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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
OTÁVIO CEZARINI ÁVILA
O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS
COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO
CURITIBA
2016
OTÁVIO CEZARINI ÁVILA
O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS
COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Comunicação, Setor de Artes, Comunicação e Design, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação.
Orientadora: Profª. Dra. Myrian Regina Del Vecchio de Lima
CURITIBA
2016
Catalogação na publicação Sistema de Bibliotecas UFPR Biblioteca do Campus Cabral
Ávila, Otávio Cezarini O Haiti em Curitiba: um olhar interpretativo das práticas comunicativas
dos haitianos no novo território / Otávio Cezarini Ávila – Curitiba, 2016. 304 f. Orientadora : Prof. Dra. Myrian Regina Del Vecchio de Lima
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Setor de Artes, Comunicação e Design da Universidade Federal do Paraná.
1. Comunicação intercultural - Haiti. 2. Imigrantes - Aspectos
comunicacionais - Curitiba (PR) 3. Imigração haitiana - Paraná I.Título. CDD 302
TERMO DE APROVAÇÃO – substituir essa página pelo parecer de aprovação!
OTÁVIO CEZARINI ÁVILA
O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO
Dissertação aprovada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em Comunicação, Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná, pela seguinte banca examinadora:
________________________________________ Profa. Dra. Myrian Regina de Lima Del Vecchio Orientadora – Departamento de Comunicação, UFPR
________________________________________ Profa. Dra. Regiane Regina Ribeiro Departamento de Comunicação, UFPR
________________________________________ Prof. Dr. Mohammed ElHajji Departamento de Comunicação, UFRJ
Curitiba, 14 de março de 2016.
Este trabalho é dedicado à cidade de Curitiba, que me acolheu como migrante.
O trabalho também é dedicado à Vó Odette, que migrou e deixou saudades.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPR, pela oportunidade dada.
À Prof. Myrian Del Vecchio, pela didática, responsabilidade e eficiência que só uma
excepcional orientadora poderia me dar.
Às pessoas que contribuíram para que esta pesquisa pudesse ser realizada,
especialmente pelo aprendizado vivenciado na Casla e na Pastoral do Migrante.
À minha família, pela presença na distância, carinho e apoio nas decupagens.
À Pauline, por ser quem é e também pelos telefonemas que me distraíam enquanto
voltava para casa.
“Queríamos mão de obra, mas chegaram pessoas.”
Max Frisch
8
RESUMO
Este trabalho de dissertação analisa os processos comunicativos que haitianos residentes em Curitiba (capital do Estado do Paraná) estabelecem entre si e a sociedade, buscando responder como tais processos contribuem na reconstrução identitária destes sujeitos migrantes no novo território. O campo de análise da pesquisa privilegiou a atuação das organizações de apoio aos migrantes, ao partir do pressuposto que elas desempenham um papel fundamental na consecução desta reconstrução. Para realizar esta análise foi fundamental empreender um percurso etnográfico junto a essas organizações e junto a um grupo de haitianos que circulam em tais espaços e, posteriormente, fazer entrevistas com representantes destes segmentos, a fim de compor um trajeto metodológico à luz da Hermenêutica de Profundidade, apresentada por Thompson (2011). Contudo, para a realização desta abordagem hermenêutica, foi necessária a construção de um contexto teórico de caráter sócio-histórico, mas que tem nas características culturais um ponto nevrálgico frente à relação dos novos fluxos humanos pelo globo. Neste sentido, a pesquisa inicia-se teoricamente com a reflexão dos processos de globalização no mundo contemporâneo, pela perspectiva das minorais culturais e suas construções identitárias e passa, em outro capítulo, por uma contextualização histórica e sociológica de processos migratórios no Brasil, Paraná, Curitiba e no próprio Haiti. Entre esses dois capítulos, estabelece-se, como um corte na organização textual, mas que é ao mesmo tempo um marco de ligação entre as vias teóricas e metodológicas, o momento comunicacional, uma vez que são objeto dessa dissertação as práticas comunicativas dos haitianos em Curitiba, entendendo a comunicação desde a ideia de processo de interação social na sociedade midiatizada. Com isso, a pesquisa também busca responder se as práticas comunicativas desses migrantes são práticas midiatizadas. Buscou-se dar as respostas às questões propostas em um momento reinterpretativo, a partir do viés qualitativo da pesquisa em questão. Ao final, pode-se concluir, de forma ampla, que as organizações de apoio demarcam um importante locus de reconhecimento identitário, assim como os processos de midiatização emergem nas interações dos haitianos que vivem em Curitiba por meio de novas sociabilidades e modos de ser migrante.
Palavras-chave: Comunicação e cultura. Imigração. Haiti. Práticas comunicativas. Organizações.
9
ABSTRACT
This thesis analyzes the communicative processes that Haitians living in Curitiba (Paraná state capital) establish among themselves and the society, seeking to answer how these processes contribute to the identity reconstruction of those migrants subjects in the new territory. The analysis field research focused the work of organizations supporting migrants, in assuming that they make a key role in achieving this reconstruction. To perform this analysis was essential to undertake an ethnographic route with these organizations and with a group of Haitians moving in such spaces and then conduct interviews with representatives of these segments in order to compose a methodological path under the light of Hermeneutics of Depth, by Thompson (2011). However, for the realization of this hermeneutical approach, was necessary the construction of a theoretical context with a socio-historical bias, but that has in the cultural characteristics a neuralgic point when compared to the new human flows across the globe. Therefore, the research theory starts with the reflection of the processes of globalization in the contemporary world, from the perspective of cultural minorities and their identity constructions and passes, in another chapter, by a historical and sociological context of migration processes in Brazil, Paraná, Curitiba and in Haiti itself. Between these two chapters, it is established - as a cut in the textual organization, but also as a connecting mark between the theoretical and methodological way - the communication point, since the subject of this thesis is the communicative practices of Haitians at Curitiba, understanding the communication from the idea of social interaction process in a mediatic society. Thus, the research also seeks to respond if the communicative practices of these migrants are mediatized practice. The search also sought to give answers to questions posed in a re-interpretative moment, from the qualitative bias of the research in question. Lastly, it concluded, broadly, that supporting organizations demarcate an important identity recognition locus, as the mediatization coverage processes emerge in the interactions of the Haitians living at Curitiba through new sociability and ways of being a migrant. Keywords: Communication and Culture. Immigration. Haiti. Communicative Practices. Organizations.
10
RESÚMEN
Esta tesis analiza los procesos comunicativos que los haitianos que viven en Curitiba (capital del estado de Paraná) constituyen entre sí y la sociedad, tratando de responder como estos procesos contribuyen a los sujetos migrantes reconstruir su identidad en el nuevo território. El campo de análisis de la investigación se centró en el trabajo de las organizaciones de apoyo a los migrantes, en el supuesto de que juegan un rol fundamental en el logro de esta reconstrucción de identidades. Para llevar a cabo este análisis fué esencial emprender um camino etnográfico con estas organizaciones y con un grupo de haitianos que circulan en estes espacios y, luego, hacer entrevistas con los representantes de estos segmentos con el fin de componer un camino metodológico a la luz de la Hermenéutica de Profundidad, presentada por Thompson (2011). Sin embargo, para la realización de este enfoque hermenéutico, la construcción de un marco teórico de carácter socio-histórico era necesario, pero que tiene las características culturales un punto neurálgico frente a los nuevos flujos humanos en globo. En este sentido, la teoría de la investigación se inicia con el reflejo de los procesos de la globalización en el mundo contemporáneo, por la perspectiva desde las minorías culturales y sus construcciones de identidad y se mueve, en otro capítulo, por un contexto histórico y sociológico de los procesos migratórios en Brasil, Paraná, Curitiba y mismo en el Haití. Entre estos dos capítulos, se establece como un corte en la organización textual, pero que es a la vez una marca de conexión entre la forma teórica y metodológica, el momento de la comunicación, por ser objeto de esta tesis las prácticas comunicativas de los haitianos en Curitiba, compreendendo la comunicación desde la idea del proceso de interacción social en la sociedad mediática. Por lo tanto, la investigación también pretende dar respuesta si las prácticas comunicativas de estos migrantes son prácticas mediatizadas. Así, se ha tratado de dar respuestas a las preguntas formuladas en el momento reinterpretativo, desde la perspectiva cualitativa de la investigación en cuestión. Al final, se puede concluir, en términos generales, que las organizaciones de apoyo demarcan un importante locus de reconocimiento de la identidad, así como los procesos de midiatización surgen en las interacciones de los haitianos que viven en Curitiba a través de nuevas sociabilidades y formas de ser migrante. Palabras clave: Comunicación y Cultura. Inmigración. Haití. Prácticas Comunicativas. Organizaciones.
11
LISTA DE FIGURAS
TABELA 1 – CHEGADA DAS CINCO PRINCIPAIS NACIONALIDADES
MIGRANTES AO PARANÁ ATÉ 1948 ..................................................................... 90
FIGURA 1 – ESQUEMA METODOLÓGICO DA HERMENÊUTICA DE
PROFUNDIDADE ................................................................................................... 104
FIGURA 2 – CARTAZ DE SHOW EM UM PERFIL PESSOAL NO FACEBOOK
(10/06/2014) ........................................................................................................... 152
FIGURA 3 – CARTAZ DE SHOW DIVULGADO EM UM PERFIL PESSOAL NO
FACEBOOK (28/12/2015) ...................................................................................... 153
TABELA 2 – SÍNTESE DA ANÁLISE DE CONTEÚDO ................................ 177
FIGURA 4 – DIVULGAÇÃO DO FILME “SOMOS TODOS MIGRANTES” NO
YOUTUBE .............................................................................................................. 184
12
LISTA DE SIGLAS
Abin – Agência Brasileira de Inteligência
Acnur – Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados
Casla – Casa Latino-Americana
CNIg – Conselho Nacional de Imigração
Conare – Comitê Nacional para Refugiados
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHU – Instituto Humanitas Unisinos
MPT-PR – Ministério Público do Trabalho do Paraná
OBMigra – Observatório das Migrações
OIM – Organização Internacional para Migração
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PBMIH – Português Brasileiro para Migração Humanitária
PIB – Produto Interno Bruto
PUC – Pontifícia Universidade Católica
UFPR – Universidade Federal do Paraná
UnB – Universidade de Brasília
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15
JUSTIFICATIVAS, QUESTÕES E OBJETIVOS ........................................................ 19
METODOLOGIA E CAPÍTULOS TEÓRICOS ........................................................... 24
1 ENTRE O MUNDO GLOBALIZADO E A CULTURA DAS MINORIAS .......... 28
1.1 GLOBALIZAÇÃO COMO CENÁRIO ................................................................... 29
1.1.1 A globalização e o redimensionamento dos Estados-nação .................... 32
1.1.2 Mapas da globalização ............................................................................. 35
1.1.3 A relação estreita entre globalização e cultura ......................................... 37
1.2 A GLOBALIZAÇÃO AMPARADA PELO MULTICULTURAL ........................ 39
1.3 SOBRE CULTURA, IDENTIDADES E RECONHECIMENTO ...................... 43
1.3.1 Os estudos culturais e a tendência gramsciana ....................................... 44
1.3.2 As culturas minoritárias: caminhos teóricos ............................................. 47
1.3.3 Identidades e reconhecimento ................................................................. 52
2 COMUNICAÇÃO MIDIATIZADA E PROCESSOS MIGRATÓRIOS ............... 58
2.1 COMUNICAÇÃO ALÉM DOS MEIOS DE MASSA ....................................... 59
2.2 UM PONTO CENTRAL: MEDIAÇÃO E MIDIATIZAÇÃO .............................. 65
2.3 COMUNICAÇÃO NOS PROCESSOS MIGRATÓRIOS ................................ 73
3 O PANAROMA SOCIO-HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES .............................. 78
3.1 A SOCIOLOGIA DA MIGRAÇÃO E SUAS PERSPECTIVAS MACRO E
MICRO ..................................................................................................... 78
3.1.1 As teorias microssociológicas da migração .............................................. 80
3.1.2 As teorias macrossociológicas da migração ............................................. 81
3.2 HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES, O BRASIL E A DIÁSPORA HAITIANA .... 83
3.2.1 Imigração histórica no Brasil .................................................................... 86
3.2.2 A negociação da identidade no Brasil ...................................................... 88
3.2.3 Imigração no Paraná ................................................................................ 89
3.2.3.1 A Curitiba moderna: cidade migrante ..................................................... 92
3.2.4 Imigração no Brasil contemporâneo ......................................................... 93
3.2.5 A diáspora haitiana ................................................................................... 96
3.2.6 A relação Brasil-Haiti ................................................................................ 99
4 METODOLOGIA DE PESQUISA .................................................................. 102
14
4.1 A HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE (HP) ........................................ 103
4.2 QUESTÕES DA PESQUISA APLICADAS À METODOLOGIA .................. 108
4.3 TÉCNICAS DE PESQUISA ........................................................................ 109
4.3.1 Técnicas de coleta .................................................................................. 109
4.3.1.1 Observação participante ...................................................................... 110
4.3.1.2 Entrevista semiestruturada ................................................................... 111
4.3.2 Técnica de análise .................................................................................. 111
4.4 ORGANIZAÇÕES DE APOIO .................................................................... 113
4.4.1 Associação dos Haitianos de Curitiba .................................................... 113
4.4.2 Cáritas Brasileira .................................................................................... 113
4.4.3 Casa Latino-Americana (Casla).............................................................. 114
4.4.4 Igreja Batista Pompeia ........................................................................... 115
4.4.5 Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PR) ........................................... 115
4.4.6 Pastoral do Migrante .............................................................................. 115
4.4.6.1 Recanto Franciscano ........................................................................... 116
4.4.7 Programa Política Migratória e Universidade Brasileira/UFPR ............... 116
5 ANÁLISE ....................................................................................................... 118
5.1 A INTERPRETAÇÃO DA DOXA ................................................................. 118
5.1.1 Pastoral do Migrante em foco ................................................................. 119
5.1.2 Casla em foco......................................................................................... 126
5.2 A ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA ................................................................ 131
5.3 A ANÁLISE DE CONTEÚDO COMO ANÁLISE FORMAL OU DISCURSIVA
DA HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE ......................................... 136
5.3.1 Análise das categorias ................................................................................ 140
a) Práticas comunicativas mediadas por tecnologias ................................. 141
b) Manifestações culturais .......................................................................... 151
c) Trabalho ................................................................................................. 161
d) Organizações de apoio ........................................................................... 167
5.4 INTERPRETAÇÃO/REINTERPRETAÇÃO OU INFERÊNCIAS ................. 179
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 189
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 194
APÊNCIDES ........................................................................................................... 202
ENTREVISTAS DO TIPO NÃO QUALIFICADA ...................................................... 203
ENTREVISTAS DO TIPO QUALIFICADA ............................................................... 276
15
INTRODUÇÃO
A partir de uma visão panorâmica, global, distante do espaço empírico sobre
o qual esta dissertação se detém, a imagem que dá início à pesquisa foi vista por
milhões de pessoas em dispositivos midiáticos por todo o mundo: uma embarcação
em alto-mar. Não se trata de um transatlântico com um comandante e uma
tripulação treinada, cheia de turistas a bordo, mas uma embarcação rude, lotada de
indivíduos abandonados no Mar Mediterrâneo por seus “comandantes”: traficantes
de pessoas. Quem está no comando pode ser de variadas nacionalidades, adultos
ou jovens, treinados ou não. A foto, tirada do céu por um helicóptero da marinha
italiana, pode até render um prêmio de fotojornalismo em escala internacional, mas a
quem se estende o prêmio do deslocamento humano em situações tão adversas?
No rosto de cada um desses refugiados, que se lança ao mar que separa o
Sul do Norte do mundo, transparece um misto de medo e de esperança por um
futuro incerto, em um país desconhecido, ao mesmo tempo em que se delineia o
alívio pela fuga da morte naquilo que Tönnies chamou de Heimat, ou terra natal. O
resgate feito pela marinha italiana, comumente na calada da noite, é a luz que esses
refugiados anseiam para começar uma nova vida. A partir daqui o problema passa a
ser global: a mídia filma, fotografa, entrevista. O mundo político pondera sobre as
fronteiras da solidariedade com relação aos imigrantes ilegais e é acompanhado por
diversas vozes de uma comunidade populacional que fala várias línguas. Ao chegar
ao centro do mundo, a periferia é descoberta: a intensificação dos fluxos humanos
acontece ao redor de todo o globo (CASTELLS, 1999), inclusive entre países
subdesenvolvidos. O “globo está globalizado”, mas, e a cultura do refugiado, e este
transeunte marítimo, que mundo a ele é dado?
A partir desta narrativa imagética, da chegada de refugiados africanos e
asiáticos à Europa pela via que gerou quase 4 mil mortes até setembro de 20151,
fartamente noticiada pelos jornais do mundo inteiro, esta dissertação se inicia
efetivamente com as justificativas, motivações e dados que acompanham este
fenômeno tão antigo, o migratório, revivido agora na sociedade midiática e em rede,
1http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/entre_mortes_e_desaparecimentos_mais_de_3800
_refugiados_nao_concluiram_a_travessia_do_mediterraneo.html
16
não só no espaço geográfico anteriormente narrado, mas também nas Américas,
ampliando-se o olhar para o Sul do mundo com o fluxo intenso de haitianos ao
Brasil, especificamente à Curitiba, capital do Paraná, onde se situa empiricamente
essa pesquisa.
Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPR, a
dissertação situa-se na interface entre a área da comunicação e os estudos dos
fluxos migratórios contemporâneos, percebendo-se tais fluxos como processo
político e fenômeno sociocultural e que, por isso, interagem constantemente com os
processos comunicativos na sociedade. Desta forma, compreender que os fluxos
migratórios compõem o universo de ressignificações culturais na sociedade é o
primeiro passo para podermos posicionar a pesquisa na linha de Comunicação,
Educação e Formações Socioculturais deste Mestrado.
A escolha da relação entre comunicação e migrações parte do contato do
pesquisador com organizações sociais vinculadas ao tema e pelo impressionante
fluxo migratório que o mundo e o Brasil têm vivido ao longo dos últimos anos. As
crises econômicas, os conflitos armados, as perseguições étnicas e religiosas e os
desastres naturais acentuam-se como as principais causas de tais fluxos.
Se no mundo os deslocamentos forçados atingiram, em 2013, a marca de
51,2 milhões de pessoas, o mais alto índice desde a Segunda Guerra Mundial, como
afirmou documento produzido pela Agência da Organização das Nações Unidas
para Refugiados (Acnur/ONU) em 2014, o estudo de alguns aspectos
comunicacionais dos deslocamentos de haitianos para o Brasil constitui a opção
desta pesquisa por estarem diretamente relacionados a esse fenômeno da
contemporaneidade.
O Haiti, que foi devastado por um terremoto em 2010 – além de ter
enfrentado dois furacões em 2012 – tem no Brasil o principal parceiro na sua
reconstrução social e estrutural, o que culminou no grande número de nativos
aportando nas fronteiras brasileiras. A nação brasileira, que tem a coordenação geral
das tropas militares da ONU responsáveis pela reestruturação do país caribenho,
mantinha ainda em 2014 um número de 1,2 mil militares nacionais no Haiti pela
Minustah, uma estratégia que já custou ao país 2,11 bilhões de reais desde as
primeiras ações em 20042. A Minustah, que significa “missão de paz”, é uma das 16
2 http://www.un.org/en/peacekeeping
17
operações militares da ONU no mundo. Localizada no Haiti, a operação mantinha
em 2013 o posto de maior concentração militar entre as tropas da ONU e é
coordenada pelo governo brasileiro em sua tentativa de ocupar uma das cadeiras do
Conselho de Segurança do organismo internacional, à medida que obtivesse
sucesso na preparação da polícia haitiana para ser a principal força de segurança de
seu próprio país3.
Firmada essa cooperação entre o Brasil e o Haiti, o primeiro país avançou
sua estratégia de relações internacionais ao conceder ao segundo, em 2012, vistos
humanitários, que facilitam a entrada de estrangeiros em relação à concessão de
refúgio. Embora tenham sido estipulados 1.200 vistos por ano até o fim de 20144, o
número se elevou muito devido à entrada ilegal de haitianos pelas mãos de
traficantes de pessoas, também chamados de “coiotes”. Esse número já fosse maior,
notícia de julho de 2015 apontou que a quantidade mensal de vistos emitidos pelo
consulado brasileiro passaria de 600 para 1.700, tornando o consulado brasileiro em
Porto Príncipe o segundo maior provedor de vistos do mundo.5 Dados da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) mostram que os coiotes trouxeram aproximadamente
38 mil haitianos ao Brasil em quatro anos, com um faturamento ilegal que chegou a
60 milhões de dólares6, sendo que as embaixadas brasileiras em Porto Príncipe
(Haiti) e Quito (Equador) confirmaram a concessão de 26 mil vistos humanitários aos
haitianos7. Dados de 2015 também demonstram que, apenas entre janeiro e maio do
referido ano, chegaram 7 mil haitianos, número que ultrapassa muito a regulação da
entrada permitida pelos vistos humanitários. Com a constante chegada dos haitianos
ao Brasil, o governo concedeu a 43.800 deles o visto de residência permanente no
Brasil, de forma a facilitar o acesso ao mercado de trabalho e serviços públicos8.
3 http://www.cartacapital.com.br/revista/811/ha-dez-anos-no-haiti-brasil-vive-impasse-8874.html.
4 http://www.brasil.gov.br/governo/2013/10/prorrogada-concessao-de-visto-especial-a-haitianos
5 http://www.ebc.com.br/noticias/2015/08/senador-do-acre-pede-providencias-para-frear-imigracao-
ilegal-de-haitianos
6 http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/05/23/coiotes-trouxeram-38-mil-
haitianos-ao-pais-em-4-anos.htm
7 http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-08/concessao-de-visto-humanitario-
haitianos-e-prorrogada-ate-2016
8 http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/11/brasil-autoriza-visto-de-residencia-permanente-
para-43-8-mil-haitianos
18
A constante chegada dos haitianos ao Brasil tem diversas causas de
repercussão midiática, como a imagem internacional de um governo popular no
poder e a projeção do país como “canteiro de obras” de grandes eventos, a exemplo
da Copa do Mundo da Fifa, realizada em 2014, e das Olimpíadas de Verão de 2016,
culminando no interesse dos imigrantes em buscar empregos no país que contribui
para a reconstrução de seu país de origem. Somam-se a essas questões a
impossibilidade do Haiti em oferecer emprego a toda sua população depois das
tragédias naturais, das periódicas crises políticas, geradas após o período de
colonização francesa, e a pobreza histórica, fatos que fazem da mão de obra
haitiana no Brasil um dos grandes fomentadores do Produto Interno Bruto (PIB) do
país caribenho. Dados de 2012 apontam que 22% do PIB vêm das remessas
enviadas pelos imigrantes que estão no Brasil9.
Se o envio financeiro é comumente realizado para a garantia do bem-estar
dos familiares no Haiti, alguns imigrantes – em sua maioria homens – já têm feito o
inverso: trazem seus familiares para o Brasil ou mesmo, no caso, dos solteiros,
buscam construir uma família a partir do novo país10.
Atualmente, ainda que sejam elevadas as próprias migrações internas
brasileiras, especialmente de “cima para baixo” no mapa geográfico do país, e da
leva constante de sul-americanos que vêm para o país, facilitados pelo Acordo de
Residência e Livre Trânsito do Mercosul Ampliado, com destaque para bolivianos e
argentinos11, a chegada de haitianos tem sido notada, especialmente nas grandes
cidades brasileiras, pelo indivíduo comum que chega a um restaurante, visita uma
construção civil, toma transporte público ou anda pelas ruas. Pesquisa realizada em
2014 pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Ministério do Trabalho e
Emprego e Organização Internacional para a Migração (OIM), que se debruçou
sobre a imigração de haitianos ao Brasil e o diálogo bilateral, afirmou que, até 2015,
deveriam estar no Brasil 50 mil haitianos, número bastante elevado pelo curto
período da vinda desses imigrantes. Mas, já em julho de 2015 o número apontava
9 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/10/imigracao-ilegal-ao-brasil-movimenta-economia-haitiana-
pos-terremoto.html
10 http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-01/haitianos-que-moram-no-brasil-nao-
pensam-em-retornar-ao-seu-pais
11 http://oestrangeiro.org/2013/05/22/exclusivo-os-numeros-exatos-e-atualizados-de-estrangeiros-no-
brasil-2/
19
60 mil haitianos, segundo dados do Ministério da Justiça12. Nesse interim, dados de
março de 2014 apontavam que 27% dos haitianos estavam na cidade de São Paulo,
principal destino desse grupo no Brasil. Curitiba, com 6,5% desta população é, hoje,
o quarto principal destino desses novos imigrantes, atrás apenas da capital paulista,
Manaus e Porto Velho, respectivamente13 (a posição tende a cair devido à inclusão
de Santa Catarina como rota dos haitianos). Um ponto a se destacar é que essas
cidades contam com uma importante rede de organizações da sociedade civil que
tem atuado com relação à garantia de direitos humanos.
Uma dessas organizações é a Pastoral do Migrante da Arquidiocese de
Curitiba, que afirmou haver aproximadamente 13 mil imigrantes e refugiados na
Região Metropolitana da capital paranaense, sendo que cerca de 4 mil desses são
haitianos, mas o número vem aumentando, segundo informações não oficiais dadas
por diversas entidades. As organizações de apoio aos imigrantes, embora não sejam
muitas, caracterizam-se pela promoção de eventos, atividades culturais, cursos,
debates e acolhimento aos migrantes e refugiados, cedendo espaço para reuniões,
entrevistas de emprego ou doações, constituindo-se, muitas vezes, como
mediadoras entre os imigrantes e a sociedade em geral, em diversas instâncias.
JUSTIFICATIVAS, QUESTÕES E OBJETIVOS
Além de verificar o papel das organizações de apoio aos imigrantes em
Curitiba, e especialmente suas práticas comunicativas com relação aos imigrantes,
que são peça importante neste trabalho, a pesquisa busca refletir também sobre a
lógica migratória e sua relação com a sociedade midiatizada, que tem como
destaque atual a imigração haitiana no Brasil e o acentuado fluxo de pessoas pelas
fronteiras internacionais. No entanto, antes disso, é preciso fazer alguns
esclarecimentos e justificativas.
12 http://radioagencianacional.ebc.com.br/geral/audio/2015-07/numero-de-imigrantes-haitianos-nao-e-
preocupante-diz-secretario-de-justica
13 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/especiais/sonho-haitiano/haitianos-comecam-a-
desistir-do-sonho-brasileiro-dvdnp7f7bekwvkblkuzwpmmu5
20
No decorrer do texto, os termos “imigração” e “migração” serão tratados
como sinônimos, especialmente pelo uso similar que os textos acadêmicos
encontrados fazem de tais expressões, ainda que se entenda e queira se deixar
clara a diferença de que o primeiro termo trata, especificamente, dos fluxos
internacionais e o segundo, concomitantemente, está mais alinhado ao trânsito de
pessoas no interior de um mesmo país, ainda que sua designação possa ser
ampliada como afirmado abaixo:
Migrante é, pois, toda a pessoa que se transfere de seu lugar habitual, de sua residência comum, ou de seu local de nascimento, para outro lugar, região ou país. “Migrante” é o termo frequentemente usado para definir as migrações em geral, tanto de entrada quanto de saída de um país, região ou lugar. Há, contudo, termos específicos para a entrada de migrantes – Imigração – e para a saída – Emigração. Há, também, "migrações internas", para referir os migrantes que se movem dentro do país, e "migrações internacionais", referindo-se aos movimentos de migrantes entre países, além de suas fronteiras14 (INSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS, 2015).
Além desses termos existe também a expressão refúgio e a denominação
“refugiados” para determinado tipo específico de imigrantes15. De acordo com a
Convenção de Genebra – Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), “refugiado” é
toda a pessoa que:
(...) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode, ou em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, em consequência de tais acontecimentos não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (1951, p.2).
Em referência ao Haiti, a característica de refúgio poderia ser aplicada
especialmente pelo quarto movimento de diáspora que o país fez em sua história,
impulsionado pelo terremoto que assolou o país em 2010. Handerson (2015),
antropólogo haitiano, em sua tese de doutorado contextualiza esses quatro
movimentos de pessoas relacionados a processos de colonização, descolonização,
14http://www.migrante.org.br/migrante/index.php?option=com_content&view=article&id=219&Itemid=1
214
15 Segundo o Instituto Migrações e Direitos Humanos, os refugiados são assim reconhecidos pela
Convenção de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados; pelo seu Protocolo de 1967; pela
Convenção da Organização da Unidade Africana que Rege os Aspectos Específicos dos Problemas
dos Refugiados na África; reconhecidos de acordo com o Estatuto de Acnur; que receberam formas
complementares de proteção; ou que gozam de “proteção temporária”.
21
imperialismos e desastres ambientais, contextos diaspóricos que serão mais
detalhados no terceiro capítulo deste trabalho. Neste momento, acentuamos que a
leva de haitianos ao Brasil, correspondente à quarta diáspora haitiana, faz com que
esta população possa ser considerada, inclusive, na categoria de “refugiados
ambientais”. Embora a pesquisa bibliográfica ressalte uma indefinição deste termo,
destacamos o conceito da Organização Internacional das Migrações (OIM), que
afirma que os refugiados ambientais podem ser “pessoas ou grupo de pessoas que,
devido a alterações repentinas ou progressivas no meio ambiente, foram
adversamente afetadas em suas vidas e, devido às condições que se encontram,
decidem ou são obrigadas a deixar as suas casas16”.
No entanto, embora os haitianos se enquadrem na categoria de refugiados,
a política brasileira não os tem tratado dessa forma, o que tem reverberado não só
no auxílio assistencial, mas também na própria academia, que tem denominado este
deslocamento de “migração haitiana” e tais indivíduos como “imigrantes haitianos”.
Desta forma, a pesquisa também se enquadra, com relação a estes termos, ao que
já é utilizado no âmbito da pesquisa e da mídia nacional na área.
A partir do olhar de que os imigrantes e refugiados são mais do que mão de
obra barata — são seres culturais —, o enfoque ao fenômeno recairá sob a ótica dos
estudos culturais (HALL, 2013; MARTÍN-BARBERO, 2004; 2010), que compreendem
os processos sociais não de forma isolada, mas considerando que os processos de
comunicação se encontrariam nas análises da cultura, estando nela imersos,
configurando-se também como processo político, histórico e social.
Além disso, é importante perceber o contexto da globalização como pano de
fundo desta problemática, um fenômeno acelerado a partir da expansão das novas
tecnologias de comunicação e informação desde meados da década de 1970, mas
inaugurado muito antes, com a formação dos Estados-nação e, concomitantemente,
com a vitória do sistema capitalista sobre a organização da sociedade feudal.
Ressalta-se que, para examinar as questões norteadoras desta dissertação,
checando-se a premissa de pesquisa construída por meio de objetivos
estabelecidos, apresentados logo adiante, foi feita a escolha do conceito de práticas
comunicativas, evidenciando-se uma aproximação com conceitos de interação social
e midiatização. Esta, encontra-se no arcabouço das mediações (MARTÍN-
16 ACNUR; Ramos AC, Rodrigues G, Almeida GA, organizadores. 60 anos de ACNUR: perspectivas
de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011.
22
BARBERO, 2013), abrangendo assim o ambiente sociocultural em que está
elaborado o mundo contemporâneo, compreendendo-se que este está intensamente
marcado pela midiatização dos circuitos sociais de informação. O conceito de
midiatização aqui utilizado é, principalmente, aquele pautado pela visão de Braga
(2006; 2012) enquanto a interação social é pautada pela contribuição de França
(2011; 2014).
É, portanto, pela compreensão e pela intersecção entre o panorama
sociocultural em um cenário de globalização, sob o viés dos estudos culturais, e uma
abordagem comunicacional observada a partir da contribuição da midiatização e das
interações sociais, que se busca entender a relação entre migração e comunicação,
as duas grandes temáticas do trabalho. Há processos comunicacionais na própria
experiência migratória, neste caso, compreendendo a comunicação como processo
de trocas simbólicas, ou o que Russi e Dutra (2014) consideram como processos de
comunicação — não aqueles “simplesmente projetados como causa, mas como
forma de imaginar (projeção), uma forma de ser e estar nas interações com o outro”.
(2014, p.6).
Outra justificativa para a escolha do tema baseia-se em Santaella (2001),
quando a autora afirma que a pesquisa pode ser justificada por dois aspectos:
científico-teórico e científico-prático. Desta forma, pretende-se aqui refletir sobre as
contribuições que a pesquisa traz para a realidade dos estudos da comunicação e
sua relação com os estudos de migração. Alinham-se a este conceito de Santaella
três ênfases da justificativa: enquanto abordagem pessoal do pesquisador, social e
acadêmica.
A primeira ênfase é referente ao próprio interesse do pesquisador pela
temática das migrações como pauta para os direitos humanos. Considerados como
parte das minorias sociais, os imigrantes, especialmente os advindos do eixo Sul-Sul
(tipo de imigração hemisférica entre países subdesenvolvidos), representam uma
importante pauta para a militância de direitos humanos no Brasil e no mundo. Ao
abarcar também organizações representativas como a Igreja Católica e suas
Pastorais de Migrantes espalhadas pelo mundo e a ONU, especialmente com os
relatórios sobre Migrantes e Refugiados (Acnur), a ótica do imigrante no âmbito dos
direitos humanos emerge no seio da sociedade pela busca da solidariedade,
conhecimento geopolítico e doação de tempo, expressados pela vivência do
pesquisador em organizações de apoio, em Curitiba. Sendo assim, o tema avança
23
não só em direção a uma questão acadêmica, mas também a uma aproximação
vivencial.
Uma segunda ênfase, de caráter social, concerne ao aporte científico-
teórico, na medida em que a pesquisa tem potencial para colaborar com as teorias
construídas sobre o reconhecimento dos imigrantes (haitianos, no caso) como seres
culturais, dotados de expressão, a partir da compreensão da existência de
processos comunicacionais que garantam uma representação e reconhecimento
(HONNETH, 2006; 2013) deste grupo de atores sociais na esfera pública,
contribuindo para a construção de uma nova comunidade sociocultural e um espaço
marcado por fluxos de sentidos.
Fundamentalmente, é importante o reconhecimento de um mundo no qual as
fronteiras internacionais vão se rompendo, motivadas pela aceleração do processo
de globalização mais recente. Assim, como segundo ponto deste aporte social,
admite-se a necessidade dos estudos de comunicação estarem atentos a
fenômenos decorrentes deste cenário global, sendo o elevado número de migrações
internacionais, com seus processos de construção/desconstrução de identidades
culturais, um dos fenômenos a serem analisados.
Uma terceira ênfase de justificativa incide também sobre o campo científico-
teórico, mas, sobretudo, no campo científico-prático, que para Santaella (2001,
p.173) “pretende dar respostas a um aspecto novo que a realidade apresenta como
fruto do desenvolvimento das forças produtivas, técnicas, etc., ou quando se busca
uma teoria a um dado fenômeno julgado problemático (...)”. Assim, com o aumento
expressivo destes fluxos imigratórios, considera-se importante refletir sobre aspectos
da inserção dos imigrantes e sua integração na sociedade local, uma vez que
Curitiba é a quarta cidade brasileira que mais recebe haitianos, segundo fonte
anteriormente citada.
Assim, a pesquisa busca um objeto de comunicação sem estar atrelado
diretamente aos meios de comunicação, integrando-se à tendência que busca a
compreensão do objeto da comunicação e sua interação e fluxos relacionais no
cenário onde se insere, por meio de abordagens interdisciplinares. (FRANÇA, 2001).
O objeto em si, ou seja, as práticas comunicativas que compõem a relação dos
imigrantes haitianos com a sociedade, no cenário da cidade de Curitiba, contribuem
para observar a comunicação como um processo constitutivo da sociedade atual, a
24
qual chamamos também de “sociedade midiatizada” e das novas identidades
culturais que se dão em torno deste novo ambiente, midiatizado e híbrido.
A partir destas escolhas, chega-se ao objetivo geral da pesquisa: analisar
como os processos comunicativos contribuem na construção da identidade dos
imigrantes haitianos em Curitiba.
Para alcançar o objetivo geral assinalado, é necessário buscar alguns
objetivos específicos: 1) O primeiro deles corresponde a “identificar e caracterizar as
organizações que realizam trabalhos de apoio junto aos imigrantes na esfera pública
local”. Para tanto, foram feitos contatos durante o período exploratório da pesquisa,
que contribuíram não só para a construção metodológica do trabalho, mas também
na escolha e compreensão de conceitos e demandas práticas sobre a temática da
migração contemporânea. 2) Outro objetivo consiste em “verificar como se realizam
os processos de comunicação dos imigrantes haitianos em Curitiba”. O
acompanhamento com base nas técnicas de observação, especialmente das
práticas comunicativas promovidas através das organizações e dos próprios
imigrantes, contribuiu para compreender como isto ocorre, mas as entrevistas com
os haitianos serviram para aprofundar a compreensão sobre o cotidiano destes
indivíduos.
Neste ponto, é importante enfatizar as questões centrais que a pesquisa
suscita: como são construídos os processos comunicativos dos imigrantes haitianos
residentes em Curitiba no âmbito da sociedade? E a outra pergunta relaciona-se
diretamente com a incidência da midiatização na sociedade e, consequentemente,
nas práticas comunicativas dos haitianos: As práticas comunicativas dos haitianos
em Curitiba constituem-se como práticas midiatizadas?
Permeando os objetivos e a questão central da pesquisa, tem-se como
pressuposto de pesquisa que as organizações de apoio aos imigrantes haitianos em
Curitiba constituem-se como as principais fomentadoras dos processos
comunicativos dos imigrantes haitianos com a sociedade.
Os procedimentos metodológicos foram pensados para tentar confirmar ou
negar este pressuposto, total ou parcialmente.
METODOLOGIA E CAPÍTULOS TEÓRICOS
25
Tendo-se em conta os dados apresentados até aqui, a metodologia,
comprometida em descrever os processos de comunicação que se estabelecem na
atual realidade migratória haitiana da cidade de Curitiba, necessita, contudo,
aprofundar-se na análise sócio-histórica que o referencial teórico busca construir.
Desta forma, a abordagem da análise hermenêutica em profundidade se atém na
interpretação de um campo que já é pré-interpretado pelo próprio indivíduo e sua
experiência (THOMPSON, 2011), como é o caso dos haitianos e as falas que deles
foram extraídas para responder aos objetivos deste trabalho. Esta consideração da
interpretação como ponto-chave da pesquisa atribui especialmente à cultura uma
maneira de considerar as formas simbólicas, sendo elas construídas socialmente,
tornando propício o uso da hermenêutica em profundidade, apoiada nesta
dissertação pela influência dos estudos culturais e da discussão sobre a ideologia
que traz consigo.
Como um dos pontos da triangulação metodológica proposta, a análise
sócio-histórica vem acompanhada também de uma análise do cotidiano, ou o que
Thompson (2011) chama de doxa, a qual pode ser percebida no trabalho por meio
da observação simples com os imigrantes haitianos nos seus espaços de atuação,
seja em uma organização de apoio, sua morada ou um evento que participa. A partir
desta análise sócio-histórica e da doxa, foi importante definir as técnicas de coleta
de dados: a observação simples e as entrevistas semiestruturadas com alguns dos
haitianos e personagens deste movimento diaspórico em Curitiba, como jornalistas,
pesquisadores do tema e agentes das organizações, especialmente. Estes
procedimentos instrumentais constituem o segundo vértice da triangulação proposta.
Como técnica de análise dos dados, a pesquisa utiliza a análise de conteúdo
(BARDIN, 1979) para identificar os traços da identidade cultural que os haitianos
expressam em decorrência dos processos de comunicação. A escolha pela análise
de conteúdo não só foi definida pela proximidade do pesquisador com a técnica,
mas também pela contemplação da análise das interações, especialmente na esfera
do cotidiano, visto que Bardin considera objetos da vida cotidiana como linguagens
em interação com o mundo.
Se o objeto de pesquisa são os processos de comunicação, o objeto
empírico consiste nas práticas produzidas para os migrantes mediadas pelas
organizações de apoio – reforçando a checagem do pressuposto de pesquisa – e
26
também as práticas comunicativas realizadas entre os haitianos. Por parte das
organizações são analisados os formatos, temas e presença dos haitianos nos
cursos e eventos produzidos por elas, a fim de compreender este tipo de prática e as
características de identidade e reconhecimento que se exacerbam nos seus
conteúdos discursivos.
Em relação aos processos realizados pelos haitianos, a única forma de fazer
uma análise da construção da identidade cultural por meio de práticas comunicativas
é a partir das próprias entrevistas semiestruturadas, perguntando a estes indivíduos
como tais processos, com os quais se deparam cotidianamente, interferem nas
construções pessoais e coletivas.
Por fim, esta análise desemboca na interpretação/reinterpretação, última
etapa da Hermenêutica em Profundidade, a qual avança na construção de
significados adquiridos por meio das análises sócio-histórica e formal
(instrumentalizada pela análise de conteúdo).
Até chegar a este processo, a dissertação passa por três capítulos de visada
teórica, que constroem este panorama metodológico. Primeiramente, são descritas
algumas das principais características das migrações, não só a partir de
levantamento de dados, como os realizados especialmente nessa Introdução, mas
acerca da ideia da migração como fenômeno sociológico, presente nas ciências
humanas. A partir disso é importante também ressaltar as diversas formas que
configuram a diáspora haitiana, ao mesmo tempo em que o capítulo resgata a
história da imigração no Brasil, no Paraná e em Curitiba. Relacionando as diásporas
haitianas à história da imigração para o Brasil é possível visualizar o cenário atual no
país para os novos indivíduos que aportam nas nossas terras.
O cenário das migrações, além de histórico, é social e nesse quesito se
aprofunda o segundo capítulo, o qual discorre sobre a globalização em suas
características transnacionais (SOUSA SANTOS, 2002), que rompem com a ideia
hegemônica dos Estados-nação (GIDDENS, 2001), e colocam em um diálogo
híbrido o global e o local. Esta característica híbrida da globalização é uma de suas
formas de resistência (HALL, 2013) na contemporaneidade. Essa resistência à ideia
da homogeneidade global toma formatos diversos, como o que Mattelart (2002)
chama de “redes parasitárias” ou o que o próprio Boaventura de Sousa Santos
(2002) nomeia de cosmopolitismo.
27
Esta nova resistência recebe contribuição teórica dos estudos culturais, que
observam a contra-hegemonia a partir da ótica gramsciana da cultura. Neste sentido,
reforça-se no trabalho o aporte teórico-metodológico dos estudos culturais e sua
incidência sobre a construção da identidade cultural dos imigrantes haitianos que
residem em Curitiba. Se a cultura é um ponto-chave para o redimensionamento das
forças globais na contemporaneidade, as migrações cooperam neste universo ao
hibridizar o hegemônico com novas formas e modificá-lo. Ao observar este
fenômeno novo, chega-se à comunicação, considerando estas próprias interações
das culturas como formas comunicativas por excelência. A interação social é a
comunicação social neste trabalho, compreendida como um processo de produção e
compartilhamento de sentidos realizado por meio de uma materialidade simbólica e
inserido em algum contexto (FRANÇA, 2001). Com isso, podemos adentrar no
universo das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2004; 2009; 2013).
Já a escolha pelo conceito teórico da midiatização se dá pela proximidade
que esta abordagem estabelece com os estudos latino-americanos de comunicação,
que enfatizam a recepção ativa a partir das mediações socioculturais, que, por sua
vez, configuram-se como lugar de conhecimento externo do indivíduo em
confrontação a si mesmo. Essa reflexão supera a ideia puramente técnica da
comunicação, observando-a como processo social, ou o que mais adiante será
entendido como um enfoque às “mediações comunicativas da cultura” (MARTÍN-
BARBERO, 2009). Desta forma, estar nessa frente de reflexão coaduna com os
estudos culturais, pois esses incidem não só no ambiente social e nas discussões
sobre a globalização, mas se fazem presentes, neste trabalho, em suas reflexões
acerca da comunicação em meios culturais específicos, nos quais se constroem
identidades híbridas, e no interior de processos de
desterritorialização/reterritorialização. Novamente, é importante recordar que a
midiatização aparece como importante base teórica neste trabalho, pois esta se
apresenta como parte das questões de pesquisa.
28
1 ENTRE O MUNDO GLOBALIZADO E A CULTURA DAS MINORIAS
Este primeiro capítulo discorre sobre o cenário de intensa globalização
transnacional no qual as migrações contemporâneas estão inclusas. Tal relação se
estabelece a partir da ótica dos estudos culturais que, ao não excluir a estrutura
social, redimensiona o debate para a ação dos sujeitos em seus ambientes como
forma de resistência às imposições de ordenamento hegemônicas do sistema global.
Os entendimentos de hegemonia são aqui utilizados a partir da visão de Boaventura
de Sousa Santos (2002), que, por sua vez, dialoga com a teoria de Gramsci.
Se no segundo capítulo, o trabalho focará as ações comunicativas dos
sujeitos imigrantes, em especial os haitianos em Curitiba, desde já é importante
compreender a dimensão ativa e cultural destes indivíduos no novo território, sua
construção identitária e sua busca por reconhecimento, como formas de resistência.
Desta forma, este capítulo se inicia com uma discussão sobre a
globalização, considerando os sistemas dos Estados-nação como principal
característica de impulso à formação das identidades nacionais, sendo estas
questionadas pelos fluxos financeiros transnacionais e pelos fluxos humanos
transculturais. Se há na contemporaneidade uma ameaça à lógica dos Estados-
nação, os próprios fluxos que a pesquisa acentua criam novos mapas de
globalização, reconfigurando a noção do global e local, centro e periferias, norte e
sul. Este novo mapa abarca as chamadas “redes parasitárias”, que farão do local
uma frente ante a tendência homogeneizante das culturas dominantes, embora
também a elas exposto e alterado.
Sem se aprofundar nas questões conceituais geográficas/antropológicas de
lugar, espaço ou comunidade, o marco teórico da pesquisa passa rapidamente por
tais conceitos, demarcando o âmbito local como ambiente de resistência dessas
culturas em movimento, caracterizadas por Sousa Santos (2002); e pela parte
empírica deste trabalho, pelas organizações que produzem um “cosmopolitismo”
como forma de ligação entre o global e o local, sendo, portanto instâncias
intermediadoras.
O cenário da globalização é revisto por meio de sua possibilidade contra-
hegemônica e a temática da globalização se encontra no viés cultural para
29
direcionar esta nova forma de sociabilidade em que as pessoas, o capital e o Estado
se confrontam constantemente.
A segunda parte do capítulo está ligada a autores dos estudos culturais e,
por conta disso, traz alguns conceitos de Gramsci que ajudam a situar a diferença no
debate contra-hegemônico em direção ao que ele chama de “repertórios de
resistência”, substituindo a dicotomia da “luta de classes” do marxismo clássico.
Assim, passando por Gramsci e pelas origens dos estudos culturais britânicos, a
noção de cultura é trabalhada distanciada da mera estratégia de classe e das
conduções antropológicas à medida que considera o mundo universal e individual do
ser humano como característica sociológica. Esta característica de união entre o
universal e o individual se vincula a toda a estrutura sobre a qual o capítulo foi
inicialmente construído e lhe dá sequência, especialmente no que tange às questões
que tocam a esfera individual, como a construção de identidades culturais, ainda que
esta esteja amparada por um reconhecimento coletivo.
Antes de iniciar um debate mais aprofundado sobre a construção da
identidade e o reconhecimento cultural, o capítulo discorre sobre as culturas
populares, seu aspecto híbrido e sua incidência sobre o que se compreende por
culturas minoritárias, expressão que aparece no título do capítulo, justamente por
manifestar traços fundamentais da cultura migrante no cenário da pesquisa.
1.1 GLOBALIZAÇÃO COMO CENÁRIO
Na visão contemporânea sobre a globalização é predominante aquela que
enxerga as características hegemônicas deste fenômeno, como afirma Sousa
Santos (2002), mas, este mesmo autor não entende a globalização hegemônica
como única e inevitável. Sousa Santos rechaça a visão monocausal a respeito da
globalização, entendendo-a como um fenômeno multifacetado e que cria, em seu
interior, formas de resistência e alternatividades, havendo, portanto, uma
globalização contra-hegemônica em andamento. Considerar as várias
compreensões sobre a globalização é importante para tê-la como uma referência
que engloba as relações macrossociais ao mesmo tempo em que, ao percebê-la
com características contra-hegemônicas, abdica-se da ideia do “fim da história”,
30
como afirma Fukuyama (1992) — a história é que decreta a vitória da lógica global
sobre a local. Neste sentido, passamos pelas considerações da globalização
hegemônica e, adiante, pela globalização contra-hegemônica, que trará o aporte
necessário às dinâmicas culturais e seus signos de pertencimento.
Anthony Giddens (1991) elenca quatro características principais da
globalização para que seja possível entender as forças que a mantém: a economia
capitalista mundial, os sistemas de Estados-nação, a ordem militar e a divisão
internacional do trabalho. Nesta dissertação, os sistemas de Estados-nação
recebem maior destaque pela relação contraditória frente ao tema dos fluxos
migratórios e à ideia de rompimento de fronteiras. As demais características,
contudo, são elencadas abaixo, por manterem relações próximas umas às outras,
conforme argumenta Giddens.
A primeira característica – a economia capitalista mundial – se configura em
uma íntima relação com os sistemas de Estado-nação, visto que estes são os
principais centros de poder deste sistema econômico. Junto aos Estados, as
empresas de negócios, especialmente as transnacionais, podem ter grande poder
de influência na política dos países onde se encontram instaladas, mas também têm
seu poder limitado pela ausência de características militares na disputa política em
determinados territórios.
A ordem militar, como terceira dimensão da globalização, necessitaria de
análises aprofundadas em especial no que tange à industrialização da guerra, ao
fluxo mundial de armamentos e às técnicas de organização militar. Mas assim como
os sistemas de Estados-nação, essa dimensão também está subordinada à sanção
de outros Estados que limitam sua prática. O autor considera que as guerras são
parte da globalização do poder militar. Já a quarta dimensão apontada por Giddens
diz respeito ao desenvolvimento industrial, especialmente à divisão global do
trabalho, considerando que a indústria moderna se baseia intrinsecamente em
divisões de trabalho. O autor comenta:
Não há dúvida de que ocorreu uma importante expansão de interdependência global na divisão do trabalho desde a Segunda Guerra Mundial. Isto ocorreu para a realização de mudanças na distribuição mundial da produção, incluindo a desindustrialização de certas regiões nos países desenvolvidos e o surgimento dos ‘Países Recém-Industrializados’ no Terceiro Mundo. (GIDDENS, 1991, p.88).
31
Outro traço importante desta industrialização global é a difusão das
tecnologias, as quais interferem no cotidiano mais do que a esfera de produção, bem
como no contato com o ambiente, que incide sobre a sensação de se viver em “um
mundo” unificado. Giddens completa afirmando que as tecnologias de comunicação
“formam um elemento essencial da reflexidade da modernidade e das
descontinuidades que destacaram o moderno para fora do tradicional”. (Idem, p. 89).
A industrialização global na esfera da produção é um dos pontos mais
importantes da discussão acerca das migrações atualmente, especialmente quando
tratada pela opinião pública. Matérias jornalísticas sobre as migrações
contemporâneas, especialmente as que envolvem a emigração dos países
considerados periféricos em relação aos países de destino, estão comumente
ligados à ideia do trabalho e aos fluxos de pessoas em busca de melhores
condições financeiras de vida.
Dois artigos produzidos por este pesquisador, em co-autoria, analisaram as
matérias sobre imigrantes produzidas pelo jornal Gazeta do Povo17 – ligado ao
Grupo Paranaense de Comunicação (Grpcom), afiliada da Rede Globo no Paraná –
e pelo jornal Brasil de Fato18, de cunho popular e abrangência nacional. Guardando
as diferenças de abordagem e abrangência da pesquisa19, ambas as análises
demonstraram a argumentação de que a lógica dos imigrantes é mais enquadrada
pela imprensa, seja ela popular ou não, pela ótica do trabalho, carecendo da visão
de valorização cultural destes indivíduos em contato com o novo território. De forma
ampla, a crítica realizada às migrações segundo o viés marxista, em que os
migrantes, ao saírem de seu lugar de origem, e abdicando de sua vida social e
familiar, tornam-se mais vulneráveis à exploração do trabalho – é retratada
exaustivamente nas matérias do jornal popular Brasil de Fato, ao abordar a questão
do trabalho escravo. Das 17 matérias encontradas sob o tema “migração”, nas 30
edições analisadas do jornal, 8 falavam de trabalho escravo, com títulos evidentes,
como: “Escravos da moda. Quem se importa com a procedência?” e “Fiscalização
resgata haitianos escravizados em São Paulo”. Ao mesmo tempo, reconhece-se o
17 http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2014/resumos/R9-2246-1.pdf
18 http://www.e-democracia.com.br/sociologia/anais_2015/pdf/AMRX.pdf
19 Foram analisadas um maior número de encartes da Gazeta do Povo por ter uma tiragem maior e a
pesquisa restringiu-se à imigração haitiana, enquanto a análise do Brasil de Fato englobou todos os
tipos de migração, inclusive as internas.
32
direito e a importância do indivíduo ter livre trânsito, embora no domínio cultural, tal
consenso neoliberal seja muito seletivo: “Os fenômenos culturais só lhe interessam
na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da
globalização econômica”. (SOUSA SANTOS, 2002, p.49).
Mesmo reconhecendo a importância da discussão sobre a quarta
característica elencada por Giddens, não é da alçada desta pesquisa, no entanto,
entrar nas questões específicas sobre a exploração do trabalho dos imigrantes, mas
sim alcançar as nuances culturais deste fluxo contemporâneo de pessoas em um
novo território. E de todas as características da globalização apontadas pelo autor,
percebemos que é a tônica dos sistemas de Estados-nação que fortificam tal debate,
como será explicado logo adiante.
1.1.1 A globalização e o redimensionamento dos Estados-nação
Os Estados-nação e o atual processo de globalização estão diretamente
relacionados. Segundo Giddens (1991), o sistema dos Estados-nação compõe uma
das quatro dimensões da globalização e são responsáveis, junto ao capitalismo, por
condicionar a natureza das instituições modernas. Embora unidos, o sistema
capitalista resiste em respeitar os limites nacionais, colocando-se alinhado à
economia mundial e sua característica transnacional. No entanto, são justamente os
Estados-nação, responsáveis por enquadrar a sociedade em seus limites nacionais,
que contribuem na formação de “comunidades imaginadas”, conforme salienta Stuart
Hall (2013), ao se referir à ideia de que a formação dos Estados-nação foi
responsável por unificar territórios, culturas e línguas, ignorando, contudo, a
diversidade desses mesmos componentes. Ao mesmo tempo em que há a
consolidação do sistema de Estados, o intercâmbio cultural continua a ocorrer,
inclusive por meio do fenômeno das migrações, com destaque para o fluxo entre
colônia e colonizador, com claras desvantagens para os últimos. Assim Porto-
Gonçalves (2004) expõe a questão, ao destacar que:
[...] se pressupõe que as matérias-primas e a energia, fruto do trabalho das populações dos países do Terceiro Mundo, devem continuar fluindo no mesmo sentido e direção da geografia moderno-
33
colonial, ou seja, para os países e classes ricas dos países ricos ou para as classes ricas dos países pobres. [...] Toda a questão passa a residir, então, em como garantir o suprimento permanente de matéria e energia em uma quadra histórica em que o colonialismo e o imperialismo já não se sustentam moral e eticamente. (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 20).
Para o geógrafo, a ideia de que os homens são iguais, considerada a base
da revolução política da modernidade, tem enorme dificuldade para ser sustentada
no âmbito dos marcos liberais, “enorme dificuldade para se estender além dos
territórios europeus ou europeizados (Estados Unidos e Canadá), enfim, para a
América Latina e o Caribe, para a África e a Ásia. A modernidade é inseparável da
colonialidade”. (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 20).
O que parece ficar cada vez mais claro é que este movimento contrário dos
Estados-nação frente ao capitalismo é restrito, situando-se mais especificamente na
busca por uma preservação cultural nacional ainda que as forças globalistas sejam
mais fortes. Nesta relação de forças entre o nacional e o global, Giddens (1991)
afirma que a influência de qualquer Estado específico na ordem política global é
fortemente condicionada pelo nível de sua riqueza, mas os Estados não operam
apenas como máquinas econômicas: atentam-se, como “atores” em seus territórios,
preocupados com suas culturas nacionais e mantendo um envolvimento geopolítico
estratégico com outros Estados.
A dialética globalista se acentua na medida em que o Estado-nação e sua
tendência centralizadora perdem força pela expansão das economias
multinacionais/transnacionais e se veem em um ambiente de proeminência dos
mercados globais sobre os nacionais. Embora Sousa Santos (2002) afirme que o
fenômeno da regulação estatal é algo novo – especialmente experimentada no
século XIX –, a globalização vivida no último século denota um enfraquecimento dos
poderes do Estado para a ascensão das demandas oriundas do Consenso de
Washington20 e sua economia voltada ao mercado como regulador do
neoliberalismo.
Neste jogo de forças, Giddens (1991) demonstra a dialética dos Estados,
cuja legitimidade de sua soberania passa justamente pela sanção de outros
20 Realizado em 1989, o Consenso de Washington foi um dos responsáveis pela promoção do acesso
às políticas neoliberais da América Latina, caracterizado por ajustes fiscais, privatizações e abertura
comercial e econômica ao capital externo.
34
Estados, mediados por organismos internacionais e forças econômicas. Sobre isto
afirma Mattelart (2002): “O termo ‘transnacional’ que implica a existência de um
movimento de conjunto rumo à integração mundial pretende significar que existe
uma fonte virtual de conflitos e interesses das macroempresas e os territórios onde
as mesmas se instalam” (p.101). Nesta relação onde os interesses transnacionais
incidem sobre os Estados, Sousa Santos (2002) cita exemplos da proeminência dos
mercados globais sobre os nacionais, com a dominação da economia pelo sistema
financeiro e de investimentos, a produção flexível e multilocal, os baixos custos com
transporte, a alta tecnologia de informação e preeminência das agências
financiadoras multilaterais.
Este cenário pode ser considerado como aquele que Hall (2013) chama de
“pós-colonial”, cujo termo está relacionado a uma releitura do processo de
colonização que não se caracterizou apenas como a passagem do feudalismo para
o capitalismo, mas se constituiu como algo maior que o domínio direto de um país
sobre o outro: significa todo o processo de expansão e hegemonia da modernidade
capitalista europeia e que vai dar continuidade a um processo essencialmente
transnacional e transcultural.
Essa renarração desloca a ‘estória’ da modernidade capitalista de seu centramento europeu para suas ‘periferias’ dispersas em todo globo; a evolução pacífica para a violência imposta; a passagem do feudalismo para o capitalismo para a formação do mercado mundial (...). (HALL, 2013, p.123).
Esta acepção de Hall (2013) rompe com a ideia binária de “aqui” e “lá”,
“antes” e “agora”, e de que o global seria algo universal ou específico a alguma
nação. O pós-colonial diz respeito a como tais relações transversais (diaspóricas)
deslocam nações trazendo o centro para a periferia e vice-versa. O que Hall parece
deixar claro é que não se exime os efeitos de todo o processo de colonização, ao
mesmo tempo em que o deslocamento desta lógica binária incide também em uma
internalização na sociedade descolonizada. Já Porto-Gonçalves (2004, p.20)
entende que “na América Latina e no Caribe, a colonialidade sobreviveu ao
colonialismo, por meio dos ideais desenvolvimentistas eurocêntricos, ocupando os
corações e mentes das elites criollas, brancas ou mestiças nascidas na América.”
Ao compreender o pós-colonial como a fase atual do capitalismo e seu
descentramento do centro para as periferias globais, surge um tipo de mapa global
que contribui para percebermos a construção das identidades culturais que cada vez
35
menos se restringem aos limites do Estado-nação e se encontram em novos centros
e em novas maneiras de pertencer e se identificar. O questionamento que a
construção teórica busca responder adiante é: estão as identidades determinadas
pelo fluxo transnacional que se estabelece no atual formato do capitalismo? Há
alguma forma de estabelecer uma contra-hegemonia que aproveite este rompimento
fronteiriço, para se construir novas formas de sociabilidade?
1.1.2 Mapas da globalização
Uma característica marcante do caráter neoliberal da globalização é a
organização geográfica. Sousa Santos (2002) salienta que a geografia das
estruturas econômicas globais impõe uma subordinação aos Estados, especialmente
aos subdesenvolvidos, que privilegia a não-regulação estatal da economia, os
direitos de propriedade internacional para investidores e uma subordinação dos
Estados a organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio
(OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e as agências
financeiras que avaliam a situação dos Estados frente ao poder de investimento.
Mesmo que a estrutura seja global, o autor não abdica da ideia de que a lógica
econômica ainda é caracterizada por uma intensa concentração econômica e
destaca os países do Sul, Sudeste e Leste Asiático como maiores beneficiários
desses investimentos.
A discrepância geográfica entre centros e periferias produzida por tal
sistematização faz com o que o Estado não seja ameaçado mais por outro Estado,
mas, sobretudo, pelas grandes empresas em movimentos contínuos de
desnacionalização, desestatização, internacionalização. Na linha econômica, Sousa
Santos (2002) indica alguns tipos de ajustes estruturais para a “estabilização
macroeconômica”, como a flexibilização salarial, a privatização dos serviços sociais,
a expansão do terceiro setor e a pouca preocupação com a problemática ambiental.
Um dos principais exemplos de regulação transnacional considerados pelo autor
vem da área das telecomunicações, impulsionados pela ascensão neoliberal da
década de 1990:
36
As telecomunicações são cada vez mais a infraestrutura física de um tempo-espaço emergente (...) este novo tempo-espaço tornar-se-á gradualmente o tempo-espaço privilegiado dos poderes globais (...) esta forma de poder é exercida global e instantaneamente, afastando, ainda mais, a velha geografia do poder centrada em torno do Estado e do seu espaço-tempo. (SOUSA SANTOS, 2002, p.41).
Cabe salientar, no entanto, que há uma diferença entre a internacionalização
e a globalização. A internacionalização se apresenta com um “aumento da extensão
geográfica das atividades econômicas através das fronteiras nacionais”, conforme
afirmam Haesbaert e Limonad (2007, p.41), ao passo que, para os mesmos autores,
a globalização avança esse conceito implicando um grau de “integração de
atividades econômicas dispersas em escala planetária” (p.41) por meio de fluxos
contínuos de capital estrangeiro.
No âmbito desta lógica da diferença, Mattelart (2002) fala de um “novo mapa
das desigualdades” que abala a relação maniqueísta Norte-Sul para a descoberta,
por parte do Norte, dos diversos ‘Sul’ e de que no próprio Sul há um novo Norte, que
seriam as megalópoles dos países subdesenvolvidos e sua potencial mão de obra.
(p.150). Neste novo mapa está incluso o que autor nomeia de “redes parasitárias”,
também chamadas de “novos fronts planetários da desordem” e que incluem “os
fluxos transnacionais das diásporas e das correntes migratórias do trabalho, regular
e clandestino”. (p.152).
Ao falar das redes parasitárias, formuladas pelos fluxos transnacionais das
diásporas, Mattelart (2002) considera que há “fronteiras” que contradizem a ideia de
monocultura da globalização. A partir de um processo de hibridação, o sociólogo
destaca a reterritorialização a partir dos sincretismos entre a cultura que resiste e a
hegemônica, o qual ele entende por mestiçagem.
Se a mundialização/globalização é um componente da cultura contemporânea, isso não significa que ela seja a única lógica capaz de definir os destinos do planeta. A década de 80, que assistiu ao florescimento das doutrinas da globalização financeira e da padronização cultural, conheceu igualmente um movimento de ideias que sublinha a defasagem entre as forças centrípetas e aglomerantes da lógica mercantil e a pluralidade das culturas, e concebe a fragmentação e a globalização como dois fatores em tensão onde se joga a decomposição/recomposição das identidades sociais e culturais. (MATTELART, 2002, p.160).
Substituindo a ideia de “fronteiras” por “fragmentação”, Haesbaert e Limonad
(2007) também consideram que determinadas formas de resistência são
manifestadas através de desigualdades e processos de exclusão. Sobre a relação
37
entre a cultura internacional/local e a ideia de que na globalização a primeira
dominaria a segunda, citando Appadurai (1990), Mattelart (2002) nega a afirmação,
dizendo que os instrumentos de homogeneização ficam “absorvidos pelas
economias políticas e culturais locais, unicamente para serem repatriados como
diálogos heterogêneos de soberania nacional, de livre iniciativa e de
fundamentalismo onde o Estado tem um papel cada vez mais delicado”. (p.161).
Como pensar um mundo unificado se existem tantos universos paralelos?
Desta forma, Mattelart afirma que a própria Antropologia está atenta não mais
somente ao exotismo da cultura, mas também à atualidade da “diminuição” do
planeta, levando em consideração os variados mundos que perpassam as pequenas
unidades, reconstituindo-as sem cessar, dentro da mesma perspectiva do
“encolhimento” do planeta pela compressão espaço-tempo, como afirmam Giddens
(1991) e Sousa Santos (2002).
Ao ver a impossibilidade de um mundo homogêneo nas formações sociais,
políticas, econômicas e culturais, por conta de processos contrários à própria
globalização, esta pesquisa se encaminha em direção a uma abordagem conceitual
mais próxima à ideia culturalista dos estudos sobre a globalização, embora
considere importante a dimensão jurídico-política, conforme classifica Haesbaert e
Limonad (2007, p.45), pois salientam os Estados-nação e as diversas organizações
políticas como atores principais. Por outro lado, o viés culturalista traria os indivíduos
e os grupos étnico-culturais ao primeiro plano. Outro viés, com uma abordagem
minimizada neste trabalho é o viés econômico, que credita às empresas, aos
trabalhadores e aos Estados-nação – enquanto unidades econômicas – papel
central.
A aposta em uma análise pelas vias culturais adquire importância pela
apropriação deste espaço, aqui visto também pelas organizações de apoio aos
imigrantes haitianos, construídas através da formação da identidade dos indivíduos
em diáspora.
1.1.3 A relação estreita entre globalização e cultura
38
Este ponto da reflexão é estabelecido a partir das considerações que Sousa
Santos (2002) traz sobre o lugar da cultura na globalização. Se a discussão sobre o
tema pode tomar diversos rumos, é preciso escolher um foco básico para ela. Sousa
Santos indica que outras questões como a política, a econômica ou a militar
poderiam se situar no topo dos debates, mas seguindo o viés dos estudos culturais,
este trabalho pretende trazer a questão cultural como aprofundamento da temática
da globalização a partir deste primeiro cenário.
Sousa Santos (2002) traz a contribuição de Appadurai (1997), que enxerga
nos meios de comunicação, incluindo aqui as novas tecnologias, e nas migrações
em massa, os responsáveis pelo deslocamento dos indivíduos do mundo da
modernização para o mundo pós-eletrônico, tornando ambos – meios de
comunicação e migrações em massa – relacionados a um processo de “trabalho da
imaginação”, que alinha indivíduos desterritorializados geograficamente a
“comunidades de sentimentos”, que Appadurai chama de “esfera pública diaspórica”.
(SOUSA SANTOS, 2002, p.45).
Ao sugerir a pergunta ‘até que ponto a globalização indica
homogeneização?’, Sousa Santos considera que no contexto pós-eletrônico, a
imaginação é fonte de dominação dos Estados e das transnacionais, mas também é
nela que “os cidadãos desenvolvem sistemas coletivos de dissidência e novos
grafismos da vida coletiva”. (2002, p.46). Afirmando isto, é possível considerar que
mesmo com o imperialismo cultural existindo, torna-se inoportuno considerar que
haja uma cultura global advinda das várias hibridações, cuja característica de
diversificação está no próprio processo da globalização transnacional.
A contradição oriunda da globalização é expressa por Sousa Santos quando
afirma o papel duplo dos Estados-nação na promoção da cultura: ao mesmo tempo
em que promovem a diversidade cultural e a autenticidade da cultura nacional,
internamente os mesmos promovem a homogeneização cultural pelo sistema
educacional, meios de comunicação, poder judiciário e político, alinhados a valores
hegemônicos.
Sousa Santos (2002) ainda enfatiza que é necessário identificar as formas
culturais parciais enquanto formas globais, que controlam a dinâmica global por meio
de um discurso do global. Sendo assim, constata-se também que com a abertura
transfronteiriça aumentam as formas de solidariedade e de ecumenismo, ao mesmo
tempo em que as manifestações de intolerância e xenofobia se fortalecem (2002,
39
p.88). Da mesma forma, Giddens (1991) comenta sobre a reação nacionalista que
pode ocorrer em contrapartida à globalização, afetando os Estados-nação. (p.77).
1.2 A GLOBALIZAÇÃO AMPARADA PELO MULTICULTURAL
Ao perceber as relações sociais e culturais como um componente novo no
que Sousa Santos (2002) chama de “sistema mundial em transição”, este trabalho
se encaminha para aprofundar a análise na perspectiva de uma globalização de
caráter contra-hegemônico, que por meio de culturas de resistência e hibridizações,
redimensiona o caráter homogeneizante da globalização, configurando-o como um
momento de transição da história, assim como outros.
O autor português aqui tomado como uma das principais referências do
capítulo apresenta duas intencionalidades que considera falaciosas: a do
determinismo de que a globalização é algo inevitável e uma segunda
intencionalidade configurada pela falácia do desaparecimento do Sul, criticando a
ideia de que a globalização dispensa diferenciações entre norte e sul, centro e
periferia. E quanto mais triunfalista é a globalização, mais se ressalta isso. Assim
sendo, ambas as questões que Sousa Santos chama de “falácias” situam a
perspectiva do olhar sobre a globalização, que aqui ganha contornos de amálgama
da miséria e desigualdades, diluindo o ponto de vista triunfalista da racionalidade, da
inovação e da liberdade em produzir progresso.
Sousa Santos (2002) observa que o sistema mundial em transição apresenta
três frentes, a saber: 1) as práticas interestatais (enquanto protagonistas da divisão
internacional do trabalho); 2) as práticas capitalistas globais (os agentes
econômicos); 3) e as práticas sociais e culturais (fluxos de pessoas e culturas,
informação e comunicação). O que vem a distinguir o sistema mundial em transição
para o moderno é a soma das práticas sociais e culturais, acentuadas pelo aumento
de intensidade das relações, junto às outras duas frentes. No entanto, as frentes não
são separáveis, mas formam uma espécie de “transconflituosidade” (2002, p.60),
cujos conflitos interagem de modo híbrido, até mesmo assimilando um tipo de
conflito a outra frente como, por exemplo: os problemas interestatais que demandam
40
um elevado número de migrantes refugiados e a mudança discursiva que se
estabelece no país receptor sob a categoria de ameaça cultural.
A dinâmica dos conflitos apresenta um aporte de dominação: a hierarquia.
Esta é diretamente proporcional à neutralização das desigualdades produzidas
através do discurso dominante. Para Sousa Santos (2002), as hierarquias principais
– e que dominam todas as outras – são as que configuram a relação centro/periferia
e global/local. O destaque a esta expressão da globalização é dada pelo caráter de
“trocas desiguais” (2002, p.63) que a produção da globalização emprega, fazendo
com que determinado artefato, entidade ou identidade local transpasse sua fronteira,
designando como seu outro artefato, entidade ou identidade. É possível encontrar no
cotidiano vários exemplos, como a internacionalização do ritmo do samba,
incorporado aos concursos de dança mundo afora, mas que tem origem nos morros
periféricos brasileiros, especialmente no Rio de Janeiro. Da mesma forma,
inversamente, encontramos nas gôndolas dos supermercados e no dicionário em
português o hambúrguer e o champignon; ou se delimitarmos ao espaço nacional,
as festas de São João, que extrapolam hoje os limites do catolicismo e da região
nordeste. Sobre a relação entre o local na cultura global, o autor afirma:
Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma inserção cultural específica. A segunda implicação é que a globalização pressupõe localização (...). De fato, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. (SOUSA SANTOS, 2002, p.63).
A interdependência que Santos observa entre globalização e localização traz
algumas implicações mais críticas ao considerar que o local é integrado na
globalização pela exclusão ou pela inclusão subalterna. No entanto, este local não
seria o local que existia antes da globalização (e que consegue sobreviver à
margem), e sim o que resulta da produção global da localização.
É possível dialogar as considerações de Sousa Santos (2002) com
Haesbaert (2003), o qual traz a expressão “glocalização”, significando que há um
hibridismo no processo da globalização entre processos globais e locais, o que
permite pensar em uma sobreposição de territórios ao invés de anulação dos
mesmos. Falar de desterritorialização, segundo o autor, pressupõe então discutir a
flexibilização/mobilidade e abrangências de tais territórios baseando-se em um
reforço das suas bases simbólicas. O território aqui não está acabando, mas está
surgindo uma nova forma multiterritorial dele.
41
O que é importante para compreender a ideia do multiterritorial é que as
identidades hoje são complexificadas por conta da sobreposição de territórios
expressa pelas diferentes experiências ocasionadas pela mobilidade e pela inserção
da cultural global no espaço local, que outrora eram restritas às suas formas
culturais. A principal novidade reside na forma com que estas identidades
sobrepostas redefinem os limites políticos-territoriais dos Estados-nação, alterando a
face geográfica do mundo a partir da cultura. Esta capacidade de mobilidade faz
com que o espaço nacional seja então substituído pelos espaços locais.
(HAESBAERT e LIMONAD, 2007). A substituição do nacional pelo local não impede
a dinâmica da globalização em criar fronteiras – ou fragmentá-las —, como já
expresso, mas este local não é o local que existia antes da globalização, e sim o que
resulta da produção global da localização. (SOUSA SANTOS, 2002, p.65). Sobre
isso, comenta Martín-Barbero em um diálogo com a dinâmica migratória e a
modernidade:
De ahí que el extranjero se convierta en el fantasma que acecha desestabiliza la modernidad, porque no cabe en la determinación de amigo/enemigo sino que introduce toda la trasformadora ambigüedad de e outro que vive adentro. El migrante es el extranjero que no cabe en la sociabilidad básica de la modernidad: mientras el enemigo hace parte de la sociedad, el extranjero no pertenece y por tanto desordena, perturba, enloquece la identidad fundante de lo nacional. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.25).
Desta forma, o novo local está relacionado a uma ideia transnacional de
contra-hegemonia, que extrapola seu campo geográfico para atingir um
cosmopolitismo, que para Santos (2002), é uma das formas de resistência à
globalização. Para o autor, o cosmopolitismo consiste em um movimento contra-
hegemônico, mas sem base classista, e se estabelece como organização
transnacional de resistência compondo, por exemplo, movimentos sociais, redes de
solidariedade transnacional, ONGs, etc.
Contrariamente à concepção marxista, o cosmopolitismo não implica uniformidade e o colapso das diferenças, autonomias e identidades locais. O cosmopolitismo não é mais do que o cruzamento de lutas progressistas locais com o objetivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligações translocais/locais. (SOUSA SANTOS, 2002, p.69).
Sousa Santos (2002) argumenta que, em resposta às ameaças
transnacionais da globalização se criaria um “novo protecionismo”, a partir da ideia
de “localização”. Essa ideia pode também ser nomeada como uma territorialização
42
ante a desterritorialização do global hegemônico. Desta forma, Sousa Santos não
recomenda dicotomizar o local e o global contra-hegemônicos, mas unir as
resistências devido ao fato de que “o global acontece localmente. É preciso fazer
com que o local contra-hegemônico também aconteça localmente.” (2002, p.74).
Durante o trabalho de análise e apresentação dos objetos desta pesquisa,
tal contribuição é feita com mais ênfase, mas é válido, desde já, citar como exemplo
o trabalho de solidariedade internacional que a Casa Latino-Americana (Casla),
localizada em Curitiba realiza. A organização manifesta essa forma de
cosmopolitismo ao se envolver com questões ligadas aos Mapuches, que são as
populações originárias do Chile, por exemplo, trazendo suas experiências e
necessidades como forma de defesa dos povos latino-americanos na cidade de
Curitiba, expressadas, contudo, pela presença de outros tipos de latino-americanos
e caribenhos, como os haitianos.
Compreendendo a resistência do cosmopolitismo como a busca por
pertencimento, os fluxos migratórios de pessoas e sua difícil aculturação à nova terra
contribuem para um processo de desterritorialização. Assim, Milton Santos (2012)
relaciona desterritorialização (a perda do território original, do espaço de
pertencimento e memória) à alienação, para ele, uma desculturização. Mas Santos
não condena o migrante à eterna alienação – as incitações e a capacidade criativa
do homem fazem com que ele não aja apenas de forma passiva, mas que a relação
entre o homem e o território:
manifesta-se dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que interferem reciprocamente mudando-se paralelamente territorialidade e cultura, mudando o homem. Quando essa síntese é percebida, o processo de alienação vai cedendo ao processo de integração e de entendimento, e o indivíduo recupera parte do seu ser que parecia perdida. (SANTOS, 2012, p.83).
Ao mesmo tempo em que há a possibilidade de integração, Canclini (2013)
observa a existência de estratégias na tensão entre desterritorialização e
reterritorialização, que dizem respeito a esta perda da relação natural da cultura com
os territórios geográficos e sociais, como salienta também Santos; e, ao mesmo
tempo, relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções
simbólicas. Há nesta trama de desterritorialização (alienação) e reterritorialização
(integração) um resultado híbrido que dá forma às culturas dominadas, inclusive com
o componente transcultural, que parte de uma seleção e invenção dos grupos
43
subordinados a partir do que foi transmitido pela cultura dominante. Há aqui
trajetórias que se entrecruzam e são dialógicas. Esta dialogia é evidenciada pela
hibridização cultural, que para Canclini:
aparece hoje como o conceito que permite leituras abertas e plurais das misturas históricas, além de construir projetos de convivência despojados das tendências a “resolver” conflitos multidimensionais através de políticas de purificação étnica. [A hibridização] contribui para identificar e explicar as múltiplas alianças fecundas: por exemplo, do imaginário pré-colombiano com o novo-hispânico dos colonizadores e logo com o imaginário das indústrias culturais (Bernand, Gruzinski), da estética popular com a dos turistas (De Grandis), das culturas étnicas nacionais com as das metrópoles (Bhabha), e com as instituições globais (Harvey). (CANCLINI, 2003, s/pag).
