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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ OTÁVIO CEZARINI ÁVILA O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO CURITIBA 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

OTÁVIO CEZARINI ÁVILA

O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS

COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO

CURITIBA

2016

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OTÁVIO CEZARINI ÁVILA

O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS

COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Comunicação, Setor de Artes, Comunicação e Design, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação.

Orientadora: Profª. Dra. Myrian Regina Del Vecchio de Lima

CURITIBA

2016

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Catalogação na publicação Sistema de Bibliotecas UFPR Biblioteca do Campus Cabral

Ávila, Otávio Cezarini O Haiti em Curitiba: um olhar interpretativo das práticas comunicativas

dos haitianos no novo território / Otávio Cezarini Ávila – Curitiba, 2016. 304 f. Orientadora : Prof. Dra. Myrian Regina Del Vecchio de Lima

Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Setor de Artes, Comunicação e Design da Universidade Federal do Paraná.

1. Comunicação intercultural - Haiti. 2. Imigrantes - Aspectos

comunicacionais - Curitiba (PR) 3. Imigração haitiana - Paraná I.Título. CDD 302

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TERMO DE APROVAÇÃO – substituir essa página pelo parecer de aprovação!

OTÁVIO CEZARINI ÁVILA

O HAITI EM CURITIBA: UM OLHAR INTERPRETATIVO DAS PRÁTICAS COMUNICATIVAS DOS HAITIANOS NO NOVO TERRITÓRIO

Dissertação aprovada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em Comunicação, Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná, pela seguinte banca examinadora:

________________________________________ Profa. Dra. Myrian Regina de Lima Del Vecchio Orientadora – Departamento de Comunicação, UFPR

________________________________________ Profa. Dra. Regiane Regina Ribeiro Departamento de Comunicação, UFPR

________________________________________ Prof. Dr. Mohammed ElHajji Departamento de Comunicação, UFRJ

Curitiba, 14 de março de 2016.

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Este trabalho é dedicado à cidade de Curitiba, que me acolheu como migrante.

O trabalho também é dedicado à Vó Odette, que migrou e deixou saudades.

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPR, pela oportunidade dada.

À Prof. Myrian Del Vecchio, pela didática, responsabilidade e eficiência que só uma

excepcional orientadora poderia me dar.

Às pessoas que contribuíram para que esta pesquisa pudesse ser realizada,

especialmente pelo aprendizado vivenciado na Casla e na Pastoral do Migrante.

À minha família, pela presença na distância, carinho e apoio nas decupagens.

À Pauline, por ser quem é e também pelos telefonemas que me distraíam enquanto

voltava para casa.

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“Queríamos mão de obra, mas chegaram pessoas.”

Max Frisch

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RESUMO

Este trabalho de dissertação analisa os processos comunicativos que haitianos residentes em Curitiba (capital do Estado do Paraná) estabelecem entre si e a sociedade, buscando responder como tais processos contribuem na reconstrução identitária destes sujeitos migrantes no novo território. O campo de análise da pesquisa privilegiou a atuação das organizações de apoio aos migrantes, ao partir do pressuposto que elas desempenham um papel fundamental na consecução desta reconstrução. Para realizar esta análise foi fundamental empreender um percurso etnográfico junto a essas organizações e junto a um grupo de haitianos que circulam em tais espaços e, posteriormente, fazer entrevistas com representantes destes segmentos, a fim de compor um trajeto metodológico à luz da Hermenêutica de Profundidade, apresentada por Thompson (2011). Contudo, para a realização desta abordagem hermenêutica, foi necessária a construção de um contexto teórico de caráter sócio-histórico, mas que tem nas características culturais um ponto nevrálgico frente à relação dos novos fluxos humanos pelo globo. Neste sentido, a pesquisa inicia-se teoricamente com a reflexão dos processos de globalização no mundo contemporâneo, pela perspectiva das minorais culturais e suas construções identitárias e passa, em outro capítulo, por uma contextualização histórica e sociológica de processos migratórios no Brasil, Paraná, Curitiba e no próprio Haiti. Entre esses dois capítulos, estabelece-se, como um corte na organização textual, mas que é ao mesmo tempo um marco de ligação entre as vias teóricas e metodológicas, o momento comunicacional, uma vez que são objeto dessa dissertação as práticas comunicativas dos haitianos em Curitiba, entendendo a comunicação desde a ideia de processo de interação social na sociedade midiatizada. Com isso, a pesquisa também busca responder se as práticas comunicativas desses migrantes são práticas midiatizadas. Buscou-se dar as respostas às questões propostas em um momento reinterpretativo, a partir do viés qualitativo da pesquisa em questão. Ao final, pode-se concluir, de forma ampla, que as organizações de apoio demarcam um importante locus de reconhecimento identitário, assim como os processos de midiatização emergem nas interações dos haitianos que vivem em Curitiba por meio de novas sociabilidades e modos de ser migrante.

Palavras-chave: Comunicação e cultura. Imigração. Haiti. Práticas comunicativas. Organizações.

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ABSTRACT

This thesis analyzes the communicative processes that Haitians living in Curitiba (Paraná state capital) establish among themselves and the society, seeking to answer how these processes contribute to the identity reconstruction of those migrants subjects in the new territory. The analysis field research focused the work of organizations supporting migrants, in assuming that they make a key role in achieving this reconstruction. To perform this analysis was essential to undertake an ethnographic route with these organizations and with a group of Haitians moving in such spaces and then conduct interviews with representatives of these segments in order to compose a methodological path under the light of Hermeneutics of Depth, by Thompson (2011). However, for the realization of this hermeneutical approach, was necessary the construction of a theoretical context with a socio-historical bias, but that has in the cultural characteristics a neuralgic point when compared to the new human flows across the globe. Therefore, the research theory starts with the reflection of the processes of globalization in the contemporary world, from the perspective of cultural minorities and their identity constructions and passes, in another chapter, by a historical and sociological context of migration processes in Brazil, Paraná, Curitiba and in Haiti itself. Between these two chapters, it is established - as a cut in the textual organization, but also as a connecting mark between the theoretical and methodological way - the communication point, since the subject of this thesis is the communicative practices of Haitians at Curitiba, understanding the communication from the idea of social interaction process in a mediatic society. Thus, the research also seeks to respond if the communicative practices of these migrants are mediatized practice. The search also sought to give answers to questions posed in a re-interpretative moment, from the qualitative bias of the research in question. Lastly, it concluded, broadly, that supporting organizations demarcate an important identity recognition locus, as the mediatization coverage processes emerge in the interactions of the Haitians living at Curitiba through new sociability and ways of being a migrant. Keywords: Communication and Culture. Immigration. Haiti. Communicative Practices. Organizations.

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RESÚMEN

Esta tesis analiza los procesos comunicativos que los haitianos que viven en Curitiba (capital del estado de Paraná) constituyen entre sí y la sociedad, tratando de responder como estos procesos contribuyen a los sujetos migrantes reconstruir su identidad en el nuevo território. El campo de análisis de la investigación se centró en el trabajo de las organizaciones de apoyo a los migrantes, en el supuesto de que juegan un rol fundamental en el logro de esta reconstrucción de identidades. Para llevar a cabo este análisis fué esencial emprender um camino etnográfico con estas organizaciones y con un grupo de haitianos que circulan en estes espacios y, luego, hacer entrevistas con los representantes de estos segmentos con el fin de componer un camino metodológico a la luz de la Hermenéutica de Profundidad, presentada por Thompson (2011). Sin embargo, para la realización de este enfoque hermenéutico, la construcción de un marco teórico de carácter socio-histórico era necesario, pero que tiene las características culturales un punto neurálgico frente a los nuevos flujos humanos en globo. En este sentido, la teoría de la investigación se inicia con el reflejo de los procesos de la globalización en el mundo contemporáneo, por la perspectiva desde las minorías culturales y sus construcciones de identidad y se mueve, en otro capítulo, por un contexto histórico y sociológico de los procesos migratórios en Brasil, Paraná, Curitiba y mismo en el Haití. Entre estos dos capítulos, se establece como un corte en la organización textual, pero que es a la vez una marca de conexión entre la forma teórica y metodológica, el momento de la comunicación, por ser objeto de esta tesis las prácticas comunicativas de los haitianos en Curitiba, compreendendo la comunicación desde la idea del proceso de interacción social en la sociedad mediática. Por lo tanto, la investigación también pretende dar respuesta si las prácticas comunicativas de estos migrantes son prácticas mediatizadas. Así, se ha tratado de dar respuestas a las preguntas formuladas en el momento reinterpretativo, desde la perspectiva cualitativa de la investigación en cuestión. Al final, se puede concluir, en términos generales, que las organizaciones de apoyo demarcan un importante locus de reconocimiento de la identidad, así como los procesos de midiatización surgen en las interacciones de los haitianos que viven en Curitiba a través de nuevas sociabilidades y formas de ser migrante. Palabras clave: Comunicación y Cultura. Inmigración. Haití. Prácticas Comunicativas. Organizaciones.

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LISTA DE FIGURAS

TABELA 1 – CHEGADA DAS CINCO PRINCIPAIS NACIONALIDADES

MIGRANTES AO PARANÁ ATÉ 1948 ..................................................................... 90

FIGURA 1 – ESQUEMA METODOLÓGICO DA HERMENÊUTICA DE

PROFUNDIDADE ................................................................................................... 104

FIGURA 2 – CARTAZ DE SHOW EM UM PERFIL PESSOAL NO FACEBOOK

(10/06/2014) ........................................................................................................... 152

FIGURA 3 – CARTAZ DE SHOW DIVULGADO EM UM PERFIL PESSOAL NO

FACEBOOK (28/12/2015) ...................................................................................... 153

TABELA 2 – SÍNTESE DA ANÁLISE DE CONTEÚDO ................................ 177

FIGURA 4 – DIVULGAÇÃO DO FILME “SOMOS TODOS MIGRANTES” NO

YOUTUBE .............................................................................................................. 184

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LISTA DE SIGLAS

Abin – Agência Brasileira de Inteligência

Acnur – Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados

Casla – Casa Latino-Americana

CNIg – Conselho Nacional de Imigração

Conare – Comitê Nacional para Refugiados

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IHU – Instituto Humanitas Unisinos

MPT-PR – Ministério Público do Trabalho do Paraná

OBMigra – Observatório das Migrações

OIM – Organização Internacional para Migração

ONG – Organização Não Governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

PBMIH – Português Brasileiro para Migração Humanitária

PIB – Produto Interno Bruto

PUC – Pontifícia Universidade Católica

UFPR – Universidade Federal do Paraná

UnB – Universidade de Brasília

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15

JUSTIFICATIVAS, QUESTÕES E OBJETIVOS ........................................................ 19

METODOLOGIA E CAPÍTULOS TEÓRICOS ........................................................... 24

1 ENTRE O MUNDO GLOBALIZADO E A CULTURA DAS MINORIAS .......... 28

1.1 GLOBALIZAÇÃO COMO CENÁRIO ................................................................... 29

1.1.1 A globalização e o redimensionamento dos Estados-nação .................... 32

1.1.2 Mapas da globalização ............................................................................. 35

1.1.3 A relação estreita entre globalização e cultura ......................................... 37

1.2 A GLOBALIZAÇÃO AMPARADA PELO MULTICULTURAL ........................ 39

1.3 SOBRE CULTURA, IDENTIDADES E RECONHECIMENTO ...................... 43

1.3.1 Os estudos culturais e a tendência gramsciana ....................................... 44

1.3.2 As culturas minoritárias: caminhos teóricos ............................................. 47

1.3.3 Identidades e reconhecimento ................................................................. 52

2 COMUNICAÇÃO MIDIATIZADA E PROCESSOS MIGRATÓRIOS ............... 58

2.1 COMUNICAÇÃO ALÉM DOS MEIOS DE MASSA ....................................... 59

2.2 UM PONTO CENTRAL: MEDIAÇÃO E MIDIATIZAÇÃO .............................. 65

2.3 COMUNICAÇÃO NOS PROCESSOS MIGRATÓRIOS ................................ 73

3 O PANAROMA SOCIO-HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES .............................. 78

3.1 A SOCIOLOGIA DA MIGRAÇÃO E SUAS PERSPECTIVAS MACRO E

MICRO ..................................................................................................... 78

3.1.1 As teorias microssociológicas da migração .............................................. 80

3.1.2 As teorias macrossociológicas da migração ............................................. 81

3.2 HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES, O BRASIL E A DIÁSPORA HAITIANA .... 83

3.2.1 Imigração histórica no Brasil .................................................................... 86

3.2.2 A negociação da identidade no Brasil ...................................................... 88

3.2.3 Imigração no Paraná ................................................................................ 89

3.2.3.1 A Curitiba moderna: cidade migrante ..................................................... 92

3.2.4 Imigração no Brasil contemporâneo ......................................................... 93

3.2.5 A diáspora haitiana ................................................................................... 96

3.2.6 A relação Brasil-Haiti ................................................................................ 99

4 METODOLOGIA DE PESQUISA .................................................................. 102

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4.1 A HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE (HP) ........................................ 103

4.2 QUESTÕES DA PESQUISA APLICADAS À METODOLOGIA .................. 108

4.3 TÉCNICAS DE PESQUISA ........................................................................ 109

4.3.1 Técnicas de coleta .................................................................................. 109

4.3.1.1 Observação participante ...................................................................... 110

4.3.1.2 Entrevista semiestruturada ................................................................... 111

4.3.2 Técnica de análise .................................................................................. 111

4.4 ORGANIZAÇÕES DE APOIO .................................................................... 113

4.4.1 Associação dos Haitianos de Curitiba .................................................... 113

4.4.2 Cáritas Brasileira .................................................................................... 113

4.4.3 Casa Latino-Americana (Casla).............................................................. 114

4.4.4 Igreja Batista Pompeia ........................................................................... 115

4.4.5 Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PR) ........................................... 115

4.4.6 Pastoral do Migrante .............................................................................. 115

4.4.6.1 Recanto Franciscano ........................................................................... 116

4.4.7 Programa Política Migratória e Universidade Brasileira/UFPR ............... 116

5 ANÁLISE ....................................................................................................... 118

5.1 A INTERPRETAÇÃO DA DOXA ................................................................. 118

5.1.1 Pastoral do Migrante em foco ................................................................. 119

5.1.2 Casla em foco......................................................................................... 126

5.2 A ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA ................................................................ 131

5.3 A ANÁLISE DE CONTEÚDO COMO ANÁLISE FORMAL OU DISCURSIVA

DA HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE ......................................... 136

5.3.1 Análise das categorias ................................................................................ 140

a) Práticas comunicativas mediadas por tecnologias ................................. 141

b) Manifestações culturais .......................................................................... 151

c) Trabalho ................................................................................................. 161

d) Organizações de apoio ........................................................................... 167

5.4 INTERPRETAÇÃO/REINTERPRETAÇÃO OU INFERÊNCIAS ................. 179

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 189

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 194

APÊNCIDES ........................................................................................................... 202

ENTREVISTAS DO TIPO NÃO QUALIFICADA ...................................................... 203

ENTREVISTAS DO TIPO QUALIFICADA ............................................................... 276

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INTRODUÇÃO

A partir de uma visão panorâmica, global, distante do espaço empírico sobre

o qual esta dissertação se detém, a imagem que dá início à pesquisa foi vista por

milhões de pessoas em dispositivos midiáticos por todo o mundo: uma embarcação

em alto-mar. Não se trata de um transatlântico com um comandante e uma

tripulação treinada, cheia de turistas a bordo, mas uma embarcação rude, lotada de

indivíduos abandonados no Mar Mediterrâneo por seus “comandantes”: traficantes

de pessoas. Quem está no comando pode ser de variadas nacionalidades, adultos

ou jovens, treinados ou não. A foto, tirada do céu por um helicóptero da marinha

italiana, pode até render um prêmio de fotojornalismo em escala internacional, mas a

quem se estende o prêmio do deslocamento humano em situações tão adversas?

No rosto de cada um desses refugiados, que se lança ao mar que separa o

Sul do Norte do mundo, transparece um misto de medo e de esperança por um

futuro incerto, em um país desconhecido, ao mesmo tempo em que se delineia o

alívio pela fuga da morte naquilo que Tönnies chamou de Heimat, ou terra natal. O

resgate feito pela marinha italiana, comumente na calada da noite, é a luz que esses

refugiados anseiam para começar uma nova vida. A partir daqui o problema passa a

ser global: a mídia filma, fotografa, entrevista. O mundo político pondera sobre as

fronteiras da solidariedade com relação aos imigrantes ilegais e é acompanhado por

diversas vozes de uma comunidade populacional que fala várias línguas. Ao chegar

ao centro do mundo, a periferia é descoberta: a intensificação dos fluxos humanos

acontece ao redor de todo o globo (CASTELLS, 1999), inclusive entre países

subdesenvolvidos. O “globo está globalizado”, mas, e a cultura do refugiado, e este

transeunte marítimo, que mundo a ele é dado?

A partir desta narrativa imagética, da chegada de refugiados africanos e

asiáticos à Europa pela via que gerou quase 4 mil mortes até setembro de 20151,

fartamente noticiada pelos jornais do mundo inteiro, esta dissertação se inicia

efetivamente com as justificativas, motivações e dados que acompanham este

fenômeno tão antigo, o migratório, revivido agora na sociedade midiática e em rede,

1http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/entre_mortes_e_desaparecimentos_mais_de_3800

_refugiados_nao_concluiram_a_travessia_do_mediterraneo.html

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não só no espaço geográfico anteriormente narrado, mas também nas Américas,

ampliando-se o olhar para o Sul do mundo com o fluxo intenso de haitianos ao

Brasil, especificamente à Curitiba, capital do Paraná, onde se situa empiricamente

essa pesquisa.

Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPR, a

dissertação situa-se na interface entre a área da comunicação e os estudos dos

fluxos migratórios contemporâneos, percebendo-se tais fluxos como processo

político e fenômeno sociocultural e que, por isso, interagem constantemente com os

processos comunicativos na sociedade. Desta forma, compreender que os fluxos

migratórios compõem o universo de ressignificações culturais na sociedade é o

primeiro passo para podermos posicionar a pesquisa na linha de Comunicação,

Educação e Formações Socioculturais deste Mestrado.

A escolha da relação entre comunicação e migrações parte do contato do

pesquisador com organizações sociais vinculadas ao tema e pelo impressionante

fluxo migratório que o mundo e o Brasil têm vivido ao longo dos últimos anos. As

crises econômicas, os conflitos armados, as perseguições étnicas e religiosas e os

desastres naturais acentuam-se como as principais causas de tais fluxos.

Se no mundo os deslocamentos forçados atingiram, em 2013, a marca de

51,2 milhões de pessoas, o mais alto índice desde a Segunda Guerra Mundial, como

afirmou documento produzido pela Agência da Organização das Nações Unidas

para Refugiados (Acnur/ONU) em 2014, o estudo de alguns aspectos

comunicacionais dos deslocamentos de haitianos para o Brasil constitui a opção

desta pesquisa por estarem diretamente relacionados a esse fenômeno da

contemporaneidade.

O Haiti, que foi devastado por um terremoto em 2010 – além de ter

enfrentado dois furacões em 2012 – tem no Brasil o principal parceiro na sua

reconstrução social e estrutural, o que culminou no grande número de nativos

aportando nas fronteiras brasileiras. A nação brasileira, que tem a coordenação geral

das tropas militares da ONU responsáveis pela reestruturação do país caribenho,

mantinha ainda em 2014 um número de 1,2 mil militares nacionais no Haiti pela

Minustah, uma estratégia que já custou ao país 2,11 bilhões de reais desde as

primeiras ações em 20042. A Minustah, que significa “missão de paz”, é uma das 16

2 http://www.un.org/en/peacekeeping

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operações militares da ONU no mundo. Localizada no Haiti, a operação mantinha

em 2013 o posto de maior concentração militar entre as tropas da ONU e é

coordenada pelo governo brasileiro em sua tentativa de ocupar uma das cadeiras do

Conselho de Segurança do organismo internacional, à medida que obtivesse

sucesso na preparação da polícia haitiana para ser a principal força de segurança de

seu próprio país3.

Firmada essa cooperação entre o Brasil e o Haiti, o primeiro país avançou

sua estratégia de relações internacionais ao conceder ao segundo, em 2012, vistos

humanitários, que facilitam a entrada de estrangeiros em relação à concessão de

refúgio. Embora tenham sido estipulados 1.200 vistos por ano até o fim de 20144, o

número se elevou muito devido à entrada ilegal de haitianos pelas mãos de

traficantes de pessoas, também chamados de “coiotes”. Esse número já fosse maior,

notícia de julho de 2015 apontou que a quantidade mensal de vistos emitidos pelo

consulado brasileiro passaria de 600 para 1.700, tornando o consulado brasileiro em

Porto Príncipe o segundo maior provedor de vistos do mundo.5 Dados da Agência

Brasileira de Inteligência (Abin) mostram que os coiotes trouxeram aproximadamente

38 mil haitianos ao Brasil em quatro anos, com um faturamento ilegal que chegou a

60 milhões de dólares6, sendo que as embaixadas brasileiras em Porto Príncipe

(Haiti) e Quito (Equador) confirmaram a concessão de 26 mil vistos humanitários aos

haitianos7. Dados de 2015 também demonstram que, apenas entre janeiro e maio do

referido ano, chegaram 7 mil haitianos, número que ultrapassa muito a regulação da

entrada permitida pelos vistos humanitários. Com a constante chegada dos haitianos

ao Brasil, o governo concedeu a 43.800 deles o visto de residência permanente no

Brasil, de forma a facilitar o acesso ao mercado de trabalho e serviços públicos8.

3 http://www.cartacapital.com.br/revista/811/ha-dez-anos-no-haiti-brasil-vive-impasse-8874.html.

4 http://www.brasil.gov.br/governo/2013/10/prorrogada-concessao-de-visto-especial-a-haitianos

5 http://www.ebc.com.br/noticias/2015/08/senador-do-acre-pede-providencias-para-frear-imigracao-

ilegal-de-haitianos

6 http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/05/23/coiotes-trouxeram-38-mil-

haitianos-ao-pais-em-4-anos.htm

7 http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-08/concessao-de-visto-humanitario-

haitianos-e-prorrogada-ate-2016

8 http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/11/brasil-autoriza-visto-de-residencia-permanente-

para-43-8-mil-haitianos

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A constante chegada dos haitianos ao Brasil tem diversas causas de

repercussão midiática, como a imagem internacional de um governo popular no

poder e a projeção do país como “canteiro de obras” de grandes eventos, a exemplo

da Copa do Mundo da Fifa, realizada em 2014, e das Olimpíadas de Verão de 2016,

culminando no interesse dos imigrantes em buscar empregos no país que contribui

para a reconstrução de seu país de origem. Somam-se a essas questões a

impossibilidade do Haiti em oferecer emprego a toda sua população depois das

tragédias naturais, das periódicas crises políticas, geradas após o período de

colonização francesa, e a pobreza histórica, fatos que fazem da mão de obra

haitiana no Brasil um dos grandes fomentadores do Produto Interno Bruto (PIB) do

país caribenho. Dados de 2012 apontam que 22% do PIB vêm das remessas

enviadas pelos imigrantes que estão no Brasil9.

Se o envio financeiro é comumente realizado para a garantia do bem-estar

dos familiares no Haiti, alguns imigrantes – em sua maioria homens – já têm feito o

inverso: trazem seus familiares para o Brasil ou mesmo, no caso, dos solteiros,

buscam construir uma família a partir do novo país10.

Atualmente, ainda que sejam elevadas as próprias migrações internas

brasileiras, especialmente de “cima para baixo” no mapa geográfico do país, e da

leva constante de sul-americanos que vêm para o país, facilitados pelo Acordo de

Residência e Livre Trânsito do Mercosul Ampliado, com destaque para bolivianos e

argentinos11, a chegada de haitianos tem sido notada, especialmente nas grandes

cidades brasileiras, pelo indivíduo comum que chega a um restaurante, visita uma

construção civil, toma transporte público ou anda pelas ruas. Pesquisa realizada em

2014 pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Ministério do Trabalho e

Emprego e Organização Internacional para a Migração (OIM), que se debruçou

sobre a imigração de haitianos ao Brasil e o diálogo bilateral, afirmou que, até 2015,

deveriam estar no Brasil 50 mil haitianos, número bastante elevado pelo curto

período da vinda desses imigrantes. Mas, já em julho de 2015 o número apontava

9 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/10/imigracao-ilegal-ao-brasil-movimenta-economia-haitiana-

pos-terremoto.html

10 http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-01/haitianos-que-moram-no-brasil-nao-

pensam-em-retornar-ao-seu-pais

11 http://oestrangeiro.org/2013/05/22/exclusivo-os-numeros-exatos-e-atualizados-de-estrangeiros-no-

brasil-2/

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60 mil haitianos, segundo dados do Ministério da Justiça12. Nesse interim, dados de

março de 2014 apontavam que 27% dos haitianos estavam na cidade de São Paulo,

principal destino desse grupo no Brasil. Curitiba, com 6,5% desta população é, hoje,

o quarto principal destino desses novos imigrantes, atrás apenas da capital paulista,

Manaus e Porto Velho, respectivamente13 (a posição tende a cair devido à inclusão

de Santa Catarina como rota dos haitianos). Um ponto a se destacar é que essas

cidades contam com uma importante rede de organizações da sociedade civil que

tem atuado com relação à garantia de direitos humanos.

Uma dessas organizações é a Pastoral do Migrante da Arquidiocese de

Curitiba, que afirmou haver aproximadamente 13 mil imigrantes e refugiados na

Região Metropolitana da capital paranaense, sendo que cerca de 4 mil desses são

haitianos, mas o número vem aumentando, segundo informações não oficiais dadas

por diversas entidades. As organizações de apoio aos imigrantes, embora não sejam

muitas, caracterizam-se pela promoção de eventos, atividades culturais, cursos,

debates e acolhimento aos migrantes e refugiados, cedendo espaço para reuniões,

entrevistas de emprego ou doações, constituindo-se, muitas vezes, como

mediadoras entre os imigrantes e a sociedade em geral, em diversas instâncias.

JUSTIFICATIVAS, QUESTÕES E OBJETIVOS

Além de verificar o papel das organizações de apoio aos imigrantes em

Curitiba, e especialmente suas práticas comunicativas com relação aos imigrantes,

que são peça importante neste trabalho, a pesquisa busca refletir também sobre a

lógica migratória e sua relação com a sociedade midiatizada, que tem como

destaque atual a imigração haitiana no Brasil e o acentuado fluxo de pessoas pelas

fronteiras internacionais. No entanto, antes disso, é preciso fazer alguns

esclarecimentos e justificativas.

12 http://radioagencianacional.ebc.com.br/geral/audio/2015-07/numero-de-imigrantes-haitianos-nao-e-

preocupante-diz-secretario-de-justica

13 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/especiais/sonho-haitiano/haitianos-comecam-a-

desistir-do-sonho-brasileiro-dvdnp7f7bekwvkblkuzwpmmu5

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No decorrer do texto, os termos “imigração” e “migração” serão tratados

como sinônimos, especialmente pelo uso similar que os textos acadêmicos

encontrados fazem de tais expressões, ainda que se entenda e queira se deixar

clara a diferença de que o primeiro termo trata, especificamente, dos fluxos

internacionais e o segundo, concomitantemente, está mais alinhado ao trânsito de

pessoas no interior de um mesmo país, ainda que sua designação possa ser

ampliada como afirmado abaixo:

Migrante é, pois, toda a pessoa que se transfere de seu lugar habitual, de sua residência comum, ou de seu local de nascimento, para outro lugar, região ou país. “Migrante” é o termo frequentemente usado para definir as migrações em geral, tanto de entrada quanto de saída de um país, região ou lugar. Há, contudo, termos específicos para a entrada de migrantes – Imigração – e para a saída – Emigração. Há, também, "migrações internas", para referir os migrantes que se movem dentro do país, e "migrações internacionais", referindo-se aos movimentos de migrantes entre países, além de suas fronteiras14 (INSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS, 2015).

Além desses termos existe também a expressão refúgio e a denominação

“refugiados” para determinado tipo específico de imigrantes15. De acordo com a

Convenção de Genebra – Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), “refugiado” é

toda a pessoa que:

(...) temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode, ou em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, em consequência de tais acontecimentos não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (1951, p.2).

Em referência ao Haiti, a característica de refúgio poderia ser aplicada

especialmente pelo quarto movimento de diáspora que o país fez em sua história,

impulsionado pelo terremoto que assolou o país em 2010. Handerson (2015),

antropólogo haitiano, em sua tese de doutorado contextualiza esses quatro

movimentos de pessoas relacionados a processos de colonização, descolonização,

14http://www.migrante.org.br/migrante/index.php?option=com_content&view=article&id=219&Itemid=1

214

15 Segundo o Instituto Migrações e Direitos Humanos, os refugiados são assim reconhecidos pela

Convenção de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados; pelo seu Protocolo de 1967; pela

Convenção da Organização da Unidade Africana que Rege os Aspectos Específicos dos Problemas

dos Refugiados na África; reconhecidos de acordo com o Estatuto de Acnur; que receberam formas

complementares de proteção; ou que gozam de “proteção temporária”.

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imperialismos e desastres ambientais, contextos diaspóricos que serão mais

detalhados no terceiro capítulo deste trabalho. Neste momento, acentuamos que a

leva de haitianos ao Brasil, correspondente à quarta diáspora haitiana, faz com que

esta população possa ser considerada, inclusive, na categoria de “refugiados

ambientais”. Embora a pesquisa bibliográfica ressalte uma indefinição deste termo,

destacamos o conceito da Organização Internacional das Migrações (OIM), que

afirma que os refugiados ambientais podem ser “pessoas ou grupo de pessoas que,

devido a alterações repentinas ou progressivas no meio ambiente, foram

adversamente afetadas em suas vidas e, devido às condições que se encontram,

decidem ou são obrigadas a deixar as suas casas16”.

No entanto, embora os haitianos se enquadrem na categoria de refugiados,

a política brasileira não os tem tratado dessa forma, o que tem reverberado não só

no auxílio assistencial, mas também na própria academia, que tem denominado este

deslocamento de “migração haitiana” e tais indivíduos como “imigrantes haitianos”.

Desta forma, a pesquisa também se enquadra, com relação a estes termos, ao que

já é utilizado no âmbito da pesquisa e da mídia nacional na área.

A partir do olhar de que os imigrantes e refugiados são mais do que mão de

obra barata — são seres culturais —, o enfoque ao fenômeno recairá sob a ótica dos

estudos culturais (HALL, 2013; MARTÍN-BARBERO, 2004; 2010), que compreendem

os processos sociais não de forma isolada, mas considerando que os processos de

comunicação se encontrariam nas análises da cultura, estando nela imersos,

configurando-se também como processo político, histórico e social.

Além disso, é importante perceber o contexto da globalização como pano de

fundo desta problemática, um fenômeno acelerado a partir da expansão das novas

tecnologias de comunicação e informação desde meados da década de 1970, mas

inaugurado muito antes, com a formação dos Estados-nação e, concomitantemente,

com a vitória do sistema capitalista sobre a organização da sociedade feudal.

Ressalta-se que, para examinar as questões norteadoras desta dissertação,

checando-se a premissa de pesquisa construída por meio de objetivos

estabelecidos, apresentados logo adiante, foi feita a escolha do conceito de práticas

comunicativas, evidenciando-se uma aproximação com conceitos de interação social

e midiatização. Esta, encontra-se no arcabouço das mediações (MARTÍN-

16 ACNUR; Ramos AC, Rodrigues G, Almeida GA, organizadores. 60 anos de ACNUR: perspectivas

de futuro. São Paulo: Editora CL-A Cultural, 2011.

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BARBERO, 2013), abrangendo assim o ambiente sociocultural em que está

elaborado o mundo contemporâneo, compreendendo-se que este está intensamente

marcado pela midiatização dos circuitos sociais de informação. O conceito de

midiatização aqui utilizado é, principalmente, aquele pautado pela visão de Braga

(2006; 2012) enquanto a interação social é pautada pela contribuição de França

(2011; 2014).

É, portanto, pela compreensão e pela intersecção entre o panorama

sociocultural em um cenário de globalização, sob o viés dos estudos culturais, e uma

abordagem comunicacional observada a partir da contribuição da midiatização e das

interações sociais, que se busca entender a relação entre migração e comunicação,

as duas grandes temáticas do trabalho. Há processos comunicacionais na própria

experiência migratória, neste caso, compreendendo a comunicação como processo

de trocas simbólicas, ou o que Russi e Dutra (2014) consideram como processos de

comunicação — não aqueles “simplesmente projetados como causa, mas como

forma de imaginar (projeção), uma forma de ser e estar nas interações com o outro”.

(2014, p.6).

Outra justificativa para a escolha do tema baseia-se em Santaella (2001),

quando a autora afirma que a pesquisa pode ser justificada por dois aspectos:

científico-teórico e científico-prático. Desta forma, pretende-se aqui refletir sobre as

contribuições que a pesquisa traz para a realidade dos estudos da comunicação e

sua relação com os estudos de migração. Alinham-se a este conceito de Santaella

três ênfases da justificativa: enquanto abordagem pessoal do pesquisador, social e

acadêmica.

A primeira ênfase é referente ao próprio interesse do pesquisador pela

temática das migrações como pauta para os direitos humanos. Considerados como

parte das minorias sociais, os imigrantes, especialmente os advindos do eixo Sul-Sul

(tipo de imigração hemisférica entre países subdesenvolvidos), representam uma

importante pauta para a militância de direitos humanos no Brasil e no mundo. Ao

abarcar também organizações representativas como a Igreja Católica e suas

Pastorais de Migrantes espalhadas pelo mundo e a ONU, especialmente com os

relatórios sobre Migrantes e Refugiados (Acnur), a ótica do imigrante no âmbito dos

direitos humanos emerge no seio da sociedade pela busca da solidariedade,

conhecimento geopolítico e doação de tempo, expressados pela vivência do

pesquisador em organizações de apoio, em Curitiba. Sendo assim, o tema avança

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não só em direção a uma questão acadêmica, mas também a uma aproximação

vivencial.

Uma segunda ênfase, de caráter social, concerne ao aporte científico-

teórico, na medida em que a pesquisa tem potencial para colaborar com as teorias

construídas sobre o reconhecimento dos imigrantes (haitianos, no caso) como seres

culturais, dotados de expressão, a partir da compreensão da existência de

processos comunicacionais que garantam uma representação e reconhecimento

(HONNETH, 2006; 2013) deste grupo de atores sociais na esfera pública,

contribuindo para a construção de uma nova comunidade sociocultural e um espaço

marcado por fluxos de sentidos.

