovem Lionfist agora.

Sua "meditação" foi interrompida pela voz mais bela que já ouviu na vida.

— Ri... Richard?

O jovem levantou-se rapidamente. Era, sem sombra de dúvidas, Isabel.

— Isabel! — Seu coração disparou. Desde que ela acordou, eles não tiveram nenhum tempo para

conversar. — E-está tudo bem com você? — Ele gaguejava de nervosismo.

Ela riu timidamente. Estava usando outra roupa. Não se soube onde conseguiu, mas ela estava... linda.

— Eu só queria lhe agradecer. Por tudo. Por todos. Por mim. — Disse, com sua graciosa voz. "Minha

nossa", Rich pensou. Ele realmente estava falando com ela após tanto tempo?

— A-acho que não será muito necessário. Apenas fiz meu dever pelo meu... clã! — O jovem sequer

conseguia escolher bem as palavras que falava.

Ela sorriu novamente. Dessa vez, introvertidamente.

— Eu ouvi o que foi dito em sua conversa com "aquele homem". Você não veio apenas pela sua família. —

Ela juntou as mãos à frente de seu corpo.

Cortar a cabeça de um ciclope das Terras do Sul seria mais fácil do que achar as palavras certas para dizer.

— Bem, eu...

— Eu também percebi que você tinha olhos apenas para mim no Festival Anual dos Guerreiros em

Rarstead. Acho que você quer algo comigo, Rich... — Quantos anos fazia desde que ela o chamava pelo apelido?

O cavaleiro não parava de fitá-la nos olhos. Eram hipnotizantes.

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— Eu sempre senti... — "Por samart!", ele pensou, "Eu derrotei uma criatura de três cabeças para ganhar

coragem e não consigo sequer falar algo para ela?" — Eu sempre senti algo por você. Desde o dia em que nos

conhecemos.

Ela sorriu novamente. Ele fez o mesmo. Seus corpos aproximaram-se quase que instintivamente.

— Richard...

Um longo beijo foi dado. Seus corpos ficaram um pouco mais quentes. Logo depois, entreolharam-se

brevemente, e juntaram-se novamente. Após alguns minutos, antes de perceberem, já estavam sentados. O sol já

estava se pondo, desaparecendo, juntamente com as preocupações do casal. O jovem entendeu, finalmente, que

"mensagem" os olhos dela passavam.

Cada carícia os arrepiava. Cada momento os estimulava. Cada vez mais escuro. A noite os deixava com

vontade de ficar mais e mais. Isabel subiu no colo de seu salvador, e eles continuaram. Toda a vez que o beijo se

intensificava, Rich pensou em como valeu a pena ter sido um grande protetor. Um cavaleiro do clã dos leões. Um

cavaleiro com coragem, honra e força. Um Lionfist.

— Vou levá-lo para lá, Richard. — Ela disse.

— Para onde?

— Para as estrelas.

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Epílogo

O homem com mais de um nome

Chovia nas belas colinas ao sul de Rarstead. Não havia trovões no céu, e isso chamou um pouco a atenção

do casal da pequena cabana. Chuvas fortes sem trovões? Naquela região?

Richard olhou pela janela de trás da casa. Apertou os olhos para enxergar através do vidro molhado, e

desembaçou a vidraça usando sua manga do casaco. Na estrada de chão, centenas de metros à frente de sua

vista, enxergou um vulto. Molhou imediatamente o dedo e apagou o lampião ao seu lado, para evitar que a

luminosidade da cabana chamasse atenção. Pensou. "Havia recolhido os animais?"

— Pai? — Perguntou Olivia, sentada em sua cadeira de balanço favorita. — Por que apagou a luz?

Ele não respondeu.

— Querido? — Foi a vez de Isabel perguntar. — Está tudo bem?

— Há alguém vindo. — Respondeu, olhando para a sua mulher.

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Porém, ao olhar novamente pela janela, não viu mais nada além das habituais montanhas do leste, as

árvores e, claro, a chuva.

— Pode ser um amigo, pai! — Disse a menina de cinco anos.

Rich, limpando de sua mente a preocupação, sorriu de volta para a filha.

— Acho que foi minha imaginação. Está tudo...

Porém, o som de alguém batendo à porta interrompeu as palavras do homem. Olivia encolheu-se em sua

cadeira e enrolou-se no cobertor, lembrando-se das histórias que o pai contava sobre as criaturas da noite. Isabel

desconfiou.

Richard andou até a porta de entrada e, com a espada ao alcance, tocou na maçaneta. Porém, ao invés de

abrir um pouco para ver quem era, abriu a porta repentinamente.

— Richard! Há quanto tempo! — Disse um senhor com uma longa barba, que parecia ter mais de cem

anos.

O fato do velho saber o nome do cavaleiro amenizou a preocupação dele.

— Quem é você?

Um cachimbo apareceu na mão do homem de repente, como mágica. O idoso (que parecia ter muito mais

energia do que uma criança), então, tragou o objeto. A ação era familiar...

— Eu sou Jaccob Tidevann! Lembra-se de mim? Nos conhecemos há oito anos!

— Ja... Jaccob? Mas você não era...

O velho entrou na casa imediatamente, sem sequer pedir permissão. Ele não estava molhado.

— Oh, que belo aconchego! Um pouco bagunçado, mas um belo aconchego aconchegadamente

aconchegado. E então, o que andou fazendo durante todo esse tempo? Você mudou, agora tem uma pequena

barba!

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— Eu que digo isso! Você era um homem-polvo!

Jaccob deu uma longa tragada em seu cachimbo, e então fez o objeto desaparecer de sua mão

novamente. Olivia tossiu ao respirar a fumaça.

— Oh, desculpe, Lionfist. Meus pensamentos estão bagunçados. Que bagunça!

Richard já estava perdendo a paciência.

— Senhor, por favor, explique-se. Como você mudou de aparência? Se livrou da maldição de Tibarnuk?

Rindo, Tievann tirou de uma bolsa que carregava uma espécie de livro. Porém, a capa de couro não

continha um título.

— Sua pergunta é a pergunta errada. Não é hora de lhe contar, ainda. Vou primeiro mostrar-te o motivo

de eu ter vindo aqui.

Rich ficou irritado de não receber uma resposta para sua pergunta, porém também ficou interessado no

livro.

— Que livro é esse?

— Há algumas semanas, eu vasculhei os escombros do castelo de Sarobou e, com meus poderes de

atravessar paredes, consegui chegar a uma câmara secreta na fortaleza, no subterrâneo. — Ele novamente fez

aparecer seu cachimbo. Colocou algumas ervas amassadas nele e acendeu com um objeto estranho que gerava

faíscas. Logo após, tragou, e fez o cachimbo desaparecer novamente. — Lá, não achei quase nada além de lixo,

mas achei esse livro.

— E o que é? — Perguntou novamente o cavaleiro. Olivia e Isabel ouviam atentamente, curiosas.

— O título é um mistério misteriosamente misterioso: "O homem com mais de um nome".

— E sobre o que ele conta? — Richard perguntou, temendo a resposta.

— É a autobiografia do Lorde.

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Sobre J. C. Fantin

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De Caxias do Sul – RS

O Grande Protetor

Ano: 2013

Gênero: Ficção / Fantasia / Medieval