A partir deste cenário de integração, diálogo e multiculturalismos, Canclini
nos encaminha para algumas considerações sobre cultura e sua estreita relação
com temas fundamentais na lógica migratória: a identidade e o reconhecimento.
1.3 SOBRE CULTURA, IDENTIDADES E RECONHECIMENTO
Ao entrar no campo da globalização de caráter contra-hegemônico, a
abordagem dos estudos culturais faz sentido pela valorização que dá às resistências
geradas em âmbito local e global. Tais resistências propiciam a construção de
identidades sociais baseadas nos processos de apropriação cultural que revelam o
que ElHajji diz sobre uma “inequação entre os planos nacional-estatal e cultural-
identitário” (ELHAJJI, 2005, p.191).
A partir da configuração das resistências da globalização atuantes nos
localismos e sua apropriação cultural, decorrente de um processo de pertencimento,
são necessárias formas de reconhecimento para este novo indivíduo que transita em
um novo território. Embora o tema seja importante na análise das entrevistas, o tema
do reconhecimento não será tão explorado neste trabalho a fim de que a pesquisa
possa focar na ideia de identidade. No entanto, faz-se uma breve reflexão sobre o
tema para manter a necessária relação entre reconhecimento e identidade, alinhada
ainda à construção do olhar que a pesquisa faz sobre a cultura.
44
1.3.1 Os estudos culturais e a tendência gramsciana
Os estudos culturais se destacam no cenário das correntes de pensamento
científico pela forma como constroem suas linhas de raciocínio, embasadas em
distintas escolas do conhecimento, na obtenção de uma compreensão da cultura e
dos processos sociais circunstanciais ao tempo pós-moderno e da necessária
resistência das culturas populares.
O estruturalismo, seja pela variante linguística de Lévi-Strauss ou pela
ênfase marxista de Althusser, é influência para os estudos culturais latino-
americanos na medida em que denotam a presença de estruturas que não são
determinantes, mas condicionam os processos culturais (MARTÍN-BARBERO, 2014;
2013). Da mesma forma, outro paradigma para os estudos culturais é o culturalismo
– desenvolvido sob a forma do multiculturalismo nos estudos latino-americanos –
que, mesmo sendo eventualmente confundido pelo público com os próprios estudos
culturais, é anterior a esse, demarcando para os estudos culturais a força no
indivíduo como gerador de cultura, concepção deixada de lado pelo estruturalismo
clássico.
A concepção de cultura vista a partir do popular e como resistência à cultura
dominante demarca, todavia, um caráter gramsciano pelo conceito de contra-
hegemonia empregado por seus primeiros intelectuais como E.P Thompson,
Raymond Williams e Richard Hoggart, tendo estes – especialmente o último –
relações estreitas de vida com as culturas populares. A influência marxista em
relação a outras correntes filosóficas e seu debate sobre a cultura definiu os estudos
culturais como uma nova forma de perceber o pensamento de esquerda — com
cautela frente à relação determinista de Marx com relação aos mecanismos da
infraestrutura/superestrutura como determinantes da sociedade. Ao abdicar desta
determinação, os estudos culturais avançam para a compreensão das relações que
os indivíduos travam entre si e os processos sociais que se estabelecem como
ressalta Martín-Barbero: “De outro lado, a globalização e a questão transnacional
ultrapassarão os alcances teóricos da teoria do imperialismo, obrigando-nos a
pensar uma trama nova de territórios e de atores, de contradições e conflitos”. (2004,
p.217).
45
Ao avançar para esta perspectiva, se os estudos culturais surgem no
contexto do debate sobre a modernidade, a questão da globalização e o horizonte
gramsciano fazem com que o olhar recaia sobre as dinâmicas culturais que se
organizam nesta realidade e contribuem nas investigações para as experiências
sociais. Nesta nova socialidade, os processos de produção e circulação da cultura
são potencializados pelo avanço das novas tecnologias e novas formas de
sensibilidade, fazendo com que as mídias construam o público e medeiem a
produção de imaginários que, de certa forma, estão relacionadas à “desgarrada
experiência urbana dos cidadãos”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.220).
A interdependência disciplinar nos estudos culturais advém do entendimento
de que os processos sociais não são isolados, especialmente na relação dinâmica
que esses têm com os processos produtivos e a estrutura social. Os estudos
culturais dão uma ênfase importante aos meios de comunicação, embora este
trabalho não os salientem enquanto objeto de estudo na análise comunicativa, mas
sim como componentes de uma circulação midiatizada. De toda forma, Escosteguy
(2010a) afirma que, a partir desta intersecção entre processos produtivos e
estrutura, a análise dos meios de comunicação é também parte da problemática do
poder e da hegemonia, pois além de serem relativos aos processos de
comunicação, configuram-se como processo político, imerso na cultura.
A autora segue afirmando que para pensar a pluralidade das matrizes
culturais no interior de um engajamento político, não é possível explicar a análise
dos conflitos apenas pela ótica de classe, defendido por um marxismo determinista.
A visão marxista dos estudos culturais, segundo ela, recai sobre a ótica gramsciana.
“O redefinido é tanto o sentido de cultura quanto o de política, permitindo
(re)descobrir as culturas populares e a constituição de identidades. Isso em grande
medida se deve à incorporação de parte do pensamento gramsciano”.
(ESCOSTEGUY, 2010a, p.50).
A análise cultural gramsciana tem forte incidência na consideração do que é
a ideologia, que para o marxista italiano é uma relação vivida, considerando-a por
meio do conhecimento popular, cotidiano e o senso comum. Neste sentido, Gramsci
considera que “todos os homens são filósofos”, portanto, dominam uma forma de
saber, seja a linguagem, o senso comum ou a religião popular e até mesmo o
folclore. (ALMEIDA, 2008, p.5).
46
O que distingue o tratamento dado por Gramsci à ideologia é a preocupação que estrutura o pensamento popular. Assim, ele insiste que todos somos filósofos ou intelectuais, na medida em que pensamos, pois todo pensamento, ação e linguagem são reflexivos (...) e, dessa forma incluem uma concepção particular de mundo. (HALL, 2013, p.357).
Hall distingue o problema da ideologia, ao buscar diferenciar que o que se
entende por ideologia diz respeito pela “forma a qual a maioria das ideias pode se
prender nas mentes das massas e levá-las a agir” e não simplesmente a “sistemas
de pensamento”.
O problema da ideologia é fornecer uma interpretação, dentro de uma teoria materialista, de como as ideias surgem (...). Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona. (HALL, 2013, p.295).
Outro importante conceito gramsciano é o de hegemonia, que ganha
notoriedade no debate com a cultura, especialmente no que se refere a ela na
sociedade de classes. Almeida (2008) se refere à complexidade da discussão sobre
hegemonia na ótica de Gramsci, a qual é vista como uma trama de relações. Estas
relações não são apenas vinculadas ao tema macroeconômico, mas na própria
maneira de como os aspectos culturais de classe interferem na manutenção ou
questionamento da hegemonia. E sendo a hegemonia processual e não singular, a
mesma abre espaço às contra-hegemonias.
(...) a “hegemonia”, no sentido de Gramsci, requer não a simples ascensão de uma classe ao poder, com sua “filosofia” inteiramente formada, mas o processo pelo qual um bloco histórico de forças sociais é construído e sua ascendência obtida. Portanto, a melhor forma de se conceber a relação entre “ideias dominantes” e “classes dominantes” é em termos dos processos de “dominação hegemônica”. (HALL, 2013, p.322).
Os debates sobre hegemonia tiveram forte influência sobre os primeiros
estudos do Centre for Contemporary Cultural Studies na Universidade de Birmigham,
Inglaterra, a partir de pesquisas sobre os meios de comunicação, não mais vistos
como instrumentos de manipulação da massa pela classe dominante, mas como
instrumentos de reprodução cultural – e ideológica – com toda sua complexidade.
Almeida salienta que “o destaque era dado aos intercâmbios e interações complexas
entre as culturas populares e a cultura hegemônica, aos processos de incorporação,
reprodução e resistência”. (2008, p.6).
47
1.3.2 As culturas minoritárias: caminhos teóricos
É oportuno começar este tópico com a seguinte afirmação de Boaventura de
Sousa Santos (2002): “A cultura é por definição um processo social construído sobre
a intersecção entre o universal e o particular (...). A cultura é a luta contra a
uniformidade”. (p.47). Essa noção de cultura foge à ideia romântica que diferencia a
cultura da civilização, na qual a primeira tem um caráter quase tribal, assim como
sugere a Ilha de Sahlins21; e a ideia de civilização, que diz respeito ao que Eagleton
(2011) dicotomiza entre a cultura do outro e a minha: “Cultura, em resumo, são os
outros”. (p.43). É sempre o “outro” o diferente, o étnico. Sendo assim, definir o
próprio mundo da vida – e não o do “outro” – é arriscar a relativizá-lo. Para além
destes termos, a cultura aqui é vista como parte da natureza humana e, por isso, é
uma construção social que interage entre o indivíduo e o mundo a sua volta, como
afirma Sousa Santos. Eagleton estreita ainda mais a relação de cultura e natureza
ao afirmar que “a natureza produz cultura que produz a natureza” (2011, p.14). Um
exemplo claro disso pode ser dado pela cidade, que é o meio ambiente (natureza)
modificado pelo homem, mas que acaba por transformar a própria vida do homem,
seja pelo modo de produzir, transportar-se, relacionar-se.
Desta forma, a cultura não só afeta o universal, mas também o particular,
sendo ela transformada também nesta relação. E a relação do homem para a cultura
é tão importante que a própria ideia de cultura sugere a necessidade de algo além
da natureza, porque evoca algo “inatural” que só o ser humano pode alavancar,
diferente dos outros seres vivos. Na cultura há política e história, e também teologia.
(EAGLETON, 2011).
Outra consideração importante é a de Raymond Williams (1981), um dos
precursores dos estudos culturais britânicos, que afirma compreender a cultura como
constitutiva dos processos sociais não apenas refletindo-os ou representando-os.
Assim, a cultura adquire um aspecto amplo, a ponto de Eagleton (2011) afirmar que
21 O livro “Ilhas de História” (1985), de Marshall Sahlins, é um dos clássicos da antropologia e narra a chegada do capitão Cook com suas tropas britânicas às ilhas do Havaí e Nova Zelândia e a relação discrepante entre culturas. Sahlins deixa evidente sua preocupação em demonstrar que os fatos culturais influenciam a história vivida, em uma relação entre teoria e prática. A prática acontece mediante uma cultura construída e a história também acaba se modificando.
48
não existem instituições não culturais. Esta afirmação diz respeito ao pessimismo
apresentado por Eagleton sobre a cultura e a crise que ela carrega, ao perder a
característica universalista e se fragmentar em subculturas, em identidades
específicas. Eagleton critica, inclusive, a ideia de comunitarismo, em que subculturas
se “acossariam” às subculturas vizinhas, encorajando o sistema dominante ao
perceber que tem “uma coleção heterogênea de adversários desunidos” (2011,
p.66).
Essa crítica, embora pareça rígida demais à ideia de cultura, está
relacionada à necessidade que diversos autores aqui expostos arguiram sobre a
relação entre globalismos e localismos. No entanto, mesmo entendendo que a
perspectiva de Eagleton possa estar inserida na ideia de que uma comunidade de
imigrantes lutaria por melhores condições de vida para si, ao mesmo tempo em que
não estaria atrelada a outras causas ou mesmo a outros imigrantes, a característica
universalista da cultura parece, neste sentido, arriscada e insuficiente neste estudo.
O trabalho se aprofunda, assim, em conceitos de Stuart Hall (2013) para
posicionar a cultura, retomando novamente a noção de pós-colonialismo, que sugere
tornar inválida a lógica do absolutismo étnico, transformando colônias em regiões
desde sempre diaspóricas. Assim, o “outro” passa a ser um ente importante para
explicar as temporalidades e diferenças. Ao partir da ideia de crítica da cultura como
civilização, a unicidade da cultura teria a ver com a exterioridade constitutiva deste
“outro”, colocado na lógica da exclusão e da patologização dentro deste discurso
unificado.
Ao falar da condição diaspórica, Hall (2013) afirma que nestas condições “as
pessoas geralmente são obrigadas a adotar posições de identificação deslocadas,
múltiplas e hifenizadas”. (p.84). E mesmo os mais tradicionais, ao voltarem para
suas cidades de origem seriam considerados como forasteiros. A exemplo disso cita-
se a relação dos asiáticos que se consideram britânicos, sem perder traços de sua
cultura ou religião, ou Góis, judeus americanos, considerados “diferentes” pelos
judeus que vivem em Israel. Neste sentido, pergunta-se: o que se espera dos
haitianos vindos ao Brasil? Serão eles, anos depois, “os brasileiros”, quando
voltarem a sua terra de origem com seus filhos ou netos brasileiros (de fato)?
Nesse ponto, é interessante examinar a ideia de “transgressão” ligada ao
“diferente” (HALL, 2013; BHABHA 1998; DERRIDA, 1991). A transgressão aqui se
funda na ideia bakhtiniana de “carnaval”, em que as categorias simbólicas de
49
hierarquia e valores são invertidas. Na verdade, em Bakhtin, em seu “carnaval” não
é feita uma troca propriamente dita, mas sim é a pureza desse binarismo que é
transgredida. Assim: “O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da ordem
hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas
aquelas formas impuras e híbridas do ‘grotesco’; revelando a interdependência do
baixo com o alto e vice-versa (...)” (HALL, 2013, p.249). O baixo passa a ser
compatível e não o contrário. Também não é lugar de desejo nem imagem refletida
do outro. É outra figura, relacionando-se com o diferente.
Sobre a “diferença”, Derrida (1991) utiliza o termo la différance, um
neografismo, cuja presunção é apresentar uma crítica à tradição ocidental escrita,
em prol da oralidade, marca da socialidade latino-americana. (RIBEIRO e LOPES
DA SILVA, 2015). Hall (2013, p.67), citando Derrida (1972), caracteriza este termo
como um sistema em que “cada conceito está inscrito em uma cadeia ou um
sistema, dentro do qual ele se refere ao outro e aos outros conceitos, através de um
jogo sistemático de diferenças”. O significado da diferença não pode ser fixado,
apresenta-se sempre em processo que dispensa a ideia do “outro” e, por isso,
rechaça também a noção de “superação” da dialética totalizante. (Idem).
Esta ideia está relacionada com o dito anteriormente a respeito dos
conceitos de Gramsci e da substituição da luta de classes no âmbito cultural. Tais
reflexões acarretam em uma definição ampliada de ruptura social, cuja expressão
substitui a “luta de classes” para a noção de “repertórios de resistência”, que segue
uma ótica de análise do “equilíbrio nas relações de força”, conforme Gramsci
desenvolve em sua análise da luta hegemônica. (HALL, 2013, p.252).
Sobre as estratégias de diferença e os repertórios de resistência, Hall (2013)
admite haver um desvio ou tradução das formas globalizantes a partir da base,
constituindo-se em um tipo de localismo que não é particular, mas surge dentro do
global, de modo muito parecido com o que afirma Sousa Santos (2001) e a ideia de
globalismo: “Esse ‘localismo’ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a
sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo
panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus
estabelecimentos culturais”. (HALL, 2013, p.68).
Antes de entrar na ideia de cultura minoritária, Hall (2013) indica algumas
pistas sobre a cultura popular, pois dizem respeito à cultura do povo em uma relação
dialética à cultura dominante. E se o processo de hibridização cultural, fomentado
50
pelas migrações contemporâneas, que afetam os Estados-nação e a globalização
transnacional e suas respectivas formas culturais, são a tônica deste trabalho, é
necessário falar da cultura popular como símbolo da contra-hegemonia no âmbito da
cultura. Hall (2013) vai buscar explorar o termo “popular”, trazendo a dimensão da
indústria cultural ao afirmar que parte do “popular” está integrado à cultura de
massa. Em segundo lugar, Hall critica a defesa de uma autêntica cultura popular,
abdicando das relações de poder cultural, expressos pela dominação e
subordinação, seguindo as considerações que Eagleton (2011) faz sobre a cultura
também, pois tal modo “autêntico” de ver a cultura popular dificulta sua inserção
cultural. Assim, Hall critica tanto o caráter autônomo quanto encapsulado da cultura
popular, ressaltando que a dominação cultural influencia o povo, sobretudo porque
este não é um ente isolado. É uma luta desigual, inclusive, mas há pontos de
resistência em uma espécie de “dialética da luta cultural”, com recusas e
adaptações. Não é interessante aqui ver a cultura como algo inteiro e coerente. Não
há pureza e nem corrompimento quando as culturas são profundamente
contraditórias.
O autor retoma a questão ao afirmar que não existe relação direta entre uma
classe e uma forma particular de cultura porque não existem culturas fixadas e
isoladas. As culturas de classe se entrecruzam, sobrepondo-se. O “popular” se
refere à aliança de classes e forças que se constituem nas “classes populares” em
oposição à outra cultura. A natureza da luta política é na “constituição” das classes e
indivíduos enquanto força popular. (2013, p.291).
Compreendendo a cultura popular é possível entrar na conceituação de
cultura minoritária, viés deste trabalho, pela abordagem do migrante pela via cultural.
É possível relacionar cultura popular e minoritária, pois uma das características das
minorias é a luta contra-hegemônica, segundo Muniz Sodré (2005), cuja minoria
lutaria contra tal poder sem objetivo de tomada deste poder por armas. No entanto,
não concordamos plenamente com Sodré, que considera o Ocidente enredado por
tecnocracias e que a mídia seria o principal território de luta.
Minoria não pode ser aqui considerada uma questão quantitativa, pois os
indivíduos que fazem parte desta cultura são comumente grupos populosos
numericamente, como, por exemplo, os negros no Brasil, ou mesmo a população de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT).
Pensando na democracia, o conceito de minorias tem característica de ser uma “voz
51
qualitativa” (SODRÉ, 2005, p.11). Neste sentido, ser uma voz ativa e poder intervir
em instâncias de poder assumindo lutas sociais faz com que a minoria seja movida
por um “impulso de transformação” (p.12), sem, no entanto, ser um coletivo idêntico,
mas a partir de “um fluxo de mudança que atravessa um grupo, na direção de uma
subjetividade não capitalista” (p.12).
Ao considerar a minoria como um fluxo de mudança, Muniz Sodré (2005)
utiliza a expressão “lugar” para designar a ideia de transformação, passagem. No
entanto, o lugar geográfico cede referência ao lugar como “topologia”, que o
compreende como “um campo de fluxos que polariza as diferenças e orienta as
identificações”. (p.12).
Desta forma, sugere Sodré (2005), um “lugar minoritário” diz respeito a um
lugar de conflitos, fermentação social e cujo conceito de minoria é um “lugar onde se
animam fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder”.
(p.12). Assim, é possível afirmar que o imigrante seria mais um lugar do que um
indivíduo definido puramente por seu local de origem e local de morada, pois requer
mais do que uma condição de existência determinada, mas uma tomada de posição
junto a um grupo em um universo de conflitos, mediada pela própria subjetividade.
A concepção construída aqui sobre minoria faz situá-la no campo da contra-
hegemonia, como voz dissonante e a substituição do consentimento pelo
reconhecimento — a abordagem de Axel Honneth (2006; 2013) sobre
reconhecimento se relaciona estreitamente com esta dimensão coletiva das minorias
de Sodré. Já Sousa Santos relaciona o conceito à ideia de multiculturalismo, que
abarca as mais diversas culturas minoritárias, O autor diz:
Finalmente, no campo das práticas sociais e culturais transnacionais, a transformação contra-hegemônica consiste na construção do multiculturalismo emancipatório, ou seja, na construção democrática das regras de reconhecimento recíproco entre identidades e culturas distintas. Este reconhecimento pode resultar em múltiplas formas de partilha – tais como, identidades duais, identidades híbridas, interidentidade e transidentidade – mas todas elas devem orientar-se pela seguinte pauta transidentitária e transcultural: temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. (SOUSA SANTOS, 2002, p.75).
Na citação, Sousa Santos (2002) vincula o multiculturalismo à própria ação
contra-hegemônica, mas constantemente sob um olhar para a dimensão global,
conforme colocado no início deste tópico ao se falar do entendimento de que a
cultura se constitui entre o particular e o universal. Também considera Hall:
52
A questão multicultural contribui para desconstruir incoerências do Estado liberal, como, por exemplo, o crédito à neutralidade do Estado estar associada a uma distinção entre o público e o privado, quando hoje, “em toda parte, ‘o pessoal’ tornou-se ‘político’” (HALL, 2013, p.89).
A cultura minoritária, através do seu “lugar”, como explica Sodré, também
se estabelece a partir desta lógica de identificação em uma tomada de posição que,
mais do que classes, alcança “repertórios de resistência”, como afirma Gramsci,
estabelecendo formas de partilha que acenam para a construção das identidades e,
que, somada a luta por reconhecimento, caracterizam a dinâmica cultural dos
processos de midiatização que a pesquisa busca enfatizar.
1.3.3 Identidades e reconhecimento
Para entrar na discussão sobre identidades e reconhecimento é preciso
pensar que os processos migratórios desconstituem o conceito da identidade
nacional pelo rompimento de fronteiras nacionais, contribuindo também para a
desestabilização de alguns costumes e práticas que configuram a noção de
identidade. Aproveitando o ensejo, Ribeiro e Lopes da Silva (2015) acentuam a
abordagem sobre hibridização de Canclini:
Nesse contexto, García Canclini (2003) diz que a ideia de hibridização cultural está colocada já na transposição das fronteiras e será percebida pelo processo transcultural, que caracteriza a expressão das culturas. Isso determinará uma construção identitária sempre em trânsito, na qual a cultura desterritorializada buscará seu “não lugar”, ocupando de maneira incisiva um novo locus de expressão. (RIBEIRO e LOPES DA SILVA, 2015, p.5).
Os autores, ao enfocarem nas relações da América Latina, afirmam que as
fronteiras se expressam como um lugar onde as culturas se dão de forma desigual e
as características híbridas das identidades pós-modernas, as quais serão tratadas
mais adiante, constituem-se como base para uma discussão sobre as diversidades
que surgem no interior desses espaços de poder, mas que são questionados a partir
dessas diferenças. (RIBEIRO e LOPES DA SILVA, 2015).
Ao seguir esta linha de identidades híbridas decorrente deste tempo pós-
colonial, é necessário fazer uma crítica à argumentação do liberalismo a favor de
53
uma “identidade individualizada”, que implica a unicidade entre cidadão-indivíduo e,
sobretudo, ao ideal de autenticidade dos mesmos. Esta percepção parece
demonstrar a dificuldade dos liberais na compreensão da ideia de
grupos/comunidades porque “o problema está em reconhecer o valor das diferentes
culturas, que remete sempre a um conjunto de pessoas, a uma comunidade”.
(BARBALHO, 2005, p.31). Ao mesmo tempo, Barbalho, utilizando-se das
considerações de Charles Taylor, afirma que a condição humana é dialógica,
estabelecendo as identidades que, mesmo sendo individuais, só surgem mediante a
negociação com outras identidades. De forma aproximada, Habermas afirma que as
identidades se dão intersubjetivamente e a individualidade se dá mediante
processos de socialização. (BARBALHO, 2005).
A partir daqui a teoria do reconhecimento, de Axel Honneth (2006; 2013)
ganha influência na relação da construção das identidades neste tempo de
identidades múltiplas e fragmentadas. Honneth é um filósofo da terceira geração da
Escola de Frankfurt e que se debruça na ideia de que a sociedade poderia ser mais
bem explicada a partir do conceito hegeliano de “luta por reconhecimento”. Nota-se,
contudo, uma mudança estrutural da sociedade tradicional para a sociedade
moderna, em que os valores de status, muito mais ligados à tradição e às
hierarquias, são menos importantes do que as realizações individuais e a
capacidade de locomoção social do indivíduo.
Nesta transição, Honneth observa uma individualização social que não pode
ser negada, mas que, ao mesmo tempo, comporta um nível de solidariedade a
valores que formam a totalidade da autocompreensão cultural de uma sociedade.
Assim, ao mesmo tempo em que a individualização é característica, a necessidade
de relacionamentos faz com que a atuação de indivíduos em uma vida em
comunidade necessita ser mensurada conforme uma avaliação intersubjetiva, pois
nesta sociedade moderna a pessoa só manifesta o sentimento de valorização
quando suas capacidades são avaliadas de forma coletiva. (SAAVEDRA;
SOBOTKA, 2008). Assim, este tipo de avaliação social:
(...) faz da sociedade moderna uma espécie de arena na qual se desenvolve ininterruptamente uma luta por reconhecimento: os diversos grupos sociais precisam desenvolver a capacidade de influenciar a vida pública a fim de que sua concepção de vida boa encontre reconhecimento social e passe, então, a fazer parte do sistema de referência moral que constitui a autocompreensão cultural e moral da comunidade em que estão inseridos (SAAVEDRA; SOBOTKA, 2008, p.13).
54
Um ponto que traz viabilidade à teoria de Honneth sugere que o
reconhecimento precisa ser alcançado tanto para o indivíduo autônomo quanto para
o indivíduo pertencente a formas culturais de vida, sinalizando uma preocupação
com o contexto particular e universal da luta pelo reconhecimento. Esta relação dual
da formação da identidade por meio do reconhecimento ganha mais importância
quando se percebe a preocupação de Honneth em não idealizar o grupo em sua
forma mais positiva, ao mesmo tempo em que defende a dependência individual de
reconhecimento e a consequente busca por grupos que legitimem isso (HONNETH,
2013). Sobre isto, o autor afirma:
O quadro que resulta dessas reflexões sobre o processo de socialização humana contém a ideia de um entrelaçamento entre individualização e socialização que já permite tirar algumas conclusões sobre a importância dos grupos sociais para o amadurecimento individual. Eu havia afirmado que a internalização da relação de reconhecimento, que gradativamente se diferencia, leva ao surgimento de uma forma complexa de autorrelação, através da qual a criança aprende pouco a pouco a conceber-se como um membro competente de seu ambiente social. (HONNETH, 2013, p.64).
Certamente Honneth extrapola os limites da infância ao reconhecer a
necessidade do sujeito participar de grupos sociais, inclusive defendendo a
necessidade da repetição de experiências de reconhecimento ao longo da vida. No
entanto, da mesma forma que o grupo age sobre o indivíduo, o autor estabelece
uma relação entre ambos ao afirmar que o grupo não está livre de “dinâmicas
inconscientes”, relacionando à formação psíquica do humano e sua tendência,
durante a vida, em retomar o estado inicial de fusão – remetendo ao vínculo
materno-filial – no qual pode se sentir inseparado do sujeito. (HONNETH, 2013).
Honneth trabalha também com a ideia do reconhecimento como ideologia,
criticando a ideia de que sirva como instrumento de conformação social e,
consequentemente, domínio social. Neste sentido, o autor parte de um duplo
significado, advindo do termo francês “subjectivation”, para explicar melhor a ideia da
ideologia no reconhecimento: frente aos direitos e deveres da sociedade e seu
processo de conscientização, os homens se convertem em sujeitos conferindo a si
identidades sociais mediante formas de conformação social, o que, adverte Honneth,
significa que reconhecer alguém neste sentido é induzi-lo a uma compreensão de si
mesmo, alinhado a expectativas de comportamentos. (2006, p.130).
(…) el reconocimiento social puede siempre tener la función de actuar como ideología generadora de conformidad: la repetición continuada de las
55
mismas fórmulas de reconocimiento alcanza sin represión el objetivo de producir un tipo de autoestima que provee de las fuentes motivacionales para formas de sumisión voluntaria. (HONNETH, 2006, p.131).
O frankfurtiano discorda da ideia de Louis Althusser, de que reconhecimento
e ideologia estejam ligados, ao divergir do entendimento de que todo
reconhecimento carrega consigo a marca da ideologia em prol da ideia de
valorização da intersubjetividade, raciocínio realizado pelo francês.
(…) por reconocimiento debemos entender un comportamiento de reacción con el que respondemos de manera racional a cualidades de valor que hemos aprendido a percibir en los sujetos humanos conforme a la integración en la segunda naturaleza de nuestro mundo de la vida. (HONNETH, 2006, p.139).
A relação entre reconhecimento e identidade pode ser dada pela ideia de
Honneth (2006) de que os indivíduos só podem ter sua identidade formada quando
forem reconhecidos intersubjetivamente, e pela afirmação de Giddens (1991), de
que o oposto à confiança (termo o qual o autor se debruça profundamente para falar
do espaço-tempo e da modernidade) está relacionado à ansiedade existencial
preexistente, decorrente do não reconhecimento da identidade de pessoas e
objetos.
Assim, a noção de identidade passa pela mesma fluidez das configurações
de espaço-tempo contemporâneas, conforme salienta Bauman ao afirmar que as
mesmas são “negociáveis e revogáveis” (2005, p.17), ao revés do que foram as
formações das identidades nacionais que alocaram limites territoriais, buscando, da
mesma forma, restringir culturas. Ao olhar os dias de hoje, elucidar a questão da
identidade em relação à cultura transnacional e ao território é fundamental para
pontuar o imigrante como ser cultural e para poder esboçar traços de suas
identidades.
Com relação à questão da identidade na ótica das migrações, ElHajji (2011)
afirma que diversos autores confirmam o pressuposto que as identidades são a
soma da identidade individual (o ser único, sua pessoalidade) e da identidade
coletiva, formada pelo grupo a que pertence, localidade, valores, cultura local. No
entanto, na atual fase transnacional da cultura, condicionada por um processo de
globalização acelerada, a identidade coletiva ganha relevância na construção do
indivíduo. Mesmo sendo única, a identidade não é homogênea. Como afirma Hall
(2006), as identidades pós-modernas são múltiplas e híbridas. O mesmo diz ElHajji
56
(2011), ao explicar que “a identidade individual não é una e homogênea, mas sim
composta e compósita, polifônica e multifacetada”. (p.3).
Estas características da identidade na pós-modernidade são algo novo para
Hall. Assim, o autor distingue três momentos das identidades culturais. Primeiro, a
concepção de identidade do sujeito do Iluminismo, dedicada ao eu, de caráter
coeso, individualista e dotado de razão e ação, creditava a este indivíduo uma
característica estática frente à sociedade. A segunda concepção refere-se à
identidade do sujeito sociológico, cujo núcleo interior não é autossuficiente,
adquirindo uma prática interativa onde o eu se modifica no diálogo com o exterior.
Embora a identidade possa ser modificada, ela é única para o sujeito, ao passo que
na terceira concepção, o sujeito pós-moderno alcança a multiplicidade de
identidades, fragmentadas, tornando-se, nas palavras de Hall, uma “celebração
móvel” (2006, p.13).
Ao considerar as formações identitárias que compõem o indivíduo nesta
terceira fase, Hall (2013) acrescenta ao debate, a partir da diáspora caribenha, a
complexa situação das identidades culturais em ambientes de violação do espaço.
Sendo a identidade uma questão histórica, muitos povos são impedidos de dar
continuidade ao seu passado, pois seus locais originários não podem ser mais os
mesmos, como é o caso da capital haitiana, Porto Príncipe, destruída por um
terremoto e alterada por todos os processos sociais e econômicos anteriores e
subsequentes: “Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto
momento esquecido de nossos começos e ‘autenticidade’, pois há sempre algo no
meio (...). Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor”.
(HALL, 2013, p.30).
Assim, é de fundamental importância saber que a diversidade cultural não
pode gerar um fechamento étnico. Todas as pessoas pertencem a algum
vocabulário cultural; todos falam a partir de algum lugar e em algum lugar nutrem
esperanças movidas pelos processos diaspóricos. (HALL, 2013). E Hall afirma:
O modo como tento pensar as questões de identidade é um pouco diferente do pós-modernismo “nômade”. Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre híbrida; [...] cada uma dessas histórias de identidade está inscrita nas posições que assumimos e com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de identidade com todas as suas especificidades (HALL, 2013, p. 479).
57
A característica híbrida da cultura na socialidade moderna inverte a ordem
de manipulação ou dominação pura, da hegemonia clássica, para redimensionar o
termo ao que Martín-Barbero (2004) também chama de interpelação do popular e o
massivo. Dessa forma, como pensar as identidades nessa readequação da
hegemonia pela comunicação?
O primeiro passo consistiria em abandonar aquela concepção da transnacionalização que reduz a comunicação a um conjunto de estratagemas de imposição cultural desconhecendo o modo próprio como opera a hegemonia (...) o que, por sua vez, implica pensar a interação entre as mensagens hegemônicas e os códigos perceptivos de cada povo, a experiência diferenciada que, mediante fragmentações e deslocações, refaz e recria permanentemente a heterogeneidade cultural. Mais que em termos de homogeneização, a transnacionalização tem que ser pensada como deslocação dos eixos que articulam o universo de cada cultura. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.154).
O capítulo se encerra após passar por uma análise estrutural multicultural
que culmina em uma aproximação das características mais ligadas à relação do
sujeito com um grupo. Tanto os conceitos de identidade quanto os de
reconhecimento caminham juntos neste trabalho e trazem para o bojo da pesquisa
aquele cenário que foi presumido pelas teorias migratórias de caráter macro e
microssociológico. Ao reconhecer tais contribuições e passando pela ênfase cultural
desta trama global, adentramos agora nas reflexões sobre o objeto comunicacional
da pesquisa que, somando-se às considerações deste primeiro capítulo,
possibilitarão um aporte para a construção metodológica.
58
2 COMUNICAÇÃO MIDIATIZADA E PROCESSOS MIGRATÓRIOS
Este capítulo é organizado em três partes que interligam a relação da
comunicação e os processos migratórios, de acordo com a especificidade da
pesquisa. Ele dá continuidade à discussão sobre os estudos culturais, mas neste
momento já relacionados à comunicação e à matriz latino-americana, minimizando o
debate sobre a cultura na contemporaneidade globalizada, ponto discutido no
capítulo anterior.
Inicia-se com um breve resgate do desenvolvimento das teorias da
comunicação, do paradigma funcionalista ao paradigma dialético-marxista,
abordagem contemplada com mais ênfase nessa pesquisa. Afastando-se, no
entanto, da teoria crítica da Escola de Frankfurt, o tópico avança para uma
discussão epistemológica do objeto da comunicação distanciado da lógica dos
meios de comunicação de massa e sua influência verticalizada sobre os indivíduos
como ocorre nos estudos sobre a indústria cultural. Por essa linha de reflexão, o
texto aponta para um objeto comunicacional ligado aos processos comunicativos,
especificados nas formas de interações, especialmente a partir das contribuições de
Vera França (2001; 2014) e José Luiz Braga (2006; 2012). Ver o objeto desse modo
contribui para uma reflexão que valorize o sujeito como receptor ativo e produtor de
sentidos e possibilita que a temática comunicacional seja apropriada pela ideia de
midiatização.
A midiatização é discutida no segundo tópico do capítulo e se configura com
um dos pontos-chaves da dissertação, pois diz respeito a uma das questões de
pesquisa que se quer responder: as práticas comunicativas realizadas pelos
haitianos são midiatizadas? No entanto, antes de se entrar na discussão da
midiatização é necessário passar pela teoria das mediações. Compreendendo que
há uma relação de proximidade e não de afastamento entre as expressões, assume-
se que a sociedade contemporânea, além de globalizada, é marcada por uma
cultura midiatizada, em que, mais do que influenciada por meios de comunicação,
como a televisão ou a internet, são os tais processos de comunicação em toda sua
complexidade que perpassam os campos da sociedade atual e a estruturam.
(BRAGA, 2012).
59
Ao compreender a relação entre mediação e midiatização, o texto se
aprofunda na ideia circulação como principal componente da midiatização, o que
explica essa lógica estruturante da comunicação na cultura. E isso abarca um
processo de recepção ativa que compreende a interpretação, a apropriação e a
produção de sentidos.
Há ainda uma necessária abordagem da discussão dos campos sociais, que
explicam a estrutura da sociedade e a inserção múltipla da circulação por diversos
desses campos, inclusive o migratório, onde se situam as organizações de apoio aos
imigrantes, por exemplo.
Durante a pesquisa observa-se que a resistência e a crítica estão atreladas
a uma dinâmica coletiva, mais macrossociológica do fenômeno migratório. Neste
trabalho, o principal atributo desta crítica social está ligado à formação de redes
sociais, virtuais ou não, que compõem uma lógica de comunicação cidadã
transnacional, de caráter contra-hegemônico. Ainda neste tópico, explora-se mais
profundamente a potencialidade comunicativa que há neste processo dialético,
propiciada pelos encontros de culturas ocasionados por estas migrações.
2.1 COMUNICAÇÃO ALÉM DOS MEIOS DE MASSA
As teorias da comunicação ganham contribuições significativas a partir da
década de 1930 com a Escola Americana. Ao analisar o contexto do pós-guerra e de
disputa global, Rüdiger (2002) afirma que o ímpeto das comunicações e seus
desenvolvimentos atrapalharam a reflexão dos processos históricos/contextuais,
proporcionando uma preponderância da técnica sobre a teoria. Apesar das críticas,
a pesquisa inicial em comunicação contribuiu na profissionalização da área a partir
dos usos de suas materialidades para fins mercadológicos e estratégicos.
Influenciada por uma linha administrativa, a comunicação começa sua caminhada
teórica pelo “Período Clássico”, bastante influenciado pela Escola de Columbia
(1940-60), na qual o indivíduo era visto como um receptor passível de manipulação;
atribui-se também a este período um questionamento sobre a incapacidade de
reflexão do indivíduo como sugeria a teoria da agulha hipodérmica. O livro People’s
choice (1944), de Lazersfeld, Berelson e Gaudet, por sua vez, é porta de entrada
60
para a reavaliação das considerações acadêmicas sobre a manipulação das
massas, considerando que a eficácia da mídia está relacionada com um processo
mais complexo, que foge do raio de ação dos meios para uma predisposição do
receptor. Essa predisposição do receptor se constitui como novidade em relação às
primeiras teorias, salientando que a vontade do indivíduo em mudar uma opinião em
concordância ao que os meios de comunicação expõem é menor do que o interesse
em reforçar condutas e opiniões já existentes. (RÜDIGER, 2002).
Especialmente nas décadas de 1960 a 1980, há um desenvolvimento das
teorias funcionalistas acompanhadas da ascensão do campo da semiótica. Nos
Estados Unidos, a teoria dos usos e gratificações reformula a pergunta “qual o efeito
da mídia?” para “o que o público faz com a mídia?”. Desta forma, o receptor já não é
passivo como as primeiras teorias e o uso das mídias por parte das massas permite
determinar o significado do fenômeno. Por isso, os “usos e gratificações” também
são chamados de teoria dos efeitos limitados. É interessante notar que essa linha de
estudo está ligada às teorias de recepção discutidas atualmente na Europa, que
pouco assimilaram as contribuições latino-americanas sobre a ênfase.
Todas essas concepções situam-se no interior do paradigma funcionalista e
há nele um desenvolvimento das teorias que, tendo sua centralidade na eficácia da
comunicação e nos efeitos dos meios de comunicação, caminha em uma trajetória
que se inicia na abordagem de manipulação dos meios de massa, avança para a
ideia da persuasão midiática (influenciada pela experimentação e pela psicologia
social), chega até os efeitos limitados dos meios, considerando a influência dos
formadores de opinião, até chegar à função social destes meios, através do
funcionalismo de Talcott Parsons.
Antes de entrar nas teorias de matriz crítica, é importante pontuar que há
uma vazão entre os paradigmas funcionalista e marxista. O paradigma
compreensivo, especialmente representado pela Escola de Chicago, observa as
interações cotidianas, cujos meios estão alocados neste processo de construção da
realidade (interação). A presente pesquisa poderia ser analisada sob a ótica do
interacionismo simbólico, inclusive porque a Escola de Chicago tem importantes
contribuições à teoria das migrações, como será explicado no capítulo 3. No entanto,
prefere-se considerar esta dissertação no âmbito do paradigma marxista22, como
22 Dentro das devidas diferenças com o marxismo clássico ou o proferido pela Escola de Frankfurt.
Apoia-se aqui à matriz gramsciana, que tem sua raiz no marxismo.
61
opção crítica dos estudos culturais em consonância a uma análise
macrossociológica sobre as migrações.
Mas não só dos estudos culturais vive a teoria crítica. Pelo contrário, a
trajetória crítica das ciências sociais, aplicada à comunicação, tem uma vasta
pesquisa que assume diversas formas. Rüdiger (2002), por exemplo, salienta que na
América Latina a teoria crítica ganhou forma culturalista, mediante o questionamento
das estruturas sociais e as lutas anticolonialistas no continente, com influência da
economia marxista e da semiologia de corte estruturalista. Já na Europa, a primeira
e importante influência recai sobre a Escola de Frankfurt e a ideia da “indústria
cultural”, que vê a cultura transformada em mercadoria e abre uma brecha para uma
análise elitista da cultura.
De maneira breve, a fim de localizar a construção da comunicação nesta
pesquisa, chegam-se aos estudos culturais, que pertencem à matriz crítica, mas se
diferenciam substancialmente da “indústria cultural” frankfurtiana pelo uso e
apropriação da cultura pelas massas populares de modo que possibilite ver “as
contradições que dinamizam a complexidade cultural da sociedade de início do novo
século”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.357). Os estudos culturais dão ênfase ao viés
popular da cultura e aos fenômenos percebidos pela análise do cotidiano como, por
exemplo, as mudanças de identidade na era da globalização (RÜDIGER, 2002).
Também se opondo à Escola de Frankfurt, França (2014) reforça a influência
da teoria da hegemonia de Gramsci nos estudos culturais, ao analisar a cultura
como campo de luta e negociação. É neste campo de negociação que se constrói a
hegemonia e não no campo dominação/coerção como defendiam os frankfurtianos –
“como comprovar empiricamente a dominação?” é uma das perguntas que questiona
esta outra perspectiva de análise. Martín-Barbero (2015) contribui, neste sentido,
com uma diferenciação chave: da comunicação como processo de dominação, para,
a dominação como processo de comunicação, a partir da inferência de Paulo Freire
e Antonio Gramsci sobre a opressão interiorizada do povo latino-americano quando
“o oprimido via no opressor seu testemunho de homem23” (p.16). A respeito da
reflexão sobre hegemonia na ótica da indústria cultural, o autor aponta um
reposicionamento:
23 Tradução livre.
62
É uma complexa reorganização da hegemonia, a que materializam hoje as indústrias culturais, o que nos está exigindo conhecê-las como dispositivos-chave na construção das identidades coletivas, isto é, dos processos de diferenciação e reconhecimento dos sujeitos que conformam as diversas agrupações sociais e também as dinâmicas de indiferenciação dos mercados (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.359).
Ao pegar carona nos estudos culturais, as novas perspectivas traçadas pela
matriz crítica conferem, a partir da década de 1990, maior atenção aos sujeitos e aos
processos de subjetivação, constituição de grupos e redes, novos formatos e
convergência midiática. Os estudos culturais são atualizados com as novas formas
de uso dos produtos culturais, processos identitários e consumo, por exemplo. A
noção de “cultura midiática” ocupa o lugar da “cultura de massas”, colocando na
ordem do dia a discussão sobre as diversidades culturais da mesma forma que
questiona a centralidade da mídia na sociedade, na qual a vida cotidiana e a
produção midiática estão interpenetradas num ambiente “transmidiático” (FRANÇA,
2014).
Todo este desenvolvimento das teorias relacionadas ao campo da
comunicação não representa simplesmente uma superação de paradigmas, como é
percebido nas ciências naturais, mas demarca novas maneiras de ver o processo
social e comunicativo, considerando o desenvolvimento tecnológico e a capacidade
humana de intervenção e construção de sentidos. Muito do que esta dissertação
assume como viés comunicacional está alinhado aos estudos latino-americanos,
ligados aos estudos culturais e de recepção, mas este enfoque receberá mais
destaque quando tratarmos das teorias da mediação e da midiatização, ainda neste
capítulo.
Este trajeto exposto pelas correntes teóricas abriu espaço para ampliar o
enfoque comunicacional, compreendendo diversas formas e possibilidades de
objetos da comunicação. Uma das primeiras ênfases na discussão sobre a
comunicação é a preferência pelo termo “mídia”, ao invés de “meios de comunicação
de massa”, pois o avanço das novas tecnologias requer novas reflexões sobre
aquela “massa” uniforme e coesa que predicaram as primeiras teorias da
comunicação. Em segundo lugar, a própria ideia de que os meios de massa ou as
mídias consistiriam no único objeto da comunicação é relativizado pela incidência
dos processos comunicativos e suas características sobre os processos de produção
e circulação de informações. (FRANÇA, 2001).
63
Um dos principais questionamentos de Vera França (2001) a este respeito
versa sobre a ilusão de autonomia que os tais meios de comunicação teriam, ao
desconsiderar sua constituição pela intervenção do homem de múltiplas formas,
como a política, as técnicas, as práticas culturais e o consumo. Outra crítica de
França aos meios de comunicação como objeto está relacionada à centralidade dos
meios na sociedade, ainda vinculada à ideia da “sociedade dos meios de massa”.
Tal expressão não é sinônima da “sociedade midiatizada”, a qual está presente na
teoria da midiatização e considera centrais na sociedade os processos
comunicativos e não os próprios instrumentos e sua eficácia como define o
paradigma funcionalista.
Ao fazer um paralelo à França, Braga (2011b) afirma que é importante
manter olhos atentos aos meios de comunicação, devido ao fato de que eles
permitiram que se percebessem, objetivassem e problematizassem – mas não
constituíssem – os processos comunicacionais (se perceber “conversando”). Além
disso, Braga comenta que a mídia inaugura a tecnologia, especialmente para
veiculação de mensagens e produção de sentidos compartilháveis na sociedade.
Outra razão da importância da mídia, sugere o autor, é que “põe em causa modos
habituais de conversação social”, por meio de duas características: inclusividade
(interferência) e penetrabilidade (interação com espaços não midiáticos). É possível
haver concordância na reflexão do autor, segundo a qual a constatação de que
vivemos em uma sociedade midiática não faz dos meios o objeto da comunicação,
mas sim um fenômeno empírico.
Luiz Martino, embora aponte para os meios de comunicação como objeto da
comunicação, ressalta que os teóricos ainda não conseguiram definir este objeto,
limitando-se à visão de que são “aqueles instrumentos que servem para comunicar”
(2010, p.37). Apesar dessa visão ser questionada pela pesquisa, pergunta-se da
mesma forma a incidência de uma visão de que tudo seria comunicação, por fazer
parte da consciência do homem frente à necessidade de se comunicar (Idem). Se o
objeto da comunicação não pode ser considerado como parte da natureza humana
para não ficar perdido em meio às ciências humanas e nem visto redutivamente
pelos meios de comunicação, como pensarmos este objeto? Uma pista interessante
e que seguimos vem através de uma entrevista concedida por Braga (2009) à
Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU):
64
Acho, entretanto, que o que caracteriza o comunicacional é uma preocupação com os fenômenos da interação humana. De qualquer modo, percebo que, aí, a midiatização da sociedade é um elemento central. Independente da perspectiva com que se olhe a mídia – e há vários olhares, muito diferenciados -, esse é um objeto consensual (...). Hoje falamos da mídia em termos de processos. Não se trata de negar o “meio”, mas perceber que há processos mais difusos, a partir da mídia, que precisam ser observados. Então, a questão da midiatização aparece hoje fortemente24.
Guareschi (2013) enfatiza a importância da dimensão relacional da
comunicação, que pode compor diversos cenários: de uma pessoa com outra, desta
com uma instituição, ou de uma instituição com outra instituição. Esta defesa da
comunicação como relação está vinculada à ideia de que o indivíduo compõe uma
lógica de unicidade com o mundo a sua volta, diferentemente da ideia liberal do
indivíduo, cuja liberdade existe justamente porque ele se constitui independente de
relações.
Nossa argumentação é que só será possível garantir ao Ser Humano esses tributos de liberdade e sujeito de direitos na medida em que ele for assumido como “pessoa = relação” (...). E por relação designamos uma realidade (ser, fenômeno, etc.) cuja existência depende do “outro”. O “outro” é intrínseco a esse ser, faz parte de sua própria definição. (GUARESCHI, 2013, p.83).
Se há também uma escolha humanística pelo objeto da comunicação, pode-
se considerar a definição de França (2001), que confere destaque aos processos
comunicacionais como objeto, mas deixa clara sua percepção sobre a amplitude
desta ideia, que extrapola diversos campos do conhecimento.
A autora afirma que, mesmo atendo-se aos processos humanos e sociais de
produção, circulação e interpretação de sentidos, fundados no simbólico e na
linguagem, esta ideia, além de ampla, confunde-se com os estudos das relações
sociais, fundados no campo da cultura. Desta forma, França (2001) pensa em alguns
caminhos para tratar a comunicação, ultrapassando a ideia de transmissão, como:
processo de troca, ação partilhada, interação e prática. Neste sentido, considera-se
também a ideia de Braga (2011b), que vê o objeto da comunicação como toda
conversação situada no espaço social, ou seja, tudo em que há troca nas diversas
situações da vida social. França sinaliza para uma atenção à presença de
interlocutores e a intervenção deles segundo seus papeis; identificação dos
24 http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2477&secao=289
65
discursos e formas simbólicas de seus contextos; compreensão dos processos a
partir de um panorama sociocultural da sociedade.
Em suma, a comunicação compreende um processo de produção e compartilhamento de sentidos entre sujeitos e interlocutores, realizado através de uma materialidade simbólica (da produção de discursos) e inserido em determinado contexto sobre o qual atua e do qual recebe os reflexos. (FRANÇA, 2001, p. 16).
Esta ideia é aceita, mas pode ser somada pela consideração de Martino
(2010), que vê a comunicação como “estratégia racional de inserção do indivíduo na
coletividade” (p.33). Analisando esta coletividade na trama de uma sociedade mais
ampla do que aquela entendida pelo conceito clássico de comunidade, muito ligada
ainda aos aspectos de vizinhança, as novas formas de sociabilidade são
inevitavelmente compostas por processos comunicativos que colocam em circulação
falas, gestos e expressões dos indivíduos que fomentam o compartilhamento dos
sentidos.
Tanto Martino (2010), que considera a comunicação não simplesmente
imersa na coletividade, quanto França (2001), que coloca os processos de
comunicação como um “lugar” onde os sujeitos assumem papeis e se constroem
socialmente, caracterizam a comunicação como um campo distinto das demais
ciências humanas. Sendo lugar de realização da cultura, a comunicação será vista a
partir de agora pelo viés dos processos de midiatização, os quais promovem
circuitos comunicativos na sociedade redimensionando a lógica midiática de
emissão/recepção enquanto processos interacionais de referência. (BRAGA, 2006).
2.2 UM PONTO CENTRAL: MEDIAÇÃO E MIDIATIZAÇÃO
Ponto-chave nesta dissertação, a teoria da midiatização pode ser alinhada
aos estudos das mediações da matriz latino-americana e ser tratada como uma
teoria em construção, conforme salientam seus teóricos. Possivelmente confundida
por sua nomenclatura a uma volta de protagonismo dos meios de comunicação e
seus dispositivos técnicos na teoria comunicacional, a midiatização se apresenta
envolvida pela sociedade midiatizada e pela incidência das mídias que fomentam a
circulação de sentidos mediados pelo ambiente sociocultural. No entanto, antes de
66
discutir a midiatização, como parte da teoria das mediações, faz sentido começar
pelo mais abrangente.
As mediações ganham força nos estudos da comunicação através da escola
latino-americana, especialmente com a obra Dos meios às mediações, de Martín-
Barbero, publicada em 1987. Com uma abordagem ligada ao universo cultural, a
teoria das mediações pode ser considerada como uma vertente dos estudos
culturais na América Latina, mas acentua sobre esses a força na recepção ativa e
um deslocamento substancial dos meios de comunicação por mesclar atributos da
produção e da recepção. Tal deslocamento pode ser mais bem explicado pelo
surgimento da mídia de massa, que sinaliza uma forma eficaz de mediação junto ao
público, considerada pelas primeiras teorias da comunicação uma forma direta de
contato com o público, determinando suas atitudes. No entanto, Jesús Martín-
Barbero contribui com o “campo”25 da comunicação ao conferir ao receptor um papel
fundamental na compreensão sobre as mediações – especialmente as culturais –
que se realizam no processo comunicativo do ser humano, deslocando notoriamente
a análise comunicativa “dos meios às mediações”. (MARTÍN-BARBERO, 2013).
Para melhor definir o termo, José Luiz Braga (2012), buscando explicar a
expressão “mediação” a conceitua na sua forma básica e epistemológica: A primeira
“corresponde a um processo em que um elemento é intercalado entre sujeitos e/ou
ações diversas, organizando as relações entre elas”. (2012, p.32). A segunda
conceituação, de caráter epistemológico, trata as mediações como o
“relacionamento do ser humano com a realidade que o circunda, que inclui o modo
natural e a sociedade”. Essa concepção, ao creditar as mediações como um lugar de
conhecimento externo do indivíduo em confrontação a si mesmo, considera que não
há um conhecimento direto da realidade, pois há sempre um “estar na realidade (...)
pelas lentes de sua inserção histórico-cultural, por seu ‘momento’” (Idem).
Aproximando-se novamente da ideia de cultura para aprofundar a
compreensão sobre as mediações – que aqui são culturais – Laan Barros (2012), no
mesmo livro que Braga (2012), ressalta a contribuição de autores como Williams,
Hall e Martín-Barbero na concepção dialética da cultura, compreendendo-a como “o
estudo das relações entre elementos de um modo de vida global” (HALL, 2013,
p.128). Afastando-se da ideia que a cultura seja a soma de práticas ou costumes, o
25 Evita-se neste momento uma discussão epistemológica mais aprofundada sobre a ideia de campo,
disciplina ou área da comunicação, por isso, o termo se apresenta em aspas.
67
autor compreende as práticas sociais perpassando a cultura, o que a faz ser
constituída pela soma não só das práticas, mas pela soma do inter-relacionamento
das mesmas. E se a cultura é este conjunto de intercruzamentos de práticas sociais,
ela tem a ver com o conceito de “mediações”, porque esta, ao ser conceituada como
os relacionamentos que circundam o homem com seu ambiente externo (natural ou
não), torna possível compreender que este relacionamento é todo tempo
intercruzado por práticas sociais, especialmente por se situar em um espaço-tempo
redimensionado pelo rompimento de fronteiras.
Ao fazer essa compreensão sobre o conceito de mediações e sua
característica cultural, e ao afirmar a ideia de resistência e enfrentamento delas em
relação à potencialidade homogeneizante das mídias de massa, Braga (2012, p.33)
questiona se os termos mediação e midiatização não estariam em lados opostos, da
mesma forma que a discussão sobre o objeto da comunicação entre os meios e as
mediações.
Para esclarecer isso, Lopes (2009) ao entrevistar Martín-Barbero, obteve
uma resposta que ajuda a compreensão da questão. O autor explica que o livro Dos
meios às mediações expõe a lógica das “mediações culturais da comunicação”, que
considera “a lógica da produção, as competências do receptor, as matrizes culturais
e os formatos industriais” (p.150) ao passo que hoje seria mais plausível pensar nas
“mediações comunicativas da cultura”, que conferem protagonismo ao comunicativo
sem, contudo, creditar sua ação somente aos meios de comunicação. Neste sentido,
diz Martín-Barbero (2004, p.228): “O lugar da cultura na sociedade muda quando a
mediação tecnológica da comunicação deixa de ser meramente instrumental para se
converter em estrutural”. Como exemplo, Martín-Barbero (2015) cita as redes
sociais:
El conversar es la matriz de lo que hoy se configura en una red social, a la que se entra y de la que se sale entrelazando palabras con fotos, con retazos de música y trazos de dibujos. Y como la conversación, así es de vulnerable el hipertexto a las intervenciones de los que pueden intervenirlo para enriquecerlo o entorpecerlo, para corregirlo o emborronarlo. Y como la conversación el hipertexto permanece abierto, no se acaba nunca del todo sino que se suspende para continuarlo en otra ocasión, con otros invitados o contertulios. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.15).
Segundo Barros (2012, p.89), esta recolocação da comunicação na cultura
confere a ela um status protagonista das relações sociais e culturais, reconhecendo,
68
da mesma forma, os usos e construções de sentidos que são feitos com as mídias
nessa nova dinâmica:
O sentido não está, portanto, nos limites do composto meio-mensagem; mas, presente nas dinâmicas que envolvem os sujeitos do processo comunicacional: emissor e receptor, seres sociais, em interação com outros indivíduos, instituições e movimentos sociais. (BARROS, 2012, p.90).
Ressaltando o novo lugar da cultura na sociedade, ao considerar as novas
tecnologias mais estruturantes do que instrumentais, Martín-Barbero (2004) afirma
que com a revolução tecnológica não são modificadas as atividades da humanidade,
mas uma nova forma de relação entre processos simbólicos, formas de produção e
bens e serviços. Neste sentido, o autor coloca o campo da comunicação em três
espaços: o espaço do mundo (globalização como cenário e redes que fomentam um
tecido de um novo espaço que transforma os sentidos de comunicar e transformar o
globo em uma significação histórica); o território da cidade (novo cenário composto
de fragmentações e fluxos); e o tempo dos jovens (o novo cenário da cidade é o
sensorium que emerge, sobretudo, dos jovens). Já Braga (2012) é mais pontual e
percebe duas novidades processuais nesta nova dimensão das mediações: um
processo que é tecnológico, que resulta no maior acesso às tecnologias de
comunicação pelo grande público e o outro, um processo social, que resulta na
entrada desse novo sujeito comunicativo em um ambiente que era antes
resguardado à indústria cultural.
A redefinição de mediações e a ideia de midiatização estão muito próximas.
Ao adentrar na reflexão sobre a midiatização a partir do interior das mediações, é
possível vê-la demarcada pela mudança da sociedade dos meios para a sociedade
de midiatização, cujo meio não aparece mais como um objeto de estranhamento
social, externo ao público e que o influencia por ser este referente distinto, mas um
processo de midiatização que ocasiona “uma aceleração e diversificação de modos
pelos quais a sociedade interage com a sociedade” (BRAGA, 2012, p.35). Braga
(2009) tenta definir de um modo claro a midiatização, mesmo considerando-a um
campo em construção:
Começa-se a falar na palavra “midiatização”, às vezes, significando simplesmente a forte presença da mídia na sociedade. O que antecede essa expressão é a palavra “midiatizada”, a partir da ideia de que vivemos em uma sociedade midiatizada ou midiática. Essa ideia parte de uma ação da mídia sobre a sociedade (...). A midiatização (...) abarca processos que acontecem mesmo quando não estamos diante da mídia. A midiatização
69
não acontece só quando se está produzindo e se está recebendo informação. (2009, s/pag.).
O que se percebe é um aprofundamento das lógicas de interação, que
ultrapassam a ideia de ação de um meio ou de receptores para incluir a ambos.
Neste sentido, a ideia de midiatização defendida se distancia da ideia trabalhada por
outros importantes autores como Stig Hjarvard, que transita da “mediação à
midiatização” (2015). No entanto, até o autor reconhece a similaridade empírica
entre ambas as teorias:
A distinção entre mediação e midiatização é teoricamente e analiticamente importante, mas os próprios processos de mediação e midiatização não são empiricamente distintos, uma vez que o efeito acumulado das práticas de trocas mediadas pode representar uma instância da midiatização. (HJARVARD, 2015, p.53).
Braga (2012) aponta que a performance dos processos sociais não decorre
pela inserção das tecnologias e sua capacidade de abrangência do público, mas sim
enfoca o que anteriormente Vera França fez em sua discussão epistemológica: dar o
destaque ao campo das interações. Por isso, as midiatizações insistem em não
retornar aos meios, mas continuar nas mediações, mesmo que para um autor
renomado como José Luiz Braga, seja necessário reconhecer a dificuldade em
escolher focos de investigação e desenvolvimento de conceitos de uma linha em
construção no campo comunicacional. Afirma Braga (2009):
Parto da perspectiva de que o processo não é mera da tecnologia, como se o avanço tecnológico é que determinasse essa ou aquela mudança. Creio que o avanço tecnológico é algo socialmente determinado. Não aparece uma tecnologia desenvolvida por um inventor que está fora do mundo, fora da sociedade. São as demandas da sociedade que provocam o avanço. Não é a mídia, a televisão, que cria uma sociedade nova. É uma sociedade caracterizada por diversos eventos que precisa de processos interacionais novos, porque os atuais não conseguem dar conta do que está em efervescência. (2009, s/pág).
Aprofundando a questão da circulação e da participação de dispositivos, os
quais ele chama de dispositivos sociais, Braga apresenta uma ampla trajetória
percorrida nessa discussão e é preciso trazer de alguma forma a obra A sociedade
enfrenta sua mídia (2006), segundo a qual o autor acrescenta junto aos sistemas de
produção e recepção um terceiro sistema que ele chama de “sistema de interação
social sobre a mídia” ou “sistema de resposta social”, cuja função seria fazer circular
conteúdos através de dispositivos sociais, podendo eles ter forma de mediações,
como sistemas de representações e apropriações.
70
Esses dispositivos sociais fomentam processos de interpretação,
apropriação e produção de sentidos aos sujeitos, conferindo-se enquanto processos
de aprendizagem, que abarcam a dimensão educativa do processo comunicativo,
foco também da linha de pesquisa a qual esta dissertação está inserida. Embora a
abordagem cultural seja mais relevante e enfatizada na pesquisa, é importante
considerar que há o elemento de aprendizagem social, fundamental nos processos
de construção de sentidos, pois desloca o papel passivo do sujeito para uma
dimensão ativa e dialógica e, por isso, educativa (BARROS, 2012). A dimensão da
aprendizagem social será tratada com mais importância no próximo tópico,
relacionada à organização dos sujeitos ante a ideia de redes difusas.
Este sistema é de interação, pois o processo comunicacional é circular de
forma que, na midiatização, a circulação deixa de ser vista como a
passagem/contato do emissor ao receptor para ser vista “como o espaço do
reconhecimento e dos desvios produzidos pela apropriação” (BRAGA, 2012, p.38)26.
Embora fique claro na pesquisa a preferência pela visão que a midiatização
compõe a mediação é preciso identificar por onde a midiatização avança nas
mediações. Assim, a pesquisa contempla o “ser” da midiatização pela necessidade
de haver em determinada circulação comunicativa uma influência midiática como
sistema de referência, seja ela feita por mídias tradicionais ou não.
É interessante observar a pertinência do termo circulação, que de forma
especial faz com que os sujeitos perambulem por diferentes mídias, migrando de um
lugar a outro onde antes havia fidelização e estática. Além da circulação que ocorre
nas redes sociais virtuais, Braga (2012, p.39) sinaliza diversas possibilidades de
circulação, como debates, reposição do próprio produto para outros usuários, ou
elaboração de comentários mediante algum texto, ou mesmo uma “conversa de bar”,
por exemplo. Um dos aspectos mais importantes da midiatização para o autor é a
capacidade de escuta prevista ou pretendida por quem fala. Braga chama isso de
“contrafluxo”, em relação à composição da fala colocada em circulação que é, por
26 É possível, no entanto, notar uma diferença da construção desse sistema por Braga em dois
momentos diferentes. No livro A sociedade enfrenta sua mídia, de 2006, o enfoque da circulação está
mais atrelado à influência da mídia e seus dispositivos técnicos do que sua construção teórica de
2012, a qual utilizamos com mais ênfase. No entanto, em ambos os casos percebe-se um raciocínio
coerente ao que estamos considerando como midiatização e objeto da comunicação, focado nos
processos comunicativos.
71
sua vez, constante nos macroambientes de interação social. Compreendendo que o
processo de midiatização se dá por fluxo contínuo, entende-se que um “produto
mediático não é o ponto de partida do fluxo. Pode muito bem ser visto como um
ponto de chegada, como consequência de uma série de processos, de expectativas,
de interesses (...)”. (2012, p.41). A constante circulação não ocorre por conta do
produto, mas nele, porque ele se encontra em um sistema de circulação que o
alimenta. Por exemplo, em uma entrevista, Braga (2009) fala sobre a conversação
gerada depois de um filme no cinema como processo de midiatização. Neste caso,
onde estaria o produto midiático? Ele poderia estar no início do processo, se for
considerado o filme; pode ser um processo intermediário, como a conversação
mobilizada por um grupo de pessoas na saída do cinema; ou no fim do processo,
como resultado de postagens nas redes sociais avaliando o filme. Além disso, este
“fim” é relativo, pois este novo processo pode desencadear novos processos como
comentários acerca da crítica e assim por diante.
Braga (2012) sinaliza que a ideia de fluxo contínuo/circulação é uma
perspectiva abrangente para a pesquisa empírica. Uma primeira aproximação
corresponde a perceber que tais fluxos não são apenas descrições abstratas, mas
ocorrem concretamente na sociedade na forma de circuitos, culturalmente
praticados. As múltiplas possibilidades e fluxos contínuos que fazem parte da
midiatização geram também processos interacionais de referência, dispositivos
sociais que referenciam a ação midiática. Como exemplo, tem-se o Carnaval do Rio
de Janeiro como um evento cultural que tem sua natureza transformada pela
sociedade midiatizada e, com isso, passa a ser midiatizado:
Temos processos sociais que já existiam sem a mídia e, portanto, as interações ocorriam fora de qualquer interferência midiática. Aos poucos, esses processos passam a ser midiatizados, perpassados pela mídia. Por exemplo, o carnaval no Rio de Janeiro. Ele se organiza como festa de rua. Num determinado momento, começa a ser mostrado. E, num outro momento ainda, ele se organiza em função da mídia. Os eventos passam a se organizar segundo o olhar midiático. Houve, então, uma midiatização. Do ponto de vista social geral, a partir daí percebo a midiatização como processo interacional de referência. (BRAGA, 2009, s/pag.).
Para melhor visualizar esta abstração do processo comunicativo, Braga
(2012) traz alguns exemplos, conforme expostos acima. Além disso, exemplos
concretos podem vir da própria dissertação, como, por exemplo, do questionamento
se os eventos promovidos pelas organizações de apoio aos migrantes representam
um processo de midiatização que se coloca nesta circulação.
72
Para terminar este item seria negativo não falar na relação “circuitos versus
campos (sociais)”, expressão que dá título ao artigo de Braga (2012), referencial
para este tópico. A relação principal de ambos os termos está na condição de que os
circuitos não se desenvolvem no vazio. É assim que o autor inicia sua conversa
sobre os circuitos e os campos sociais, designando estes como estruturas
estabelecidas, que compartilham sua existência com outros campos. Braga fala
também do campo da mídia que, para o autor, não seria decorrente apenas da ação
dos meios, nem seria o campo da mídia o único responsável pela midiatização da
sociedade. Na sociedade em midiatização, a cultura midiática perpassa diversos
campos, havendo assim diversos modos de interagir na sociedade pelo fato da
midiatização ser um “processo interacional de referência”. O nome diz respeito a um
processo que é altamente interativo e de referência, porque faz com que todos os
processos de interação estejam, de alguma forma, em contato com as mídias.
Os campos sociais, sendo mais estruturados, são os principais responsáveis
pela articulação com o todo social, ao mesmo tempo em que podem incidir sobre ele
agentes externos devido a sua própria necessidade de interação externa. Braga
salienta com isso a deformação do campo social, não afirmando, contudo, que os
campos sociais se diluirão em uma espécie de “comunicação direta” através de
redes difusas, mas que os processos de interação “em midiatização” mudam as
formas de ação e o perfil destes campos. É possível citar como exemplo algo que
será visto nesta pesquisa: o campo comunicacional em relação às organizações e a
capacidade destas de poder informar diretamente algo a alguém ao invés de ser
apenas uma “fonte”. (2012, p.46), no sentido usualmente utilizado no jornalismo, um
dos subcampos da Comunicação mais relevantes para a visibilidade e
representação social das problemáticas migratórias.
Ao observar a construção feita até aqui, das primeiras teorias da
comunicação até as análises sobre os processos interacionais, percebe-se que as
tecnologias e técnicas contribuem para a interação, mas são os chamados
“dispositivos de interação” (BRAGA, 2012) através das matrizes sociais, que
permitem a tais interações serem acionadas culturalmente na lógica midiatizada.
A dinâmica cultural, que também é histórica, mostra-se estreitamente ligada
a este processo, pois, como salienta Braga (2012, p.50), “não são as características
da midiatização que ‘dizem’ o social – mas sim os modos pelos quais sejam
historicamente acionadas”. Desta forma, a midiatização não é um ente solto das
73
suas matrizes culturais para não correr o risco de se encontrar representada por
uma volta “das mediações aos meios”. O processo de midiatização só se constitui
como tal porque há nele um componente de intersecção com a dimensão
sociocultural e a dimensão histórica e, por isso, sendo considerado algo importante
para esta nova sociabilidade – de cultura midiatizada – complexa demais para ser
vista a partir de uma análise causa-efeito. Por fim, a midiatização se propõe a
estudar:
(...) aquelas experiências sociais de produção de circuitos e de dispositivos interacionais para, através das percepções obtidas, identificar os riscos, os desafios, as potencialidades e os direcionamentos preferenciais; procurando perceber como estão se encaminhando as mediações comunicativas da sociedade e – sempre que relevante – tentando incidir praxiologicamente sobre elas. (BRAGA, 2012, p.50).
Ao ter como objeto de análise as práticas comunicativas realizadas pelos
imigrantes haitianos, estas se configuram como experiências sociais de produção de
circuitos e dispositivos interacionais? Antes de entrar na metodologia, contudo, é
importante pensar nesse processo comunicacional ligado ao próprio processo
migratório e como ambos os campos estão interligados.
2.3 COMUNICAÇÃO NOS PROCESSOS MIGRATÓRIOS
A elaboração dos conceitos trazidos dos estudos voltados aos processos
migratórios na comunicação tem incidência sobre as interações socioculturais a
partir da ideia de resposta social, como terceiro sistema, que organiza a sociedade e
dela extrai uma aprendizagem.
A aprendizagem social está em todo o processo da midiatização, mas
especialmente na capacidade de crítica social frente às interações sociais
proporcionadas por esse processo. Esta dimensão crítica está alinhada à
capacidade da recepção ativa enunciada pelos estudos latino-americanos em
oferecer caráter de resistência por meio da sua capacidade cultural de seleção e
interpretação. (BRAGA, 2006, p.61). Sem poder dar certeza sobre a eficácia dessa
capacidade de seleção e interpretação é, de todo modo, esta qualidade da recepção
que põe em circulação a informação.
74
Neste meandro, Braga (2006, p.63) salienta que as condições culturais estão
ligadas às mediações, que, por sua vez, estão atreladas a campos extramidiáticos,
como a família, o trabalho e aquisição financeira, e as próprias redes migratórias, por
meio das organizações de apoio, no auxílio do processo de transição cultural desses
sujeitos diaspóricos.
Todo este ciclo está presente no processo de circulação dos produtos
midiatizados e contribui para a reflexão das causas individuais e coletivas que estão
por trás de cada um destes processos. No caso da migração dos haitianos em
Curitiba, o contexto está ampliado pelo tema macrossocial da globalização e dos
intensos fluxos migratórios que, ao evidenciar um choque de identidades e
estabilidade, não exclui a capacidade interacional desses sujeitos, mas, ao contrário,
a potencializa. Assim, Martín-Barbero compara a interação dos migrantes na cidade
da mesma forma que os fluxos de informações e comunicações interferem no
ambiente escolar, questionando hierarquias.
La presencia del inmigrante es resentida por los ciudadanos del lugar como una amenaza que, al poner en riesgo la seguridad de los de adentro, debe ser contrarrestada multiplicando los registros, los chequeos, es decir instalando la desconfianza como comportamiento normal y extendiendo la sospecha a los gestos, las voces, las vestimentas. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.26).
Nesse sentido, saindo um pouco das midiatizações para incluir as redes
como espaço de construção da aprendizagem social nesse ambiente, consideramos
o termo “comunicação cidadã em espaços transnacionais”, de Denise Cogo (2010).
Cogo chama de “comunicação cidadã” – em espaços transnacionais – as
formas de aproximação que os migrantes travam para resguardar suas culturas, as
quais estão atreladas a três processos de mudança social decorrentes da
globalização. Um primeiro modo se refere às possibilidades de experimentação
promovidas pelas novas tecnologias “como espaços relevantes de construção e
circulação de agendas relacionadas à disputa de cidadania”. (COGO, 2010, p.83).
Estas experimentações, no entanto, têm caráter difuso e de apropriação da gestão
da comunicação por estes sujeitos.
Um segundo processo está diretamente vinculado às redes sociais como
forma de relacionamento e mobilização da sociedade contemporânea, que tem seus
limites atravessados pelas fronteiras e dinâmicas locais. Cogo (2010) acentua mais
as redes sociais virtuais ou o que Scherer-Warren (1998) chama de “redes de
comunidade virtuais identitárias”, cujo processo de construção identitária é
75
impulsionado por estas formas de vínculos através de um sentimento coletivo, de
pertencimento e reconhecimento.
O terceiro processo de mudança a que se refere a autora diz respeito ao
próprio processo migratório, que ao potencializar a cidadania intercultural e
cosmopolita acentua os conflitos culturais decorrentes da intensificação de fluxos na
globalização, que também impõem barreiras. Dessa forma, a dinâmica migratória
assumiria com a incisão das redes sociais uma nova forma de conflito com a
sociedade, que demandaria “respostas sociais” frente a um panorama global. Cogo
(2010) une esses três processos para pensar uma comunicação cidadã na
contemporaneidade.
Interessa identificar com mais clareza, no entanto, a relação principal entre
os processos comunicativos e os processos migratórios, expostos a partir de um viés
cidadão (cidadania, no recorte transnacional, não diz respeito apenas à busca pela
igualdade, mas também ao direito à diferença como parte da democracia).
Deslocando-se da proximidade com a comunicação popular e comunitária ou
alternativa – de caráter transnacional – e aproximando-se dos fluxos comunicativos
interacionais, a pesquisa destaca as redes sociais não virtuais.
As redes sociais podem ser todas as interações de indivíduos ou grupos em
suas relações cotidianas, as quais surgem a partir de demandas das subjetividades
e da identidade de cada um. Do mesmo modo é considerada rede social o impulso
que indivíduos ou grupos dão em torno de interesses coletivos, conglomerando
pessoas para fins comuns, como é o caso de movimentos e comunidades. (AGUIAR,
2006, p.14). Afirma Sônia Aguiar:
Embora o crescimento e a extensão das redes sociais nos últimos dez anos possam ser atribuídos, de forma significativa, à disseminação da Internet comercial, a abordagem aqui proposta leva em conta também os “elos invisíveis” através dos quais circulam informação e conhecimento, permitindo a expansão da rede para além dos meios digitalizados, das instituições legitimadas e dos detentores de poder. Esse tipo de abordagem é fundamental em contextos de alto grau de infoexclusão (...). (AGUIAR, 2006, p. 16).
Ainda que se considere este grande número de situações como redes,
Aguiar critica a concepção de rede como qualquer nó interconectado, pasteurizando
diferentes processos de enredamento, inclusive a relação de “nós” humanos e “nós”
não humanos, estes, por exemplo, como centrais de serviços ou pistas de
aterrissagem; ou mesmo na naturalização das redes neoliberais e de resistência.
76
Deste modo, a autora defende que mais do que estar em rede o que interessa é
estar em rede para enfrentar algo. (AGUIAR, 2006, p.17).
Um dos enfrentamentos que se propõem fazer as organizações de apoio aos
migrantes haitianos em Curitiba é vinculado ao empenho em deslocar imaginários
prejudiciais para uma valorização da cultura desses novos sujeitos curitibanos.
Salienta Cogo:
Trata-se de contradiscursos em torno dos quais as redes migratórias se movem igualmente pela desestabilização daqueles discursos midiáticos que, a partir de contextos nacionais de produção, circulam transnacionalmente para afirmar a associação das migrações à delinquência, conflito e pobreza. (COGO, 2010, p.90).
Cogo relaciona a ótica dos estudos culturais e da matriz latino-americana à
lógica do transnacionalismo e ao rompimento de fronteiras, cujo cenário encontra na
comunicação cidadã uma das principais dimensões das perspectivas culturais e sua
alocação no pós-colonialismo de Hall, especialmente ao considerar as redes como
“espaço de relações sociais de caráter fronteiriço e da construção de comunidades
desterritorializadas”. (2010, p.94). Essa nova forma de sociabilidade é, para Cogo,
manifestada especialmente através das novas tecnologias de comunicação. No
entanto, não é o caráter de novidade da comunicação alavancado pelas novas
mídias que mais nos interessa, mas a forma com que as redes, virtuais ou não,
propiciem ou não que sujeitos tenham um espaço de circulação de informação e,
com ele, apropriem sentidos e os produzam.
Nesse caso, observa-se um empenho, por parte das redes migratórias, em
se constituírem enquanto “lugares simbólicos de convergência transnacional das
múltiplas e plurais subjetividades migrantes e/ou se converterem em espaços de
agregação de causas sociopolíticas e culturais ligadas à cidadania das migrações”.
(COGO, 2010, p.99). A constante busca por parte dos imigrantes às organizações se
deve pela credibilidade que estas apresentam no espaço público. Sobre isso, ElHajji
afirma:
(...) no atual espaço democrático, o discurso público investido de autoridade representativa, estabelecida e reconhecida pelos próprios membros do grupo deve ser particularmente valorizado, já que é por meio desse mesmo discurso que os grupos minoritários (étnicos e confessionais) elaboram as suas estratégias de legitimação e formação de consenso, tanto entre seu público interno como na sociedade. (ELHAJJI, 2005, p.201).
77
Trazer o âmbito das redes (sociais) migratórias para a presente discussão
contribui para localizar as organizações no processo comunicativo da pesquisa.
Além da intensa circulação promovida entre migrantes e organizações de apoio, há
também o próprio processo migratório como ato comunicativo, quando sujeitos em
diáspora colocam-se em contato com outra cultura e a dialética que se estabelece
entre as distintas realidades caracterizam o hibridismo desse novo espaço. Essa
marca híbrida, que questiona fronteiras geográficas e faz uma contra-hegemonia ao
sistema global, é a principal marca da comunicação nesse fenômeno das migrações
contemporâneas, balizadas pela participação de atores em rede, no caso as
organizações e a comunidade haitiana em Curitiba.
Neste sentido, como os processos de comunicação realizados contribuem
para que os imigrantes haitianos que residem em Curitiba construam sua identidade
cultural? Quais são estes processos que se colocam em circulação? Como as
organizações atuam nesse processo? As próximas reflexões são encaminhadas pelo
capítulo metodológico e um aprofundamento na realidade migratória.
78
3 O PANAROMA SOCIO-HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES
O capítulo traz um enfoque em quesitos sociológicos e históricos da migração.