Fundamentalmente, é importante o reconhecimento de um mundo no qual as

fronteiras internacionais vão se rompendo, motivadas pela aceleração do processo

de globalização mais recente. Assim, como segundo ponto deste aporte social,

admite-se a necessidade dos estudos de comunicação estarem atentos a

fenômenos decorrentes deste cenário global, sendo o elevado número de migrações

internacionais, com seus processos de construção/desconstrução de identidades

culturais, um dos fenômenos a serem analisados.

Uma terceira ênfase de justificativa incide também sobre o campo científico-

teórico, mas, sobretudo, no campo científico-prático, que para Santaella (2001,

p.173) “pretende dar respostas a um aspecto novo que a realidade apresenta como

fruto do desenvolvimento das forças produtivas, técnicas, etc., ou quando se busca

uma teoria a um dado fenômeno julgado problemático (...)”. Assim, com o aumento

expressivo destes fluxos imigratórios, considera-se importante refletir sobre aspectos

da inserção dos imigrantes e sua integração na sociedade local, uma vez que

Curitiba é a quarta cidade brasileira que mais recebe haitianos, segundo fonte

anteriormente citada.

Assim, a pesquisa busca um objeto de comunicação sem estar atrelado

diretamente aos meios de comunicação, integrando-se à tendência que busca a

compreensão do objeto da comunicação e sua interação e fluxos relacionais no

cenário onde se insere, por meio de abordagens interdisciplinares. (FRANÇA, 2001).

O objeto em si, ou seja, as práticas comunicativas que compõem a relação dos

imigrantes haitianos com a sociedade, no cenário da cidade de Curitiba, contribuem

para observar a comunicação como um processo constitutivo da sociedade atual, a

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qual chamamos também de “sociedade midiatizada” e das novas identidades

culturais que se dão em torno deste novo ambiente, midiatizado e híbrido.

A partir destas escolhas, chega-se ao objetivo geral da pesquisa: analisar

como os processos comunicativos contribuem na construção da identidade dos

imigrantes haitianos em Curitiba.

Para alcançar o objetivo geral assinalado, é necessário buscar alguns

objetivos específicos: 1) O primeiro deles corresponde a “identificar e caracterizar as

organizações que realizam trabalhos de apoio junto aos imigrantes na esfera pública

local”. Para tanto, foram feitos contatos durante o período exploratório da pesquisa,

que contribuíram não só para a construção metodológica do trabalho, mas também

na escolha e compreensão de conceitos e demandas práticas sobre a temática da

migração contemporânea. 2) Outro objetivo consiste em “verificar como se realizam

os processos de comunicação dos imigrantes haitianos em Curitiba”. O

acompanhamento com base nas técnicas de observação, especialmente das

práticas comunicativas promovidas através das organizações e dos próprios

imigrantes, contribuiu para compreender como isto ocorre, mas as entrevistas com

os haitianos serviram para aprofundar a compreensão sobre o cotidiano destes

indivíduos.

Neste ponto, é importante enfatizar as questões centrais que a pesquisa

suscita: como são construídos os processos comunicativos dos imigrantes haitianos

residentes em Curitiba no âmbito da sociedade? E a outra pergunta relaciona-se

diretamente com a incidência da midiatização na sociedade e, consequentemente,

nas práticas comunicativas dos haitianos: As práticas comunicativas dos haitianos

em Curitiba constituem-se como práticas midiatizadas?

Permeando os objetivos e a questão central da pesquisa, tem-se como

pressuposto de pesquisa que as organizações de apoio aos imigrantes haitianos em

Curitiba constituem-se como as principais fomentadoras dos processos

comunicativos dos imigrantes haitianos com a sociedade.

Os procedimentos metodológicos foram pensados para tentar confirmar ou

negar este pressuposto, total ou parcialmente.

METODOLOGIA E CAPÍTULOS TEÓRICOS

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Tendo-se em conta os dados apresentados até aqui, a metodologia,

comprometida em descrever os processos de comunicação que se estabelecem na

atual realidade migratória haitiana da cidade de Curitiba, necessita, contudo,

aprofundar-se na análise sócio-histórica que o referencial teórico busca construir.

Desta forma, a abordagem da análise hermenêutica em profundidade se atém na

interpretação de um campo que já é pré-interpretado pelo próprio indivíduo e sua

experiência (THOMPSON, 2011), como é o caso dos haitianos e as falas que deles

foram extraídas para responder aos objetivos deste trabalho. Esta consideração da

interpretação como ponto-chave da pesquisa atribui especialmente à cultura uma

maneira de considerar as formas simbólicas, sendo elas construídas socialmente,

tornando propício o uso da hermenêutica em profundidade, apoiada nesta

dissertação pela influência dos estudos culturais e da discussão sobre a ideologia

que traz consigo.

Como um dos pontos da triangulação metodológica proposta, a análise

sócio-histórica vem acompanhada também de uma análise do cotidiano, ou o que

Thompson (2011) chama de doxa, a qual pode ser percebida no trabalho por meio

da observação simples com os imigrantes haitianos nos seus espaços de atuação,

seja em uma organização de apoio, sua morada ou um evento que participa. A partir

desta análise sócio-histórica e da doxa, foi importante definir as técnicas de coleta

de dados: a observação simples e as entrevistas semiestruturadas com alguns dos

haitianos e personagens deste movimento diaspórico em Curitiba, como jornalistas,

pesquisadores do tema e agentes das organizações, especialmente. Estes

procedimentos instrumentais constituem o segundo vértice da triangulação proposta.

Como técnica de análise dos dados, a pesquisa utiliza a análise de conteúdo

(BARDIN, 1979) para identificar os traços da identidade cultural que os haitianos

expressam em decorrência dos processos de comunicação. A escolha pela análise

de conteúdo não só foi definida pela proximidade do pesquisador com a técnica,

mas também pela contemplação da análise das interações, especialmente na esfera

do cotidiano, visto que Bardin considera objetos da vida cotidiana como linguagens

em interação com o mundo.

Se o objeto de pesquisa são os processos de comunicação, o objeto

empírico consiste nas práticas produzidas para os migrantes mediadas pelas

organizações de apoio – reforçando a checagem do pressuposto de pesquisa – e

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também as práticas comunicativas realizadas entre os haitianos. Por parte das

organizações são analisados os formatos, temas e presença dos haitianos nos

cursos e eventos produzidos por elas, a fim de compreender este tipo de prática e as

características de identidade e reconhecimento que se exacerbam nos seus

conteúdos discursivos.

Em relação aos processos realizados pelos haitianos, a única forma de fazer

uma análise da construção da identidade cultural por meio de práticas comunicativas

é a partir das próprias entrevistas semiestruturadas, perguntando a estes indivíduos

como tais processos, com os quais se deparam cotidianamente, interferem nas

construções pessoais e coletivas.

Por fim, esta análise desemboca na interpretação/reinterpretação, última

etapa da Hermenêutica em Profundidade, a qual avança na construção de

significados adquiridos por meio das análises sócio-histórica e formal

(instrumentalizada pela análise de conteúdo).

Até chegar a este processo, a dissertação passa por três capítulos de visada

teórica, que constroem este panorama metodológico. Primeiramente, são descritas

algumas das principais características das migrações, não só a partir de

levantamento de dados, como os realizados especialmente nessa Introdução, mas

acerca da ideia da migração como fenômeno sociológico, presente nas ciências

humanas. A partir disso é importante também ressaltar as diversas formas que

configuram a diáspora haitiana, ao mesmo tempo em que o capítulo resgata a

história da imigração no Brasil, no Paraná e em Curitiba. Relacionando as diásporas

haitianas à história da imigração para o Brasil é possível visualizar o cenário atual no

país para os novos indivíduos que aportam nas nossas terras.

O cenário das migrações, além de histórico, é social e nesse quesito se

aprofunda o segundo capítulo, o qual discorre sobre a globalização em suas

características transnacionais (SOUSA SANTOS, 2002), que rompem com a ideia

hegemônica dos Estados-nação (GIDDENS, 2001), e colocam em um diálogo

híbrido o global e o local. Esta característica híbrida da globalização é uma de suas

formas de resistência (HALL, 2013) na contemporaneidade. Essa resistência à ideia

da homogeneidade global toma formatos diversos, como o que Mattelart (2002)

chama de “redes parasitárias” ou o que o próprio Boaventura de Sousa Santos

(2002) nomeia de cosmopolitismo.

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Esta nova resistência recebe contribuição teórica dos estudos culturais, que

observam a contra-hegemonia a partir da ótica gramsciana da cultura. Neste sentido,

reforça-se no trabalho o aporte teórico-metodológico dos estudos culturais e sua

incidência sobre a construção da identidade cultural dos imigrantes haitianos que

residem em Curitiba. Se a cultura é um ponto-chave para o redimensionamento das

forças globais na contemporaneidade, as migrações cooperam neste universo ao

hibridizar o hegemônico com novas formas e modificá-lo. Ao observar este

fenômeno novo, chega-se à comunicação, considerando estas próprias interações

das culturas como formas comunicativas por excelência. A interação social é a

comunicação social neste trabalho, compreendida como um processo de produção e

compartilhamento de sentidos realizado por meio de uma materialidade simbólica e

inserido em algum contexto (FRANÇA, 2001). Com isso, podemos adentrar no

universo das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2004; 2009; 2013).

Já a escolha pelo conceito teórico da midiatização se dá pela proximidade

que esta abordagem estabelece com os estudos latino-americanos de comunicação,

que enfatizam a recepção ativa a partir das mediações socioculturais, que, por sua

vez, configuram-se como lugar de conhecimento externo do indivíduo em

confrontação a si mesmo. Essa reflexão supera a ideia puramente técnica da

comunicação, observando-a como processo social, ou o que mais adiante será

entendido como um enfoque às “mediações comunicativas da cultura” (MARTÍN-

BARBERO, 2009). Desta forma, estar nessa frente de reflexão coaduna com os

estudos culturais, pois esses incidem não só no ambiente social e nas discussões

sobre a globalização, mas se fazem presentes, neste trabalho, em suas reflexões

acerca da comunicação em meios culturais específicos, nos quais se constroem

identidades híbridas, e no interior de processos de

desterritorialização/reterritorialização. Novamente, é importante recordar que a

midiatização aparece como importante base teórica neste trabalho, pois esta se

apresenta como parte das questões de pesquisa.

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1 ENTRE O MUNDO GLOBALIZADO E A CULTURA DAS MINORIAS

Este primeiro capítulo discorre sobre o cenário de intensa globalização

transnacional no qual as migrações contemporâneas estão inclusas. Tal relação se

estabelece a partir da ótica dos estudos culturais que, ao não excluir a estrutura

social, redimensiona o debate para a ação dos sujeitos em seus ambientes como

forma de resistência às imposições de ordenamento hegemônicas do sistema global.

Os entendimentos de hegemonia são aqui utilizados a partir da visão de Boaventura

de Sousa Santos (2002), que, por sua vez, dialoga com a teoria de Gramsci.

Se no segundo capítulo, o trabalho focará as ações comunicativas dos

sujeitos imigrantes, em especial os haitianos em Curitiba, desde já é importante

compreender a dimensão ativa e cultural destes indivíduos no novo território, sua

construção identitária e sua busca por reconhecimento, como formas de resistência.

Desta forma, este capítulo se inicia com uma discussão sobre a

globalização, considerando os sistemas dos Estados-nação como principal

característica de impulso à formação das identidades nacionais, sendo estas

questionadas pelos fluxos financeiros transnacionais e pelos fluxos humanos

transculturais. Se há na contemporaneidade uma ameaça à lógica dos Estados-

nação, os próprios fluxos que a pesquisa acentua criam novos mapas de

globalização, reconfigurando a noção do global e local, centro e periferias, norte e

sul. Este novo mapa abarca as chamadas “redes parasitárias”, que farão do local

uma frente ante a tendência homogeneizante das culturas dominantes, embora

também a elas exposto e alterado.

Sem se aprofundar nas questões conceituais geográficas/antropológicas de

lugar, espaço ou comunidade, o marco teórico da pesquisa passa rapidamente por

tais conceitos, demarcando o âmbito local como ambiente de resistência dessas

culturas em movimento, caracterizadas por Sousa Santos (2002); e pela parte

empírica deste trabalho, pelas organizações que produzem um “cosmopolitismo”

como forma de ligação entre o global e o local, sendo, portanto instâncias

intermediadoras.

O cenário da globalização é revisto por meio de sua possibilidade contra-

hegemônica e a temática da globalização se encontra no viés cultural para

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direcionar esta nova forma de sociabilidade em que as pessoas, o capital e o Estado

se confrontam constantemente.

A segunda parte do capítulo está ligada a autores dos estudos culturais e,

por conta disso, traz alguns conceitos de Gramsci que ajudam a situar a diferença no

debate contra-hegemônico em direção ao que ele chama de “repertórios de

resistência”, substituindo a dicotomia da “luta de classes” do marxismo clássico.

Assim, passando por Gramsci e pelas origens dos estudos culturais britânicos, a

noção de cultura é trabalhada distanciada da mera estratégia de classe e das

conduções antropológicas à medida que considera o mundo universal e individual do

ser humano como característica sociológica. Esta característica de união entre o

universal e o individual se vincula a toda a estrutura sobre a qual o capítulo foi

inicialmente construído e lhe dá sequência, especialmente no que tange às questões

que tocam a esfera individual, como a construção de identidades culturais, ainda que

esta esteja amparada por um reconhecimento coletivo.

Antes de iniciar um debate mais aprofundado sobre a construção da

identidade e o reconhecimento cultural, o capítulo discorre sobre as culturas

populares, seu aspecto híbrido e sua incidência sobre o que se compreende por

culturas minoritárias, expressão que aparece no título do capítulo, justamente por

manifestar traços fundamentais da cultura migrante no cenário da pesquisa.

1.1 GLOBALIZAÇÃO COMO CENÁRIO

Na visão contemporânea sobre a globalização é predominante aquela que

enxerga as características hegemônicas deste fenômeno, como afirma Sousa

Santos (2002), mas, este mesmo autor não entende a globalização hegemônica

como única e inevitável. Sousa Santos rechaça a visão monocausal a respeito da

globalização, entendendo-a como um fenômeno multifacetado e que cria, em seu

interior, formas de resistência e alternatividades, havendo, portanto, uma

globalização contra-hegemônica em andamento. Considerar as várias

compreensões sobre a globalização é importante para tê-la como uma referência

que engloba as relações macrossociais ao mesmo tempo em que, ao percebê-la

com características contra-hegemônicas, abdica-se da ideia do “fim da história”,

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como afirma Fukuyama (1992) — a história é que decreta a vitória da lógica global

sobre a local. Neste sentido, passamos pelas considerações da globalização

hegemônica e, adiante, pela globalização contra-hegemônica, que trará o aporte

necessário às dinâmicas culturais e seus signos de pertencimento.

Anthony Giddens (1991) elenca quatro características principais da

globalização para que seja possível entender as forças que a mantém: a economia

capitalista mundial, os sistemas de Estados-nação, a ordem militar e a divisão

internacional do trabalho. Nesta dissertação, os sistemas de Estados-nação

recebem maior destaque pela relação contraditória frente ao tema dos fluxos

migratórios e à ideia de rompimento de fronteiras. As demais características,

contudo, são elencadas abaixo, por manterem relações próximas umas às outras,

conforme argumenta Giddens.

A primeira característica – a economia capitalista mundial – se configura em

uma íntima relação com os sistemas de Estado-nação, visto que estes são os

principais centros de poder deste sistema econômico. Junto aos Estados, as

empresas de negócios, especialmente as transnacionais, podem ter grande poder

de influência na política dos países onde se encontram instaladas, mas também têm

seu poder limitado pela ausência de características militares na disputa política em

determinados territórios.

A ordem militar, como terceira dimensão da globalização, necessitaria de

análises aprofundadas em especial no que tange à industrialização da guerra, ao

fluxo mundial de armamentos e às técnicas de organização militar. Mas assim como

os sistemas de Estados-nação, essa dimensão também está subordinada à sanção

de outros Estados que limitam sua prática. O autor considera que as guerras são

parte da globalização do poder militar. Já a quarta dimensão apontada por Giddens

diz respeito ao desenvolvimento industrial, especialmente à divisão global do

trabalho, considerando que a indústria moderna se baseia intrinsecamente em

divisões de trabalho. O autor comenta:

Não há dúvida de que ocorreu uma importante expansão de interdependência global na divisão do trabalho desde a Segunda Guerra Mundial. Isto ocorreu para a realização de mudanças na distribuição mundial da produção, incluindo a desindustrialização de certas regiões nos países desenvolvidos e o surgimento dos ‘Países Recém-Industrializados’ no Terceiro Mundo. (GIDDENS, 1991, p.88).

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Outro traço importante desta industrialização global é a difusão das

tecnologias, as quais interferem no cotidiano mais do que a esfera de produção, bem

como no contato com o ambiente, que incide sobre a sensação de se viver em “um

mundo” unificado. Giddens completa afirmando que as tecnologias de comunicação

“formam um elemento essencial da reflexidade da modernidade e das

descontinuidades que destacaram o moderno para fora do tradicional”. (Idem, p. 89).