Ambas as ênfases já estão tratadas nesta prévia do capítulo, mas se pretende fazer
um detalhamento da história das migrações em diversos níveis, a imigração histórica
no Brasil, no Paraná e em Curitiba, além das quatro etapas da diáspora haitiana. O
capítulo também pretende diagnosticar, a partir dos dados mostrados na Introdução
desta dissertação, a realidade migratória no Brasil e as políticas atuais para a
chegada dos novos imigrantes, especialmente os haitianos.
3.1 A SOCIOLOGIA DA MIGRAÇÃO E SUAS PERSPECTIVAS MACRO E MICRO
A migração é um fenômeno tão complexo de ser compreendido que mesmo
com o desenvolvimento dos grandes fluxos humanos no fim do século XIX e início
do século XX as teorias que tratam o tema não são tão evidentes e bastante
variáveis conforme afirma João Peixoto (2004). Mesmo com os intensos movimentos
migratórios internos, do campo para a cidade, ou com os movimentos
transoceânicos, que permitiram liberar o êxodo rural para novos continentes, o autor
afirma que é o campo da geografia que mais tem dado atenção ao tema graças à
sua relação com o espaço, mas a migração ainda constitui “terra de ninguém” no
debate teórico interdisciplinar. Neste sentido, afirmando não haver uma teoria geral
das migrações, Clifford Jansen já no fim da década de 1960 escrevia:
A migração é um problema demográfico: influencia a dimensão das populações na origem e no destino; é um problema económico: muitas mudanças na população são devidas a desequilíbrios económicos entre diferentes áreas; pode ser um problema político: tal é particularmente verdade nas migrações internacionais, onde restrições e condicionantes são aplicadas àqueles que pretendem atravessar uma fronteira política; envolve a psicologia social, no sentido em que o migrante está envolvido num processo de tomada de decisão antes da partida, e porque a sua personalidade pode desempenhar um papel importante no sucesso com que se integra na sociedade de acolhimento; e é também um problema sociológico, uma vez que a estrutura social e o sistema cultural, tanto dos
79
lugares de origem como de destino, são afectados pela migração e, em contrapartida, afectam o migrante27. (JANSEN, 1969, p.60).
Um dos primeiros e principais autores da teoria das migrações é o geógrafo
inglês Ernest Ravestein que, na década de 1880, apresenta análises empíricas dos
fenômenos migratórios sob um olhar estrutural, ao considerar a centralidade do
processo em um agente racional que decide pela migração ou permanência a partir
de informações sobre os lugares. Esta ideia simples é, no entanto, impulso para a
sociologia da migração de caráter estruturalista e o papel ativo do sujeito.
(PEIXOTO, 2004).
Aproximando-se das contribuições sociológicas, as teorias de migração têm
na Escola de Chicago, no início do século XX, uma sociologia heterodoxa frente à
sociologia tradicional americana. Chicago desenvolveu com singularidade temas que
foram apropriados por outras disciplinas da sociologia, mas especialmente há uma
contribuição singular aos estudos sobre as migrações no que se refere à escolha
racional do indivíduo em uma aproximação com a ideia de espaço geográfico e do
racionalismo econômico. Exemplo disso provém da ideia de “ecologia humana” de
Robert Park (1915), que relaciona o indivíduo ao meio ambiente e atribui a este a
capacidade de modular comportamentos coletivos, em uma compreensão próxima
de “assimilação” de culturas imigrantes pela cultura hospedeira. (OLIVEIRA, 2014;
PEIXOTO, 2004).
Um dos exemplos que pode ser dado ao enfraquecimento dos vínculos
informais, tidos como comunitários, especialmente pela contribuição de Tönnies,
deve-se ao trabalho de Musgrove (1963), que afirmava existir uma crescente
mobilidade territorial das elites, especialmente no final do século XIX, tido hoje como
o principal período de mobilidade humana dos tempos modernos.
A partir desses referenciais, os estudos da migração e seu caráter
interdisciplinar vão abarcando diferentes formas de mobilidade, inclusive se
atualizando pela mobilidade virtual. E não são só pelas tecnologias e novas
possibilidades de migração que a temática chama a atenção da sociologia, mas as
características microssociológicas e macrossociológicas do fenômeno configuram as
principais explicações do porquê migrar.
27 Tradução: PEIXOTO, J. (2004).
80
Esta pesquisa, que enfatiza os processos de globalização e a construção
das identidades mediadas por instituições da sociedade civil, pode ser considerada
como uma teoria macrossociológica da migração. Mas, antes de definir isto, é
importante passar um breve olhar nos principais referenciais teóricos de cada uma
dessas duas teorias.
3.1.1 As teorias microssociológicas da migração
Peixoto (2004) afirma que a maior parte das teorias micro tem um aporte
econômico devido à interpretação de que a principal decorrência de migrar deriva da
vontade de ascender economicamente. A partir desta relação, a própria teoria
microssociológica vai ampliando seu horizonte ao considerar, com Lee (1969), que o
processo migratório está associado também à área de origem, fatores ligados à área
de destino, ambos incluindo questões de infraestrutura; obstáculos intervenientes
que impulsionam ou refreiam o movimento (distância, custos, leis migratórias, grau
de informação, redes de apoio) e fatores pessoais.
Outra abordagem da teoria microssociológica baseia-se no modelo de
capital humano, que analisa a lógica das migrações pelo custo/benefício a longo
prazo, em muitos casos vinculados a uma motivação familiar. Consta também como
custo o investimento na aprendizagem de uma nova língua e cultura, buscando-se
um benefício pelo aumento de rendimento.
Uma terceira abordagem microssociológica apresentada por Peixoto (2004)
tem natureza biográfica na medida em que as principais variáveis trabalhadas são o
ciclo de vida individual e a trajetória de mobilidade, o que demonstra uma incidência
mais sociológica do que econômica. Um dos exemplos percebidos, por exemplo, é a
incidência de que os indivíduos casados apresentem menor probabilidade de
migração, segundo estudo de Sandefur e Scott (1981). A abordagem do ciclo de
vida em relação à trajetória social aproxima-se da ideia do modelo de capital social à
medida que enfatiza a mobilidade profissional como associação à mobilidade
espacial.
81
3.1.2 As teorias macrossociológicas da migração
Como o nome sugere, as teorias macrossociológicas privilegiam aspectos
coletivos e estruturais que condicionam, por vezes, as decisões migratórias. Peixoto
(2004) argumenta que tal acepção pode ser encontrada na corrente estrutural-
funcionalista ou nas teorias marxistas ou neomarxistas, designadas muitas vezes
como histórico-estruturais. No entanto, é importante salientar que os autores veem
confluência entre as teorias macro e microssociológicas, o que demonstra a
complexidade dos estudos das migrações.
Uma das teorias está relacionada ao mercado de trabalho e à economia
informal e confirma a necessidade de haver uma motivação econômica para o
processo migratório. Essa teoria condiciona o movimento de indivíduos pelas ofertas
de emprego, especialmente os de característica informal, que ainda significaria
maiores oportunidades do que no território de origem do migrante. Esta ideia, no
entanto, não se coaduna somente com o viés econômico. Como afirma Peixoto: “A
existência de procura deverá conciliar-se com mecanismos econômicos e
sociológicos diversos (...) que determinarão o início e a auto sustentação de
determinadas correntes”. (2004, p.24).
As teorias que vêm a seguir são mais pertinentes a esta dissertação por
estarem mais próximas a conceitos de sistemas-migratórios e valorização da cultura
e formas de resistências locais. Assim, o modelo das “estruturas espaciais” está
relacionado à “variável espaço e procura enunciar os fatores que levam a um
desenvolvimento particular dos territórios” (PEIXOTO, 2004, p.24). Peixoto ainda
afirma que a questão territorial conduz os movimentos populacionais, levando em
conta dimensões como centro e periferia, por exemplo. Este modelo está
relacionado não só à sociologia, mas também aos estudos urbanos e à geografia
dentro de uma perspectiva socioespacial integradora.
De viés marxista, esta teoria incide sobre a formação estrutural do capital
nas sociedades modernas, tratando a migração como fenômeno consequente a esta
ligação entre estruturas espaciais e relações sociais, fomentadas pela diferença de
classe. Ressalta-se a lógica do desenvolvimento desigual do espaço, que gera a
mobilidade humana a partir do acúmulo privado do capital, concentração das
atividades produtivas, fragmentação das atividades, o que faz Castells (1999)
82
chamar de “espaços de fluxos” a lógica de expulsão das populações mais abastadas
da cidade e seus recursos básicos de vida, ocasionada, sobretudo, pela alta
volatilidade do capital e trabalho.
Dentro deste cenário de valorização do espaço físico, a teoria do sistema-
mundo, de Wallerstein (1986), parte de uma análise internacionalista das migrações,
compreendendo o capitalismo moderno como cenário. Petras (1981) sugere que o
capitalismo global é responsável pela formação de um “mercado de trabalho global”
onde não só migram pessoas, mas capital, gerando o que ela chama de “zonas
salariais” diferenciadas. Essa ideia está ligada ao economicismo, pois acredita que
“as forças estruturais da economia mundial que geram os diferenciais econômicos e
que ‘transportam’, de certa forma, os migrantes”. (PEIXOTO, 2004, p.26).
Outro “sistema” trazido pela teoria macrossociológica é a dos “sistemas-
migratórios”, que se afasta mais do economicismo e tem por característica analisar
os fluxos humanos por contextos históricos particulares, cuja dinâmica interna
confere a eles um caráter sistêmico. Quanto às migrações internacionais, segundo
Peixoto, o caso mais habitual é o das “redes macrorregionais” que unem países que
alimentam fluxos entre si. Esta dinâmica apresenta para ele uma característica
distinta que figura na relação entre um contexto determinado e fluxos migratórios e
outros tipos de intercâmbio, abrindo brechas para características não só econômicas
como também políticas e culturais. A diferença para os sistemas-mundo reside na
contraposição que a formação de redes faz frente aos padrões globais, pois
separam contextos históricos de atuação, espaço e tempo. (PEIXOTO, 2004).
Outras três teorias apresentadas por Peixoto seguem as referências das
teorias macrossociológicas, mas se distinguem por aproximar a macro e a
microssociologia. A primeira teoria, referindo-se às instituições, tem como ponto de
inferência a centralidade atribuída a agentes coletivos, ou seja, são entidades
coletivas que se responsabilizam pelos destinos dos fluxos. Mais próximo a esta
pesquisa, Massey (1993) ressalta também as instituições de apoio ao migrante,
sendo este ponto de característica social inferior a outros.
Outra teoria se refere às redes migratórias. Embora parecida com a lógica
das instituições e de capital social (âmbito microssocial), neste caso salienta-se a
inserção dos migrantes em redes de pertencimento que os fazem não decidir
sozinhos pela migração migrar ou não migração. E como afirma Portes e Böröcz:
83
Redes construídas pelo movimento e contacto de pessoas através do espaço estão no centro de microestruturas que sustêm a migração ao longo do tempo. Mais do que cálculos individuais de ganho, é a inserção das pessoas nestas redes que ajuda a explicar propensões diferenciais à migração e o caráter duradouro dos fluxos migratórios. (PORTES e BÖRÖCZ, 1989, p.612).
Tais redes são caracterizadas por uma “racionalidade limitada” de
conhecimento dos indivíduos pertencentes e de um avanço na ideia economicista
das justificativas migratórias. (PEIXOTO, 2004, p.30).
A última teoria macrossociológica identificada por Peixoto (2004) baseia-se
novamente em Portes e Böröcz (1989) e enfatiza os laços sociais e étnicos dos
migrantes pelo viés territorial. Esta teoria conecta a ideia de capital social e recursos
econômicos ao viés comunitário do grupo formado, organizando uma espécie de
“comunidade étnica solidária” (PEIXOTO, 2004, p.30), cuja importância econômica
vai desde a constituição de um mercado de bens e serviços culturais até a reserva
de trabalho assalariado.
Ao observar algumas das possibilidades de ênfase ao estudo das
migrações, as teorias que mais se aproximam dessa dissertação são as últimas
elencadas. Torna-se complexo optar por uma ou outra, sobretudo por não ser um
trabalho que tem nas dinâmicas migratórias suas principais referências teóricas e
metodológicas. Sendo um trabalho de comunicação, a teoria das migrações emerge
como um cenário importante para se compreender práticas de mediações culturais e
de midiatização. Desta forma, é interessante observar a teoria dos sistemas-
migratórios como cenário geopolítico, de cooperação entre países e incidência
cultural, que acentua a “crise das fronteiras” dos Estados-nação.
Igualmente, não se pode ignorar na pesquisa a contribuição dos processos
microssociais, especialmente quando se debate as identidades alinhadas à dinâmica
de grupos migrantes e instituições de apoio. Assim, a ênfase na abordagem das
teorias que reforçam as instituições, redes migratórias e laços sociais e étnicos são
observados no levantamento bibliográfico.
3.2 HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES, O BRASIL E A DIÁSPORA HAITIANA
84
A imigração é um dos fenômenos mais antigos da história humana e carrega
consigo a marca de ser uma notável consequência de diversas problemáticas
sociais, em especial na atualidade. A primeira pergunta a ser feita quando se debate
o tema é: por que as pessoas migram? Por que sair de uma zona supostamente
mais confortável para se arriscar em um terreno de culturas, língua e valores
diferentes? Herbert Klein (2000) credita a busca por alimento como a principal causa
do trânsito de pessoas pelo globo, mas não descarta a influência das perseguições,
seja pela cultura majoritária sobre a minoritária ou perseguição religiosa, que
mantém estreita relação com a causa cultural.
Diferente do que pode se pensar a partir da realidade do Brasil, as
migrações não são recentes, mas ocorrem desde que o homem aprendeu a viver em
sociedade, sobretudo, pela necessidade de acesso à terra para sua alimentação. A
partir dessa informação, Klein (2000, p.14) afirma que o fenômeno é potencializado
a partir da redução da mortalidade e aumento da natalidade do século XVIII, que
diminuíram o acesso à terra pela tecnologização do campo – para suprir o aumento
da demanda – e promoveram um êxodo rural que inchou as cidades europeias já no
século XIX.
A partir dessa inferência, as terras na Europa se tornam escassas e, com o
elevado número de mão de obra, o valor do trabalho se torna baixo. Na América
colonial ocorre o oposto: as terras são muitas, porém, pelo baixo número de mão de
obra, a mesma é cara. Desta forma, explorando inicialmente o trabalho dos nativos
indígenas e, posteriormente, investindo no trabalho escravo africano, portugueses e
espanhóis trouxeram europeus para incentivar o marcado interno colonial.
Especialmente no Brasil do século XVIII, Klein (2000) afirma que houve cerca de 400
mil portugueses vindos ao país para o trabalho com o ouro em Minas Gerais, o que
resultou em uma forte imigração europeia no Centro-Sul do Brasil.
O século XIX assinala um importante momento para os fluxos migratórios
devido ao desenvolvimento da energia a vapor, que dinamizou o transporte e
aumentou decisivamente os fluxos euro-americanos. Além de potencializar novos
imigrantes de diferentes lugares da Europa, a busca pelo “Fazer a América”,
realizada especialmente por homens jovens, pode ser relacionada ao processo que
ocorre hoje, nas migrações atuais Sul-Sul:
Para eles, a prioridade básica consistia em acumular poupanças com as quais esperavam poder desfrutar de uma vida melhor em seus países de
85
origem. Por isso, aceitavam quaisquer trabalhos que lhes oferecessem, ainda que de baixo status, porque esses trabalhos aparentemente sem perspectivas proporcionavam-lhes melhores salários do que os pagos em seus países. Para cerca da metade dos imigrantes que chegaram, essa estratégia funcionou e acabaram retomando a seus países nativos. (KLEIN, 2000, p. 24).
É neste contexto do “Fazer a América” que um fato interessante passa a
ocorrer na dinâmica das migrações: a preocupação exclusiva com o acúmulo
econômico passa a ser dividida com uma assimilação cultural por parte deste
imigrante na nova vida. Assim, a primeira geração de europeus, em muitos casos,
trouxe suas famílias para recomeçar no novo ambiente, ao passo que a segunda
geração, mais aculturada, começaria a formar suas famílias com os próprios nativos
dos países latinos (KLEIN, 2000). Klein (2000) também comenta que a Primeira
Guerra Mundial culminou com o primeiro declínio da migração internacional, ao
impedir o crescimento econômico dos países centrais, além de intensificar os limites
fronteiriços e alavancar os ideais nacionalistas com expansão dos mercados locais.
Outro momento de declínio seria até a Segunda Guerra, sendo que no intervalo
entre uma guerra e outra ainda houve a Crise de 1929.
No período pós-guerra, a América, especialmente os EUA, recebeu uma
nova leva de imigrantes, agora qualificados profissionalmente. Na América Latina,
até 1970, 35% dos imigrantes chegaram ao Brasil, em sua maioria, portugueses,
italianos, espanhóis e japoneses. A partir da década de 1990, com a postura
neoliberal no mundo ocidental e a reestruturação dos países do cone sul
(especialmente argentinos, uruguaios, paraguaios e bolivianos) há um aumento de
fluxo entre estes países, que atinge principalmente o Brasil com preferência pelos
estados do Sul e Sudeste, especialmente São Paulo. (SALA; CARVALHO, 2008). No
entanto, o destaque ao estado do Paraná é feito pelo recorte da pesquisa em ter a
cidade de Curitiba como cenário da chegada dos haitianos ao Brasil.
Antes ainda de atribuir ao Paraná características migratórias que se alinham
ao atual momento das migrações haitianas no país, Darcy Ribeiro (2008), na notável
obra O povo brasileiro, traça de modo sucinto a imigração no Brasil. Nas poucas
páginas que se dedica exclusivamente ao tema, importa-se em salientar a formação
de conglomerados regionais pelos imigrantes europeus, especialmente ao Sul do
país, as desigualdades sociais expressas racialmente pela depreciação do negro e
do mulato e por uma questionável – do ponto de vista dos estudos culturais
abordados nesse trabalho – homogeneidade cultural que o antropólogo confere ao
86
Brasil e a ausência de “lealdades étnicas extranacionais” (2008, p, 243) que fizeram
com que os diversos povos fossem assimilados culturalmente pelo Estado-nação.
O conjunto, plasmado com tantas contribuições, é essencialmente uno enquanto etnia nacional, não deixando lugar a que tensões eventuais se organizem em torno de unidades regionais, raciais ou culturais opostas. Uma mesma cultura a todos engloba e uma vigorosa autodefinição nacional, cada vez mais brasileira, a todos anima. (RIBEIRO, 2008, p.243).
Embora concorde com a definição de Darcy Ribeiro (2008) de que não há
uma etnicidade exacerbada no Brasil, desconfia-se também da nomenclatura
“homogeneidade” para tratar de questões culturais nacionais. Sobretudo, no Brasil, é
Lesser (2001) quem vai questionar a ideia de uma definição nacional, “cada vez
mais brasileira” (2008, p.243) e da “ideologia integracionista encorajadora do
caldeamento” (2008, p.238), afirmadas por Darcy Ribeiro.
3.2.1 Imigração histórica no Brasil
A imigração histórica no Brasil pode ser pensada temporalmente até a
primeira metade do século XX, quando há uma transformação dos fluxos de pessoas
decorrentes de fatores geopolíticos, especialmente com as guerras mundiais,
definindo-se, posteriormente, o período de imigração contemporânea, que ganha
força na década de 197028, além de um amadurecimento industrial e urbano.
Se a história das migrações acompanha a história da humanidade, no Brasil
as considerações de Klein (2000) compõem o cenário de fluxos de pessoas,
especialmente europeus, a partir do século XVIII com a dinamização dos transportes
e a busca pela terra. É importante ressaltar a relação que existe entre a história
migratória no Brasil e a chegada dos europeus, pois é com a vinda destes que o
Estado preocupa-se mais com políticas para estrangeiros como, por exemplo, a
Provisão Régia, de 1747, que estimulava a migração de estrangeiros católicos ao sul
do Brasil e, em 1890, o Decreto-Lei nº528, que prevê a aquisição de terras,
reembolso e custos de viagem dos imigrantes, proibindo a entrada de imigrantes
negros e asiáticos. (OLIVEIRA, 2011).
28 Ver tópico 3.2.3.
87
O que se tem antes no Brasil é um processo de colonização de portugueses
e a comercialização de escravos africanos, que não se adéquam ao panorama de
imigração que esta pesquisa apresenta, visto que consiste em um deslocamento
forçado pelo viés do tráfico de pessoas. Neste sentido, regido por políticas de
imigração selecionada, o Brasil se apresenta no cenário político das migrações como
um país avesso ao que o mito da miscigenação e da tolerância étnica tem
manifestado na identidade nacional para poder observar, especialmente entre o fim
do século XIX e o início do século XX, um incremento nas políticas de atração de
imigrantes com fins econômicos e demográficos seletivos.
Alguns exemplos podem ser dados a partir dos conceitos de superioridade
racial expressos por intelectuais como Nina Rodrigues e Silvio Romero, por exemplo,
que relacionavam diametralmente o desenvolvimento do país ao número de povos
não brancos. Segundo Schwarcz (2009), Rodrigues, de forma radical, argumenta
que a mistura de espécies seria uma forma de degeneração, enquanto Romero
advoga para uma forma de unificação nacional, acreditando, todavia, no
embranquecimento geral da população. (FERNANDES, 2015).
A criação dos núcleos coloniais e sua finalidade de expansão das terras
cultiváveis no país promoveu a vinda de colonos e trabalhadores agrícolas por meio
de um “serviço de imigração”, batizado de “Serviço de Povoamento do Solo
Nacional”, de 1921, visto que a herança escravista havia deixado marcas de
preconceito aos trabalhadores da terra. Sobre essa relação da terra e os imigrantes,
Márcio de Oliveira argumenta:
Em resumo, o objetivo aqui era de moldar a sociedade brasileira que deveria se organizar graças à imigração (...). Ou ainda talvez se assista aí a uma tentativa de miscigenação às avessas da população brasileira, ou seja, de brasileiros (brancos, mulatos ou negros) com europeus brancos. Mas, sobretudo, deve-se ver aí a organização de uma política de integração forçada, a exemplo da “Campanha de nacionalização” que seria posta em prática pelo governo Vargas ao final dos anos 1930. (OLIVEIRA, 2011, p. 13).
Para os estrangeiros, não só leis favoráveis eram encontradas no Estado
brasileiro, mas em 1921, por exemplo, foi decretada a “Lei dos Indesejáveis”, que
proibia, por parte do Estado, a imigração de doentes, portadores de deficiências e
até pessoas acima de 60 anos, mesmo as que pudessem se manter sem ajuda
externa. Além disso, a Constituição de 1934 define uma política de cota para
imigrantes, além de restringir a estes a atividade partidária ou a formação de
88
qualquer tipo de associação, processo que se intensifica na Segunda Guerra
Mundial com a proibição de manifestações culturais. Essas políticas restritivas
coadunam para a criação, já na década de 1980, do Estatuto do Estrangeiro,
preocupado em garantir a segurança nacional, colocando o imigrante sob jurisdição
policial e penal. (FERNANDES, 2015).
Assim, pode-se presumir que as políticas migratórias no Brasil estiveram
voltadas para a imigração branca e de ocupação de terras para a agricultura, terras
que foram abandonadas após a abolição da escravatura. Negros, mulatos e
asiáticos foram diferenciados em tais políticas, acompanhados pelos europeus
apenas nos períodos das grandes guerras quando os alemães, por exemplo,
deixaram de ser bem-vindos ao Brasil. Neste interim, é possível observar o processo
de negociação que há entre nacionais e estrangeiros para uma construção cultural e
identitária do país, visto que a presença de agentes externos foi fundamental para a
construção do povo brasileiro, como afirma Darcy Ribeiro (2008).
3.2.2 A negociação da identidade no Brasil
Jeffrey Lesser (2001) enfatiza o que ele chamou de identidade hifenizada,
como um importante momento da história do continente e do Brasil em tempos de
negociação das identidades nacionais. Se hoje a ideia do pós-colonial avança as
fronteiras nacionais para a construção das identidades, Lesser aponta a realidade
migratória no continente como um impulso para a ideia de aculturação, princípio das
teorias defendidas nesta dissertação sobre identidade cultural que valorizam o
“outro” e sua potencialidade de incidir com sua cultura de fora, configurando uma
espécie de “carnaval” bakhtiniano.
Lesser (2001, p.22) afirma que a ideia de aculturação, embora muitas vezes
não reconhecida, prevaleceu sobre a ideia assimilacionista, que conferia a absorção
da cultura estrangeira pela cultura nativa, gerando desconforto das elites nacionais,
a ponto de:
Em 1889, a República foi proclamada, e o primeiro decreto do governo, com relação à imigração, proibia a entrada de asiáticos e africanos. Trinta anos mais tarde, o governo estendeu essa proibição a todos os que ele considerasse ‘africanos’ ou ‘asiáticos’, incluindo aqueles que jamais haviam
89
estado na África ou na Ásia. A imigração foi de fato a construção da identidade nacional. (LESSER, 2001, p.28).
A construção da identidade nacional no Brasil foi erguida sob a estratégia de
“embranquecimento”, conforme podemos acompanhar nestes dados históricos. Se a
chegada estratégica de brancos europeus trouxe características à identidade
nacional conforme buscado pela política nacional, é indispensável contar, contudo,
com as ditas identidades hifenizadas, que transformaram a unicidade da identidade
brasileira em diversas formas como a identidade luso-brasileira, ítalo-brasileira, nipo-
brasileira ou afro-brasileira, por exemplo, pluralizando as formas culturais do país.
Assim, “jamais existiu” uma identidade nacional, como afirma Lesser (2001,
p.20), especialmente em um ambiente onde características globais “carnavalizaram”
uma suposta unidade cultural. A hifenização, ainda que confira diferenças ao
alemão, japonês, africano radicados no mesmo ambiente, não impediu que surgisse
no país uma ideia de “mestiçagem”, segundo o autor.
3.2.3 Imigração no Paraná
“Em Curitiba, por exemplo, come-se broa com vina. Em lugar algum do
Brasil sabe-se o que é vina, só o Paraná sabe que vina é a wienerwurst, a salsicha
feita à moda de Viena”. (BORUSZENKO, 1986, p.61).
A citação acima diz muito sobre este tópico, pois ao ser descrita a imigração
histórica no Paraná, mais especificamente na região do sul e sudeste do estado,
conta-se também nuances culturais deixadas pelos primeiros europeus em terras
paranaenses que aportaram no início do século XIX. Sem diferenciar-se
abruptamente dos processos migratórios do centro-sul brasileiro, a imigração para o
Paraná destaca-se pela elevada população eslava e pela formação de núcleos
coloniais ao redor de centros urbanos, o que potencializou a formação de um rosto
mais europeu nas regiões mais próximas à Curitiba.
Conhecido como o estado mais eslavo do Brasil até o início do século XX,
pelos milhares de imigrantes europeus que desembarcaram nas terras paranaenses,
como é o caso dos poloneses, ucranianos e mesmo os russos, mas também com a
chegada intensa de alemães e italianos, o Paraná chamou a atenção de europeus
90
pelo clima temperado, próximo ao vivido no velho continente (OLIVEIRA, 2012). A
primeira chegada de imigrantes no estado é datada em 1816 com a vinda de 50
casais açorianos, nos municípios que hoje são Rio Negro e Mafra, seguido pelo
estabelecimento da primeira colônia alemã em 1829, com a chegada de 100
imigrantes na mesma região. A chegada massiva de europeus a partir do século XIX
é influenciada pelo decreto de 1808, que torna possível a propriedade de terras a
imigrantes. (BORUSZENKO, 1986).
Após as medidas antiescravistas, as províncias se viram insuficientes de
mão de obra agrícola e a solução passa a ser o incentivo da chegada de imigrantes
europeus para a realização deste trabalho. O Paraná se destaca frente a outras
províncias no Brasil por criar uma agricultura de abastecimento, desenvolvendo um
plano de colonização baseado no estabelecimento de colônias agrícolas em volta
dos novos centros urbanos, especialmente na região de Curitiba e, posteriormente,
estendendo-se ao litoral e a região dos Campos Gerais. (BORUSZENKO, 1986).
Neste sentido, a figura de Adolfo Lamenha Lins ganha importância na
história da imigração no Paraná, pois, ao se tornar governador em 1875, o mesmo
incentiva a formação de tais colônias agrícolas e deixa, segundo Wachowicz (2001),
uma “teoria” sobre a forma de promover a colonização europeia, como a
necessidade das colônias ficarem próximas de seus centros consumidores; a
facilidade para o transporte dos imigrantes nas colônias, a ligação do colono à terra
que habitava, facilitando a aquisição da mesma; o auxílio financeiro a cada imigrante
maior de 10 anos de idade; a divulgação da verdade sobre a nova pátria e; a
construção de escolas e capelas nas colônias.
Após esse auxílio estatal aos imigrantes, os anos decorrentes –
especialmente a partir de 1885 – se destacam pela iniciativa privada no fomento da
chegada dos europeus, especialmente com a formação de associações de
colonização. Essas, “tinham agentes de imigração na própria Europa, que
arregimentavam candidatos a imigrantes por toda a Europa, sobretudo entre a
população agrária”. (BORUSZENKO, 1986, p.57). Boruszenko conta ainda que a
chegada de europeus foi, em alguns casos, motivada por mitos, como a ideia de que
Nossa Senhora, no Brasil, havia pedido para que poloneses habitassem o país para
lá construírem um reino de felicidade. Percebe-se na pesquisa que, embora as
histórias sejam diferentes, a ideia exacerbada sobre o lugar de destino é ainda
recorrente, mesmo na imigração haitiana ao Brasil, em pleno século XXI.
91
Como afirmado anteriormente, um dos destaques da imigração no Paraná se
deu pelo estabelecimento de núcleos coloniais nos centros urbanos. Essa iniciativa,
contudo, acabou limitando-se a áreas já ocupadas, não contribuindo para a
ocupação do resto do estado. As regiões norte, sudoeste e oeste do Paraná, por
exemplo, destacaram-se pelas migrações internas, especialmente por paulistas e
mineiros, e pela chegada de imigrantes não europeus (como os japoneses no norte
do Paraná), realizadas bem posteriormente às ocupações no sul e sudeste do
estado. (BORUSZENKO, 1986; WACHOWICZ, 2001).
Há um incentivo pela imigração europeia, ainda motivada pelas políticas de
embranquecimento surgidas com a proclamação da República, que desqualificaram
a vinda de asiáticos e negros ao país. Como um estado novo, o Paraná ainda
constrói sua história migratória ao longo do século XX, desde um rompimento da
chegada de alemães, devido às guerras mundiais, até a explosão populacional
ocorrida na década de 1960/70. A força da imigração europeia no Paraná pode ser
enumerada através de dados da entrada de pessoas até 1948:
TABELA 1 - CHEGADA DAS CINCO PRINCIPAIS NACIONALIDADES MIGRANTES AO PARANÁ
ATÉ 1948.
Poloneses 57 mil
Ucranianos 22 mil
Alemães 20 mil
Japoneses 15 mil
Italianos 14 mil
FONTE: WACHOWICZ, 2001, p.158.
Reconhecendo que a formação do Paraná passa pelos esforços de
imigrantes europeus, Wachowicz (2001) salienta que houve uma transformação
modernizante na sociedade paranaense a partir dessas contribuições. Por exemplo,
o autor afirma que esse processo lançou bases para o surgimento da classe média;
desenvolveu um ciclo rodoviário próprio; recuperou a dignidade do trabalho braçal
ocasionada pela herança escravista; deu início a indústrias pelo estado; criou uma
arquitetura característica e, consequentemente, tornou o Paraná majoritariamente
branco.
92
3.2.3.1 A Curitiba moderna: cidade migrante
A história de Curitiba se confunde com a do estado do Paraná, até pelo fato
desta ser sua capital desde 1854, quando somava ainda 161 anos. Se nos primeiros
anos a nova capital tinha cerca de 10 mil habitantes, até o fim do século XIX os
moradores já passavam de 25 mil. As presenças de alemães e poloneses nesta
época se tornaram evidentes a ponto de a população branca passar a compor 79%
da cidade, contra 44% da média nacional, diferença sinalizada até hoje entre os 53%
que se declaram pretos e pardos no Brasil e os 19,7% em Curitiba, segundo dados
do IBGE de 2010. Além da raça, a forma europeia de ser – especialmente a alemã e
polonesa – também influenciou Curitiba no comércio, escolas, comunidades
religiosas, associações e imprensa.
Construída por décadas pelos imigrantes, especialmente de origem
europeia, Curitiba segue a lógica de grandes centros urbanos brasileiros ao se
configurar como destino de imigrantes, agora com características distintas àqueles
primeiros que chegaram à capital paranaense. Imigrantes latinos, refugiados da Ásia
e africanos constituem as novas migrações e já são facilmente visualizados em
algumas praças da cidade, como ponto de encontro e de trabalho (especialmente
para os africanos com a venda de bijuterias) e em bairros tradicionais de imigrantes,
como Santa Felicidade, historicamente construído pela colonização italiana, mas que
agora cede um espaço considerável à leva de haitianos.
Estes, como afirmado anteriormente, têm em Curitiba seu 4º principal
destino no país, o que exige da maior cidade da região Sul do Brasil novas reflexões
sobre o deslocamento humano. Por exemplo, uma das decisões tomadas
recentemente em relação às políticas para migrantes se concretizou no Plano
Estadual de Políticas Públicas para Promoção e Defesa dos Direitos de Refugiados,
Migrantes e Apátridas do Paraná (2014-2016), vinculado à Secretaria de Estado de
Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Paraná, e efetivado mediante intensa
pressão das organizações de apoio. O documento, que é inédito no Brasil,
acompanha uma série de movimentações em prol dos migrantes, como o Comitê
Estadual para Refugiados e Migrantes, criado em 2012, por meio do Decreto
Estadual nº4289, como afirma o próprio Plano. O mesmo tem por principal objetivo
“proporcionar meios para a construção e implementação de políticas públicas
93
voltadas à proteção dos direitos da população de Migrantes, Refugiados e Apátridas
no Estado do Paraná”. (PARANÁ, 2014, p.20) e enfoca seis principais eixos:
educação; família e desenvolvimento social; saúde; justiça, cidadania e direitos
humanos; segurança públicas; e trabalho.
3.2.4 Imigração no Brasil contemporâneo
A história mostra que o Brasil foi construído também por imigrantes que,
buscando melhores condições de vida, chegaram ao “novo continente” e tornaram o
Brasil uma importante nação multicultural no mundo. O período que vai do início do
século XIX até meados da década de 1960, quando há uma diminuição dos fluxos
migratórios, é considerado pela pesquisa como “imigração histórica”. A partir dos
últimos 30 anos do século XX e o início de século XXI, nota-se um aumento de
fluxos dos países latino-americanos para a Europa, Japão e, principalmente, aos
Estados Unidos, ao mesmo tempo em que há um arrefecimento das migrações entre
os países latinos nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, a partir da década de
1980 incrementam-se as migrações latinas para o Brasil, especialmente se levarmos
em conta que, mesmo havendo um decréscimo de estrangeiros no país, segundo
dados dos anos 1950 até 2000, houve, concomitantemente, um aumento contínuo, a
partir de 1970, de imigrantes bolivianos, peruanos e colombianos. (COGO e BADET,
2013).
Na virada do século, o decréscimo do número de estrangeiros no Brasil
diminui, até chegar ao ponto de voltar a crescer a partir de 2010. Dados
provenientes do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça do
Ministério da Justiça do ano de 2011 confirmaram um aumento de quase 50% de
imigrantes no Brasil em relação a 2010, quando um crescimento já havia sido
constatado em relação aos anos anteriores. Este aumento inclui diversos fatores,
dentre eles o impulso econômico que o país viveu no início dos anos 2000 e a
propaganda nacional a partir de grandes eventos esportivos, como já citados na
Introdução.
A partir da década de 2010 são reforçados também os fluxos de haitianos ao
Brasil, o que contribui substancialmente para o aumento de estrangeiros residentes:
94
1,87 milhão de pessoas, segundo dados de 2015 da Polícia Federal29. Em relação
aos refugiados, dados da Acnur/ONU revelam que em 2014 o Brasil teve 11 mil
solicitações de refúgio das 860 mil do mundo. Ainda que esse número não considere
os aproximados 50 mil haitianos que se encontram no país hoje, a quantia pode ser
considerada baixa se for dimensionada a capacidade que temos como 5º maior país
do globo terrestre. Como a característica de refúgio é mais específica, se
relacionada à imigração, o número de imigrantes no Brasil é bem maior do que as 11
mil solicitações expostas anteriormente: aproximadamente 833 mil estrangeiros
estão registrados no Brasil na última pesquisa realizada pelo Observatório de
Migrações da Universidade de Brasília (OBMigra/UnB)30. Esse número demonstra
um déficit de entradas para saídas no território brasileiro, ou seja, há mais brasileiros
saindo do país do que estrangeiros entrando, segundo o levantamento da mesma
organização. Outra informação levantada pelo OBMigra/UnB é de que a imigração
para o Brasil, de fato, é uma imigração para o Sul do país, sendo que 75% buscam
nos três estados do Sul brasileiro, além de São Paulo, lugares para viver.
A partir deste panorama de um novo crescimento de mobilidade, as políticas
migratórias no Brasil têm voltado à tona nos debates públicos, especialmente por
meio do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para
Refugiados (Conare). Ambos os órgãos reúnem uma gama de organizações da
sociedade civil e classe política que debate, sobretudo, a nova Lei de Imigração, que
busca substituir o Estatuto do Estrangeiro, em vigor nos últimos 35 anos, decorrente
da Ditadura Militar brasileira e que conferia ao Estado uma cautela sobre os
imigrantes a partir da ideia de segurança nacional. Dentre as principais diferenças
entre um e outro, a mudança do Estatuto para a Lei aumentaria a proteção aos
imigrantes no país e desburocratizaria a concessão de vistos para investidores e
estudantes, facilitando também o acesso ao visto humanitário a qualquer
nacionalidade31.
29 http://www.brasilpost.com.br/2015/06/03/fluxo-haitianos-brasil_n_7503292.html?utm_hp_ref=brasil-
mundo
30 Observatório de Migrações – UnB. Relatório de situação de pesquisa. Curitiba, 6 nov. 2015.
Palestra proferida na Universidade Federal do Paraná.
31 http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/02/projeto-de-lei-de-migracao-e-aprovado-
pela-comissao-de-relacoes-exteriores
95
A forma restritiva do Estatuto do Estrangeiro não é novidade, no entanto,
relaciona-se à ideia clássica da migração seletiva, segundo a qual, os países,
inclusive o Brasil, selecionavam o tipo de imigrante desejável ao país, especialmente
nas políticas de embranquecimento e no período das guerras mundiais. Além disso,
o Estatuto em vigor no país restringe a participação política de migrantes em
território nacional, reservando aos nacionais a “cidadania plena”.
Atualmente as referências sobre os imigrantes e refugiados têm tido certo
destaque na mídia brasileira por conta da chegada massiva de haitianos pelo Acre,
destinando-se especialmente para São Paulo e outros grandes centros, como
Curitiba. Ao se comparar à diáspora do norte da África e de países do Oriente Médio
para a Europa, o Brasil tem recebido estes refugiados em menor número, mas a
cobertura midiática intensifica todos esses fluxos, chamando a atenção da
população para o fenômeno migratório. Pelas mídias sociais já é possível perceber
diferentes atitudes em relação à vinda daquele que é diferente: relações de
solidariedade e expressões de xenofobia atingem tanto a Europa quanto o Brasil e,
para isso, tornam-se necessárias políticas que garantam o bem-estar da população
receptora e também da que chega ao novo território. Neste sentido, algumas
políticas públicas aos imigrantes têm sido expandidas, como é o caso do Bolsa
Família32. Outra situação que tem se agravado é a exploração da mão de obra
estrangeira, possibilitada pelo desconhecimento de leis e direitos pelos imigrantes no
país. Neste sentido, são imprescindíveis políticas de informação e leis mais
rigorosas frente às falsas promessas de trabalho que frequentemente se
concretizam na escravidão moderna.
Em relação ao trabalho, principal aspecto da mobilidade interna de
imigrantes, pelo que a experiência cotidiana do próprio pesquisador tem notado,
levantamento do OBMigra/UnB (2015) afirmou que houve um aumento de 126% da
participação de imigrantes no mercado formal de trabalho, sendo que a grande
maioria se deve à entrada dos haitianos nesse nicho (de 815 haitianos no mercado
formal de trabalho em 2011 para 30 mil em 2014). Outro dado importante trazido
pelo Observatório de Migrações da UnB é a área em que atuam estas pessoas: o
32 O Bolsa Família começou a ser distribuído aos imigrantes em 2014, mas o auxílio já contemplava
esse segmento desde a criação do Programa, em 2003, segundo informações do Ministério do
Desenvolvimento Social. Para receber o auxílio o imigrante precisa estar legalizado no país e estar
com os documentos em dia.
96
final da cadeia produtiva do agronegócio (por exemplo: o corte de aves) ocupa a
primeira colocação, seguido pela construção civil. Com a intensa procura por
emprego nos estados do Sul e Sudeste, houve um decréscimo no número de
empregabilidade em cidades como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis.
No entanto, tem havido uma expansão de imigrantes para o interior dos estados,
onde há oferta de trabalho, especialmente pelo baixo salário oferecido a este tipo de
trabalhador, que se apresenta em 60% dos casos com ensino superior.
3.2.5 A diáspora haitiana
Segundo o antropólogo haitiano Joseph Handerson (2015), são
considerados quatro os momentos da diáspora haitiana, que se inicia no processo
de colonialismo, até uma última diáspora, de caráter socioambiental, já no século
XXI. Antes de comentá-las, torna-se importante ressaltar um aspecto da pesquisa de
doutorado de Handerson que marca o mundo social haitiano, ligado ao fenômeno da
mobilidade. A pesquisa realizada por ele com compatriotas revela um sentimento de
“obrigação” e “predestinação” pela mobilidade por meio de falas expressivas como
“Desde que nasci, meu sonho era partir um dia” ou “Tenho de viajar um dia para peyi
etranje33”. (HANDERSON, 2015, p.67).
Este sentimento, segundo o antropólogo, provém dos tempos do Haiti como
colônia e a busca pela libertação do país e, concomitantemente, dos escravos
trazidos da África. A independência do Haiti, datada em 1º de janeiro de 1804, foi
fruto de um processo de dez anos de lutas entre escravos e colonizadores
franceses, sendo que a vitória, chamada de Batalha de Vertieres, tem um sentido
histórico e de valorização nacional por se constituir como a primeira independência
de um país frente ao colonizador (francês, no caso) por mãos de escravos34.
No entanto, o processo de independência uniu diversos interesses e uma
constante mobilidade forçada de haitianos para países como França, República
Dominicana e Estados Unidos gerando no Haiti uma cultura de mobilidade e
33 “País estrangeiro”, na língua crioula, do Haiti.
34 Outra data importante para os haitianos é 18 de maio, Dia da Bandeira Haitiana, criada pelos
revolucionários meses antes da conquista da independência contra a França de Napoleão Bonaparte.
97
marronnage, que se refere à fuga do trabalho escravo pelos colonos. Esta prática
carrega ainda hoje a nomeação de marrons a indivíduos que fogem do Haiti por
diversos motivos, como brigas familiares, feitiçaria ou vodu, ou mesmo por questões
políticas e jurídicas. (HANDERSON, 2015).
A partir desse contexto, é possível pensar as diásporas haitianas, que
tiveram sua primeira expressão no período em que as forças militares
estadunidenses ocuparam o Haiti (1915-1943) e a República Dominicana (1912-
1924). Com o avanço da indústria de cana-de-açúcar para a República Dominicana
e Cuba, principalmente, houve uma escassez de mão de obra para o campo, o que
levou à vinda de haitianos, chamados de braceros. Handerson (2015) sinaliza que a
ocupação americana e a consequente diáspora haitiana deveram-se ao lugar
estratégico em que esses países estavam localizados, como possíveis instalações
alemãs no contexto das grandes guerras mundiais. No entanto, a própria
discriminação acometeu o Caribe internamente, fazendo com que a República
Dominicana ordenasse o assassinato de milhares de haitianos que ocupavam seu
território.
A segunda diáspora, afirma Handerson (2015), está relacionada à, cada vez
mais constante, presença estadunidense no Haiti, tornando obrigatório o ensino do
inglês e aumentando consideravelmente o número de igrejas protestantes no país.
Somada a essa interferência cultural, que foi responsável pelo envio dos filhos da
elite haitiana aos Estados Unidos, de 1957 a 1971 o Haiti foi dirigido sob a ditadura
de François Duvalier e a proclamação do mesmo como “Presidente vitalício”
reconfigurou a dinâmica migratória no país:
A autoproclamação de “Presidente vitalício” de François Duvalier em 1964 assustou os intelectuais e a classe média negra (médicos, advogados, professores) que não demoraram para ir ao exílio. Entre 1957 – o ano de ascensão de Duvalier ao poder – e 1963, 6.800 haitianos foram para os Estados Unidos com visto de imigrantes e outros 27.300 com visto temporário. Entre o ano da autoproclamação em 1964 até o ano da sua morte em 1971, os serviços de imigração estadunidense registraram 40.100 imigrantes e 100.000 não-imigrantes oriundos do Haiti35 (AUDEBERT, 2012, p. 26-27).
Handerson (2015) utiliza essa informação para prosseguir na descrição de
múltiplos destinos dos haitianos pelo mundo nessa segunda diáspora,
especialmente para países francófonos, como o Canadá (região do Quebec), com 90
35 Tradução de Handerson (2015).
98
mil pessoas até 2001; países africanos como Senegal, Benin e República do Congo;
Bahamas a partir de 1940, onde existem entre 40 mil e 70 mil haitianos; a Guiana
Francesa, a partir de 1963, e, consequentemente, a França, que recebeu os
primeiros haitianos somente na década de 1960, mas que na década de 1990 já
contava com 20 mil imigrantes do país caribenho.
No entanto, é para os Estados Unidos o principal fluxo de haitianos,
especialmente no que se refere ao fenômeno no boat people, quando
aproximadamente 60 mil haitianos, de 1977 por eles próprios. Destes milhares de
imigrantes, muitos outros morreram no Oceano Atlântico e outros foram naufragados
por agentes estadunidenses, o que gerou a “mobilização de diversos militantes e
instituições religiosas, políticas e associativas em prol dos direitos humanos”.
(HANDERSON, 2015, p.72).
O terceiro período da diáspora haitiana está alocado na década de 1990 e
relaciona-se com as conturbadas sucessões presidenciais no país, especialmente
pelas três passagens do governo nacional de Jean-Bertrand Aristide, que ocupou,
ao todo, oito anos no governo ao longo de 13 anos. Os sucessivos golpes
espantaram os haitianos, que buscaram refúgio em países vizinhos, além de Cuba e
Estados Unidos.
A quarta diáspora é a vivenciada atualmente pelo povo haitiano e é a que
insere o Brasil na rota em questão, embora Handerson (2015) afirme que a
mobilidade não ocorreu apenas externamente, mas mobilizou pessoas – ainda que
pela primeira vez – para o interior rural do Haiti.
Agravada pelo terremoto de 7,3 pontos na escala Richter que devastou a
capital Porto Príncipe em 2010, a crise haitiana decorria de fatores políticos, sociais
e econômicos que foram agravados com o desastre ambiental, tornando o país
incapaz de reerguer-se sozinho. Dos 10 milhões de haitianos, o terremoto matou
aproximadamente 300 mil, deixando 500 mil feridos e 3 milhões desalojados, como
informa Fernandes (2015) em sua pesquisa. Além disso, comenta a pesquisadora
(2015):
O Haiti, que já contava com ajuda humanitária antes mesmo da catástrofe, recebeu então doações, reforços de efetivo nas missões já estabelecidas (MINUSTAH, Médecins Sans Frontières e USAid, entre outros) e recursos para auxiliar na reconstrução do país. Além da presença de militares e forças humanitárias brasileiras, medida provisória assinada pelo então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, em 26 de janeiro de 2010, destinou US$ 230 milhões para ajuda ao Haiti. Somados a outros gastos com a ajuda humanitária, perto de US$ 400 milhões foram cedidos ao Haiti
99
pelo Brasil. Neste contexto, começa a circular na mídia haitiana um discurso sobre a postura humanitária do Brasil – do governo e do povo brasileiro – e sobre o novo momento econômico do país. (FERNANDES, 2015, p.41).
Assim, percebe-se que o Brasil não mostrou ser o principal destino dos
haitianos ao longo dessa história de diásporas, mas as atuais políticas tornam o tal
fluxo constante, a fim, não só de trazer novos parâmetros para a diáspora haitiana,
mas também para novas formas de recepção do Estado brasileiro, a partir de uma
política humanitária e de eixo migratório Sul-Sul.
3.2.6 A relação Brasil-Haiti
O acordo de ajuda humanitária do Brasil para o Haiti, após o terremoto de
2010, mobilizou um grande número de oficiais brasileiros na reconstrução do país
caribenho através da Minustah, e, ao mesmo tempo, trouxe uma leva de haitianos a
terras brasileiras pelas portas do Acre, rumando, em sua maioria, para São Paulo e,
em número considerável, para Manaus e Curitiba.
Embora este tópico já tenha sido adiantado na Introdução, é importante
ainda ressaltar que o Brasil acabou se tornando nos últimos anos o país da América
Latina com o maior número de pedidos de refúgio36. De 2010 a 2014 houve um
aumento de 2.123%, segundo o Ministério da Justiça, passando de 1.165 pedidos
para 25.99637. É importante lembrar que os haitianos, maior número de imigrantes
neste espaço de tempo, não estão inseridos como refugiados, mas sim como uma
migração humanitária, recebendo o visto humanitário de permanência. Por parte do
Haiti, o Brasil, desde 2010, foi o país que mais contribuiu com sua reconstrução
através da cooperação com a ONU, superando, inclusive, os Estados Unidos,
36 Dados de agosto de 2015 do Ministério da Justiça trazem os países com mais pedidos de refúgios
no Brasil, nesta ordem: Síria (2077 pedidos); Angola (1480); Colômbia (1093); Rep. Democrática do
Congo (844) e Líbano (389). Extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/08/1671083-
numero-de-refugiados-no-brasil-quase-dobra-em-quatro-anos.shtml?cmpid=fb-uolnot
37 http://www.dw.com/pt/chegada-de-refugiados-pressiona-brasil-a-reorganizar-fluxo-
migrat%C3%B3rio/a-18498897
100
“apoiador”38 histórico dos haitianos. Uma das iniciativas, por exemplo, foi lançar no
segundo semestre de 2015 de 43,8 mil solicitações de residência permanente para
haitianos no país39, que pode acarretar, futuramente, em um aumento de fluxos
Haiti-Brasil.
Com estes acordos, torna-se evidente no cenário midiático, social e
acadêmico que a migração de haitianos para o Brasil se consolida como o principal
fluxo migratório para o país. Além dos acordos que propiciam elevadas levas de
imigrantes, outras evidências são caracterizadas pelas inúmeras mídias que surgem,
como a comunidade do Facebook Haitianos no Brasil, que visa a integração entre
brasileiros e haitianos; e o site Haiti Aqui, vinculado à ONG Viva Rio, que dá apoio
ao haitiano e promove sua cultura em diversos idiomas.
Outra forma de perceber tal incidência vem pelas próprias pesquisas sobre
imigrantes e o aumento expressivo de pesquisas sobre o Haiti, como é o caso do
Observatório de Migrações da UFPR, criado em 2015, e que se debruçou sobre a
presença dos nativos do país caribenho no Paraná em uma extensa pesquisa. Na
mídia brasileira pode-se notar um destaque também: com um monitoramento de 1
(um) mês, apenas com a palavra-chave haitianos, foram encontradas 72 menções
ao termo em títulos de matérias na internet através do Google Alerts, conferindo uma
média de 2,2 menções diárias apenas ao referido termo. Dentro do período de
acompanhamento (14/10/15 a 14/11/15), as principais notícias se referiam ao
assassinato de um haitiano no Brasil e às eleições presidenciais haitianas, que
possivelmente seria pouco noticiada se não houvesse esta relação entre ambos os
países.
Neste sentido, é importante construir este referencial para podermos chegar
ao estágio metodológico, buscando compreender como são realizados processos
comunicativos dos haitianos no Brasil, não só representados pela mídia, mas pelos
próprios sujeitos dessa pesquisa, os quais buscam também direitos e políticas
públicas que atendam necessidades primordiais. Considerando isso, passamos para
38 As aspas relativizam o apoio dos Estados Unidos, visto que desde o processo de independência
houve inúmeros interesses por parte destes sobre o Haiti, contribuindo, inclusive, nas ditaduras que
acometeram o país caribenho.
39 http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/ministros-assinam-ato-concedendo-
autorizacao-de-permanencia-para-haitianos
101
o capítulo metodológico, que descreverá também organizações de apoio aos
haitianos em Curitiba, tidas nessa pesquisa como agentes importantes para a
realização de tais processos comunicacionais.
102
4 METODOLOGIA DE PESQUISA
O capítulo metodológico apresenta algumas etapas, que se iniciam pela
construção de concepções gerais que demarcam o território epistemológico da
pesquisa e suas relações como abordagem teórico-metodológica dos estudos
culturais. Esta abordagem alinha-se à Hermenêutica de Profundidade, organizada
por John B. Thompson, em 1990, em seu livro Ideologia e Cultura Moderna (2011),
conformando a estrutura dessa pesquisa de mestrado.
Ao seguir essa estrutura, os objetivos da pesquisa se integram à proposta,
que culminam na exploração das técnicas de coleta e análise, sendo elas,
respectivamente, a observação não participante e entrevistas; e a análise de
conteúdo. Por fim, o capítulo descreve as organizações de apoio aos migrantes em
Curitiba, visto que a pesquisa parte do pressuposto que as mediações realizadas por
essas organizações têm papel central na construção da identidade dos indivíduos no
novo território geográfico-cultural.
*
Compreende-se que a pesquisa, ao utilizar os estudos culturais como base
teórico-metodológica, encontra-se na dimensão da Teoria Crítica pela marca
presente do marxismo de ótica gramsciana. Sobre isso, afirma Ambrosino (2009):
Outra forma de teoria crítica que emergiu nos últimos anos como um importante domínio de estudo são os estudos culturais, um campo de pesquisa que examina como a vida das pessoas é moldada por estruturas repassadas historicamente de geração em geração. Os especialistas em estudos culturais estão preocupados antes de tudo com textos culturais, instituições como os meios de comunicação, e manifestações da cultura popular que representam convergência entre história, ideologia e experiências subjetivas. (AMBROSINO, 2009, p.28).
A Teoria Crítica compreende uma dimensão ontológica a partir de um
realismo histórico, que é construído junto às teorias da globalização e aos
fenômenos migratórios contemporâneos como uma das consequências deste
processo. A dialogicidade se encaixa de modo importante na perspectiva dos
estudos culturais, pois ao valorizar culturas de resistência (no caso, culturas
migrantes), o trabalho põe em questionamento valores culturais hegemônicos para
dar visibilidade a formas híbridas de vida, identidade e territorialidade.
103
A partir destas decisões filosóficas é possível estabelecer decisões
operacionais para a pesquisa, como métodos e técnicas. Antes, ainda, é necessário
pontuar que o tipo de pesquisa é de abordagem qualitativa e terá como principal
metodologia a Hermenêutica de Profundidade.
4.1 A HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE (HP)
A HP é o primeiro ponto da metodologia deste trabalho, pois compõe uma
relação entre teoria e abordagem metodológica, sendo esta sublinhada pela
presença da cultura e da ideologia que aqui se fazem presentes, seja pela vertente
dos estudos culturais expressos no olhar sobre o multiculturalismo da globalização,
seja pela vertente comunicacional que assume a ruptura epistemológica de Martín-
Barbero (2004), modificando o lugar da análise comunicacional do emissor para o
receptor, dos meios para as mediações. Antes de se aprofundar sobre a cultura, faz-
se necessário levantar alguns pontos pelos quais se escolheu a HP como
abordagem metodológica.
John B. Thompson, que constrói o mapa desta metodologia, argumenta que
a mesma tem como “objeto de análise uma construção simbólica significativa, que
exige interpretação” (2011, p.355), e essas formas simbólicas – que podem ser
textos, falas ou ações – construídas sobre distintos contextos sociais e históricos
podem ser inter-relacionadas com outros métodos, de forma que supram a
deficiência da análise positivista no que tange à capacidade interpretativa. Por
formas simbólicas compreende Thompson:
As formas simbólicas são construções significativas que são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e recebem, mas elas são também construções que são estruturadas de maneiras definidas e que estão inseridas em condições sociais e históricas específicas. (2011, p.365).
Essas formas simbólicas, caracterizadas pelas construções significadas, ao
mesmo tempo em que são dotadas de uma estrutura específica, correspondem às
práticas comunicativas realizadas pelos haitianos, objetos da pesquisa.
Caracterizadas pelas múltiplas interações, tais processos não desenvolvem seus
circuitos no vazio, mas apresentam estruturas estabelecidas que colocam o produto
104
comunicativo em circulação. (BRAGA, 2012). Considerando este fluxo contínuo sem
ser totalmente livre de qualquer direção de circulação, as formas simbólicas
referendadas por Thompson (2011) estão em estreita relação com o objeto deste
trabalho.
Thompson (2011) delineia algumas condições dessa investigação sócio-
histórica considerando o campo de análise das ciências sociais como um campo-
sujeito. Sua argumentação reside no fato de que a pesquisa social considera o
objeto um “território pré-interpretado” (p.358) e, por isso ele é um campo-sujeito, pois
o objeto não é apenas observado, mas construído por sujeitos que se preocupam
em compreender a si mesmos e aos outros, interpretando falas e ações ao seu redor
por meio da vida cotidiana.
Assim, quando os analistas sociais procuram interpretar uma forma simbólica, por exemplo, eles estão procurando interpretar um objeto que pode ser, ele mesmo, uma interpretação (...) os analistas estão oferecendo uma interpretação de uma interpretação, estão re-interpretando um campo pré-interpretado. (THOMPSON, 2011, p.359).
Desta forma o autor acentua que na análise social o sujeito que constitui o
campo também pode refletir e compreender. Thompson fala de uma
retroalimentação deste sujeito frente ao resultado do analista social numa “relação
de apropriação potencial” (2011, p.359). Exemplo dessa apropriação é a própria
pesquisa aqui realizada que faz uma análise a partir da realidade sócio-histórica
vivida e também ressignificada pelos migrantes haitianos no decorrer de seus
trajetos pessoais e coletivos.
Disso pode se extrair a importância da hermenêutica, que considera que os
humanos estão inseridos em tradições históricas, sendo eles (nós) partes delas e,
por isso, o processo de compreensão é “mais do que um encontro isolado de
mentes”. (Idem, p.360). Thompson fala também da experiência com a historicidade,
ressaltando que os resíduos do passado não servem apenas para ser referência ao
presente, mas também para mascarar conflitos sociais deste tempo. E isso diz
respeito às tradições, que por muitas vezes são recentes, mas conformam as ações
e interpretações através de aparatos ideológicos como relações históricas de
gênero, raça e religiosidade em determinados espaços.
Thompson (2011) apresenta um referencial metodológico claro e
sistematizado, apesar de assumir a dificuldade e a necessidade da profundidade do
pesquisador para esta análise hermenêutica. Pensando na estrutura da cultura, o
105
autor explica que a análise cultural, em síntese, “é o estudo da construção
significativa e da contextualização social das formas simbólicas”. (2011, p.363). O
autor considera a hermenêutica da vida cotidiana como um ponto de partida
primordial e considera enfoques etnográficos que abarcam entrevistas e observação
participante, por exemplo, como formas de aplicação de procedimentos para a
compreensão dos contextos e significados.
Esse processo, que é interpretativo do ponto de vista do cotidiano, consiste
no que Thompson chama de interpretação da doxa, ou seja, a interpretação de
opiniões e crenças que sustentam as compreensões dos indivíduos no mundo social
como fundamentais para entender como as pessoas compreendem as formas
simbólicas. (2011, p.364). Este passo configura-se como um momento etnográfico,
que reflete sobre como as pessoas pensam o mundo a sua volta de modo
interpretativo, reconstruindo esta realidade com base no acompanhamento
etnográfico. Sobre a doxa, Thompson critica as análises que se conformam em tratar
a doxa como todo o aporte investigativo e não só como uma das partes
fundamentais. Thompson (2011) apresenta um quadro que considera formas da
investigação hermenêutica: a primeira sendo a hermenêutica da vida cotidiana e a
interpretação da doxa; e uma segunda, sendo o referencial metodológico da HP, que
se divide em três: análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva,
interpretação/reinterpretação. O quadro abaixo sistematiza isso de forma mais clara:
FIGURA 1 – Esquema metodológico da Hermenêutica de Profundidade.
Hermenêutica da vida cotidiana Interpretação da doxa
FONTE: Thompson (2011).
106
Assim, o primeiro momento desta pesquisa consiste no acompanhamento,
de caráter etnográfico, do cotidiano dos haitianos no que se refere aos processos
comunicativos junto às organizações de apoio, podendo ou não apresentar formas
midiatizadas. Especialmente mediada pelas organizações de apoio aos haitianos, a
hermenêutica da vida cotidiana não apresenta apenas um relato de campo, mas
também a interpretação dessa relação cotidiana, expressa por meio do
acompanhamento de momentos coletivos do grupo de imigrantes haitianos, a fim de
notar suas formas de identificação e reconhecimento construídas nesse processo
comunicativo.
Já referida à primeira parte da HP, a interpretação da doxa é seguida pela
análise sócio-histórica. Thompson afirma que “o objetivo da análise sócio-histórica é
reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das
formas simbólicas” (2011, p.366), cujos contextos são situações localizadas no
espaço-tempo, campos de interação (ex: campo educativo), instituições sociais
(localizadas dentro dos campos de interações; como a escola, por exemplo, no que
se refere ao campo educativo) e a própria estrutura social, cuja característica é mais
aprofundada e durável, mesmo em comparação aos outros aspectos.
Thompson (2011) considera a análise sócio-histórica como uma forma de
compreender a contextualização das formas simbólicas. Ele deixa claro que vê
dividida a produção, a circulação e a recepção destas, mas ao mesmo tempo
reconhece o caráter implícito do processo de produção, articulado pela adaptação às
condições de circulação e recepção, o que possibilita um diálogo mais próximo a
partir do panorama das teorias latino-americanas.
As construções simbólicas que circulam nos campos sociais têm uma
estrutura articulada que demanda a análise discursiva/formal. As formas simbólicas
são os produtos de ações, contextualizados e estruturados, por isso sempre dizem
alguma coisa sobre algo. Desta forma, esta análise se interessa pelo que há de
interno nas formas sociais (estruturas, padrões e relações).
Esta é a parte da HP a qual Thompson (2011) mais referencia em sua
contribuição metodológica. Não que ela seja mais importante do que as outras, mas
é nessa etapa que o autor considera central a ideia da estrutura, importante para a
análise da hermenêutica. Da mesma forma, a análise sócio-histórica também é a
que está mais implícita neste trabalho através da construção teórica, com base nos
estudos culturais. E tendo esta metodologia como norte para a evolução da
107
pesquisa, o referencial teórico que discorre sobre a interação dos Estados-nação à
globalização e do nacional ao multicultural, revela o cenário sociológico do universo
pesquisado. Ao mesmo tempo, a mediação e a midiatização desvelam, ainda com os
olhos do cultural, seu cenário comunicativo, da mesma forma que a construção do
capítulo sobre a imigração no Brasil e no Haiti revela o cenário histórico da pesquisa.
Ao adentrar na etapa da análise formal ou discursiva, Thompson (2011) cita
a semiótica de Barthes como um componente desta análise e que compõe o
primeiro interesse dessa etapa: a constituição interna das formas simbólicas.
Embora Thompson fale da semiótica, afirma ele a possibilidade de outros tipos de
análises a serem aplicadas, como no caso desta pesquisa, que opta pela análise de
conteúdo dos processos de midiatização observados.
Para compreender melhor a abrangência da análise discursiva/formal de
Thompson, faz-se fundamental entender que o autor compreende o discurso como
“instâncias da comunicação correntemente presentes” (2011, p.371). Neste sentido,
esta análise não quer “testar nossas intuições linguísticas, mas antes casos
concretos da comunicação do dia a dia (...)”. (Idem), ou, como temos tratado até
aqui, da relevância da dimensão interacional da comunicação, que se estabelece na
relação entre os homens, mediados por contextos da vida.
A última fase do enfoque da HP é a Interpretação/reinterpretação, que é
facilitada pela análise discursiva (e também pela sócio-histórica), mas distinta dela,
porque avança para a construção criativa de possíveis significados. “As formas
simbólicas representam algo, elas dizem alguma coisa, e é esse caráter
transcendente que deve ser compreendido pelo processo de interpretação” (2011,
p.376) – argumenta Thompson para deixar claro que sua abordagem não exime o
papel do pesquisador e sua capacidade de se ocupar do transcendente de uma
realidade que já foi representada e, por isso, é reinterpretada. Ou seja, o processo
de interpretação também é uma reinterpretação porque os campos das formas
simbólicas analisados já são pré-interpretados pelos sujeitos que constituem o
mundo sócio-histórico, ainda que a reinterpretação possa divergir de quem
inicialmente a interpretou: os sujeitos sociais. Desta forma, o autor não exclui um
conflito de interpretação, que é intrínseco ao próprio processo. (THOMPSON, 2011).
108
4.2 QUESTÕES DA PESQUISA APLICADAS À METODOLOGIA
Ao se definir como objeto da pesquisa os processos de comunicação
estabelecidos entre os imigrantes haitianos e a sociedade no universo de Curitiba, o
desafio da pesquisa não é simplesmente responder quais são esses processos, mas
descrever como eles são construídos, buscando analisar sob quais interferências
são organizados, mediados por quem e submetidos a qual circuito de informação. É
importante considerar que a pesquisa apresenta um pressuposto, o qual sugere que
as organizações de apoio têm papel central para que os processos de comunicação
se realizem e contribuam para a construção da identidade cultural destes indivíduos.
Assim, parte-se da ideia de que tais organizações, ao se relacionarem com
os haitianos, conseguem por excelência contribuir com o processo comunicativo,
que passa pela esfera das próprias organizações, dos indivíduos (haitianos) e da
sociedade, sem que a pesquisa se preocupe, neste momento, em analisar como
estas informações são recebidas pelo grande público, através da imprensa, por
exemplo. Adiante, serão discutidas organizações de apoio de referência em Curitiba,
as quais têm trabalhado com os haitianos residentes nesta capital e região
metropolitana. Antes de entrar na descrição das organizações e das técnicas de
análise, é preciso ter claro quais são os processos de comunicação que serão
analisados na pesquisa.
Sendo este o ponto de maior dificuldade em todo o processo de ação e
reflexão do pesquisador, justamente pelo objeto da pesquisa não se apresentar de
modo mais explícito, como um programa televisivo, páginas de jornais ou um
discurso político, por exemplo, a pesquisa buscou captar objetos empíricos que
contribuíssem para uma análise mais concreta. As práticas comunicativas, que serão
descritas com mais detalhes na análise, são compostas por alguns processos
empíricos, como eventos e cursos, realizados por algumas instituições, exposições
fotográficas da migração haitiana realizadas em eventos públicos; e alguns
processos comunicativos observados, sem que pudessem ser mensurados neste
momento antes de serem questionados aos indivíduos-sujeitos do processo, como
as inúmeras fotografias e filmagens registradas pelos haitianos em seus aparelhos
celulares nos mais diversos momentos coletivos acompanhados na pesquisa
exploratória, além das interações via rede social virtual, via Facebook. Sendo estes
109
os objetos empíricos observados nos processos comunicativos, nota-se que todos
eles estão, de certa forma, envoltos pelo “cuidado” das organizações de apoio.
Assim, o pressuposto da pesquisa, que sugere a influência chave das organizações
em tais processos perde o poder de comparação se tudo está vinculado a elas.
Apesar da afirmação ser correta, visto que a observação do pesquisador se
manteve sobre as práticas realizadas com/através das organizações, o instrumento
de pesquisa busca responder este pressuposto pelas entrevistas semiestruturadas
realizadas com os atores envolvidos. Além da análise dos objetos empíricos, as
entrevistas apresentam-se como ponto central, não só por evidenciarem a voz dos
haitianos em meio a diversos outros espaços de fala observados na pesquisa, mas
por oferecerem a este trabalho a possibilidade de confrontar questões fundamentais,
como as noções de identidade cultural por meio de práticas comunicativas e a
referência das organizações de apoio a eles.
4.3 TÉCNICAS DE PESQUISA
As técnicas de coleta e de análise presentes na pesquisa permeiam a
Hermenêutica de Profundidade nas suas etapas e são mais bem delimitadas a
seguir:
4.3.1 Técnicas de coleta
São duas as técnicas de coleta utilizadas na pesquisa: a observação
participante (que compõe o momento da interpretação da doxa); e as entrevistas
semiestruturadas (que compõem o momento da análise discursiva). A primeira
técnica auxilia na percepção e categorização daqueles objetos empíricos
anteriormente citados e a segunda auxilia na obtenção de informações com os
imigrantes haitianos, cujos recortes de fala servem para uma confrontação das
realidades observadas e também como forma de captar os usos de midiatização
realizados pelos haitianos, especialmente na circulação dos eventos por meio dos
110
registros via celulares nos diversos momentos observados nesta pesquisa. Assim,
apresentamos uma breve descrição do que é cada uma das técnicas.
4.3.1.1 Observação participante
A observação participante é vista aqui como uma interessante opção, pois
esta é compreendida como o modelo de pesquisa em que existe presença do
pesquisador junto ao público, podendo saber ele ou não da atividade daquele.
Segundo Peruzzo (2010), o pesquisador também pode participar de todas as
atividades, ou seja, acompanhando e vivenciando com menor ou maior intensidade
os processos. Peruzzo também afirma que o pesquisador é autônomo, tendo o
grupo ou qualquer elemento do ambiente a incapacidade para interferir na
formulação dos objetivos, tanto quanto nas demais fases do projeto. O pesquisador
também pode ser “encoberto” ou “revelado” para o grupo com o qual está lidando.
No caso da presente pesquisa, a presença do pesquisador como tal era encoberta,
ainda que o mesmo participasse e contribuísse, como voluntário, em alguns dos
processos comunicativos, como nos eventos e cursos realizados pelas
organizações.
Peruzzo não faz distinção entre observação-participante e não participante,
ou mesmo da pesquisa-ação, mas compreendendo que há uma diferença no papel
do pesquisador. A atual pesquisa recai sobre uma observação participante, em que
há uma participação passiva do pesquisador nos processos comunicacionais,
diferentemente da pesquisa-ação, cuja participação do pesquisador se torna
decisiva na metodologia. Da mesma forma, Peruzzo compara a observação-
participante com a investigação etnográfica no interesse que esta:
(...) tem em elaborar mapas descritivos dos modos de vida dos territórios estudados, enquanto na área de comunicação ela tem sido usada para descrever fenômenos comunicacionais, principalmente dos processos de recepção de mensagens dos meios de comunicação de massa. (PERUZZO, 2010, p.135).
Compreendendo a forma de se fazer a observação participante, a intenção
estabelecida aqui é promover uma análise sistematizada das mediações existentes
entre as instituições e os imigrantes, a fim de compreender como acontecem os
111
processos de midiatização entre os atores e de que forma40 estas práticas
comunicativas chegam à esfera pública.
4.3.1.2 Entrevista semiestruturada
A fim de especificar alguns pontos, a técnica de entrevista semiaberta ou
semiestruturada pretende ser utilizada para enfatizar falas percebidas durante a
aplicação da pesquisa como fundamentais. Aproveitando que as entrevistas
dispõem de um resultado discursivo mais concreto do que a observação participante,
seus apontamentos são categorizados, como parte da análise dos resultados da
própria técnica de entrevista, mas aperfeiçoados pela análise de conteúdo. Para
esclarecimentos, a entrevista semiestruturada:
parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. (TRIVIÑOS apud DUARTE, 2010, p.66).
4.3.2 Técnica de análise
A técnica de análise selecionada para esta pesquisa é a Análise de
Conteúdo (AC). Baseada em Laurence Bardin (1988), a AC está presente como uma
das possibilidades da análise formal da HP, junto a outros tipos de análise, como a
análise do discurso ou a análise semântica, por exemplo.
Segundo Krippendorff (1990), citado por Fonseca Júnior (2010, p. 287), há a
consideração por parte da pesquisa sobre tais marcos de referências: 1) os dados,
de acordo como foram apresentados (através da observação dos processos
comunicativos); 2) o contexto dos dados (contexto comunicativo/midiatizado, através
da circulação interacional de informações que permeia o universo dos imigrantes na
sociedade); 3) conhecimento do pesquisador; 4) objetivo da AC (identificar como os
processos de midiatização contribuem na construção da identidade e
40 “Forma” não no sentido instrumental, de divulgação, mas sim quais as marcas comunicativas que
se apresentam à esfera pública e se relacionam com discursos já existentes nela.
112
reconhecimento dos haitianos e a centralidade das organizações ou não nesse
processo); 5) inferência como tarefa intelectual básica; 6) validade.
Alguns dos elementos da AC são trazidos abaixo no âmbito desta pesquisa:
Unidade de amostragem: entrevistas.
Unidade de registro: discursos sobre a construção de identidade dos
haitianos em Curitiba,
Regra de enumeração: intensidade, que é “referente à quantidade de
associações e classificações manifestadas sobre um símbolo, ideia
ou tema (no caso, a identidade – nota minha), manifestada”.
(FONSECA JÚNIOR, 2010, p. 295).
Categorias e suas subcategorias:
o Práticas comunicativas mediadas por tecnologias: a) nas mídias
tradicionais; b) nas novas mídias.
o Manifestações culturais: a) em datas comemorativas; b) na música; c)
em formas de preconceito.
o Trabalho: a) relação com os motivos da vinda; b) ocupação atual e
relação com estudos.
o Organizações de apoio: a) formas de comunicação; b) atividades
cotidianas; c) eventos/atividades especiais.
Inferências
A AC traz diversas etapas, mas é a categorização que ganha mais destaque
nessa pesquisa. A categorização, segundo Bardin (1988), é um processo
estruturalista e trabalha com o isolamento de elementos e sua classificação,
agrupando as unidades de registro, ainda não identificadas; as categorias da AC
devem apresentar exclusão mútua, homogeneidade, pertinência, objetividade e
produtividade.
A inferência é um importante momento da AC, pois corresponde à
identificação do que está no texto superficialmente (de modo amplo) e as condições
de produção (fatores que determinam as características do texto). (BARDIN, 1988).
Observando isso, este momento da análise já se encaminha à reinterpretação da HP
de Thompson (2011), concluindo a fase da análise da pesquisa.
113
4.4 ORGANIZAÇÕES DE APOIO
As organizações de apoio consideradas nesta pesquisa correspondem a
todas que apresentam algum nível de formalidade, profissionais qualificados,
relevância social, não estatais e não necessariamente tendo como principal objetivo
o atendimento aos imigrantes, embora esta seja uma das atividades desenvolvidas.
Como Curitiba é uma cidade com uma ampla região metropolitana, diversos
haitianos moram em municípios vizinhos, mas as organizações estão todas
localizadas na capital paranaense, além de ter como foco as políticas da cidade.
Dentre as organizações, as que recebem mais destaque são a Casa Latino-
Americana (Casla) e a Pastoral do Migrante, cujo acompanhamento foi feito
enquanto a pesquisa era desenvolvida. Além das duas, outras organizações foram
identificadas:
4.4.1 Associação dos Haitianos de Curitiba
A Associação dos Haitianos se organizou em Curitiba a partir do momento
da chegada dos primeiros migrantes na cidade e é coordenada pelos próprios
haitianos, com apoio físico da Casa Latino-Americana (as reuniões são realizadas no
prédio desta organização) e institucional da Prefeitura de Curitiba, que junto aos
haitianos têm realizado eventos em prol da cultura do país. Além disso, a associação
é referência no atendimento emergencial aos haitianos em diversas situações:
encarceramento, hospitalização, busca por moradia e documentação. A entidade
tem um papel importante na aproximação institucional entre outras organizações,
formando uma rede de apoio aos migrantes que incide em políticas locais e
regionais para os mesmos.
4.4.2 Cáritas Brasileira
Segundo seu site:
114
“A Cáritas Brasileira é uma entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. Sua atuação é junto aos excluídos e excluídas em defesa da vida e na participação da construção solidária de uma sociedade justa, igualitária e plural41”.
A Cáritas, embora não seja submissa à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), entidade máxima da Igreja Católica no Brasil, tem uma relação de
“parceria” com esta, em virtude de seus valores e posturas sociais.
Vinculada à Arquidiocese de Curitiba, a Cáritas desempenhou um trabalho
de denúncia de violação de direitos humanos, através do seu Centro de Referência
em Direitos Humanos Dom Helder Câmara (CRDH)42. O Centro atendeu diversos
imigrantes e contribui na formação de políticas públicas da cidade e do estado,
articulando-se com as unidades regionais e nacional da entidade.
4.4.3 Casa Latino-Americana (Casla)
A Casla é uma organização não governamental (ONG) que atua desde 1984
em Curitiba, prestando assessoria sobre questões ligadas aos povos latino-
americanos. Compõe uma rede continental formada pelos fundadores da própria
Casla de Curitiba e nos últimos anos tem como público principal os migrantes
oriundos do chamado Terceiro Mundo, como haitianos, africanos, sírios e sul-
americanos.
A Casla conta com um profissional que atua na secretaria executiva e auxilia
no primeiro contato com migrantes em busca de informações e documentos
necessários. No entanto, a principal referência da Casla nas políticas públicas para
migrantes ocorre no âmbito do assessoramento jurídico, por intermédio de um
núcleo jurídico amplo, composto por advogados voluntários. Além da assessoria
jurídica, a organização conta com outros núcleos, como os de cultura, comunicação,
psicologia e relações internacionais, também formados por voluntários. Ao longo dos
41 http://caritas.org.br/tag/arquidiocese-de-curitiba
42 O CRDH funcionou até o término do convênio com a Caritas Brasileira, no segundo semestre de
2015.
115
anos, a entidade desenvolveu diversos eventos, sendo que em 2015 a principal
atividade foi um curso sobre direitos aos migrantes, que perdurou até o fim do ano.
4.4.4 Igreja Batista Pompeia
A Igreja Batista Pompeia está localizada na Vila Pompeia, bairro Tatuquara,
e desempenha um trabalho de assistência social sob demanda. Desde 2012
atuando com a temática dos migrantes, em sua maioria haitianos, a Igreja promove
encaminhamento para regularização de documentos de busca de empregos. Na
perspectiva religiosa há cultos semanais em crioulo, a língua oficial do Haiti, e
ensinamento bíblico aos interessados. O pastor da Igreja, brasileiro, conseguiu um
aluguel de uma lan house, onde os próprios imigrantes de auto-organizam para uso
da internet.
4.4.5 Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PR)
A atuação da OAB confunde-se com a atuação da Casla, visto que o corpo
de advogados da Comissão de Direitos dos Refugiados e Migrantes da organização
atua na Casla, especialmente por meio de suas coordenadoras, que são parte
constitutiva desta outra organização. Não há uma diferença na atuação no que tange
ao assessoramento jurídico, mas há um reforço deste trabalho por parte da OAB e
sua força institucional.
4.4.6 Pastoral do Migrante
A Pastoral do Migrante pertence à Igreja Católica e compõe uma das
diversas pastorais sociais da instituição religiosa. Seu caráter de pastoral social
incide justamente por ser o segmento da estrutura da Igreja Católica no Brasil
116
preocupado com temáticas sociais, como as da infância e juventude, aleitamento
materno, questão carcerária, negra, indígena e a migrante, dentre outras.
Organizada em uma grande rede eclesial, a Pastoral do Migrante, assim
como todas as outras pastorais, está espalhada em diversos lugares do Brasil,
atuando concretamente em estruturas paroquiais ou arquidiocesanas (conjunto de
pastorais). A Pastoral do Migrante, em questão, da Arquidiocese de Curitiba, existe
há 12 anos e tem sua sede localizada na paróquia do bairro Santa Felicidade, onde
dispõe de uma assistente social contratada, um padre coordenador e uma equipe de
voluntários que se reveza no atendimento básico aos imigrantes que pedem auxílio.
Além da sede, há outra comunidade, localizada na região do Umbará (Curitiba), que
promove atendimentos e eventos, mais voltados ao calendário eclesial, como a
Semana do Migrante, por exemplo.
Atendo-se mais à sede, a Pastoral do Migrante atende a uma média de 200
imigrantes semanalmente, em sua grande maioria de nacionalidade haitiana,
especialmente pelo fato do padre coordenador ser natural deste país. Os
atendimentos são pontuais e cumprem a função de fornecer documentos, buscar
empregos e mediar com os empregadores os direitos trabalhistas desses imigrantes.
Para além das atividades rotineiras, a Pastoral organiza mensalmente missas para
imigrantes, celebrações festivas, como a Festa Haitiana e a Festa Latino-Americana,
e celebrações nacionais da Igreja Católica, como a Semana do Migrante.
4.4.6.1 Recanto Franciscano
É um braço da Pastoral do Migrante, não sendo submissa à sua
organização. É uma casa religiosa que acolhe migrantes desabrigados de 15 dias a
três meses, sem custos. Pertence à Ordem dos Franciscanos e, junto à Pastoral,
cumpre um importante papel de atendimento e formação de políticas públicas entre
a Igreja Católica e a sociedade civil.
4.4.7 Programa Política Migratória e Universidade Brasileira/UFPR
117
Especialmente fomentado pelo Programa de Línguas da Universidade
Federal do Paraná, o Programa Política Migratória e Universidade Brasileira/UFPR
inicia-se com a inserção do curso de Letras da UFPR, mas abrange hoje outros
cursos, como Direito, Psicologia, Informática e Sociologia.
O Projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), do
Departamento de Letras, é uma referência na questão do idioma para os imigrantes,
especialmente haitianos. Desde 2013, o Projeto atende grupos de alunos
estrangeiros para ensino do idioma e contribui na organização da rede de apoio aos
migrantes, como auxílio básico de uma importante demanda: a língua. Além do
curso de português, o PBMIH contribui com outros tipos de formação e materiais,
como, por exemplo, dicas de amamentação, organização do encontro de
lançamento ao Programa de Políticas Públicas para Migrantes, Refugiados e
Apátridas do Governo do Estado do Paraná – que contou com uma exposição
fotográfica – e duas contribuições para documentários: O PBMIH lançou um
minidocumentário sobre os haitianos a partir da perspectiva dos imigrantes e foi
fonte para o documentário, Adeus, Haiti, do canal Globo News, produzido em 2014.
Além do PBMIH, outro destaque vem do curso de Direito, que apoia e realiza
atividades de defesa e promoção dos direitos dos migrantes e refugiados.
118
5 ANÁLISE
De acordo com a Hermenêutica de Profundidade (HP), a análise a seguir se
dividirá em três partes principais, sendo elas: a) a interpretação da doxa feito por
meio da observação participante; b) a análise sócio-histórica, composta pelo
referencial teórico trazido nessa pesquisa, com algumas ênfases; c) a análise de
conteúdo das entrevistas a partir de categorias estabelecidas e a posterior
inferência/reinterpretação, a partir das reflexões realizadas pelo pesquisador nesse
trabalho.
5.1 A INTERPRETAÇÃO DA DOXA
Como afirma Thompson (2011), a interpretação da doxa é a hermenêutica
do cotidiano e busca, por meio de abordagem etnográfica, interpretar formas de vida
e opiniões frente a situações ou temas que sustentam o indivíduo no mundo social.
Neste sentido, foi realizada uma observação participante em duas das organizações
de apoio aos imigrantes identificadas, a fim de analisar previamente como se davam
as práticas comunicativas dessas organizações e dos imigrantes haitianos, de
variadas formas: entre organizações e haitianos; entre os próprios haitianos; entre as
organizações e a sociedade e entre os haitianos e a sociedade. A escolha pelas
organizações como mediadoras para essa observação vem pela minha experiência
– e passo a utilizar neste tópico o uso da primeira pessoa – por ser fundamental um
trabalho de acompanhamento constante, para possibilitar a compreensão do
cotidiano daquele que Eagleton (2011) chama de outro.
Na descrição feita a partir da observação participante e na concomitante
interpretação do cotidiano vivido fica claro que algumas das formas de comunicação
utilizadas se tornaram mais evidentes do que outras pelas próprias características de
trabalho das organizações; pelos eventos e atividades principais que compuseram o
cenário desses quase dois anos de acompanhamento; e pela conjuntura sócio-
histórica, que será especificada no próximo tópico. Cabe ressaltar também que a
aproximação às organizações não foi apenas estrategicamente pensada para a
119
pesquisa, mas compõe uma ética pessoal de engajamento que já vinha sendo
realizada e de compatibilidade ideológica sem, contudo, deixar de se manter uma
reflexão científica – e por isso crítica – dos fatos observados e da própria ação
empregada como voluntário das duas organizações, que agora relembro: a Casa
Latino-Americana (Casla) e a Pastoral do Migrante da Arquidiocese de Curitiba.
Um ponto importante a se afirmar neste momento é a presença de ambas as
organizações no Facebook, por meio de suas páginas nesta rede social, que neste
trabalho não será objetivo de análise por serem administradas – ambas – por mim,
sendo necessário um respeito à metodologia da observação participante defendida
neste trabalho que se difere da pesquisa ação, a qual não há apenas a participação
do pesquisador, mas também uma ação que vai ao encontro da pesquisa, estando
uma relacionada a outra.
Assim, é necessário resgatar que a análise das práticas comunicativas que
são fomentadas a partir do universo das organizações e dos haitianos está ligada ao
pressuposto da pesquisa: as organizações de apoio aos imigrantes haitianos em
Curitiba, ao desempenharem processos comunicativos que envolvam práticas
culturais e de assessoria de direitos, constituem-se como as principais fomentadoras
dos processos comunicativos dos imigrantes haitianos com a sociedade da capital
do Paraná e seus arredores.
5.1.1 Pastoral do Migrante em foco
Minha primeira relação com os migrantes haitianos em Curitiba ocorreu por
meio da Pastoral do Migrante, a partir daqui chamada apenas de Pastoral, por ser o
único Serviço de Pastoral da Igreja Católica ao qual farei menção nesse trabalho. A
vinculação a essa organização se deu em maio/junho de 2014 e perdura até o
presente momento na função de voluntário: recepção aos imigrantes que buscam o
serviço de assistência social e documentação e contribuição em atividades de
comunicação da Pastoral. Ambas as atividades puderam colaborar para um
acompanhamento mais detalhado do cotidiano da entidade – suas necessidades
mais eminentes e anseios – e das atividades que ela realiza, respectivamente.
120
Um ponto a ser comentado é que, há dois anos, o padre coordenador desta
Pastoral é um haitiano. No entanto, não é possível afirmar que sua presença tenha
feito o público haitiano ser a principal nacionalidade requerente de auxílio da
Pastoral – isto se deve ao real aumento destes imigrantes em Curitiba, comparados
a imigrantes de qualquer outra nacionalidade. Percebe-se, contudo, que a proporção
dos haitianos na Pastoral é maior do que a encontrada na Casla, sendo constantes
as buscas para “falar com mon père43”, referentes a assuntos que a assistente
social, funcionária da Pastoral, poderia ajudar com mais eficácia.
Diferentemente do público entrevistado para esta pesquisa, a maioria dos
haitianos que busca o serviço da Pastoral não teve acesso ao ensino superior em
seu país. A sua principal busca, em termos de acompanhamento, refere-se,
prioritariamente, à emissão e procura por documentos, como o documento consular,
de residência e passaporte; os outros motivos de busca pela Pastoral notados
durante a observação participante referem-se à procura por vagas de emprego,
roupas e cestas básicas.
O constante volume de haitianos, que chegam a aproximadamente 100
atendimentos em dias de pico, fez a Pastoral realizar uma interação com as
universidades, a fim de conseguir voluntários qualificados, em regime de estágio de
ensino superior, não remunerado, para contribuir no fluxo de atendimentos. Além
disso, conta-se com um aporte histórico dos leigos scalabrinianos, derivados da
Congregação de João Batista Scalabrini – bispo fundador e santo pela Igreja
Católica – e que historicamente contribui com as Pastorais de Migrantes pelo
mundo, sendo a de Curitiba uma das mais importantes no país a ser gestada pela
Congregação. Por fim, são constantes os voluntários espontâneos que chegam por
meio de alguma referência midiática sobre a Pastoral ou simplesmente por causa
dos imigrantes. Nesse segundo caso, alguns voluntários relataram não conhecer a
Pastoral anteriormente, tendo passado a conhecê-la em buscas pela internet.
Referindo-se às formas de comunicação que se estabelecem entre os
imigrantes haitianos e a Pastoral, a mais presente no cotidiano é a interpessoal,
realizada por meio das interações dos atendimentos e aquelas que ocorrem nas
celebrações litúrgicas realizadas mensalmente para os imigrantes. Mesmo a
Pastoral tendo uma página no Facebook, a pouca interação existente é feita por
43 “O padre”, na língua haitiana.
121
brasileiros interessados no tema. Ao se observar a importância dos dispositivos
tecnológicos na vida dos imigrantes e ao buscar essa interação, a coordenação da
Pastoral criou um Whatsapp com alguns haitianos envolvidos sem, no entanto, haver
muitas pessoas (15 participantes no grupo, sendo dois voluntários – incluindo-me).
Assim, a principal prática comunicativa observada nessa pesquisa entre os
imigrantes haitianos e a Pastoral – mas também com a sociedade – são os eventos
realizados pela organização, que podem ser divididos em culturais e assistenciais.
A primeira categoria é constituída por eventos culturais pátrios, como a
Festa Latino-Americana (FLA) e a Festa Haitiana (FH). A primeira existe desde o
início da entidade em Curitiba, há 13 anos, e aglomera não só os haitianos, mas
todas as nações latino-americanas com o intuito de promover a cultura de cada país
por meio da música, dança, teatro e gastronomia. A FLA, que é realizada
anualmente em um espaço cultural no bairro Santa Felicidade de Curitiba, foi
observada por mim apenas nos dois últimos anos (2014 e 2015), sendo possível
extrair interpretações que permitem a análise das formas comunicativas
estabelecidas entre os diversos públicos componentes do evento.
A primeira parte da FLA tem característica institucional-religiosa, pois uma
missa é celebrada nas primeiras horas da festa, com comentários feitos pela
assistente social e ministrada pelo padre coordenador, acompanhado de outro
sacerdote como principal celebrante. Esse momento tem sido criticado pela própria
Pastoral pelo pouco alcance de pessoas externas à paróquia, mas visto como
necessário não só por abrir oficialmente a FLA, mas, sobretudo, por dar um tom
religioso em um evento promovido por uma organização católica. Em um segundo
momento, perto da hora do almoço, as barracas dos países se abrem ao público
visitante e vendem pratos típicos até o findar do dia, quando o terceiro momento do
evento, o das apresentações culturais, toma o palco e a atenção de boa parte do
público.
Embora seja bastante grande o número de imigrantes latino-americanos e
familiares presentes, há também uma popularização da festa, devido aos vários
anos de existência, que atrai uma diversidade maior de público do que a recente FH.
Dominada pelo idioma castelhano, a FLA traz boa qualidade musical e gastronômica
de seus anos de tradição, com cardápios variados e até mesmo exóticos. O mesmo
pode se dizer das músicas e danças, apresentadas por grupos voluntários, mas com
122
experiência no tema como, por exemplo, o Grupo Folclórico Integración Latina. No
entanto, é a participação da comunidade haitiana que atrai a atenção na pesquisa.
A primeira diferença entre os haitianos e os demais públicos latinos é a
língua. Com todos os outros imigrantes dominando o espanhol nas barracas e
apresentações, o Haiti traz as línguas francesa e crioula/kreyol como características
marcantes de sua identidade. Um fato que destaca a participação do Haiti com o seu
idioma, nos dois últimos anos, é o cronograma cultural apresentado por um haitiano.
Com bom domínio do português e uma particular capacidade de animação (por
exemplo, ao pedir palmas ele gritava ao microfone: “plá-plá-plá”), o interlocutor da
festa com o público traz um protagonismo haitiano em meio aos anos de tradição de
argentinos, bolivianos, chilenos, peruanos e uruguaios, principais participantes da
FLA.
Diferenças, no entanto, também marcam a participação cultural e
gastronômica do Haiti frente aos demais países latinos. Enquanto todos os outros
países apresentaram, nos dois últimos anos observados, canções muito mais
vinculadas a grupos folclóricos, o grupo dos haitianos tem apostado em suas bandas
musicais para trazer um pouco do seu país para aquele espaço. Assim, as
apresentações das demais nações têm um caráter, muitas vezes, mais latino do que
de um país específico; já os haitianos imprimem um ritmo mais forte com seus
estilos musicais muito próprios – especialmente o ritmo Kompa44 – e não se
preocupam muito em explicar o que está sendo cantado para os demais, basta senti-
lo, com sua potencialidade dançante caribenha, sua sensualidade e guitarra bem
tocada. Aqui, a dimensão do corpo quer acompanhar a abordagem cultural da
pesquisa, referindo-se à observação de corpos em trânsito e suas múltiplas formas
identitárias. Segundo Santaella (2008):
O corpo – secularmente recalcado pelo fantasma do sujeito – não retornou para ocupar o lugar deixado por esse sujeito (...). O corpo retornou como um problema, uma interrogação em busca de respostas. Daí o corpo ter se tornado presença constante nos discursos atuais. Para alguns, trata-se simplesmente de encontrar um substitutivo para ocupar o lugar vazio deixado pelo sujeito. Para outros, trata-se de explorar um território cuja geografia ainda não está reconhecida. (SANTAELLA, 2008, p.24).
44 O Kompa ou Compa é um estilo musical nascido na década de 1950, no Haiti, e é derivado do
merengue. De estilo caribenho, é caracterizado por elementos que mantêm uma batida dançante e
uma voz de impacto. O Kompa tem uma fusão com outros estilos continentais como o Reggaeton e o
Kuduro.
123
Santaella (2008) questiona: se não há corpo, onde estaria o suporte de
sustentação do sujeito? De fato, o acesso ao conhecimento e à cultura não se dá
apenas pela inteligência, mas com o corpo inteiro – físico, inteligência, sentimentos,
emoções, espiritualidade.
É neste momento que a presença haitiana conduz a FLA. Com o domínio
dos microfones de apresentação e da música, todos se unem ao redor do palco
improvisado e contribuem com um show que dura menos de 15 minutos. Ao mesmo
tempo em que o ritmo da música acelera o ritmo da festa, os haitianos, ora dançam,
ora registram tudo com seus celulares e tablets. Os mais animados brasileiros
também se unem ao grupo, mas é fácil perceber o haitiano corporalmente: sua pele
negra e suas roupas de marca e coloridas indicam que a alegria de ouvir a música é
a alegria de se sentir entre amigos.
Além dos momentos efusivos, uma apresentação cultural haitiana chamou a
atenção na FLA em 2015: um breve teatro feito por alguns atores amadores
haitianos, dialogado em altas vozes em um português pouco compreensível, marcou
a dificuldade do haitiano em viver ante o racismo e a violência. A peça termina com a
morte de uma das atrizes e com um silêncio da plateia frente à dificuldade de
compreender o diálogo, ao mesmo tempo em que tinha a certeza de que se tratava
de algo sério.
Se a música é uma marca forte da presença haitiana na FLA, a gastronomia
não demonstra o mesmo destaque. Com uma barraca menos enfeitada e com
menos variedades de pratos para se degustar do que a maioria das outras nações, o
espaço haitiano não reúne tanta gente – nem os próprios haitianos – como no palco,
embora muitos deles optem por comer na barraca de seu país, que não apresenta
um cardápio visível aos que desconhecem a cultura do país, o que é possível ser
visto na FH, por exemplo.
O outro evento considerado cultural é a FH, realizada desde a chegada
maciça dos haitianos em Curitiba. Com características muito próximas da FLA, a FH
segue a ordem missa-gastronomia-cultura artística, mas conta com um número
muito maior de haitianos e interessados pela cultura do país. Diferente da primeira,
essa atividade acontece por um motivo especial: a homenagem ao Haiti, que é
realizada no Dia da Bandeira Haitiana, 18 de maio. A festa acontece nesta data – ou
no fim de semana mais próximo – e conta com inúmeras bandeiras haitianas que se
124
misturam no meio do povo, seja em seus braços, costas ou camisetas, o que impera
é o azul e vermelho decorando o ambiente.
As apresentações musicais e as danças reproduziram, em 2015, o que já foi
descrito na FLA sem, no entanto, ter havido qualquer preocupação com a tradução
para o português nas apresentações culturais e no cardápio, o que gerou certa
dificuldade comunicativa para alguns brasileiros ou outros latinos presentes, que
relataram se sentirem “perdidos” na festa dos haitianos, embora admirassem sua
cultura. Além disso, em 2015 houve uma liberdade maior no cronograma, o que
gerou certa desorganização da festa, visto que em 2014 a FH ficou muito
condensada em figuras de liderança da Pastoral, com atividades fechadas e,
inclusive, desconhecidas para os haitianos, segundo afirmou o próprio coordenador.
No entanto, a mudança da FH de 2014 para 2015 culminou em um notável espírito
de diversão não visto no ano anterior quando a presença da comunidade externa
nem existiu.
Outro ponto que é preciso comentar é a realização de duas festas haitianas
no mesmo dia de comemoração à Bandeira, em 2015. Por motivos ainda não
justificados, a Pastoral e a Associação de Haitianos não se uniram na realização de
uma mesma celebração e acabaram por dividir o público. Por motivos de escolha e
de envolvimento com a organização, minha observação participante se concentrou
mais na FH realizada pela Pastoral, mas houve tempo de conferir a FH realizada
pela Associação, em parceria com a Prefeitura de Curitiba.
Alocada em um espaço público – Memorial de Curitiba –, localizado no
centro histórico da cidade, essa festa teve um caráter mais oficial, com falas de
autoridades e apresentações culturais mais formais, de maneira bastante diferente
da festa que acontecia paralelamente na Pastoral, a qual privilegiou a música, a
dança e a venda de bebidas alcóolicas, que foi muito bem aceita em um domingo.
Além das bebidas e das apresentações culturais, cabe ressaltar a típica culinária
haitiana apresentada na FH da Pastoral, demonstrada por pratos como o Riz Colé
(estilo risoto acompanhado de frango, alface e “piclise”, uma salada haitiana, com
cenoura ralada); Banana Frite (bananas fritas, carne de porco e piclise); Poulet
(frango acompanhado de banana, salada e piclise); e Pôte (Prato com salada e
piclise).
Tanto a FLA quanto a FH, organizadas pela Pastoral, mostraram um público
de haitianos mais jovem e moderno – especialmente pelas roupas e aparelhos
125
eletrônicos. Um aspecto diferente pode ser visto nos eventos assistenciais que a
Pastoral realizou, especialmente no fim de 2015, nos quais o público principal foi
constituído de mulheres-mães, pelo tipo de evento estar ligado a doações de cestas
básicas e presentes para crianças, além de um kit-bebê.
Em todos os eventos assistenciais o espaço da paróquia foi utilizado e a
divulgação, ao contrário dos eventos culturais, realizada internamente para pessoas
específicas. Voltados para o bom número de haitianas que têm seus filhos nascidos
no Brasil, ou que os trouxeram pequenos para cá, os eventos assistenciais se
caracterizam por um clima de familiaridade – com conversas e lanche – um maior
número de religiosos e pelo protagonismo da assistente social. Além disso, como a
Pastoral não possui recursos financeiros suficientes para esse tipo de ação, conta-se
com doações feitas por voluntários e pessoas comuns que se sentem solidários aos
imigrantes e, como existe uma relação entre assistencialismo e o trabalho das
igrejas, normalmente a Pastoral é referência para essas pessoas e, assim, tornam-
se possíveis esses grandes momentos de doação. Além das doações espontâneas
de indivíduos, a Pastoral também tem feito um trabalho de abordagem junto às
organizações privadas, o que tem resultado em consideráveis apoios no último ano.
Nota-se também nesses eventos um processo comunicacional entre os
haitianos, pois os contatos para doações são feitos, muitas vezes, em rede, entre
eles, a pedido da Pastoral. Aqui, no entanto, há uma potencialidade midiática que
não tem sido desperdiçada pela televisão. Mesmo tímidos, os haitianos costumam
aparecer nas imagens feitas pelos cinegrafistas que passaram pelos eventos
assistenciais e destacaram a necessidade dessas pessoas e a importância da
solidariedade, o que tem gerado um aumento de doações. Essa capacidade de
comunicação que a Pastoral tem com a sociedade, por meio das mídias tradicionais,
chama a atenção nessa pesquisa, mas, infelizmente, não foi possível realizar uma
avaliação entre os haitianos sobre o que achavam da cobertura midiática. Sabe-se
por conversas e observações, todavia, que alguns haitianos se sentiram
incomodados com a presença da televisão por tratá-los como indivíduos socialmente
vulneráveis. Perceptível é a dificuldade que tivemos em registrar com fotografias tais
momentos. Algumas haitianas não queriam ser fotografadas e, quando aceitavam,
normalmente não estampavam um sorriso no rosto, bastante diferente da reação dos
haitianos nos eventos culturais.
126
É interessante notar também que nos eventos assistenciais houve presença
de haitianos voluntários que contribuíram para a organização da atividade. Se nas
festas, a participação dos haitianos voluntários estava na animação e na cozinha,
nesses eventos havia uma participação mais corpo a corpo dos voluntários, seja
para ajudar no grande número de pessoas para os poucos voluntários disponíveis,
seja para ter um papel importante na organização da distribuição de itens materiais
junto aos demais haitianos pela facilidade de comunicação.
Por fim, o que foi percebido discretamente nos eventos assistenciais foi a
falta de uma maior interação entre haitianos e a sociedade. Exceto pelas
apresentações culturais, as quais propiciaram uma interação de corpos, a interação
entre brasileiros e haitianos ainda não é uma constante, seja pela possível
dificuldade de idioma ou por um “aninhamento” que os haitianos buscam entre seus
pares, que dificulta a interação nesses momentos.
5.1.2 Casla em foco
A observação participante realizada na Casla iniciou-se a partir de um
contato mais recente, mas se deu de forma mais constante do que aquela
vivenciada na Pastoral do Migrante. Iniciada a partir de maio/junho de 2015, o
principal evento analisado é o curso “Direitos e Inclusão Social: aspectos jurídicos,
culturais e psicossociais”, organizado pela Casla em parceria com o Ministério
Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR), realizado no segundo semestre de 2015,
nas dependências da Casla, com aproximadamente 80 imigrantes45 de diferentes
nacionalidades, mas especialmente haitianos e africanos.
Além desse curso, a seguir descrito, é importante destacar a participação da
Casla como uma rede de luta por direitos humanos, especialmente no que tange à
questão de território na América Latina. A Rede, denominada Casla/Cepial, já
organizou ao menos quatro grandes eventos para reunir pesquisadores, povos
originários e militantes no continente e tem nos membros da diretoria da Casla, em
Curitiba, seus coordenadores gerais. É possível observar atualmente uma mudança
45A denominação “imigrantes” neste tópico se refere também aos refugiados e aos haitianos, estes,
imigração humanitária.
127
de foco nas práticas da Casla no que diz respeito aos imigrantes de outros
continentes, como a Ásia e a África, pois o foco da organização sempre convergiu
para a valorização do território latino-americano, situação rompida pelos atuais
fluxos humanos e novas concepções identitárias como afirmam Hall (2013), Sousa
Santos (2002) e Bhabha (1998), por exemplo.
O crescimento exponencial do trabalho com os imigrantes pela Casla se dá
a partir de 2011/2012, quando há um aumento no fluxo de haitianos para Curitiba.
Atualmente, além do curso para imigrantes e do atendimento jurídico, que logo será
descrito, a Casla cedeu sua sede para a organização da Associação dos Haitianos
de Curitiba, pelo amplo espaço que a “Casa” oferece, além de ter se tornado ponto
para outras reuniões com diversas organizações de apoio.
Dado esse panorama da organização, é preciso ressaltar a estrutura atual
de atuação dos voluntários, dividida em núcleos de trabalho: o CaslaJur (assessoria
jurídica); CaslaRI (relações internacionais); CaslaCom (assessoria de comunicação);
CaslaCult (formação cultural) e CaslaPsico (assessoria psicológica). No entanto, o
único núcleo de trabalho constante na organização é o jurídico, que desempenha a
principal atividade da organização dos cinco últimos anos: a assessoria jurídica a
imigrantes. São diversos temas em foco, como problemas de documentação e
translado de familiares e pessoal, até questões mais graves, como exploração de
trabalho e agressão física. Sobre essa atividade, não foi possível fazer uma análise
mais detalhada, pois o atendimento dos advogados é feito de maneira particular com
a discussão de casos realizado semanalmente pela equipe jurídica. Os outros
núcleos se reúnem em dias diferentes da semana e organizam algumas atividades
de caráter institucional – como o CaslaCom tem feito –, de formação cultural e de
apoio ao núcleo jurídico, como é o caso do CaslaPsico.
No entanto, volta-se agora ao curso que se estendeu pelo segundo semestre
de 2015, em parceria com o MPT-PR, e reuniu um grande número de envolvidos,
seja no planejamento, execução e público de destino.
Sentindo a necessidade de oferecer uma formação aos imigrantes sobre o
Direito brasileiro em suas mais variáveis ramificações, devido às inúmeras dúvidas
que surgiam cotidianamente, o curso avançou em outras temáticas como a cultura
brasileira e a relação com as culturas de origem dos imigrantes; a possibilidade de
inclusão social através do mercado não formal de trabalho, como a economia
solidária; visitas a experiências de resistência e sustentáveis, como o assentamento
128
do Contestado, no município da Lapa (região metropolitana de Curitiba); e
empoderamento comunicacional, por meio do treinamento com câmeras e discussão
do conceito de educomunicação.
A primeira oficina para os imigrantes ocorreu com alguns convidados que
falaram sobre empregabilidade na economia solidária, o que gerou uma grande
expectativa de alguns deles que estavam ali ansiosos por uma oportunidade. Muitos
quiseram deixar seus currículos, mas, ao longo do curso eles próprios
compreenderam que não se tratava de uma seleção de empregos, mas sim de um
espaço de formação e conscientização de possibilidades de trabalho e de atuação
na sociedade pelo viés contra hegemônico.
A oficina seguinte foi ministrada pela equipe de comunicação, que ajudou a
romper com a ideia do curso como fonte exclusiva de emprego, através de conceitos
de educomunicação – análise da mídia e caráter público dos meios de comunicação
– e treinamento de câmera. Na terceira oficina iniciou-se o módulo mais longo do
curso, o jurídico, que começou com a discussão do conceito de direitos humanos,
ministrada por um imigrante com doutorado acadêmico e participante da Casla.
Ao se levar em conta os diversos tipos de imigrantes, em termos de país,
sexo, idade e formação escolar, a participação durante as oficinas pode ser
considerada satisfatória. Além disso, a participação semanal de boa parte dos
imigrantes surpreendeu a equipe organizadora, o que possibilitou também a criação
de vínculos de amizade entre os presentes. Sobre a participação, era visível que os
imigrantes que tinham maior experiência escolar eram mais participativos, mas nos
trabalhos em grupo foi possível perceber uma sintonia satisfatória entre todos.
Cabe aqui relatar que as experiências vivenciadas pelo pesquisador nas
festas organizadas pela Pastoral e nesse curso da Casla resultaram em um
interesse maior, nesse trabalho de dissertação, em descobrir os usos dos registros
que os haitianos fazem por meio de telefone celular. Nas ocasiões citadas, notou-se
amplamente que os celulares eram bastante usados durante as formações, seja, de
forma negativa, para se distrair, tirando a atenção da discussão presencial – isso era
percebido especialmente pelo uso de fones de ouvido ao fundo da sala por parte de
alguns –, seja, de forma positiva, para registrar as falas e os slides de apresentação
dos cursos com fotos, filmagens e gravações em áudio e vídeo.
A partir dessa observação, podem ser inferidas algumas práticas
comunicativas. Primeiro, observou-se uma experiência intensa de trocas
129
comunicacionais entre os imigrantes e a organização. Ainda que o espaço de
formação seja comunicativo intergrupal em si, o uso dos dispositivos tecnológicos
para registros das falas coloca em permanência o que foi ouvido naquele instante de
formação. Essa relação dos dispositivos tecnológicos com a memória tem uma
abordagem mais pedagógica e de uso exclusivo do indivíduo, podendo ser vista de
outra forma, além daquela que a relaciona com a perda da memória urbana, a que
se refere Martín-Barbero (2004) como consequência da modernização tecnológica:
Se de um lado urbanização significa acesso aos serviços (água potável, energia, saúde, educação), decomposição das relações patriarcais e certa visibilidade e legitimação das culturas populares, de outro significa também desenraizamento e crescimento da marginalização, radical separação entre trabalho e vida, perda constante da memória urbana. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.282).
Ao relacionar a perda de memória urbana à contemporaneidade, o autor
trata de colocar as tecnologias de comunicação como principais responsáveis por
essa perda, ao afirmar que as mesmas “agilizam os fluxos de informação,
revolucionam os acessos ao saber e condições de produção, mas ao mesmo tempo
em que redefinem o espaço-tempo apagam as memórias e ameaçam as
identidades”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.283). Por esse ponto de vista
apresentado pelo autor não há discordância nesta pesquisa, mas o uso pedagógico
observado especificamente dado a essa prática pode contribuir para que o registro
acione a memória desses imigrantes, contribuindo para sua inserção em um novo
espaço cultural/territorial. No entanto, o perigo existente aqui é que a memória
registrada na “memória” do celular seja facilmente esquecida se o fluxo de registros
de informações for subitamente substituído por outros e, assim, sucessivamente,
como afirmou um dos haitianos entrevistados. Essa problematização será retomada
posteriormente.
Outra forma de comunicação mediada por dispositivos tecnológicos é a dos
registros feitos pela equipe de comunicação durante todo o curso. Uma das
propostas era que a atividade resultasse em um documentário com características
institucionais, mas contando também com a experiência dos imigrantes e da própria
Casla nesse trabalho pioneiro no Paraná. Dessa forma, cada imigrante assinou uma
declaração de permissão do uso de imagem e voz e os registros das oficinas foram
realizados pelos voluntários e imigrantes que viessem a se interessar, mediante o
treinamento de câmeras realizado na segunda oficina do curso. As oficinas de
130
comunicação e o acompanhamento do curso pelos olhos de câmeras mostraram
ainda o quanto é discrepante o intensivo e extensivo uso dos celulares para registros
pessoais e o questionamento da capacidade de muitos em relação ao manuseio da
câmera. Mesmo tendo uma afinidade com os olhos das câmeras, muitos imigrantes
resistiram em trazer imagens do seu cotidiano para compor o documentário,
conforme foi solicitado nas oficinas, o que demonstra certo receio em publicitar para
o grupo o que já fazem com facilidade em redes digitais.
No entanto, outras surpresas puderam ser percebidas, especialmente a
espontaneidade de tais sujeitos em se “mostrarem” para as câmeras, especialmente
no que se refere a momentos com música, para conceder entrevista ou para
preparar com gosto uma rápida apresentação musical para serem filmados.
Neste sentido, é possível perceber que a Casla conseguiu, por meio desse
curso e dos atendimentos jurídicos, uma comunicação interpessoal muito próxima
aos imigrantes haitianos, mas ainda há pouca interação com a sociedade. Refletindo
sobre isso, pode-se inferir que a futura produção do documentário46 sobre o curso
parece significar uma importante oportunidade para que sua veiculação em diversas
mídias fortaleça a interação com a sociedade local.
Além disso, destaca-se que o trabalho da Casla com os imigrantes foi
reconhecido externamente pela aceitação da candidatura da organização ao Prêmio
Innovare 2015, pela melhor prática de advocacia do país. Embora não tenha levado
o prêmio, o fato de ser finalista gerou uma mídia espontânea de grande alcance, por
meio de uma matéria no Fantástico (Rede Globo) de dez minutos, que abordou os
desafios e preconceitos que os imigrantes têm enfrentado no Brasil. Após a matéria,
a Casla recebeu inúmeras doações durante todo o mês de dezembro (2015) e
janeiro de 2016.
Se o vínculo da Casla com os imigrantes haitianos parece ter sido melhor
estabelecido por meio de suas práticas comunicativas do que na Pastoral, a relação
dos haitianos com a sociedade se deu de forma mais efetiva durante os eventos
realizados pela Pastoral em suas festas do que os eventos dirigidos aos imigrantes
promovidos pela Casla.
Ao considerar tais organizações, é necessário afirmar que há muitos outros
trabalhos sendo realizados em Curitiba por diferentes grupos de pessoas,
46 O documentário não foi finalizado até a finalização da pesquisa.
131
destacando-se o Programa Política Migratória e Universidade Brasileira, da UFPR, e
a Associação dos Haitianos, que comumente trabalha em parceria com a Secretaria
Municipal de Direitos Humanos. O tempo da pesquisa e o necessário engajamento
em termos de observação participante não possibilitaram análises mais detalhadas
das ações de tais organizações; mas, ao menos as duas entidades acima citadas,
entram no teor da análise por meio de entrevistas qualificadas realizadas com
representantes de ambas as organizações/programas.
Ao retomar a metodologia da HP a ser seguida no próximo tópico, cabe
ressaltar que a interpretação da doxa, para Thompson (2001) não deveria
“negligenciar esses contextos da vida cotidiana e, as maneiras como as pessoas
situadas dentro dela interpretam e compreendem as formas simbólicas que
produzem e recebem” (p. 364). Embora exista a preocupação de fazer uma análise
detalhada sobre as práticas comunicativas – como forma simbólica – dos imigrantes,
o espaço de análise ficou reduzido a observar estes imigrantes no campo de
atuação das organizações, justamente pela já justificada necessidade de
engajamento. Nesse sentido, as entrevistas realizadas contribuíram para trazer
alguns aspectos da vida cotidiana, por meio de perguntas que se referem a práticas
do dia a dia, ao mesmo tempo em que a análise sócio-histórica, a seguir, reforça a
constatação de que “o campo-objeto de nossa investigação é também um campo-
sujeito em que as formas simbólicas são pré-interpretadas pelos sujeitos que
constituem esse campo”. (THOMPSON, 2011, p.364).
5.2 A ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA
Thompson (2011) caracteriza essa fase da HP com o objetivo de “reconstruir
as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas
simbólicas” (p.366), sendo estas as práticas comunicativas dos imigrantes haitianos
em Curitiba. O autor define cinco aspectos básicos de contextos sociais que definem
um nível de análise distinto para a reflexão sócio-histórica: situações espaço-
temporais; campos de interação; instituições sociais; estrutura social; e meios
técnicos de transmissão.
132
Além dessa linha de raciocínio apresentada por Thompson, é preciso
considerar que o aporte teórico também se configura por si só como uma construção
sócio-histórica, que será analisado nas categorias da etapa da análise formal ou
discursiva da HP, instrumentalizada pela técnica da análise de conteúdo.
Para caracterizar as situações espaço-temporais, Thompson (2011) diz que
as formas simbólicas, ao serem produzidas e recebidas por pessoas que estão em
lugares específicos, agindo e reagindo em tempos particulares, reconstroem esses
ambientes importantes para tal análise. Quando pensamos no espaço-tempo da
pesquisa, relembramos que a todo tempo os haitianos foram especificados como
“haitianos em Curitiba”. O fato de estarem em Curitiba não só sinaliza para
observarmos a especificidade dessa cidade, mas para observarmos que se
caracterizam como imigrantes, que saem de sua terra natal para buscar em outro
lugar situações que aquele espaço de origem não é suficiente. Essa relação do
espaço em uma pesquisa que versa sobre migrações humanas é fundamental para
podermos caracterizar a situação dessas pessoas e suas construções comunicativas
– chamadas por Thompson de formas simbólicas –, sobretudo quando se reconhece
no haitiano um povo historicamente destinado a migrar, conforme afirma em sua
tese o antropólogo haitiano, Joseph Handerson (2015).
Se é possível compreender pelos fatos históricos do Haiti que a migração é
uma realidade para seu povo, quase como um destino, é preciso também levantar as
bases sobre a imigração para o local de chegada à qual esta pesquisa se situa:
Curitiba. Como já afirmado, Curitiba teve um crescimento exponencial a partir do fim
da segunda metade do século XIX realizado por imigrantes europeus que, trazendo
seus hábitos para dentro da capital paranaense, ajudaram-na a ser considerada
como uma das capitais mais europeias do país. Neste sentido, ao ser Curitiba
considerada uma cidade de raça mais branca do que a média nacional (53% contra
19,7%) e lembrando que o Brasil apresenta inúmeras dificuldades em superar o
espírito racial que a escravidão e as políticas eugenistas trouxeram para reforçar o
racismo no país, é possível compreender minimamente as dificuldades de
aculturamento que alguns haitianos têm manifestado, o preconceito e a
desvalorização destes no mercado de trabalho em relação ao imigrante europeu, por
exemplo.
Uma pesquisa realizada pelo Observatório de Migrações da UnB em 2015
apontou que a média salarial dos imigrantes no Brasil é de R$ 1 mil, sendo que a
133
nação que mais bem paga per capita é o Japão, com média de R$11 mil mensais,
enquanto a pior média é dos congoleses, com R$ 950 mensais. Além disso, o
relatório do OBMigra revela que o Paraná paga aos imigrantes uma média salarial
um pouco abaixo da nacional: R$ 992. Somando-se a esses dados a análise de
conteúdo das entrevistas, busca-se responder, mais à frente, o porquê da busca por
Curitiba, sendo que a cidade pode ser considerada como um local distante
culturalmente – ainda que seja um estado mais seguro aos negros, comparando-se
a outros47 – e de desvalorização de mão de obra.
Além do espaço, o tempo em que se estabelecem os haitianos, imigrantes
em Curitiba, é também fundamental para compreender suas vivências na cidade. Ao
refletir sobre o “destino de ser migrante”, Handerson (2015) afirma haver agravantes
temporais nos quatro momentos diaspóricos que ele levanta sobre a realidade
haitiana. Cada momento significa um tempo histórico, com suas particularidades e
ligações. A atual chegada dos haitianos, referindo-se ao quarto momento diaspórico,
sinaliza uma migração forçada, com características e consequências de desastres
socioambientais causados por um forte terremoto e um posterior furacão que
terminaram por agravar doenças, como a cólera, e a defasagem de infraestrutura do
já considerado país mais pobre das Américas.
Se a migração do Haiti para vários países é um dado histórico, por que o
Brasil aparece como destino neste quarto momento? A resposta também já foi dada
nessa pesquisa, ao afirmar que o período do desastre ambiental coincide com um
momento de euforia mundial sobre a economia brasileira, incluindo a escolha de
grandes eventos esportivos, como é percebido nas entrevistas. Além disso, outro
fator interfere: a presença das tropas brasileiras da ONU no Haiti é parte de um
acordo entre os governos e que facilita a entrada dos haitianos para o país,
justamente quando o mundo olhava desconfiado para aquele país que novamente
intensificava sua diáspora. Neste sentido, como seria esse trabalho se fosse
realizado há quatro anos, mais ou menos? O tempo de euforia passou e pode ser
notado pelo exemplo da revista britânica The Economist, que em 2009 estampou em
sua capa o Cristo Redentor impulsionando como um foguete com a frase “Brazil
takes off”48 e em 2013, em um tom mais crítico recordou a imagem com o Cristo
47 http://www.revistaforum.com.br/quilombo/2015/01/05/sobre-os-dados-genocidio-da-juventude-
negra-nao-sao-os-estados-nordeste-os-mais-racistas/
48 “O Brasil decola” (Tradução livre).
134
Redentor “perdendo o rumo” em seu voo acompanhado da frase “Has Brazil blown
it?”49. Trazendo o Brasil mais algumas vezes em sua capa em tom cauteloso, a
primeira edição de 2016 da revista foi categórica em sua crítica ao país: “Brazil’s fall:
Dilma Rousseff and the disastrous year ahead”50, com a imagem da presidente
Dilma em tom abatido acompanhando ao fundo. Independente do momento político
que segue o país e as interpretações sobre isso, o contato com os haitianos e as
entrevistas demonstraram que a vinda para o Brasil não ocorreu apenas por uma
propaganda eufórica de anos atrás, mas que de fato havia um componente nacional
de esperança a pessoas em busca de uma vida melhor, o qual o país não parece
poder garantir mais como se esperava anteriormente.
Além disso, outro fato de mais longo prazo chama a atenção na
contemporaneidade: o uso abrangente das tecnologias de informação e
comunicação facilita o contato dos imigrantes que se distanciam de suas famílias.
Seja com os haitianos em Curitiba, seja com os povos de origem árabe na Europa, o
objeto que segue diversos imigrantes em suas jornadas é um celular à mão por meio
do qual podem comunicar sobre si a suas famílias e amenizar a perda dos vínculos
físicos.
O segundo aspecto da análise sócio-histórica de Thompson (2011) se refere
aos campos de interação, que para ele são “espaços de posições e um conjunto de
trajetórias, que conjuntamente determinam algumas das relações entre pessoas e
algumas das oportunidades acessíveis a ela”. (p.366). Guareschi e Veronese (2006)
relacionam ainda as posições e trajetórias a qual se refere Thompson ao capital
simbólico e capital cultural, como o reconhecimento e qualificações,
respectivamente. Além disso, são nos campos de interação que as instituições
sociais – tópico a seguir – se constituem, o que torna similar à ideia de campos
sociais de Braga (2012). É preciso, no entanto, enfocar que os campos de
interações se referem a pessoas e suas vivências e, no caso da pesquisa, os
campos de interações dos haitianos que estão em Curitiba. Assim, podemos
escolher alguns campos como o trabalho, a cultura, e a assistência humanitária
como campos de interações principais e que conseguem abranger as instituições
sociais.
49 “O Brasil estragou tudo?” (Tradução livre).
50 “A queda do Brasil: Dilma Rousseff e um ano desastroso pela frente” (Tradução livre).
135
O trabalho é constituído como um campo de interação, pois é um espaço de
contato do haitiano com a sociedade curitibana; por meio dele, consegue manifestar
seu capital simbólico e intelectual, demonstrando suas qualificações e capacidades,
ainda que as empresas para as quais a maioria deles trabalhe não estejam
harmoniosamente vinculadas às suas aspirações profissionais, como foi possível
notar em toda a trajetória da pesquisa. Havendo uma desvalorização da mão de
obra haitiana, ainda que qualificada, o trabalho em uma boa empresa ou vinculada à
qualificação do haitiano, significa também um maior reconhecimento de suas
capacidades frente à comunidade estrangeira, visto que o acesso a melhores
empregos significa também um avanço social.
A cultura também aparece como campo de interação, pois congrega
instituições sociais como as organizações de apoio citadas neste trabalho e é um
espaço de reconhecimento da identidade do migrante na sociedade, por meio de
apresentações musicais, danças, comidas, hábitos e vestimentas, e comemorações
pátrias, trazendo um componente importante para a formação dos campos de
interação: as trajetórias históricas dos imigrantes, que são contempladas por meio
de seus costumes e que os tornam diferentes frente à sociedade receptora sem, no
entanto, haver reforço da ideia das purezas culturais, mas, ao contrário, a
transgressão ligada ao “diferente”, a qual cita Hall (2013), Bhabha (1998) e Derrida
(1991) ou ao que Bakhtin chama de “carnaval”.
O último campo de interação trazido na pesquisa é o da assistência
humanitária, que envolve um conjunto de atividades e apropriações de espaços
pelos imigrantes através da luta por direitos e conscientização sobre as
especificidades do seu país. A clareza das instituições sociais que atuam – neste
trabalho chamadas de organizações de apoio – confunde os próprios aspectos de
campos de interação e instituições sociais da análise sócio-histórica, pois, este
campo e sua constituição pelas instituições sociais são centrais na pesquisa ao
considerarmos as organizações de apoio um ponto chave na análise.
As instituições sociais seguem a lógica dos campos de interação como
aspecto da análise sócio-histórica, pois aquelas compõem estes. Thompson afirma a
importância de analisar as instituições sociais, pois possibilita “reconstruir os
conjuntos de regras, recursos e relações que as constituem (...) traçar seu
desenvolvimento através do tempo e examinar as práticas e atitudes das pessoas
que agem a seu favor e dentro delas”. (2011, p.367). Além disso, Guareschi e
136
Veronese (2006) salientam a importância de se abordar como a ideologia opera ou
como tais relações sustentam uma dominação, visível em alguns momentos das
interações dos haitianos. Desta forma, a breve descrição sobre as instituições
sociais tem estreita relação com a análise feita anteriormente dos campos de
interação, que também estão ligados a relações de dominação.
O campo trabalho tem como suas instituições as empresas e o âmbito dos
estudos, especialmente a universidade, que oferece a formação/instrução que uma
pessoa necessita para ingressar qualitativamente no mercado de trabalho. Já o
campo da cultura apresenta como instituições sociais as festas, os feriados pátrios
institucionalizados e as próprias organizações de apoio, que também são
consideradas instituições sociais pelo campo de interação da assistência
humanitária.
Outro aspecto trabalhado pelo autor e já trabalhado no capítulo
metodológico e analítico é a estrutura social, que busca identificar as “assimetrias e
diferenças relativamente estáveis que caracterizam as instituições sociais e os
campos de interação” (THOMPSON, 2011, p. 367), ou seja, como que se dão as
regras que regem tais contextos sociais.
E, por fim, os meios técnicos de construção e transmissão são o quinto e
último aspecto, o qual busca compreender como a forma simbólica, as práticas
comunicativas dos haitianos, se dão na concretude do mundo, com quais meios
técnicos e para quê. Essa reflexão está relacionada à compreensão se as práticas
comunicativas dos imigrantes são midiatizadas ou não e ao objetivo geral da
pesquisar, em analisar com tais práticas comunicativas se dão como processos
comunicativos e como eles contribuem na construção da identidade dos haitianos no
novo território.
5.3 A ANÁLISE DE CONTEÚDO COMO ANÁLISE FORMAL OU DISCURSIVA DA
HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE
O tópico a seguir diz respeito à análise das formas simbólicas escolhidas
pela HP, que são os discursos sobre a construção de identidade identificados por
meio das entrevistas semiestruturadas dos haitianos residentes em Curitiba e as
137
organizações de apoio. Embora Thompson (2011) chame este momento de análise
formal ou discursiva, o mesmo não limita a análise a ser de discurso e nem limita a
forma simbólica a sê-lo, mas sim este momento pretende avaliar quaisquer
“instâncias de comunicação correntemente presentes” (p.371). Por uma questão de
proximidade à análise procede-se, a seguir, a uma análise de conteúdo, a partir de
categorizações temáticas.
Antes, no entanto, de entrar no campo concreto da análise, é pertinente
afirmar que as entrevistas com os haitianos foram feitas a partir de um contato com
as organizações de apoio e uma presença (ativa ou passiva) dos entrevistados em
tais ambientes. Neste sentido, percebe-se claramente que os entrevistados
demonstraram ter um perfil parecido que, sem poder afirmar com dados, é,
simultaneamente, diferenciado do corpus de haitianos em Curitiba de maneira total.
A primeira impossibilidade de se inferir isso se dá pela própria dificuldade que o
Estado e as organizações têm em mensurar e classificar este universo populacional
e, a segunda é que, quando mensurado e classificado, há resistência em oferecer
isso à sociedade, visto que, em muitos casos, as informações são tratadas de forma
sigilosa.
Quanto ao lugar da realização das entrevistas houve variação, de acordo
com a preferência dos entrevistados: algumas foram realizadas nas organizações de
apoio (inclusive as “entrevistas qualificadas” – ver a seguir), outras foram feitas nas
casas dos haitianos e outras em lugares públicos. É válido ressaltar que nas
entrevistas domiciliares houve o desafio de conciliar a concentração da entrevista
com a constante presença dos demais moradores da casa, inclusive com a
participação de um dos moradores quando, em uma das entrevistas, houve uma
considerável dificuldade de compreensão entre entrevistador e entrevistada.
Antes de trazer aqui o perfil dos haitianos entrevistados (9 [nove] haitianos e
haitianas, ao todo), cabe lembrar também que as organizações de apoio, sendo uma
instância importante na presente análise, foram ouvidas também por meio de 4
(quatro) representantes de diferentes representações curitibanas, sendo 2 (dois)
deles haitianos51. No entanto, essas 4 (quatro) entrevistas com representantes das
organizações serão chamadas de entrevistas qualificadas, compreendendo-se a
“qualidade” como uma fala mais abrangente e menos individualizada, mas com o
51 A escolha numérica das entrevistas não seguiu um rigor, mas foi ratificada por uma decisão
pessoal minha e da orientadora, especialmente considerando o tempo restante da pesquisa.
138
mesmo valor das demais entrevistas. Neste sentido, cabe enfatizar que a
abordagem da ideologia, tão presente na metodologia de Thompson, é traduzida
aqui pela ideia da ideologia gramsciana de “relação vivida”, considerando o
conhecimento a partir do conhecimento popular e do cotidiano e não apenas
vinculado à formação intelectual do sujeito.
Da parte dos entrevistados haitianos, sem contar as entrevistas qualificadas,
dos 9 (nove) entrevistados apenas uma pessoa não pertencia à faixa etária dos 29
aos 33 anos, que representou a principal homogeneidade da pesquisa. No entanto,
cabe considerar que, segundo pesquisa da PUC Minas e de outras instituições,
como o próprio Governo Federal (BRASIL, 2014), a faixa etária média dos haitianos
que vêm ao Brasil varia entre os 25 e os 34 anos, embora haja bebês e idosos.
Quanto ao sexo, a pesquisa se dividiu: dos 9 (nove) haitianos entrevistados
6 (seis) eram homens e 3 (três) eram mulheres, mas a escolha foi feita
estrategicamente, respeitando aproximadamente os 20% de mulheres haitianas
migrantes52. (BRASIL, 2014). Com relação a outra parte da coleta, as entrevistas
com as organizações, os dados foram inversos: 3 (três) mulheres para 1 (um)
homem, o que também foi feito estrategicamente, ao se observar que a participação
das mulheres nas organizações de apoio é mais constante do que a dos homens.
Com relação ao estado civil, apenas 2 (dois) entrevistados afirmaram ser casados,
sendo um de cada sexo. Além desses, outros dois homens afirmaram ter filhos. Se
os casados estão com a sua família completa no Brasil, ambos os homens solteiros
têm seus filhos morando no Haiti.
Um dos pontos em que o corpus da pesquisa não se alterou muito, frente
aos constantes atendimentos realizados pelo pesquisador na Pastoral do Migrante, é
o da religião. Dos 9 (nove) entrevistados, 8 (oito) afirmaram ser
protestantes/evangélicos e 1 (um) disse não ter religião. No entanto, dados sobre o
Haiti ainda afirmam que o catolicismo é a principal religião do país, seguido do
protestantismo e do vodu haitiano. De toda forma, a empiria realizada na Pastoral
compreende que a maioria dos imigrantes haitianos em Curitiba é de religiões
evangélicas.
Por fim, é importante ressaltar a escolaridade e a ocupação dos haitianos
em Curitiba. Dos 9 (nove) entrevistados, 5 (cinco) afirmaram ter tido acesso ao
52 No entanto, informa-se que a porcentagem de mulheres haitianas vem aumentando no Brasil desde
a pesquisa.
139
ensino superior (concluindo ou não), 3 (três) têm ensino médio completo e 1 (um),
ensino fundamental completo. É preciso deixar claro que as especificações de
ensino fundamental completo e médio são traduzidas para a linguagem brasileira,
mas são diferentemente concebidas no Haiti. Quanto aos entrevistados qualificados,
todos têm o ensino superior completo e 3 (três), dos 4 (quatro) entrevistados, têm
sua formação universitária vinculada ao serviço que presta junto aos migrantes.
Quanto à ocupação dos haitianos, apenas 2 (dois) entrevistados afirmaram ter
ocupações próximas às suas profissões de origem (vinculadas, sobretudo, à
formação universitária). No entanto, é justamente uma dessas duas pessoas que
está entre as que não teve acesso à universidade, que a questão do idioma facilitou
sua inserção no trabalho atual: dos 9 (nove) entrevistados, 2 (dois) afirmaram
trabalhar com sua potencialidade de idiomas, inclusive esse).
Ao finalizar esta parte descritiva dos dados coletados de cada entrevistado,
ressalta-se a importância da decupagem e da leitura flutuante para o seguimento da
análise de conteúdo, as quais integraram um componente compreensivo
fundamental para a compreensão parcial da pesquisa, visto que as inferências dos
discursos analisados deverão ser efetivadas no decorrer da análise que se segue.
Antes, então, colocamos aqui alguns pontos analisados ao se fazer a leitura
flutuante das entrevistas:
A escolha por Curitiba se deve a interações interpessoais, mediadas
por dispositivos tecnológicos, motivadas por fatores como trabalho,
estudos e clima.
A escolha pelo Brasil se deve a interações interpessoais ou não,
motivadas por fatores como trabalho, estudos e a parceria entre os
governos, sendo esta influenciada pela propaganda positiva do Brasil
feita pela mídia internacional.
Há uma estreita relação de importância entre os dispositivos
tecnológicos de informação e comunicação e a manutenção de
vínculos com familiares e amigos.
Os usos das mídias digitais (especialmente Whatsapp e Facebook)
variam entre pessoal (fotos, vídeos e ligações) e de visibilidade social
(imagem positiva do Haiti, divulgação de algum trabalho musical e
divulgação de atividades comemorativas do país).
140
Os usos das mídias como fonte de informação são variados, mas com
grande força da internet, por meio do Google e dos próprios grupos
do Facebook, além de alguns sites de notícias. A TV é apontada por
alguns, especialmente pelos telejornais (ênfase para os mais
populares) e recebe críticas frente ao conteúdo de violência e à
consequente sensação de insegurança provocada.
Alguns entrevistados já têm experiências midiáticas, em meios como
livros, rádio e televisão, pois um número significativo deles está ligado
à música.
Boa parte dos entrevistados foi sugerida pelas organizações de apoio,
o que representa um destaque destes na comunidade haitiana.
Todos creem que as organizações contribuem na construção de uma
imagem positiva, mas ninguém crê ser suficiente o que é feito hoje. A
reflexão vai além da capacidade das organizações para levantar
temas como a desorganização dos haitianos, o pouco costume dos
brasileiros a esta nova cultura e a necessidade de integração à
sociedade por meio dos estudos, política e cultura53.
Todos afirmaram que construir uma identidade no Brasil sem a ajuda
das organizações é difícil.
O maior problema de comunicação é o idioma. Em alguns casos o
preconceito surge com mais força, mas também é negado por outros.
Para eles, a principal forma de manifestar a identidade haitiana é por
meio das datas comemorativas atreladas à independência do país.
A mídia, normalmente, tem desempenhado um papel de “vilã” na
representação do haitiano, embora alguns deles desejem aparecer na
mídia, especialmente na TV.
5.3.1 Análise das categorias
53 Uma das entrevistas afirmou que as organizações não são importantes, mas a resposta foi
ambígua a outro momento, cuja confusão de fala estava ressaltada dificuldade de diálogo.
141
A escolha das categorias de análise de conteúdo dessa pesquisa está
relacionada aos discursos registrados sobre a construção de identidade dos
haitianos em Curitiba, a partir das entrevistas realizadas, aqui constituídas enquanto
unidades de amostragem. São quatro as categorias definidas e suas respectivas
subcategorias intrinsecamente ligadas a como são construídos esses discursos no
cotidiano do grupo de imigrantes envolvido: 1) as práticas comunicativas mediadas
por tecnologias, 2) as manifestações culturais, 3) o trabalho e 4) as organizações de
apoio. Por meio dessas categorias de análise também se busca responder se as
práticas comunicativas desses imigrantes são midiatizadas.
a) Práticas comunicativas mediadas por tecnologias
As práticas comunicativas mediadas por tecnologias chamaram a atenção a
partir da observação participante junto aos imigrantes haitianos, quando se pode
perceber o intenso uso que eles faziam de seus celulares durante as atividades
realizadas pelas organizações de apoio. Mesmo no percurso etnográfico cotidiano
percebeu-se os haitianos comumente com seus smartphones em punho e fones nos
ouvidos. No entanto, a análise em questão precisava ir além desse olhar e entender
o porquê desses usos e como isso colaboraria ou não na construção de suas
identidades. Neste sentido, não só as ainda chamadas novas mídias, como o
telefone celular e a internet, mas também as mídias tradicionais, como a TV, o rádio
e os jornais, nos interessam. Sendo assim, é necessário analisar essa categoria sob
dois olhares (subcategorias): novas mídias e mídias tradicionais.
Subcategoria: Novas mídias
Nas entrevistas realizadas junto a nove (9) haitianos perguntou-se quais as
mídias por eles utilizadas, seus usos e se há algum tipo de conversação ou reflexão
entre eles sobre os conteúdos que as diferentes mídias oferecem. Além disso, outra
pergunta importante foi feita: qual a principal fonte de informação que os fez migrar
para o Brasil e para Curitiba?
A questão sobre o uso das mídias e sua relação com a migração ao Brasil,
formulada com a pretensão de estar relacionada a esta primeira categoria, logo foi
percebida como insuficiente para ser analisada apenas à luz de uma mediação
tecnológica, como presumido anteriormente. A diferença reside na hipótese de que
142
os haitianos vieram ao Brasil por conta da intensa propaganda do país nas mídias
estrangeiras durante os anos recentes, como se nota nos inúmeros discursos feitos
sobre esta fase da imigração ao país, inclusive nessa pesquisa. Não se quer excluir
tal influência, pois coletaram-se falas neste sentido, mas o contexto das entrevistas
demonstrou que a escolha dos haitianos pelo Brasil foi também mediada pela
confiança nas informações dadas por pessoas que já estavam aqui. Vale ressaltar
uma das falas que expõe como fator para se decidir pela migração a necessidade
dos vínculos afetivos como canalizadores de confiança:
(...) eu tinha um amigo aqui no Brasil, em Curitiba, que me convidou: “Ô, E3*, vai ter Copa do Mundo, você fala vários idiomas, você manja em computador, você pode vir, daí você vai ter sorte pra trabalhar aqui”. Daí larguei tudo para vir aqui. (Entrevistado E3, 2015).
O que interessa analisar nessa categoria é a condição pela qual esses
vínculos afetivos foram realizados a ponto de influenciar a decisão de migrar. Só é
possível manter um contato permanente com tais pessoas, a quilômetros de
distância, se existirem tecnologias de comunicação disponíveis e facilmente
acessíveis. A acessibilidade da internet e de suas ferramentas de conversação
interpessoais ou grupais, como o aplicativo Whatsapp, tornam mais fáceis o
entendimento sobre a realidade do país para o qual se pretende migrar em relação
às mediações realizadas pelas mídias tradicionais. A preferência pelas novas
mídias na decisão de migrar, através de ferramentas, como o Whatsapp, que
possibilita a manutenção dos vínculos afetivos na cotidianidade, revela como a
imigração hoje pode ser influenciada fortemente por vínculos afetivos de amigos e
familiares, que expõe sua opinião e contam sobre os novos espaços de ocupação, o
que parece criar uma perspectiva de confiança muito mais forte do que as
informações veiculadas apenas pelas mídias tradicionais. O entrevistado a seguir
ressalta tal afirmação:
(...) depois do Haiti ter sido atingido pelo terremoto eu, com um primo que estava já aqui, ele conversava comigo – ele estuda para Engenheiro Industrial (...). Ele chegou aqui no Brasil e depois perguntou a mim se eu queria vir também (...) Meus pais não queriam pra mim viajar tão longe assim, mas meu primo conversou com eles e consegui o aceite. (Entrevistado E2, 2015).
Se na maioria dos casos a presença de alguma pessoa conhecida contribui
para a vinda do migrante ao Brasil e a Curitiba, em outros casos o conhecimento
143
prévio a partir das informações veiculadas nas mídias, ainda que pequeno, também
colaborou para a vinda de haitianos: “Sobre o Brasil só (sabia) sobre futebol. Mas
uma coisa que eu sabia é que o Brasil produzia muito café”. (Entrevistado E8, 2015).
Também nessa outra fala o entrevistado revela mais conhecimentos sobre o país:
Eu tinha acesso à internet, lá na faculdade no Haiti e eu pesquisei bastante. A parte mais importante pra mim é que o Brasil estava no 5º lugar das economias no mundo. Às vezes eu penso que eu sou uma vítima da propaganda do Brasil lá fora. Porque lá fora não mostram as favelas (...). Eu sei que tem miséria no Brasil, mas eu achei que era fraco e quando eu cheguei eu vi que era outra coisa. Mas fora tem turismo, grande, e a economia é muito boa. Depois vai ter a Copa do Mundo, o Brasil vai crescer mais. Eu estava pensando assim. (Entrevistado E6, 2015).
Ao se observar a estreita relação que os dispositivos tecnológicos tiveram na
decisão de migrar, especialmente a partir de vínculos afetivos, percebe-se que após
a migração essa relação ainda se mantém, agora com os que ficaram no país de
origem. Todos os entrevistados afirmaram manter contato frequente com suas
famílias e amigos e acabam por manter o ciclo comunicativo migratório, sendo agora
eles os informantes das realidades externas à sua nação:
Agora eu sempre falo que aqui no Brasil... como tem eles que me perguntam, porque eles sabem que eu gosto muito de informação, essas coisas assim, eu sempre falo a verdade (...) eu ainda tenho um relacionamento com meu ex-colega que eu trabalhei lá no Haiti, no rádio, sempre fica uma conexão da informação. (Entrevistado E2, 2015).
Essa relação com as mídias foi ressaltada por muitos haitianos, todos
homens54, que disseram ter interesse em aproveitar os espaços midiáticos
disponíveis para emitir alguma informação e entendimento de mundo, por exemplo.
Essa questão de visibilidade midiática é fomentada pelo fato de alguns dos
entrevistados já terem tido contato com mídias ou dependerem delas para alcançar
realizações pessoais, como é o caso da música e do jornalismo, em quatro (4) das
falas analisadas.
Vocês têm alguma página que divulgam o trabalho? Tem. Qual? É Level Compa, no Facebook. Tem no Youtube? Tem um link no Youtube, na verdade. Mas o principal é a página do Facebook. No Facebook. (...) E para vocês como é esse tipo de trabalho? O pessoal interage? Interage. Mais
54 Mesmo sem se aprofundar na questão de gênero na pesquisa, vemos como algo importante
ressaltar o apreço maior pelo uso das mídias que há entre os homens haitianos comparado às
mulheres. A conclusão foi alcançada por meio de observação direta no cotidiano do grupo em estudo.
144
haitiano ou brasileiro também? Tudo. Haitiano, americano, francês. (Diálogo com o Entrevistado E8, 2015).
Às vezes chega a mais de 500 pessoas que ouvem, mas até ano passado quando eu gravava alguma coisinha com a Maria* tinha mais de 300 pessoas ouvindo e já cantando, mas só de brincadeira várias pessoas já ficaram loucas pra assistir vídeo. Mas vídeo só lá no Facebook, não no Youtube. Só no Facebook dá quase 500 pessoas olhando. Por isso que eu falei queria, mas eu não lembro o nome dela que pretende fazer uma entrevista com nós e um showzinho na Casla pra levar o pessoal da Globo... gravar uma coisinha. (Entrevistado E2, 2015).
Ainda que seja a maioria dos casos, não é só a visibilidade voltada para a
publicidade de algum trabalho, como neste caso acima, que é vislumbrada pelos
haitianos quando se referem às mídias, especialmente às novas mídias, que é por
onde eles conseguem se inserir autonomamente. Uma importante visibilidade em
questão diz respeito à formação de um novo conceito do público brasileiro frente ao
Haiti, que interfere na própria vida destes no novo território. O uso das mídias como
estratégia para este objetivo foi reconhecido por apenas um dos entrevistados
explicitamente, mas chama bastante a atenção como uma forma de “repertório de
resistência” para buscar um equilíbrio nas relações de força, conforme traz Hall
(2013). No entanto, os principais “repertórios de resistência” não foram encontrados
nesta categoria e sim em outras, como as manifestações culturais e organizações de
apoio, mas vale esta citação como uma importante atribuição sobre as novas mídias:
Eu entro lá no Google, pego as imagens do Haiti, as imagens recentes, e compartilho com amigos ou amigas brasileiras. “Olha o que a mídia está fazendo, está falando sobre o Haiti e olha o outro lado, olha algumas praias bonitas lá, alguns lugares...”. Daí eles começaram a fazer uma comparação: “Ah, nossa, a mídia só fala do terremoto, que o Haiti é um país pobre, é um país que sempre tem guerra civil, etc. Mas a mídia nunca fala sobre o Haiti no sentido bom, “Ah, lá tem praia bonita”, “É a primeira República negra que foi independente”, uma guerra... isso não é tão fácil. Aí a gente usa o Face, usa o Instagram, postando as fotos, etc. (Entrevistado E3, 2015).
Essa inserção na esfera midiática, em especial pela via das mídias sociais, é
propriamente o que Cogo (2010) chama de “comunicação cidadã em espaços
transnacionais”, uma forma de resguardo de suas culturas na ótica transnacional e
que possibilita a “construção e circulação de agendas relacionadas à disputa de
cidadania” (2010, p.83), que, neste caso, representam um reconhecimento de sua
identidade a partir do outro. Embora os “repertórios de resistência” não tenham
ficado evidentes na atuação dos haitianos nas novas mídias, há uma identificação
destes pelas páginas das bandas musicais e vídeos do país, que ficam entre as
145
principais preferências dos haitianos quando se referem a este tema da visibilidade,
mas que na pesquisa podem se traduzir em novas formas de cidadania. Além da
apropriação das mídias para permitir visibilidades, as mesmas também funcionam
como um reconhecimento identitário entre seus pares. Vídeos, fotos e ligações por
aplicativos de chamadas mantêm os vínculos com os familiares e amigos. Quando
se perguntou aos entrevistados o porquê de se fazer alguns registros estes
responderam:
“Olha o que eu faço! Estava cantando na Festa Latino-Americana!”. Para mostrar para amigos (...). Só minha prima que tinha, quando ela foi na Festa Latino-Americana. Não sei se você lembra, minha prima fez um teatro e ela tem isso no Youtube. (Entrevistado E4, 2015).
Na verdade eles tiram as fotos daí eles compartilham com a família. “Olha onde eu estava”, “eu estava com meus colegas”, essas coisas. Mas no meu caso, eu não mando todas as fotos, têm algumas que eu trato primeiro daí eu mando pra família. (Entrevistado E3, 2015).
Se estas respostas dizem respeito a um registro e sua divulgação para seus
pares como forma de reconhecimento identitário através da arte, outro
reconhecimento identitário pode ser alcançado por meio do próprio contato cotidiano
com familiares e amigos que estão no Haiti. Quanto ao uso do celular, este
entrevistado responde:
Pra usar um site... Facebook. Ligação... eu não sou um cara que gosta de falar bastante, não. Viber, Whatsapp pra poder me comunicar mais fácil, pra não gastar mais dinheiro, comprar mais crédito. Pra poder falar com minha família. (Entrevistado E6, 2015).
Nesta entrevista, embora o idioma tenha sido um grande obstáculo para a
coleta, observou-se uma forte incidência das mídias como instrumento de
manutenção de vínculos:
E liga para o Haiti? Sim. E depois vai para Curitiba, família visitar. Principalmente foto e ligação então? Foto. Foto principalmente. Ok. Você usa internet? Sim! Tenho internet no telefone. E você usa sempre? Sim, todo dia (...). Entendi. Mas quando você entra na internet, você acessa que site? Falo com amiga, amigos, escrevo. No Facebook? Tenho. E você usa bastante? Bastante. No Facebook vocês têm algum grupo de haitianos? Não tenho grupo, não. Não escrevo em grupos. Só com amigos pessoais? Só com amigos. (Entrevistado E1, 2015).
Essa relação que se estabelece entre os migrantes e as mídias sociais ou
mídias tecnológicas aproxima-se do que Martín-Barbero (2004) chama de “mediação
146
comunicativa da cultura”, que amplia a atuação das mídias, de algo meramente
instrumental para se converter em estrutural. Assim, podemos afirmar que:
Las experiencias y narrativas del inmigrante se entremezclan cada día más densamente con las de los cibernautas. Millones de desplazados y emigrantes – dentro y fuera de cada país– practican la ciudad que habitan escribiendo relatos en el chat o en hipertextos de la web, desde los que individuos y comunidades se comunican con sus familiares que quedan al otro lado del mundo. Y ello mediante la circulación de historias y de imágenes en las que cuentan, se cuentan, para seguir contando entre la gente y para ser tenidos en cuenta por los que sobre ellos toman decisiones que les afectan. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.27).
Ainda sobre as novas mídias, constatou-se que a maioria dos haitianos
utiliza os telefones celulares para registrar momentos do cotidiano em vídeos e fotos,
como já salientado anteriormente e visto com destaque durante o processo de
observação participante. Assim, buscou-se compreender quais seriam os principais
motivos de usos das imagens, e as respostas, que tendiam para a afirmação do
compartilhamento das fotos para amigos e familiares distantes, mas sem uma
consensualidade.
Uma das falas chamou a atenção para a ideia do aprendizado social, que
Braga (2006) afirma ser importante para no contexto da midiatização. Embora Braga
utilize o termo majoritariamente para se referir à resposta crítica dada a uma
produção midiática, pode-se compreender também que a própria produção pode
servir como instrumento de interpretação crítica e uma resposta à determinada forma
comunicativa, como é visto a seguir: “Pra ver como ficou o evento (...). Pra chegar
em casa e ver o que precisa corrigir, entendeu? O que tem que fazer melhor, o que
foi bom e o que foi ruim”. (Entrevistado E8, 2015).
Outras duas falas também se destacaram:
É fantasia (...) Eles não vão fazer nada sério. Vai chegar em casa e vai deletar tudo (...) Vai colocar no Facebook às vezes... É muito engraçado. Às vezes tem um cara filmando, né. Tem um celular e está filmando. Por quê? O celular não tem capacidade, o celular vai ficar lento depois. E se vai ficar lento, o que você vai fazer? Vai apagar. É só uma fantasia. (Entrevistado E6, 2015).
Às vezes eu tenho o costume, mas quando eu chego em casa eu tiro tudo (...). Mas qual é o principal motivo, então, de fazer? Nada. Só às vezes passo, por exemplo, assim, você está fazendo um teatro, você vai se apresentar cantando e aí me pedem para fazer uma foto e eu faço. Depois eu mando para você e depois eu tiro. (Diálogo com Entrevistado E4, 2015).
147
As citações acima vêm contribuir no sentido de que o uso das tecnologias
adquire contextos de usos particulares, em alguns casos, mas define também um
tipo de comportamento coletivo que não pode ser inferido pela análise de conteúdo,
mas talvez por uma reinterpretação das formas simbólicas, constituindo-se também
como expressão da identidade dos haitianos que aqui residem a partir dessa
inserção de dispositivos tecnológicos em suas vidas.
De toda forma, abarcando a incidência das redes sociais digitais como
espaço de encontro entre pares, poucos haitianos afirmaram compartilhar seus
registros em grupos no Facebook, por exemplo, ao passo que o compartilhamento
de registros via Whatsapp – com entes próximos ou amigos – é mais comum.
Quando se perguntou a eles sobre se participam de algum grupo de haitianos no
Facebook, uma resposta padrão foi essa:
Não sou um membro ativo, mas estou participando de alguns. Por exemplo, quando têm alguns que tem uma publicação eu vi (vejo), mas não... não sou muito ativo. O que eles postam mais nesses grupos? Às vezes notícias do Haiti, sobre trabalho, sobre coisas assim. (Diálogo com Entrevistado E7, 2015).
Há a procura de contato com outros haitianos que residem no Brasil (um
grupo do Facebook bastante citado foi o “Haitianos no Brasil”). Porém, esse contato
se mostrou para os entrevistados voltado à aquisição de informações, inclusive
dadas por brasileiros que participam dos grupos do Facebook. Desta forma,
percebe-se que as mídias alavancadas pela internet representam estruturas
importantes para a circulação de informações dos haitianos que estão no Brasil e
destes para outros, como haitianos que residem no país ou pretendem vir para cá,
especialmente.
Ao mesmo tempo, as novas mídias colocam em xeque o fechamento étnico,
ao se constituírem enquanto redes abertas, ou o que Hall (2010) também chama de
“espaços de relações sociais de caráter fronteiriço e da construção de comunidades
desterritorializadas”. (p.94).
Esses brasileiros que estão nesses grupos, eles ajudam ou atrapalham? Às vezes têm alguns que atrapalham e têm alguns que ajudam, mas a maioria ajuda. Então, pra você é positivo ter brasileiro nesse grupo? Sim. E tem algum grupo que é só de haitianos? Na verdade não, sempre mistura (...) a minha banda tem brasileiro, só meu futebol, meu time, é que não tem brasileiro. (Diálogo com Entrevistado E3, 2015).
148
Você acha legal a participação dos brasileiros ou preferia que fossem só haitianos? Eu acho legal (...). É uma questão de comunicação, entendeu? Quem que pode passar as informações daqui, entendeu? É normal ter um grupo com eles. (Diálogo com Entrevistado E8, 2015).
O conceito de desterritorialização de Hall (2010) não é o que Santos (2012)
se refere quando relaciona a perda do território à alienação, mas sim quando a
desterritorialização se alinha a uma nova forma geográfica chamada por Sousa
Santos (2002) de “comunidades de sentimentos”. Ao mesmo tempo em que são
formadas comunidades de haitianos, as páginas do Facebook, ao conterem
brasileiros, abrem-se a uma comunidade não só étnica, mas “sentimental” – na linha
de raciocínio de Sousa Santos –, que se abre a sujeitos de diversas nacionalidades
em prol de uma causa, no caso, a migração haitiana e seus direitos humanos.
Subcategoria: mídias tradicionais
Quanto às mídias tradicionais, a televisão é a principal que chama a atenção
dos entrevistados e tal preferência carrega consigo uma contradição expressa nas
entrevistas. Ao mesmo tempo em que houve críticas ao conteúdo violento da TV
brasileira e da consequente sensação de insegurança que isto provoca, além de
críticas relacionando o discurso midiático ao preconceito que sofrem no Brasil,
alguns haitianos também manifestaram, ainda que não tão espontaneamente, o
sonho de “ser midiatizado”, não apenas pelas redes sociais digitais, mas pelas
mídias tradicionais, como a TV. Uma das entrevistas que resume a crítica à mídia é
realizada por um dos representantes de organizações de apoio. Outra crítica
realizada por outro representante de organização é referente à ação do jornalista
frente a um indivíduo cultural:
Mas a gente não percebe muito o movimento da mídia no sentido de mostrar as coisas positivas, as contribuições mesmo, ou de cobrir um evento desse, porque a gente sempre convidou. Então nos procuram muito mais quando parece que o haitiano foi chamado de macaco, banana e foi agredido, isso repercute muito mais do que uma ação que a gente faz para os haitianos de atendimento dentário ou que valorize essa autoestima, ou na Praça de Bolso onde estava todo mundo dançando juntos, monte de brasileiros e monte de haitianos dançando juntos e eles falando coisas positivas do Brasil e dos brasileiros. (Entrevistado EQ2, 2015).
A mídia também. Ela faz uma pergunta: “Por que você veio aqui ao Brasil?”. É sempre uma pergunta assim, é a pergunta mais comum da mídia. Sim, é curiosidade de saber porque o imigrante vem. Acho que não deveria ser a primeira pergunta. Deveria ser: “Quem é você?”. Acho que a primeira pergunta deveria ser perguntar a identidade da pessoa (...). A resposta já está aí, na pergunta. (Entrevistado EQ1, 2015).
149
No entanto, a crítica sobre a televisão também aparece pelos próprios
haitianos:
Algumas imagens são feias, né. Como se o Haiti fosse um inferno, e eu não gosto, porque eu sei que todos os países têm dificuldades, têm lugares bons, têm lugares ruins, têm favelas e tem tudo isso também. Mas, não sei, porque têm alguns jornalistas que quando precisam de entrevistas só pede coisas ruins e eu não gosto. (Entrevistado E7, 2015).
Antes eu via os jornais de manhã, só que isso me estressa e agora eu não estou usando (...). Ver algumas coisas de violência, algumas coisas me estressam bastante. Ver uma pessoa invadir uma casa, essas coisas me estressam e aí eu não assisto mais jornal. (Entrevistado E5, 2015).
Quanto ao conteúdo violento, ao mesmo tempo em que recebeu críticas,
percebeu-se que um considerável conteúdo televisivo assistido por haitianos são os
telejornais policiais e que apelam à violência como forma de espetáculo.