A industrialização global na esfera da produção é um dos pontos mais

importantes da discussão acerca das migrações atualmente, especialmente quando

tratada pela opinião pública. Matérias jornalísticas sobre as migrações

contemporâneas, especialmente as que envolvem a emigração dos países

considerados periféricos em relação aos países de destino, estão comumente

ligados à ideia do trabalho e aos fluxos de pessoas em busca de melhores

condições financeiras de vida.

Dois artigos produzidos por este pesquisador, em co-autoria, analisaram as

matérias sobre imigrantes produzidas pelo jornal Gazeta do Povo17 – ligado ao

Grupo Paranaense de Comunicação (Grpcom), afiliada da Rede Globo no Paraná –

e pelo jornal Brasil de Fato18, de cunho popular e abrangência nacional. Guardando

as diferenças de abordagem e abrangência da pesquisa19, ambas as análises

demonstraram a argumentação de que a lógica dos imigrantes é mais enquadrada

pela imprensa, seja ela popular ou não, pela ótica do trabalho, carecendo da visão

de valorização cultural destes indivíduos em contato com o novo território. De forma

ampla, a crítica realizada às migrações segundo o viés marxista, em que os

migrantes, ao saírem de seu lugar de origem, e abdicando de sua vida social e

familiar, tornam-se mais vulneráveis à exploração do trabalho – é retratada

exaustivamente nas matérias do jornal popular Brasil de Fato, ao abordar a questão

do trabalho escravo. Das 17 matérias encontradas sob o tema “migração”, nas 30

edições analisadas do jornal, 8 falavam de trabalho escravo, com títulos evidentes,

como: “Escravos da moda. Quem se importa com a procedência?” e “Fiscalização

resgata haitianos escravizados em São Paulo”. Ao mesmo tempo, reconhece-se o

17 http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2014/resumos/R9-2246-1.pdf

18 http://www.e-democracia.com.br/sociologia/anais_2015/pdf/AMRX.pdf

19 Foram analisadas um maior número de encartes da Gazeta do Povo por ter uma tiragem maior e a

pesquisa restringiu-se à imigração haitiana, enquanto a análise do Brasil de Fato englobou todos os

tipos de migração, inclusive as internas.

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direito e a importância do indivíduo ter livre trânsito, embora no domínio cultural, tal

consenso neoliberal seja muito seletivo: “Os fenômenos culturais só lhe interessam

na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da

globalização econômica”. (SOUSA SANTOS, 2002, p.49).

Mesmo reconhecendo a importância da discussão sobre a quarta

característica elencada por Giddens, não é da alçada desta pesquisa, no entanto,

entrar nas questões específicas sobre a exploração do trabalho dos imigrantes, mas

sim alcançar as nuances culturais deste fluxo contemporâneo de pessoas em um

novo território. E de todas as características da globalização apontadas pelo autor,

percebemos que é a tônica dos sistemas de Estados-nação que fortificam tal debate,

como será explicado logo adiante.

1.1.1 A globalização e o redimensionamento dos Estados-nação

Os Estados-nação e o atual processo de globalização estão diretamente

relacionados. Segundo Giddens (1991), o sistema dos Estados-nação compõe uma

das quatro dimensões da globalização e são responsáveis, junto ao capitalismo, por

condicionar a natureza das instituições modernas. Embora unidos, o sistema

capitalista resiste em respeitar os limites nacionais, colocando-se alinhado à

economia mundial e sua característica transnacional. No entanto, são justamente os

Estados-nação, responsáveis por enquadrar a sociedade em seus limites nacionais,

que contribuem na formação de “comunidades imaginadas”, conforme salienta Stuart

Hall (2013), ao se referir à ideia de que a formação dos Estados-nação foi

responsável por unificar territórios, culturas e línguas, ignorando, contudo, a

diversidade desses mesmos componentes. Ao mesmo tempo em que há a

consolidação do sistema de Estados, o intercâmbio cultural continua a ocorrer,

inclusive por meio do fenômeno das migrações, com destaque para o fluxo entre

colônia e colonizador, com claras desvantagens para os últimos. Assim Porto-

Gonçalves (2004) expõe a questão, ao destacar que:

[...] se pressupõe que as matérias-primas e a energia, fruto do trabalho das populações dos países do Terceiro Mundo, devem continuar fluindo no mesmo sentido e direção da geografia moderno-

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colonial, ou seja, para os países e classes ricas dos países ricos ou para as classes ricas dos países pobres. [...] Toda a questão passa a residir, então, em como garantir o suprimento permanente de matéria e energia em uma quadra histórica em que o colonialismo e o imperialismo já não se sustentam moral e eticamente. (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 20).

Para o geógrafo, a ideia de que os homens são iguais, considerada a base

da revolução política da modernidade, tem enorme dificuldade para ser sustentada

no âmbito dos marcos liberais, “enorme dificuldade para se estender além dos

territórios europeus ou europeizados (Estados Unidos e Canadá), enfim, para a

América Latina e o Caribe, para a África e a Ásia. A modernidade é inseparável da

colonialidade”. (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 20).

O que parece ficar cada vez mais claro é que este movimento contrário dos

Estados-nação frente ao capitalismo é restrito, situando-se mais especificamente na

busca por uma preservação cultural nacional ainda que as forças globalistas sejam

mais fortes. Nesta relação de forças entre o nacional e o global, Giddens (1991)

afirma que a influência de qualquer Estado específico na ordem política global é

fortemente condicionada pelo nível de sua riqueza, mas os Estados não operam

apenas como máquinas econômicas: atentam-se, como “atores” em seus territórios,

preocupados com suas culturas nacionais e mantendo um envolvimento geopolítico

estratégico com outros Estados.

A dialética globalista se acentua na medida em que o Estado-nação e sua

tendência centralizadora perdem força pela expansão das economias

multinacionais/transnacionais e se veem em um ambiente de proeminência dos

mercados globais sobre os nacionais. Embora Sousa Santos (2002) afirme que o

fenômeno da regulação estatal é algo novo – especialmente experimentada no

século XIX –, a globalização vivida no último século denota um enfraquecimento dos

poderes do Estado para a ascensão das demandas oriundas do Consenso de

Washington20 e sua economia voltada ao mercado como regulador do

neoliberalismo.

Neste jogo de forças, Giddens (1991) demonstra a dialética dos Estados,

cuja legitimidade de sua soberania passa justamente pela sanção de outros

20 Realizado em 1989, o Consenso de Washington foi um dos responsáveis pela promoção do acesso

às políticas neoliberais da América Latina, caracterizado por ajustes fiscais, privatizações e abertura

comercial e econômica ao capital externo.

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Estados, mediados por organismos internacionais e forças econômicas. Sobre isto

afirma Mattelart (2002): “O termo ‘transnacional’ que implica a existência de um

movimento de conjunto rumo à integração mundial pretende significar que existe

uma fonte virtual de conflitos e interesses das macroempresas e os territórios onde

as mesmas se instalam” (p.101). Nesta relação onde os interesses transnacionais

incidem sobre os Estados, Sousa Santos (2002) cita exemplos da proeminência dos

mercados globais sobre os nacionais, com a dominação da economia pelo sistema

financeiro e de investimentos, a produção flexível e multilocal, os baixos custos com

transporte, a alta tecnologia de informação e preeminência das agências

financiadoras multilaterais.

Este cenário pode ser considerado como aquele que Hall (2013) chama de

“pós-colonial”, cujo termo está relacionado a uma releitura do processo de

colonização que não se caracterizou apenas como a passagem do feudalismo para

o capitalismo, mas se constituiu como algo maior que o domínio direto de um país

sobre o outro: significa todo o processo de expansão e hegemonia da modernidade

capitalista europeia e que vai dar continuidade a um processo essencialmente

transnacional e transcultural.

Essa renarração desloca a ‘estória’ da modernidade capitalista de seu centramento europeu para suas ‘periferias’ dispersas em todo globo; a evolução pacífica para a violência imposta; a passagem do feudalismo para o capitalismo para a formação do mercado mundial (...). (HALL, 2013, p.123).

Esta acepção de Hall (2013) rompe com a ideia binária de “aqui” e “lá”,

“antes” e “agora”, e de que o global seria algo universal ou específico a alguma

nação. O pós-colonial diz respeito a como tais relações transversais (diaspóricas)

deslocam nações trazendo o centro para a periferia e vice-versa. O que Hall parece

deixar claro é que não se exime os efeitos de todo o processo de colonização, ao

mesmo tempo em que o deslocamento desta lógica binária incide também em uma

internalização na sociedade descolonizada. Já Porto-Gonçalves (2004, p.20)

entende que “na América Latina e no Caribe, a colonialidade sobreviveu ao

colonialismo, por meio dos ideais desenvolvimentistas eurocêntricos, ocupando os

corações e mentes das elites criollas, brancas ou mestiças nascidas na América.”

Ao compreender o pós-colonial como a fase atual do capitalismo e seu

descentramento do centro para as periferias globais, surge um tipo de mapa global

que contribui para percebermos a construção das identidades culturais que cada vez

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menos se restringem aos limites do Estado-nação e se encontram em novos centros

e em novas maneiras de pertencer e se identificar. O questionamento que a

construção teórica busca responder adiante é: estão as identidades determinadas

pelo fluxo transnacional que se estabelece no atual formato do capitalismo? Há

alguma forma de estabelecer uma contra-hegemonia que aproveite este rompimento

fronteiriço, para se construir novas formas de sociabilidade?

1.1.2 Mapas da globalização

Uma característica marcante do caráter neoliberal da globalização é a

organização geográfica. Sousa Santos (2002) salienta que a geografia das

estruturas econômicas globais impõe uma subordinação aos Estados, especialmente

aos subdesenvolvidos, que privilegia a não-regulação estatal da economia, os

direitos de propriedade internacional para investidores e uma subordinação dos

Estados a organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio

(OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e as agências

financeiras que avaliam a situação dos Estados frente ao poder de investimento.

Mesmo que a estrutura seja global, o autor não abdica da ideia de que a lógica

econômica ainda é caracterizada por uma intensa concentração econômica e

destaca os países do Sul, Sudeste e Leste Asiático como maiores beneficiários

desses investimentos.

A discrepância geográfica entre centros e periferias produzida por tal

sistematização faz com o que o Estado não seja ameaçado mais por outro Estado,

mas, sobretudo, pelas grandes empresas em movimentos contínuos de

desnacionalização, desestatização, internacionalização. Na linha econômica, Sousa

Santos (2002) indica alguns tipos de ajustes estruturais para a “estabilização

macroeconômica”, como a flexibilização salarial, a privatização dos serviços sociais,

a expansão do terceiro setor e a pouca preocupação com a problemática ambiental.

Um dos principais exemplos de regulação transnacional considerados pelo autor

vem da área das telecomunicações, impulsionados pela ascensão neoliberal da

década de 1990:

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As telecomunicações são cada vez mais a infraestrutura física de um tempo-espaço emergente (...) este novo tempo-espaço tornar-se-á gradualmente o tempo-espaço privilegiado dos poderes globais (...) esta forma de poder é exercida global e instantaneamente, afastando, ainda mais, a velha geografia do poder centrada em torno do Estado e do seu espaço-tempo. (SOUSA SANTOS, 2002, p.41).

Cabe salientar, no entanto, que há uma diferença entre a internacionalização

e a globalização. A internacionalização se apresenta com um “aumento da extensão

geográfica das atividades econômicas através das fronteiras nacionais”, conforme

afirmam Haesbaert e Limonad (2007, p.41), ao passo que, para os mesmos autores,

a globalização avança esse conceito implicando um grau de “integração de

atividades econômicas dispersas em escala planetária” (p.41) por meio de fluxos

contínuos de capital estrangeiro.

No âmbito desta lógica da diferença, Mattelart (2002) fala de um “novo mapa

das desigualdades” que abala a relação maniqueísta Norte-Sul para a descoberta,

por parte do Norte, dos diversos ‘Sul’ e de que no próprio Sul há um novo Norte, que

seriam as megalópoles dos países subdesenvolvidos e sua potencial mão de obra.

(p.150). Neste novo mapa está incluso o que autor nomeia de “redes parasitárias”,

também chamadas de “novos fronts planetários da desordem” e que incluem “os

fluxos transnacionais das diásporas e das correntes migratórias do trabalho, regular

e clandestino”. (p.152).

Ao falar das redes parasitárias, formuladas pelos fluxos transnacionais das

diásporas, Mattelart (2002) considera que há “fronteiras” que contradizem a ideia de

monocultura da globalização. A partir de um processo de hibridação, o sociólogo

destaca a reterritorialização a partir dos sincretismos entre a cultura que resiste e a

hegemônica, o qual ele entende por mestiçagem.

Se a mundialização/globalização é um componente da cultura contemporânea, isso não significa que ela seja a única lógica capaz de definir os destinos do planeta. A década de 80, que assistiu ao florescimento das doutrinas da globalização financeira e da padronização cultural, conheceu igualmente um movimento de ideias que sublinha a defasagem entre as forças centrípetas e aglomerantes da lógica mercantil e a pluralidade das culturas, e concebe a fragmentação e a globalização como dois fatores em tensão onde se joga a decomposição/recomposição das identidades sociais e culturais. (MATTELART, 2002, p.160).

Substituindo a ideia de “fronteiras” por “fragmentação”, Haesbaert e Limonad

(2007) também consideram que determinadas formas de resistência são

manifestadas através de desigualdades e processos de exclusão. Sobre a relação

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entre a cultura internacional/local e a ideia de que na globalização a primeira

dominaria a segunda, citando Appadurai (1990), Mattelart (2002) nega a afirmação,

dizendo que os instrumentos de homogeneização ficam “absorvidos pelas

economias políticas e culturais locais, unicamente para serem repatriados como

diálogos heterogêneos de soberania nacional, de livre iniciativa e de

fundamentalismo onde o Estado tem um papel cada vez mais delicado”. (p.161).

Como pensar um mundo unificado se existem tantos universos paralelos?

Desta forma, Mattelart afirma que a própria Antropologia está atenta não mais

somente ao exotismo da cultura, mas também à atualidade da “diminuição” do

planeta, levando em consideração os variados mundos que perpassam as pequenas

unidades, reconstituindo-as sem cessar, dentro da mesma perspectiva do

“encolhimento” do planeta pela compressão espaço-tempo, como afirmam Giddens

(1991) e Sousa Santos (2002).

Ao ver a impossibilidade de um mundo homogêneo nas formações sociais,

políticas, econômicas e culturais, por conta de processos contrários à própria

globalização, esta pesquisa se encaminha em direção a uma abordagem conceitual

mais próxima à ideia culturalista dos estudos sobre a globalização, embora

considere importante a dimensão jurídico-política, conforme classifica Haesbaert e

Limonad (2007, p.45), pois salientam os Estados-nação e as diversas organizações

políticas como atores principais. Por outro lado, o viés culturalista traria os indivíduos

e os grupos étnico-culturais ao primeiro plano. Outro viés, com uma abordagem

minimizada neste trabalho é o viés econômico, que credita às empresas, aos

trabalhadores e aos Estados-nação – enquanto unidades econômicas – papel

central.

A aposta em uma análise pelas vias culturais adquire importância pela

apropriação deste espaço, aqui visto também pelas organizações de apoio aos

imigrantes haitianos, construídas através da formação da identidade dos indivíduos

em diáspora.

1.1.3 A relação estreita entre globalização e cultura

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Este ponto da reflexão é estabelecido a partir das considerações que Sousa

Santos (2002) traz sobre o lugar da cultura na globalização. Se a discussão sobre o

tema pode tomar diversos rumos, é preciso escolher um foco básico para ela. Sousa

Santos indica que outras questões como a política, a econômica ou a militar

poderiam se situar no topo dos debates, mas seguindo o viés dos estudos culturais,

este trabalho pretende trazer a questão cultural como aprofundamento da temática

da globalização a partir deste primeiro cenário.

Sousa Santos (2002) traz a contribuição de Appadurai (1997), que enxerga

nos meios de comunicação, incluindo aqui as novas tecnologias, e nas migrações

em massa, os responsáveis pelo deslocamento dos indivíduos do mundo da

modernização para o mundo pós-eletrônico, tornando ambos – meios de

comunicação e migrações em massa – relacionados a um processo de “trabalho da

imaginação”, que alinha indivíduos desterritorializados geograficamente a

“comunidades de sentimentos”, que Appadurai chama de “esfera pública diaspórica”.

(SOUSA SANTOS, 2002, p.45).

Ao sugerir a pergunta ‘até que ponto a globalização indica

homogeneização?’, Sousa Santos considera que no contexto pós-eletrônico, a

imaginação é fonte de dominação dos Estados e das transnacionais, mas também é

nela que “os cidadãos desenvolvem sistemas coletivos de dissidência e novos

grafismos da vida coletiva”. (2002, p.46). Afirmando isto, é possível considerar que

mesmo com o imperialismo cultural existindo, torna-se inoportuno considerar que

haja uma cultura global advinda das várias hibridações, cuja característica de

diversificação está no próprio processo da globalização transnacional.

A contradição oriunda da globalização é expressa por Sousa Santos quando

afirma o papel duplo dos Estados-nação na promoção da cultura: ao mesmo tempo

em que promovem a diversidade cultural e a autenticidade da cultura nacional,

internamente os mesmos promovem a homogeneização cultural pelo sistema

educacional, meios de comunicação, poder judiciário e político, alinhados a valores

hegemônicos.