Nesse contexto de força da televisão surgem também anseios de alguns
haitianos em aparecer nessa mídia, especialmente pela trajetória musical e do uso
da televisão como forma de aprendizado. Esses anseios são expostos por este
entrevistado quando relaciona a questão do ensino à televisão e também ao rádio:
Quando queria aprender o português escolhia um programa lá na TV e uma novela e começava a aprender, aprender, aprender (...). A rádio que eu gosto mais, porque parecia engraçada é a “Jovem Pan”, porque tem uma mistura do rap, essas coisas. Os caras falam muito bem também, eu gosto. Eu não quero perder meu inglês. (Entrevistado E3, 2015).
Eles vieram aqui na minha casa, o Felix*, gravando uma matéria, acho que semana que vem vou ter que ir lá na RPC para dar um show ao vivo, essas coisas. Mas é uma campanha mesmo pra ajudar os brasileiros saberem que os haitianos não só deixaram um país pobre para vir aqui só para trabalhar. Alguns de nós têm bastante coisa para fazer. (Entrevistado E3, 2015).
Compactuado a isso, parece também que há o interesse em transformar a
cultura do negro e do imigrante aos olhos do público por meio dos veículos
midiáticos, aspiração possível de ser percebida em uma das entrevistas do haitiano
que mais se referiu às mídias como porta de entrada para alcançar sonhos no Brasil:
(...) eu vejo várias vezes o jornalista, pessoal que vai fazer vídeos, pesquisas sobre sempre coisas negativas, das dificuldades, mas precisam saber também da nossa capacidade como povo. Eu não sei se é ignorância, não sei se eles não sabem que temos capacidade de conhecimento, capacidade de chegar muito mais longe do que estamos até agora, mas eles só procuram coisas negativas, não achei ainda pessoas que procurem coisas positivas de nós. É isso que eu acho. (Entrevistado E2, 2015).
150
Aqui, é preciso novamente reforçar que esta pesquisa se detém na temática
das mediações e das midiatizações e não naquela da ação dos meios de
comunicação e o que eles produzem. Neste sentido, compreendem-se as mídias
tradicionais – especialmente a TV – como lugar de conhecimento externo do
indivíduo em confrontação a si mesmo e, que por sua vez, caracteriza-se por uma
ausência do conhecimento direto da realidade. Assim, o “estar na mídia” passa
também a ser um modo de “estar na realidade”, sempre diferenciado pela situação
histórico-cultural, como afirma Braga (2012). No entanto, é a realidade histórico-
cultural dos haitianos que precisaria estar clarificada, como relata um dos
entrevistados ao tomar contato com um grupo de estudantes de jornalismo que o
convidou para ser protagonista de um livro:
(...) daí elas descobriram: “Nossa esse cara fala bem português, vamos fazer uma matéria com ele, vamos pegar ele pra nos ajudar”. Assim, e começamos a trabalhar. Ficamos bons amigos e também porque elas estavam comigo no momento do parto da minha esposa, sempre ali na minha casa, tirando foto... (Entrevistado E3, 2015).
De forma ampla, pode-se afirmar sobre esta categoria de análise que as
práticas comunicativas mediadas por tecnologias ocorrem de forma muito individual
ou coletiva entre os haitianos, por meio de suas próprias iniciativas e não
propriamente pela intervenção das organizações sociais como poderia se pretender.
Pode-se assim dizer que estas práticas são espontâneas e inseridas naturalmente
em seu cotidiano.
A internet ganha força nas práticas comunicativas interpessoais que
configuram a condição do migrante, distante territorialmente, mas presente através
das redes sociais em seu sentido mais amplo (AGUIAR, 2006). Esses fatores se
devem também à tecnologização dos haitianos entrevistados, incluindo suas
capacidades técnicas e condição financeira, o que não foi percebido em um dos
casos, por exemplo, por um dos entrevistados que relataram o uso do celular: “E
você usa sempre? Sim, todo dia (...) Só no mês que eu trabalho e entra pagamento”.
(Entrevistado E1, 2015).
Já a aproximação com as mídias tradicionais não surpreendeu, exceto pelas
falas já expostas anteriormente, o que demonstra uma perda de força dessas
tecnologias, não só no Brasil, mas também no Haiti, ao constatarmos que as práticas
comunicativas envolvidas na migração dos haitianos para o Brasil estavam muito
151
mais relacionadas ao uso das novas mídias para contato interpessoal do que pela
eficiência da propaganda do Brasil nos meios de comunicação de massa.
b) Manifestações culturais
Nessa categoria foram escolhidas três subcategorias que chamaram a
atenção na observação participante e nas constantes reflexões extraídas juntas aos
haitianos: as datas comemorativas (datas pátrias do Haiti); a música e; o
preconceito. Esses elementos unidos possibilitam compreendermos a relação que as
manifestações culturais estabelecem com a construção de identidades culturais dos
haitianos no Brasil.
Subcategoria: Datas comemorativas
Sobre as datas comemorativas, em especial as datas ligadas ao processo
de independência do Haiti55, os próprios eventos da Pastoral junto à comunidade
haitiana demarcavam a importância de tais momentos históricos no cronograma da
programação aos haitianos com a escolha do dia 18 de maio como o dia da Festa
Haitiana. Da mesma forma, outras entidades de apoio também realizam anualmente
nos dias 18 de maio e 18 de novembro eventos com a “cara e cores” do Haiti. No
entanto, há um componente que diferencia a simples escolha de datas pátrias para
se comemorar o dia do país em outra nação, como é, por exemplo, o Brazilian Day,
comemorado nas proximidades do dia 7 de setembro em Nova Iorque. Diferente do
Brasil, onde não é perceptível um nacionalismo por determinadas datas e fatos
históricos, mas sim por modos de vida e uma forte propaganda nacional no mundo
como um país alegre e acolhedor56, a dimensão do nacionalismo haitiano vem
55 São elas: 18 de maio (1803) – Dia da Bandeira, que retrata a escolha da atual bandeira do Haiti
como símbolo da independência, conquistada meses depois; 18 de novembro (1803) – Vitória da
Batalha de Vertières, que selou a independência haitiana por meio da vitória de escravos contra a
forte tropa de Napoleão Bonaparte; 1º de janeiro (1804) – Proclamação da Independência do Haiti.
56 A própria ideia do Brasil como país acolhedor vem sendo criticada pelas ciências sociais. Inclusive,
pesquisa de doutoramento defendida em 2015 na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre o
acolhimento aos imigrantes no Brasil afirma isso ao analisar diversos jornais brasileiros, como por
exemplo, a fala do autor, Gustavo Barreto: “Duas coisas foram cruciais ao longo do tempo: as
questões do trabalho e da raça. Em 1891, o governo decretou que amarelos e negros não poderiam
entrar subsidiados pelo Estado. Se entrassem, o dono da embarcação poderia perder o alvará de
funcionamento”. (“Racismo contra imigrantes no Brasil é constante, diz pesquisador”. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150819_racismo_imigrantes_jp_rm. Acessado em
152
justamente por uma história nacional que acabou por condicionar o “ser haitiano”,
como afirma Handerson (2015), inclusive, quando diz que o impulso migratório do
povo haitiano é característico, marcado por sucessivos processos invasivos e,
consequentemente, diaspóricos. Ao se perguntar qual seria a melhor ocasião para
manifestar o “ser haitiano”, boa parte dos entrevistados citou justamente tais datas:
Pra mim, a melhor ocasião é uma data histórica do nosso país. Quando vem
essa data a gente sempre comemora no Haiti. Quando vem essa data os
haitianos que estão vivendo no Brasil precisam comemorar também. Esse
momento, para nós, é um momento bem favorável (...) Batalha de Vertières,
Bandeira e dia da liberdade... Independência. (Entrevistado E8, 2015).
Têm umas datas muito importantes. A vitória do Haiti, no dia 18 de
novembro, que foi a última guerra da independência e o dia 1º de janeiro a
data da festa da independência do Haiti. Dia 18 de maio é o dia da Bandeira
do Haiti. (Entrevistado E7, 2015).
Para além da necessidade de motivar o “estar junto”, a organização de
eventos que comemorem o Haiti a partir de suas principais datas históricas
novamente fomenta o que Cogo (2010) chama de “comunicação cidadã em espaços
transnacionais”, pois resguardam culturas em espaços externos, ao mesmo tempo
em que inauguram novas formas de cidadania ao manifestar por meio de práticas
comunicativas e culturais seu modo de vida e sua história. Da mesma forma
salientamos que isso: “(...) determinará uma construção identitária sempre em
trânsito, na qual a cultura desterritorializada buscará seu ‘não lugar’, ocupando de
maneira incisiva um novo lócus de expressão”. (RIBEIRO e LOPES DA SILVA, 2015,
p.5).
Os eventos em comemoração ao Haiti, no entanto, condicionam algumas
diferenças ao próprio povo haitiano comparado a uma festa em seu país. A presença
de brasileiros, a necessidade de adequação ao idioma e a algumas regras locais
configuram um momento nem brasileiro, nem haitiano essencialmente, mas híbrido
culturalmente, em sua forma de “construir projetos de convivência despojados das
tendências a ‘resolver’ conflitos multidimensionais através de políticas de purificação
étnica”, como salienta Canclini (2003, s/p).
09/02/2016._____________________________________________________________________
153
Embora isso seja perceptível nos eventos pela participação dos brasileiros, a
principal necessidade vislumbrada ainda pelos haitianos é que o país receptor
conheça minimamente sua cultura:
Meu interesse maior é que eles conheçam nossa cultura, nossa comida, umas coisas diferentes pra vocês (...). Eu não posso falar de todos eles, mas alguns vêm e falam “Ah, eu gostei da comida de teu país”. Porque alguns acham que nós só comemos terra lá, tem comentário assim e machuca, né. E aí ver que alguns conhecem nossa cultura e já vê com outra ideia, imagem, né. (Entrevistado E5, 2015).
Ao mesmo tempo, os haitianos são reconhecidos por características
impostas por sua condição de migrante, como o idioma estrangeiro:
Alguns deles subiram lá no palco e “parabéns, você fala bem português”, ficam me cumprimentando, eu me sentia muito bem. Para mim é um espaço pra descobrirem a nossa cultura, para ver que os haitianos estão se esforçando muito. (Entrevistado E3, 2015).
No entanto, é o caráter identitário desses eventos que chama a atenção e
demarca uma forma do “cosmopolitismo”, pelo entendimento de Sousa Santos
(2002), ao ser possível relacionar festas sobre uma luta de escravos pela
independência do seu país contra uma metrópole europeia no cronograma de
atividades de uma cidade cosmopolita/europeia como Curitiba. Lembrando que, para
Sousa Santos, a ideia de cosmopolitismo dialoga com a versão contra-hegemônica
da globalização, ao se estabelecer como organização transnacional por meio de
redes de solidariedade e a valorização do que não é global e, por isso, não é
hegemônico.
Subcategoria: Música
Outra subcategoria que está relacionada aos eventos – mas não restrita a
ele – é a música, que compõe um cenário identitário fundamental para a disputa de
espaços dos haitianos no Brasil e se mostra como uma das principais práticas
comunicativas destes com a sociedade brasileira, como pode ser visto abaixo nos
cartazes (Figura 2 e Figura 3), além dos vídeos das apresentações compartilhados
na internet que possibilitam o conhecimento da cultura haitiana por parte do
brasileiro. Assim, esta afirmação vem ao encontro de um dado observado na
pesquisa: o principal espaço dos haitianos no que se refere à visibilidade tem sido a
154
música, seja por conta dos eventos relacionados à temática da migração, seja pela
presença das bandas haitianas na noite curitibana.
FIGURA 2 – CARTAZ DE SHOW EM UM PERFIL PESSOAL NO FACEBOOK (10/06/2014)
FIGURA 3 – CARTAZ DE SHOW EM UM PERFIL PESSOAL NO FACEBOOK (28/12/2015).
155
Com diversos talentos em Curitiba, houve um questionamento metodológico
por conta da alta média de músicos, ou pessoas relacionadas a algum trabalho
musical, nas entrevistas. Dos 9 (nove) entrevistados, 4 (quatro) tinham relação com
alguma banda atuante na cidade e uma informação até então desconhecida
apareceu em uma das falas:
Lá no Haiti é bem difícil pra entrar em uma família em que nenhum membro não tem conhecimento da música ou não sabe fazer música, essas coisas (...). É bem difícil pra entrar em uma família que não gosta de música (...). Os haitianos gostam de música. Têm bastantes músicos aí haitianos, bastantes. (Entrevistado E7, 2015).
O apreço pela música não só pode ser percebido pelo volume de músicos
encontrados e por esta citação, como também durante a observação participante, na
qual foram verificadas intensas interações entre os haitianos e a música – seja de
modo particular, com o constante uso dos fones de ouvidos no meio das atividades
da Casla e nos próprios atendimentos na Pastoral do Migrante, seja de modo grupal,
com a interação de amigos por meio da dança com uma simples caixa de som. Em
pelo menos duas oficinas do curso ministrado na Casla aconteceram registros de
apresentações musicais de haitianos feitas espontaneamente.
Se estes espaços, somados aos eventos mencionados acima, propiciam que
os haitianos exponham sua cultural musical, não é garantido que o mesmo ambiente
favorável seja encontrado em casas noturnas curitibanas, por exemplo. No entanto,
todas as bandas haitianas com certo reconhecimento de seu trabalho musical
estavam voltadas a ritmos caribenhos, em especial ao Kompa.
(...) pra fazer música aqui a gente precisa ter um empresário (...). Sabe, não
vai ser fácil. Eu tenho um cantor... essas duplas que eu gosto, que eu
sempre falo deles... essa dupla, o Zezé di Camargo e Luciano, eu conheço
a história deles, como conseguiram surgir pra chegar um dia no lugar que
estão hoje, mas no passado, anos 80, mais ou menos, eles passaram por
coisas bem difíceis e hoje é a dupla mais famosa no Brasil. Eu espero
também chegar a este ponto, mas não vai ser hoje ou amanhã, mas a gente
vai continuar tentando, continuar cantando e Deus vai tocar o coração de
alguém pra ajudar e pegar a mão de nós pra poder crescer e poder subir aí
em cima (...). Aqui o pessoal não houve muita música em francês, né. É
mais inglês, português - muito inglês - mas eu vou encaixar também a
música francesa na cabeça de vocês. Mesmo sendo difícil pra vocês cantar,
mas vão aprender, né. (Entrevistado E2, 2015).
Embora o desejo de ascensão musical esteja ligado ao modus operandi da
indústria cultural brasileira, o entrevistado não abdica do sonho de poder cantar em
156
seu idioma, contribuindo assim para uma mudança da cultura musical do povo
brasileiro, ainda que em pequenas dimensões. Além disso, não só a questão do
idioma como citado acima, mas toda a capacidade musical haitiana tem sido
utilizada como um leque cultural por essas bandas que se inserem no cenário de
Curitiba. Neste sentido, é possível perceber que a cultura hegemônica musical, em
especial ao que se refere ao idioma inglês, é contraposta por um novo locus cultural,
que influencia os corpos e seus ritmos e acaba por assumir a “cultura como uma luta
contra a uniformidade”. (EAGLETON, 2011, p.47). A proposta multicultural
interpelada pela composição haitiana em Curitiba critica em seu modo de ser a ideia
da cultura como civilização. Em decorrência, expõe a ideia do “carnaval”, na qual a
cultura não é apenas lugar de desejo e uma imagem refletida do outro, mas é em si
outra figura relacionando-se com o diferente (HALL, 2013), pois há algo de original
nessas expressões culturais que têm modificado a forma dos brasileiros conceberem
a música e a relação do homem com ela, através da dança e da sonoridade.
Embora isso seja perceptível, a diferença musical não foi citada pelos
haitianos, pois as falas em relação à música estavam muito mais ligadas aos sonhos
do que ao próprio estilo. De toda forma, a multiculturalidade exposta pela arte é
criticada em uma das falas:
A apresentação haitiana, não tem como... um povo, um povo muito calmo o de Curitiba... não tem como ser só o Kompa, que é muito barulho. Tem que se adaptar, entendeu? Isso falta. Nós podemos vir aqui para trabalhar e nós podemos mudar isso também para apresentar cultura, o que nós podemos fazer. (Entrevistado E6, 2015).
É necessário, neste sentido, ponderar que tal afirmação pode estar
relacionada a temas pessoais, que serão tratados com mais ênfase no momento da
categoria “organizações de apoio”, quando será perceptível uma desintegração da
unidade haitiana no cenário curitibano, acometida por questões internas dos próprios
migrantes. Além disso, o entrevistado alega: “Porque eu conheço pouco sobre a
cultura do Haiti”. (Entrevistado E6, 2015), ao mesmo tempo em que assume:
A gente está pensando em fazer outra coisa: fazer uma cultura intelectual. É uma coisa diferente. Não é todo mundo que vai poder integrar, mas eu vou ver (...). Aí a gente vai, junta, vemos o que podemos fazer com um movimento intelectual para pensar sobre o futuro do povo aqui no Brasil, porque a gente mal começou. (Entrevistado E6, 2015).
157
Ou seja, há conhecimento de sua cultura, mas de formas de vista diferentes.
O ponto que chama a atenção aqui são os conflitos de relacionamento que também
são características culturais do haitiano e sua forma de transgressão à autoridade,
advinda de tempos ainda coloniais e vista ainda hoje, 2016, nos processos
eleitorais57. Um dos entrevistados, representante de organização, reforça este
conceito: “Foi o primeiro país em que aboliu a escravidão e isso é muito forte. Já
surgiu em vários debates nossos, na postura deles em sala de aula (...)”.
(Entrevistado EQ2, 2015).
Subcategoria: Preconceito
Por fim, a terceira subcategoria é composta pelo tema do “preconceito”.
Primeiramente, tal tema poderia ser visto a partir das outras categorias, como o
preconceito na televisão ou o preconceito no trabalho, por exemplo, ambos
percebidos nesta pesquisa. No entanto, a inserção do preconceito nesta categoria é
justamente por buscarmos um olhar voltado ao preconceito em suas formas de
construção da identidade haitiana.
A primeira questão que pode ser aqui inferida é em relação às
características naturais dos haitianos, especialmente a cor (o corpo) e o idioma, que
são as primeiras formas de comunicação. O idioma foi a principal resposta quando
perguntado aos haitianos a principal dificuldade de comunicação que eles tinham no
Brasil. Existe uma dificuldade natural e essa diferença demarca um “estrangeirismo”
acentuado também pela cor, como pode ser analisado nesta situação:
Esses eventos culturais, essa ideia de integrar (...) a gente vai ao Teatro Guaíra e têm as fotos. Então a gente tem 100 negros juntos no teatro inteiro branco e claro que isso surge em sala de aula e a gente tenta resgatar a nossa história também e mostrar isso. (Entrevistado EQ2, 2015).
A questão da cor também mostrou ser um incômodo para dois entrevistados
quando afirmaram ser esse um dos principais motivos para terem se mudado: “A
Argentina é um povo meio racista, sabe? Aham, muito racista. Depois ele estava
falando: ‘Ah, gente brasileira é boa’. Aí eu falo: ‘Melhor eu viver em um país como
57 As eleições presidenciais haitianas de 2016 estão ainda indefinidas enquanto este trabalho é
escrito. A população não aceita os resultados, acusa o presidente de fraude e tem questionado a
ajuda externa, como no caso da Organizações dos Estados Americanos (OEA) para intermediar o
processo.
158
Brasil do que Argentina, porque eu não gosto de racismo’”. (Entrevistado E4, 2015).
E: “Eu passei três meses lá em Manaus e aí eu decidi deixar Manaus. Eu estava
procurando cidade onde tem menos racismo...” (Entrevistado E6, 2015). No entanto,
esta fala demarca uma diferença histórica com o Brasil e suas políticas de
embranquecimento que formataram a lógica de concebermos nacionalmente a
relação entre negros e brancos (LESSER, 2001). Quando questionado sobre como
sabia que o Brasil não era um país racista, a resposta foi simples – e remete ao
tema do vínculo afetivo falado na primeira categoria: “Ele falava que a gente
(brasileira) era melhor do que na Argentina”. (Entrevistado E4, 2015). No entanto,
embora possa ser melhor, não significa que não seja racista, como pode ser
percebido em outras falas: “Na verdade o mundo inteiro tem preconceito e no Brasil
também. Eu sou vítima de preconceito”. (Entrevistado E8, 2015).
“Ah, você é preto, não vou sentar ao teu lado”. Porque já aconteceu isso no ônibus. Você senta, ela convidou um brasileiro curitibano: “Ah, você tem uma cor...” – “Você pode sentar” – “Não, eu não vou sentar perto de você, é preto, né, vai me sujar”... já aconteceu bastante. Depois outra coisa é quando fala: “Ah não, porque vocês não ficaram lá no teu país morrendo de fome, porque vocês vêm de um país pobre, vêm aqui pra roubar o emprego dos brasileiros”, essas coisas. (Entrevistado E3, 2015).
O preconceito racial é também ponderado por um dos entrevistados, que
mantém uma opinião mais crítica:
O cara que estava falando ficou muito chateado porque estava sentado no
ônibus e o cara não queria sentar do lado dele, não sei se você já viu esse
vídeo (...) Não somos assim, coisa louca o que ele está falando. Isso não é
racismo, entendeu? Interpretação muito ruim, cara. Porque tem amigo meu
que fala isso também: “Ô, E6*, você não está percebendo que quando você
está sentando em um ônibus ninguém quer sentar ao lado de você?” Eu
não! (...). Você senta ao lado de uma pessoa e eu posso ver outro lugar,
cara, eu vou deixar esse lugar e vou sentar em outro lugar. Essa não é
minha preocupação: quem vai sentar ao lado de mim – velha, velho, mulher,
homem – não adianta, todo mundo é igual. (Entrevistado E6, 2015).
Ao mesmo tempo em que rechaça todo o tipo de acusação de racismo, o
entrevistado conta ter se ofendido, não pelo racismo, mas pela maneira como foi
tratado, embora o teor tenha sido sobre sua cor:
Eu lembro uma vez que eu estava lá (aponta para uma mesa58) e ele veio sentar aqui e ele chamou de “negão”, me chamou “negão”. “Negão, vem
58 Nota minha.
159
aqui!”. Isso não é problema para mim, me chamar de negro, o problema era a tonalidade que ele estava usando, o jeito que ele estava falando comigo. Ele falou: “Ô, negão!”, eu sei que ele está tomando cerveja. Eu falei: “Cara, você pode me chamar o gerente pra eu ir embora, mas eu não vou te atender”. (Entrevistado E6, 2015).
Apesar deste entrevistado, em especial, ter criticado o comportamento
estigmatizante e de “vitimização”, em suas próprias palavras, é necessário
reconhecer este tema como um ponto de preocupação para algumas organizações
de apoio e suas derivações culturais no território em que se localiza a pesquisa:
Infelizmente, o brasileiroainda não conseguiu assimilar a questão do imigrante e, em geral, o brasileiro, é difícil ele assimilar o diferente. Então, nós temos muitos problemas em relação a esta questão por conta do preconceito, do racismo, da xenofobia. Muitos brasileiros não entendem que esses migrantes vêm para o Brasil porque no seu país estão passando por perseguições religiosas, políticas, étnicas, porque seu país vive uma guerra civil, um conflito armado e as pessoas não se colocam no lugar do outro. E isso é o principal problema, então, os migrantes sofrem muito preconceito e, principalmente a incidência maior no Brasil é no Sul do país. Porque nós temos as colônias, as comunidades de alemães, italianos, poloneses, ucranianos e essas comunidades têm um maior obstáculo, uma maior dificuldade para assimilar novas culturas, novos migrantes. (Entrevistado EQ3, 2015).
Mas agora não é uma vida melhor que tem no Brasil, para eles as coisas estão muito complicadas e fiquei surpresa esta semana com a notícia que tem nazista. Isso deixa o pessoal com medo porque não são só haitianos que vêm como imigrantes. A gente pode ter cor diferente, mas tanto brasileiro também sai para procurar em outro lugar – vai aos Estados Unidos, vai à França – porque no mundo a pessoa saiu para procurar uma vida melhor. (Entrevistado EQ4, 2015).
A diferenciação, que condena o migrante a ser eternamente o “outro”, acaba
por se refletir em ações de xenofobia e que estigmatizam a busca por ascensão
profissional do haitiano que vem ao Brasil:
Vejo muito eles acharem que vêm para roubar o trabalho deles. Isso não vai melhorar muito (...) se eles veem o migrante, vão achar que veio para roubar o emprego. Tem brasileiro que vai ser alegria, mas tem quem não vai ser. (Entrevistado E9, 2015).
Isso ajuda um país subir a renda e como imigrantes são haitianos que mandam mais dinheiro fora que todos. Mas ignorantes, têm pessoas que não percebem isso e sempre dizem que os haitianos vêm roubar emprego e por isso que sempre que dou entrevista falo isso. (Entrevistado EQ4).
Neste sentido, percebe-se que a questão do migrante haitiano no Brasil
carrega não só um eminente preconceito racial, mas também social e histórico,
especialmente pelo sentimento de diferença cultural que se estabelece àqueles que
160
ingressam em um estado como o Paraná, conhecido por ser o mais eslavo do país
até meados do século XX por sua formação europeia especialmente polaco-
ucraniana (OLIVEIRA, 2012). E embora o Paraná não esteja nem entre os dez
estados mais perigosos para negros, segundo o IPEA59, esta pesquisa relata apenas
os índices de assassinatos, falhando também com relação a informar sobre o baixo
número de negros que o estado tem se comparado aos estados do Norte e
Nordeste, por exemplo. No entanto, o racismo cultural – ou seja, que não chega
necessariamente às últimas consequências, como o assassinato – apresenta o
Paraná como o 4º estado do país mais presente em conteúdos racistas na internet,
conforme revela uma pesquisadora ao estudar páginas neonazistas60. À frente do
Paraná só estão, respectivamente, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Assim, alguns comportamentos ligados à “guetização” são visualizados em Curitiba
e necessariamente problematizados:
Têm alguns deles que sofrem preconceito, porque aqui tem bastante preconceito, daí se torna assim se retirando: “Não, eu não vou falar com o Otávio porque ele vai achar que eu sou haitiano, venho de um país pobre”, daí começa se retirar. (Entrevistado E3, 2015).
Mas, eles se comunicam mais entre eles, eles não têm essa interação maior com o brasileiro. Essa é uma preocupação nossa (...) nós somos contra a formação de guetos. Então nós procuramos essa inserção social, essa interação com os brasileiros (...). É que essa questão de gueto é onde você aprofunda, você segrega, você aprofunda essas diferenças. (Entrevistado EQ3, 2015).
A noção do gueto é contrária à noção do multicultural, pois segrega as
diferenças ao invés de hibridizá-las. A junção da identidade individual com a
identidade coletiva, acelerada ainda pelos processos transnacionais da globalização,
é desconsiderada ao alegar que a identidade do migrante não pertence nem ao
lugar que veio, nem ao que está atualmente, culminando na sua perda completa do
próprio eu. (TRINDADE, 2003). Em relação a isso, uma das entrevistas ressalta um
olhar que busca a completude do migrante:
Acho que a primeira imagem, de qualquer haitiano que está aqui é sempre assim: ele é um imigrante (...) a Pastoral não fala aqui que o haitiano é
59 http://www.brasilpost.com.br/2014/02/28/estados-gay-mulher-negro_n_4876455.html
60 http://arquivo.geledes.org.br/racismo-preconceito/racismo-no-mundo/18522-rs-eo-segundo-estado-
que-mais-baixa-conteudos-neonazistas-na-internet-por-marcelo-gonzatto
161
somente imigrante, mas também pessoa humana, com dignidade (...). Por ser um imigrante isso quer dizer que é uma pessoa que está em busca de uma vida melhor.. Outros podem dizer que é uma pessoa sem casa, sem trabalho; pode ser também uma pessoa vulnerável, porque muitas organizações usam assim para dizer o que é o haitiano imigrante. Para nós, da Pastoral, o haitiano imigrante é uma pessoa humana que quer viver com sua dignidade e plena dignidade (...). Além do nosso trabalho de acolhida estamos vendo como o migrante pode se integrar sabendo como os valores culturais do lugar que acolhe: a língua, ter um lugar onde pode viver como pessoa humana, um trabalho, poder se comunicar com a família, ver como viver com a família... toda a dimensão da pessoa a nível psicológico e não só afetivo... nós estamos vendo tudo isso. (Entrevistado EQ1, 2015).
Assim, a temática da identidade do migrante não fica apenas na sua
característica fugaz e de fuga, mas é composta, como salienta ElHajji (2011), pela
soma do individual e do coletivo, definidos também por Honneth (2013) como
elementos necessários ao reconhecimento de identidades. A totalidade da pessoa
migrante expressa nessa fala abarca a identidade dos haitianos no Brasil não só
como um ser migrante, mas um ser migrante que é cultural, histórico, social, afetivo
e político. A fala acima também se conecta facilmente à crítica feita por dois
entrevistados brasileiros que afirmaram que as organizações mantêm um olhar
diferenciado em relação à sociedade curitibana por estarem mais próximos a eles e,
por isso, potencializarem o haitiano para além do que visivelmente ele é percebido.
Eu acho que pra gente é um pouco claro, a gente está dentro da Universidade, convivendo com esse público há dois anos, enfim, a gente tem um interesse também muito grande de troca de aprendizado. Então, acho que hoje em dia eu posso dizer que têm muito mais coisas que nos aproximam do que nos diferem quando falamos “essas pessoas”. Então acho que não, acho que a gente tem muita similaridade, acho que a gente tem uma admiração (...). (Entrevistado EQ2, 2015).
No entanto, o olhar do brasileiro sobre o haitiano ainda é algo a ser
investigado, visto que esta pesquisa não foi até ao cidadão comum, aqui expresso
por aquele que não está junto aos imigrantes em seu cotidiano. De toda forma,
percebe-se que os brasileiros que atuam nas organizações mantêm uma postura
positiva, como percebido nessa entrevista.
c) Trabalho
O tema do “trabalho” é bastante extenso na literatura e alcança diversas
dimensões na ótica das migrações. Principal busca por migrantes, o trabalho
primariamente supre a necessidade econômica de qualquer indivíduo em outro
162
lugar, seja ele com características desejadas pelo trabalhador ou não, tendo a
função principal de sobrevivência. No entanto, é possível perceber que a dimensão
do trabalho, na lógica das migrações, não só carrega um valor econômico, mas
também está estreitamente relacionado a valores histórico-culturais. Um dos
principais exemplos é observado a partir das médias salariais de japoneses e
congoleses, por exemplo, maiores e menores valores recebidos por imigrantes no
Brasil, respectivamente, como já mencionado na análise sócio-histórica. A diferença
abismal de salários que recebem ambos os trabalhadores destas nações no país
refletem, primeiramente, uma migração japonesa ao Brasil de mão de obra
qualificada, enquanto o Congo oferece ao Brasil uma mão de obra de menor
qualificação, advinda, principalmente, de condições de refúgio. A partir deste dado
socioeconômico, ao se observar apenas os números que demonstram a diferença
entre japoneses e congoleses – e os haitianos podem ser incluídos nesse exemplo,
junto aos congoleses – sem se questionar sobre as condições de vinda e a posterior
imagem que isso acarreta no país receptor, pode-se inferir a importante margem
cultural que a categoria “trabalho” apresenta nas discussões sobre migração.
Embora a migração de países desenvolvidos para o Brasil, como o Japão,
traga consigo uma maior qualificação de mão de obra, é importante ponderar que a
situação dos países de “mão de obra pouco qualificada” não condiz com tal
estereótipo em sua totalidade, como pode ser percebido no perfil dos entrevistados.
Além disso, as migrações, sejam quais forem, não recebem apenas mão de obra,
mas sim pessoas, com toda a sua história e cultura, como afirmou anteriormente o
entrevistado EQ1.
Se inserirmos a condição sócio-histórica do povo haitiano, como se fez em
um dos tópicos metodológicos, é possível perceber que a história de vida dessas
pessoas, atreladas à sua nação, está vinculada a lutas por independência
estrangeira, soberania e paz. Esses elementos são traduzidos na migração haitiana
ao Brasil pelo reconhecimento de esforço e pela fama de bons trabalhadores, como
correntemente a observação participante aferiu no cotidiano da Pastoral do
Migrante, em processos empregatícios, e a partir de falas como: “Os haitianos são
muito trabalhadores!”.
Além desse reconhecimento por brasileiros que atuam junto a haitianos, os
próprios migrantes ressaltam essa característica como algo cultural: “Melhor
maneira... de como você pode mostrar: ‘isso aqui é o Haiti’, entendeu? (...). Pela
163
pele. Mas não só fisicamente. Haitiano trabalha muito. Mais do que brasileiro e
temos força (...). Trabalho... trabalho duro. Dinheiro é pequeno! ” (Diálogo com
Entrevistado E1, 2015). Há ainda o depoimento de um brasileiro sobre isso: “O que
marca mais para mim, porque mesmo nós estamos numa situação complicada, é
que eles são muito trabalhadores, isso admiro muito, muito neles. (Entrevistado
EQ4, 2015).
Por ser possível afirmar que o trabalho não é apenas uma categoria
socioeconômica, mas também histórica-cultural, a pesquisa busca observar por meio
de algumas subcategorias como o trabalho se relaciona com a construção da
identidade haitiana no Brasil.
Subcategoria: Motivos da vinda
A primeira subcategoria está relacionada aos “motivos da vinda” dos
haitianos ao Brasil, considerando que o trabalho seria um dos principais argumentos
de migração, visto que o Haiti, após os desastres ambientais, não era capaz de
abranger toda a mão de obra de seus próprios cidadãos. Outro motivo do trabalho
ser percebido como um importante motivo da vinda de haitianos ao Brasil é a
informação de que 20% do PIB do país advinha de remessas financeiras enviadas
de emigrados, como já salientado nesse trabalho.
As entrevistas confirmaram que a migração ao Brasil se deve, sobretudo, a
questões de trabalho, estudos e a um clima propício para viver. No entanto, o
quesito trabalho foi o mais ressaltado, influenciado, obviamente, pelas interações
pessoais, como já exposto na primeira categoria. No entanto, aqui reforçamos a
questão do emprego:
O cara me falou e daí eu tenho um amigo aqui em Curitiba e ele me falou também. O cara que vem de fora ele quer achar um emprego rapidinho também, entendeu? Aí o cara falou: “Lá tem um lugar e você pode achar um emprego rapidinho”. Qualquer lugar que você vai lá, qual o setor que você quer trabalhar e vai indo. O cara que está aqui falou: “Vem hoje e amanhã você já pode vir trabalhar”. (Entrevistado E6, 2015).
Em 2013, quando eu estava lá no Haiti, queria mudar de país. Eu queria morar em um país rico, mas a oportunidade do Brasil subir, é fácil de conseguir um visto permanente. Embarquei para cá. Eu vim para cá para estudar também, trabalhar. (Entrevistado E9, 2015).
(...) depois do Haiti ter sido atingido pelo terremoto eu, com um primo que estava já aqui, ele conversava comigo – ele estuda Engenheiro Industrial.
164
Ele foi estudar na República Dominicana e depois ele veio pra cá pra ver se conseguia um emprego melhor, ou pra fazer mais experiência no trabalho dele. Ele chegou aqui no Brasil e depois perguntou a mim se eu queria vir também... (Entrevistado E2, 2015).
Um pouco além dessas falas, o trabalho se mostrou como o único fator para
a vinda de uma família haitiana para Curitiba:
Chegando em Manaus, uma empresa de mina de ouro contratou meu marido para Curitiba. Daí depois me contrataram como cuidadora de idoso. Foi assim que nós viemos aqui. Através daquela empresa que foi lá em Manaus nos contratar. (Entrevistado E5, 2015).
Ainda que as interações pessoais tenham se mostrado mais decisivas do
que a oportunidade de trabalho no Brasil, é importante referendar que havia nessas
pessoas um componente de esperança, de uma imagem potencializada pela mídia
haitiana sobre o país, que não é possível ser mensurada nessa pesquisa, mas
comentada nas entrevistas. Esse componente de esperança ainda pode ser
ratificado a partir das características favoráveis dos haitianos entrevistados, como
uma formação técnica ou superior e um conhecimento de idiomas: “(...) ‘você fala
vários idiomas, você manja em computador, você pode vir, daí você vai ter sorte pra
trabalhar aqui’ (...) Eu falo crioulo que é um dialeto de lá do Haiti, francês que é
nativo, inglês, espanhol e agora português”. (Entrevistado E3, 2015).
Quanto à escolha por Curitiba, o trabalho também aparece como um
componente, como pode ser percebido pela fala do Entrevistado E5, logo acima, e
por essa constatação:
Eles vêm muito por conta das Pastorais do Migrante e por conta do empresariado. Os empresários que acabam trazendo eles para o Sul, por conta da mão de obra, infelizmente, né, a mão de obra barata (...) vêm muitos ao sul, pra Santa Catarina, Rio Grande do Sul. (Entrevistado EQ3, 2015).
Desta forma, percebe-se que a vinda ao Brasil e, especialmente, à Curitiba,
está relacionada a questões de oportunidades vislumbradas frente ao conceito desta
como a “melhor cidade do país”, segundo levantamento em 2015 da Agência Austin
Ratings e pela Revista IstoÉ61; e do Sul, como a região mais desenvolvida
nacionalmente, cuja afirmação, inclusive, é aceita em uma das falas: “Se você
61 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/curitiba-ganha-premio-de-melhor-cidade-do-
brasil-7tadh2c7xzcejht1n5aku5s5w
165
pensar em Curitiba, você pode pensar em qualquer cidade do mundo. Uma cidade
da França, do Quebec... não sei se você concorda comigo”. (Entrevistado E6, 2015).
No entanto, as últimas pesquisas sobre empregabilidade trazidas pelo
Observatório de Migrações da UnB afirmaram que as capitais do Sul e Sudeste
brasileiro, ao receber uma quantia elevada de imigrantes, demitiram mais do que
contrataram estrangeiros em 2015. Ainda assim, tais cidades continuam a receber
maior confiança dos haitianos do que outras.
Subcategoria: Ocupação atual e relação com os estudos
Nesta segunda subcategoria é possível visualizar a desvalorização da mão
de obra haitiana, mesmo nos casos de imigrantes que possuem qualificação.
Percebeu-se uma restrição dos entrevistados haitianos em comentar sobre seus
trabalhos e um foco mais ligado aos estudos, qualificações pessoais e sonhos de
vida no Brasil. É perceptível que os entrevistados depositem nos estudos a chance
de uma ascensão de vida não alcançada simplesmente pelo que tinham ou faziam
no Haiti, o que os faz nutrir algumas expectativas não simplesmente relacionadas ao
que estudaram.
A minha vida futura estou com muita vontade de fazer uma especialidade
em Direito Internacional, é isso. E depois eu estou com muita vontade de
voltar para o meu país, ficar e fazer minha vida lá. E estou aqui, na verdade,
gosto do Brasil, vim para o Brasil realizar o sonho de criança (...) no ano que
vem, quero fazer uma experiência no rádio, música e cinema e depois,
alguns anos, viver uma vida mais tranquila, né. (...) porque música e cinema
são as minhas paixões, entendeu? (Entrevistado E7, 2015).
Este, que é técnico em radicalismo, deposita sua confiança se comunicando
para um grande público, por meio da música:
Mas a gente ainda está batendo, procurando, porque pra fazer música aqui a gente precisa ter um empresário e a gente ainda não tem um empresário. Estamos procurando, mas ainda não conseguimos. Sabe, não vai ser fácil. (Entrevistado E2, 2015).
Outro entrevistado, sem ter uma formação universitária, aproveita sua
facilidade com a internet e a amplitude comunicacional por meio dos idiomas que
fala para entrar no ramo de negócios digitais:
Essas fotos são apenas para negócio digital porque no Instagram você atinge mais gente do que no Facebook. Tem foto que eu coloco no
166
Instagram e tem 80 pessoas que curtem. No Facebook, pode ser 30, 20. Eu faço divulgação (...). Vender e filiação de produto. Se você tem um Mac, esse Mac tem um código que é seu. Se você vender esse produto, vai ganhar uma comissão. (Entrevistado E9, 2015).
Outro, no entanto, cria novos desejos profissionais a partir de sua atuação
como liderança haitiana em Curitiba, como é o caso do Entrevistado EQ4, que cursa
atualmente Fisioterapia e trabalha como cuidador de idoso, ao mesmo tempo em
que planeja cursar Relações Internacionais para continuar trabalhando com a
temática migratória, agora profissionalmente. Outro entrevistado também se
interessou pelas Relações Internacionais e atualmente faz o curso após viver a
experiência migratória, mas credita à ânsia pelo saber o principal motivo para
continuar os estudos, agora em outra área:
Para mim é diferente porque eu gosto de mais coisas, eu gosto de aprender, entendeu? Até que se eu estou conversando com uma pessoa eu tenho que aprender com você, daí não é pra ficar batendo papo de graça, eu gosto de aprender. Cada dia para mim eu tenho que aprender uma coisa nova. (Entrevistado E3, 2015).
Essas falas demonstram uma capacidade de recriar possibilidades a partir
de uma identidade em diáspora, que sendo multifacetada, composta e polifônica
(ELHAJJI, 2011), tem a necessidade e a capacidade de se mover em diversas
direções a partir de algo que é intrínseco a si mesmo, mas que também se forma
socialmente e culturalmente por sua condição dialógica (BARBALHO, 2011).
É perceptível que a condição transnacional dos haitianos não só modifica a
si mesmos, como também o ambiente em que estão inseridos, a partir da
necessidade de sobreviver e se situar no espaço por sua ação pelo trabalho e da
formação intelectual e, por isso, este trabalho define o migrante não em sua simples
adaptação ou pela ideia do melting pot62, mas por uma aculturação que o faz ser “o
estrangeiro que não cabe na sociabilidade básica da modernidade63” (MARTÍN-
BARBERO, 2004, p.25) ou mesmo no âmbito da lógica de Milton Santos (2012),
quando o geógrafo afirma que a relação entre o homem e o território “manifesta-se
dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que interferem
reciprocamente mudando-se paralelamente territorialidade e cultura, mudando o
homem”. (p.83).
62 Caldeirão de raças (tradução livre).
63 Tradução livre
167
E essas formas de mudança também são percebidas pelos haitianos, às
vezes sob o discurso da dificuldade: “(...) o que eu achava que era totalmente
diferente, porque eu pensava que quando eu chegasse aqui no Brasil ia trabalhar e
a vida ia se tornar bem fácil pra mim, mas eu passei algumas dificuldades”.
(Entrevistado E3, 2015).
(...) o Brasil ofereceu oportunidade para vir para cá, mas eu vim para estudar e trabalhar por pouco tempo, mas quando eu cheguei a realidade é muito diferente do que eu pensava. Eu tive que trabalhar pra ter todas as coisas que a gente precisa e aí é bem difícil para eu estudar e trabalhar. (Entrevistado E8, 2015).
Quanto à perspectiva diaspórica ressaltada na identidade haitiana, em
alguns casos, quando a conversa se encaminhou para perspectivas futuras, não há
um consenso entre os entrevistados se voltariam para o Haiti ou ficariam no Brasil e
nem ao certo onde ficarão: “E depois eu estou com muita vontade de voltar para o
meu país, ficar e fazer minha vida lá”. (Entrevistado E7, 2015). Este diz: “Para o
Haiti, só para passear. Agora se eu vou sair do Brasil para ir para outro país, agora
eu não sei te dizer. Mas eu estou aqui e vou analisar como vou fazer isso”.
(Entrevistado E9, 2015). E este outro: “Agora, se eu voltar para o Haiti parece outra
vida para mim. Deixa assim, cara”. (Entrevistado E6, 2015).
Embora a análise seja temática e não léxica, é possível inferir que os
momentos nos quais essa reflexão foi realizada junto aos haitianos, houve respostas
breves, sem muitos alongamentos que explicassem sua condição futura. Ao
reconhecer o nível de incerteza das respostas, também é possível perceber o
componente da “diferença” a qual cita Hall (2013), ao comparar nativos que nunca
saíram de suas terras a outros, que emigraram, como os Góis, judeus-americanos,
por exemplo. Esta característica hifenizada (LESSER, 2001) das identidades
também alcança a dimensão dos haitianos que começam a reconhecer o Haiti não
mais como sua terra, como afirma o Entrevistado E6.
d) Organizações de apoio
As organizações de apoio aos imigrantes são aqui observadas,
primeiramente, a partir da visão que elas têm sobre si mesmas e sobre os haitianos
a quem apoiam; também são observados, no interior desta categoria, os processos
de comunicação que envolvem as instituições com os haitianos. Da mesma forma, é
168
fundamental analisar a relação das práticas comunicativas realizadas entre os
imigrantes e as organizações, pois pressupõe-se, nesta dissertação, que tais
práticas são fundamentais para a construção da identidade haitiana desses
imigrantes em Curitiba.
A primeira relação de importância apresentada pelas organizações junto aos
haitianos está relacionada à chegada destes ao Brasil. Tendo pouco contato com a
cultura brasileira e desconhecendo o território, os haitianos recém-chegados não se
mantêm apenas à mercê de seus vínculos pessoais – outros haitianos já emigrados
– mas buscam nas organizações uma fonte de conhecimento do novo território,
especialmente em busca de condições mínimas para sua estada, como
documentação necessária, moradia, idioma e trabalho.
São relações interpessoais e também os órgãos públicos e instituições que encaminham esses migrantes (...). Então, por exemplo, a Polícia Federal encaminha, os consulados, as universidades, vereadores, deputados estaduais, acabam encaminhando os imigrantes para cá*. (Entrevistado EQ3, 2015).
Acho que eu não posso dizer que existe uma fonte de informação estabelecida para os migrantes chegar até nós (...), mas até agora eu não sei como eles acharam a primeira informação. São fontes de informação para os novos. Pode ser que os primeiros que chegaram aqui acharam essas informações, desde a sua chegada ao Acre. Dependendo da cidade de destino desse imigrante, se esse imigrante vai para Curitiba, há um centro de atendimento (...). Uma fonte de informação pode ser Acre, outra fonte de informação pode ser São Paulo (...). Então é sempre o lugar que acolhe antes que é fonte de informação, mas não sei se os coiotes também têm informações dos centros, pode ser que sim, pode ser que não. Sabemos que eles são pessoas informadas, que talvez busquem informações para fazer esse trabalho de encaminhamento. (Entrevistado EQ1, 2015).
Então, no início quando não existia essa rede (...) era muito do curso especificamente via Casla e o boca a boca e o que era interessante que a gente começou a perceber no decorrer do tempo é que quando eles chegavam eles preenchiam uma ficha de inscrição como nivelamento pra gente saber pra que turma eles iriam e uma das perguntas era: “Quanto tempo você está no Brasil?”. E a gente começou a perceber que era um pouco isso, boca a boca, porque ao mesmo tempo chegava uma pessoa que estava há um ano, seis meses ou até mais, a gente começou a ver muitas pessoas que chegaram ao Brasil há uma semana, três dias e teve vários casos que chegaram, inclusive, há um dia ou no mesmo dia e eles estavam ali fazendo o curso (...). Nem tinha dado tempo ainda dele ir até alguma agência do trabalhador ou, enfim, dessas coisas primeiras, da Polícia Federal, desse movimento primeiro mesmo, muitas vezes eles estavam já ali por uma rede de conhecidos que já levavam eles para o curso, né. Quando a gente via que ele já estava há uma semana, três dias, há dois dias eles já estavam no sábado ali pleiteando uma ficha e isso se traduz um pouco, talvez, nessas informações da cidade, que a gente percebia que eles tinham conhecimento muito grande, na grande maioria, sobre questões relativas ao trabalho. Então muitos sabiam, sim, onde tirar
169
carteira de trabalho, já tinham feito isso pela agência trabalhadora, a grande maioria já tinha passado por lá, da Casla muitos conheciam, da Pastoral do Migrante, enfim, mas ao mesmo tempo pouquíssimo conhecimento da cidade em termos culturais. (Entrevistado EQ2, 2015).
Essa ideia de confiabilidade em organizações que atuam ajudando
migrantes externos faz coro à inserção desta categoria no trabalho, especialmente
no que se refere à compreensão das formas comunicativas que os haitianos têm em
Curitiba e que perpassam pela presença das organizações como referências de
apoio. Trata-se de relações humanas nem sempre midiatizadas, mas que acabam
por contribuir igualmente na construção de suas identidades.
Subcategoria: Formas de comunicação
Quanto às subcategorias, a ser: “formas de comunicação; “atividades
cotidianas”; e eventos/atividades especiais”, a primeira delas, “formas de
comunicação” realizadas entre organizações e imigrantes, é analisada a partir da
pergunta realizada aos representantes das organizações, que buscava saber quais
as formas de comunicação que a respectiva organização estabelecia com os
migrantes. Esta questão não foi apresentada nas entrevistas aos haitianos e, por
isso, o olhar sobre este aspecto neste trabalho é exclusivamente o olhar das
organizações de apoio entrevistadas embora seja possível reconhecer algumas
delas pelo que está implícito nas falas.
Duas das organizações, Casla e Pastoral do Migrante, que atuam como
postos de atendimento às necessidades dos migrantes, afirmaram ter como primeira
forma de comunicação o contato pessoal que mantém com os haitianos quando
estes buscam seus serviços em suas sedes. Por exemplo: “A primeira forma de
comunicação que temos com os migrantes é verbal. Eles têm que chegar até nós e
nós passamos informações (...)” (Entrevistado EQ1, 2015). Esta outra fala mostra a
realização de um trabalho mais específico: “Eles vêm, num primeiro momento,
porque nós trabalhamos com várias frentes, mas o principal em relação aos
migrantes e refugiados é a assessoria jurídica gratuita” (Entrevista EQ3, 2015)
No entanto, as mesmas instituições afirmaram também ultrapassar a
comunicação interpessoal, avançando para o uso de tecnologias de informação e
comunicação devido à necessidade de aprimorar essa questão:
(...)através do jornal, da rádio, televisão, nos comunicamos também. Mas não sei se eles escutam rádio, se têm um amor para a televisão ou talvez o
170
canal que transmite essas informações (...). Estamos vendo a parte da comunicação, do Whatsapp – mais rápido e mais fácil para eles – já tínhamos no Facebook (...) onde nós divulgamos muitas coisas, porque sabemos que eles buscam informações via Facebook e o Facebook é um mundo que se abre para todos. Acho que nós estamos vendo nos últimos anos que é preocupação para saber onde o migrante busca a informação para a gente poder estar nesse lugar e divulgar a informação para ele. Como já falei antes, eu acho que eles estão mais no Whatsapp. Será que é somente isso? Precisamos saber para poder divulgar mais. (Entrevistado EQ1, 2015).
Essa busca pelas tecnologias midiáticas está relacionada à preocupação de
manter um contato mais ativo com os migrantes, fato que é impossível de ser
mantido apenas com a comunicação interpessoal ou mesmo pela mídia tradicional,
como relatado acima. A busca por esse contato faz parte do que Scherer-Warren
(1998) chama de “redes de comunidade virtuais identitárias”, cujo processo de
construção identitária é impulsionado por estas formas de vínculos através de um
sentimento coletivo, de pertencimento e reconhecimento, pois existe uma relação
pessoal e um compromisso mútuo que faz com que tais formas comunicativas sejam
necessárias para que haja continuidade nos trabalhos. Ainda em relação a essa
necessidade, outra fala de pessoa ligada às organizações de apoio chama a
atenção pelos desafios travados frente a esse tema:
Hoje em dia a gente já chegou em alguns caminhos porque no começo realmente isso foi muito difícil. Os e-mails eles não respondiam, a gente nem sabia se eles abriam, porque na ficha tinha e-mail, telefone, enfim (...). E-mail era catástrofe. Aí celular muitos caiam em caixa postal, quais os horários de trabalho, às vezes a gente conseguia deixar recado com alguma pessoa e, hoje em dia, posso dizer que com as pessoas que melhor consigo me comunicar é, ou por Whatsapp, porque daí alguns deles têm (...), e pelo Facebook, no sentido que a gente tem uma página do projeto no Facebook (...). Então eu sei que a grande maioria dos nossos alunos estão na página porque a gente posta as fotos deles, dos eventos culturais, a gente divulga as pessoas do projeto. Ali a gente sabe que eles olham, eles respondem por ali e pelo Facebook mesmo. Hoje em dia, por muitos terem curtido a página a gente acaba conseguindo falar com eles por mensagem, é até meio hilário, mas é o jeito que mais funciona hoje em dia quando a gente precisa falar. (Entrevistado EQ2, 2015).
Há também uma relação entre as tecnologias e a comunicação interpessoal
em situações onde não há uma estrutura organizacional formal, como no caso da
Associação dos Haitianos, realizada pelos próprios haitianos que estão em Curitiba:
“(...) a gente tem o telefone deles, são amigos no Face e quando eles precisam,
porque tem bastante que eu não conheço, um passa o telefone para o outro quando
eles precisam para ligar e espalha”. (Entrevistado EQ4, 2015). Ou neste caso, em
171
que o entrevistado mostra que existe uma busca por feedback através de
questionários:
Sempre no final do ano a gente faz um questionário de satisfação do que eles mais gostaram, menos gostaram, material, enfim... e pra gente é muito claro, a grande maioria, 100%, sempre fala muito dessas atividades culturais que a gente promove. São das mais variadas possíveis: até ir para o museu, a gente foi à orquestra, assistimos exposição, shows, esses eventos fora que a gente organiza e esses são os que eles mais comentam. Eu digo que eles comentam porque eles não falam muito sobre a aula. Então acho que são duas frentes bem grandes que chegam pra gente: uma são comentários bem positivos destas saídas, com as fotos, extraclasses, digamos, de coisas que a gente promove e outra muito no sentido de pedir vaga que, hoje em dia, para os haitianos, a gente tem nove turmas, com vinte alunos em cada. (Entrevistado EQ2, 2015).
No entanto, especificamente na situação do entrevistado EQ2 há uma
possibilidade diferente de contato, visto que seu “apoio” está mais ligado à educação
escolar pelo ensino de línguas do PBMIH – o que presume um contato mais corrente
– do que um serviço esporádico, como é percebido pela maioria das outras
organizações.
É importante notar que, quando se perguntou sobre as formas de
comunicação, as respostas foram aquelas citadas acima, o que demonstra um
apreço pelas tecnologias mais populares, como o Whatsapp e o Facebook, e a
preocupação que as organizações têm em se utilizaram dessas ferramentas para
manter um contato mais próximo aos haitianos. Por outro lado, não foram citados
com ênfase os diversos eventos realizados pelas organizações como práticas
comunicativas (visto que nessa pesquisa consideramos os eventos como práticas
comunicativas e em alguns casos até midiatizados, como será refletido na
inferência/reinterpretação). Frente a esse panorama, buscou-se construir uma nova
subcategoria ligada aos “eventos/atividades especiais”, que será trabalhada logo
mais.
Subcategoria: “Atividades cotidianas”
A análise desta subcategoria, próxima a subcategoria anterior, tornou
possível perceber a comunicação interpessoal de modo mais evidente entre
organizações e haitianos. Ao mesmo tempo, por meio dela, percebe-se que há uma
busca pela construção identitária realizada por intermédio de comunidades de
sentimentos, como afirma Sousa Santos (2002), que influem em relações de
reconhecimento desses haitianos pelas organizações. No entanto, tal relação
172
comunitária pode ser percebida especialmente onde existe, nas relações entre
migrantes e organizações, o componente do aprendizado, que neste caso, acaba
por evidenciar uma troca de saberes entre brasileiros e haitianos.
(...) a sala de aula acaba sendo um espaço terapêutico, nesse sentido, porque eles confiam nos professores que estão ali, porque estão há bastante tempo, porque sabem que estão fazendo alguma coisa por eles e eles veem de alguma forma que estão ajudando, que o professor acaba sendo essa ponte com o mundo, com a cidade, de levar aos lugares, de dar dicas (...). Então pra eles isso é muito positivo, diferente do que acontece em outras instituições. Surge em sala, que é sempre um exemplo clássico: surge em sala questões trabalhistas. A gente não vai resolver aquilo. Não, não que nos compete, mas a gente vai encaminhar ele para o pessoal do Direito do nosso programa (...). A gente vai encaminhar. Então, sala de aula, acho que é muito esse espaço de desabafo, (de mostrar) o preconceito. (Entrevistado EQ2, 2015).
Quando a gente vai tocar uma música brasileira, agora no intervalo têm vários grupos que já relataram que deixam eles mexerem no computador: “passa uma música do Haiti, então”. Pegar também esses artistas e incorporar. Enfim, valorizar um pouco essa história também do país (deles). (Entrevistado EQ2, 2015).
Se é perceptível por parte das organizações ligadas à educação esse
componente, as outras, mais ligadas à assistência humanitária, encontram essa
vinculação comunitária afetiva apenas nas atividades especiais. Não houve registro
de conteúdo que demarcasse contrariedade a essa afirmação, embora os haitianos
entrevistados reconhecessem as organizações de apoio, de modo geral, como
fundamentais na construção da identidade haitiana em Curitiba e embora haja, por
parte de todas as organizações, uma busca por torná-los próximos aos migrantes:
“Nós damos um apoio para ajudar e depois o migrante tem que caminhar sozinho. E,
por isso, acho que criar um ambiente onde tem fraternidade e união dos povos é
legal e isso é um dos objetivos (...)” (Entrevistado EQ1, 2015). Da parte dos
haitianos, há um reconhecimento pelos esforços das organizações e ponderem
sobre algumas das atividades realizadas por elas:
Eles fazem uma intervenção pra ajudar, pra deixar eles saberem que preconceito não vale nada, na verdade, todo mundo é igual. Acho que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fala sobre isso: todo mundo nasce igual e por isso que no mundo inteiro existem associações, organizações que nos defendem. É bem bacana e eu acho que sem eles a gente não pode se organizar – fazer uma banda, organização – entendeu? Pra mim eles contribuem muito. (Entrevistado E8, 2015).
(...) têm algumas organizações aqui no Brasil que só se aproveitam dos
haitianos, tipo: “Ah, eu vou ajudar dez haitianos, vou pedir dinheiro no nome
173
deles”. Daí pega o dinheiro e passa coisas ruins (...). Mas têm algumas
dessas organizações também que ajuda bastante. Eu não posso dizer que
foi uma organização, mas quando cheguei ao Brasil a minha igreja me
ajudava bastante (...) Nasci dentro da igreja, meus pais são membros da
igreja desde 82, daí eu sou bem conhecido da igreja. (Entrevistado E3,
2015).
Outro fator que chama a atenção no cotidiano das organizações de apoio é a
possibilidade de realizar seus objetivos de trabalho em rede. Algumas delas
apresentam distinções frente a outras neste sentido. Se a maioria consegue
contribuir na questão da documentação, algumas focam no assistencialismo, na
empregabilidade, outras no aprendizado do idioma, ou na garantia de direitos e até
mesmo no apoio espiritual, como é o caso de diversas religiões que têm envolvido
inúmeros haitianos aqui no Brasil. Essa potencialidade de objetivos integrados entre
as organizações é tratada por uma das entrevistadas:
(...) a gente sempre trabalha junto e quando eles (outras organizações) precisam da Associação, mandam mensagens e pedem ajuda e quando nós precisamos também, pedimos a ajuda deles (...). E não só com direitos humanos, mas com a saúde também. (Entrevistado EQ4, 2015).
Outras falas já explicitadas comprovam que existe um relacionamento entre
as organizações de apoio para um melhor atendimento aos migrantes. Além desse
aporte entre elas, outras organizações não abarcadas pela pesquisa – como os
órgãos governamentais, por exemplo, especialmente por meio da Secretaria
Municipal de Direitos Humanos – contribuem para a formação da rede de apoio aos
imigrantes, que juntas, inclusive, fizeram uma pressão sobre o Governo do Estado
do Paraná para formular o primeiro plano de políticas públicas pelos direitos dos
migrantes, refugiados e apátridas, que foi efetivado em 2014, como salientado no
capítulo do Panorama Sócio-Histórico das Migrações. Tal relacionamento entre as
organizações estudadas compõe o que Sônia Aguiar (2006) compreende como
redes sociais, sendo estas o impulso que indivíduos ou grupos realizam
coletivamente em torno de interesses coletivos que culminem em uma finalidade de
enfretamento, no caso, pelos direitos dos haitianos no novo território.
Sobre a defesa dos direitos dos migrantes frente a qualquer tipo de
discriminação, a fala a seguir é um exemplo: “Então, como princípio, nós temos a
solidariedade dos povos, o respeito às culturas, o respeito à identidade, nenhuma
cultura é superior à outra e temos essa visão de que todos somos irmãos”.
(Entrevistado EQ3, 2015).
174
No entanto, é importante trazer novamente o resultado da observação
participante, a fim de não idealizar a atuação entre as organizações, que não é
perfeita na concretização das redes. Diferenças ideológicas e pessoais demarcam
as dificuldades do desenvolvimento dessas redes sociais, como salientado
anteriormente e ficou expresso nas entrevistas, especialmente em situações
adversas, como a realização de duas festas haitianas no mesmo dia: “E para fechar,
essa integração eu sempre quando pedi para fazer trabalho junto... não sei,
egoísmo... não sei. Porque a gente está fazendo o mesmo trabalho, não é um
trabalho pessoal (...)”. (Entrevistado EQ4, 2015).
Estava feio, não tem como organizar. 18 de maio (...). “Por que vai ter duas festas?” (...) Por quê? Estão fazendo o que? Estão transferindo a mesma coisa do Haiti: a divisão. Não tem como. Porque o japonês aqui, o alemão, todo o povo que está aqui no Brasil cresceu bastante? Olha a comunidade japonesa! Muito respeitada aqui no Brasil, por quê? Porque eles sabem como organizar. Conseguem fazer alguma coisa. Os haitianos, não. (Entrevistado E6, 2015).
Ainda que sejam perceptíveis determinadas diferenças entre as
organizações, o que é natural em um trabalho de coletividade e que envolve política
e formações socioculturais, a maioria das vozes se mostrou desatenta ao tema das
desavenças ou mesmo omissas a essa questão. O que é importante salientar nesse
último parágrafo da subcategoria corrente são os desafios do trabalho em rede,
mesmo através das diferenças já citadas entre as organizações, mas que são
fundamentais para a garantia de direitos dos migrantes.
Subcategoria: Eventos ou atividades especiais
A última subcategoria no âmbito da categoria “Organizações de Apoio”,
refere-se aos “eventos ou atividades especiais”, que são caracterizados como
momentos que fogem ao cotidiano das organizações, como festas, visitas, cursos
específicos, congressos, etc. Embora alguns eventos já tenham sido caracterizados
com ênfase na análise resultante da observação participante, pretende-se aqui
vinculá-los às considerações dos migrantes sobre o eixo comunicação-identidade,
considerando tais eventos como práticas comunicativas organizadas por meio de um
aparato institucional.
Uma das perguntas feitas nas entrevistas se referia à principal forma de se
manifestar o “ser haitiano”. A discussão, já feita na categoria “manifestações
culturais”, teve como principal resposta os eventos pátrios, que são costumeiramente
175
organizados e midiatizados através do trabalho das organizações de apoio,
juntamente com os migrantes.
Um dos motivos para essa resposta não só está ligado à história de luta do
Haiti, mas também pelas possibilidades que os eventos oferecem para que os
brasileiros estejam mais próximos ao povo haitiano, com sua cultura e suas
tradições. Não é pretensão nesse momento voltar ao debate cultural, já feito em
categoria anterior, mas sim olhar determinadas atividades na perspectiva
interacional e que possibilita, inclusive, o fomento de comunidades de sentimentos
ao redor da valorização do migrante no Brasil. Tais interações podem servir como
uma circulação comunicacional, que pode gerar processos de midiatização, como
salienta Braga (2012). Além da circulação midiática fomentada pelas redes sociais
através dos registros dos celulares, um exemplo claro pode ser percebido pelo
entrevistado E3, cuja produção de um livro com sua vida estampada se deu pela
presença de jovens universitárias e do migrante em uma das festas realizadas pela
Pastoral do Migrante.
Por isso que quando eu achei as meninas da PUC para trabalhar sobre o livro eu me sentia muito bem, porque eu sozinho não podia fazer esse tipo de trabalho, até onde que ia chegar minha voz? Com elas, eu consegui mais ou menos sair no jornal Gazeta do Povo, contando a minha história e um monte de coisa e elas foram lá comigo na banda tirar algumas fotos, entrevistaram cada um dos músicos, elas vieram aqui no bairro assistiram partida do jogo, até que caí na RPC (Rede Paranaense de Comunicação). (Entrevistado E3, 2015).
Posteriormente, o livro permitiu que o haitiano participasse de outros eventos
e concedesse entrevistas para a mídia local. Neste sentido, há um claro processo de
midiatização, ao se considerar que o “produto mediático não é o ponto de partida do
fluxo, mas pode ser visto como um ponto de chegada, como consequência de uma
série de processos, de expectativas, de interesses (...)”. (BRAGA, 2012, p.41). Ou
seja, a participação do haitiano em um evento em si não é uma midiatização, mas se
torna parte do processo de midiatização quando passa a ser ponto de partida para a
circulação de um produto midiático futuro, que pode ser o livro e sua exposição na
mídia ou mesmo uma exposição fotográfica feita por entusiastas da causa migratória
a partir destes eventos.
Quanto à questão da visibilidade do Haiti para os brasileiros, as falas abaixo
argumentam:
176
Porque eles (os brasileiros) acabam descobrindo algumas coisas que eles não sabiam que existiam porque eles só assistem as coisas ruins que existem e as organizações mostram outra imagem do Haiti; porque a maioria dos brasileiros só tem em mente o momento do terremoto. (Entrevistado E5, 2015).
(...) a nossa ideia é vender a nossa cultura, porque às vezes fico triste, porque têm alguns brasileiros que ficam perguntando se lá no Haiti tem hospital, tem internet. Daí quando você faz esse tipo de trabalho – festa para ver haitiano tocando música, tocando instrumento, tem haitiano que mais ou menos fala português, mestre de cerimonial, essas coisas – ajuda os brasileiros descobrirem a nossa cultura. (Entrevistado E3, 2015).
Além dos eventos já descritos, outros puderem ser aferidos com vistas ao
esforço das organizações em valorizar a identidade haitiana, como forma de
visibilidade e abertura cultural:
Alguns eventos que a gente promove, é justamente pra isso, né... como quando a gente promoveu o cinema haitiano lá na Cinemateca com debate (...) a gente promoveu um evento na Praça de Bolso do Ciclista no fim do ano onde a nossa ideia era justamente mostrar essa identidade, essa cultura, essas pessoas, para que as pessoas pudessem conhecer e então, aceitar. Porque o que a gente percebia, ou percebe, é que muitas das pessoas não entendem direito mesmo o que os haitianos estão fazendo aqui, o que aconteceu no Haiti ou mesmo a questão migratória no geral, não param para refletir sobre isso e julgam. E a partir do momento que elas conhecem, que esse evento foi um pouco nessa direção, a gente viu sim uma aceitação positiva das pessoas que estavam ali, que nunca... “ah, mas tem haitiano aqui?”. Porque eles são um pouco ainda invisíveis (...), Então, quando a gente foi lá no Guaíra pedir pra levar numa orquestra, enfim, também deles abrirem esse espaço, de fornecerem, a partir que a gente foi lá e explicou o contexto do projeto, explicou porque essas pessoas estão aqui, qual que era o objetivo, de poder fazer essa história diferente, pra que eles não ficassem em guetos, que eles pudessem pertencer a cidade, pra contribuir, pra não ter esse ódio em longo prazo. (Entrevistado EQ2, 2015).
Acho que cada vez que organizamos uma atividade assim onde oferecemos espaço para eles mostrar sua cultura, isso é um grande passo. Os valores culturais deles, porque chegando aqui o povo que acolhe não os conhece, mas através dessas atividades culturais dá para o povo conhecer alguma coisa deles. Assim, com essas atividades realizadas (...) eles estão se integrando, se inculturando e também estão, ao mesmo tempo, convidando o povo que acolhe a aceitar estes valores culturais. Aceitar esses valores culturais é também chamar o povo que acolhe a abrir o coração para uma melhor acolhida. Então seria uma aculturação. (Entrevistado EQ1, 2015).
Outra pergunta colocada relacionava-se à suficiência da atuação das
organizações de apoio junto aos haitianos. As falas anteriores representam a voz
mais forte, que reconhece as organizações tendo um papel importante para a
visibilidade haitiana em Curitiba, mas ao mesmo tempo há falas que não
consideraram suficiente o que vem sendo feito. No entanto, tal afirmação não diz
respeito somente à alçada das organizações, mas a diversos outros fatores, como a
177
desorganização dos haitianos, o pouco costume dos brasileiros com esta nova
cultura e a necessidade de integração à sociedade por meio dos estudos, política e
cultura.
Não, não é suficiente, tem que continuar ainda (...) É por isso que eu falei pra você que não vai ser em quatro anos que estamos aqui que vai mudar tudo. Demora. Talvez vá chegar 20 anos, talvez vá chegar 10 anos, mas também vai ser os filhos dos haitianos que vão fazer a mudança, mas tudo isso faz parte. Eu espero que vocês, os brasileiros, vão ter um dia uma lembrança de nós, do povo que está. Nós somos imigrantes na verdade, porque todos os brasileiros têm descendência de africano, europeu, asiático e nós também, os haitianos têm descendência de africano e europeu porque nós fomos colonizados pela França e o Brasil foi colonizado por Portugal. Nós temos descendência da França, de sírios. Tem tudo, o haitiano tem de tudo. (Entrevistado E2, 2015).
Eu estou falando mais da organização haitiana mesmo. Por exemplo a Casla, está fazendo um trabalho que para mim é legal. Quando a gente tem um problema a gente vai lá direto pra ter um conselho, onde a gente pode ir, entendeu? Tem muita gente que não sabe, como iniciar um processo e a Casla pode ajudar. Caso contrário, a organização haitiana atrapalha muito. (Entrevistado E6, 2015).
Tem brasileiro que, quando eu cheguei aqui, veio me trazer roupa. Todas as roupas que eles trouxeram para mim, eu coloquei na garagem. Eu não usei. Se a Casla pode fazer mais? Os haitianos são muitos aqui, mas o que poderiam fazer para eles? Colocar eles em empresas, contratar quem não tem trabalho, mesmo salário que eles vão receber é muito pequeno. Só isso que pode ser um pouco suficiente. (Entrevistado E9, 2015).
Assim, nota-se que as organizações ainda funcionam como um
“organizador” da identidade haitiana no novo território, cuja construção identitária
tem como protagonistas os próprios haitianos. Essas considerações passam a ser, a
partir de agora, mais interpretativas – ou reinterpretativas, como afirma Thompson
(2011) – e possibilitam a resposta das questões e pressupostos dessa pesquisa. Por
conta dessa possibilidade, torna-se viável agora encerrar a análise das categorias e
partir para a última etapa da análise da HP.
*
Finalizando esta etapa, disponibilizamos uma tabela com os principais
resultados obtidos na fase da análise formal ou discursiva, concretizada pela análise
de conteúdo:
178
TABELA 2 – Síntese da Análise de Conteúdo.
CATEGORIAS SUBCATEGORIAS SÍNTESE
Práticas comunicativas mediadas por tecnologias
Novas mídias
São ferramentas para a manutenção dos vínculos afetivos, que influenciam na decisão de migrar;
Lugar de visibilidade pessoal e étnica: comunicação cidadã em espaços transnacionais;
Uso cotidiano: reconhecimento identitário;
Uso do celular reforça a identidade imagética do haitiano e também como aprendizado social, seja por registros, seja pela participação em grupos nas redes sociais (fechamento étnico ameaçado no espaço digital por comunidades de sentimentos);
Atuação independe das organizações, especialmente pela força da internet.
Mídias tradicionais
Lugar de visibilidade pessoal e étnica: comunicação cidadã em espaços transnacionais;
Desejo pela visibilidade se contradiz frente à crítica sobre a televisão;
Violência como tema evidente e relação com criação de estereótipos, que afeta os haitianos.
Manifestações culturais
Datas comemorativas
Forte nacionalismo decorrente de fatores sócio-históricos;
Resguardo de culturas em espaços transnacionais: comunicação cidadã transnacional de uma identidade em trânsito;
Cultura hibridizada pelo novo território, mas necessária para dar visibilidade neste mesmo espaço que ainda não conhece o Haiti como deveria;
Espaço ao cosmopolitismo: organização transnacional através de redes de solidariedade e em busca de novas formas globais.
Música
Música como principal espaço de visibilidade;
Música como marca identitária haitiana;
A música é sonhada a partir de um modus operandi característico, mas em si se constitui como uma manifestação cultural que luta contra a uniformidade da música internacional anglo-americana: cultura não como civilização, mas como carnaval.
Preconceito
Idioma como maior dificuldade de comunicação dos haitianos no Brasil, que pode culminar em ações de preconceito;
Racismo pela cor muito citado;
“Ladrões de emprego”;
Questionamento frente ao fechamento étnico ou “guetização”, como resultado do preconceito: contrário ao multicultural e negador de identidades, pois não pertence ao lugar de origem, nem ao que está atualmente;
O olhar do brasileiro varia conforme o lugar em que olha: organizações busca o “ser migrante” mais completo, em toda sua “dignidade”.
Trabalho - Trabalho como categoria histórica-cultural e não
179
apenas socioeconômica: figura do haitiano lutador, trabalhador, apropriada por eles mesmos.
Motivos da vinda Trabalho como motivo chave para a migração ao
Brasil (motivo socioeconômico);
Visão sobre Curitiba como cidade empregadora.
Ocupação atual e relação com os
estudos
Dificuldade de valorização da mão de obra haitiana, cuja esperança é depositada em novos projetos e estudos, referendando a potencialidade das identidades em diáspora por meio de sua condição dialógica. Tal relação não muda só o homem, mas também o ambiente em que ele está situado;
Não há consenso sobre o futuro: voltar ou não ao Haiti? Futuras identidades hifenizadas?
Organizações de Apoio
-
Importância dos vínculos entre organizações e haitianos, sendo aquelas, referência para a estruturação do migrante em Curitiba.
Organizações funcionam como “organizadoras” das identidades haitianas no novo território.
Formas de comunicação
A comunicação interpessoal ainda é a principal forma nas organizações assistenciais, ao passo que na de caráter educativo as novas tecnologias de comunicação são mais bem aproveitadas.
Atividades cotidianas
Ambiente de “comunidades de sentimentos”, influenciados pelo componente do aprendizado;
Trabalho em rede entre as organizações que não exclui, entretanto, diferenças ideológicas.
Eventos/Atividades especiais
Eventos não só como característica cultural, mas como característica interacional entre brasileiros e haitianos, especialmente na busca de visibilidade.
5.4 INTERPRETAÇÃO/REINTERPRETAÇÃO OU INFERÊNCIAS
Parte-se para a última parte da análise da HP, que correspondente à
interpretação/reinterpretação, cuja contribuição à pesquisa se dá no âmbito da
interpretação das formas simbólicas e seu aspecto “transcendente”, ou seja, o que
existe, mas precisa ser reinterpretado (THOMPSON, 2011). A reinterpretação existe,
pois Thompson afirma que as formas simbólicas também já foram interpretadas
anteriormente pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico, tendo o
pesquisador o papel de reinterpretá-lo. Ou seja, as entrevistas e a doxa já fazem
parte de uma interpretação daqueles que compõem o mundo, não são dados puros.
Do mesmo modo, consideramos nesta pesquisa as inferências obtidas por meio da
análise de conteúdo como parte dessa interpretação prévia, pois Bardin (1988) a
compreende como um momento da análise que corresponde à identificação do que
180
só foi dito superficialmente pela análise das categorias a partir das condições de
produção.
Ao caracterizar este momento como de interpretação/reinterpretação/
inferências específicas do pesquisador, pretende-se responder às questões e ao
pressuposto de pesquisa, ao mesmo tempo em que seus objetivos serão
desvencilhados de expectativas para ganhar contornos concretos.
Inicia-se pelas duas questões da pesquisa. A primeira pergunta buscava
saber como são construídos os processos comunicativos dos imigrantes haitianos
residentes em Curitiba no âmbito da sociedade. A resposta a essa pergunta precisa
se dividir em duas partes: uma, que diz respeito aos processos que fazem os
haitianos se comunicarem individualmente ou em grupos de reconhecimento; e,
outra, sobre o que influi diretamente sobre os processos comunicativos que os
colocam em contato com a sociedade. A pergunta não se refere a uma descrição de
quais seriam as práticas comunicativas dos haitianos em Curitiba, como foi
respondido durante a análise de conteúdo e cuja descrição era um dos objetivos
específicos do trabalho. O que vale inferir aqui é a construção dos processos
comunicativos, que se concretizam por meio de práticas.
Primeiramente, há que se refletir que, por meio da análise das entrevistas,
demonstrou-se que a condição migratória carrega consigo uma peculiaridade
comunicacional entre emigrados e pretendentes à imigração. A maioria dos sujeitos
estudados neste trabalho veio para Curitiba a partir de referências afetivas e, já em
novo território, desempenhou o mesmo papel interacional e afetivo com relação a
outros possíveis imigrantes que ainda estão/estavam no Haiti.
Assim, percebe-se uma circularidade comunicacional – e não só
informacional, pois há trocas de saberes – mediadas, por sua vez, por dispositivos
tecnológicos, deixando claro que as novas migrações têm na sociedade midiatizada,
como afirma Martín-Barbero (2004; 2009; 2015) ao referenciar a sociedade atual,
este importante componente que fomenta o movimento transnacional de pessoas.
Aprofundando um pouco mais o que diz o autor, com a revolução tecnológica não
são modificadas as atividades da humanidade, mas emerge uma nova forma de
relação entre processos simbólicos, formas de produção de bens e serviços.
Além dessa influência interacional no processo migratório, outros processos
comunicativos acontecem já no novo território entre os próprios haitianos, mas tais
processos não apresentaram diferenças daqueles realizados por alguém que não
181
migrou. O uso do Whatsapp para conversar com amigos, do Google para fazer
pesquisas e do Facebook para contato e divulgação remetem a um processo
comunicativo realizado por meio de tecnologias de comunicação, mas que não
dizem respeito à característica exclusiva do ser diaspórico, como percebido no
exemplo anterior. O que fazem os haitianos nesse sentido é o que fazemos nós,
brasileiros, no cotidiano. No entanto, o processo estimula a interação com a
sociedade no sentido de permitir que estejam informados e terem a possibilidade de
informar aqueles que pouco conhecem seu país.