Sousa Santos (2002) ainda enfatiza que é necessário identificar as formas

culturais parciais enquanto formas globais, que controlam a dinâmica global por meio

de um discurso do global. Sendo assim, constata-se também que com a abertura

transfronteiriça aumentam as formas de solidariedade e de ecumenismo, ao mesmo

tempo em que as manifestações de intolerância e xenofobia se fortalecem (2002,

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p.88). Da mesma forma, Giddens (1991) comenta sobre a reação nacionalista que

pode ocorrer em contrapartida à globalização, afetando os Estados-nação. (p.77).

1.2 A GLOBALIZAÇÃO AMPARADA PELO MULTICULTURAL

Ao perceber as relações sociais e culturais como um componente novo no

que Sousa Santos (2002) chama de “sistema mundial em transição”, este trabalho

se encaminha para aprofundar a análise na perspectiva de uma globalização de

caráter contra-hegemônico, que por meio de culturas de resistência e hibridizações,

redimensiona o caráter homogeneizante da globalização, configurando-o como um

momento de transição da história, assim como outros.

O autor português aqui tomado como uma das principais referências do

capítulo apresenta duas intencionalidades que considera falaciosas: a do

determinismo de que a globalização é algo inevitável e uma segunda

intencionalidade configurada pela falácia do desaparecimento do Sul, criticando a

ideia de que a globalização dispensa diferenciações entre norte e sul, centro e

periferia. E quanto mais triunfalista é a globalização, mais se ressalta isso. Assim

sendo, ambas as questões que Sousa Santos chama de “falácias” situam a

perspectiva do olhar sobre a globalização, que aqui ganha contornos de amálgama

da miséria e desigualdades, diluindo o ponto de vista triunfalista da racionalidade, da

inovação e da liberdade em produzir progresso.

Sousa Santos (2002) observa que o sistema mundial em transição apresenta

três frentes, a saber: 1) as práticas interestatais (enquanto protagonistas da divisão

internacional do trabalho); 2) as práticas capitalistas globais (os agentes

econômicos); 3) e as práticas sociais e culturais (fluxos de pessoas e culturas,

informação e comunicação). O que vem a distinguir o sistema mundial em transição

para o moderno é a soma das práticas sociais e culturais, acentuadas pelo aumento

de intensidade das relações, junto às outras duas frentes. No entanto, as frentes não

são separáveis, mas formam uma espécie de “transconflituosidade” (2002, p.60),

cujos conflitos interagem de modo híbrido, até mesmo assimilando um tipo de

conflito a outra frente como, por exemplo: os problemas interestatais que demandam

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um elevado número de migrantes refugiados e a mudança discursiva que se

estabelece no país receptor sob a categoria de ameaça cultural.

A dinâmica dos conflitos apresenta um aporte de dominação: a hierarquia.

Esta é diretamente proporcional à neutralização das desigualdades produzidas

através do discurso dominante. Para Sousa Santos (2002), as hierarquias principais

– e que dominam todas as outras – são as que configuram a relação centro/periferia

e global/local. O destaque a esta expressão da globalização é dada pelo caráter de

“trocas desiguais” (2002, p.63) que a produção da globalização emprega, fazendo

com que determinado artefato, entidade ou identidade local transpasse sua fronteira,

designando como seu outro artefato, entidade ou identidade. É possível encontrar no

cotidiano vários exemplos, como a internacionalização do ritmo do samba,

incorporado aos concursos de dança mundo afora, mas que tem origem nos morros

periféricos brasileiros, especialmente no Rio de Janeiro. Da mesma forma,

inversamente, encontramos nas gôndolas dos supermercados e no dicionário em

português o hambúrguer e o champignon; ou se delimitarmos ao espaço nacional,

as festas de São João, que extrapolam hoje os limites do catolicismo e da região

nordeste. Sobre a relação entre o local na cultura global, o autor afirma:

Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma inserção cultural específica. A segunda implicação é que a globalização pressupõe localização (...). De fato, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. (SOUSA SANTOS, 2002, p.63).

A interdependência que Santos observa entre globalização e localização traz

algumas implicações mais críticas ao considerar que o local é integrado na

globalização pela exclusão ou pela inclusão subalterna. No entanto, este local não

seria o local que existia antes da globalização (e que consegue sobreviver à

margem), e sim o que resulta da produção global da localização.

É possível dialogar as considerações de Sousa Santos (2002) com

Haesbaert (2003), o qual traz a expressão “glocalização”, significando que há um

hibridismo no processo da globalização entre processos globais e locais, o que

permite pensar em uma sobreposição de territórios ao invés de anulação dos

mesmos. Falar de desterritorialização, segundo o autor, pressupõe então discutir a

flexibilização/mobilidade e abrangências de tais territórios baseando-se em um

reforço das suas bases simbólicas. O território aqui não está acabando, mas está

surgindo uma nova forma multiterritorial dele.

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O que é importante para compreender a ideia do multiterritorial é que as

identidades hoje são complexificadas por conta da sobreposição de territórios

expressa pelas diferentes experiências ocasionadas pela mobilidade e pela inserção

da cultural global no espaço local, que outrora eram restritas às suas formas

culturais. A principal novidade reside na forma com que estas identidades

sobrepostas redefinem os limites políticos-territoriais dos Estados-nação, alterando a

face geográfica do mundo a partir da cultura. Esta capacidade de mobilidade faz

com que o espaço nacional seja então substituído pelos espaços locais.

(HAESBAERT e LIMONAD, 2007). A substituição do nacional pelo local não impede

a dinâmica da globalização em criar fronteiras – ou fragmentá-las —, como já

expresso, mas este local não é o local que existia antes da globalização, e sim o que

resulta da produção global da localização. (SOUSA SANTOS, 2002, p.65). Sobre

isso, comenta Martín-Barbero em um diálogo com a dinâmica migratória e a

modernidade:

De ahí que el extranjero se convierta en el fantasma que acecha desestabiliza la modernidad, porque no cabe en la determinación de amigo/enemigo sino que introduce toda la trasformadora ambigüedad de e outro que vive adentro. El migrante es el extranjero que no cabe en la sociabilidad básica de la modernidad: mientras el enemigo hace parte de la sociedad, el extranjero no pertenece y por tanto desordena, perturba, enloquece la identidad fundante de lo nacional. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.25).

Desta forma, o novo local está relacionado a uma ideia transnacional de

contra-hegemonia, que extrapola seu campo geográfico para atingir um

cosmopolitismo, que para Santos (2002), é uma das formas de resistência à

globalização. Para o autor, o cosmopolitismo consiste em um movimento contra-

hegemônico, mas sem base classista, e se estabelece como organização

transnacional de resistência compondo, por exemplo, movimentos sociais, redes de

solidariedade transnacional, ONGs, etc.

Contrariamente à concepção marxista, o cosmopolitismo não implica uniformidade e o colapso das diferenças, autonomias e identidades locais. O cosmopolitismo não é mais do que o cruzamento de lutas progressistas locais com o objetivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligações translocais/locais. (SOUSA SANTOS, 2002, p.69).

Sousa Santos (2002) argumenta que, em resposta às ameaças

transnacionais da globalização se criaria um “novo protecionismo”, a partir da ideia

de “localização”. Essa ideia pode também ser nomeada como uma territorialização

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ante a desterritorialização do global hegemônico. Desta forma, Sousa Santos não

recomenda dicotomizar o local e o global contra-hegemônicos, mas unir as

resistências devido ao fato de que “o global acontece localmente. É preciso fazer

com que o local contra-hegemônico também aconteça localmente.” (2002, p.74).

Durante o trabalho de análise e apresentação dos objetos desta pesquisa,

tal contribuição é feita com mais ênfase, mas é válido, desde já, citar como exemplo

o trabalho de solidariedade internacional que a Casa Latino-Americana (Casla),

localizada em Curitiba realiza. A organização manifesta essa forma de

cosmopolitismo ao se envolver com questões ligadas aos Mapuches, que são as

populações originárias do Chile, por exemplo, trazendo suas experiências e

necessidades como forma de defesa dos povos latino-americanos na cidade de

Curitiba, expressadas, contudo, pela presença de outros tipos de latino-americanos

e caribenhos, como os haitianos.

Compreendendo a resistência do cosmopolitismo como a busca por

pertencimento, os fluxos migratórios de pessoas e sua difícil aculturação à nova terra

contribuem para um processo de desterritorialização. Assim, Milton Santos (2012)

relaciona desterritorialização (a perda do território original, do espaço de

pertencimento e memória) à alienação, para ele, uma desculturização. Mas Santos

não condena o migrante à eterna alienação – as incitações e a capacidade criativa

do homem fazem com que ele não aja apenas de forma passiva, mas que a relação

entre o homem e o território:

manifesta-se dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que interferem reciprocamente mudando-se paralelamente territorialidade e cultura, mudando o homem. Quando essa síntese é percebida, o processo de alienação vai cedendo ao processo de integração e de entendimento, e o indivíduo recupera parte do seu ser que parecia perdida. (SANTOS, 2012, p.83).

Ao mesmo tempo em que há a possibilidade de integração, Canclini (2013)

observa a existência de estratégias na tensão entre desterritorialização e

reterritorialização, que dizem respeito a esta perda da relação natural da cultura com

os territórios geográficos e sociais, como salienta também Santos; e, ao mesmo

tempo, relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções

simbólicas. Há nesta trama de desterritorialização (alienação) e reterritorialização

(integração) um resultado híbrido que dá forma às culturas dominadas, inclusive com

o componente transcultural, que parte de uma seleção e invenção dos grupos

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subordinados a partir do que foi transmitido pela cultura dominante. Há aqui

trajetórias que se entrecruzam e são dialógicas. Esta dialogia é evidenciada pela

hibridização cultural, que para Canclini:

aparece hoje como o conceito que permite leituras abertas e plurais das misturas históricas, além de construir projetos de convivência despojados das tendências a “resolver” conflitos multidimensionais através de políticas de purificação étnica. [A hibridização] contribui para identificar e explicar as múltiplas alianças fecundas: por exemplo, do imaginário pré-colombiano com o novo-hispânico dos colonizadores e logo com o imaginário das indústrias culturais (Bernand, Gruzinski), da estética popular com a dos turistas (De Grandis), das culturas étnicas nacionais com as das metrópoles (Bhabha), e com as instituições globais (Harvey). (CANCLINI, 2003, s/pag).

A partir deste cenário de integração, diálogo e multiculturalismos, Canclini

nos encaminha para algumas considerações sobre cultura e sua estreita relação

com temas fundamentais na lógica migratória: a identidade e o reconhecimento.

1.3 SOBRE CULTURA, IDENTIDADES E RECONHECIMENTO

Ao entrar no campo da globalização de caráter contra-hegemônico, a

abordagem dos estudos culturais faz sentido pela valorização que dá às resistências

geradas em âmbito local e global. Tais resistências propiciam a construção de

identidades sociais baseadas nos processos de apropriação cultural que revelam o

que ElHajji diz sobre uma “inequação entre os planos nacional-estatal e cultural-

identitário” (ELHAJJI, 2005, p.191).

A partir da configuração das resistências da globalização atuantes nos

localismos e sua apropriação cultural, decorrente de um processo de pertencimento,

são necessárias formas de reconhecimento para este novo indivíduo que transita em

um novo território. Embora o tema seja importante na análise das entrevistas, o tema

do reconhecimento não será tão explorado neste trabalho a fim de que a pesquisa

possa focar na ideia de identidade. No entanto, faz-se uma breve reflexão sobre o

tema para manter a necessária relação entre reconhecimento e identidade, alinhada

ainda à construção do olhar que a pesquisa faz sobre a cultura.

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1.3.1 Os estudos culturais e a tendência gramsciana

Os estudos culturais se destacam no cenário das correntes de pensamento

científico pela forma como constroem suas linhas de raciocínio, embasadas em

distintas escolas do conhecimento, na obtenção de uma compreensão da cultura e

dos processos sociais circunstanciais ao tempo pós-moderno e da necessária

resistência das culturas populares.

O estruturalismo, seja pela variante linguística de Lévi-Strauss ou pela

ênfase marxista de Althusser, é influência para os estudos culturais latino-

americanos na medida em que denotam a presença de estruturas que não são

determinantes, mas condicionam os processos culturais (MARTÍN-BARBERO, 2014;

2013). Da mesma forma, outro paradigma para os estudos culturais é o culturalismo

– desenvolvido sob a forma do multiculturalismo nos estudos latino-americanos –

que, mesmo sendo eventualmente confundido pelo público com os próprios estudos

culturais, é anterior a esse, demarcando para os estudos culturais a força no

indivíduo como gerador de cultura, concepção deixada de lado pelo estruturalismo

clássico.

A concepção de cultura vista a partir do popular e como resistência à cultura

dominante demarca, todavia, um caráter gramsciano pelo conceito de contra-

hegemonia empregado por seus primeiros intelectuais como E.P Thompson,

Raymond Williams e Richard Hoggart, tendo estes – especialmente o último –

relações estreitas de vida com as culturas populares. A influência marxista em

relação a outras correntes filosóficas e seu debate sobre a cultura definiu os estudos

culturais como uma nova forma de perceber o pensamento de esquerda — com

cautela frente à relação determinista de Marx com relação aos mecanismos da

infraestrutura/superestrutura como determinantes da sociedade. Ao abdicar desta

determinação, os estudos culturais avançam para a compreensão das relações que

os indivíduos travam entre si e os processos sociais que se estabelecem como

ressalta Martín-Barbero: “De outro lado, a globalização e a questão transnacional

ultrapassarão os alcances teóricos da teoria do imperialismo, obrigando-nos a

pensar uma trama nova de territórios e de atores, de contradições e conflitos”. (2004,

p.217).

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Ao avançar para esta perspectiva, se os estudos culturais surgem no

contexto do debate sobre a modernidade, a questão da globalização e o horizonte

gramsciano fazem com que o olhar recaia sobre as dinâmicas culturais que se

organizam nesta realidade e contribuem nas investigações para as experiências

sociais. Nesta nova socialidade, os processos de produção e circulação da cultura

são potencializados pelo avanço das novas tecnologias e novas formas de

sensibilidade, fazendo com que as mídias construam o público e medeiem a

produção de imaginários que, de certa forma, estão relacionadas à “desgarrada

experiência urbana dos cidadãos”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.220).

A interdependência disciplinar nos estudos culturais advém do entendimento

de que os processos sociais não são isolados, especialmente na relação dinâmica

que esses têm com os processos produtivos e a estrutura social. Os estudos

culturais dão uma ênfase importante aos meios de comunicação, embora este

trabalho não os salientem enquanto objeto de estudo na análise comunicativa, mas

sim como componentes de uma circulação midiatizada. De toda forma, Escosteguy

(2010a) afirma que, a partir desta intersecção entre processos produtivos e

estrutura, a análise dos meios de comunicação é também parte da problemática do

poder e da hegemonia, pois além de serem relativos aos processos de

comunicação, configuram-se como processo político, imerso na cultura.

A autora segue afirmando que para pensar a pluralidade das matrizes

culturais no interior de um engajamento político, não é possível explicar a análise

dos conflitos apenas pela ótica de classe, defendido por um marxismo determinista.

A visão marxista dos estudos culturais, segundo ela, recai sobre a ótica gramsciana.

“O redefinido é tanto o sentido de cultura quanto o de política, permitindo

(re)descobrir as culturas populares e a constituição de identidades. Isso em grande

medida se deve à incorporação de parte do pensamento gramsciano”.

(ESCOSTEGUY, 2010a, p.50).

A análise cultural gramsciana tem forte incidência na consideração do que é

a ideologia, que para o marxista italiano é uma relação vivida, considerando-a por

meio do conhecimento popular, cotidiano e o senso comum. Neste sentido, Gramsci

considera que “todos os homens são filósofos”, portanto, dominam uma forma de

saber, seja a linguagem, o senso comum ou a religião popular e até mesmo o

folclore. (ALMEIDA, 2008, p.5).

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O que distingue o tratamento dado por Gramsci à ideologia é a preocupação que estrutura o pensamento popular. Assim, ele insiste que todos somos filósofos ou intelectuais, na medida em que pensamos, pois todo pensamento, ação e linguagem são reflexivos (...) e, dessa forma incluem uma concepção particular de mundo. (HALL, 2013, p.357).

Hall distingue o problema da ideologia, ao buscar diferenciar que o que se

entende por ideologia diz respeito pela “forma a qual a maioria das ideias pode se

prender nas mentes das massas e levá-las a agir” e não simplesmente a “sistemas

de pensamento”.

O problema da ideologia é fornecer uma interpretação, dentro de uma teoria materialista, de como as ideias surgem (...). Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona. (HALL, 2013, p.295).

Outro importante conceito gramsciano é o de hegemonia, que ganha

notoriedade no debate com a cultura, especialmente no que se refere a ela na

sociedade de classes. Almeida (2008) se refere à complexidade da discussão sobre

hegemonia na ótica de Gramsci, a qual é vista como uma trama de relações. Estas

relações não são apenas vinculadas ao tema macroeconômico, mas na própria

maneira de como os aspectos culturais de classe interferem na manutenção ou

questionamento da hegemonia. E sendo a hegemonia processual e não singular, a

mesma abre espaço às contra-hegemonias.