Percebe-se, contudo, que a melhor forma da sociedade curitibana interagir
com a comunidade haitiana, e vice-versa, ainda passa pela mediação das
organizações. Os processos comunicativos construídos entre os haitianos e a
sociedade, mas mediados pelas organizações de apoio, ganham um componente de
visibilidade que os migrantes ainda não conseguiram encontrar mesmo presentes
nas redes sociais virtuais, segundo eles próprios afirmaram. Este é um ponto
nevrálgico e responde com clareza o pressuposto da pesquisa de que as
organizações de apoio aos imigrantes haitianos em Curitiba constituem-se como as
principais fomentadoras dos processos comunicativos dos imigrantes haitianos com
a sociedade. A afirmação do pressuposto pode ser referendada pelos próprios
migrantes ao defenderem a ideia de que as organizações (de brasileiros ou dos
próprios) desempenham um papel fundamental na construção de uma identidade
positiva dos haitianos no Brasil. Reinterpretando tais falas, nota-se que esse
reconhecimento das organizações de apoio só é alcançado por conta de um esforço
de ambas as partes em interagirem, primeiro entre si, para depois alcançarem o
resto da sociedade. Uma das falas de entrevistado que atua em uma organização,
que não foi trazida na análise de conteúdo, torna-se viável a este momento
interpretativo:
O que a gente prioriza muito, acho que isso é bem claro para o grupo como um todo, é a valorização da cultura deles. Essa integração nunca é vista como uma imposição – uma assimilação – da cultura brasileira, mas que a gente sempre tenta mostrar que isso é um movimento mútuo, que nós temos que estar abertos, mas que vocês haitianos também precisam estar abertos a essa nova cultura, novos códigos culturais e que a construção é justamente isso. (Entrevistado EQ2, 2015).
Embora não tenham sido explorados com tantos detalhes quanto as
atividades realizadas pelas organizações de apoio, outros campos sociais dos
182
haitianos, como o do trabalho, dos estudos, da religiosidade e geográfico (o espaço
do bairro, por exemplo) também possibilitam um contato cotidiano dos haitianos com
a sociedade local. No entanto, é só por meio de um tipo de organização que é
possível a formação de comunidades de sentimentos (SOUSA SANTOS, 2002) que
contribuem para a construção de repertórios de resistência (HALL, 2013) em uma
sociedade composta por muitas vozes, ou o que Braga (2006) chama de “redes
difusas”. Essa necessidade pela organização compõe o marco teórico da pesquisa,
especialmente vista pela contribuição de Sousa Santos e sua ideia de
cosmopolitismo, como forma real da formação de uma globalização contra-
hegemônica, e que permita o migrante estender sua identidade para além da
capacidade de mão de obra para se situar como ser cultural. Neste sentido, e pela
ausência de uma recordação dos entrevistados sobre outros campos sociais em
seus processos comunicativos, afirmamos que o pressuposto da pesquisa se
confirma.
Quanto às organizações, os processos comunicativos com a sociedade
foram construídos especialmente por meio dos eventos/atividades especiais por elas
realizados. Neste sentido, a Pastoral do Migrante e a Associação dos Haitianos com
suas festas pátrias são destaque, pois conseguiram envolver o público a partir de
características marcantes do povo haitiano, como já expresso na observação
participante (interpretação da doxa). Ao mesmo tempo, atividades de outras
organizações, como as da Casla e a do PBMIH, embora tenham conquistado menos
o público externo, conseguiram cultivar a ideia comunitária de sentimentos junto à
comunidade haitiana. Assim, as práticas comunicativas fomentadas pelas
organizações, mesmo desempenhando papeis diferentes, contribuem na construção
do ser cultural para além do estereótipo de migrantes como mão de obra barata e da
ideia de pobreza haitiana, representações construídas costumeiramente pelas
mídias tradicionais, como assinalado pelos haitianos.
A segunda questão da pesquisa busca saber: As práticas comunicativas dos
haitianos em Curitiba constituem-se como práticas midiatizadas? Visto que este
trabalho parte de um olhar sobre a comunicação como interação (FRANÇA, 2001), a
lógica do deslocamento dos meios para as mediações continua e, com isso,
considerar práticas comunicativas midiatizadas não se refere apenas ao uso de
tecnologias de informação e comunicação ou das mídias tradicionais, mas a maneira
de como esses meios interferem nessas mediações.
183
A pesquisa considera a sociedade atual estruturada pelos meios de
comunicação, como afirma Martín-Barbero (2009) partindo da análise das
mediações (comunicativas da cultura) pela certeza de que as interações
comunicativas do homem atual estão cada vez mais integradas às novas formas de
sociabilidade promovidas pela ascensão de novas mídias.
Sendo assim, “tudo” poderia ser midiatização se considerarmos que vivemos
em uma sociedade midiatizada. No entanto, a ideia deste trabalho buscou focalizar
os processos de midiatização por meio do que Braga (2006; 2012) considera como
“processo interacional de referência”, ou seja, a circulação/interação que, de alguma
forma, está em contato, são influenciados e, consequentemente, modificados pela
ação das mídias.
Um dos exemplos a ser analisado é o já exposto caso do haitiano que, a
partir de um evento organizado pelas organizações de apoio, se inseriu em um
projeto de estudantes, protagonizou um livro e, posteriormente, chegou a dar
entrevista para a televisão. O evento, em si, não é midiatizado em sua natureza, mas
serviu como mediação para uma posterior prática midiatizada de um migrante
haitiano. Aqui, a circulação comunicacional aconteceu e o produto midiatizado não
se encontrava no início do processo, mas a interação foi ganhando formas
midiatizadas em seu decorrer, tornando a ação comunicativa daquele haitiano,
midiatizada. Ressaltamos: não é a participação protagonista do haitiano no evento
que é midiatizada a priori, mas o que decorre dela por meio de sua inserção em
mídias, como o livro e a televisão, transformam a ação comunicativa desse haitiano
em algo midiatizado.
Neste sentido, os eventos ainda servem como exemplo se considerarmos o
motivo pelo qual chamaram tanto a atenção no início deste trabalho, ainda na fase
de observação: o intenso uso de celulares pelos haitianos quando seus pares
subiam aos palcos. Neste sentido, a midiatização já se encontra no início do
processo, pois as apresentações, assim como a maneira dos demais participantes
se portarem, com danças e poses para fotos com a bandeira nacional de seu país,
indica que o registro do momento nos celulares e, costumeiramente, compartilhado
entre amigos modifica a forma dos haitianos se portarem e de se relacionarem com
o evento. Novamente, vale ressaltar: não é apenas o uso do celular que indica a
midiatização, mas o quê o uso dos celulares faz com o comportamento e a própria
natureza do evento. A interação continua sendo o objeto de estudo do trabalho, mas
184
reconhecemos a incidência decisiva que o aparato midiático tem sobre essa
interação.
Outro exemplo, ainda arguindo a favor das práticas midiatizadas, são os
próprios processos migratórios, como descritos anteriormente. A decisão de migrar e
a escolha de vir para o Brasil são influenciadas pela presença das mídias. O intenso
uso das redes sociais para aproximar haitianos que estão no Brasil e haitianos que
ainda residem em sua terra natal não fica restrito apenas à natureza das redes
enquanto ferramentas instrumentais para a manutenção de vínculos afetivos, mas o
uso intenso dessas redes sociais virtuais acaba por modificar a forma de “ser
migrante” e, inclusive, contribui na decisão de migrar, como afirmou o entrevistado
E2, quando disse ter ganho a permissão de sua família para vir ao Brasil apenas
porque seu primo, que já estava no país, conversou com seus pais pela Internet.
Se a midiatização atinge mais os haitianos nos processos comunicativos
identificados, é possível também perceber casos nos quais as organizações de
apoio também são atingidas. Uma das entrevistadas qualificadas comenta sobre um
documentário que foi feito com imigrantes onde eles respondiam algumas perguntas:
A gente fez um curta com os alunos pensando justamente nisso, foi nesse contexto que a gente quis fazer. “Quais são seus maiores medos (...). “Qual seu maior sonho?”, “seu maior medo?”, enfim, justamente pra tentar se aproximar. (Entrevistado EQ2, 2015).
A partir dessas perguntas montou-se um pequeno filme divulgado nas redes
sociais virtuais no fim de 2014, que hoje (início de 2016) conta com quase mil
visualizações no canal Youtube. A produção do vídeo poderia ser considerada uma
midiatização apenas por ser um vídeo documentário, dentro da perspectiva da
sociedade dos meios, mas considerando a interação como ponto-chave, o vídeo
documentário torna todo o processo de aprendizado e reflexões em sala de aula da
organização um processo de midiatização, que tem nessa produção o meio do
processo, visto que o vídeo foi divulgado em redes sociais virtuais e gerou uma série
de interações, agora com outros públicos. Ou seja, o espaço da sala de aula, a
priori, não é midiatizado, mas a produção de um documentário com questões
trabalhadas em sala o transformam em um espaço de midiatização, que se dá no
meio do processo de interação entre professores/migrantes e a sociedade.
185
FIGURA 4 – DIVULGAÇÃO DO FILME “SOMOS TODOS MIGRANTES”, NO YOUTUBE.
Contudo, é preciso afirmar que nem todos os processos comunicativos
analisados podem ser expressos como midiatizações. As interações interpessoais
identificadas nos atendimentos e o uso do Whatsapp para manter um
relacionamento entre haitianos e as organizações não tornam tais processos
comunicativos midiatizados simplesmente pelo uso de tecnologias de comunicação,
pois não apresentam as mídias como processo interacional de referência das
interações estabelecidas e sim uma atribuição mais instrumental e que poderia ser
realizada sem tais mídias atualmente. Além desses exemplos impulsionados pelas
organizações, as inúmeras formas comunicativas que os haitianos mantêm entre si
no novo território não podem ser objetivadas como processos de midiatização, pois
não foram aprofundadas pelos haitianos em suas falas, tratando-se, nestes casos,
de usos particulares. Como dito anteriormente, não é só a presença da mídia em si
que nos faz considerar algo midiatizado, mas como estabelece – e se estabelece –
novas formas de interação. De todo modo não há como negar que o uso das mídias
pelos haitianos tenha um potencial considerável em tornar os processos
midiatizados pela característica de valorização da imagem pessoal que os haitianos
têm, incidindo, talvez, na maneira de se portarem em seus grupos afetivos.
Em relação às práticas comunicativas cotidianas, perguntou-se aos
haitianos, nas entrevistas, sobre as influências que os conteúdos midiáticos
(televisão, internet, rádio, etc.) tinham sobre suas conversas com amigos e
familiares, o que poderia tornar seu cotidiano comunicativo também midiatizado. No
entanto, alguns disseram se informar, mas não colocaram isso em conversações
186
cotidianas, restringindo-se mais a temas afetivos. Outros, por exemplo, citaram o
tema da violência vista em programas policialescos para demonstrar medo diante da
insegurança brasileira, o que atinge seu modo de vida.
Enfim, é possível perceber que as práticas comunicativas dos haitianos
estão cada vez mais midiatizadas, especialmente quando se trata do uso das redes
sociais virtuais e por ocasião de atividades especiais, como os eventos pátrios ou
shows musicais. Neste sentido, ao responder esta questão de pesquisa, é possível
passar ao objetivo da pesquisa, que buscou analisar como os processos
comunicativos contribuem na construção da identidade dos imigrantes haitianos em
Curitiba.
Já identificado por meio de alguns pontos da análise de conteúdo, o objetivo
geral deste trabalho mescla, por meio das técnicas de coleta e de análise, o
conteúdo dos capítulos teóricos do trabalho, especialmente no que tange o papel da
comunicação, contribuindo com as discussões sobre identidade no cenário
transnacional da globalização.
Primeiramente, a pesquisa indica que a sociabilidade dos imigrantes passa,
necessariamente, por um reforço do uso de tecnologias de comunicação. No
entanto, essas novas formas de pertencimento manifestas por meio das novas
sociabilidades não substituem a comunidade original desses imigrantes, mesmo em
casos daqueles que afirmam não pretenderem voltar ao Haiti. Essa conclusão vai de
acordo com a ideia de que o ato migratório modifica as identidades, tornando-as
multifacetadas, ao mesmo tempo em que não perdem seu centro geográfico, que
não é só geográfico, mas cultural, afetivo e histórico, mesmo em casos nos quais a
identidade histórica aponta para um “destino de ser migrante”, como foi visto por
Handerson (2015), em seu olhar antropológico sobre o Haiti.
Na relação dos haitianos com as organizações, por exemplo, a identidade se
manifesta marcada por “repertórios de resistência” (HALL, 2013), como já expresso
na categoria das “manifestações culturais”: as músicas, as festas e a luta contra o
preconceito demarcam territórios e a disputa por reconhecimento. No entanto, a
busca por reconhecimento não se restringe apenas ao contato com as organizações
e nem sempre se dá apenas em níveis grupais, mas também individuais, como
afirma Honneth (2013), remetendo à presença de alguns haitianos nas redes sociais,
onde atuam como agentes desmistificadores da imagem construída no Brasil sobre o
seu país.
187
Um dos pontos que chamou a atenção durante os eventos é o intenso uso
dos celulares como forma de registros que nem sempre são compartilhados. Se é
apenas uma ferramenta de “fantasia”, como cita o entrevistado E6, ou se apresenta
um uso estratégico, como afirma o entrevistado E8, o uso dos celulares demarca
uma forte ligação do haitiano à arte manifestada pelo corpo e pela fala. Além disso,
há também uma relação de intenso uso de tecnologias, não só no sentido de facilitar
trocas comunicativas, mas também como um “atributo social” em um país que vê o
imigrante haitiano ainda como miserável e, que simultaneamente, continua a
valorizar o celular como bem de consumo que confere status a quem o usa. Ou seja,
o uso dos celulares, bastantes modernos na maioria dos casos, parece ser uma
mostra também aos brasileiros de sua civilidade: em especial, quando se deparam
em situações em que precisam afirmar que “não comiam terra” no Haiti, como
salientou o entrevistado E5.
Neste sentido, reforça-se também o papel das organizações em
potencializarem as manifestações culturais haitianas, embora isso não demarque
uma abertura étnica tão forte quanto as redes sociais podem demonstrar. Enquanto
as atividades das organizações dizem algo como: “Brasil, estamos aqui!”, através da
exposição da cultura e do sujeito haitiano, o uso das redes sociais virtuais colocam
em xeque o fechamento étnico ao hibridizar a relação cultural entre brasileiros e
haitianos, como foi citado inúmeras vezes nas entrevistas em páginas dedicadas a
haitianos no Brasil, mas que eram compostas ativamente por brasileiros que se
sentem pertencentes à causa migratória e com isso geram trocas de saberes.
Assim, a composição de atributos comunicativos partícipes da sociedade
midiática possibilita a construção dessas comunidades de sentimentos que não se
isolam em comunidades geográficas, mas que são reforçadas pela “glocalização”
(SOUSA SANTOS, 2002), ou seja, movimentos globais como o da migração,
aglutinados a ações locais através das organizações de apoio – entendidos por
Cogo (2010) como “comunicação cidadã transnacional” – e demais sujeitos em um
movimento de pertencimento. São essas dinâmicas que acabam por reivindicar a
imersão de uma cultura minoritária (SODRÉ, 2005) – a imigrante, negra,
subdesenvolvida – em um território muito marcado pela cultura globalizada (SOUSA
SANTOS, 2002), especialmente quando a mídia tradicional reforça estereótipos,
como citaram alguns entrevistados, inclusive pertencentes às organizações de
apoio. Como disse o entrevistado EQ1, perguntar ao migrante “Quem é você?”,
188
antes de “Por que você veio?”, demarca uma mudança de olhar, estrategicamente
pensada para humanizar uma relação que pode ser apenas coisificada como
instrumento jornalístico, de fonte/notícia. No entanto, não está apenas em jogo o
modo de fazer jornalismo, mas sim a forma de se colocar o migrante no novo
território, de modo a inserir aspectos de contra-hegemonia também em meios
hegemônicos, hibridizando-os (HALL, 2013), do mesmo modo que haitianos se
estabelecem em conferências públicas, casas de shows ou na rede social,
ressignificando todos estes lugares.
189
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conclusão dessa dissertação se inicia por meio da mesma imagem
descrita em seu início. A imagem do barco, à deriva, abarrotado de imigrantes que
buscam melhores condições de vida na Europa, continua permeando os imaginários
globais por meio das notícias diárias. Esse dado pode ser afirmado categoricamente
por mim – e aqui novamente peço licença para falar em primeira pessoa – pelo
mapeamento de notícias realizado durante mais de um ano (2014-2015), por meio
de instrumentos de pesquisa, como o Google Alerts, que me permitiu acompanhar
as notícias e dados mais importantes dos fluxos transnacionais de pessoas e,
especialmente dos haitianos, neste período de intensa imersão no universo
migratório.
Se a cena de asiáticos (especialmente do Oriente Médio) e africanos rumo à
Europa continua a acontecer, seja pelo Mar Mediterrâneo, Mar Egeu, Estreito de
Gibraltar ou pelas terras turcas, fazendo o continente romper a barreira de 1 milhão
de migrantes ilegais e refugiados ingressos só em 2015, segundo a OIM64, há
diferenças não só nas políticas europeias, mas também em outras mudanças que
marcam o fluxo de haitianos ao Brasil desde que esta pesquisa começou a ser
realizada.
Um fato ocorrido no dia 11 de novembro de 2015 marcou uma nova etapa
para aproximadamente 44 mil haitianos que vivem no Brasil: a assinatura – feita
pelos Ministérios da Justiça e do Trabalho – do ato conjunto de reconhecimento,
autorização e concessão permanente a imigrantes haitianos passou a permitir que
eles tenham direito à sua carteira de identidade de estrangeiro no Brasil, o que
garante, teoricamente, uma acolhida com mais segurança pela via da inserção social
e de programas sociais65. Em âmbito local, a notícia vinda de Brasília também trouxe
repercussão: um aumento considerável de haitianos chegou às organizações de
apoio de Curitiba, buscando formalizar a concessão dada pelo Governo Federal,
fazendo com que tais organizações se reordenassem para dar conta da nova
64 http://www.jornal.ceiri.com.br/oim-total-de-refugiados-e-imigrantes-na-europa-ultrapassa-1-milhao-
em-2015/
65 http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/ministros-assinam-ato-concedendo-
autorizacao-de-permanencia-para-haitianos
190
demanda que se estende até o presente momento (fevereiro de 2016). Além disso,
outro contexto migratório, mais ligado à geografia, foi modificado: a emissão de
vistos em Porto Príncipe (Haiti), de forma a evitar que mais haitianos cheguem ao
Brasil ilegalmente pelas mãos de coiotes diminuiu drasticamente o número de
migrantes nos alojamentos acreanos, no segundo semestre de 2015. Segundo
informações da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre dadas ao site
G166, enquanto o mês de janeiro de 2015 registrou 1.393 pessoas, dezembro, do
mesmo ano, registrou apenas 54.
Entretanto, a par dessas políticas públicas que facilitam a vida dos haitianos
no Brasil, outros fatos lamentáveis aconteceram. Haitianos foram alvejados por tiros
em atos de xenofobia e racismo70, manifestações do mesmo cunho apareceram nas
redes sociais virtuais, ainda que sem muita adesão, organizações integralistas e
anti-imigração ganharam forma, e um aumento de desconfiança do Brasil pelos
próprios haitianos, marcado pelo discurso da crise econômica e política agravada no
país, e, em muitos casos, concretizada pela dificuldade na conquista de novos
postos de trabalho nas capitais onde há maior chegada de imigrantes, como
Curitiba.
Frente a esse cenário em constante mutação, minha atuação nas
organizações de apoio que, a princípio, foi sinal de alerta para a validação científica
da pesquisa demonstrou-se fundamental para a realização desse trabalho. Com a
temática preenchendo os noticiários, ao mesmo tempo em que citamos os fatos
xenófobos e racistas acometendo os haitianos, outras muitas vozes apareceram com
o intuito de contribuir, mas também utilizá-los como objetos de estudo. Essa
exploração da imagem do haitiano ainda chama a atenção. Inúmeros interessados
pelo tema surgiram enquanto essa pesquisa era realizada, porém, em alguns casos
a falta de engajamento continua incomodando a atuação das organizações,
entendendo-se que a boa intenção não basta para melhorar a condição de vida
desses migrantes.
Ainda que meu processo de vinculação a eles esteja em permanente
desenvolvimento, o olhar sobre as práticas comunicativas e como elas referenciam
66 http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2016/01/n-de-haitianos-que-entram-no-brasil-pelo-acre-cai-96-
em-12-meses.html
70 Um dos fatos mais graves foi o assassinato de um haitiano em Navegantes (SC), morto a facadas
por dez homens no dia 17/10/2015.
191
as identidades desses sujeitos pode contribuir para este tema, o comunicacional,
ainda obscuro para as organizações de apoio, que têm tido a necessidade de
abarcar prioritariamente questões básicas, como capacitação, emprego, idioma e
documentação.
Ao adentrar nos processos que compuseram a pesquisa, vale ressaltar
novamente o que já foi comentado no fim da análise: os objetivos de pesquisa foram
alcançados, o pressuposto foi confirmado e as questões norteadoras foram
validadas, mas acrescento que isso só foi possível mediante um processo de intensa
reflexão sobre as realidades observadas e as teorias estudadas. Se foi simples
descrever as práticas comunicativas dos haitianos, como pedia um dos objetivos
específicos, relacionar seus processos à construção de suas identidades no Brasil
demarcou uma necessidade interpretativa iniciada etnograficamente e mais bem
concretizada durante a realização das entrevistas e sua análise. Se a escolha pela
metodologia da HP de Thompson (2011) foi fundamental para dar cabo a um
processo intensamente qualitativo e permeado por subjetividades de formas
simbólicas, a teoria dos estudos culturais contribui para compreender processos de
hibridização a qual estão condicionados esses sujeitos em constante fluxo. Além dos
estudos culturais, as teorias de globalização e da migração em perspectiva histórica
e social contribuíram para formar tal cenário dos haitianos no Brasil.
Ao se destacar o pressuposto da pesquisa, pode-se afirmar que as
organizações de apoio têm se mostrado fundamentais para a construção de
identidades dos haitianos no novo território. A ressalva, que já foi feita em outro
momento, pondera que todos os entrevistados estão relacionados, de certa forma, a
atuação dessas organizações, o que poderia representar uma aproximação óbvia ao
pressuposto. No entanto, cabe ressaltar que a relação dos haitianos com a
sociedade sempre foi potencializada a partir dessa mediação institucional. Ainda que
os espaços midiáticos pudessem contribuir, as organizações ainda aparecem como
lugar de reconhecimento dessas identidades, demarcando um importante locus de
disputa de hegemonia. Cabe ressaltar, no entanto, que o pressuposto inicial foi
sendo flexibilizado ao longo da pesquisa e, especialmente, visto como um lugar
metodológico propício para encaixar as reflexões sobre as organizações, que não
seriam objeto de análise, mas sim um componente essencial para compor o cenário
migratório em Curitiba e contribuindo ao alcance dos objetivos.
192
Das duas questões de pesquisa validadas, uma delas, aquela que pergunta
se as práticas comunicativas dos haitianos em Curitiba seriam práticas midiatizadas,
acabou se constituindo como principal ponto de discussão e reflexão durante todo o
trabalho, por vários motivos: ora pelo fato das teorias de midiatização se mostraram
ainda demasiadamente fluidas, trilhando diversos caminhos que se confundiam; ora,
pela volta intensificada aos meios; ora, como uma geminação das mediações. O
desafio deste trabalho foi trazer, a partir das pesquisas latino-americanas, a
midiatização como parte da mediação, mas ultrapassando-a no que se refere à
formação de circuitos comunicativos compostos por processos interacionais de
referência mobilizados pela ação de mídias. Essa foi a principal descoberta pessoal
que tive durante esse processo, mas creio que ele não se isola aqui. Diferentes
abordagens da midiatização podem compor novas reflexões, como a
institucionalização das mídias nos campos sociais e até mesmo um enfoque maior
nos meios de comunicação a partir de suas tecnologias materiais, como afirma
Hjarvard (2015). No entanto, permanecer, neste momento, na linha das mediações e
da comunicação como interação gerou também uma identidade no trabalho com a
lógica das midiatizações.
Cabe ressaltar as surpresas, limites e desafios que o trabalho provocou ao
longo dessas centenas de páginas. Primeiramente, duas surpresas foram
percebidas nessa pesquisa: a força social da internet e a importância dos vínculos
afetivos na decisão de migrar. Quando era esperado um intenso consumo televisivo
no Brasil e no Haiti, referenciando o ato de migrar, ambas as “surpresas”
apareceram preponderantes. Em segundo lugar, sentiu-se a necessidade de
mensurar como os brasileiros percebem essa identidade haitiana, mas brasileiros
que não atuem no âmbito das organizações: da pessoa comum, que transita pela
natureza edificada da cidade cosmopolita. Entender melhor isso responderia por
outro caminho a ideia das identidades do imigrante frente à sociedade, não
analisada, aqui, pela ótica daqueles, mas sim por este outro lado, das minorias. De
toda forma, a opção por este lado foi de natureza teórico-metodológica,
especialmente a partir da ótica de Martín-Barbero (2004; 2013) em enfatizar as
vozes advindas das culturas minoritárias.
Outro limite apresentado pela pesquisa recai na dúvida que ainda
permanece sobre os motivos da vinda dos primeiros haitianos ao Brasil. Quando se
questionou sobre a principal influência que os motivou a migrar, os haitianos
193
responderam que ela veio de amigos ou familiares que já estavam aqui. Mas, e os
primeiros que aqui chegaram? Presume-se que a influência da mídia haitiana
exaltando o Brasil tenha sido um diferencial, mas a concretização dessa resposta só
poderá ser dada em outro momento, quem sabe em uma pesquisa de doutorado. E
talvez este seja o principal desafio que a pesquisa de mestrado imponha ao
pesquisador.
Por fim, vale reafirmar a importância do percorrer metodológico, que se
iniciou com uma extensa interpretação etnográfica, coletada por meio de observação
participante, para uma compreensão do que é ser migrante em Curitiba, o que
permitiu uma dimensão humana ao processo, que facilitou outra etapa da
metodologia: a realização das entrevistas. Todos os esforços aproximativos
compõem um eixo importante na pesquisa em humanidades: enxergar o ser humano
como sujeito cultural e não como objeto analítico, a fim de que não se repitam os
erros de parte da sociedade que os veem como mão de obra, apenas, retirando-lhes
toda uma dimensão cultural e afetiva.
194
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APÊNCIDES
203
ENTREVISTAS DO TIPO NÃO QUALIFICADA
ENTREVISTA (E1)
Idade: 33
Sexo: F
Estado Civil: Solteira
Instrução: Fundamental Completo
Religião: Batista
Profissão: Comerciante
Ocupação: Limpeza geral
Cidade que veio: Porto Príncipe
Quando e como chegou: De avião, para Panamá, São Paulo e Curitiba. Há 1 ano.
Otávio: Qual foi a sua principal fonte de informação para você vir pra cá, antes de vir
para Curitiba? Alguém te disse pra vir, como você ficou sabendo sobre Curitiba e
como que foi? Foi pela internet, televisão, algum amigo...?
Entrevistado (E1): Amigo.
Otávio: Que já estava aqui?
E1: Já.
Otávio: Que tipo de coisa ele falou para você que te convenceu a vir pra cá?
E1: Eu gastava dinheiro pra vir pra cá...
(Intervenção do primo tentando explicar)
E1: Amigo, amigo.
Otávio: Ela falou pra você que aqui era bom, é isso?
E1: Isso.
Otávio: Você conversa com pessoas sobre o que passa na mídia haitiana e
brasileira? Mídia: jornal, televisão, internet...
E1: Tudo. Haitiana, brasileira, tudo.
Otávio: Dá pra dar algum exemplo? Que tipo de coisa que vocês conversaram que
chamou a atenção de vocês?
(Intervenção do primo tentando explicar)
204
E1: Que a gente fala mais?
Otávio: Isso, que vocês falam mais.
E1: Eu escuto o presidente... tudo.
Otávio: O que chamou mais atenção de vocês na televisão, de assuntos?
(Intervenção do primo tentando explicar)
E1: Novela. Eu escuto muito.
Otávio: Qual o nome? Da Globo, Record...?
(Intervenção do primo tentando explicar)
Otávio: Você tem celular?
E1: Tenho.
Otávio: Você usa ele para que?
E1: Eu uso aqui.
Otávio: Mas para que? Para ligar, pra ver alguma coisa nele... tirar foto...
E1: Tirar foto.
Otávio: Você tira muitas fotos no celular?
E1: Sim.
Otávio: E liga para o Haiti?
E1: Sim. E depois vai para Curitiba, família visitar.
Otávio: Principalmente foto e ligação então?
E1: Foto.
Otávio: Foto principalmente. Ok.
Otávio: Você usa internet?
E1: Sim! Tenho internet no telefone.
Otávio: E você usa sempre?
E1: Sim, todo dia.
Otávio: E que sites que você entra mais?
E1: (Risos). Só no mês que eu trabalho e entra pagamento.
Otávio: Entendi. Mas quando você entra na internet, você acessa que site?
E1: Falo com amiga, amigos, escrevo.
Otávio: No Facebook?
E1: Tenho.
Otávio: E você usa bastante?
205
E1: Bastante.
Otávio: No Facebook vocês têm algum grupo de haitianos?
E1: Não tenho grupo, não. Não escrevo em grupos.
Otávio: Só com amigos pessoais?
E1: Só com amigos.
Otávio: Você já viu em Curitiba algum vídeo sobre os haitianos?
E1: Já vi, sobre haitianos, brasileiros...
Otávio: O que você achou do vídeo?
E1: Vídeo?
Otávio: Sim... vídeo, gravações sobre os haitianos aqui em Curitiba?
E1: Não vi...
Otávio: Tudo bem.
Otávio: Você escuta rádio?
E1: Não. Só televisão.
Otávio: Televisão é o principal então... e rádio?
E1: Não.
Otávio: Só televisão então. E quando vê televisão é mais novela?
E1: Sim.
Otávio: Normalmente a gente viu que nos cursos, eventos, lá da Casla, por
exemplo, os haitianos registravam o curso com celulares, ficavam filmando. Você
chegou a fazer isso alguma vez ou não?
E1: Sim.
Otávio: Quando você tira foto do curso, filmou, o que você fez com esse material?
Você tirava pra você mesma...?
E1: Não mando. Só tiro para mim, não mando.
Otávio: Nesses cursos, eventos, festas que temos, todos relacionados ao Haiti aqui
em Curitiba, você percebeu se mudou a maneira como os brasileiros tratavam
vocês?
E1: Não vi festa haitiana, não vi.
206
Otávio: Você acredita que essas organizações – Pastoral, Casla, etc – elas ajudam
para que vocês tenham uma imagem boa, positiva no Brasil?
E1: Só a Casla.
Otávio: É o único grupo que você tem contato? Ok. Mas você acha que esse
trabalho na Casla ele ajuda com que os brasileiros tenham uma visão positiva de
vocês?
E1: Não.
Otávio: Qual a principal dificuldade que vocês têm aqui no Brasil, de comunicação?
E1: Não tem... o trabalho é difícil...
(intervenção do primo)
Otávio: A questão do idioma, da língua, é um ponto difícil?
E1: A língua? É difícil, difícil.
Otávio: Qual é a melhor maneira de você manifestar, mostrar, (compreende?), o
“ser haitiano” – a identidade haitiana – aqui no Brasil?
E1: ...
Otávio: Melhor maneira... de como você pode mostrar: “isso aqui é o Haiti”,
entendeu? Como é a melhor maneira do brasileiro enxergar isso?
E1: Pela pele.
Otávio: Mas não só fisicamente. Quais atitudes identificam vocês? Action?
E1: Haitiano ou brasileiro?
Otávio: Haitiano.
E1: Não sei.
Primo: Haitiano trabalha muito. Mais do que brasileiro e temos força.
Otávio: Essa é uma característica então. O haitiano trabalha muito. E isso é bom?
Primo: É bom.
Otávio: E mais alguma coisa?
E1: Trabalho... trabalho duro. Dinheiro é pequeno!
Primo: Agora o dinheiro está muito caro para mandar ao Haiti.
Otávio: Vocês mandam dinheiro ao Haiti?
Primo: Sim, nós temos família no Haiti.
E1: É difícil dinheiro aqui.
Otávio: E dá conta de mandar dinheiro e sobrar pra vocês?
207
Primo: Não.
E1: É difícil, é difícil...
Otávio: Só uma última pergunta. Hoje o mundo está muito interconectado. Vocês
conseguem conversar com alguém lá no Haiti, eu ligo pra você da minha casa,
combino de vir aqui. A gente consegue ter uma conexão mais intensa, plus fort.
Você acha que isso é pior ou melhor hoje?
E1: É melhor.
Otávio: Por quê?
E1: Haiti já quebrou, não tem trabalho.
Otávio: E essa conexão ajudou você? Sim ou não?
E1: Ajudou? Sim.
208
ENTREVISTA (E2)
Idade: 33
Sexo: M
Estado Civil: Solteiro (tem um filho)
Instrução: Ensino Médio completo e técnico em radialismo e contabilidade.
Religião: Protestante
Profissão: Radialista (já trabalhou)
Ocupação: Fiscal de loja (segurança)
Cidade que veio: Gonaives
Quando e como chegou: há 4 anos
Otávio: Qual foi a principal fonte de informação sua que fez você vir ao Brasil, até
Curitiba?
Entrevistado 2 (E2): Na verdade, essa é uma pergunta que eu vou responder como:
eu gosto de história, geografia, política. Eu sou uma pessoa que gosta muito, muito,
de política, por isso eu estou me interessando muito pelo radialismo, jornalismo, da
comunicação. Porque eu gosto da coisa política, futebol... Eu sempre tenho
informação sobre a política internacional, algumas coisas. Mas mesmo assim, antes
de 2000, não estava interessando em vir morar ou visitar o Brasil, porque todo
mundo sabe que o Brasil não fazia parte dos 20 países mais ricos antes de 2000,
estava começando. A Argentina estava mais desenvolvida, mas depois do governo
do PT, depois do presidente Henrique Cardoso, Lula, Dilma, o Brasil começa a
crescer muito no nível internacional, o mundo inteiro começa a sentir que o Brasil
está crescendo, mas tudo isso não tem o Brasil na minha cabeça pra ver. Porque,
sabe, a maioria dos haitianos sempre sonharam em ir para um país, se não para
França ou Canadá, é os Estados Unidos. Eu estava pensando nisso, mas depois do
Haiti ter sido atingido pelo terremoto eu, com um primo que estava já aqui, ele
conversava comigo – ele estuda Engenheiro Industrial. Ele foi estudar na República
Dominicana e depois ele veio pra cá pra ver se conseguia um emprego melhor, ou
pra fazer mais experiência no trabalho dele. Ele chegou aqui no Brasil e depois
perguntou a mim se eu queria vir também... porque pode tentar, porque ele sabe que
tudo que aconteceu demora pra gente se recuperar e construir um futuro melhor
209
depois que fomos atingidos pelo terremoto. Meus pais não queriam pra mim viajar
tão longe assim, mas meu primo conversou com eles e consegui o aceite. Eu saí de
lá e vim pra cá. Eu cheguei por Manaus. Na hora que cheguei... o salário de Manaus
não é muito bom pra gastar e pra receber é bem pouco e é por isso que não
consegui me estabelecer lá. Depois eu fiquei em uma empresa, mas a empresa não
conseguiu ficar com a gente muito tempo e eu saí da empresa e fiquei mais ou
menos dois meses desempregado e eu consegui a empresa Atlas, em Pato Branco,
que contratou a gente. Eu fui pra Atlas, em Pato Branco, depois eu demorei cinco
meses morando lá. Em Pato Branco, a Atlas não paga muito bem pra gente pagar
despesa de casa, aluguel... complicado pra gente. Aí eu saí de lá. Eu tenho uma
amiga minha que mora em Curitiba... “Ah, E2*, vem aqui, seria melhor se vem pra
Curitiba...”. Naquela época, em 2012, não estava tão difícil empregar a gente, pra
gente conseguir uma empresa para trabalhar. Eu consegui vir e começo a me
envolver na cidade, mas demora um tempo agora para eu me estabelecer aqui em
Curitiba e é dessa forma que eu consegui morar aqui.
Otávio: O que te convenceu mais a vir para vir ao Brasil foi mais essa questão
política que você sabia que o Brasil estava bem ou foram pessoas que estavam
aqui... Quem te convenceu?
E2: Um motivo mesmo, depois de ter tido o terremoto no meu país... todo mundo
sabe que vai demorar... todo mundo sabe como é nosso governo, sempre falam, que
faz pouco, por isso, meu conselho, eu falei, é tentar se talvez hoje você aqui ou
amanhã não sei aonde... se você tem capacidade, vem aqui, tenta, e vamos juntos e
tenta pra ver como conseguimos crescer não só aqui no Brasil, mas onde a gente
tenha vontade... sorte. Só tentar. Eu vim, e mesmo a gente não conseguindo muita
coisa, mas tá crescendo um pouco, pra ver como a gente consegue, porque não é o
Brasil que vai me ajudar a crescer, eu que tenho que fazer meu passo. Eu estou
fazendo, mas espero que as coisas agora melhorem porque as coisas agora no
Brasil estão difíceis, mesmo para os brasileiros.
Otávio: Eu vou insistir um pouquinho nessa pergunta da informação. Quando viu as
informações do Brasil, por onde você via essas informações? Internet...
E2: Internet, rádio, jornal. Porque eu gosto de ler, assistir o jornal, todas as redes
sociais... eu sempre me informo. Por exemplo, o que está acontecendo aqui, nos
países francófonos, nos países europeus ou em vários lugares... eu sempre procuro
a informação.
210
Otávio: E em relação à mídia, você conversa com parentes, amigos, sobre o que
está passando na mídia aqui no Brasil ou no Haiti? Vocês conversam sobre o que
aparece na mídia?
E2: Agora eu sempre falo que aqui no Haiti... como tem eles que me perguntam,
porque eles sabem que eu gosto muito de informação, essas coisas assim, eu
sempre falo a verdade. Porque me perguntam também porque eu ainda tenho um
relacionamento com meu ex-colega que eu trabalhei lá no Haiti, no rádio, sempre
fica uma conexão da informação. Ainda tenho informação de como funciona lá... das
novidades, o que tem, o que não tem... a gente sempre fica na informação. Eu
também dou um jeito pra eles...
Otávio: Então o conteúdo da mídia é pauta da conversa de vocês também?
E2: É.
Otávio: Como foi a nossa agora quando você comentou da notícia quando a gente
chegou.
E2: É.
Otávio: Você tem celular? Qual o principal uso que você faz dele?
E2: Eu uso muito o Facebook e o Whatsapp e fazer ligação.
Otávio: E esses usos são feitos com amigos, família... tem alguém específico?
E2: É. Mais minha família, minha mãe. Eu tenho uma filha lá e tenho que ter
informação de como ele está...
Otávio: Ah, você tem uma filha! E principalmente é contato com o Haiti...
E2: No Haiti e aqui no Brasil, porque eu sou envolvido com a música e tem meus
colegas da banda ali que eu canto e eu preciso ter sempre informação com eles, e
também com o pessoal do trabalho. Eu tento me envolver com todo o mundo, tenho
sempre que conversar com todo mundo.
Otávio: Bom, você usa internet, e qual a frequência do uso da internet?
E2: Quase todo dia.
Otávio: E qual o principal objetivo de utilizá-la?
E2: Para procurar mais informações sobre a realidade de hoje e como seria amanhã.
Como foi no passado, o que aconteceu na semana. Por exemplo, tem uma mudança
climática que está fazendo mais sucesso no mundo agora, porque ontem teve lá
211
uma reunião de vários países que fazem parte da ONU sobre mudança climática
porque têm vários países, por exemplo, a Índia, a China agora, se você percebeu
têm várias mudanças acontecendo climáticas. E aqui no Brasil também. Na região
do Norte quase não chove e no Sul quase todos os dias está chovendo e isso causa
muito perda, gastos do governo, do povo e vários animais que estão morrendo de
fome lá no Norte e vários que estão morrendo aqui de água... E isso nós precisamos
nos informar de como envolver o mundo. E como também agora sobre a religião
islâmica... tudo que faz sucesso no mundo agora. Vários países ficam com medo,
países europeus ficam cuidando... todo mundo agora tem mais medo do outro. E
informação no também Brasil está subindo e a quantidade de povo que está
desempregado. O estado do Paraná agora passou a frente do estado de Santa
Catarina. Mais de 6% ainda no Paraná do pessoal está desempregado e lá em
Santa Catarina está 4% que está desempregado, e tudo isso a gente precisa se
informar pra saber como se relaciona com o povo. O social, o plano social, o lado
social, o lado político, o lado religioso... tudo, eu gosto de saber um pouco de tudo.
Otávio: E pra você se informar quais são os principais sites que você acessa?
E2: Às vezes na Globo News, mas também na CNN. Eu procuro no rádio, aqui, lá no
Haiti também. Eu sempre assisto jornal, das coisas que acontecem no Haiti. Na RFI
também, da França, rádio francês. Eu sempre escuto essas informações. Também
Globo, Record, televisão, Rádio Massa, que aqui passa música, mas dá também
informação. Pra mim informação nunca acaba. Eu sempre procuro.
Otávio: Eu queria saber de você, se você participa de algum de haitianos nas redes
sociais? Ou só de imigrantes?
E2: Na verdade é só o grupo da nossa banda. Da banda Melody. No Whatsapp. A
gente conversa, mas eu não estou conversando muito no grupo. É um jeito, porque
talvez não tenha uma coisa, assim, pra falar... eu gosto de ficar mais quieto, mas se
preciso de alguma pessoa na rua eu mando uma mensagem ou ligo pra pessoa,
mas na maioria das vezes eu não converso tanto.
Otávio: Mas o grupo é mais da banda mesmo? É só haitiano?
E2: Isso! É só haitiano.
212
Otávio: Eu queria saber se você assistiu algum vídeo/documentário sobre os
haitianos aqui no Brasil?
E2: Várias vezes.
Otávio: E o que você achou?
E2: Por exemplo, o que você está fazendo agora comigo, mas eu vejo várias vezes
o jornalista, pessoal que vai fazer vídeos, pesquisas sobre sempre coisas negativas,
das dificuldades, mas precisam saber também da nossa capacidade como povo. Eu
não sei se é ignorância, não sei se eles não sabem que temos capacidade de
conhecimento, capacidade de chegar muito mais longe do que estamos até agora,
mas eles só procuram coisas negativas, não achei ainda pessoas que procurem
coisas positivas de nós. É isso que eu acho.
Otávio: Normalmente os haitianos têm registrado nos celulares os eventos. Tinham
os celulares nas mãos e filmavam. Eu queria saber se você já fez isso e como
depois vocês utilizam esse conteúdo?
E2: Eu não faço, nunca filmei.
Otávio: E dos outros que filmaram, você sabe?
E2: Eu não sei dos outros. Até o último dia, você não estava aí, o último dia que o
pessoal foi entregar o certificado pra gente, eu tava cantando uma música e a
pessoa disse que gostava da música e pediu pra combinar comigo e com a Maria*
pra ver se conseguia fazer um showzinho pra eles. E eu até estou esperando as
pessoas da Casla. Se eles quiserem nó fazemos um showzinho pra Casla. Eu ainda
não conversei sobre isso com a Maria*, mas eu penso que a Casla faz muita, muita,
muita coisa pra nós, estão apoiando a gente e não precisa ser dinheiro pra isso. A
Casla é uma casa que não é preparada pra fazer eventos assim, mas não tem
problema. Eu, a Maria*, a banda, tudo, no final do ano, no ano que vem, eles que
sabem. Pra nós apresentamos um showzinho... deve ser de graça, eles que sabem.
Não tem nenhum problema pra organizar um show. Canto sertanejo, canto música
daqui, nós não tocamos muito rock, não, porque eu sei que muitos de vocês gostam
de rock...
Otávio: Mas o povo gosta de sertanejo aqui também! (Risos). Mas a pergunta é em
relação a se você recebeu algum vídeo desses cursos da Casla, por exemplo? Você
sabe o que eles fazem com esses vídeos e fotos ou não?
E2: Eu não recebo, mas eles gravam pra guardar como lembrança.
213
Otávio: Ok, está certo. Desses eventos, cursos, festas haitianas, enfim, qualquer
evento em Curitiba que você participou que era sobre, com, para os imigrantes...
Após estes eventos, você percebeu que a maneira dos brasileiros olharem os
haitianos mudou ou você acha que não?
E2: Viu, tem a Emília*, que uma moça que está muito envolvida nesse sentido de
ajuda aos haitianos, porque a Emília* é a primeira haitiana que morou aqui em
Curitiba... ela faz muito, apresenta nós pra dar apoio. Porque, às vezes, o pessoal
pensa que o haitiano passa fome, está sem roupa, sem comida, não! A Emília*
mostra também pra eles que os haitianos têm capacidade de se envolver na música,
na cultura, no teatro... tudo, no futebol, em tudo. Nós também capacidade de fazer
de tudo, porque o Brasil ainda não conhece a nós, mas mais pra frente, eu sempre
falo, depois de 10, 20 anos, vocês vão saber que é o haitiano, porque o que nós
passamos aqui, o que a gente não conhece aqui, os americanos vão ser a mesma
coisa, porque eles sabem da gente já. O canadense, a França, conhecem a gente já
porque a gente faz sucesso já. Tem um haitiano que foi cantar no final da Copa do
Mundo e ninguém sabe se é haitiano ou americano. O nome dele é Wyclef Jean e
estava cantando junto com o Alexandre Pires e com Carlos Santana. Wyclef Jean é
haitiano, nasceu no Haiti, mas vive nos Estados Unidos, mas ninguém pensa que ele
é haitiano porque ele canta música com Alexandre Pires. E tem outro haitiano que
canta com Cláudia Leite, ele é haitiano e canta com Cláudia Leite. Haitiano também
é muito famoso na música. Tem haitiano que é grande cantor na França, no Canadá
e nós precisamos também. Por isso que eu gosto de cantar, por isso que eu quero
oferecer tudo, mas o povo não vai mudar de um dia. Só uma coisa que eu fizer hoje,
um ano, três anos, não vai mudar um povo de 200, quase 300 milhões de pessoas
que o Brasil tem. Não vai mudar o pensamento, pois vocês nos conhecem muito
recentemente. Faz mais ou menos quatro anos que o povo do Brasil começa a fazer
conhecimento do povo do Haiti, mas demora, certo. No dia a dia vocês conhecerão,
o povo vai saber quem é nós e nossa capacidade que nós temos: um povo também
bem intelectual, um povo também bem educado. Tem povo ruim, mas também tem
pessoa boa...
Otávio: E pra você é suficiente isso que tem sido feito?
E2: Não, não é suficiente, tem que continuar ainda. Tem que continuar ainda.
214
Otávio: Depende do tempo, vai um tempo ainda?
E2: É, vai, demora. É por isso que eu falei pra você que não vai ser em quatro anos
que estamos aqui que vai mudar tudo. Demora. Talvez vá chegar 20 anos, talvez vá
chegar 10 anos, mas também vai ser os filhos dos haitianos que vão fazer a
mudança, mas tudo isso faz parte. Eu espero que vocês, os brasileiros, vão ter um
dia uma lembrança de nós, do povo que está. Nós somos imigrantes na verdade,
porque todos os brasileiros têm descendência de africano, europeu, asiático e nós
também, os haitianos têm descendência de africano e europeu porque nós fomos
colonizados pela França e o Brasil foi colonizado por Portugal. Nós temos
descendência da França, de sírios. Tem tudo, o haitiano tem de tudo.
Otávio: E assim, pra construir uma imagem positiva do haitiano no Brasil uma
identidade efetivamente, você acha que essas organizações de apoio têm um papel
importante?
E2: Isso mesmo. Elas têm um papel importante, porque se não existisse essas
organizações, como a Emília* está envolvida na Casla e em várias outras, se não
existe essas organizações ninguém vai conhecer que existe imigrante haitiano no
Brasil. Graças a vocês, ao apoio, cada vez que acontece. Por exemplo, no mês de
outubro foi morto um haitiano, depois outro haitiano foi xingado... “vagabundo,
bandido, mata ele!”. Mas quem falou, gritou? Foram as organizações, que dão apoio,
que acompanham o povo haitiano aqui pra ver se para com a xenofobia, para com o
racismo. Tudo isso ajuda, esse papel é muito importante pra nós.
Otávio: Mudando um pouco o foco da pergunta. Você tem alguma dificuldade de
comunicação no Brasil?
E2: A dificuldade que não vai jamais parar, eu sempre digo pra gente, eu... tá certo
que eu posso fazer um curso de português, como eu aprendo a falar português. Da
conversação com a gente. Eu leio muito, por exemplo, jornal, papel, tudo. Eu assisto
televisão muito. Eu ouço música. Tudo isso ajuda e graças a isso eu consigo falar e
falta muito ainda, mas todos os dias a gente está aprendendo. É por isso que eu
consigo falar, se eu falo você consegue entender. Talvez tenha coisa que não está
certo, mas você entende, mas também eu jamais vou falar do jeito de vocês porque
não sou daqui. Mesmo se eu levo vocês lá você jamais vai falar como eu falo no
215
meu idioma, mas espero que no dia a dia eu consiga, para eu superar as barreiras
na minha frente e conseguir crescer muito mais.
Otávio: Outra pergunta que também está relacionada a ideia de identidade. Qual a
melhor ocasião para você manifestar o “ser haitiano” aqui?
E2: Eu tenho dois lugares que eu falei. Eu gosto de me envolver na música, eu
espero na música minha identidade quando eu canto, porque é um lugar que
apareceu gente e eu tenho um gosto e um conhecimento pelo radialismo. Eu penso
nesses dois lugares porque me ajudam muito para aparecer. Porque uma força
muito forte no mundo são os meios, é um dos poderes do mundo. Têm três poderes,
cada país tem três poderes, mas o último poder que há no mundo inteiro é a
imprensa. A imprensa é um poder muito forte porque quando alguém fala na
imprensa chega muito longe, chega até debaixo d’água. Eu espero que com isso, a
imprensa e a música vão me ajudar a crescer muito mais que eu espero.
Otávio: E em relação à música, à imprensa, mas, sobretudo à música que é uma
ocupação que você tem aqui, você faz registros para divulgar... você falou que vocês
têm um vídeo, né?
E2: Na verdade nós temos uma coisinha no Youtube, tem pouquinho, tem algum
showzinho que a gente faz e nós gravamos, entendeu, essas coisas. Mas a gente
ainda está batendo, procurando, porque pra fazer música aqui a gente precisa ter
um empresário e a gente ainda não tem um empresário. Estamos procurando, mas
ainda não conseguimos. Sabe, não vai ser fácil. Eu tenho um cantor... essa duplas
que eu gosto, que eu sempre falo deles... essa dupla, o Zezé di Camargo e Luciano,
eu conheço a história deles, como conseguiram surgir pra chegar um dia no lugar
que estão hoje, mas no passado, anos 80, mais ou menos, eles passaram por coisas
bem difíceis e hoje é a dupla mais famosa no Brasil. Eu espero também chegar a
este ponto, mas não vai ser hoje ou amanhã, mas a gente vai continuar tentando,
continuar cantando e Deus vai tocar o coração de alguém pra ajudar e pegar a mão
de nós pra poder crescer e poder subir aí em cima.
Otávio: O canal de vocês no Youtube tem bastante visualização?
E2: Tem. Às vezes chega a mais de 500 pessoas que ouvem, mas até ano passado
quando eu gravava alguma coisinha com a Maria* tinha mais de 300 pessoas
ouvindo e já cantando, mas só de brincadeira várias pessoas já ficaram loucas pra
assistir vídeo. Mas vídeo só lá no Facebook, não no Youtube. Só no Facebook dá
216
quase 500 pessoas olhando. Por isso que eu falei queria, mas eu não lembro o
nome dela que pretende fazer uma entrevista com nós e um showzinho na Casla pra
levar o pessoal da Globo... gravar uma coisinha. Depois do dia 22 (de dezembro de
2015) eu vou ter mais tempo e eu vou combinar certinho com ela pra ver como vai
conseguir fazer. A gente ensaia e vamos ver se lá cantamos uma música em
francês, deixa com a gente. Aqui o pessoal não houve muita música em francês, né.
É mais inglês, português - muito inglês - mas eu vou encaixar também a música
francesa na cabeça de vocês. Mesmo sendo difícil pra vocês cantar, mas vão
aprender, né.
Otávio: A última pergunta: O mundo hoje é muito interconectado. Você acha que
esse mundo contribui ou piora o aprendizado das pessoas em relação ao mundo, a
percepção delas ao mundo?
E2: É, todas as coisas têm partes negativas e partes positivas. Até eu tomar um
remédio, se você está com dor, bebeu e toma um remédio, tem o lado positivo do
remédio e tem consequências também. O mundo agora, que é quase 100%
tecnológico, contribui também, como eu falei pra você as mudanças climáticas. O
que causa a mudança climática são as mudanças tecnológicas porque as pessoas
procuram muita coisa na natureza, né, destroem a natureza para construir
tecnologias. Tudo há uma consequência. Também a tecnologia ajuda as pessoas a
se aproximarem. Mesmo eu longe, eu consigo ter uma boa relação com a pessoa
que está longe de mim como se a gente morasse junto e isso ajuda a gente a ter
informação sobre o mundo. Como vai ser amanhã... porque tem um problema... se
vai chover amanhã todo mundo já vai saber, já sabemos que amanhã vai ter chuva.
É tecnológico, porque tem uma pessoa que cuida da natureza e sabe tudo. Eu gosto
e acho que o mundo tem que continuar tecnológico para ajudar o humano estar mais
informado de tudo, mas também podem esperar consequências porque tudo tem
consequências. Não vai ser só coisa boa, mas vai ter coisa ruim também que vai
chegar, mas tem que superar quando chegar coisas ruins.
217
ENTREVISTA (E3)
Idade: 31
Sexo: M
Estado Civil: Casado
Instrução: Superior completo (2 formações)
Religião: Protestante
Profissão: Jornalista
Ocupação: Triagem dos Correios
Cidade que veio: Petit-Goave
Quando e como chegou: 2 anos e meio (Avião: Porto Príncipe – Panamá – São
Paulo).
Otávio: Eu queria saber qual foi a sua principal fonte de informação pra você vir até
Curitiba, se foi por algum meio de comunicação, por amigos que estavam aqui,
porque você veio pra cá e qual foi sua principal fonte pra chegar aqui?
Entrevistado 3 (E3): No meu caso foi uma indicação porque eu estava trabalhando
lá no Haiti como administrador de um hotel e tinha várias coisas que eu estava
fazendo, eu tinha um amigo aqui no Brasil, Curitiba, que me convidou: “Ô, E3*, vai
ter Copa do Mundo, você fala vários idiomas, você manja em computador, você
pode vir, daí você vai ter sorte pra trabalhar aqui”. Daí larguei tudo para vir aqui. Fui
lá na embaixada consegui um visto, até que eu cheguei no Brasil, mas o que eu
achava que era totalmente diferente, porque eu pensava que quando eu chegasse
aqui no Brasil ia trabalhar e a vida ia se tornar bem fácil pra mim, mas eu passei
algumas dificuldades.
Otávio: Quantos idiomas você fala?
E3: Agora eu falo cinco.
Otávio: Quais são?
E3: Eu falo crioulo que é um dialeto de lá do Haiti, francês que é nativo, inglês,
espanhol e agora português.
Otávio: E agora português, é verdade... bastante, né?
E3: É.
218
Otávio: Então os seus principais argumentos que fizeram você vir foi essa
possibilidade que você tinha de conseguir coisas melhores de emprego?
E3: É.
Otávio: Entendi. Em relação às coisas que vocês veem na televisão, na internet,
sejam as coisas do Brasil ou do Haiti, ou seja, na mídia lá do Haiti com seus amigos
que estão lá, por exemplo, vocês conversam, isso é pauta da conversa de vocês, por
exemplo, ou a pauta da conversa de vocês é algo mais pessoal?
E3: É, algo mais pessoal.
Otávio: Tá. Você tem celular?
E3: Sim.
Otávio: Qual o principal uso que você faz do celular?
E3: Facebook, Whatsapp e Instagram.
Otávio: Ah, tá. Eu procurei você no Facebook e não achei.
E3: É um nome bem grande.
Otávio: Depois você me passa para eu te adicionar. Você tem Instagram também?
E3: Também.
Otávio: Pra que você usa mais... as fotos?
E3: Ah, sim, pra postar as fotos, todas aí, as notícias, tudo...
Otávio: Mais fotos pessoais?
E3: Sim.
Otávio: Da tua família?
E3: Sim.
Otávio: Beleza. Você usa internet no celular, tem computador?
E3: É, tenho computador, tenho internet na minha casa, tenho cabo e tenho celular.
Otávio: Você usa com qual frequência a internet?
E3: Como estou fazendo um estudo a distância, daí eu uso bastante, especialmente
de noite.
Otávio: As Relações Internacionais, sua graduação, são à distância, na Uninter?
E3: Isso.
Otávio: Tá bom. Então, o seu principal motivo de acesso é pra estudo. E o que
mais?
E3: Pra estudo e pra conversar com minha família à noite.
219
Otávio: Ah, tá. Quem está lá à noite?
E3: Meu pai, minha mãe e meus irmãos.
Otávio: Tem algum parente aqui?
E3: Não, só eu e minha esposa.
Otávio: Entendi. Uma pergunta sobre o Facebook ou das redes sociais. Você
participa de algum grupo fechado, que é, por exemplo, só de haitianos?
E3: Sim, eu tenho bastante.
Otávio: Quais são?
E3: “Haitianos no Brasil”, um grupo chamado “Haitianos no Brasil”.
Otávio: Ah, você está nesse grupo. Esse grupo eu acabei entrando também e eu vi
que tem bastante brasileiro lá.
E3: Tem. Quem está administrando é uma brasileira, mas ela coloca bastante
haitiano.
Otávio: Esses brasileiros que estão nesses grupos, eles ajudam ou atrapalham?
E3: Às vezes têm alguns que atrapalham e têm alguns que ajudam, mas a maioria
ajuda.
Otávio: Então, pra você é positivo ter brasileiro nesse grupo?
E3: Sim.
Otávio: E tem algum grupo que é só de haitianos?
E3: Na verdade não, sempre mistura.
Otávio: Tem algum grupo de Curitiba, que é de haitianos de Curitiba, mesmo tendo
brasileiros, mas é só de Curitiba?
E3: Não. Porque a minha banda tem brasileiro, só meu futebol, meu time é que não
tem brasileiro.
Otávio: Então você tem grupo da banda e do futebol também?
E3: Sim.
Otávio: Você, em relação à internet ainda, quais principais sites e mídias sociais que
você acessa?
E3: Na verdade eu gosto mais de fazer pesquisa, daí eu uso o Google.
Otávio: Mas é pesquisa acadêmica, coisas da faculdade?
E3: Sim, faculdade e acadêmica.
Otávio: Só por curiosidade. Qual seu interesse nas relações internacionais?
220
E3: Na verdade tem pessoa que só fica no Whats o dia inteiro, no Face o dia inteiro,
daí passa o dia sem fazer nada. Para mim é diferente porque eu gosto de mais
coisas, eu gosto de aprender, entendeu? Até que se eu estou conversando com uma
pessoa eu tenho que aprender com você, daí não é pra ficar batendo papo de graça,
eu gosto de aprender. Cada dia para mim eu tenho que aprender uma coisa nova. É
isso que me incentiva a aprender o português, porque falam assim: “É obstáculo,
você não fala português”. Daí, quando você chega a algum lugar você fica meio
perdido, comecei a aprender o português sozinho, nem fiz curso, aprendi sozinho,
até que cheguei nesse nível, entendeu? Mas quando eu fico lá na internet, só
pesquisa, coisas acadêmicas ou conversa com minha família lá pra saber minhas
notícias.
Otávio: Entendi. Pra seu aprendizado do português a internet ou outro meio de
comunicação te ajudou?
E3: Não, só a TV.
Otávio: A TV ajudou?
E3: Sim, porque eu tinha que largar a internet porque às vezes, como eu estava
dizendo, você fica batendo papo com algumas pessoas, coisas que não valem nada,
entendeu? Daí quando queria aprender o português escolhia um programa lá na TV
e uma novela e começava a aprender, aprender, aprender...
Otávio: E o que você assiste mais na TV?
E3: Eu assisto “Cidade Alerta”, que eu gosto.
Otávio: Ah, “Cidade Alerta”. É o da Record, da Band?
E3: Da Record.
Otávio: Tem algum outro programa que você costuma assistir também?
E3: É, na verdade tem também a que acabou “Dez Mandamentos” que eu gostava
muito, tinha bastante novela antigamente que eu gostava.
Otávio: Rádio, você escuta?
E3: A rádio que eu gosto mais, porque parecia engraçada é a “Jovem Pan”, porque
tem uma mistura do rap, essas coisas. Os caras falam muito bem também, eu gosto.
Eu não quero perder meu inglês.
Otávio: Ah, tá. Você escuta músicas em outros idiomas... inglês também, entendi.
Mas a rádio é mais pra escutar música?
E3: É, na Jovem Pan.
221
Otávio: Acho que você já percebeu também nos eventos, na Festa Latina, na Festa
Haitiana... Normalmente os haitianos eles registram, praticamente toda hora, no
celular. Se está tendo um show lá o pessoal está filmando, tirando foto. Eu queria
saber que uso vocês fazem disso, dessas imagens. Em primeiro lugar, se você faz
também isso, mas se você sabe que uso os haitianos fazem normalmente, se vocês
compartilham essas imagens, essas fotos, o que vocês fazem?
E3: Na verdade eles tiram as fotos daí eles compartilham com a família. “Olha onde
eu estava”, “eu estava com meus colegas”, essas coisas. Mas no meu caso, eu não
mando todas as fotos, têm algumas que eu trato primeiro daí eu mando pra família.
Otávio: Uma pergunta agora, já entrando um pouco numa outra questão que é da
identidade, da imagem dos haitianos. Se você percebeu que alguns dos eventos que
você já participou, pode ser da Pastoral ou de repente outro realizado pra essas
organizações, se esses eventos, na sua opinião, mudaram a forma dos brasileiros
perceberem os haitianos?
E3: Sim, muito, porque a nossa ideia é vender a nossa cultura, porque às vezes fico
triste, porque têm alguns brasileiros que ficam perguntando se lá no Haiti tem
hospital, tem internet. Daí quando você faz esse tipo de trabalho – festa para ver
haitiano tocando música, tocando instrumento, tem haitiano que mais ou menos fala
português, mestre de cerimonial, essas coisas – ajuda os brasileiros descobrirem a
nossa cultura para ver. “Ah não, eles têm uma cultura bem ampla”. Porque hoje em
dia têm vários brasileiros que estão perguntando: “Lá no Haiti tem feijão, tem Coca-
Cola, tem hospital?” Para mim é um absurdo, só entrar lá no Face, no Google, fazer
uma pesquisa e você vai saber. Igual que eu fiz quando pretendia vir aqui. Fui lá ao
Google, fiz uma pesquisa do Brasil, nem sabia que o Brasil tinha esse tamanho
grande. Por isso que cada vez que acontece esse evento ajuda os brasileiros a
descobrir os haitianos. Melhor do que ficar escondido, sem saber nada.
Otávio: E você acha que só esses eventos que a gente tem feito, essas atividades,
são suficientes?
E3: Não, não são suficientes. Por isso que lá no Face tem uma campanha falando
sobre os haitianos que estão chegando, tem haitiano que é engenheiro aqui que não
consegue trabalhar, agrônomo, professor de letra, professor de idioma e têm vários
haitianos, mas a gente está fazendo uma campanha. Por isso que quando eu achei
as meninas da PUC para trabalhar sobre o livro eu me sentia muito bem, porque eu
222
sozinho não podia fazer esse tipo de trabalho, até onde que ia chegar minha voz?
Com elas, eu consegui mais ou menos sair no jornal Gazeta do Povo, contando a
minha história e um monte de coisa e elas foram lá comigo na banda tirar algumas
fotos, entrevistaram cada um dos músicos, elas vieram aqui no bairro assistiram
partida do jogo até que caí na RPC. Eles vieram aqui na minha casa, o Felix*,
gravando uma matéria, acho que semana que vem vou ter que ir lá na RPC para dar
um show ao vivo, essas coisas. Mas é uma campanha mesmo pra ajudar os
brasileiros saberem que os haitianos não só deixaram um país pobre para vir aqui só
para trabalhar. Alguns de nós têm bastante coisa para fazer.
Otávio: É sobre o que esse livro que elas estão fazendo?
E3: Vida dos migrantes.
Otávio: Só haitianos ou em geral?
E3: Não, só haitianos.
Otávio: Vidas dos migrantes haitianos aqui em Curitiba?
E3: É, vida dos migrantes, daí eu sou personagem oficial do livro. Eu tenho o livro
aqui.
Otávio: Deixa eu ver... Nossa que legal!
E3: É um TCC
Otávio: Ah, um TCC de alunas?
E3: Isso.
Otávio: Trabalho de conclusão de curso de jornalismo da PUC 2015. “Manifestações
culturais, jornalismo e estudo sobre a imigração haitiana em Curitiba”. Puxa que
bacana! Ah, e você é o primeiro?
E3: Isso.
Otávio: Já começou com você?
E3: Tá na capa também, né.
Otávio: “E3 é quase um presidente”. Por quê?
E3: Porque eu conheço vários haitianos, até fui pra São Paulo. Fui delegado aqui na
cidade para representar os haitianos na primeira Conferência Nacional sobre
Imigração e Refúgio, daí bastantes pessoas me conhecem, ajuda bastante.
Otávio: E essa é tua esposa?
E3: Isso.
Otávio: Legal. E como é que essas meninas chegaram até você, como é que elas te
descobriram?
223
E3: Lá da Pastoral do Migrante, no dia 17 de maio.
Otávio: Elas foram até a Pastoral?
E3: Isso.
Otávio: Entendi. E aí você estava lá?
E3: Eu estava animando a Festa da Bandeira, dia 17, daí elas descobriram: “Nossa
esse cara fala bem português, vamos fazer uma matéria com ele, vamos pegar ele
pra nos ajudar”. Assim, e começamos a trabalhar. Ficamos bons amigos e também
porque elas estavam comigo no momento do parto da minha esposa, sempre ali na
minha casa tirando foto...
Otávio: Ah, elas foram até no parto da sua esposa?
E3: Sim.
Otávio: Nossa, que interessante! E depois que você apareceu na televisão mudou
alguma coisa pra você, alguém foi atrás de você, te procurou, te reconheceu?
E3: Primeira coisa com essas meninas e estava caindo a notícia porque tem uma
página lá no Face: “Vida de Migrante”, também tem no Instagram “Vida de Migrante”
e parece que as pessoas da RPC estavam observando. Daí entrou em contato
comigo, vem até aqui na minha casa, aí filmamos uma parte do jogo – foi organizado
um jogo aquele dia – e depois eles foram comigo lá na banda – filmei também uma
parte do ensaio dos meninos – daí a gente fica aguardando para entrar no estúdio
pra fazer um show ao vivo, contando a minha história mas eles estavam esperando
sair o livro para não atrapalhar o trabalho das meninas. Como já saiu o livro agora,
estão lançando a impressão para distribuir e agora acho que logo, logo a RPC vai
ligar para ir lá.
Otávio: A sua banda toca que tipo de música?
E3: Kompa.
Otávio: Aquela típica do Haiti, né?
E3: Isso.
Otávio: O que você toca?
E3: Eu não toco, eu sou o vice-presidente da banda.
Otávio: Ah, você é o vice-presidente, que legal. Eu quero ouvir sua resposta em
relação a isso, você acha que as organizações de apoio elas ajudam, elas
contribuem, para que o imigrante tenha uma imagem, uma identidade positiva aqui
no Brasil?
224
E3: Algumas delas porque têm algumas organizações aqui no Brasil que só
aproveitam dos haitianos, tipo: “Ah, eu vou ajudar dez haitianos, vou pedir dinheiro
no nome deles”. Daí pega o dinheiro e passa coisas ruins. Por exemplo, às vezes eu
fico triste vendo brasileiro passando coisas, não é usado, é coisas que não vale
nada para os haitianos. Daí eu falo: “Nossa, será porque eles sabem que a gente
vem de país pobre que estão fazendo isso?” “Ah, eu não vou querer essa camiseta”,
“era pra jogar no lixo mesmo”, “ah, eu conheço algum haitiano, deixa passar pra ele”.
Mas têm algumas dessas organizações também que ajuda bastante. Eu não posso
dizer que foi uma organização, mas quando cheguei ao Brasil a minha igreja me
ajudava bastante, os Mormons. Que eu fui à missão, sempre uma missão. Nasci
dentro da igreja, meus pais são membros da igreja desde 82, daí eu sou bem
conhecido da igreja.
Otávio: Em relação aos brasileiros, por exemplo, que não tem esse contato
diretamente com as organizações você acha que ajuda? Um brasileiro que não está
por dentro do fluxo de imigração, você acha que se ele vai a alguma atividade,
alguma coisa realizada pelas organizações isso ajuda a mudar a opinião dele?
E3: Ajuda.
Otávio: Por que?
E3: Porque você veio, tem que aprender sobre nós, entendeu? Quando, por
exemplo, no caso da Festa Latino-Americana, quando você foi lá, você aprende
sobre a cultura dos haitianos, aprende sobre a cultura dos peruanos, aprende de
cada um. Daí você consegue descobrir as capacidades dos haitianos.
Otávio: Como você estava animando lá, algum brasileiro chegou a você e falou
alguma coisa?
E3: Ah, sim. Alguns deles subiram lá no palco e “parabéns, você fala bem
português”, ficam me cumprimentando, eu me sentia muito bem. Para mim é um
espaço pra descobrirem a nossa cultura, para ver que os haitianos estão se
esforçando muito.
Otávio: Com certeza. Eu queria te fazer uma pergunta, depois eu vou voltar nessa
questão da identidade. Você poderia apontar quais são os principais problemas de
comunicação que vocês têm aqui no país?
E3: Quando você fala problema de comunicação, em relação a que?
225
Otávio: Pode ser em relação a qualquer coisa que faz vocês terem um
relacionamento com brasileiro, por exemplo, qualquer coisa que faz esse intermédio.
E3: Para mim é tipo grupo, né, grupo ou espaço, você conversa com brasileiro, por
exemplo, no meu caso que tenho bastante, bastantes amigos brasileiros e
brasileiras, não só aqui em Curitiba mas tenho em Minas Gerais, São Paulo, então a
gente conversa bastante, bastante. Se eu tivesse uma mulher ciumenta daí eu não
ia ficar nessa casa porque ela entende o meu trabalho. Ela sabe o que eu estou
fazendo, não estou buscando uma popularidade, mas eu acho que depois de dois
anos eu vou me tornar um vereador aqui na cidade, porque todo mundo ta me
procurando: “Oh, E3*, me fala sobre isso, me fala sobre isso”. Até no hospital, na
delegacia, na Federal, porque eu posso estar dormindo que toca meu celular: “Oh,
E3*, onde é que você está?” – “Ah, eu estou na minha casa” – “Você pode vir aqui
na UPA? Nós temos um haitiano que não sabe falar nada, a gente vai pagar ida e
volta pra você”. Entendeu? A referência dos direitos humanos: “A gente tem um
haitiano aqui que não fala nada, que não sabe do que está precisando, você
consegue ir até lá?” Um haitiano preso, eu vou lá à delegacia converso com o
delegado e assim começo todo mundo conversar.
Otávio: E como é que você conheceu essas pessoas lá em Minas Gerais? Você
nunca morou lá?
E3: Nunca morei lá, mas estou doido para ir lá nesse feriado, em dezembro. É pela
internet, pela propaganda. Aquela vez que eu postei uma coisa lá no Face eles
curtem: “Nossa é o primeiro haitiano que pensa assim, que faz assim”. Sempre estou
no meio...
Otávio: Então, pra você não há muitos problemas de comunicação?
E3: Não.
Otávio: E pra esses outros haitianos que você vê que, às vezes, são mais isolados
na comunidade haitiana, qual o principal problema que você acha que existe?
E3: Têm alguns deles que sofrem preconceito, porque aqui tem bastante
preconceito, daí se torna assim se retirando: “Não, eu não vou falar com o Otávio
porque ele vai achar que eu sou haitiano, venho de um país pobre”, daí começa se
retirar. Pra mim não, não é assim. Sei que o preconceito existe no mundo inteiro,
não é só no Brasil, daí eu deixo esse preconceito de lado e falo: “O E3* vai seguir,
vai ir mais pra frente”, porque se eu vou deixar o preconceito dentro de mim eu não
vou crescer, entendeu... Eu vou.. “Ah , não, eu vou ficar na minha, eu não vou sair”.
226
Para mim não. Na França tem haitiano sofrendo preconceito, nos Estados Unidos
tem, Canadá tem, tem no mundo inteiro...
Otávio: E que tipo de preconceito você acha que existe mais aqui?
E3: Preconceito pela cor. “Ah, você é preto, não vou sentar ao teu lado”. Porque já
aconteceu isso no ônibus. Você senta, ela convidou um brasileiro curitibano: “Ah,
você tem uma cor...” – “Você pode sentar” – “Não, eu não vou sentar perto de você,
é preto, né, vai me sujar”... já aconteceu bastante. Depois outra coisa é quando fala:
“Ah não, porque vocês não ficaram lá no teu país morrendo de fome, porque vocês
vêm de um país pobre, vêm aqui pra roubar o emprego dos brasileiros”, essas
coisas. “Os haitianos estão lotado aqui no Brasil, não sei mais o que Dilma está
fazendo”. Começam a falar assim, começam a xingar. Xingando, xingando. Os
haitianos ficam com medo, né. Hoje em dia têm vários haitianos que estão levando
tiro por causa de brincadeiras, essas coisas, mas pra mim está tudo certo.
Otávio: Em relação a essa luta contra o preconceito também, qual a melhor
maneira, qual a melhor ocasião, que você vê aqui no Brasil pra manifestar o ser
haitiano, a identidade haitiana?
E3: Nas festas, nos eventos, na mídia e lá no Face. Como agora acabou de cair na
mídia na TV, daí eu vou focar mais no trabalho que a mídia esconde do Haiti, não
fala sobre o Haiti, mas eu vou falar, porque no Haiti tem praias bonitas, lugar mais
famoso e eles não falam, eles só falam do terremoto, entendeu? Daí essa campanha
lá no Face nos eventos, a gente está lutando para deixar todos os brasileiros saber
que o Haiti não é só um país pobre, mas lá tem riqueza também.
Otávio: Ok. E dessas festas, dessas questões da mídia você faz registros disso,
você guarda esse tipo de informação?
E3: Sim, guardo.
Otávio: O que você faz com elas?
E3: Cada vez que tiro fotos guardo as fotos também. Daí mando imagem,
compartilhamos também. Eu entro lá no Google pego as imagens do Haiti, as
imagens recentes e compartilho com amigos ou amigas brasileiras. “Olha o que a
mídia está fazendo, está falando sobre o Haiti e olha outro lado, olha algumas praias
bonitas lá, alguns lugares...”. Daí eles começaram a fazer uma comparação: “Ah,
nossa, a mídia só fala do terremoto, que o Haiti é um país pobre, é um país que
sempre tem guerra civil, etc. Mas a mídia nunca fala sobre o Haiti no sentido bem,
“Ah, lá tem praia bonita”, “É a primeira República negra que foi independente”, uma
227
guerra... isso não é tão fácil. Aí a gente usa o Face, usa o Instagram, postando as
fotos, etc. Nos eventos também fala sobre o Haiti, vende a nossa cultura, isso.
Otávio: E você acha que isso tem alcance para os brasileiros, eles olham e mudam
a opinião?
E3: Sim, mudam.
Otávio: Legal. Eu quero só voltar numa pergunta, que você, uma hora falou, que
você faz as pesquisas para o teu curso, para as Relações Internacionais. Eu queria
voltar naquela primeira pergunta. Quando você decidiu vir para Curitiba, você falou
que tinha um conhecido aqui, você pesquisou sobre Curitiba no Google?
E3: Sim.
Otávio: Então você chegou já conhecendo alguma coisa sobre a cidade?
E3: Sim, conhecendo algumas coisas porque aquele meu amigo que morava aqui,
quando ele falou eu morei aqui em Curitiba, estado do Paraná, etc. Daí eu falei:
“Curitiba? Deixa eu fazer uma pesquisa”. Entrei lá, Curitiba, estava vendo Jardim
Botânico que todo mundo conhece, Rodoviária... pesquisei alguns lugares, até que
descobri que tudo estava na internet e aí falei: “Ah, então tá bom”. Olha o tamanho
do Paraná mesmo é muito grande e eu consegui vir até aqui... Nunca fui em outro
lugar, só em Curitiba.
Otávio: Só no Paraná. E você pretende conhecer outros lugares aqui?
E3: Só pra passear.
Otávio: Só pra passeio. Você gosta de morar aqui?
E3: Sim, eu gosto aqui, porque no Brasil cada estado fala um idioma diferente, então
como eu peguei o português curitibano, não quero misturar mais senão fico perdido.
Otávio: E sua filhinha é curitibana?
E3: É, curitibana. Nasceu aqui na UPA.
Otávio: Bacana. Uma última pergunta pra gente poder terminar. É evidente que o
mundo hoje está muito interconectado e vocês sentem isso na pele quando têm que
conversar com pessoas de fora. Assim, como está hoje, você acha que essa
interconexão tem ajudado mais ou atrapalhado para as pessoas compreenderem o
mundo?
E3: Aquela interconexão que você está falando ajuda e atrapalha. Ajuda mais
porque posso dizer que graças a essa interconexão entre mim e você é que hoje
228
você está aqui, mas tem gente que só usa para criticar, entendeu? Mas você está
usando no sentido bom. Você está fazendo um trabalho, você vem até a casa do
E3* conhece um pouco do E3*, conversa. Essa interconexão é boa, mas tem gente
não: “Ah, eu fui lá à casa do E3* e ele está morando bem mal, está dormindo no
chão”. Dessa não vale a pena, entendeu? Para mim é assim.
Otávio: Entendi. Você tem contato com a Associação dos Haitianos?
E3: Sim.
Otávio: Como você é liderança é uma boa relação?
E3: É uma boa.
Otávio: Que é um grupo também de haitianos. E você acha que eles têm ajudado na
imagem, têm feito coisas interessantes aqui para os haitianos em Curitiba?