(...) a “hegemonia”, no sentido de Gramsci, requer não a simples ascensão de uma classe ao poder, com sua “filosofia” inteiramente formada, mas o processo pelo qual um bloco histórico de forças sociais é construído e sua ascendência obtida. Portanto, a melhor forma de se conceber a relação entre “ideias dominantes” e “classes dominantes” é em termos dos processos de “dominação hegemônica”. (HALL, 2013, p.322).

Os debates sobre hegemonia tiveram forte influência sobre os primeiros

estudos do Centre for Contemporary Cultural Studies na Universidade de Birmigham,

Inglaterra, a partir de pesquisas sobre os meios de comunicação, não mais vistos

como instrumentos de manipulação da massa pela classe dominante, mas como

instrumentos de reprodução cultural – e ideológica – com toda sua complexidade.

Almeida salienta que “o destaque era dado aos intercâmbios e interações complexas

entre as culturas populares e a cultura hegemônica, aos processos de incorporação,

reprodução e resistência”. (2008, p.6).

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1.3.2 As culturas minoritárias: caminhos teóricos

É oportuno começar este tópico com a seguinte afirmação de Boaventura de

Sousa Santos (2002): “A cultura é por definição um processo social construído sobre

a intersecção entre o universal e o particular (...). A cultura é a luta contra a

uniformidade”. (p.47). Essa noção de cultura foge à ideia romântica que diferencia a

cultura da civilização, na qual a primeira tem um caráter quase tribal, assim como

sugere a Ilha de Sahlins21; e a ideia de civilização, que diz respeito ao que Eagleton

(2011) dicotomiza entre a cultura do outro e a minha: “Cultura, em resumo, são os

outros”. (p.43). É sempre o “outro” o diferente, o étnico. Sendo assim, definir o

próprio mundo da vida – e não o do “outro” – é arriscar a relativizá-lo. Para além

destes termos, a cultura aqui é vista como parte da natureza humana e, por isso, é

uma construção social que interage entre o indivíduo e o mundo a sua volta, como

afirma Sousa Santos. Eagleton estreita ainda mais a relação de cultura e natureza

ao afirmar que “a natureza produz cultura que produz a natureza” (2011, p.14). Um

exemplo claro disso pode ser dado pela cidade, que é o meio ambiente (natureza)

modificado pelo homem, mas que acaba por transformar a própria vida do homem,

seja pelo modo de produzir, transportar-se, relacionar-se.

Desta forma, a cultura não só afeta o universal, mas também o particular,

sendo ela transformada também nesta relação. E a relação do homem para a cultura

é tão importante que a própria ideia de cultura sugere a necessidade de algo além

da natureza, porque evoca algo “inatural” que só o ser humano pode alavancar,

diferente dos outros seres vivos. Na cultura há política e história, e também teologia.

(EAGLETON, 2011).

Outra consideração importante é a de Raymond Williams (1981), um dos

precursores dos estudos culturais britânicos, que afirma compreender a cultura como

constitutiva dos processos sociais não apenas refletindo-os ou representando-os.

Assim, a cultura adquire um aspecto amplo, a ponto de Eagleton (2011) afirmar que

21 O livro “Ilhas de História” (1985), de Marshall Sahlins, é um dos clássicos da antropologia e narra a chegada do capitão Cook com suas tropas britânicas às ilhas do Havaí e Nova Zelândia e a relação discrepante entre culturas. Sahlins deixa evidente sua preocupação em demonstrar que os fatos culturais influenciam a história vivida, em uma relação entre teoria e prática. A prática acontece mediante uma cultura construída e a história também acaba se modificando.

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não existem instituições não culturais. Esta afirmação diz respeito ao pessimismo

apresentado por Eagleton sobre a cultura e a crise que ela carrega, ao perder a

característica universalista e se fragmentar em subculturas, em identidades

específicas. Eagleton critica, inclusive, a ideia de comunitarismo, em que subculturas

se “acossariam” às subculturas vizinhas, encorajando o sistema dominante ao

perceber que tem “uma coleção heterogênea de adversários desunidos” (2011,

p.66).

Essa crítica, embora pareça rígida demais à ideia de cultura, está

relacionada à necessidade que diversos autores aqui expostos arguiram sobre a

relação entre globalismos e localismos. No entanto, mesmo entendendo que a

perspectiva de Eagleton possa estar inserida na ideia de que uma comunidade de

imigrantes lutaria por melhores condições de vida para si, ao mesmo tempo em que

não estaria atrelada a outras causas ou mesmo a outros imigrantes, a característica

universalista da cultura parece, neste sentido, arriscada e insuficiente neste estudo.

O trabalho se aprofunda, assim, em conceitos de Stuart Hall (2013) para

posicionar a cultura, retomando novamente a noção de pós-colonialismo, que sugere

tornar inválida a lógica do absolutismo étnico, transformando colônias em regiões

desde sempre diaspóricas. Assim, o “outro” passa a ser um ente importante para

explicar as temporalidades e diferenças. Ao partir da ideia de crítica da cultura como

civilização, a unicidade da cultura teria a ver com a exterioridade constitutiva deste

“outro”, colocado na lógica da exclusão e da patologização dentro deste discurso

unificado.

Ao falar da condição diaspórica, Hall (2013) afirma que nestas condições “as

pessoas geralmente são obrigadas a adotar posições de identificação deslocadas,

múltiplas e hifenizadas”. (p.84). E mesmo os mais tradicionais, ao voltarem para

suas cidades de origem seriam considerados como forasteiros. A exemplo disso cita-

se a relação dos asiáticos que se consideram britânicos, sem perder traços de sua

cultura ou religião, ou Góis, judeus americanos, considerados “diferentes” pelos

judeus que vivem em Israel. Neste sentido, pergunta-se: o que se espera dos

haitianos vindos ao Brasil? Serão eles, anos depois, “os brasileiros”, quando

voltarem a sua terra de origem com seus filhos ou netos brasileiros (de fato)?

Nesse ponto, é interessante examinar a ideia de “transgressão” ligada ao

“diferente” (HALL, 2013; BHABHA 1998; DERRIDA, 1991). A transgressão aqui se

funda na ideia bakhtiniana de “carnaval”, em que as categorias simbólicas de

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hierarquia e valores são invertidas. Na verdade, em Bakhtin, em seu “carnaval” não

é feita uma troca propriamente dita, mas sim é a pureza desse binarismo que é

transgredida. Assim: “O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da ordem

hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas

aquelas formas impuras e híbridas do ‘grotesco’; revelando a interdependência do

baixo com o alto e vice-versa (...)” (HALL, 2013, p.249). O baixo passa a ser

compatível e não o contrário. Também não é lugar de desejo nem imagem refletida

do outro. É outra figura, relacionando-se com o diferente.

Sobre a “diferença”, Derrida (1991) utiliza o termo la différance, um

neografismo, cuja presunção é apresentar uma crítica à tradição ocidental escrita,

em prol da oralidade, marca da socialidade latino-americana. (RIBEIRO e LOPES

DA SILVA, 2015). Hall (2013, p.67), citando Derrida (1972), caracteriza este termo

como um sistema em que “cada conceito está inscrito em uma cadeia ou um

sistema, dentro do qual ele se refere ao outro e aos outros conceitos, através de um

jogo sistemático de diferenças”. O significado da diferença não pode ser fixado,

apresenta-se sempre em processo que dispensa a ideia do “outro” e, por isso,

rechaça também a noção de “superação” da dialética totalizante. (Idem).

Esta ideia está relacionada com o dito anteriormente a respeito dos

conceitos de Gramsci e da substituição da luta de classes no âmbito cultural. Tais

reflexões acarretam em uma definição ampliada de ruptura social, cuja expressão

substitui a “luta de classes” para a noção de “repertórios de resistência”, que segue

uma ótica de análise do “equilíbrio nas relações de força”, conforme Gramsci

desenvolve em sua análise da luta hegemônica. (HALL, 2013, p.252).

Sobre as estratégias de diferença e os repertórios de resistência, Hall (2013)

admite haver um desvio ou tradução das formas globalizantes a partir da base,

constituindo-se em um tipo de localismo que não é particular, mas surge dentro do

global, de modo muito parecido com o que afirma Sousa Santos (2001) e a ideia de

globalismo: “Esse ‘localismo’ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a

sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo

panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus

estabelecimentos culturais”. (HALL, 2013, p.68).

Antes de entrar na ideia de cultura minoritária, Hall (2013) indica algumas

pistas sobre a cultura popular, pois dizem respeito à cultura do povo em uma relação

dialética à cultura dominante. E se o processo de hibridização cultural, fomentado

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pelas migrações contemporâneas, que afetam os Estados-nação e a globalização

transnacional e suas respectivas formas culturais, são a tônica deste trabalho, é

necessário falar da cultura popular como símbolo da contra-hegemonia no âmbito da

cultura. Hall (2013) vai buscar explorar o termo “popular”, trazendo a dimensão da

indústria cultural ao afirmar que parte do “popular” está integrado à cultura de

massa. Em segundo lugar, Hall critica a defesa de uma autêntica cultura popular,

abdicando das relações de poder cultural, expressos pela dominação e

subordinação, seguindo as considerações que Eagleton (2011) faz sobre a cultura

também, pois tal modo “autêntico” de ver a cultura popular dificulta sua inserção

cultural. Assim, Hall critica tanto o caráter autônomo quanto encapsulado da cultura

popular, ressaltando que a dominação cultural influencia o povo, sobretudo porque

este não é um ente isolado. É uma luta desigual, inclusive, mas há pontos de

resistência em uma espécie de “dialética da luta cultural”, com recusas e

adaptações. Não é interessante aqui ver a cultura como algo inteiro e coerente. Não

há pureza e nem corrompimento quando as culturas são profundamente

contraditórias.

O autor retoma a questão ao afirmar que não existe relação direta entre uma

classe e uma forma particular de cultura porque não existem culturas fixadas e

isoladas. As culturas de classe se entrecruzam, sobrepondo-se. O “popular” se

refere à aliança de classes e forças que se constituem nas “classes populares” em

oposição à outra cultura. A natureza da luta política é na “constituição” das classes e

indivíduos enquanto força popular. (2013, p.291).

Compreendendo a cultura popular é possível entrar na conceituação de

cultura minoritária, viés deste trabalho, pela abordagem do migrante pela via cultural.

É possível relacionar cultura popular e minoritária, pois uma das características das

minorias é a luta contra-hegemônica, segundo Muniz Sodré (2005), cuja minoria

lutaria contra tal poder sem objetivo de tomada deste poder por armas. No entanto,

não concordamos plenamente com Sodré, que considera o Ocidente enredado por

tecnocracias e que a mídia seria o principal território de luta.

Minoria não pode ser aqui considerada uma questão quantitativa, pois os

indivíduos que fazem parte desta cultura são comumente grupos populosos

numericamente, como, por exemplo, os negros no Brasil, ou mesmo a população de

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT).

Pensando na democracia, o conceito de minorias tem característica de ser uma “voz

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qualitativa” (SODRÉ, 2005, p.11). Neste sentido, ser uma voz ativa e poder intervir

em instâncias de poder assumindo lutas sociais faz com que a minoria seja movida

por um “impulso de transformação” (p.12), sem, no entanto, ser um coletivo idêntico,

mas a partir de “um fluxo de mudança que atravessa um grupo, na direção de uma

subjetividade não capitalista” (p.12).

Ao considerar a minoria como um fluxo de mudança, Muniz Sodré (2005)

utiliza a expressão “lugar” para designar a ideia de transformação, passagem. No

entanto, o lugar geográfico cede referência ao lugar como “topologia”, que o

compreende como “um campo de fluxos que polariza as diferenças e orienta as

identificações”. (p.12).

Desta forma, sugere Sodré (2005), um “lugar minoritário” diz respeito a um

lugar de conflitos, fermentação social e cujo conceito de minoria é um “lugar onde se

animam fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder”.

(p.12). Assim, é possível afirmar que o imigrante seria mais um lugar do que um

indivíduo definido puramente por seu local de origem e local de morada, pois requer

mais do que uma condição de existência determinada, mas uma tomada de posição

junto a um grupo em um universo de conflitos, mediada pela própria subjetividade.

A concepção construída aqui sobre minoria faz situá-la no campo da contra-

hegemonia, como voz dissonante e a substituição do consentimento pelo

reconhecimento — a abordagem de Axel Honneth (2006; 2013) sobre

reconhecimento se relaciona estreitamente com esta dimensão coletiva das minorias

de Sodré. Já Sousa Santos relaciona o conceito à ideia de multiculturalismo, que

abarca as mais diversas culturas minoritárias, O autor diz:

Finalmente, no campo das práticas sociais e culturais transnacionais, a transformação contra-hegemônica consiste na construção do multiculturalismo emancipatório, ou seja, na construção democrática das regras de reconhecimento recíproco entre identidades e culturas distintas. Este reconhecimento pode resultar em múltiplas formas de partilha – tais como, identidades duais, identidades híbridas, interidentidade e transidentidade – mas todas elas devem orientar-se pela seguinte pauta transidentitária e transcultural: temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. (SOUSA SANTOS, 2002, p.75).

Na citação, Sousa Santos (2002) vincula o multiculturalismo à própria ação

contra-hegemônica, mas constantemente sob um olhar para a dimensão global,

conforme colocado no início deste tópico ao se falar do entendimento de que a

cultura se constitui entre o particular e o universal. Também considera Hall:

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A questão multicultural contribui para desconstruir incoerências do Estado liberal, como, por exemplo, o crédito à neutralidade do Estado estar associada a uma distinção entre o público e o privado, quando hoje, “em toda parte, ‘o pessoal’ tornou-se ‘político’” (HALL, 2013, p.89).

A cultura minoritária, através do seu “lugar”, como explica Sodré, também

se estabelece a partir desta lógica de identificação em uma tomada de posição que,

mais do que classes, alcança “repertórios de resistência”, como afirma Gramsci,

estabelecendo formas de partilha que acenam para a construção das identidades e,

que, somada a luta por reconhecimento, caracterizam a dinâmica cultural dos

processos de midiatização que a pesquisa busca enfatizar.

1.3.3 Identidades e reconhecimento

Para entrar na discussão sobre identidades e reconhecimento é preciso

pensar que os processos migratórios desconstituem o conceito da identidade

nacional pelo rompimento de fronteiras nacionais, contribuindo também para a

desestabilização de alguns costumes e práticas que configuram a noção de

identidade. Aproveitando o ensejo, Ribeiro e Lopes da Silva (2015) acentuam a

abordagem sobre hibridização de Canclini:

Nesse contexto, García Canclini (2003) diz que a ideia de hibridização cultural está colocada já na transposição das fronteiras e será percebida pelo processo transcultural, que caracteriza a expressão das culturas. Isso determinará uma construção identitária sempre em trânsito, na qual a cultura desterritorializada buscará seu “não lugar”, ocupando de maneira incisiva um novo locus de expressão. (RIBEIRO e LOPES DA SILVA, 2015, p.5).

Os autores, ao enfocarem nas relações da América Latina, afirmam que as

fronteiras se expressam como um lugar onde as culturas se dão de forma desigual e

as características híbridas das identidades pós-modernas, as quais serão tratadas

mais adiante, constituem-se como base para uma discussão sobre as diversidades

que surgem no interior desses espaços de poder, mas que são questionados a partir

dessas diferenças. (RIBEIRO e LOPES DA SILVA, 2015).

Ao seguir esta linha de identidades híbridas decorrente deste tempo pós-

colonial, é necessário fazer uma crítica à argumentação do liberalismo a favor de

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uma “identidade individualizada”, que implica a unicidade entre cidadão-indivíduo e,

sobretudo, ao ideal de autenticidade dos mesmos. Esta percepção parece

demonstrar a dificuldade dos liberais na compreensão da ideia de

grupos/comunidades porque “o problema está em reconhecer o valor das diferentes

culturas, que remete sempre a um conjunto de pessoas, a uma comunidade”.

(BARBALHO, 2005, p.31). Ao mesmo tempo, Barbalho, utilizando-se das

considerações de Charles Taylor, afirma que a condição humana é dialógica,

estabelecendo as identidades que, mesmo sendo individuais, só surgem mediante a

negociação com outras identidades. De forma aproximada, Habermas afirma que as

identidades se dão intersubjetivamente e a individualidade se dá mediante

processos de socialização. (BARBALHO, 2005).

A partir daqui a teoria do reconhecimento, de Axel Honneth (2006; 2013)

ganha influência na relação da construção das identidades neste tempo de

identidades múltiplas e fragmentadas. Honneth é um filósofo da terceira geração da

Escola de Frankfurt e que se debruça na ideia de que a sociedade poderia ser mais

bem explicada a partir do conceito hegeliano de “luta por reconhecimento”. Nota-se,

contudo, uma mudança estrutural da sociedade tradicional para a sociedade

moderna, em que os valores de status, muito mais ligados à tradição e às

hierarquias, são menos importantes do que as realizações individuais e a

capacidade de locomoção social do indivíduo.

Nesta transição, Honneth observa uma individualização social que não pode

ser negada, mas que, ao mesmo tempo, comporta um nível de solidariedade a

valores que formam a totalidade da autocompreensão cultural de uma sociedade.