E3: Sim. Por exemplo, no livro, vamos supor, não é só E3* que está no livro, a gente
organiza partida de futebol, joga futebol, porque na verdade não é só futebol que a
gente tem, é Associação mesmo, Associação Esportiva Haitiana do Paraná, daí
dentro dessa associação a gente tem teatro, tem música, tem futebol e logo, logo a
gente vai colocar uma parte de educação para ajudar os haitianos, quem fala melhor
português ajuda o outro. Também a gente vai colocar a parte de saúde. A gente vai
até a Prefeitura, bem no começo de janeiro para conversar com o Prefeito, com o
Secretário Geral da Prefeitura. Vamos supor, uma vez por mês pra fazer uma clínica
aqui ou os haitianos têm direito para fazer consulta, essas coisas. A gente está
lutando por isso, mas é uma associação isso.
Otávio: Mas essa não é dos haitianos, lá da Emília*, que ela é Presidente. É outra
associação?
E3: É outra associação.
Otávio: Beleza, é isso.
229
ENTREVISTA (E4)
Idade: 29
Sexo: F
Estado Civil: Solteira
Instrução: Estudante (enfermagem)
Religião: Protestante - Mórmon
Profissão: -
Ocupação: Desempregada
Cidade que veio: Ilha de Tortuga
Quando e como chegou: 2 anos / Argentina (viveu 3 meses) e ônibus para Curitiba.
Otávio: Quando você veio para Curitiba, qual foi sua principal fonte de informação?
Foi alguém, algum meio de comunicação...
Entrevistado 4 (E4): Sim, foi alguém. Agora ele mora em Curitiba. Quando eu
estava na Argentina estava dependendo da minha mãe, porque minha mãe que
mandava dinheiro pra mim, depois faltava um papel na faculdade, não consegui
trabalhar. Argentina é um povo meio racista, sabe? Aham, muito racista. Depois ele
estava falando: “Ah, gente brasileira é boa”. Aí eu falo: “Melhor eu viver em um país
como Brasil do que Argentina, porque eu não gosto de racismo”. Depois eu falo pra
ele: “Pode levar a gente?”. E ele: “Sim, posso”. E a gente veio para o Brasil.
Otávio: Então foi uma questão pessoal sua e você conhecia alguém que te trouxe.
E4: Aham.
Otávio: Como você sabia que o Brasil não era racista? Ele falava para você?
E4: Ele falava que a gente (brasileira) era melhor do que na Argentina.
Otávio: E porque você foi para a Argentina?
E4: Não sei... Porque depois do terremoto, sabe, estava um pouco difícil pra gente
estudar e tinha uma prima minha que morava na Argentina e depois ela morava
antes da Argentina. E ela falou, o pai dela, ela falou com minha mãe: “Ah, agora a
situação está difícil por causa do terremoto...”
Otávio: Em relação aos amigos e parentes que você mantém no Haiti, as pessoas
que você tem contato aqui no Brasil. Os temas de conversas de vocês são
230
relacionados ao que aparece na mídia? Por exemplo, apareceu uma coisa na
televisão, vocês conversam sobre isso ou dificilmente?
E4: ...
Otávio: Não tem muito? O que aparece não é pauta de conversa...?
E4: (Aceno negativo).
Otávio: Ok.
Otávio: Em relação à televisão, você assiste?
E4: Aham, muito.
Otávio: Que tipo de programa?
E4: Eu gosto de Tribuna da Massa – no SBT –, as novelas e jornal também. Às
vezes eu assisto programa na Globo também, que é... Voz do Brasil...
Otávio: Rádio? Rádio você ouve?
E4: Não.
Otávio: Jornal? Impresso, de ler.
E4: Não.
Otávio: Mais TV.
E4: Mais TV.
Otávio: E internet?
E4: Eu gosto muito.
Otávio: E qual a frequência que você acessa a internet?
E4: Quando eu uso a internet é só Whatsapp e Facebook...
Otávio: Mas é diário, todo dia?
E4: Quando não tem nada para fazer daí eu uso.
Otávio: Você usa mais o celular?
E4: Eu uso.
Otávio: E esse é o principal uso? Facebook...
E4: Whatsapp, Quick.
Otávio: O que é o Quick?
E4: Eu acho que só gente dos Estados Unidos sabe o que é. “Imo”...
Otávio: São aplicativos de relacionamento?
E4: Aham. Youtube, não.
Otávio: Youtube não?
E4: Às vezes, porque eu faço plano quando eu uso o Youtube e acabou.
231
Otávio: E você participa de algum grupo de haitianos nas redes sociais?
E4: Aham.
Otávio: Qual?
E4: Team Brothers.
Otávio: Hãm?
E4: O nome é um pouco difícil.
Otávio: Está em crèole?
E4: Posso mostrar pra você depois.
Otávio: Ok. E que o significa em português?
E4: Tem um monte de amigas minhas que moram nos Estados Unidos e tudo...
Otávio: Mas só de haitianos?
E4: Não. Por exemplo, os haitianos que estão fazendo isso, mas se assistir como no
cobo (?) você não entende nada. Depois a gente está falando: “Ah, gosto desse
grupo”. Se você quer eu posso adicionar você.
Otávio: Mas a maioria é haitiano?
E4: Sim.
Otávio: E você interage nesse grupo ou mais lê?
E4: Só quando a gente faz uma publicação e se eu gosto eu curto.
Otávio: Eu queria saber se você já assistiu a algum vídeo ou documentário sobre os
haitianos, feito aqui em Curitiba. Chegou assistir algum?
E4: Não.
Otávio: Normalmente nos eventos que as organizações, Festa Latina, Festa
Haitiana, percebemos que os haitianos usam muito os celulares, registram muito,
tiram muitas fotos. Primeiro eu gostaria de saber se você costuma fazer isso
também...
E4: Às vezes eu tenho o costume, mas quando eu chego em casa eu tiro tudo.
Otávio: Como assim? Joga fora?
E4: Eu chego em casa e tiro tudo.
Otávio: Mas qual é o principal motivo, então, de fazer?
E4: Nada. Só às vezes passo, por exemplo, assim, você está fazendo um teatro,
você vai se apresentar cantando e aí me pedem para fazer uma foto e eu faço.
Depois eu mando para você e depois eu tiro.
232
Otávio: Ah, tá. E esses registros o pessoal usa mais para quê?
E4: Para guardar... “Olha o que eu faço! Estava cantando na Festa Latino-
Americana!”. Para mostrar para amigos.
Otávio: E você já recebeu?
E4: Só minha prima que tinha, quando ela foi na Festa Latino-Americana. Não sei se
você lembra, minha prima fez um teatro e ela tem isso no Youtube.
Otávio: E aí ela faz isso pra registrar...
E4: Aham.
Otávio: Essa já é uma pergunta de reflexões. Desses eventos, que as organizações
têm feito junto com os haitianos e de outras nacionalidades que estão aqui, mas
especialmente os haitianos, você acha que essas atividades mudaram de alguma
maneira a forma dos brasileiros olhares os haitianos?
E4: Não sei, porque nunca fui assistir, fui uma vez só.
Otávio: Mas até aqui, os brasileiros que vêm conhecer a Pastoral, você acha que
muda um pouco a forma de ver? Ou alguém que tem contato com haitiano. Tem uma
mudança de olhar?
E4: Não.
Otávio: Beleza. Em relação a essas organizações de apoio, você acha que elas são
importantes para construir uma imagem positiva aqui na cidade?
E4: Sim, claro. Ajuda bastante.
Otávio: Por quê?
E4: Porque... como, por exemplo. Ai, não sei como posso explicar isso.
Otávio: Se quiser falar em espanhol eu entendo.
E4: Não sei como posso explicar isso. Quando, como... ai, não sei se o que eu vou
falar é verdade. Por exemplo, quando uma pessoa chega aqui, como, por exemplo...
Eu quero fugir dessa...
Otávio: Você não quer responder?
E4: Não...
Otávio: Não tem problema. Mas você acha que ajuda?
E4: Ajuda!
Otávio: Tem uma mudança de olhar...
233
E4: Ajuda. Bastante.
Otávio: E qual é a melhor ocasião para os haitianos manifestarem sua identidade na
cidade? “Isso aqui é o Haiti!”, e mostrar isso para que as pessoas possam ver. Como
é a melhor maneira disso ser passado?
E4: ...
Otávio: Não tem ideia?
E4: Não...
Otávio: Beleza. Eu gostaria de saber a sua opinião sobre quais são os problemas de
comunicação que vocês têm aqui no Brasil?
E4: Comunicação. Como o quê?
Otávio: Em todos os sentidos.
E4: Nada. Pra mim nada.
Otávio: É fácil pra você se comunicar... com brasileiros também?
E4: Aham.
Otávio: Onde você conversa mais com brasileiros?
E4: Em minha casa! Nunca morei com gente do Haiti.
Otávio: E quantos brasileiros são?
E4: Três. Eu moro em um condomínio que não tem haitiano e agora tem um. Não é
um casal, é um menino que trouxe a namorada. Mas só com brasileiro. Trabalho só
com brasileiro.
Otávio: Então toda sua vida está permeada por pessoas do Brasil! Você ter morado
com brasileiros desde sempre ajudou você a se integrar mais?
E4: Como na igreja também... eu estou em uma igreja que não tem haitiano.
Otávio: Qual que é?
E4: É na igreja de Mormon, que está aqui perto. Eu moro só com brasileiros, não
moro com haitianos, trabalhando só com brasileiros. Como eu estava em um
trabalho que tinha – eu acho que – 117 pessoas e eu só de haitiana.
Otávio: Legal. E você pretende ficar aqui no Brasil?
E4: Sim.
Otávio: Você pretende voltar para o Haiti?
E4: Vou voltar. Depois de estudar.
234
Otávio: Uma última pergunta: Hoje o mundo está mais interconectado, né. Meios de
comunicação, todas essas coisas. As pessoas conseguem se conectar cada vez
mais rápido. Você acha que isso ajuda mais ou atrapalha mais?
E4: Ajuda mais.
Otávio: Por quê?
E4: (Risos)
Otávio: Esses porquês são chatos, né!
E4: Esses porquês são chatos demais!
Otávio: É só pra instigar mais!
E4: Às vezes eu não consigo explicar muito, sabe?!
Otávio: Ah, tá bom!
E4: Tem perguntas que eu quero fugir.
Otávio: Mas você acha que ajuda mais, né?
E4: Ajuda muito!
235
ENTREVISTA (E5)
Idade: 31
Sexo: F
Estado Civil: Casada (2 filhos).
Instrução: 2º grau completo
Religião: sem religião
Profissão: Vendedora Turismo
Ocupação: Tradutora escolar / Diarista
Cidade que veio: Semak – Punta Cana
Quando e como chegou: há 4 anos (Rep. Dominicana – Chile por 9 meses – Peru –
Manaus, tudo por avião).
Otávio: Eu queria começar perguntando para você qual foi a sua principal fonte de
informação para você chegar aqui em Curitiba. Qual foi a principal forma de
comunicação, se foi pessoas, se foi algum meio de comunicação que fez com que
você descobrisse Curitiba. Como essa descoberta de Curitiba?
Entrevistado 5 (E5): Curitiba foi mesmo porque foi uma empresa, chegando em
Manaus, uma empresa de mina de ouro contratou meu marido para Curitiba. Daí
depois me contrataram como cuidadora de idoso. Foi assim que nós viemos aqui.
Através daquela empresa que foi lá em Manaus nos contratar.
Otávio: Então vocês descobrirem por eles. E vocês chegaram a pesquisar algo
sobre a cidade ou descobriram tudo aqui?
E5: Descobrimos tudo aqui porque chegamos direto e no outro dia começamos a
trabalhar. Eu não tive tempo para fazer pesquisa, essas coisas.
Otávio: E quando vocês vieram da República Dominicana para o Chile, porque
escolheram o Chile?
E5: Porque como eu trabalhava com turismo conhecia muito o Chile e o pessoal
convidou falando como era o Chile, o salário, tudo. Nós pensamos que lá era melhor
do que nós ganhávamos e decidimos ir para o Chile, mas chegando lá nós não nos
adaptamos por causa do frio que faz lá. Daí pensamos em mudar e já que tínhamos
amigos que moravam em Manaus, ele nos explicou sobre os documentos que
236
davam aqui, que podíamos vir aqui e íamos receber os documentos, que não ia ficar
ilegal e aí decidimos ir para Manaus. Chegando em Manaus nós não ficamos nem
um mês. Conseguimos aquela empresa que te falei e viemos para cá.
Otávio: Você tem parentes no Haiti e na República Dominicana ainda, né?
E5: Sim.
Otávio: Eu queria saber se alguns assuntos que passam na mídia – na televisão, no
jornal – tanto do Brasil quanto de lá é pauta da conversa de vocês. Vocês chegam a
conversar sobre os assuntos que estão na mídia?
E5: Não entendi. Pra eles falaram ou na mídia mesmo?
Otávio: É assim: pra vocês conversarem, o que mostra, o que aparece na mídia...
vocês chegam a conversar sobre alguns assuntos?
E5: Não.
Otávio: Você tem celular?
E5: Tenho.
Otávio: E qual o principal uso que você faz dele?
E5: Para fazer chamadas, aqui mesmo. Porque quando eu vou chamar para lá –
Haiti, qualquer outro país – eu não faço no celular. Eu vou a um centro... cyber café,
não sei como fala... que tem chamada, ligação, ou eu faço por notebook. É muito
caro, muito, muito.
Otávio: Você usa Skype?
E5: Às vezes eu uso, mas depende do sinal porque a internet também é ruim; mas
eu vou a um centro de chamada e faço a ligação e pago.
Otávio: Então o celular para você é mais para uso de ligação local?
E5: Aham. Local, isso.
Otávio: E você usa o Whatsapp nele. Tem?
E5: Tenho agora, mas uso pouco também.
Otávio: E internet? Você usa... tem?
E5: Tenho. Uso internet.
Otávio: Com que frequência?
E5: Agora é mais final de semana, mais ou menos, porque durante a semana é
muito corrido e aí... ou às vezes se tenho que fazer relatório do trabalho ou alguma
coisa assim, aí eu uso. Mas eu uso bem pouco, final de semana eu uso mais.
237
Otávio: E qual o principal motivo que você usa a internet?
E5: Ah, pra ver meu e-mail, ver se meu serviço me mandou um e-mail, meu chefe
me mandou um e-mail, para ver os amigos. Às vezes eu dou uma olhada no Face,
mas eu uso mais no final de semana mesmo.
Otávio: E televisão, jornal, revista... Você usa algum deles?
E5: Antes eu via os jornais de manhã, só que isso me estressa e agora eu não estou
usando.
Otávio: Mas por quê?
E5: Ver algumas coisas de violência, algumas coisas me estressam bastante. Ver
uma pessoa invadir uma casa, essas coisas me estressam e aí eu não assisto mais
jornal.
Otávio: E aí tirando isso você não tem assistido mais TV?
E5: Aham. Eu assistia, agora não. Agora pra ver TV em casa é desenho mesmo
porque meus filhos assistem muito desenho e às vezes eu acompanho eles, mas a
maioria das vezes eu não consigo.
Otávio: Você disse que não usa muito o Facebook, mas mesmo assim vou
perguntar: você participar de algum grupo de imigrantes, de haitianos, no Facebook?
Aqueles grupos fechados.
E5: Eu vi um grupo, não sei se coloquei que gostava desse grupo e me mandam
tudo que passa lá. Um grupo que eu vi que eles colocaram “Haitianos no Brasil”. Eu
coloquei que gostava e aí eles me mandam tudo... as fotos, tudo. Mas não comento
nada, só vejo as fotos.
Otávio: Em relação às fotos, e aí eu já vou entrar um pouco no trabalho das
organizações, nas atividades que as organizações fazem, uma coisa que é muito
comum da gente ver é os imigrantes usarem muito o celular para registro. Às vezes
tem uma banda e muitas pessoas ficam filmando e eu queria saber, primeiro, se
você costuma fazer isso também e se você sabe qual uso é dado para esses
registros. Como é que as pessoas usam depois?
E5: Eu não sei, não sei. Como eu te falei, eu não sou muito de telefone e eu não
filmo quando eu estou lá, só vejo. Às vezes quando alguma pessoa me manda um
vídeo, assim, mas possivelmente que eles divulgam para verem o que fizeram,
atividade que está tendo. Não só do Haiti, mas se está tendo dia da bandeira, eles
238
divulgam nossa festa ou mandam para os outros haitianos que estão longe, mas eu,
principalmente, quase não filmo.
Otávio: O que você gosta mais dessas festas? Qual é seu interesse maior nelas?
E5: Meu interesse maior é que eles conheçam nossa cultura, nossa comida, umas
coisas diferentes pra vocês.
Otávio: Em relação a esses temas que você tocou, essas atividades realizadas,
você percebeu uma mudança na forma dos brasileiros olharem os haitianos?
E5: Não sei. Eu não posso falar de todos eles, mas alguns vêm e falam “Ah, eu
gostei da comida de teu país”. Porque alguns acham que nós só comemos terra lá,
tem comentário assim e machuca, né. E aí ver que alguns conhecem nossa cultura e
já vê com outra ideia, imagem, né. Mas isso aí é com quem está mais próximo de
mim, né. Daí os outros eu não sei o que eles pensam.
Otávio: E você acha que pra essa construção de uma imagem positiva do haitiano
aqui no Brasil essas organizações elas desempenham um papel importante nisso?
E5: Acho que sim.
Otávio: Por quê?
E5: Porque eles acabam descobrindo algumas coisas que eles não sabiam que
existiam porque eles só assistem as coisas ruins que existem e as organizações
mostram outra imagem do Haiti porque a maioria dos brasileiros só tem em mente o
momento do terremoto.
Otávio: E você acha que esse é o principal problema de comunicação que há entre
brasileiros e haitianos...
E5: Não, com certeza que não.
Otávio: Você consegue pensar em outro problema de comunicação?
E5: Não sei. Porque se tem alguma coisa que eu não tenho certeza e é só da minha
imaginação eu não vou afirmar para você que é a realidade, não sei se me entende.
Otávio: Sim, não tem problema. Em relação a identidade haitiana, qual a melhor
ocasião que você pra que vocês possam manifestar o “ser haitiano” aqui em
Curitiba?
E5: Acho o Dia da Bandeira mesmo. Eles pegam a bandeira, colocam um uniforme,
uma camiseta com a bandeira do Haiti e é esse dia, eu acho.
239
Otávio: E você já chegou a fazer registro disso, ou não?
E5: Não.
Otávio: Mas o pessoal faz...? Já recebeu alguma imagem?
E5: Imagem, foto. Uma vez recebi sim de uma amiga que estava na festa. Ela
mandou algumas fotos pra mim.
Otávio: Ela estava na festa de Curitiba e você não?
E5: Eu estava, mas eu estava na cozinha! Eu sempre vou e ajudo na cozinha, com
as comidas e ela sabendo que eu não estava naquela parte que eles cantam, daí ela
mandou algumas fotos para mim.
Otávio: Aí os amigos te ajudam e você consegue ver um pouquinho!
E5: Aham.
Otávio: Uma última pergunta: O mundo está muito mais interconectado. Vocês
conseguem ter contato com pessoas de longe, ao mesmo também tem de tudo...
Você acha que isso ajuda ou atrapalha para compreendermos o mundo como ele é?
E5: Depende de como a pessoa vai usar. A maioria às vezes ajuda, mas depende
de como a pessoa usa, não ajuda. Por exemplo, se a pessoa pega uma foto e
coloca tudo ao contrário do que estava acontecendo e faz uma coisa contra ou um
comentário negativo que não era... através de uma mentira, não sei, qualquer coisa,
aí não está ajudando. Mas se está mostrando, falando, aí sim vai ajudar. Por
exemplo, aquele dia eu não podia tirar as fotos porque eu estava na cozinha e minha
amiga veio, faz e manda pra mim no Face, daí ela ajuda, né. Eu nem vi como estava
o lugar, como estava decorado, porque eu só fiquei na cozinha, aí ajuda.
240
ENTREVISTA (E6)
Idade: 30
Sexo: M
Estado Civil: Solteiro
Instrução: Ensino Superior (Contabilidade e cursando Análise de Sistemas)
Religião: Batista
Profissão: Contador
Ocupação: TI
Cidade que veio: Gonaives
Quando e como chegou: Há 3 anos (Avião: República Dominicana – Manaus)
Otávio: Qual foi sua principal fonte de informação para você vir pra cá? Primeiro,
como você ficou sabendo do Brasil e depois porque Curitiba? Alguém falou, você viu
em televisão, como é que foi isso?
Entrevistado 6 (E6): Cara, pra mim acho que é um pouco diferente. Antes, quando
eu fui tomar a tomar a decisão de ir ao Brasil eu pesquisei bastante, entendeu? Eu
tinha acesso à internet, lá na faculdade no Haiti e eu pesquisei bastante. A parte
mais importante pra mim é que o Brasil estava no 5º lugar das economias o mundo.
Às vezes eu penso que eu sou uma vítima da propaganda do Brasil lá fora. Porque
lá fora não mostram as favelas, não tem demonstração da miséria do Brasil, isso fica
mais escondido. A propaganda do Brasil é forte e eu cheguei aqui e vi outra coisa,
entende? Eu sei que tem miséria no Brasil, mas eu achei que era fraco e quando eu
cheguei eu vi que era outra coisa. Mas fora tem turismo, grande, e a economia é
muito boa. Depois vai ter a Copa do Mundo, o Brasil vai crescer mais. Eu estava
pensando assim, mas aí eu cheguei ao Brasil e estava em Manaus, porque eu tinha
uma amigo lá e ele me ajudou bastante, mas aí eu cheguei lá e vi que Manaus tem
uma grande diferença com o Haiti: a temperatura, o calor demais... Manaus é uma
zona franca, entendeu? Quando você olha Manaus é outra coisa, parece que você
não está no Brasil ainda... o povo, a cultura. “Nossa, isso aqui é difícil”. Eu passei
três meses lá em Manaus e aí eu decidi deixar Manaus. Eu estava procurando
cidade onde tem menos racismo... Tudo que estava fazendo estava baseado em
uma pesquisa, eu sou diferente. Porque quase todos os meus amigos sempre me
241
esperaram eu tomar uma decisão. Por exemplo, o cara que mora aqui veio comigo
porque eu que fiz as pesquisas todas. “Nossa, vamos escolher Curitiba!”. A gente
encontrou um curitibano lá também em Manaus e ele falava bem de Curitiba,
embora a gente faça pesquisas sobre as diferenças dos lugares do Brasil e aí o cara
não falou bem de Curitiba. São Paulo, eu não gostei de São Paulo, porque tinha
uma ONG lá... Médicos Sem Fronteiras, aí falou sobre cada cidade do Brasil. Ele
falou que São Paulo, quando, tipo, quando tem bastante fuga, tem bairros onde
sempre chega água. Nossa, eu não vou morar em São Paulo... todo mundo queria
São Paulo! Rio é uma cidade muito cara, é uma cidade que só faz turismo,
entendeu? E se a gente está procurando uma vida melhor não tem pra gastar mais.
Então, uma cidade pra eu não poder gastar mais, uma cidade pra eu economizar,
pra eu poder sobreviver. Rio não tem segurança confiável. São Paulo tem bairro que
você pode morar e vai encontrar muita chuva. Porque eu vivi na minha cidade, uma
vez a água chegou a doze (dois) metros. Se um dia você fizer uma pesquisa sobre
Gonaives você vai achar isso. Uma vez teve uma inundação e teve quase 3 mil
mortos. Quando falou em água eu logo fico com medo, não gostei, né. O cara me
falou e daí eu tenho um amigo aqui em Curitiba e ele me falou também. O cara que
vem de fora ele quer achar um emprego rapidinho também, entendeu? Aí o cara
falou “Lá tem um lugar e você pode achar um emprego rapidinho”. Qualquer lugar
que você vai lá, qual o setor que você quer trabalhar e vai indo. O cara que está aqui
falou: “Vem hoje e amanhã você já pode vir trabalhar”. Nossa, não tem jeito, cara.
Você vai escolher essa cidade também. Tipo, eu não sabia que Curitiba também era
uma cidade assim. Chegando em Curitiba eu gostei, apesar que eu tenho um amigo
que já deixou Curitiba, entendeu? Nossa, eu não sei quando eu vou deixar Curitiba
porque eu estou muito bem aqui. Não é preciso ganhar muito dinheiro pra poder
sentir muito bem, mas estou legal aqui, pra mim. Não sei se vou conseguir fazer
minha vida aqui, essa pergunta não tem como responder, só Deus que sabe, mas,
por enquanto, estou legal e escolhi uma cidade legal também. Se você pensar em
Curitiba, você pode pensar em qualquer cidade do mundo. Uma cidade da França,
do Quebec... não sei se você concorda comigo.
Otávio: Ótimo, era isso mesmo. É legal porque você teve várias influências. Você
pesquisou e teve amigos também que te ajudaram. Então você teve uma escolha
consciente para onde você estava indo. E eu queria saber em relação às notícias
242
que aparecem aqui no Brasil e as notícias que têm no Haiti, sobre vários assuntos.
Você e os haitianos que estão aqui e seus parentes que continuam no Haiti, vocês
costumam conversar sobre esses assuntos que vocês veem na televisão, na
internet... vocês conversam sobre isso?
E6: Do Haiti sim. Quinta-feira ou sexta-feira eu estava ouvindo uma rádio do Haiti e
ela estava falando sobre o impeachment da Dilma. Tipo, pra mim ele estaria falando
outra coisa. Nossa, eu estou aqui e isso não é verdade, entendeu? Falar sobre os
assuntos do Brasil com meus amigos do Haiti. Estou falando de verdade, cara, não
dá pra se preocupar da propaganda da TV. Tem um monte de coisa que está
escondida e quando você chegar lá na realidade você vai ver, entendeu? Porque
tem amigo meu: “E6*, eu já tenho visto lá do Brasil, o que você acha?”. “Nossa você
já tem visto, cara?”, eu falei. “Você quer começar do zero? Se você quiser começar
do zero pode ir. Eu posso te acolher na minha casa, eu vou te ajudar a procurar
emprego, mas se você quiser começar do zero”. Porque eu comecei do zero, tem
que deixar tudo para trás. Tipo, você estuda uma coisa, né. Tem que colocar menos
dois, não zero, porque você vai enfrentar uma língua que não é sua... que é difícil,
cara, pra se adaptar. Cara, cheguei em Curitiba por aqui eu fiz bastante amizade. O
patrão não é o fator principal. O gerente, meus amigos, se eu quiser voltar aqui eu
não tenho problemas de voltar aqui. Porque graças a mim, cara, o gerente pode
colocar outro haitiano nesse salão. Você pode perguntar para qualquer gerente aqui.
O cara, só uma vez me olhou lá atrás na cozinha... ele me olhou, cara e disse “Você
não vai ficar no staff, cara, você vai ficar no salão”. Eu falei: “Como eu vou conseguir
fazer isso? Eu não sei nada sobre a língua, como eu vou falar?”. “Só olhar o cliente,
dá um sorriso, falar oi, levar prato, trazer o pedido...”. Aí a gente começa a crescer.
Depois de três meses ele me dá o código pra eu começar a vender. Pra eu poder
vender é só eu escrever em uma coisa. Eu estudei um pouco pra poder lembrar e
poder falar para o cliente. Aí começa mudar, eu fui ao Celin, estudei um pouco a
língua e me ajudou bastante. Aí eu decidi sair daqui, entendeu? Aí eu vou
recomeçar, deixar zero agora, pra ir a um, a dois... Do Brasil, se você quiser voltar,
vem. Caso contrário, fica no Haiti, não tem muita diferença. Também estava foda,
tem muita pressão da minha família, pressão pra não poder voltar. Porque eu tinha
um irmão meu, irmão falecido por morte de câncer, e minha família estava com
medo porque o médico falou que pode ser uma coisa hereditária e no Haiti não tem
médico pra poder curar essa doença, entendeu? Eu estava com medo, cara! E isso
243
me ajuda pra poder sair. Agora, se eu voltar para o Haiti parece outra vida para mim.
Deixa assim, cara. Tá bom?
Otávio: Perfeito. Você tem celular, né? E qual o principal uso que você faz do
celular?
E6: Pra usar um site... Facebook. Ligação... eu não sou um cara que gosta de falar
bastante, não. Viber, Whatsapp pra poder me comunicar mais fácil, pra não gastar
mais dinheiro, comprar mais crédito. Pra poder falar com minha família.
Otávio: Em relação à internet. Qual a frequência que você usa?
E6: Como assim?
Otávio: Quantas vezes você por dia, se usa todo dia...
E6: Pra mim todo dia.
Otávio: E principalmente que tipo de site, pra quê você entra...?
E6: O Google, que é minha página principal, Gazeta do Povo, daqui do Brasil, um
site do Haiti, Le Nouvelliste, quase mesma coisa, mesmo assunto...
Otávio: É um jornal?
E6: Sim. Dá informações sobre o que está acontecendo no Haiti, entendeu?
Otávio: Ah, tá. É o principal site do Haiti esse? De notícias?
E6: Pra mim sim. Tem 100 anos. Que mais? Euronews. Eu sou um cara mais ligado
na notícia.
Otávio: Você entra na internet pra se informar. E Facebook, você bastante uso dele
ou não?
E6: No Facebook é pra ser de tudo. É tecnologia, notícia, tudo. Por exemplo, aqui,
você pode deixar ligado, pra ver notícia.
Otávio: Euronews é da França, né?
E6: Não é só da França, tem em Portugal também. Mas pra mim fica melhor por
causa do idioma.
Otávio: E em relação ao Facebook, você participa de algum grupo fechado só de
haitianos ou só de imigrantes?
E6: Estou, mas não deu certo pra mim porque eu não gostei.
Otávio: Que grupo que é? Você pode falar pra mim ou não?
E6: Esqueci, cara. Não tem uma coisa boa nesse grupo. Tem cara que só posta foto
e no grupo do Whatsapp também, o cara só posta foto, falando que está tomando
cerveja. Tira foto com a cerveja e aí vai fazer o barulho no meu telefone. Eu tenho
244
um grupo que eu coloquei lá e tem só cinco pessoas que a gente tá morando. São
cinco pessoas diferentes. Por exemplo, o cara pode fazer uma coisa que pareceu
ruim e outro cara vai escrever no grupo: “Ô cara, aquilo lá que você fez eu não
gostei”. É assim. No grupo, eu tenho outro grupo – eu tenho dois grupos – eu não
vou falar três grupos porque o grupo que estou lá agora, “Haiti 2016”, o grupo da
galera que vai ao Haiti lá. Eu tenho um grupo que chama “Friends forever”, passa
muito tempo, muito tempo... a gente estudou e estamos em vários países e fazemos
um grupo, entendeu? Você vai ver como vai, tipo... guardar amizade entre nós.
Otávio: Deixa eu perguntar uma curiosidade. Essas fotos que o pessoal tira
bastante, eu já vi, é meio comum, me parece, você acha que os haitianos têm mais
essa coisa da imagem do que os brasileiros ou não?
E6: Depende do grupo, entendeu? Por exemplo, um dia eu acabei ficando em casa
e não gosto de usar crédito da Tim, gosto de usar o wireless que está em casa. Aí...
quase 80 mensagens, cara. Nossa, que isso!? 80, por quê? Eu estava em um grupo
e a galera colocou, né. Pergunta antes. Eu vi as fotos... a mesma coisa! Imagem, os
haitianos têm bastante coisa feia... morte, tudo. Eu não gostei de ver de morte, não
sei pra que colocar. Eu gosto de um grupo que tem um assunto. Se tem uma
atividade pra fazer cria um grupo. Eu sou um cara que não gosto de colocar muita
foto, colocar foto, ficar mostrando, entendeu? Até no Facebook... eu postei uma
coisa para lembrar. Por exemplo, eu tenho um amigo que foi lá para o México e a
gente postou uma foto junto e eu não sei como vai ser em Curitiba, pra marcar esse
evento, mas não é toda foto, não.
Otávio: Você chegou a assistir a algum vídeo ou documentário aqui no Brasil que
fizeram sobre os haitianos?
E6: A última vez estava assistindo era um cara falando, estava na internet, acho que
a Casla também porque eu curto Casla na internet, no Face. O cara que estava
falando ficou muito chateado porque estava sentado no ônibus e o cara não queria
sentar do lado dele, não sei se você já viu esse vídeo.
Otávio: Mas é um vídeo real?
E6: Reportagem. Não somos assim, coisa louca o que ele está falando. Isso não é
racismo, entendeu? Interpretação muito ruim, cara. Porque tem amigo meu que fala
isso também: “Ô, E6*, você não está percebendo que quando você está sentando
em um ônibus ninguém quer sentar ao lado de você?” Eu não! Entendeu? Pode
245
procurar, tem um vídeo lá. Novela também, eu vi um ator e eles só falam sobre
isso... ninguém quer sentar ao lado dele. Nossa, que besteira cara, isso não é o
maior problema para mim. Tipo, tem lugar, até eu já fiz. Você senta ao lado de uma
pessoa e eu posso ver outro lugar, cara, eu vou deixar esse lugar e vou sentar em
outro lugar. Essa não é minha preocupação: quem vai sentar ao lado de mim –
velha, velho, mulher, homem – não adianta, todo mundo é igual. Eu acho coisa que
tem gente que começa assim, que qualquer coisa é racismo... quando é cor
diferente, entendeu? Eu lembro uma vez que eu estava lá e ele veio sentar aqui e
ele chamou de “negão”, me chamou “negão”. “Negão, vem aqui!”. Isso não é
problema para mim, me chamar de negro, o problema era a tonalidade que ele
estava usando, o jeito que ele estava falando comigo. Ele falou: “Ô, negão!”, eu sei
que ele está tomando cerveja. Eu falei: “Cara, você pode me chamar o gerente pra
eu ir embora, mas eu não vou te atender”.
Otávio: Você falou isso pra ele?
E6: Falei. “Eu tenho que trabalhar”. Eu falei em voz alta: “Eu não vou te atender.
Você não é educado. Pode ficar de pé, você não vai me encher. Você não fez nada”.
Eu falei: “Eu não vou te atender”. O gerente mandou me chamar: “Ô cara, você pode
me mandar embora hoje, mas eu não vou atender esse cara, ele não é educado.
Esse lugar não é pra ele”. Ele pode ir num barzinho, lá no Guadalupe, pra tomar uma
cerveja e falar qualquer besteira... Aqui você pode vir mais educado. Esse lugar não
é pra ele. Aí o gerente que estava aqui falou: “Ele não vai te atender e você pode ir
pra sua casa. A gente não vai pegar seu dinheiro”. Ele ficou frustrado depois e ele
me chamou: “Ô, cara, desculpa, eu estava bebendo”. “Eu sei, cara, eu te conheço.
Não tem problema me chamar de negro...”. Isso não tem problema, não é racismo
para mim. Cara, racismo é uma etiqueta, entendeu? Se você está, nossa, se você
concorda, você é uma vítima. Quando o cara está colocando etiqueta sobre você é
outra coisa. Ele está tentando colocar uma coisa. Isso não é uma etiqueta. Porque
uma coisa eu não gosto é quando o cara está difamando o meu nome. Se eu chamo
E6* eu me chamo E6*, não dá outro nome pra mim. Se você me chama de outro
nome eu não vou te responder. Se você me chamar “E6*” eu vou te responder. Você
pode fazer qualquer coisa, porque eu faria isso com qualquer pessoa. Até hoje eu
não fui vítima de racismo. Não sei porque eu não consegui faz uso. Cara, aqui no
Brasil eu ainda não sou uma vítima do racismo. Sério!
Otávio: Nem nesse caso?
246
E6: Cara, isso aqui não é racismo. É um cara que é mal educado, entendeu? Um
amigo meu pode chamar, alguma vez, um cara de “Ô, brancão!”. Ele pode dizer
então que é racismo, cara. O racismo não é cor diferente... o cara fala: “Ô, brancão,
vem aqui!”. O cara fica nervoso, entendeu? Então ele me chama de negão...
racismo. Se você concorda, aí é outra coisa. Pra mim é difícil, é educação às vezes.
Otávio: Beleza. Só pra terminar em relação a esses meios de comunicação que eu
estou te perguntando – TV, rádio – você assiste algum aqui no Brasil?
E6: TV. Não gosto, cara. Fico na internet. Meu computador fica perto da minha
cama. Faço tudo. Assisto futebol, tudo no computador.
Otávio: E rádio?
E6: Rádio? Tipo... rádio, esqueci, cara... E-Paraná, passa música clássica,
entendeu? Às 5 horas passa jazz, eu adoro. De manhã também dá informações,
entendeu?
Otávio: Tá. Eu vou entrar um pouco nas perguntas sobre as organizações,
especialmente na Casla, na Associação – as que você teve mais contato, né. No
curso da Casla a gente percebeu, por exemplo, ou em qualquer outro evento que a
gente faz com os haitianos, é que o pessoal usa muito o celular para fazer registros
dos momentos. Eu queria saber duas coisas: primeiro, se você costuma também
fazer isso e se você sabe pra que eles usam esses registros?
E6: É fantasia.
Otávio: Como assim?
E6: Não tem nada. Você está gravando?
Otávio: Sim.
E6: Porque você está fazendo uma coisa séria. Eles não vão fazer nada sério. Vai
chegar em casa e vai deletar tudo.
Otávio: Ah, é? Você acha que eles não guardam?
E6: Guardar o que? Vão fazer o que? Eu peguei outra coisa e fiz assim (...). Não
precisa aparecer essa foto dele, porque ele vai colocar, não sei, no Facebook...
Otávio: Você acha que nem pra registro pessoal?
E6: Vai colocar no Facebook às vezes... É muito engraçado. Às vezes tem um cara
filmando, né. Tem um celular e está filmando. Por quê? O celular não tem
capacidade, o celular vai ficar lento depois. E se vai ficar lento, o que você vai fazer?
Vai apagar. É só uma fantasia.
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Otávio: Mas é meio geral isso, né? Aqui também o pessoal usa toda hora.
E6: É.
Otávio: Você acha que algumas dessas atividades conseguiram mudar a maneira
que o brasileiro vê o haitiano ou outra pessoa que está aqui?
E6: Sim. Porque, pra mim, tem um problema de organização. Os haitianos não têm.
Por exemplo, se eu fosse brasileiro eu falaria isso: Nossa... fazer nada. Cara, você
tem que pensar nisso. O Haiti tem uma cultura boa, uma cultura rica. É difícil, cara...
o povo que está aqui conseguir mostrar. É difícil achar uma pessoa que, tipo, a
música estava ruim. A última vez lá, que eu fui numa festa, estava bastante país lá...
Otávio: Na Festa Latino-Americana?
E6: Isso. Você estava lá também, né? Cara, eu fui lá atrás, estava olhando o lugar
da Argentina... estava muito bonito! Nossa, aí eu fui lá ver o lugar do Haiti... nossa,
que bagunça, cara. Demais, cara! Não sei, você pode me falar direito... O Pedro*,
que é haitiano, ele foi o organizador, né, responsável pela festa. Nossa, o que deu?!
Você faz isso, cara?! A comida que tem aqui, cara, não tem uma decoração perfeita.
Nossa, estava muita bagunça! Isso pode ajudar. Esse povo não tem como vender a
cultura do país. Estava feio, não tem como organizar. 18 de maio... estava falando
com o Pedro*. “Por que vai ter duas festas?”. Eu falei com a Associação também:
“Por que vai ter duas?”. Por quê? Estão fazendo o que? Estão transferindo a mesma
coisa do Haiti: a divisão. Não tem como. Porque o japonês aqui, o alemão, todo o
povo que está aqui no Brasil cresceu bastante? Olha a comunidade japonesa! Muito
respeitada aqui no Brasil, por quê? Porque eles sabem como organizar. Conseguem
fazer alguma coisa. Os haitianos, não. Por que ela quer fazer uma coisa lá no centro
e ele quer fazer uma coisa lá no Santa Felicidade? O Pedro*, cara, está aqui para
poder unir. Vamos pensar com a cabeça junto e fazer uma coisa só pra dar uma
imagem melhor do país. É, cara, tudo fica feio! Na festa da América Latina estava
feio demais, cara. A apresentação haitiana, não tem como... um povo, um povo
muito calmo o de Curitiba... não tem como ser só o Kompa, que é muito barulho.
Tem que se adaptar, entendeu? Isso falta. Nós podemos vir aqui para trabalhar e
nós podemos mudar isso também para apresentar cultura, o que nós podemos fazer.
Vai demorar porque a comunidade haitiana em Curitiba cresceu. Não é que falta
apoio, apoio tem. Se você olhar o povo que tenta entrar na Europa, tipo, apoio é
ruim e no Brasil aqui é bom. Você vai à escola para aprender língua, você vai à
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Federal onde tem o projeto para integrar estudantes, entendeu? Cara, isso aqui é
mole. Você tem trabalho, você tem um visto permanente. Aqui é bom, o apoio do
Brasil é muito forte pra nós, mas nós precisamos colocar a cabeça junto pra poder
crescer. Aí você vai falar do racismo que é o problema. Não é isso cara que é o
problema! Você vai falar que é o racismo e que aqui não tem como crescer, mas se
olhar pra trás, se nós fizemos isso nós podemos chegar mais longe. Mas, porque, se
a televisão, aqui tem um grupo. No centro, a Sueli* faz uma, no Santa Felicidade, o
Pedro* faz uma, todo mundo quer apresentar a ideia do haitiano aqui. Eu tenho essa
possibilidade. Tem um grupo de haitianos aqui que já me chamou. Não tinha
ninguém, cara, e “você vai porque é o presidente da organização”. Se sempre tem
um grupo de Pinhais... de Curitiba, do Santa Felicidade, não tem como trabalhar.
Não tem como trabalhar. Nossa, é divisão, cara. A gente está pensando em fazer
outra coisa: fazer uma cultura intelectual. É uma coisa diferente. Não é todo mundo
que vai poder integrar, mas eu vou ver. Se no final de janeiro, quando chegar, pode
me chamar, entendeu? Aí a gente vai, junta, vemos o que podemos fazer com um
movimento intelectual para pensar sobre o futuro do povo aqui no Brasil, porque a
gente mal começou. Muito ruim. Ano passado, o Globo fez uma reportagem bem
legal no início e esse não teve nada. Tinha a Associação, Santa Felicidade, tudo a
mesma coisa, mas com divisão. Se fosse o contrário, acho que sim, melhor, cara.
Porque, no Chile, a comunidade haitiana, como posso dizer, ela cresceu mais que
aqui no Brasil. Até no Haiti a notícia fala sobre isso, entendeu? Um grupo do Haiti
que já foi para o Chile pra ficar. Aqui no Brasil vai demorar. Eu sei que a passagem é
cara, tipo, o custo, porque lá é mais alto, mas quando a gente assumir é mais fácil
da gente fazer essas coisas. Até quando, por exemplo, Sueli*, está no cargo
presidencial há quanto tempo? Ninguém sabe, parece uma coisa pessoal. Se tiver
uma coisa, um grupo, uma chapa, fazer eleição, a gente vai ver, tem uma política. Aí
a gente vai ver a Associação crescer, mas até aí vai demorar.
Otávio: Outra pergunta em relação a isso: você acha que as organizações de apoio
são importantes para construir uma identidade positiva de vocês aqui?
E6: Dessa maneira é ruim para mim. Não dá para mostrar.
Otávio: Como é hoje?
E6: Como é hoje é ruim.
Otávio: Você acha que as organizações têm mais atrapalhado do que ajudado?
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E6: Tem mais atrapalhado.
Otávio: Por quê?
E6: Eu estou falando mais da organização haitiana mesmo. Por exemplo a Casla,
está fazendo um trabalho que para mim é legal. Quando a gente tem um problema a
gente vai lá direto pra dar um conselho, onde a gente pode ir, entendeu? Tem muita
gente que não sabe, como iniciar um processo e a Casla pode ajudar. Caso
contrário, a organização haitiana atrapalha muito.
Otávio: Mas a organização, você diz, dos próprios haitianos.
E6: Dos próprios haitianos. É ruim, cara. É uma coisa pessoal. Até o Pedro*, eu não
gostei. Não, eu não gostei, cara. Não tem como colocar a cabeça junto pra fazer
uma coisa. Eu não gostei, cara.
Otávio: Então pra você a maior dificuldade está entre os haitianos por conta dessa
desunião?
E6: Isso, verdade.
Otávio: E aí você acha que a participação dos brasileiros nisso é integradora?
E6: Ajuda bastante, como eu falei, e não sei se tem haitianos dentro da Casla...
Otávio: Tem poucos. Que são da organização, não.
E6: Na Casla não têm haitianos?
Otávio: Não.
E6: É o que estou falando. O povo da Casla ajuda bastante, mas fora de tudo... a
organização haitiana aqui é horrível. Não tem como fazer nada, cara. Porque eu
lembro, uma vez, a gente pegou uma fala com a Prefeitura de Curitiba... Cara, eu
tinha projeto para montar. Eu falei com o prefeito, “Se você conseguir, cara, eu vou
te apoiar”. E não sei, cara, com quem eu vou falar pra fazer isso? Com o Pedro* ou
com a Sueli*, entendeu? Ontem eu estava num restaurante, churrascaria, eu fui
comer, e eu encontrei um grupo nigeriano lá que está fazendo uma programação
para o fim do ano. Ele fala: “com quem?”. “Tem Sueli*, tem Pedro*, tem o grupo de
Pinhais”. “Com quem eu posso falar?”, o cara me falou. “Não sei com quem você
pode falar”.
Otávio: Sempre as mesmas referências.
E6: É, cara, nossa... É foda, cara. Até um grupo do Boqueirão quer fazer a mesma
coisa, entendeu?
250
Otávio: Entendi. Beleza. Em relação a todas essas perguntas que nós estamos
conversando, qual a melhor ocasião para você manifestar o “ser haitiano”, a cultura,
a identidade haitiana aqui em Curitiba? Você consegue pensar em algo?
E6: Difícil. Porque eu conheço pouco sobre a cultura do Haiti. O que nós podemos
fazer. Porque aqui não tem como apresentar. Uma vez a Sueli* me chamou para
fazer uma coisa, mas só. É difícil de apresentar. Eu não tenho problema para
apresentar. Quando eu fui pela primeira vez na reunião de encontro do Haiti eu me
apresentei como haitiano, eu não tenho problema de falar essas coisas, eu falei que
sou do Haiti. Pessoalmente, é mais fácil para mim falar que eu sou do Haiti, mas em
um grupo apresentar o que é o Haiti é difícil.
Otávio: Tá. E você pode apontar para mim quais são os seus principais problemas
de comunicação que você encontra?
E6: Língua. Até hoje!
Otávio: Você fala super bem. Mesmo assim é uma dificuldade?
E6: É dificuldade, cara. Por exemplo, eu lembro, eu estava fazendo uma coisa
assim, igual no Le Monde, não sei se você conhece, um site de notícia,
reportagem... fala muitas coisas. Português não é minha língua. Cara, às vezes
vocês está procurando, como posso chamar... até escrever é difícil. A língua é um
problema.
Otávio: E dos haitianos em geral você acha que esse é o principal problema
também?
E6: Para mim, sim. Por exemplo, eu tenho um amigo que está quase oito dias lá em
casa, ele estava em Rio Branco e veio aqui só para esperar se a Federal vai chamar
ele. Ele fala bem e ele escreve muito bem. Ele está acostumado a falar inglês,
espanhol e até alemão ele pensa um pouco, porque o cara que tem uma habilidade
assim é fácil pra ele se adaptar com outra língua. Pra mim foi a primeira experiência,
além do francês na escola. Crioulo é minha língua maternal.
Otávio: Português é sua terceira língua?
E6: Imagina: outro país pra mim ficaria mais fácil agora. Espanhol, inglês... porque já
tenho experiência. Então o cara que não tem experiência nenhuma de língua vai ter
mais dificuldade para se adaptar. Para comunicação a língua é o mais importante.
251
Otávio: Última pergunta pra gente poder acabar: Hoje o mundo está mais
interconectado – informações, tecnologias, que contribuem para isso. Você acha que
esse mundo mais interconectado contribui ou ele prejudica a compreensão das
pessoas sobre o mundo?
E6: O Haiti está muito atrasado, né, sobre a educação. Eu não vejo problema da
educação, é um problema, por exemplo, a gente está atrasado, né, até o povo está
atrasado porque a educação está atrasada no Haiti. Aí você vai ver que de forma
geral... cara, eu não estou entendendo sua pergunta direito, não tem como
responder! Não tem como você poder fazer de outra forma para eu entender?
Otávio: Eu queria saber se esse fluxo de informação que a gente tem hoje, no que
ele ajuda e no que ele atrapalha, por exemplo. Ou se ajuda mais ou atrapalha mais
as pessoas. Porque assim: quando a gente tem muitas informações às vezes as
pessoas têm várias opiniões sobre tudo. Isso é positivo, negativo...
E6: Cara, se você está fazendo uma pesquisa, por exemplo, você está fazendo uma
pesquisa, você está pesquisando. Se tiver um fluxo de informações não vai ficar
melhor pra você? É assim que funciona. Se a gente tiver mais informações, por
exemplo, aqui tem uma menina que está fazendo um projeto sobre o Haiti e falou
que não tem como acessar as informações do Haiti, faltam muitas coisas. Eu falei:
“É normal”. A língua, as informações lá, a maioria é em francês e crioulo, não tem
um banco de dados como tem em português e agora o brasileiro está interessado
sobre o Haiti mais, entendeu? Era uma coisa mais diplomática antigamente e agora
você acha uma coisa mais social. Tem cara que me pergunta: “Onde fica o Haiti?
Qual a língua do Haiti? Como você vive no Brasil? De barco, avião?” Eu falei: “A pé”.
Cara, porque eu falei isso aí? Porque é o mínimo, é geografia! Um cara que está na
escola não tem como perguntar isso. Se você me pergunta uma questão, por
exemplo, “onde fica Santa Catarina?”, eu vou falar onde está. “Onde fica a França?”,
eu falo. “Onde fica Jerusalém?”, eu vou falar onde fica Jerusalém. “Onde está
Austrália?”, eu vou falar onde está Austrália porque é o mínimo de base na escola.
Eu sei que o Haiti é pequeno, mas “onde está o Haiti?”! Nossa, até eu fico frustrado,
cara. Onde fica o meu país?! Meu país não está aí... onde está o Haiti? Pra mim é
engraçado, cara. Onde fica o Brasil?! Imagina você, você está nos Estados Unidos:
“Onde fica o Brasil?”. Você não fica irritado, você não fica nervoso com o cara que
faz essa pergunta?
Otávio: No mínimo desapontado...
252
E6: Claro! “O que você diz, cara? O quê? Onde fica o Brasil?”. Você não vai
responder. Porque você vai imaginar o Brasil, o Brasil... todo mundo tem que saber o
que é o Brasil. Eu faria a mesma coisa. O mundo está interconectado, não é? Isso
ajuda bastante. Eu tinha vontade de deixar o Brasil pra ir à Austrália, aí, cara, eu
pesquisei e minha pesquisa estava bem legal – a pesquisa que eu fiz do Brasil –
porque tinha mais informações sobre a Austrália que eu achei. Uma interconexão,
né. Porque você pode ficar no Brasil e saber o que aconteceu lá no outro lado do
planeta. O Brasil está um pouco diferente. Você pode ver o mundo de três anos
atrás atrasado, né. Agora, com o fluxo de informações em qualquer lugar, um banco
de dados você vai achar o que você quiser. Tipo, não sei porque, em inglês, na
Austrália é mais avançado. O Brasil, na língua portuguesa, é mais difícil achar um
site com informações sobre o Brasil no Haiti, entendeu? É difícil achar um site sobre
o Brasil. Eu tenho certeza que, agora, muita gente no Haiti vai querer informações
sobre o Brasil, até eu estou com vontade de escrever, de fazer um blog pra falar
sobre a vida no Brasil, entendeu? Estou pensando! Estou pensando em falar sobre
isso, né. Porque essa ideia? Essa ideia é de Austrália mesmo. Eu vi um anúncio em
francês lá na Austrália para fazer um blog pra falar sobre a Austrália. Aqui também.
Eu conheço um cara que chama Dorival* - ele é brasileiro, paulista – eu estava
procurando e esse cara tem um blog de Youtube e ele tem um site com informações
sobre a Austrália. Um formato legal, cara! Eu achei bem legal.
253
ENTREVISTA (E7)
Idade: 30
Sexo: M
Estado Civil: Solteiro
Instrução: Superior completo (Direito)
Religião: Protestante
Profissão: Cineasta, Advogado
Ocupação: Professor língua
Cidade que veio: Gonaives
Quando e como chegou: Há 2 anos (Avião: Porto Príncipe – São Paulo).
Otávio: Eu queria saber qual foi sua principal fonte de informação para você chegar
até Curitiba, ao Brasil.
Entrevistado 7 (E7): Quando eu estava lá eu tinha alguns amigos que já estavam
aqui no Brasil e aí a gente conversava às vezes e como eu estava com vontade de
sair do país para estudar um pouco mais para fazer um mestrado, uma
especialidade em Direito Internacional, aí eu saí do país. Quando eu conversei com
alguns amigos eu falei que em primeiro lugar eu não estava em vir aqui para o
Brasil, eu tinha outro pensamento pra ir a outros países, mas depois eu conversei
com alguns amigos, eu decidi vir aqui. Eu fui na embaixada, eu fiz um pedido de
visto e aí quando eu consegui o visto eu decidi vir. Mas quando eu cheguei foi outra
realidade porque foi muito difícil para eu conseguir entrar na faculdade e trabalhar
aqui e pagar uma faculdade privada é muito caro, né. Não dá porque o salário
mínimo não dá pra trabalhar e pagar faculdade. Assim, pra estudar. E porque eu vim
aqui? Porque eu já tinha um amigo aqui e depois me falaram que essa cidade tem
muita gente formada e como eu estou com vontade de estudar é uma cidade legal
pra vir e estudar mesmo. É isso.
Otávio: Aqui você mora com amigos?
E7: Com amigos.
Otávio: E você conseguiu entrar na universidade?
E7: Estou.
Otávio: O que?
254
E7: Cursando direito.
Otávio: Aqui na Federal?
E7: Sim.
Otávio: Legal. Outra pergunta: Eu queria saber, em relação ao contato, às
conversas que você tem com amigos, tanto no Brasil quanto no Haiti, o que passa
na mídia, brasileira ou haitiana, é pauta de conversa de vocês, vocês discutem
assunto que está na mídia ou não?
E7: Sim, às vezes. Às vezes, sim. Por exemplo, têm alguns casos de haitianos que
estão morrendo aqui. Às vezes com facas, essas coisas assim, e a gente ficou
conversando sobre a insegurança que tem, como ninguém está seguro aqui,
entendeu? Às vezes a gente conversa sobre isso.
Otávio: Ah, tá. É mais quando tem o tema do Haiti aqui no Brasil, seja quando fala
de um haitiano ou sobre a política do Haiti, algo assim...
E7: Sim, porque gosto de Curitiba, gosto do meu país. E sobre as notícias do Haiti a
gente conversa sempre, né.
Otávio: Você tem celular, né?
E7: Sim.
Otávio: Qual o principal uso que você faz dele?
E7: O principal uso é conversar com minha família e meus amigos aqui pela noite.
Otávio: Você usa mais fazendo chamada, usa alguma ferramenta...?
E7: Chamada para o Haiti é muito cara! Messenger, Whatsapp...
Otávio: A internet, você tem? Você usa também? Qual a frequência?
E7: Uso, bastante, todo dia.
Otávio: E por que você utiliza principalmente?
E7: É meio para nós estrangeiros falar com a nossa família.
Otávio: E quais principais sites que você acessa?
E7: Pra conversar?
Otávio: Em geral.
E7: Em geral, o Google para fazer pesquisas e Messenger e Whatsapp.
Otávio: Beleza. Em relação ao Facebook, você tem?
E7: Tenho sim.
255
Otávio: Eu queria saber se você participa de algum grupo fechado, aqueles grupos,
comunidades, de imigrantes, haitianos. Você participa de alguma?
E7: Não sou um membro ativo, mas estou participando de alguns. Por exemplo,
quando têm alguns que tem uma publicação eu vi, mas não... não sou muito ativo.
Otávio: O que eles postam mais nesses grupos?
E7: Às vezes notícias do Haiti, sobre trabalho, sobre coisas assim.
Otávio: Aham. E aí você mais acompanha do que interage? Não é muito ativo?
E7: Não muito.
Otávio: Eu queria saber se você chegou a assistir algum vídeo, algum documentário
sobre os haitianos feito aqui no Brasil já?
E7: Sim.
Otávio: Qual que é?
E7: Têm alguns que eu vi que eu não gosto, têm alguns que são legais, mas não
lembro os nomes.
Otávio: O que diferencia de você gostar ou não? Quais as características que fez
você gostar ou não desses vídeos?
E7: Têm alguns que eu vi que não retrata a realidade. Algumas imagens são feias,
né. Como se o Haiti fosse um inferno, e eu não gosto, porque eu sei que todos os
países têm dificuldades, têm lugares bons, têm lugares ruins, têm favelas e tem tudo
isso também. Mas, não sei, porque têm alguns jornalistas que quando precisam de
entrevistas só pede coisas ruins e eu não gosto.
Otávio: Você falou que trabalha com cinema também. Você já teve a oportunidade
de pensar algum filme aqui no Brasil?
E7: Já. Vários filmes, documentários, mas não tem muita oportunidade. Os materiais
são caros, não tenho muita possibilidade de comprar os materiais, mas estou aqui.
Já participei em filmes, um curta eu participei como ator. É isso.
Otávio: Legal. Desculpa, quero voltar nesse tema do curta metragem: isso já está
veiculado?
E7: Ainda não, mas daqui a pouco vai.
Otávio: E como eles chegaram até você pra você ser o ator?
E7: Do mesmo jeito que você chegou em mim hoje! Com a professora Márcia*.
Tenho uns amigos aqui muito legais.
256
Otávio: Legal! Em relação a outros meios de comunicação como TV, rádio, jornal
impresso, você acessa algum, utiliza?
E7: Sim. TV, muito.
Otávio: O que você assiste mais na TV?
E7: Jornal da Globo, e jornal das 8 da noite.
Otávio: Jornal impresso você lê algum?
E7: Às vezes.
Otávio: Rádio...
E7: Rádio, não.
Otávio: Ok. Agora eu queria entrar um pouco na sua relação com as organizações,
tá? Uma das coisas que a gente já percebeu em algumas atividades culturais,
alguns eventos que são realizados junto com alguns haitianos, é que vocês utilizam
muito os celulares para fazer registros do que está acontecendo. Eu queria saber se
nesses eventos que você participou você também já fez isso, se costuma fazer
esses registros e, independente se sim ou se não, se você sabe que usos as
pessoas que fazem dão a esses registros.
E7: Eu nunca fiz, mas eu já fui a alguns eventos dos haitianos aqui porque eu estou
na faculdade e no projeto “português para estrangeiros”, estou na Associação dos
Haitianos e têm alguns eventos. Por exemplo, quando a gente vai ao museu com o
projeto eu tirei algumas fotos, algumas coisas assim, mas não gravei porque não
tem muitas coisas e o uso dessas gravações depende da pessoa. Por exemplo, têm
pessoas que gravam umas coisas assim pra escutar depois, tem o que colocou no
Face, mas depende da pessoa, né. Não posso dizer exatamente o que eles fizeram
com essas imagens.
Otávio: Eu queria saber se você percebeu, em decorrência dessas atividades que
as organizações realizam com esses imigrantes, você já percebeu alguma mudança
na forma dos brasileiros compreenderem o haitiano aqui na cidade?
E7: A verdade é que tem bastantes organizações que trabalham com imigrantes
aqui e não conheço todas, não participo de todas as atividades...
Otávio: Pode focar nas que você participou junto ao curso de idiomas.
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E7: Sim, sim. A aula de português ajuda muito os imigrantes haitianos ou outros
imigrantes. Não só haitianos, porque a gente conhece um pouco mais a cidade e
nessas atividades é um jeito pra fazer a integração dos estrangeiros na sociedade.
Otávio: Mas em relação aos brasileiros, você já viu alguma mudança? Você viu
alguma mudança de olhar em decorrência dessas atividades?
E7: A mudança de olhar, isso pode ser feito, mas as pessoas... tem gente que olha
mal para os estrangeiros por falta de informações – mas não é do sangue porque
quando era criança não estava assim – mas é da pessoa mesmo, não vai ter
mudança porque a pessoa é assim, entendeu? E nós esperamos que todos os
brasileiros verão os estrangeiros de maneira diferente, vai ter mudança de todas as
coisas, porque cada pessoa é uma pessoa e quando participo de alguns eventos é
não para os brasileiros de maneira diferente, é pra saber os meus direitos, o que eu
tenho que fazer para entrar na sociedade. É isso.
Otávio: E você acha que as organizações desempenham um papel importante para
ser construída uma imagem positiva do imigrante aqui?
E7: Sim, acho que sim.
Otávio: E o que é feito é suficiente hoje?
E7: Não é suficiente, mas as organizações trabalham muito. Muito, muito. E não é
porque eu participo do projeto de “português para estrangeiros”, mas para mim, não
vou dizer que é a melhor iniciativa, não vou dizer isso, mas pra mim é um, porque
com o problema da língua – é o pior problema que o estrangeiro pode ter em
qualquer país estrangeiro, né. Tem que tentar ajudar os estrangeiros com o idioma,
sim, acho muito legal e também a integração desses imigrantes aqui na faculdade.
Pra mim é muito bom o trabalho do projeto, acho muito legal, muito legal, pra uma
mudança na vida dos estrangeiros e para integração na sociedade porque todas as
pessoas querem ter uma vida melhor, mas sem o idioma – eles precisam de um
trabalho, trabalho bom – sem o idioma, a formação profissional não vai conseguir.
Com o idioma pode ter umas mudanças. Gosto muito do trabalho.
Otávio: Legal. Outra pergunta que eu ia fazer está relacionada a isso. Eu queria te
perguntar quais são os seus principais problemas que vocês enfrentam aqui no
Brasil de comunicação. Acho que a questão do idioma talvez seja uma. Além dessa,
você algum outro problema evidente?
258
E7: Pode ter, mas não lembro agora.
Otávio: Mas o idioma sim?
E7: A questão da língua é um problema.
Otávio: Essa pergunta está relacionada à ideia de identidade. Qual a melhor
ocasião para ser mostrado o “ser haitiano” na cidade? Existe uma ocasião que é
ideal para você?
E7: Têm umas datas muito importantes. A vitória do Haiti, no dia 18 de novembro,
que foi a última guerra da independência e o dia 1º de janeiro a data da festa da
independência do Haiti. Dia 18 de maio é o dia da Bandeira do Haiti.
Otávio: Você costuma fazer registros disso quando está em alguma dessas festas?
Já participou de alguma?
E7: Já. Participei com a minha banda em alguns eventos. Desde 2014, em 2015 a
gente participou... nos eventos.
Otávio: Qual é a tua banda?
E7: Recif Music.
Otávio: Você que é da Recif?! Ah, saiu no jornal uma vez e fiquei com ela na
cabeça. Todos os haitianos que eu entrevisto tem alguma relação com música!
Todos não, mas vários.
E7: Quase, quase todos.
Otávio: Por que a música... é uma referência pra vocês?
E7: Lá no Haiti é bem difícil pra entrar em uma família. Nenhum membro de uma
família não tem conhecimento da música, não sabe fazer música, essas coisas.
Otávio: Nenhum?
E7: É bem difícil. É bem difícil pra entrar em uma família que não gosta de música,
quem não faz música...
Otávio: É uma questão, não de status, mas de...
E7: Os haitianos gostam de música. Têm bastantes músicos aí haitianos, bastantes.
Otávio: Já percebi! Não é coincidência eu estar entrevistando vários, é porque é
assim mesmo...
E7: É.
Otávio: O mundo está mais conectado, as pessoas têm mais possibilidade de
contato e acho que vocês vivem bem isso conseguindo conversar com pessoas que
259
estão em outro país. Eu queria saber se esse mundo mais conectado ajuda ou
atrapalha mais pra que a gente possa compreender o mundo como ele é em sua
realidade?
E7: O que é importante... como eu posso dizer... Nada é perfeito para eu dizer que
isso é uma coisa positiva totalmente. Onde tem a positividade tem a negatividade,
né. Faz bem e faz mal, os dois são assim. A conexão ajuda muito as pessoas, o
mundo todo, mas não vou dizer que é totalmente bom, positivo, mas têm coisas
boas e ruins.
Otávio: Você tinha falado que algumas coisas que você vê você não gosta sobre os
haitianos, como os vídeos, por exemplo, e ao mesmo tempo você fala que assiste
bastante jornal. Isso pra você, como tem sido essa relação? Você tem esperança de
ter algo que seja passado ou você acha que isso vai continuar acontecendo e vai
atrapalhar vocês?
E7: Vai acontecer, vai continuar, mas eu não tenho muito problema com isso porque
eu já sabia que a vida mesmo é assim e tem gente que conversa comigo, por
exemplo, muito jornalista que conversa comigo só quer saber do terremoto e a
situação depois como é, mas eu nunca encontro alguém que me pediu... Têm alguns
lugares bons, têm turistas. Por exemplo, “se eu quero ir ao Haiti, quais lugares que
um turista pode ir?”. Essas coisas, não. Mas eu sei que é assim mesmo a vida, né!
Tem gente positiva que quer mostrar outra imagem. É isso, depende do interesse da
pessoa, o que ele vai fazer, o que ele quer fazer. Chegou um momento, eu falei...
Aqui, quase todos os estudantes das faculdades ou de outras faculdades que têm
trabalho para fazer, converso com quase todos, às vezes: “Ah, pode conversar com
o E7*”. (Risos). Quase todas! Mas chegou um momento que eu falei: “Não vou mais
fazer entrevista, não gosto mais”. Mas às vezes eu fiz porque têm alguns trabalhos,
por exemplo, têm algumas pessoas que têm alguns trabalhos para fazer e como eu
tenho hoje, pode não ser, mas vou precisar de ajuda de alguém para fazer um
trabalho da faculdade. Eu ajudo, ajudo, mas não é porque gosto muito, não. E
também poucos haitianos querem fazer entrevistas. Não sei se você já conversou
com haitianos: “Não vou, não gosto”. Poucas. É porque, às vezes, quando uma
pessoa tenta conversar com um haitiano e não quer, têm algumas pessoas que
falam: “Hum, fala com o E7*, ele te ajuda”.
Otávio: Já ficou com fama de entrevistado.
260
E7: O que gosto... Não posso olhar com lado ruim isso, mas também tem gente
trabalhando pra ajudar, pra dar uma imagem, pra mostrar outro lado, pra mostrar os
imigrantes de maneira diferente. Tem gente na esquerda, mas tem também à direita.
Otávio: Só pra terminar. Você falou de quatro atividades que você tem: você é
advogado – está estudando –, você é professor de idiomas, você é músico e você
trabalha com cinema – ator e diretor de cinema. Eu não sei se você pretende
continuar aqui no Brasil, mas, enfim, para os próximos anos, para sua vida futura,
como você se olha? Trabalhando com o quê especificamente...?
E7: A minha vida futura estou com muita vontade de fazer uma especialidade em
Direito Internacional, é isso. E depois eu estou com muita vontade de voltar para o
meu país, ficar e fazer minha vida lá. E estou aqui, na verdade, gosto do Brasil, vim
para o Brasil realizar o sonho de criança, porque quase todos os haitianos são
torcedores da seleção brasileira, e quando era criança falei: “Tudo que eu estou
trabalhando ganhando dinheiro eu vou para o Brasil”, mas minha vinda aqui é a
concretização de um sonho de criança, mas estou com muita vontade de voltar e na
minha vida aqui no Brasil, no ano que vem, quero fazer uma experiência no rádio,
música e cinema e depois, alguns anos, viver uma vida mais tranquila, né, porque,
não sei, depende da experiência, se é minha experiência aqui no rádio ou se é na
música, se é boa posso ficar, fazer minha vida como artista, mas se não já tenho
outro projeto, mas vou ficar sendo ator, produtor de cinema, qualquer coisa que eu
fizer na vida, porque música e cinema são as minhas paixões, entendeu? Se é
advogado, doutor, médico, qualquer coisa, eu vou ser artista.
261
ENTREVISTA (E8)
Idade: 31
Sexo: M
Estado Civil: Solteiro (tem filha)
Instrução: Graduando (Direito)
Religião: Protestante
Profissão: Professor
Ocupação: Auxiliar de remessa
Cidade que veio: Lagonave
Quando e como chegou: 1 ano e 3 meses (Avião: Porto Príncipe – Panamá – São
Paulo – Curitiba).
Otávio: Qual foi sua principal fonte de informação para você vir ao Brasil, vir pra
Curitiba? Foi uma pessoa que estava aqui e te falou, você ouviu falar sobre
Curitiba/Brasil por algum meio de comunicação ou você pesquisou até você escolher
esse destino?
Entrevistado 8 (E8): Pra vir aqui no Brasil, depois do terremoto que passou no Haiti
estava bem fraquinho lá, bem ruim e o Brasil ofereceu oportunidade para vir para cá,
mas eu vim para estudar e trabalhar por pouco tempo, mas quando eu cheguei a
realidade é muito diferente do que eu pensava. Eu tive que trabalhar pra ter todas as
coisas que a gente precisa e aí é bem difícil para eu estudar e trabalhar e agora eu
não sei, estou com certeza que eu vou fazer outra. Meu primo morava em Curitiba,
deram uma direção pra ele vir pra cá porque é difícil você vir para um país e você
não ter nenhum parente, nenhum amigo pra dar uma orientação, entendeu? E por
isso que eu vim para Curitiba.
Otávio: Você falou que quando você chegou aqui era diferente de como você
pensava. Essa percepção que você tinha do Brasil antes de vir pra cá foi construída
como? Pessoas que falaram... como você imaginava o Brasil sem ter vindo pra cá?
E8: A língua para mim é bem diferente porque nunca tinha ouvido, entendeu? Nunca
tinha ouvido o português. Então, aos poucos o Brasil... dá para acostumar com eles
262
a viver bem. A língua é minha maior dificuldade para acostumar, entendeu? As
comidas...
Otávio: Entrando em outra pergunta: O principal problema que você tem de
comunicação então é a língua ou tem alguma outra coisa que te dificulta?
E8: Na verdade o mundo inteiro tem preconceito e no Brasil também. Eu sou vítima
de preconceito.
Otávio: Em relação a que?
E8: Das pessoas que estão aqui.
Otávio: Com os haitianos que estão aqui?
E8: Não, com os brasileiros.
Otávio: Sim, mas os brasileiros têm preconceito com vocês, né?
E8: Sim.
Otávio: E você acha que é porque eles têm uma visão errada do Haiti?
E8: Preconceito, pra mim, é geral. É uma percepção que eles têm e aí... eles fazem.
Otávio: Eu vou voltar um pouquinho na questão dos meios de comunicação tá?
Quando você resolveu vir do Haiti se falava do Brasil lá nos meios de comunicação?
O que você sabia?
E8: Sobre o Brasil só sobre futebol. Mas uma coisa que eu sabia é que o Brasil
produzia muito café.
Otávio: Beleza, está bom. Em relação aos meios de comunicação aqui do Brasil e
os meios de comunicação do Haiti – televisão, jornal, internet – o que passa lá e o
que passa é tema de conversa com seus parentes que estão lá no Haiti, seus
amigos que moram aqui com você? Vocês conversam?
E8: Do Brasil ou Haiti?
Otávio: Em ambas as situações. Tanto daqui quanto lá.
E8: ...
Otávio: Primeiro aqui. Vocês discutem sobre o que está sendo falado ou não é um
tema que vocês conversam?
E8: Tenho preocupação com essa crise que tem agora, entendeu? Porque faz mal
pra todo mundo, essa crise faz mal pra todo mundo. E nós estamos procurando um
jeito pra acostumar o Brasil.
263
Otávio: O pessoal que está no Haiti ouve algo sobre o Brasil ou mais por vocês?
E8: Ouve, porque quando têm muitos haitianos que vêm pra cá eles ficam
preocupados com os parentes deles. Daí eles veem jornal, escutam algum jornal ali
para ver como que é essa situação.
Otávio: Ah, tá. E às vezes eles encontram coisas?
E8: Sim.
Otávio: Você tem celular, né? Qual o principal uso que você faz dele?
E8: Principalmente pra fazer ligação. Fazer ligação pra ficar conectado com meus
parentes no Haiti, pra ficar com as novidades do jornal, internet... Na verdade é pra
tudo.
Otávio: Você usa internet no celular também. E você usa a internet todo dia?
E8: Todo dia.
Otávio: E quais são sites acessa?
E8: Facebook. Quando entro no Facebook tem outro site que dá informações. Eu
clico pra abrir outro site, geralmente tanto faz. Se eu quero pesquisar, entendeu?
Otávio: Você usa bastante então a internet?
E8: Eu uso bastante.
Otávio: Você usa a internet para fazer contatos com sua banda? Pra negociar algum
show...?
E8: Sim, uso.
Otávio: Você participa de algum grupo de imigrantes, haitianos, no Facebook?
Esses grupos fechados, sabe?
E8: Eu participo. “Haitianos no Brasil”, eu acho.
Otávio: Nesses grupos que você participa, você interage na página, você posta
fotos ou você só acompanha?
E8: É raro.
Otávio: Mais vê o que eles estão falando.
E8: É.
Otávio: Você acha legal o que eles postam?
E8: Pra mim é legal.
Otávio: Esse grupo tem bastante brasileiro, não é?
E8: Tem.
264
Otávio: Você acha legal a participação dos brasileiros ou preferia que fossem só
haitianos?
E8: Eu acho legal.
Otávio: Por que?
E8: É uma questão de comunicação, entendeu? Quem que pode passar as
informações daqui, entendeu? É normal ter um grupo com eles.
Otávio: Esse grupo é bastante grande, né? Tem muita gente.
E8: Na verdade eu não sei muito do grupo, mas quando eles vão dar uma coisa,
curtir alguma coisa, eu vejo o que eles curtiram. Não deu muito tempo...
Otávio: Esse grupo “Haitianos no Brasil” está em português mesmo ou em créole?
E8: Na verdade eu não sei se é um grupo, acho que é uma página, uma coisa
assim. “Haitianos no Brasil” é uma página... é uma página? Deixa eu ver. Não, é um
grupo.
Otávio: É um grupo. Público. Que todo mundo pode entrar... ah, tá! É só esse ou
tem mais algum?
E8: Só esse.
Otávio: Beleza! E8*, eu queria saber se você chegou assistir algum
vídeo/documentário sobre os haitianos que estão aqui no Brasil, na televisão ou na
internet. Você viu alguma coisa?
E8: Não.
Otávio: Nenhum? Ok. Outra pergunta: – não sei se você percebeu nas festas que
vocês vão, que vocês tocam, como a Festa Latino-Americana – nessas festas,
normalmente os haitianos fazem muitos registros, com o celular na mão, da banda,
das apresentações e etc. Eu queria saber se você costuma fazer registros também e
como vocês utilizam essas imagens e esses vídeos depois?
E8: Faço...
Otávio: E como você utiliza esses registros depois? Para que?
E8: Para gravar e mandar pra alguém que pediu pra ver o que a gente está falando.
Pedem um videozinho pra ver como que ficam nossas atividades, por isso. Pra ver
como ficou o evento também. Pra chegar em casa e ver o que precisa corrigir,
entendeu? O que tem que fazer melhor, o que foi bom e o que foi ruim.
Otávio: Vocês usam esses vídeos para estudar a própria apresentações de vocês.
265
E8: É. Pra mandar a outras pessoas...
Otávio: Vocês têm alguma página que divulgam o trabalho?
E8: Tem.
Otávio: Qual?
E8: É Level Compa, no Facebook.
Otávio: Tem no Youtube?
E8: Tem... Tem um link no Youtube, na verdade.
Otávio: Mas o principal é a página do Facebook.
E8: No Facebook.
Otávio: Vou curtir lá então. Você é o administrador da página?
E8: Eu sou.
Otávio: E para vocês como é esse tipo de trabalho? O pessoal interage?
E8: Interage.
Otávio: Mais haitiano ou brasileiro também?
E8: Tudo. Haitiano, americano, francês. Aqui, “Level Compa”.
Otávio: Ah, mas aqui está com “C”. É com “C” ou com “K” o nome?
E8: Na verdade, eu fiz assim, mas é com “K”.
Otávio: Ah, tem que trocar então.
E8: Eu vou trocar. “K” é crioulo e “C” e francês. Significa a mesma coisa.
Otávio: O que significa “Level Kompa”? Kompa é um ritmo, né?
E8: Kompa é nosso ritmo. Level significa uma coisa que a gente pode fazer muito
bem, tem potencialidade pra fazer. Tem poder pra fazer, é tudo que a gente pode
fazer. É uma palavra assim.
Otávio: Em relação a esses eventos que você participa, depois deles terem
acontecido, você percebeu alguma mudança na forma dos brasileiros olharem
vocês?
E8: Pra mim, na minha opinião, brasileiros ficam muito fechados. Quando eles ficam
na rua ou alguns lugares ficam fechados, entendeu? Mas quando eles estão no meio
da gente, assistindo o que a gente pode fazer eles acham diferente do que eles
pensavam.
Otávio: Essas atividades são suficientes para que as pessoas percebem quem
vocês são de verdade?
266
E8: Não é suficiente, não é. É o que a gente pode fazer pra divulgar nossa
capacidade pra ficar boa, pra ficar boa, pra ficar um pouquinho famosa, pra gente
falar assim. Porque tem gente que vê diferente, tem gente que acha que a gente
vem aqui só para trabalhar, mas é diferente, tem outras coisas aqui que a gente
pode fazer muito bem.
Otávio: Como, por exemplo, o que?
E8: Primeira coisa: tocar música. Nosso ritmo é o Kompa, mas pessoalmente eu sou
cantor de rap. Eu tenho som lá no Youtube a amanhã, eu acho, vou fazer uma
apresentação lá no Piraquara. Pra estudar: a gente estuda... é humano. Humano é
questão de inteligência, é uma questão de poder fazer. A gente pode fazer tudo que
existe.
Otávio: Você disse que não é suficiente apenas o que é feito hoje. O que pra você é
realmente preciso ser feito para as pessoas enxergarem?
E8: É. Realmente temos que entrar na faculdade, estudar e integrar a sociedade do
Brasil, mas partir da sociedade do Brasil trabalhando em qualquer lugar. Qualquer
lugar que existir do Brasil. Pra ver como é nossa raça, entendeu?
Otávio: Entendi. Essas organizações que, de certa forma, têm apoiado os
imigrantes, seja com assessoria, ajudando a realizar festas, como a Pastoral e
outras organizações, você acha que essas organizações contribuem pra vocês
terem uma imagem positiva frente à sociedade ou você acha que não?
E8: O que eu posso dizer... A Associação dos haitianos você diz?
Otávio: Todas que trabalham com os haitianos. Até a Associação.
E8: Eles ajudam porque eles nos defendem nos direitos, recursos humanos. O
governo, principalmente, e todas as associações que existem para defender os
direitos humanos.
Otávio: Ajudar você concorda que ajuda, mas você acha que sem as organizações
é possível construir uma identidade haitiana aqui no Brasil?
E8: É difícil.
Otávio: Por que você acha?
E8: É difícil porque quando acontece alguma coisa, por exemplo, quando a gente
está trabalhando numa empresa, aconteceu uma coisa que merece uma orientação
jurídica precisa consultar os advogados que trabalham com direitos humanos,
entendeu? Eles fazem uma intervenção pra ajudar, pra deixar eles saberem que
267
preconceito não vale nada, na verdade, todo mundo é igual. Acho que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos fala sobre isso: todo mundo nasce igual e por isso
que no mundo inteiro existem associações, organizações que nos defende. É bem
bacana e eu acho que sem eles a gente não pode se organizar – fazer uma banda,
organização – entendeu? Pra mim eles contribuem muito.
Otávio: Mais duas perguntas pra gente acabar. Qual a melhor ocasião, na sua
opinião, pra vocês manifestarem o “ser haitiano” – a identidade haitiana – aqui na
cidade? Qual o melhor momento?
E8: O melhor momento pra mim, na minha opinião... você está falando de uma data,
de ocasião...?
Otávio: Tanto faz.
E8: É. Pra mim, a melhor ocasião é uma data histórica do nosso país. Quando vem
essa data a gente sempre comemora no Haiti. Quando vem essa data os haitianos
que estão vivendo no Brasil precisam comemorar também. Esse momento, para nós,
é um momento bem favorável... como fala...?
Otávio: Celebrar o ser haitiano.
E8: Isso. Pra fazer um...
Otávio: A essas datas você se refere ao Dia da Bandeira e à Batalha de Vertières?
E8: Batalha de Vertières, Bandeira e dia da liberdade... Independência.
Otávio: São as datas mais importantes para o Haiti, né.
E8: Mais importantes. Se não esquecer eu vou te falar para ajudar nós a dar uma
conferência no dia 1º de janeiro, se possível vai fazer. A gente quer dar uma
conferência sobre um pouquinho da história do nosso país. Na verdade, eles sabem
que o Haiti foi a primeira nação negra independente do mundo inteiro, é
interessante.
Otávio: E a segunda independência da América, né. Só depois dos Estados Unidos.
Isso é muito legal.
E8: É verdade.
Otávio: Você já fez registros dessas festas? 18 de novembro também tem aqui.
Você já participou de alguma...?
E8: Sim, no ano passado. Ano passado já participei, já fui tocar lá no lugar que foi
feita a Festa Latina.
Otávio: Verdade! A Festa Haitiana, né?! Foi 18 de maio esse ano.
268
E8: Mas a gente celebrou no dia 17 porque segunda-feira tem serviço...
Otávio: Segunda-feira ninguém vai. E quando vocês estão tocando você faz
registros, né?
E8: Faz.
Otávio: Como você já tinha falado. Uma última pergunta: Seguinte, o mundo hoje é
mais conectado pelos meios de comunicação, pelas tecnologias. Você acha que
essa conexão mais fácil hoje no mundo ela ajuda mais ou atrapalha mais pra gente
compreender o mundo como é na sua realidade?
E8: Você pode repetir a pergunta pra mim?
Otávio: Você concorda que o mundo hoje está mais conectado, né? Celular,
tecnologias, a gente consegue falar com alguém que está longe.
E8: Sem dúvidas.
Otávio: Você acha que ajuda mais ou atrapalha mais para as pessoas
compreenderem a realidade?
E8: Pra mim ajuda mais. Qualquer forma ajuda mais. É verdade que os aparelhos
que a gente usa têm consequências, mas ajuda mais.
Otávio: Beleza! Eu me esqueci de fazer uma pergunta. Era dos seus hábitos,
lembra? Eu me esqueci de perguntar se você assiste televisão?
E8: Não muito.
Otávio: Tá. Quando você assiste é mais o que?
E8: Mais jornal...
Otávio: Jornal impresso você lê?
E8: Não.
Otávio: Só da televisão. E rádio?
E8: Rádio, não. Me falta tempo, na verdade.
Otávio: Ah, é falta de tempo também.
E8: Mas eu trabalho em uma empresa e eu lia o jornal lá.
Otávio: Qual era? Gazeta do Povo?
E8: Gazeta e O Povo também.
Otávio: Ah, tá. Beleza, é isso!
269
ENTREVISTA (E9)
Idade: 23
Sexo: Masculino
Estado Civil: Solteiro.
Instrução: Ensino Médio completo.
Religião: Evangélico.
Profissão: Webdesigner.
Ocupação: Desempregado.
Cidade que veio: Porto Príncipe.
Quando e como chegou: Há 2 anos e 2 meses. Veio de avião e chegou por São
Paulo.
Otávio: Qual foi a principal fonte de informação que fez você vir ao Brasil, a
Curitiba? O que você ficou sabendo sobre o Brasil, o seu interesse de ter vindo para
cá ou especialmente Curitiba? Você falou do Sul do Brasil, como você criou essa
expectativa?
Entrevistado 9 (E9): Eu ouvi falar, lá em Belo Horizonte, que as pessoas do Sul
eram diferentes, mas eu não gostei do jeito das pessoas de Minas Gerais. Por isso,
eu mudei de estado.
Otávio: E por que você veio para o Brasil? Que tipo de informação te convenceu a
vir para cá?
E9: Em 2013, quando eu estava lá no Haiti, queria mudar de país. Eu queria morar
em um país rico, mas a oportunidade do Brasil subir, é fácil de conseguir um visto
permanente. Embarquei para cá. Eu vim para cá para estudar também, trabalhar.
Otávio: Você veio estudar o quê aqui?
E9: Engenharia Mecânica. Eu já fiz um vestibular em uma universidade particular, a
Universidade Anhanguera.
Otávio: Essa informação do Brasil como um país rico, você teve como? Mediante
informações, pessoas?
E9: Já sei que o Brasil não é um país rico.
Otávio: Mas você achava que era quando estava no Haiti?
270
E9: Não.
Otávio: Então você veio aqui por questões...
E9: Já sei que é um país emergente. Não tem muita diferença de um país pobre,
ocupado. Só algumas coisas que são um pouco diferentes.
Otávio: Em relação ao que passa na mídia, no Brasil ou no Haiti, você conversa
sobre isso com amigos e parentes, tanto daqui quanto de lá? Você assiste à
televisão, lê jornal e conversa disso com as pessoas ou não?
E9: A mídia é mais internet porque gosto de ler artigos.
Otávio: Artigos do que? Científicos?
E9: Não, científicos.
Otávio: Ok, que é da sua área, né. Você tem celular, né? Qual o principal uso que
faz do celular?
E9: Mais Whatsapp, Instagram.
Otávio: De fotos então. E essas fotos, você tira em que momentos?
E9: Essas fotos são apenas para negócio digital porque no Instagram você atinge
mais gente do que no Facebook. Tem foto que eu coloco no Instagram e tem 80
pessoas que curtem. No Facebook, pode ser 30, 20. Eu faço divulgação de alguns
produtos que eu vendo pelo Instagram.
Otávio: Então internet você usa no celular, né?!
E9: No celular e no notebook.
Otávio: E qual a frequência?
E9: Todos os dias.
Otávio: Você usa a internet principalmente para quê?
E9: Para conversar com a família, amigos, atingir pessoas, meu negócio digital, só
pra isso.
Otávio: O que são esses negócios digitais? Me explica, eu não sei direito.
E9: Vender e filiação de produto. Se você tem um Mac, esse Mac tem um código
que é seu. Se você vender esse produto, vai ganhar uma comissão.
Otávio: É uma espécie de revenda então.
E9: Isso, revenda.
Otávio: Você tem Facebook. O Facebook é uma das ferramentas que mais usa na
internet?
E9: Não, Instagram.
271
Otávio: Você participa de algum grupo fechado de haitianos ou de migrantes que
estão no Brasil?
E9: Não.
Otávio: Para que você mais usa o Facebook?
E9: Mais para conversar com amigos.
Otávio: Então, você não participa de grupos?
E9: Grupo eu tenho de minha igreja só.
Otávio: Ah, na igreja você tem? Esse grupo é de...
E9: Jovens.
Otávio: Mas têm mais imigrantes ou brasileiros?
E9: Só brasileiro.
Otávio: Em relação à TV, rádio, jornal. TV, por exemplo, você assiste bastante?
E9: TV não. TV e rádio são antigos.
Otávio: Jornal impresso...?
E9: Não.
Otávio: OK. Você está bem moderno! Você já chegou a assistir a algum vídeo ou
documentário sobre haitianos aqui em Curitiba?
E9: Aqui em Curitiba não, mas já assisti documentário de haitianos que chegaram
pelo Acre, acho que em 2010.
Otávio: Quem produziu?
E9: Não sei, mas é do Brasil.
Otávio: E o que você achou?
E9: Quando cheguei aqui, em 2013, eu já sabia a verdade sobre os haitianos que
chegam pelo Acre. São haitianos que chegaram à América do Sul, que estavam
morando no Chile, Peru e Equador. Na América Latina também. Eles decidem entrar
no Brasil, não sei como, se já existia outro haitiano morando no Brasil.
Otávio: Os modos como eles trataram o migrante você gostou do vídeo?
E9: Não, é muito feio.
Otávio: O que você achou feio?
E9: O jeito que eles entraram, o jeito que eles moravam. Para mim não é o jeito que
um ser humano deve ser, mas pra mim não é, não é.
Otávio: Vou fazer agora umas perguntas mais relacionadas às atividades das
organizações, da Casla, que você tem participado mais. No curso, a gente percebeu
que vocês faziam muitos registroa, filmavam bastante as atividades, os eventos, a
272
questão da bandeira haitiana. O pessoal usa muito o celular para registro. Você
costuma fazer isso também? E independente de fazer ou não, você sabe qual o
principal uso que o pessoal faz dessas fotos, desses vídeos que gravam?
E9: Eu gosto de fazer isso, mas você quer saber o que fazem com esse vídeo?
Otávio: Você guarda para você, compartilha com pessoas, posta no Instagram?
E9: Mais para mim. Mas se eu tenho outra pessoa, eu não vou guardar só para mim.
Se tiver irmão, vô, primo, eu vou compartilhar no Facebook, Instagram.
Otávio: Essas filmagens, você assiste de novo depois? Ou foto, você costuma ver
depois para lembrar ou só guarda?
E9: Guardo. É gostoso de ver de vez em quando.
Otávio: Essas atividades e eventos que as organizações têm feito, na sua opinião,
contribuem e mudam um pouco a forma dos brasileiros perceberem os haitianos
aqui?
E9: As atividades?
Otávio: Ou os eventos, as festas que existem...
E9: Aqui?
Otávio: Da Casla ou outra instituição.
E9: Na Casla, vocês são diferentes, o jeito é diferente. Basta haitiano gostar [de
algo] e vocês fazem. Vocês mostram que são humanos e têm humanidade. Em você
mesmo, eu vejo algumas coisas verdadeiras, o lado que você tem verdade, que você
se mostra pessoa humana. Vocês incentivam. O curso que vocês fazem é bom
também. Vocês me ajudam muito, no que vocês podem fazer.
Otávio: E em relação aos outros brasileiros, que não fazem parte das organizações?
Por exemplo, as organizações contribuem para vocês terem uma imagem positiva
aqui na cidade, frente a essas pessoas?
E9: A Casla é uma boa maneira de apresentar os migrantes e refugiados. Vocês têm
uma coisa diferente. Alguns lugares que eu já fui, as pessoas são fechadas. Não é
um jeito que alguém deve ser.
Otávio: Você acha que os brasileiros são fechados?
E9: Não. Não são todos. Não é esse assunto que eu queria entrar. Mas eu não
participo muito das outras organizações, só na Casla, mas eu não sei dizer se eles
são bons, mas a Casla faz a diferença.
Otávio: Você acha que as atividades que as organizações têm feito são suficientes
para construir uma imagem positiva de vocês na cidade ou é preciso mais?
273
E9: Suficiente não é a palavra. Já encontrei bastante brasileiro que impediu de me
ajudar aqui e em Belo Horizonte. Não é sobre a Casla que eu vou falar, mas depois
vou falar sobre o assunto que você me pediu. Eles falam comigo “qualquer coisa que
você precisar, pode falar comigo”. Mas se eu vou pedir pra eles o que eu vou
precisar? Se me pedir qualquer coisa eu posso pedir pra você. O que eu quiser. Mas
tem brasileiro que faz isso comigo, eu acho que vou pedir para fazer um cheque
para mim de 50 mil reais. O que ele vai falar? Só ele fazer o cheque pra mim e vai
na minha conta. Eu falei pra ele: “Eu vou pensar”. Quando eu fui à minha casa para
pensar sobre isso, eu nunca pedi isso pra ele. Porque eu olhei e analisei algumas
coisas dele e ele não vai conseguir me dar esse dinheiro. Tem brasileiro que,
quando eu cheguei aqui, veio me trazer roupa. Todas as roupas que eles trouxeram
para mim, eu coloquei na garagem. Eu não usei. Se a Casla pode fazer mais? Os
haitianos são muitos aqui, mas o que poderiam fazer para eles? Colocar eles em
empresas, contratar quem não tem trabalho, mesmo salário que eles vão receber é
muito pequeno. Só isso que pode ser um pouco suficiente.
Otávio: Você acha que se tiver uma inserção melhor dos haitianos no mercado de
trabalho, isso melhora a forma de ver vocês?
E9: Não.
Otávio: Eu queria entender melhor essa coisa da imagem, das pessoas de fora
olhando vocês, como vocês sentem isso.
E9: Um trabalho que fico mais aqui é um trabalho de promotor. Vejo muito eles
acharem que vêm para roubar o trabalho deles. Isso não vai melhorar muito. A
imagem dos migrantes e refugiados não é o lado de bastante brasileiro olhar, mas se
eles veem o migrante, vão achar que veio para roubar o emprego. Tem brasileiro
que vai ser alegria, mas tem quem não vai ser.
Otávio: Na sua opinião, qual o melhor momento para você manifestar o ser haitiano,
a identidade haitiana?
E9: Não sou uma pessoa cultural. Eu sou evangélico e têm algumas coisas que eu
já mudei faz tempo.
Otávio: Você pode citar algum exemplo?
E9: Já nasci numa família evangélica e nós não celebramos a festa da bandeira na
nossa família, mas é uma coisa cultural para nós.
Otávio: Por que vocês não celebram?
274
E9: Porque nossa bandeira tem um significado cultural. Assim, nós celebramos a
bandeira, tanto de nossa casa, nós sabemos que isso é contrário com nossa fé. Por
isso, que outros haitianos, se eles querem mostrar que são haitianos, tem uma festa
da bandeira, tem 1º de janeiro também que é festa da Independência...
Otávio: Vocês não comemoram essa festa?
E9: Nessa festa, nós comemos uma comida diferente, cada 1º de janeiro. Só a
comida, que nós fazemos em casa. Mas para outros haitianos, que é cultural, que
têm uma cultura do Haiti, podem mostrar isso. Para mim, só quando vou falar com
outro haitiano na rua, que vai ter brasileiro lá é que vai saber que sou haitiano.
Otávio: Como alguns desses momentos vocês não celebram por motivos religiosos,
existe algum outro momento que, aqui no Brasil, você consegue mostrar o “ser
haitiano”? Dentro das possibilidades que você oferece a você mesmo?
E9: Tem isso, mais na igreja que tem esse tipo de momento. Mas aqui nunca [em
Curitiba]. Em Belo Horizonte, quando meu pai foi a uma igreja para pregar a palavra,
eles pregaram em crioulo e um irmão traduziu.
Otávio: Aquele foi um momento que as pessoas entenderem o “ser haitiano” através
do idioma. E se fosse escolher um principal problema de comunicação que você tem
no Brasil, qual falaria?
E9: Eu não tenho um grande problema de comunicação. O que eu tenho é minha
língua nativa que é um problema pra mim, de ter o sotaque. Você vai ver, quando
outro estrangeiro vem para cá, mesmo se morar aqui dez anos, vai ter um sotaque
diferente do brasileiro nativo.
Otávio: O idioma.
E9: O idioma.
Otávio: O mundo hoje está mais conectado, isso é um fato. As pessoas têm mais
contato, ligar no celular, Whatsapp. Na sua opinião, esse mundo mais conectado
ajuda mais ou atrapalha mais para as pessoas compreenderem o mundo como ele
é, nas suas realidades, diferenças?
E9: Ajuda mais. A comunicação é mais fácil. Se agora acontecer uma coisa na
França, você vai saber na hora. Se acontecerem coisas no Haiti, você vai saber na
hora.
Otávio: Essa distância não pode atrapalhar? Às vezes, a comunicação acaba
fazendo muitos “ruídos” e a gente entende aquilo de uma maneira errada? Você
acha que isso acontece?
275
E9: Acontece, mas isso é opinião. Isso não atrapalha muito, isso é opinião de cada
pessoa. Se uma coisa acontece na França, isso vai atrapalhar as pessoas que tem
família francesa aqui. Mas não vai atrapalhar muito o brasileiro nativo. A
comunicação é boa, a coisa de internet é muito boa. As palavras vão com uma
velocidade e isso ajuda muito.
Otávio: Você tem bastante expectativa em relação à internet, pelo o que eu
percebo, por conta do seu trabalho. Você se vê no futuro trabalhando aqui com isso?
E9: Eu vejo, mas sou um cidadão do mundo. Não vou ficar num lugar fixo.
Otávio: Você pretende voltar para o Haiti ou ir para outro país?
E9: Para o Haiti, só para passear. Agora se eu vou sair do Brasil para ir para outro
país, agora eu não sei te dizer. Mas eu estou aqui e vou analisar como vou fazer
isso.
276
ENTREVISTAS DO TIPO QUALIFICADA
ENTREVISTA (EQ1)
Idade: 34
Sexo: M
Estado Civil: Solteiro
Instrução: Pós-graduação strictu sensu
Religião: Católica
Profissão: Religioso
Ocupação: Pastoral do Migrante
Cidade que veio:
Quando e como chegou: Fevereiro de 2014
Otávio: Qual a principal fonte de informação dos haitianos quando eles chegam à
Pastoral? Como eles conseguem essas informações?
Entrevistado Qualificado 1 (EQ1): Acho que eu não posso dizer que existe uma
fonte de informação, assim, estabelecida pelos migrantes chegar até nós, mas só eu
sei que cada migrante que já passou aqui, mas até agora eu não sei como eles
acharam a primeira informação. São fontes de informação para os novos. Pode ser
que os que primeiro que chegaram aqui acharam essas informações, desde a sua
chegada ao Acre. Dependendo da cidade de destino desse imigrante, se esse
imigrante vai para Curitiba, há um centro de atendimento aos migrantes. Lá eles
podem transmitir a vocês algumas informações. Uma fonte de informação pode ser
Acre, outra fonte de informação pode ser São Paulo. Então, o lugar onde o migrante
chegou, antes ou pela primeira vez, já o orienta. Porque se o migrante quer ficar no
Acre a questão não vai ser divulgada, mas se quer sair a pergunta vai ser: “para
onde você vai? Para Curitiba, para São Paulo?”. Ela já tem um ponto de referência
em Curitiba ou São Paulo. Então é sempre o lugar que acolhe antes que é fonte de
informação, mas não sei se os coiotes também têm informações dos centros, pode
ser que sim, pode ser que não. Sabemos que eles são pessoas informadas, que
talvez busquem informações para fazer esse trabalho de encaminhamento.
277
Otávio: Essas fontes de informações são muito mais interpessoas do que mediadas
por tecnologias, então?
EQ1: Sim, claro.
Otávio: Pensando nas tecnologias de comunicação, pensando desde celular, até
televisão, celular, rádio... há alguma muito utiliza pelos imigrantes aqui no Brasil? Ou
alguma mais usada, pelo menos?
EQ1: A mais usada é o Whatsapp, né... o celular. Pelo celular eles fazem
comunicação rápida agora. Antes do Whatsapp era o Facebook, que era o
responsável, via internet, computador e telefone. Com esses meios eles passam
comunicados rápidos para seus familiares ou seus amigos, que seja. Mas o mais
usado é o celular.
Otávio: E o principal uso que eles dão ao celular, Whatsapp?
EQ1: A primeira finalidade é para comunicar. Mas com quem? Comunicar com as
famílias, amigos e também para comunicar algumas informações a respeito da
situação deles. Pode ser sobre a documentação deles, para a questão do trabalho
ou para buscar informações, via Whatsapp ou Facebook. Por exemplo, nós estamos
fazendo agora um grupo para comunicar com eles e com esse grupo eles podem
também buscar informações com a gente. É assim: para comunicar e buscar.
Otávio: Quais as formas de comunicação que a Pastoral tem com os imigrantes?
EQ1: A primeira forma de comunicação que temos com os migrantes é verbal. Eles
têm que chegar até nós e nós passamos informações e também a outra pode ser
através da mídia, quando vem um jornal aqui até nós, a televisão... rádio... a gente
aproveita também para comunicar aos migrantes algumas coisas boas pra eles e os
serviços que estamos desenvolvendo para eles. Assim, comunicamos o que temos
para eles, nessa dimensão da acolhida. Então esse contato com a Pastoral nos
comunicamos e também através do jornal, da rádio, televisão, nos comunicamos
também. Mas não sei se eles escutam a rádio, se têm um amor para a televisão ou
talvez o canal que transmite essas informações. Nós comunicamos, mas não sei se
eles buscam onde estão essas informações. E, acho que atualmente com vocês,
estamos vendo a parte da comunicação, do Whatsapp – mais rápida e mais fácil
para eles – já tínhamos no Facebook, graças a sua ajuda, informações e onde nós
278
divulgamos muitas coisas, porque sabemos que eles buscam informações via
Facebook e o Facebook é um mundo que se abre para todos. Acho que nós
estamos vendo nos últimos anos que é preocupação para nós saber onde o
migrante busca a informação para a gente poder estar nesse lugar e divulgar a
informação para ele. Como já falei antes, eu acho que eles estão mais no Whatsapp.
Será que é somente isso? Precisamos saber para poder divulgar mais.
Otávio: Interessante. E como o senhor avalia a comunicação da Pastoral com os
imigrantes haitianos?
EQ1: Eu avalio essa parte da comunicação da Pastoral, assim que... como estamos
fazendo é um pouco limitada. Acho que nós temos que abrirmos mais, divulgar mais
informações. É limitada no sentido de que eu posso fica somente esperando o
migrante via Whastapp. Acho também que eu posso começar a escrever se eles têm
este amor para a leitura... escrever também no jornal, colocar algumas coisas no
Google para eles terem acesso a mais informações. É limitado porque não pode ser
somente assim verbal, esperando que eles venham aqui para comunicar, mas
também colocar informações onde eles estão. Eu avalio que é um pouquinho
limitado, mas temos que consciência que podemos fazer mais coisas para divulgar,
para comunicar com eles.
Otávio: Mudando um pouquinho, falando um pouco das atividades que a Pastoral
faz – os eventos, as festas. Dessas atividades que a gente tem realizado com eles,
tem algum tipo de feedback que os haitianos trazem?
EQ1: Eu tenho ouvido sobre as atividades que nós realizamos, à luz da experiência
deles coisas positivas que a festa foi boa. “Nossa, que atividade!” “Nós gostaríamos
que sempre houvesse esta atividade porque é bom para a gente se divertir...”.
Então, e queixas como é sempre atividades boas: “O tempo é curto, não é
suficiente...”. E você, acho que já tem experiência, nós organizamos atividades com,
às vezes, três partes: a parte religiosa, a parte cultural e a parte gastronômica. E a
parte que interessa mais aos imigrantes é, começando pela parte gastronômica e
indo até a cultural. E, na parte cultural, eles estão esperando mais tempo. A
atividade deveria ser mais comprida porque é a parte que eles mais gostam. Então a
avaliação deles vem da parte que eles experimentaram, a parte cultural, que é boa,
a comida também é boa, mas talvez nós perdemos a parte de antes. Bem poucos
279
dizem que a missa foi boa, porque eles veem a parte que mais lhes interessam, que
é a parte cultural.
Otávio: Como que essas atividades que a gente tem feito influenciam na construção
da identidade dos haitianos aqui no Brasil? Há uma influência? E se há, como?
EQ1: Há. Como... Como, nós estamos trabalhando a parte da integração dos
migrantes. Acho que cada vez que organizamos uma atividade assim onde
oferecemos espaço para eles mostrar as culturas, isso é um grande passo. Os
valores culturais deles, porque chegando aqui o povo que acolhe não os conhece,
mas através dessas atividades culturais dá para o povo conhecer alguma coisa
deles. Assim, com essas atividades realizadas pela Pastoral eles estão se
integrando, se inculturando e também estão, ao mesmo tempo, convidando o povo
que acolhe a aceitar estes valores culturais. Aceitar esses valores culturais é
também chamar o povo que acolhe a abrir o coração para uma melhor acolhida.
Então seria uma aculturação. Não é que o povo que acolhe está perdendo sua
cultura, mas está entrando na cultura do diverso, do outro, para poder conviver com
o outro diverso. Então essas atividades seriam para facilitar uma convivência
multicultural. Acho que isso influencia muito a comunidade. Quando organizamos
não é por puro prazer de organizar, mas para poder chegar a esta finalidade que é
convivência multicultural dos povos, do povo haitiano que chega e do povo brasileiro
que acolhe e também os outros povos, como os latinos que estão chegando ou que
já chegaram.
Otávio: E esses objetivos que o senhor está falando de repente seriam a principal
finalidade da Pastoral dos Migrantes?
EQ1: Sim, sim. Seria isso porque a Pastoral deve acompanhar para formar para o
protagonismo, para a pessoa ser o sujeito da sua própria realização, pois nós não
vamos estar sempre ao lado do migrante. O migrante, depois de um tempo, tem que
ser capaz de fazer seu caminho. Nós damos um apoio para ajudar e depois o
migrante tem que caminha sozinho. E, por isso, acho que criar um ambiente onde
tem fraternidade e união dos povos é legal e isso é um dos objetivos da Pastoral.
280
Otávio: Mais uma pergunta sobre a identidade, como o senhor percebe a identidade
haitiana é vista na sociedade de Curitiba e como essa identidade haitiana é vista
pelas organizações de apoio aos haitianos? Há uma diferença de olhar?
EQ1: Acho que a primeira imagem, de qualquer haitiano que está aqui é sempre
assim: ele é um imigrante. Com essa informação eles querem transmitir muitas
coisas que, às vezes, não bate com o nosso conceito de imigrante. Quando essa
imagem, ou quando talvez a entidade, a organização, ou seja, que não usa muito a
Pastoral... porque a Pastoral não fala aqui que o haitiano é somente imigrante, mas
também pessoa humana, com dignidade, mas não sei como eles estão usando essa
imagem do imigrante... eu não sei o que eles querem dizer. Pode ser também que é
um imigrante e isso quer dizer que é um imigrante e isso quer dizer que é uma
pessoa que está em busca de uma vida melhor... Outros podem dizer que é uma
pessoa sem casa, sem trabalho; pode ser também uma pessoa vulnerável, porque
muitas organizações usam assim para dizer o que é o haitiano imigrante e nós, da
Pastoral, o haitiano imigrante é uma pessoa humana que quer viver com sua
dignidade e plena dignidade. Porque quando você diz “a organização usa o haitiano
em busca de uma vida melhor” você pode oferecer para ele um trabalho, acho legal,
outro também pode ficar só na parte do assistencialismo, dar um pão, pensando que
o problema já está aí resolvido. Não, acho que nós dizemos que é uma pessoa com
dignidade. Além do nosso trabalho de acolhida estamos vendo como o migrante
pode se integrar sabendo como os valores culturais do lugar que acolhe: a língua,
ter um lugar onde pode viver como pessoa humana, um trabalho, poder se
comunicar com a família, ver como viver com a família... toda a dimensão da pessoa
a nível psicológico e não só afetivo... nós estamos vendo tudo isso. Quando o
migrante sofre já sabemos porque estamos vendo o imigrante como pessoa
humana, não como uma pessoa em busca de algo. Um cachorro também pode estar
na rua em busca de algo. O que você oferece para ajudar esse cachorro, por
exemplo, a viver como cachorro, mas se é uma pessoa humana o que você oferece
para ela viver como pessoa humana? Acho que é a imagem de um migrante deve
ser bem vista e analisada. O imigrante é uma pessoa e isso é importante. É uma
pessoa! Pessoa humana com dignidade e tem que viver...
Otávio: E a sociedade? Será que, na sua opinião, ela enxerga isso?
281
EQ1: Depende, né. Depende com que tipo de lentes essa sociedade está olhando.
Se está olhando com as lentes, com uma visão teológica de que o migrante é
pessoa humana, criada a imagem e semelhança de Deus, acho que está bem
enxergando, mas se está enxergando com outro tipo de olhar pode cair no perigo da
discriminação, do preconceito, de tudo.
Otávio: E a mídia?
EQ1: A mídia também. Ela faz uma pergunta: “Por que você veio aqui ao Brasil?”. É
sempre uma pergunta assim, é a pergunta mais comum da mídia. Sim, é curiosidade
de saber porque o imigrante vem. Acho que não deveria ser a primeira pergunta.
Deveria ser: “Quem é você?”. Acho que a primeira pergunta deveria ser perguntar a
identidade da pessoa. “Quem é você?”. A pessoa vai contar sua história e a partir da
história, sem fazer essa pergunta “Por que você veio?” captar o motivo da vinda. A
resposta já está aí na pergunta. Porque a mídia está vendo a pessoa como
imigrante, aquele que vem como imigrante e não como pessoa. Não é somente o
pobre que imigra, mas a migração pode ser uma coisa voluntária ou uma pessoa
que vai estudar pode sair também do seu país para buscar um ensino melhor e
porque sou muito fechado eu posso dar só uma resposta: “Eu vim aqui para
trabalhar”. E não é somente para isso, não resolve o problema.
282
ENTREVISTA (EQ2)
Idade: 33
Sexo: F
Estado Civil: Solteira
Instrução: Doutoranda (Letras)
Profissão: Professora
Ocupação: Professora
Otávio: Eu queria perguntar, de início, quando os haitianos chegaram aqui até
vocês, qual a principal fonte de informação deles? Ou a própria chegada em Curitiba
e depois procurando a instituição de vocês, quais as principais fontes de
informações que eles têm até chegar onde...
Entrevistado Qualificado 2 (EQ2): Você diz informação sobre o curso?
Otávio: Pode ser sobre o curso, sobre a cidade também, as informações que eles
mais têm atuais, pode ser sobre o curso específico.
EQ2: Então, no início quando não existia essa rede, que a gente trabalha no
programa, na Universidade, não só no projeto, eu acho, como eu comentei com
você, era muito do curso especificamente via Casla e o boca a boca e o que era
interessante que a gente começou a perceber no decorrer do tempo é que quando
eles chegavam eles preenchiam uma ficha de inscrição como nivelamento pra gente
saber que turma eles iriam e uma das perguntas era: “Quanto tempo você está no
Brasil?”. E a gente começou a perceber que era um pouco isso, boca a boca, porque
ao mesmo tempo chegava pessoa que estava há um ano, seis meses ou até mais, a
gente começou a ver muitas pessoas que chegaram ao Brasil há uma semana, três
dias e teve vários casos que chegaram, inclusive, há um dia ou no mesmo dia que
eles estavam ali fazendo o curso. Então pra gente isso chamava muita atenção no
sentido que nem tinha dado tempo ainda dele ir até alguma agência do trabalhador
ou, enfim, dessas coisas primeiras, da Polícia Federal, desse movimento primeiro
mesmo, muitas vezes eles estavam já ali por uma rede de conhecidos que já
levavam eles para o curso, né. Quando a gente via que ele já estava uma semana,
três dias, há dois dias eles já estavam no sábado ali pleiteando uma ficha e isso se
283
traduz um pouco, talvez, nessas informações da cidade, que a gente percebia que
eles tinham conhecimento muito grande, na grande maioria, sobre questões relativas
ao trabalho. Então muitos sabiam, sim, onde tirar carteira de trabalho, já tinham feito
isso pela agência trabalhadora, a grande maioria já tinha passado por lá, da Casla
muitos conheciam, da Pastoral do Migrante, enfim, mas ao mesmo tempo
pouquíssimo conhecimento da cidade em termos culturais. Por exemplo, mesmo de
espaço físico mesmo, quando a gente sempre ia fazer uma atividade – porque a
gente tem varias atividades de integração que a gente leva eles pra alguns lugares –
, então quando a gente tentava referenciar isso na própria reunião com a
Associação, “Ah, Praça Santos Andrade... Teatro Guaíra”. Não, ninguém sabia, ou,
“o Largo da Ordem, a feirinha, o centro antigo”... Eu lembro isso claramente que não
tinha esse pertencimento da cidade, essa informação da cidade enquanto cidadão
pertencente.
Otávio: Em relação a Curitiba vocês chegaram a descobrir, ter essas informações
com eles de quando eles estavam no Haiti porque que eles chegaram aqui em
Curitiba, qual era o conhecimento que eles tinham das cidades, porque vieram pra
cá?
EQ2: A grande maioria já tinha algum conhecido aqui, então de novo essa relação
do... tanto que pra gente é bem claro, os dados que a gente levanta do projeto que
agora já chegou essa segunda leva, agora mulher veio, irmão veio, primo veio, então
já está nesse segundo, de 2013 pra cá, por exemplo, pra gente é bem mais claro até
pelo aumento de mulheres no curso que antes quase não existia, a gente já
consegue perceber essa segunda fase, assim, desse fluxo haitiano. Então a grande
maioria quando eu comentava era porque tinham conhecidos aqui...
Otávio: Faz sentido. Vocês percebem o uso intensivo de alguma tecnologia de
informação que eles usem mais, que está sempre presente ou que eles conversam?
EQ2: A grande maioria é do celular, eu diria assim, mas o que a gente também já
percebeu que pra gente era uma dificuldade quando eles estavam na lista de
espera, ou quando a gente queria dar alguma informação, é que eles compartilham
o celular com o grupo muitas vezes, então não tem o celular da EQ2*, mas tem o
celular da casa. Então a gente ligava pra chamar um aluno que estava na lista de
espera, mas ele estava trabalhando e esse celular estava com outras pessoas. Não
sei se é essa a pergunta, mas do celular a gente percebe e daí como a gente
284
começou e também a gente procurou. Foi interessante o caminho que se deu
porque a gente foi fazer aula de currículo no laboratório de informática e a gente
percebeu que muitos não tinham quase esse letramento digital, não tinham e-mail e
tinham dificuldade mesmo em lidar com o computador por mais simples que fosse a
atividade. Daí a gente chegou a contatar o professor Alberto*, que é da Informática
aqui da Federal e convidar pra ele participar do projeto. Então, desde o começo de
2014, ele com os alunos de informática do grupo teste de informática – eles dão
aulas de informática da 1 e meia às 3, antes da nossa aula de português que
começa às 3, nos dois laboratórios, ali na Letras – e o legal foi que eles relatam isso
pra gente em relação a essa questão da tecnologia, que, claro, é bem heterogêneo,
têm pessoas realmente não tem nenhum letramento digital, não tem e-mail, alguns
mais, mas sempre a primeira coisa ali que eles pedem é pra ensinar ou pra
disponibilizar tanto Facebook, quanto e-mail porque eles querem se comunicar com
a família, com quem está no Haiti. Isso, no ambiente do projeto cresceu também, de
fazer uma conta de e-mail, de postar, de entrar no Facebook. Ele sempre dá um
tempo, porque muitos só têm computador aqui, enfim, então tem também esse canal
de... eu me lembro também que ele relata de... coisa bem simples assim, do que
está acontecendo na cidade, de ferramentas que eles podem usar na internet pra
ver os e-mails gratuitos, o que está acontecendo, isso acontece também ali na aula
de informática.
Otávio: Ah, legal... Uma pergunta em relação à comunicação dessa questão de
vocês ligarem às vezes pra avisarem de alguma coisa e ligam nos celulares,
independentemente das pessoas, mas há esse processo. Além desse processo
comunicativo pelo telefone há alguma outra forma de comunicação entre vocês e os
migrantes?
EQ2: Hoje em dia a gente já chegou em alguns caminhos porque no começo
realmente isso foi muito difícil. Os e-mails eles não respondiam, a gente nem sabia
se eles abriam, porque na ficha tinha né... e-mail, telefone, enfim. Então a gente ia
para o e-mail e voltava ou não respondia. E-mail era catástrofe. Aí celular muitos
caiam em caixa postal, quais os horários de trabalho, às vezes a gente conseguia
deixar recado com alguma pessoa que a gente não sabia também e, hoje em dia,
posso dizer que com as pessoas que melhor consigo me comunicar é, ou por
Whatsapp, porque daí alguns deles têm, né, têm algumas redes que eu sei, e pelo
Facebook, no sentido que a gente tem uma página do projeto no Facebook, do
285
PBMIH. Então eu sei que a grande maioria dos nossos alunos estão na página
porque a gente posta as fotos deles, dos eventos culturais, a gente divulga as
pessoas do projeto. Ali a gente sabe que eles olham, eles respondem por ali e pelo
Facebook mesmo. Hoje em dia, por muitos terem curtido a página a gente acaba
conseguindo falar com eles por mensagem, até meio hilário, mas é o jeito que mais
funciona hoje em dia quando a gente precisa falar.
Otávio: Mas há interação no Facebook, por exemplo, eles acessam a página?
EQ2: Sim, não posso dizer que todos, mas vários, porque eles comentam, a gente
sabe por causa disto. “A gente foi ao Teatro Guaíra ver a orquestra” daí a gente
coloca umas fotos deles lá, daí muitos comentam a foto e de um evento que a gente
fez agora com a, em relação ao grupo lá de dentistas, também foi um evento
diferente pra eles terem atendimento odontológico, foi um evento bem grande,
alguns escreveram ali para confirmar horário quando eles tinham alguma dúvida
sobre o que a gente tinha passado. Então a gente percebe que ali é muito mais do
que... E hoje em dia também, é um ponto importante na comunicação é que, nesse
ano que a gente começou em 2015, foi o primeiro ano que a gente começou a fazer
o atendimento na sala 28, ali na Santos Andrade todos os dias da semana porque
até então eles iam sempre aos sábados e os haitianos faziam a ficha de inscrição.
Tudo isso lá mesmo, paralelo às aulas, e esse ano a sede do programa, que é esse
Política Migratória Universidade Brasileira, onde o PBMIH está dentro junto com
outras áreas, a sede do programa é na sala 28. Então a gente da Letras, do curso, a
gente tem um rodízio de atendimento todos os dias lá e os alunos já sabem disso
também, porque lá tem assessoria jurídica pra eles, tem atendimento da psicologia
se eles quiserem... acabou sendo uma sala da universidade pra eles. Então, hoje em
dia, a gente sabe que muitos vão pra lá quando tem alguma dúvida ou querem
informação, então acaba que esse ano acho que foi que isso cresceu, assim da sala
28 ser uma referência de informação pra eles.
Otávio: Eu queria que você falasse um pouquinho dessas práticas, elas parecem
ser bem interessantes. Pelo que você comentou há um feedback deles, há um
retorno desses migrantes em relação a algumas atividades que vocês fazem por
exemplo, vocês colocam as fotos lá no Facebook ou em algum outro meio de
comunicação e eles comentam, curtem. Você pode falar um pouquinho sobre quais
286
são esses feedbacks que vocês recebem, qual é a maioria do tom da conversa, o
que eles falam mais?
EQ2: Sempre no final do ano a gente faz um questionário de satisfação do que eles
mais gostaram, menos gostaram, material, enfim... e pra gente é muito claro, a
grande maioria, 100%, sempre falam muito dessas atividades culturais que a gente
promove. São das mais variadas possíveis: até ir para o museu, a gente foi à
orquestra, assistimos exposição, shows, esses eventos fora que a gente organiza e
esses são os que eles mais comentam. Eu digo que eles comentam porque eles não
falam muito sobre a aula. Então acho que são duas frentes bem grandes que
chegam pra gente: uma são comentários bem positivos destas saídas, com as fotos,
extraclasses, digamos, de coisas que a gente promove e outra muito no sentido de
pedir vaga que, hoje em dia, para os haitianos, a gente tem nove turmas, com vinte
alunos em cada. Já passou do máximo que a gente consegue de fato, é muita gente,
a gente atende quase 200 pessoas – haitianos – porque a questão de língua
também tem esse limite por sala pra que todos consigam falar. Não adianta eu dar
aula de língua pra 70 pessoas, né, isso não funcionaria. Então pra eles isso é difícil
um pouco de entender, sabe. Então, muito que chega pra gente também é “eu já me
inscrevi”, “eu preciso fazer curso de português”, “eu preciso, eu preciso, eu preciso,
por favor, pelo amor de Deus” e a gente sempre tenta explicar um pouco isso da
questão do número máximo de alunos, da questão que precisa ter professor
qualificado pra dar aula pra eles e que a gente já está atendendo bastante gente,
que a gente não consegue atender todo mundo. Então, o que chega pra gente
bastante feedback por atividades, atividades culturais quem já está no curso, essa
questão pedindo vaga e também por a gente ter uma lista de espera grande dessas
aulas dos haitianos a gente acabou fazendo um sistema de que se você faltar três
vezes seguidas você perde sua vaga e a gente chama alguém da lista de espera.
Então, também algumas vezes o nosso setor, porque o que a gente tem de
comunicação é um pouco esse aluno que faltou três vezes e depois de dois meses
ele aparece e daí ele não tem mais a vaga e ele tenta também entrar em contato
com a gente na sala 28 ou ali mesmo no sábado tentando recuperar essa vaga e
não querendo entrar de novo nessa fila. Acho que esses são os maiores temas,
digamos, da comunicação com a gente hoje em dia. Acho que poderia ser essas três
esferas, né. Não falando de sala de aula, obviamente, do que aparece ali, da
demanda deles em sala de aula é outro... mas acho que não te interessa muito, mas
287
é um outro. Em relação a preconceito, o que eles sofrem, a sala de aula acaba
sendo um espaço terapêutico, nesse sentido, porque eles confiam nos professores
que estão ali, porque estão bastante tempo, porque sabem que estão fazendo
alguma coisa por eles e eles veem de alguma forma que está ajudando, que o
professor acaba sendo essa ponte com o mundo, da cidade, de levar aos lugares,
de dar dicas. Como a gente tem hoje em dia essa rede dentro da Universidade das
migrações pela Cátedra, que é esse programa, a gente acaba também, muitas
coisas que surgem em sala de aula, redirecionando. Então pra eles isso é muito
positivo, diferente o que acontece em outras instituições. Surge em sala, que é
sempre exemplo clássico: surge em sala questões trabalhistas. A gente não vai
resolver aquilo. Não, não que nos compete, mas a gente vai encaminhar ele para o
pessoal do Direito do nosso programa pra levar isso naquele horário, pra falar com
aquela pessoa, pra encaminhar isso, surge uma questão de documentos, surge uma
questão que a gente percebe muito forte que a gente acha que a psicologia podia
ajudar. A gente vai encaminhar. Então, sala de aula, acho que é muito esse espaço
de desabafo, do preconceito.
Otávio: Eu queria entrar um pouco no tema da identidade dos haitianos. A primeira
é como que essas atividades que vocês realizam, acho que primeiro as atividades
que vocês fazem pra além da sala de aula, mas também o espaço da sala de aula
que é uma atividade, enfim, ou que vocês caracterizam mais no ensino da língua...
Como é que essas atividades, sejam elas de sala de aula, sejam elas fora, essas
idas ao museu, enfim, as atividades culturais, como é que elas influenciam na
construção da identidade desses imigrantes aqui em Curitiba?
EQ2: É uma questão bem delicada que a gente se debruça bastante na área de
língua dessa questão da identidade que está em constante construção. O que a
gente prioriza muito, acho que isso é bem claro paro grupo como um todo, é a
valorização da cultura deles. Essa integração nunca é vista como uma imposição –
uma assimilação – da cultura brasileira, mas que a gente sempre tenta mostrar que
isso é um movimento mútuo, que nós temos que estar abertos, mas que vocês
haitianos também precisam estar abertos a essa nova cultura, novos códigos
culturais e que a construção é justamente isso. Então em sala de aula e nas
atividades também a gente sempre propõe nos nossos finais de ano a gente sempre
convida eles. Então, no Dia da Bandeira do Haiti a gente sempre faz, em relação aos
288
materiais didáticos mesmo, a gente vai falar de biografia a gente vai pegar, sei lá, o
Jacques Roumain que é um escritor super famoso do Haiti ou figuras importantes da
cultura deles porque isso muda de fato a aula. Quando a gente vai dar uma música
brasileira, agora no intervalo têm vários grupos que já relataram que deixam eles
mexerem no computador: “passa uma música do Haiti, então”. Pegar também esses
artistas e incorporar. Enfim, valorizar um pouco essa história também do país.
Alguns eventos que a gente promove, é justamente pra isso, né... quando a gente
promoveu o cinema haitiano lá na Cinemateca com debate. Também pensando
nessa valorização dessa cultura que agora é nossa também ou mesmo do ciclo de
leitura pegando autores haitianos, convidando os nossos alunos pra ler o original
creole e depois traduzirem para o francês, pra gente traduzir para o português. Mas
ao mesmo tempo a gente percebe que precisa dessa abertura deles também, que
isso é bem trabalhado em sala de aula porque é um país que eles não escolheram
estar, a grande maioria, e talvez nem quisessem estar. Então a mesma coisa
acontece com a língua, é uma língua que eles precisam aprender, mas não
necessariamente eles querem. Então, essa rejeição é um contexto de aprendizagem
também peculiar, eles precisam daquilo, mas eles rejeitam, eles não se sentem
parte, então na formação de professor a gente trabalha isso muito. Esses eventos
culturais, essa ideia de integrar, mas pra eles é clara também, então a gente vai ao
Teatro Guaíra e têm as fotos. Então a gente tem 100 negros juntos no teatro inteiro
branco e claro que isso surge em sala de aula e a gente tenta resgatar, a nossa
história também e mostrar isso. Porque eu falo um pouco de tentar criar esse novo
“nós”, e agora, o que é esse nós? Somos todos que estão aqui nesse momento, que
estamos em constante construção de identidade sempre, que eles não precisam, pra
pegar a cultura brasileira, deixar a deles. Eles precisam se abrir pra que eles
consigam assimilar algumas coisas também nesse novo momento, desse novo
contexto.
Otávio: Perfeito. Em relação a identidade desses haitianos, dois olhares. O primeiro
olhar: como é que você percebe que vocês, enquanto organização, olham essa
identidade haitiana, como é que vocês conversam, pensam isso? Acho que já está
um pouco inserido na sua fala nessa pergunta anterior. E como é que você vê
também o olhar que a sociedade, Curitiba e a opinião pública em geral, as pessoas
que não têm o contato com o migrante, têm esse olhar sobre essa cultura imigrante
289
do haitiano? São olhares similares, são muito diferentes, são diametrais? Como você
avalia isso?
EQ2: Eu acho que pra gente é um pouco claro, a gente está dentro da Universidade,
convivendo com esse público há dois anos, enfim, a gente tem um interesse também
muito grande de troca de aprendizado. Então, acho que hoje em dia eu posso dizer
que têm muito mais coisas que nos aproximam do que nos diferem quando falam
que “essas pessoas”. Então acho que não, acho que a gente tem muita similaridade,
acho que a gente tem uma admiração, nós, enquanto grupo, grupo de estudos,
muito grande pela história do país. Foi o primeiro país em que aboliu a escravidão e
isso é muito forte. Já surgiu em vários debates nossos, na postura deles em sala de
aula, essa questão do negro não ser diferente. Acho o que acontece muito aqui no
Brasil, sem generalizar, mas nessa posição mais submissa e que pra eles eu
percebo, a gente percebe em sala uma postura muito mais de confronto e de se
colocar e “não sou um coitadinho”. Então acho que a gente tem, pela nossa visão,
eu acho que é diferente. Mas ao mesmo tempo, claro, que quando muitas das ações
do projeto surgiram no final do ano passado, por exemplo, bem clássica quando saiu
na mídia grandes atos de preconceito, de violência bem sérios e a gente se sentiu
quase que obrigados, enquanto instituição, a fazer algo a respeito, mas não de uma
forma agressiva, eu digo, claro que a gente escreveu uma carta em nome do projeto,
por exemplo, quando saiu a reportagem na Gazeta no final do ano, mas também a
gente promoveu um evento na Praça de Bolso do Ciclista no fim do ano onde a
nossa ideia era justamente mostrar essa identidade, essa cultura, essas pessoas,
para que as pessoas pudessem conhecer e então, aceitar. Porque o que a gente
percebia, ou percebe, é que muitas das pessoas não entendem direito mesmo o que
os haitianos estão fazendo aqui, o que aconteceu no Haiti ou mesmo a questão
migratória no geral, não param para refletir sobre isso e julgam. E a partir do
momento que elas conhecem, que esse evento foi um pouco nessa direção, a gente
viu sim uma aceitação positiva das pessoas que estavam ali, que nunca... “ah, mas
tem haitiano aqui?”. Porque eles são um pouco ainda invisíveis. Hoje menos, mas na
época ainda era mais invisível e a nossa idéia era justamente aflorar, mostrar que
eles estavam aqui e que são como a gente, tem coisas que aproximam e mostrar
essa cultura, essa identidade. Chamamos a banda a noite pra tocar, comida, a sopa
do ano novo pra eles fazerem, a Emília* falou: “A gente queria que tivesse esse
momento da fala e também ter músicas e coisas brasileiras” e a gente mostrou. A
290
gente fez um curta com os alunos pensando justamente nisso, foi nesse contexto
que a gente quis fazer. “Quais são seus maiores medos”, são coisas que são
sentimentos que a gente queria pensar que qualquer cidadão tem, independente da
condição dele social ou de nacionalidade, né; “Qual seu maior sonho?”, “seu maior
medo?”, enfim, justamente pra tentar aproximar. Eu vejo hoje em dia, infelizmente,
também pelo momento que a gente está passando da sociedade em geral, algumas
manifestações bem negativas, tanto de preconceito, de xenofobia, violência, mas eu
vejo um movimento contrário de algumas pessoas não tendo entendimento, e a
partir do momento que tem algum certo tipo de entendimento, algum tipo de contato,
se abrem também pelo próprio projeto. Então, quando a gente foi lá no Guaíra pedir
pra levar numa orquestra, enfim, também deles abrirem esse espaço, de
fornecerem, a partir que a gente foi lá e explicou o contexto do projeto, explicou
porque essas pessoas estão aqui, qual que era o objetivo, de poder fazer essa
história diferente, pra que eles não ficassem em guetos, que eles pudessem
pertencer a cidade, pra contribuir, pra não ter esse ódio em longo prazo. Então, a
gente também viu várias aberturas que, a priori, a gente não tinha certeza que isso
ia acontecer. Então, todos os espaços que a gente tentou no início foi muito bem
acolhido, com entradas gratuitas, que a gente está falando de um numero de 150
pessoas, grande número para as instituições. Agora eu acabei de apresentar uma
proposta também para uma rádio que está começando agora da Funpar, que é a
rádio universitária, pra inserir vinhetas falando sobre a questão migratória no sentido
de informar. Eu acredito muito que se as pessoas tiverem um mínimo de noção do
que esta acontecendo, a chance delas aceitarem ou olharem de uma forma diferente
é um pouco maior, né. Na nossa página do Facebook a gente começou também há
alguns meses a colocar relatos bem positivos, de puxar pra essa coisa, então de
mostrar como uma pessoa comum, de criar algum tipo de elo de aproximação, de
identificação. Então, a gente pega nossos alunos: “Ah, ele gosta de fazer tal coisa”,
“a rotina dele é assim”, “ele gosta disso”, “faz isso no fim de semana”, enfim, de dar
voz um pouco, né, o projeto tem um pouco essa ponte.
Otavio: Queria fazer uma pergunta em relação a isso, porque já acabou, mas eu
tinha interesse nesse tema. Vocês fizeram aquele documentário, eu assisti ele, e a
página de vocês também é bastante atualizada e em cima dessas informações que
vocês colocaram, vocês viram necessidade de vocês produzirem peças
comunicativas. Qual foi o principal motivo? Dentro de tudo isso que você falou, mas
291
a mídia convencional não estava dando conta, ela não dá conta de fazer com que as
pessoas, porque você falou que as pessoas ao conhecerem mais o preconceito ela,
pelo menos, repensa os preconceitos dela. A mídia convencional sozinha não dá
conta?
EQ2: É, não da conta, eu diria assim. A nossa experiência por mídia muitas coisas
extremamente negativas, de mostrar os problemas um pouco ou muito estudo de
caso - um cidadão que faz isso, isso, isso. Mas a gente não percebia muito o
movimento da mídia no sentido de mostrar as coisas positivas, as contribuições
mesmo ou de cobrir um evento desse, porque a gente sempre convidou. Então nos
procuram muito mais quando parece que o haitiano foi chamado de macaco, banana
e foi agredido, isso repercute muito mais do que uma ação que a gente faz para os
haitianos de atendimento dentário ou que valorize essa autoestima ou na Praça de
Bolso onde a cultura deles, estava todo mundo dançando junto, monte de brasileiro
e monte de haitianos dançando junto e eles falando coisas positivas do Brasil e dos
brasileiros. Esse lado um pouco mais positivo e menos sensacionalista, não sei, não
me parece...
Otávio: Você acha que a mídia tem focado mais nisso?
EQ2: Pelo o que a gente vê, sim. Ou neste fato de como é difícil essa vida aqui, mas
não valorizando muito as ações que tão acontecendo positivas, não só da
universidade, mas quando a gente está dentro desse mundo das migrações você vê
quantas ações também paralelas estão acontecendo, como é uma rede, como têm
pessoas se mobilizando, como tem esse movimento contrário. Então acho o que
aparece muito, é claro que tem efeitos positivos, por exemplo, a Prefeitura mesmo
se coloca muito claramente na página dela à favor. Claro, muitos comentários alguns
positivos e muitos de um teor bem forte, agressivo, mas no geral, não sei se eles
têm uma voz de fato na mídia de uma forma mais positiva, não vejo isso na verdade.
292
ENTREVISTA (EQ3)
Idade: 36
Sexo: F
Estado Civil: Solteira
Instrução: Ensino Superior Completo (Advogada)
Religião: -
Profissão: Advogada
Ocupação: Advogada
Otávio: Eu queria saber qual que é a principal fonte de informação dos haitianos
quando eles chegam aqui até o atendimento com vocês na Casla. Como é que eles
chegam aqui, como é que eles ficam sabendo da Casla, ou, no Brasil, também,
como é que eles ficam sabendo de Curitiba? Como é que são essas fontes de
informação deles até chegar aqui, têm referências mediáticas, são mais relações
interpessoais, vínculos pessoais... Como que é isso?
Entrevistado Qualificado 3 (EQ3): São relações interpessoais e também os órgãos
públicos e instituições que encaminham esses migrantes para a Casa Latino-
Americana. Então, por exemplo, Polícia Federal encaminha Consulados,
Universidades, Vereadores, Deputados Estaduais, acabam encaminhando os
imigrantes para a Casa Latino-Americana. Nos países deles, alguns já conhecem,
mas por conta dessas relações interpessoais. Alguns conhecem já o trabalho da
Casla.
Otávio: Ah, tá, nos próprios países também.
EQ3: Isso, algumas pessoas, né.
Otávio: E, você sabe como é que é essa chegada deles em Curitiba, o
conhecimento deles sobre a cidade, o que vocês têm ouvido?
EQ3: Eles vêm muito por conta das Pastorais do Migrante e por conta do
empresariado. Os empresários que acabam trazendo eles para o Sul, por conta da
mão de obra, infelizmente, né, a mão de obra barata.
Otávio: E, você acha que isso no Sul, é mais evidente que nos outros estados?
EQ3: Sim, vêm muitos pro sul, pra Santa Catarina, Rio Grande do Sul.
293
Otávio: Eu queria saber se você percebe, se alguma tecnologia de informação,
comunicação é mais presente na vida dos haitianos, na forma mais intensiva e, se
você percebe isso, que uso eles dão a essas tecnologias?
EQ3: É, a gente percebe que eles utilizam muito o celular, o Whatsapp, eles se
comunicam muito por meio desta ferramenta. Email não muito, mas o celular,
bastante. Eles se comunicam muito com seus familiares via Whatsapp. É mais
celular.
Otávio: Como é que você avalia a comunicação, a interação dos imigrantes entre si,
dos haitianos entre si, aqui em Curitiba, e dos haitianos com a Casla ou com as
organizações em geral – porque você tem atuação em mais de uma organização: a
OAB, também no caso. Como é que você avalia esses dois tipos de interações de
comunicação?
EQ3: Então, a interação com a Casla é grande, do grupo de haitianos e de outras
nacionalidades. Mas, eles se comunicam mais entre eles, eles não têm essa
interação maior com o brasileiro. Essa é uma preocupação nossa, por que, o que
nós somos contra na Casa Latino-Americana é a formação de guetos. Então nós
procuramos essa inserção social, essa interação com os brasileiros.
Otávio: Você acha que a interação que os haitianos têm com os brasileiros é mais
uma interação com os brasileiros que estão nas organizações?
EQ3: Sim, mais com os brasileiros que estão lá.
Otávio: Em relação aos outros imigrantes, você acha que a questão dessa ideia de
gueto, embora existindo ou não, mas essa tendência de gueto é mais presente com
os haitianos do que outros ou não?
EQ3: Não, acho que de forma igual. A gente observa essa formação de guetos em
relação a outras nacionalidades: nigerianos, congoleses, senegaleses. Mas nós, na
Casla, lutamos contra isso... a formação de guetos. Porque o objetivo da Casla é a
integração dos povos.
Otávio: E a comunicação dos haitianos entre si, como é que você percebe isso?
EQ3: A comunicação entre eles é boa, eles procuram sempre andar em grupos, é
muito pela questão da segurança, e a comunicação é boa entre eles.
294
Otávio: Eu queria saber se vocês receberam algum tipo de feedback dos haitianos,
das atividades que a Casla tem organizado ao longo desses anos, em relação à
eles, com eles, para eles, o que vocês recebem de feedback deles?
EQ3: Num primeiro momento, eles agradecem muito, essa oferta dos cursos, o
apoio para suas festas, festas dos seus países. Eles agradecem e continuam
conosco nesse diálogo, solicitando esse apoio para suas festas pátrias e outras
atividades.
Otávio: Eu vou entrar um pouquinho no tema da identidade. Eu queria saber como é
que esses eventos, essas atividades que a gente tem feito, como elas influenciam
nessa construção da identidade dos haitianos aqui em Curitiba?
EQ3: É importante, porque, por exemplo, o curso que nós ofertamos: “Direitos e
Inclusão Social, os aspectos jurídicos, culturais e psicossociais”. Esse curso foi
importantíssimo porque eles conhecem, eles têm a oportunidade de conhecer a
cultura brasileira, conhecer um pouco dos seus direitos e isso favorece muito a
questão da inserção social e favorece... faz com que eles interajam mais com o
brasileiro, justo nesse sentido de conhecer a cultura.
Otávio: Eu esqueci de uma aqui: Quais as formas de comunicação que a Casla
têm? Para chegar até os haitianos?
EQ3: Eles vêm, num primeiro momento, porque nós trabalhamos com várias frentes,
mas o principal em relação aos migrantes e refugiados é a assessoria jurídica
gratuita. Então, num primeiro momento eles vêm porque a Polícia Federal
encaminha e outros órgãos, então eles vêm para regularizar sua situação no país,
para procurar seus direitos, que seus direitos sejam assegurados, muitos trabalham
na construção civil e em outros locais e seus direitos, por exemplo, seus direitos
trabalhistas não são assegurados. Então, eles vêm procurar os advogados. É uma
primeira comunicação que nós temos e temos os núcleos que são importantíssimos,
que é o Casla-Psico, o Casla-Com, que é o núcleo de comunicação da Casla, que
também é uma ferramenta que auxilia nessa interação com os refugiados e
migrantes, não só haitianos.
Otávio: Então, você avalia que a principal forma de comunicação que a Casla tem
com esses imigrantes parte de uma premissa interpessoal, de contato, deles
295
contarem problemas, histórias de vida e a Casla contribui de alguma forma, aí, é um
primeiro momento e, depois, é um primeiro vínculo.
EQ3: Sim, exato. Sim, um primeiro contato.
Otávio: Como é que você percebe e como a sociedade de Curitiba percebe a
identidade haitiana. Como é que Curitiba, a cidade, o cidadão médio, vê esse
imigrante haitiano, a partir da identidade dele, o que é que ele é?
EQ3: Infelizmente, o brasileiro, ele ainda não conseguiu assimilar a questão do
imigrante e, em geral, o brasileiro, é difícil ele assimilar o diferente. Então, nós temos
muitos problemas em relação a esta questão por conta do preconceito, do racismo,
da xenofobia. Muitos brasileiros não entendem que esses migrantes vêm para o
Brasil porque no seu país estão passando por perseguições religiosas, políticas,
étnicas, porque seu país vive uma guerra civil, um conflito armado e as pessoas não
se colocam no lugar do outro. E isso é o principal problema, então, os migrantes
sofrem muito preconceito e, principalmente a incidência maior no Brasil é no Sul do
país. Porque nós temos as colônias, as comunidades de alemães, italianos,
poloneses, ucranianos e essas comunidades têm um maior obstáculo, uma maior
dificuldade para assimilar novas culturas, novos migrantes.
Otávio: Como é que a Casla, enquanto organização, vê essa identidade, dos
haitianos?
EQ3: A Casla sempre trabalhou com a questão da integração dos povos. Então,
como princípio, nós temos a solidariedade dos povos, o respeito às culturas, o
respeito à identidade, nenhuma cultura é superior à outra e temos essa visão de que
todos somos irmãos.
Otávio: Para terminar, você falou da “guetização”, se tem um pouco a ver com isso,
da identidade, como a Casla vê, você pode aprofundar esse tema? A Casla ela é
resistente em relação a essa ideia de guetização, pode aprofundar mais sobre isso?
EQ3: É que essa questão de gueto é onde você aprofunda, você segrega, você
aprofunda essas diferenças e, a Casla, a gente pensa totalmente o contrário. A
Casla tem como objetivo, como “missionê”, a integração dos povos. Então, você
criando guetos, é uma forma de segregar os povos.
296
Otávio: E você acha que as organizações têm um papel fundamental para construir
uma identidade mais positiva, mudar a forma como se tem visto?
EQ3: Sim, organizações que trabalham em prol dos direitos humanos, elas têm um
papel fundamental para essa integração, para essa inserção social, dos migrantes,
dos haitianos em específico.
Otávio: Sem as organizações, seria mais difícil para os haitianos?
EQ3: Sim, sem as organizações seria muito mais difícil.
297
ENTREVISTA (EQ4)
Idade: 35
Sexo: F
Estado Civil: Solteira
Instrução: Superior completo e cursando Fisioterapia
Religião:
Profissão: Secretária Executiva
Ocupação: Cuidadora
Cidade que veio: Vallières
Quando e como chegou: 5 anos e meia (Avião: Porto Príncipe – Curitiba).
Otávio: Qual a principal fonte de informação dos haitianos até eles chegarem aqui
em Curitiba e também em relação a maioria dos haitianos, pra eles chegarem em
Curitiba como é esse processo normalmente?
Entrevistado Qualificado 4 (EQ4): O processo certo, a pessoa tem que pedir visto
lá na embaixada do Haiti.
Otávio: Mas, em relação à informação, como eles ficam sabendo de Curitiba,
porque vêm pra Curitiba?
EQ4: Outras pessoas dão informação, porque, talvez, têm alguns que têm amigos,
têm família que já está em Curitiba e fica com eu fiz é uma coisa que é um contato
mais de amigo. Tem amigo no Face e está conversando: “E como é sua cidade que
você está?” Começa a perguntar e a pessoa vai explicar, dizer que está bom, está
melhor ou está ruim e se é ruim a pessoa vai perguntar para outros amigos e vai em
outra cidade. Mas se tem, como no início Curitiba que estava mais ou menos e
chega bastante. Saiu de São Paulo e tem notícia e tem alguns também quando a
gente pergunta: “Mas você vem sem saber, não tem ninguém aqui? Eu falo: “Ah, eu
estava no caminho com eles e dizer que vem pra Curitiba e eu falei, eu venho junto”.
É assim.
Otávio: Essa vinda para o Brasil, porque Curitiba é muito específico para o Brasil
como um todo. O interesse dos haitianos de vir para o Brasil, está certo que teve
muitos acordos, facilidades para os haitianos virem pra cá, mas, o interesse é
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motivado mais por pessoas, familiares, amigos que já estão aqui no Brasil e chamam
os amigos que estão no Haiti pra vir? Ou há também, como por exemplo, uma coisa
da mídia, que fala do Brasil como possibilidade?
EQ4: Sim, no início é isso e, depois divulgado que o Brasil abriu a porta para os
haitianos conseguir visto humanitário depois do terremoto e a Presidente Dilma fez
um acordo junto com o governo lá para conseguir visto humanitário e saiu na lei do
Brasil que os haitianos têm direito para conseguir visto humanitário. E não só o
Brasil que fez isso, no início tem o Canadá também que facilitou se a pessoa tem
família lá no Canadá e facilita as coisas. Mas quando eles sabem já tem prazo e
fechou e tem o Equador e outras cidades que as pessoas no Haiti não precisam de
visto para entrar e entra sem visto na Argentina, sem visto. Mas, mesmo o Brasil
abrindo a porta precisa ir à embaixada porque tem uma burocracia para ter visto e
como a burocracia é muito grande eles acabam passando por outros caminhos para
tentar procurar uma vida melhor.
Otávio: E todas essas informações, do acordo entre o Brasil e o Haiti, entre os
presidentes, isso foi midiatizado?
EQ4: Sim! Falou lá no Haiti em todas as mídias que o Brasil abriu a porta para os
haitianos.
Otávio: E você acha que isso motivou a vinda?
EQ4: Sim, isso motivou...
Otávio: Porque os primeiros não tinham pessoas aqui.
EQ4: Não, essa foi a divulgação que fez na mídia e depois quando começaram a
trabalhar, começaram buscar família, ajudar família e buscar uma vida melhor. Mas
agora não é uma vida melhor que tem no Brasil, para eles as coisas estão muito
complicadas e fiquei surpresa esta semana com a notícia que tem nazista. Isso
deixa o pessoal com medo porque não são só haitianos que vêm como imigrantes. A
gente pode ter cor diferente, mas tanto brasileiro também sai para procurar em outro
lugar – vai aos Estados Unidos, vai à França – porque no mundo a pessoa saiu para
procurar uma vida melhor. Não é porque a pessoa escolhe deixar o país para vir
morar em outro país, isso é uma coisa bem triste, bem complicado.
Otávio: No seu caso o motivo da vinda foi mais um contato com uma organização
que você tinha de estudo?
EQ4: É porque eu vim com visto de estudante. Tudo resolveu lá no Haiti, ninguém
tinha uma coisa certa, lá na embaixada resolveu tudo, dar visto para a pessoa e
299
pensou que era uma coisa normal porque falou que a gente vinha estudar na
Universidade Federal e quando eu vi outra coisa. Eu falei: “Tenho que estudar”.
Otávio: E você percebe se há algum tipo de tecnologia de informação, de
comunicação que é muito presente na vida dos haitianos aqui no Brasil?
EQ4: Como falei no início, com a comunicação do Face, Whatsapp, telefone, o
mundo ficou só um e qualquer coisa vai espalhar porque a pessoa está procurando
uma coisa melhor e se a pessoa escuta como têm vários que perdem dinheiro pra
tentar sair do Brasil para ir no outro país, porque está tentando pegar uma
informação que não sabe se é verdade, se é falsa e tentar pegar o dinheiro e
começar de novo. O que mais problema é o telefone e as redes de informação.
Otávio: E isso é mais positivo ou mais negativo?
EQ4: Para mim a comunicação é positiva de um lado e negativa no outro lado.
Otávio: Tem as duas moedas?
EQ4: Sim.
Otávio: Qual o principal uso dessas redes sociais?
EQ4: É Face e Whatsapp.
Otávio: Ok, mas é em relação pra conversar com pessoas daqui, fora?
EQ4: É, porque Whatsapp e Face é uma comunicação internacional, você na vai
pagar para ligar para uma pessoa lá no Haiti, para ligar para uma pessoa lá em Nova
York e por isso tem mais facilidade que telefone, do que fazer uma ligação.
Otávio: Há realmente uma facilidade muito grande para você conversar com
pessoas que estão em outro país, familiares, amigos através de celular, Whatsapp,
mas como é que você avalia a comunicação dos haitianos que estão aqui? Entre
eles.
EQ4: O que eu sempre avalio é que falta comunicação entre eles. Por que? Se eu
não conheço a pessoa, talvez eu que fico mais curioso, pode vir a pessoa haitiana
cumprimentou. Mas, um pode encontrar com outro e não cumprimentar porque não
conhece a pessoa. E esta integração, é por isso, a idéia para criar a Associação é
para isso, mas o trabalho falta, por problema do tempo, para ter mais integração.
Otávio: E você acha que a Associação tem um papel importante nisso?
EQ4: Sim.
Otávio: E tem conseguido?
300
EQ4: É, a gente consegue o que a gente pode, porque a gente não tem
possibilidade para realizar algumas coisas. Como tempo, a gente não está
ganhando nenhum centavo, não pode pedir para as pessoas na Associação ficar
num lugar para prestar serviço, como a Pastoral que tem espaço, e nós não temos
ainda um espaço próprio e tudo isso deixa a gente um pouco restrito.
Otávio: E como que a Associação faz para se comunicar com os haitianos?
EQ4: A gente, como no início, a gente tem o telefone deles, são amigos no Face e
quando eles precisam, porque tem bastante que eu não conheço, um passa o
telefone para o outro quando eles precisam para ligar e espalha.
Otávio: Então é mais no pegar o telefone, boca a boca?
EQ4: É, boca a boca um passa para o outro, pode escutar o nome e pedir amizade
no Face.
Otávio: Vocês não têm um grupo no Facebook dos haitianos?
EQ4: Temos.
Otávio: Ah, tá. Bom, aí vocês também conversam com eles?
EQ4: Quando a gente tem alguma coisa para anunciar, a gente coloca no grupo e
também no pessoal porque não são todas as pessoas que estão dentro do grupo.
Otávio: Eu percebo que às vezes outros órgãos públicos, a Secretaria de Direitos
Humanos, a Casa Latino-Americana, ajudam a divulgar algumas coisas que a
Associação faz. Há uma parceria nisso?
EQ4: Sim, a gente sempre trabalha junto e quando eles precisam da Associação,
mandam mensagem e pedem ajuda da Associação e quando nós precisamos
também, pedimos a ajuda deles.
Otávio: A Associação funciona como um ponto fixo, mas em rede também, como
fosse uma rede de mobilização?
EQ4: É, e não só com direitos humanos, mas com a saúde também. E para fechar,
essa integração eu sempre quando pedi para o Pedro* fazer trabalho junto e não sei,
egoísmo... não sei. Porque a gente está fazendo o mesmo trabalho, não é um
trabalho pessoal, e...
Otávio: Algumas dessas atividades que vocês organizam para/com os haitianos em
relação às festas da Bandeira, Batalha de Vertières. Que tipo de feedback você tem
recebido da comunidade haitiana – se gostou, não gostou? Como é que é isso?
301
EQ4: Na verdade, tem lado ruim e lado bom. E no primeiro momento quando faz tem
mais pessoas a elogiar. O primeiro que a gente fez foi na paróquia, o segundo no
Memorial e o terceiro no Memorial, mas como no terceiro estava mais crítico, porque
no terceiro estava com confusão entre a Pastoral e a Associação, que fez duas
festas no mesmo dia e ficou, como posso dizer, sem saber porque aconteceu as
duas e ficam falando e a comunicação, eu sei como divulgar a comunicação para
eles entenderem o que aconteceu e quando não entendem, tem confusão muito
grande.
Otávio: Tá. Esses são os pontos negativos.
EQ4: Os positivos, na maioria ficam felizes porque a gente colocou uma atividade
para eles e lembra um dia que é mais importante para nós no nosso país e a gente
trás ele aqui, este é o lado positivo que tem. E mesmo assim tem pessoa que fala,
como não aconteceu ainda a festa das crianças que a gente vai fazer dia 19 e tudo
para a gente ver como trazer uma energia entre a família haitiana, como lá no Haiti
sempre tem atividades para as crianças e para eles não se sentirem isolados. É por
isso nosso objetivo da festa das crianças.
Otávio: Eu queria saber em relação a esses eventos, atividades que são realizadas
para os haitianos aqui em Curitiba, como você acha que essas atividades
influenciam na construção da identidade do haitiano aqui na cidade? Você acha que
tem alguma influência, isso ajuda, não ajuda muito?
EQ4: Como a pessoa não conhece nós, na ajuda ficou um pouco restrito, mas eu
acho que pouco a pouco quando eles começarem a envolver, ver nossa cultura,
conhecer um pouco nós eu acho que eles vão ter mais confiança para investir, não é
investir em dinheiro, mas é dar um voto de confiança.
Otávio: Eles quem, você diz?
EQ4: As pessoas do Brasil. Dar para nós imigrantes e toda dificuldade que você viu
que estava acontecendo é falta de confiança.
Otávio: E a construção de identidade dos próprios haitianos, você acha que isso
influencia também? Não é nem uma construção, é uma reconstrução. Você muda de
lugar, você tem uma mudança de identidade. Você acha que isso ajuda – os
eventos, atividades – de alguma forma?
EQ4: É, para mim eu vi que ajuda porque têm pessoas que tem um conhecimento
para chegar quando precisa de uma coisa e porque a gente divulga e têm pessoas
302
que vêm, que não sabem nada e no momento a gente sempre dá papel para dizer:
“se você precisa ir em tal lugar, vai em tal lugar”. Isso, a comunicação passa no
momento que tem o evento e mais, se a gente conseguir fazer evento e convidar
eles, é mais informação que vai sair.
Otávio: Uma última pergunta, ainda sobre a identidade. Eu queria saber como você
percebe que a sociedade brasileira, de Curitiba, vê o imigrante haitiano e uma
segunda pergunta: é como vocês se veem, as organizações e vocês se veem aqui
no Brasil?
EQ4: Bom, eu vou começar no início. No início Curitiba teve um acolhimento, não
perfeito, mas melhor. Depois quando começou 2012 as coisas começaram a reduzir.
Não sei se é ignorância, mas começou a reduzir a quantidade de pessoas que abriu
mão para acolher imigrantes no início e pouco a pouco começou... não sei se eles
ficam um pouco frustrados com tantos haitianos que estão chegando e, não sei
porque nós somos humanos, não sei como é. Mas, no início estava bom e dia a dia
fica pior para a integração entre haitianos e brasileiros e este vai ser um começo
porque a gente não pode dizer vai dar uma oportunidade no trabalho assim, tem que
viver a situação para ver como vai...
Otávio: E porque você acha que mudou?
EQ4: Mudou no jeito de acolher tanto no trabalho, tanto para alugar casa, tanto na
rua e falta educação. Exploração, tudo. Isso é muito grave, como dizer que nós
teremos direito para tudo, mas que não é verdade.
Otávio: E como é a Associação, não só a Associação, mas as organizações que
trabalham com os imigrantes, que acompanham, como é que elas enxergam os
haitianos?
EQ4: Eles para enxergar como eu falei, a maioria das coisas que precisar sempre
procura a Associação para ter um contato mais junto porque a maioria do problema
é barreira da língua porque não são todos que falam, não são todos que falam
francês, têm pessoas que só falam dialetos e isso é complicado. A sociedade
sempre corre, tanto dentro do hospital, no trabalho, sempre corre para conseguir
uma ajuda. E mesmo, têm haitianos que não sabem a importância da Associação,
mesmo haitianos que a gente não conhece e está no trabalho, numa empresa, a
303
empresa ligou não sei onde, conseguiu telefone, pediu ajuda e nosso papel é muito
grande.
Otávio: Como é que você observa, pra você o que é ser haitiana aqui em Curitiba?
EQ4: Eu sou feliz, eu gosto do que estou fazendo para ajudar todos, mesmo fico
sofrendo porque tem coisa que a gente tem vontade, mas não tem poder, não tem
como ajudar e isso me deixa doente também, porque não só eu fiquei cansada, mas
quando eu não consigo ajudar e me deixa mais presa.
Otávio: O que é ser haitiano, no sentido de que identidade marca mais pra você o
haitiano aqui na cidade. Que característica de identidade que marca mais?
EQ4: O que marca mais para mim, porque mesmo nós estarmos numa situação
complicada, mas sempre ergue a cabeça para a gente conseguir o que quer e
trabalhador também, eles são muito trabalhadores, isso admiro muito, muito dentro
deles.
Otávio: E você acha que o Brasil já ta vendo isso, consegue ver isso?
EQ4: Não, mesmo alguns falando, mas é só para explorar, não fala de coração.
Mas, para fechar, desde a vinda dos haitianos ao Brasil a economia do Brasil
aumentou, não só dentro do trabalho, eles entram no trabalho fazem o trabalho,
mesmo ganhando pouco fazendo trabalho e eles também mandam muito dinheiro.
Isso ajuda um país subir a renda e como imigrantes é haitianos que mandam mais
dinheiro fora que todos. Mas ignorantes, têm pessoas que não percebem isso e
sempre dizem que os haitianos vêm roubar emprego e por isso que sempre que dou
entrevista falo isso. Como o responsável não faz o trabalho para divulgar, mesmo
quando vai ter eleição, divulgar em todas redes, explicar as pessoas como vota, mas
eles têm que, se acolheu imigrante tem que fazer um trabalho para explicar, quem
é? Lei migratória, como não tem, mas explicar, imigrante quem é imigrante?
Imigrante é tal, tal, tal... para eles entenderem. Imigrante vem, nós haitianos vêm.
Não é porque têm pessoas que falam, sair da guerra. A gente não saiu da guerra.
Aconteceu catástrofe e a gente acabou caindo aqui, depois do terremoto no Haiti. Lá
na África tem guerra, por isso tem diferença entre visto humanitário, entre imigrante
e refugiado. Tem grande diferença que a pessoa não consegue e confunde tudo
junto e este trabalho que tem que fazer para eles entenderem. Mas quando não tem
304
esse trabalho, olha o que tem e vai ficar do mesmo jeito e vai empurrar as coisas,
infelizmente.