Assim, ao mesmo tempo em que a individualização é característica, a necessidade

de relacionamentos faz com que a atuação de indivíduos em uma vida em

comunidade necessita ser mensurada conforme uma avaliação intersubjetiva, pois

nesta sociedade moderna a pessoa só manifesta o sentimento de valorização

quando suas capacidades são avaliadas de forma coletiva. (SAAVEDRA;

SOBOTKA, 2008). Assim, este tipo de avaliação social:

(...) faz da sociedade moderna uma espécie de arena na qual se desenvolve ininterruptamente uma luta por reconhecimento: os diversos grupos sociais precisam desenvolver a capacidade de influenciar a vida pública a fim de que sua concepção de vida boa encontre reconhecimento social e passe, então, a fazer parte do sistema de referência moral que constitui a autocompreensão cultural e moral da comunidade em que estão inseridos (SAAVEDRA; SOBOTKA, 2008, p.13).

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Um ponto que traz viabilidade à teoria de Honneth sugere que o

reconhecimento precisa ser alcançado tanto para o indivíduo autônomo quanto para

o indivíduo pertencente a formas culturais de vida, sinalizando uma preocupação

com o contexto particular e universal da luta pelo reconhecimento. Esta relação dual

da formação da identidade por meio do reconhecimento ganha mais importância

quando se percebe a preocupação de Honneth em não idealizar o grupo em sua

forma mais positiva, ao mesmo tempo em que defende a dependência individual de

reconhecimento e a consequente busca por grupos que legitimem isso (HONNETH,

2013). Sobre isto, o autor afirma:

O quadro que resulta dessas reflexões sobre o processo de socialização humana contém a ideia de um entrelaçamento entre individualização e socialização que já permite tirar algumas conclusões sobre a importância dos grupos sociais para o amadurecimento individual. Eu havia afirmado que a internalização da relação de reconhecimento, que gradativamente se diferencia, leva ao surgimento de uma forma complexa de autorrelação, através da qual a criança aprende pouco a pouco a conceber-se como um membro competente de seu ambiente social. (HONNETH, 2013, p.64).

Certamente Honneth extrapola os limites da infância ao reconhecer a

necessidade do sujeito participar de grupos sociais, inclusive defendendo a

necessidade da repetição de experiências de reconhecimento ao longo da vida. No

entanto, da mesma forma que o grupo age sobre o indivíduo, o autor estabelece

uma relação entre ambos ao afirmar que o grupo não está livre de “dinâmicas

inconscientes”, relacionando à formação psíquica do humano e sua tendência,

durante a vida, em retomar o estado inicial de fusão – remetendo ao vínculo

materno-filial – no qual pode se sentir inseparado do sujeito. (HONNETH, 2013).

Honneth trabalha também com a ideia do reconhecimento como ideologia,

criticando a ideia de que sirva como instrumento de conformação social e,

consequentemente, domínio social. Neste sentido, o autor parte de um duplo

significado, advindo do termo francês “subjectivation”, para explicar melhor a ideia da

ideologia no reconhecimento: frente aos direitos e deveres da sociedade e seu

processo de conscientização, os homens se convertem em sujeitos conferindo a si

identidades sociais mediante formas de conformação social, o que, adverte Honneth,

significa que reconhecer alguém neste sentido é induzi-lo a uma compreensão de si

mesmo, alinhado a expectativas de comportamentos. (2006, p.130).

(…) el reconocimiento social puede siempre tener la función de actuar como ideología generadora de conformidad: la repetición continuada de las

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mismas fórmulas de reconocimiento alcanza sin represión el objetivo de producir un tipo de autoestima que provee de las fuentes motivacionales para formas de sumisión voluntaria. (HONNETH, 2006, p.131).

O frankfurtiano discorda da ideia de Louis Althusser, de que reconhecimento

e ideologia estejam ligados, ao divergir do entendimento de que todo

reconhecimento carrega consigo a marca da ideologia em prol da ideia de

valorização da intersubjetividade, raciocínio realizado pelo francês.

(…) por reconocimiento debemos entender un comportamiento de reacción con el que respondemos de manera racional a cualidades de valor que hemos aprendido a percibir en los sujetos humanos conforme a la integración en la segunda naturaleza de nuestro mundo de la vida. (HONNETH, 2006, p.139).

A relação entre reconhecimento e identidade pode ser dada pela ideia de

Honneth (2006) de que os indivíduos só podem ter sua identidade formada quando

forem reconhecidos intersubjetivamente, e pela afirmação de Giddens (1991), de

que o oposto à confiança (termo o qual o autor se debruça profundamente para falar

do espaço-tempo e da modernidade) está relacionado à ansiedade existencial

preexistente, decorrente do não reconhecimento da identidade de pessoas e

objetos.

Assim, a noção de identidade passa pela mesma fluidez das configurações

de espaço-tempo contemporâneas, conforme salienta Bauman ao afirmar que as

mesmas são “negociáveis e revogáveis” (2005, p.17), ao revés do que foram as

formações das identidades nacionais que alocaram limites territoriais, buscando, da

mesma forma, restringir culturas. Ao olhar os dias de hoje, elucidar a questão da

identidade em relação à cultura transnacional e ao território é fundamental para

pontuar o imigrante como ser cultural e para poder esboçar traços de suas

identidades.

Com relação à questão da identidade na ótica das migrações, ElHajji (2011)

afirma que diversos autores confirmam o pressuposto que as identidades são a

soma da identidade individual (o ser único, sua pessoalidade) e da identidade

coletiva, formada pelo grupo a que pertence, localidade, valores, cultura local. No

entanto, na atual fase transnacional da cultura, condicionada por um processo de

globalização acelerada, a identidade coletiva ganha relevância na construção do

indivíduo. Mesmo sendo única, a identidade não é homogênea. Como afirma Hall

(2006), as identidades pós-modernas são múltiplas e híbridas. O mesmo diz ElHajji

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(2011), ao explicar que “a identidade individual não é una e homogênea, mas sim

composta e compósita, polifônica e multifacetada”. (p.3).

Estas características da identidade na pós-modernidade são algo novo para

Hall. Assim, o autor distingue três momentos das identidades culturais. Primeiro, a

concepção de identidade do sujeito do Iluminismo, dedicada ao eu, de caráter

coeso, individualista e dotado de razão e ação, creditava a este indivíduo uma

característica estática frente à sociedade. A segunda concepção refere-se à

identidade do sujeito sociológico, cujo núcleo interior não é autossuficiente,

adquirindo uma prática interativa onde o eu se modifica no diálogo com o exterior.

Embora a identidade possa ser modificada, ela é única para o sujeito, ao passo que

na terceira concepção, o sujeito pós-moderno alcança a multiplicidade de

identidades, fragmentadas, tornando-se, nas palavras de Hall, uma “celebração

móvel” (2006, p.13).

Ao considerar as formações identitárias que compõem o indivíduo nesta

terceira fase, Hall (2013) acrescenta ao debate, a partir da diáspora caribenha, a

complexa situação das identidades culturais em ambientes de violação do espaço.

Sendo a identidade uma questão histórica, muitos povos são impedidos de dar

continuidade ao seu passado, pois seus locais originários não podem ser mais os

mesmos, como é o caso da capital haitiana, Porto Príncipe, destruída por um

terremoto e alterada por todos os processos sociais e econômicos anteriores e

subsequentes: “Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto

momento esquecido de nossos começos e ‘autenticidade’, pois há sempre algo no

meio (...). Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor”.

(HALL, 2013, p.30).

Assim, é de fundamental importância saber que a diversidade cultural não

pode gerar um fechamento étnico. Todas as pessoas pertencem a algum

vocabulário cultural; todos falam a partir de algum lugar e em algum lugar nutrem

esperanças movidas pelos processos diaspóricos. (HALL, 2013). E Hall afirma:

O modo como tento pensar as questões de identidade é um pouco diferente do pós-modernismo “nômade”. Acho que a identidade cultural não é fixa, é sempre híbrida; [...] cada uma dessas histórias de identidade está inscrita nas posições que assumimos e com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de identidade com todas as suas especificidades (HALL, 2013, p. 479).

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A característica híbrida da cultura na socialidade moderna inverte a ordem

de manipulação ou dominação pura, da hegemonia clássica, para redimensionar o

termo ao que Martín-Barbero (2004) também chama de interpelação do popular e o

massivo. Dessa forma, como pensar as identidades nessa readequação da

hegemonia pela comunicação?

O primeiro passo consistiria em abandonar aquela concepção da transnacionalização que reduz a comunicação a um conjunto de estratagemas de imposição cultural desconhecendo o modo próprio como opera a hegemonia (...) o que, por sua vez, implica pensar a interação entre as mensagens hegemônicas e os códigos perceptivos de cada povo, a experiência diferenciada que, mediante fragmentações e deslocações, refaz e recria permanentemente a heterogeneidade cultural. Mais que em termos de homogeneização, a transnacionalização tem que ser pensada como deslocação dos eixos que articulam o universo de cada cultura. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.154).

O capítulo se encerra após passar por uma análise estrutural multicultural

que culmina em uma aproximação das características mais ligadas à relação do

sujeito com um grupo. Tanto os conceitos de identidade quanto os de

reconhecimento caminham juntos neste trabalho e trazem para o bojo da pesquisa

aquele cenário que foi presumido pelas teorias migratórias de caráter macro e

microssociológico. Ao reconhecer tais contribuições e passando pela ênfase cultural

desta trama global, adentramos agora nas reflexões sobre o objeto comunicacional

da pesquisa que, somando-se às considerações deste primeiro capítulo,

possibilitarão um aporte para a construção metodológica.

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2 COMUNICAÇÃO MIDIATIZADA E PROCESSOS MIGRATÓRIOS

Este capítulo é organizado em três partes que interligam a relação da

comunicação e os processos migratórios, de acordo com a especificidade da

pesquisa. Ele dá continuidade à discussão sobre os estudos culturais, mas neste

momento já relacionados à comunicação e à matriz latino-americana, minimizando o

debate sobre a cultura na contemporaneidade globalizada, ponto discutido no

capítulo anterior.

Inicia-se com um breve resgate do desenvolvimento das teorias da

comunicação, do paradigma funcionalista ao paradigma dialético-marxista,

abordagem contemplada com mais ênfase nessa pesquisa. Afastando-se, no

entanto, da teoria crítica da Escola de Frankfurt, o tópico avança para uma

discussão epistemológica do objeto da comunicação distanciado da lógica dos

meios de comunicação de massa e sua influência verticalizada sobre os indivíduos

como ocorre nos estudos sobre a indústria cultural. Por essa linha de reflexão, o

texto aponta para um objeto comunicacional ligado aos processos comunicativos,

especificados nas formas de interações, especialmente a partir das contribuições de

Vera França (2001; 2014) e José Luiz Braga (2006; 2012). Ver o objeto desse modo

contribui para uma reflexão que valorize o sujeito como receptor ativo e produtor de

sentidos e possibilita que a temática comunicacional seja apropriada pela ideia de

midiatização.

A midiatização é discutida no segundo tópico do capítulo e se configura com

um dos pontos-chaves da dissertação, pois diz respeito a uma das questões de

pesquisa que se quer responder: as práticas comunicativas realizadas pelos

haitianos são midiatizadas? No entanto, antes de se entrar na discussão da

midiatização é necessário passar pela teoria das mediações. Compreendendo que

há uma relação de proximidade e não de afastamento entre as expressões, assume-

se que a sociedade contemporânea, além de globalizada, é marcada por uma

cultura midiatizada, em que, mais do que influenciada por meios de comunicação,

como a televisão ou a internet, são os tais processos de comunicação em toda sua

complexidade que perpassam os campos da sociedade atual e a estruturam.

(BRAGA, 2012).

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Ao compreender a relação entre mediação e midiatização, o texto se

aprofunda na ideia circulação como principal componente da midiatização, o que

explica essa lógica estruturante da comunicação na cultura. E isso abarca um

processo de recepção ativa que compreende a interpretação, a apropriação e a

produção de sentidos.

Há ainda uma necessária abordagem da discussão dos campos sociais, que

explicam a estrutura da sociedade e a inserção múltipla da circulação por diversos

desses campos, inclusive o migratório, onde se situam as organizações de apoio aos

imigrantes, por exemplo.

Durante a pesquisa observa-se que a resistência e a crítica estão atreladas

a uma dinâmica coletiva, mais macrossociológica do fenômeno migratório. Neste

trabalho, o principal atributo desta crítica social está ligado à formação de redes

sociais, virtuais ou não, que compõem uma lógica de comunicação cidadã

transnacional, de caráter contra-hegemônico. Ainda neste tópico, explora-se mais

profundamente a potencialidade comunicativa que há neste processo dialético,

propiciada pelos encontros de culturas ocasionados por estas migrações.

2.1 COMUNICAÇÃO ALÉM DOS MEIOS DE MASSA

As teorias da comunicação ganham contribuições significativas a partir da

década de 1930 com a Escola Americana. Ao analisar o contexto do pós-guerra e de

disputa global, Rüdiger (2002) afirma que o ímpeto das comunicações e seus

desenvolvimentos atrapalharam a reflexão dos processos históricos/contextuais,

proporcionando uma preponderância da técnica sobre a teoria. Apesar das críticas,

a pesquisa inicial em comunicação contribuiu na profissionalização da área a partir

dos usos de suas materialidades para fins mercadológicos e estratégicos.

Influenciada por uma linha administrativa, a comunicação começa sua caminhada

teórica pelo “Período Clássico”, bastante influenciado pela Escola de Columbia

(1940-60), na qual o indivíduo era visto como um receptor passível de manipulação;

atribui-se também a este período um questionamento sobre a incapacidade de

reflexão do indivíduo como sugeria a teoria da agulha hipodérmica. O livro People’s

choice (1944), de Lazersfeld, Berelson e Gaudet, por sua vez, é porta de entrada

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para a reavaliação das considerações acadêmicas sobre a manipulação das

massas, considerando que a eficácia da mídia está relacionada com um processo

mais complexo, que foge do raio de ação dos meios para uma predisposição do

receptor. Essa predisposição do receptor se constitui como novidade em relação às

primeiras teorias, salientando que a vontade do indivíduo em mudar uma opinião em

concordância ao que os meios de comunicação expõem é menor do que o interesse

em reforçar condutas e opiniões já existentes. (RÜDIGER, 2002).

Especialmente nas décadas de 1960 a 1980, há um desenvolvimento das

teorias funcionalistas acompanhadas da ascensão do campo da semiótica. Nos

Estados Unidos, a teoria dos usos e gratificações reformula a pergunta “qual o efeito

da mídia?” para “o que o público faz com a mídia?”. Desta forma, o receptor já não é

passivo como as primeiras teorias e o uso das mídias por parte das massas permite

determinar o significado do fenômeno. Por isso, os “usos e gratificações” também

são chamados de teoria dos efeitos limitados. É interessante notar que essa linha de

estudo está ligada às teorias de recepção discutidas atualmente na Europa, que

pouco assimilaram as contribuições latino-americanas sobre a ênfase.

Todas essas concepções situam-se no interior do paradigma funcionalista e

há nele um desenvolvimento das teorias que, tendo sua centralidade na eficácia da

comunicação e nos efeitos dos meios de comunicação, caminha em uma trajetória

que se inicia na abordagem de manipulação dos meios de massa, avança para a

ideia da persuasão midiática (influenciada pela experimentação e pela psicologia

social), chega até os efeitos limitados dos meios, considerando a influência dos

formadores de opinião, até chegar à função social destes meios, através do

funcionalismo de Talcott Parsons.

Antes de entrar nas teorias de matriz crítica, é importante pontuar que há

uma vazão entre os paradigmas funcionalista e marxista. O paradigma

compreensivo, especialmente representado pela Escola de Chicago, observa as

interações cotidianas, cujos meios estão alocados neste processo de construção da

realidade (interação). A presente pesquisa poderia ser analisada sob a ótica do

interacionismo simbólico, inclusive porque a Escola de Chicago tem importantes

contribuições à teoria das migrações, como será explicado no capítulo 3. No entanto,

prefere-se considerar esta dissertação no âmbito do paradigma marxista22, como

22 Dentro das devidas diferenças com o marxismo clássico ou o proferido pela Escola de Frankfurt.

Apoia-se aqui à matriz gramsciana, que tem sua raiz no marxismo.

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opção crítica dos estudos culturais em consonância a uma análise

macrossociológica sobre as migrações.

Mas não só dos estudos culturais vive a teoria crítica. Pelo contrário, a

trajetória crítica das ciências sociais, aplicada à comunicação, tem uma vasta

pesquisa que assume diversas formas. Rüdiger (2002), por exemplo, salienta que na

América Latina a teoria crítica ganhou forma culturalista, mediante o questionamento

das estruturas sociais e as lutas anticolonialistas no continente, com influência da

economia marxista e da semiologia de corte estruturalista. Já na Europa, a primeira

e importante influência recai sobre a Escola de Frankfurt e a ideia da “indústria

cultural”, que vê a cultura transformada em mercadoria e abre uma brecha para uma

análise elitista da cultura.

De maneira breve, a fim de localizar a construção da comunicação nesta

pesquisa, chegam-se aos estudos culturais, que pertencem à matriz crítica, mas se

diferenciam substancialmente da “indústria cultural” frankfurtiana pelo uso e

apropriação da cultura pelas massas populares de modo que possibilite ver “as

contradições que dinamizam a complexidade cultural da sociedade de início do novo

século”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.357). Os estudos culturais dão ênfase ao viés

popular da cultura e aos fenômenos percebidos pela análise do cotidiano como, por

exemplo, as mudanças de identidade na era da globalização (RÜDIGER, 2002).

Também se opondo à Escola de Frankfurt, França (2014) reforça a influência

da teoria da hegemonia de Gramsci nos estudos culturais, ao analisar a cultura

como campo de luta e negociação. É neste campo de negociação que se constrói a

hegemonia e não no campo dominação/coerção como defendiam os frankfurtianos –

“como comprovar empiricamente a dominação?” é uma das perguntas que questiona

esta outra perspectiva de análise. Martín-Barbero (2015) contribui, neste sentido,

com uma diferenciação chave: da comunicação como processo de dominação, para,

a dominação como processo de comunicação, a partir da inferência de Paulo Freire

e Antonio Gramsci sobre a opressão interiorizada do povo latino-americano quando

“o oprimido via no opressor seu testemunho de homem23” (p.16). A respeito da

reflexão sobre hegemonia na ótica da indústria cultural, o autor aponta um

reposicionamento:

23 Tradução livre.

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É uma complexa reorganização da hegemonia, a que materializam hoje as indústrias culturais, o que nos está exigindo conhecê-las como dispositivos-chave na construção das identidades coletivas, isto é, dos processos de diferenciação e reconhecimento dos sujeitos que conformam as diversas agrupações sociais e também as dinâmicas de indiferenciação dos mercados (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.359).

Ao pegar carona nos estudos culturais, as novas perspectivas traçadas pela

matriz crítica conferem, a partir da década de 1990, maior atenção aos sujeitos e aos

processos de subjetivação, constituição de grupos e redes, novos formatos e

convergência midiática. Os estudos culturais são atualizados com as novas formas

de uso dos produtos culturais, processos identitários e consumo, por exemplo. A

noção de “cultura midiática” ocupa o lugar da “cultura de massas”, colocando na

ordem do dia a discussão sobre as diversidades culturais da mesma forma que

questiona a centralidade da mídia na sociedade, na qual a vida cotidiana e a

produção midiática estão interpenetradas num ambiente “transmidiático” (FRANÇA,

2014).

Todo este desenvolvimento das teorias relacionadas ao campo da

comunicação não representa simplesmente uma superação de paradigmas, como é

percebido nas ciências naturais, mas demarca novas maneiras de ver o processo

social e comunicativo, considerando o desenvolvimento tecnológico e a capacidade

humana de intervenção e construção de sentidos. Muito do que esta dissertação

assume como viés comunicacional está alinhado aos estudos latino-americanos,

ligados aos estudos culturais e de recepção, mas este enfoque receberá mais

destaque quando tratarmos das teorias da mediação e da midiatização, ainda neste

capítulo.

Este trajeto exposto pelas correntes teóricas abriu espaço para ampliar o

enfoque comunicacional, compreendendo diversas formas e possibilidades de

objetos da comunicação. Uma das primeiras ênfases na discussão sobre a

comunicação é a preferência pelo termo “mídia”, ao invés de “meios de comunicação

de massa”, pois o avanço das novas tecnologias requer novas reflexões sobre

aquela “massa” uniforme e coesa que predicaram as primeiras teorias da

comunicação. Em segundo lugar, a própria ideia de que os meios de massa ou as

mídias consistiriam no único objeto da comunicação é relativizado pela incidência

dos processos comunicativos e suas características sobre os processos de produção

e circulação de informações. (FRANÇA, 2001).

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Um dos principais questionamentos de Vera França (2001) a este respeito

versa sobre a ilusão de autonomia que os tais meios de comunicação teriam, ao

desconsiderar sua constituição pela intervenção do homem de múltiplas formas,

como a política, as técnicas, as práticas culturais e o consumo. Outra crítica de

França aos meios de comunicação como objeto está relacionada à centralidade dos

meios na sociedade, ainda vinculada à ideia da “sociedade dos meios de massa”.

Tal expressão não é sinônima da “sociedade midiatizada”, a qual está presente na

teoria da midiatização e considera centrais na sociedade os processos

comunicativos e não os próprios instrumentos e sua eficácia como define o

paradigma funcionalista.

Ao fazer um paralelo à França, Braga (2011b) afirma que é importante

manter olhos atentos aos meios de comunicação, devido ao fato de que eles

permitiram que se percebessem, objetivassem e problematizassem – mas não

constituíssem – os processos comunicacionais (se perceber “conversando”). Além

disso, Braga comenta que a mídia inaugura a tecnologia, especialmente para

veiculação de mensagens e produção de sentidos compartilháveis na sociedade.

Outra razão da importância da mídia, sugere o autor, é que “põe em causa modos

habituais de conversação social”, por meio de duas características: inclusividade

(interferência) e penetrabilidade (interação com espaços não midiáticos). É possível

haver concordância na reflexão do autor, segundo a qual a constatação de que

vivemos em uma sociedade midiática não faz dos meios o objeto da comunicação,

mas sim um fenômeno empírico.

Luiz Martino, embora aponte para os meios de comunicação como objeto da

comunicação, ressalta que os teóricos ainda não conseguiram definir este objeto,

limitando-se à visão de que são “aqueles instrumentos que servem para comunicar”

(2010, p.37). Apesar dessa visão ser questionada pela pesquisa, pergunta-se da

mesma forma a incidência de uma visão de que tudo seria comunicação, por fazer

parte da consciência do homem frente à necessidade de se comunicar (Idem). Se o

objeto da comunicação não pode ser considerado como parte da natureza humana

para não ficar perdido em meio às ciências humanas e nem visto redutivamente

pelos meios de comunicação, como pensarmos este objeto? Uma pista interessante

e que seguimos vem através de uma entrevista concedida por Braga (2009) à

Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU):

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Acho, entretanto, que o que caracteriza o comunicacional é uma preocupação com os fenômenos da interação humana. De qualquer modo, percebo que, aí, a midiatização da sociedade é um elemento central. Independente da perspectiva com que se olhe a mídia – e há vários olhares, muito diferenciados -, esse é um objeto consensual (...). Hoje falamos da mídia em termos de processos. Não se trata de negar o “meio”, mas perceber que há processos mais difusos, a partir da mídia, que precisam ser observados. Então, a questão da midiatização aparece hoje fortemente24.

Guareschi (2013) enfatiza a importância da dimensão relacional da

comunicação, que pode compor diversos cenários: de uma pessoa com outra, desta

com uma instituição, ou de uma instituição com outra instituição. Esta defesa da

comunicação como relação está vinculada à ideia de que o indivíduo compõe uma

lógica de unicidade com o mundo a sua volta, diferentemente da ideia liberal do

indivíduo, cuja liberdade existe justamente porque ele se constitui independente de

relações.

Nossa argumentação é que só será possível garantir ao Ser Humano esses tributos de liberdade e sujeito de direitos na medida em que ele for assumido como “pessoa = relação” (...). E por relação designamos uma realidade (ser, fenômeno, etc.) cuja existência depende do “outro”. O “outro” é intrínseco a esse ser, faz parte de sua própria definição. (GUARESCHI, 2013, p.83).

Se há também uma escolha humanística pelo objeto da comunicação, pode-

se considerar a definição de França (2001), que confere destaque aos processos

comunicacionais como objeto, mas deixa clara sua percepção sobre a amplitude

desta ideia, que extrapola diversos campos do conhecimento.

A autora afirma que, mesmo atendo-se aos processos humanos e sociais de

produção, circulação e interpretação de sentidos, fundados no simbólico e na

linguagem, esta ideia, além de ampla, confunde-se com os estudos das relações

sociais, fundados no campo da cultura. Desta forma, França (2001) pensa em alguns

caminhos para tratar a comunicação, ultrapassando a ideia de transmissão, como:

processo de troca, ação partilhada, interação e prática. Neste sentido, considera-se

também a ideia de Braga (2011b), que vê o objeto da comunicação como toda

conversação situada no espaço social, ou seja, tudo em que há troca nas diversas

situações da vida social. França sinaliza para uma atenção à presença de

interlocutores e a intervenção deles segundo seus papeis; identificação dos

24 http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2477&secao=289

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discursos e formas simbólicas de seus contextos; compreensão dos processos a

partir de um panorama sociocultural da sociedade.

Em suma, a comunicação compreende um processo de produção e compartilhamento de sentidos entre sujeitos e interlocutores, realizado através de uma materialidade simbólica (da produção de discursos) e inserido em determinado contexto sobre o qual atua e do qual recebe os reflexos. (FRANÇA, 2001, p. 16).

Esta ideia é aceita, mas pode ser somada pela consideração de Martino

(2010), que vê a comunicação como “estratégia racional de inserção do indivíduo na

coletividade” (p.33). Analisando esta coletividade na trama de uma sociedade mais

ampla do que aquela entendida pelo conceito clássico de comunidade, muito ligada

ainda aos aspectos de vizinhança, as novas formas de sociabilidade são

inevitavelmente compostas por processos comunicativos que colocam em circulação

falas, gestos e expressões dos indivíduos que fomentam o compartilhamento dos

sentidos.

Tanto Martino (2010), que considera a comunicação não simplesmente

imersa na coletividade, quanto França (2001), que coloca os processos de

comunicação como um “lugar” onde os sujeitos assumem papeis e se constroem

socialmente, caracterizam a comunicação como um campo distinto das demais

ciências humanas. Sendo lugar de realização da cultura, a comunicação será vista a

partir de agora pelo viés dos processos de midiatização, os quais promovem

circuitos comunicativos na sociedade redimensionando a lógica midiática de

emissão/recepção enquanto processos interacionais de referência. (BRAGA, 2006).

2.2 UM PONTO CENTRAL: MEDIAÇÃO E MIDIATIZAÇÃO

Ponto-chave nesta dissertação, a teoria da midiatização pode ser alinhada

aos estudos das mediações da matriz latino-americana e ser tratada como uma

teoria em construção, conforme salientam seus teóricos. Possivelmente confundida

por sua nomenclatura a uma volta de protagonismo dos meios de comunicação e

seus dispositivos técnicos na teoria comunicacional, a midiatização se apresenta

envolvida pela sociedade midiatizada e pela incidência das mídias que fomentam a

circulação de sentidos mediados pelo ambiente sociocultural. No entanto, antes de

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discutir a midiatização, como parte da teoria das mediações, faz sentido começar

pelo mais abrangente.

As mediações ganham força nos estudos da comunicação através da escola

latino-americana, especialmente com a obra Dos meios às mediações, de Martín-

Barbero, publicada em 1987. Com uma abordagem ligada ao universo cultural, a

teoria das mediações pode ser considerada como uma vertente dos estudos

culturais na América Latina, mas acentua sobre esses a força na recepção ativa e

um deslocamento substancial dos meios de comunicação por mesclar atributos da

produção e da recepção. Tal deslocamento pode ser mais bem explicado pelo

surgimento da mídia de massa, que sinaliza uma forma eficaz de mediação junto ao

público, considerada pelas primeiras teorias da comunicação uma forma direta de

contato com o público, determinando suas atitudes. No entanto, Jesús Martín-

Barbero contribui com o “campo”25 da comunicação ao conferir ao receptor um papel

fundamental na compreensão sobre as mediações – especialmente as culturais –

que se realizam no processo comunicativo do ser humano, deslocando notoriamente

a análise comunicativa “dos meios às mediações”. (MARTÍN-BARBERO, 2013).

Para melhor definir o termo, José Luiz Braga (2012), buscando explicar a

expressão “mediação” a conceitua na sua forma básica e epistemológica: A primeira

“corresponde a um processo em que um elemento é intercalado entre sujeitos e/ou

ações diversas, organizando as relações entre elas”. (2012, p.32). A segunda

conceituação, de caráter epistemológico, trata as mediações como o

“relacionamento do ser humano com a realidade que o circunda, que inclui o modo

natural e a sociedade”. Essa concepção, ao creditar as mediações como um lugar de

conhecimento externo do indivíduo em confrontação a si mesmo, considera que não

há um conhecimento direto da realidade, pois há sempre um “estar na realidade (...)

pelas lentes de sua inserção histórico-cultural, por seu ‘momento’” (Idem).

Aproximando-se novamente da ideia de cultura para aprofundar a

compreensão sobre as mediações – que aqui são culturais – Laan Barros (2012), no

mesmo livro que Braga (2012), ressalta a contribuição de autores como Williams,

Hall e Martín-Barbero na concepção dialética da cultura, compreendendo-a como “o

estudo das relações entre elementos de um modo de vida global” (HALL, 2013,

p.128). Afastando-se da ideia que a cultura seja a soma de práticas ou costumes, o

25 Evita-se neste momento uma discussão epistemológica mais aprofundada sobre a ideia de campo,

disciplina ou área da comunicação, por isso, o termo se apresenta em aspas.

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autor compreende as práticas sociais perpassando a cultura, o que a faz ser

constituída pela soma não só das práticas, mas pela soma do inter-relacionamento

das mesmas. E se a cultura é este conjunto de intercruzamentos de práticas sociais,

ela tem a ver com o conceito de “mediações”, porque esta, ao ser conceituada como

os relacionamentos que circundam o homem com seu ambiente externo (natural ou

não), torna possível compreender que este relacionamento é todo tempo

intercruzado por práticas sociais, especialmente por se situar em um espaço-tempo

redimensionado pelo rompimento de fronteiras.

Ao fazer essa compreensão sobre o conceito de mediações e sua

característica cultural, e ao afirmar a ideia de resistência e enfrentamento delas em

relação à potencialidade homogeneizante das mídias de massa, Braga (2012, p.33)

questiona se os termos mediação e midiatização não estariam em lados opostos, da

mesma forma que a discussão sobre o objeto da comunicação entre os meios e as

mediações.

Para esclarecer isso, Lopes (2009) ao entrevistar Martín-Barbero, obteve

uma resposta que ajuda a compreensão da questão. O autor explica que o livro Dos

meios às mediações expõe a lógica das “mediações culturais da comunicação”, que

considera “a lógica da produção, as competências do receptor, as matrizes culturais

e os formatos industriais” (p.150) ao passo que hoje seria mais plausível pensar nas

“mediações comunicativas da cultura”, que conferem protagonismo ao comunicativo

sem, contudo, creditar sua ação somente aos meios de comunicação. Neste sentido,

diz Martín-Barbero (2004, p.228): “O lugar da cultura na sociedade muda quando a

mediação tecnológica da comunicação deixa de ser meramente instrumental para se

converter em estrutural”. Como exemplo, Martín-Barbero (2015) cita as redes

sociais:

El conversar es la matriz de lo que hoy se configura en una red social, a la que se entra y de la que se sale entrelazando palabras con fotos, con retazos de música y trazos de dibujos. Y como la conversación, así es de vulnerable el hipertexto a las intervenciones de los que pueden intervenirlo para enriquecerlo o entorpecerlo, para corregirlo o emborronarlo. Y como la conversación el hipertexto permanece abierto, no se acaba nunca del todo sino que se suspende para continuarlo en otra ocasión, con otros invitados o contertulios. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.15).

Segundo Barros (2012, p.89), esta recolocação da comunicação na cultura

confere a ela um status protagonista das relações sociais e culturais, reconhecendo,

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da mesma forma, os usos e construções de sentidos que são feitos com as mídias

nessa nova dinâmica:

O sentido não está, portanto, nos limites do composto meio-mensagem; mas, presente nas dinâmicas que envolvem os sujeitos do processo comunicacional: emissor e receptor, seres sociais, em interação com outros indivíduos, instituições e movimentos sociais. (BARROS, 2012, p.90).

Ressaltando o novo lugar da cultura na sociedade, ao considerar as novas

tecnologias mais estruturantes do que instrumentais, Martín-Barbero (2004) afirma

que com a revolução tecnológica não são modificadas as atividades da humanidade,

mas uma nova forma de relação entre processos simbólicos, formas de produção e

bens e serviços. Neste sentido, o autor coloca o campo da comunicação em três

espaços: o espaço do mundo (globalização como cenário e redes que fomentam um

tecido de um novo espaço que transforma os sentidos de comunicar e transformar o

globo em uma significação histórica); o território da cidade (novo cenário composto

de fragmentações e fluxos); e o tempo dos jovens (o novo cenário da cidade é o

sensorium que emerge, sobretudo, dos jovens). Já Braga (2012) é mais pontual e

percebe duas novidades processuais nesta nova dimensão das mediações: um

processo que é tecnológico, que resulta no maior acesso às tecnologias de

comunicação pelo grande público e o outro, um processo social, que resulta na

entrada desse novo sujeito comunicativo em um ambiente que era antes

resguardado à indústria cultural.

A redefinição de mediações e a ideia de midiatização estão muito próximas.

Ao adentrar na reflexão sobre a midiatização a partir do interior das mediações, é

possível vê-la demarcada pela mudança da sociedade dos meios para a sociedade

de midiatização, cujo meio não aparece mais como um objeto de estranhamento

social, externo ao público e que o influencia por ser este referente distinto, mas um

processo de midiatização que ocasiona “uma aceleração e diversificação de modos

pelos quais a sociedade interage com a sociedade” (BRAGA, 2012, p.35). Braga

(2009) tenta definir de um modo claro a midiatização, mesmo considerando-a um

campo em construção:

Começa-se a falar na palavra “midiatização”, às vezes, significando simplesmente a forte presença da mídia na sociedade. O que antecede essa expressão é a palavra “midiatizada”, a partir da ideia de que vivemos em uma sociedade midiatizada ou midiática. Essa ideia parte de uma ação da mídia sobre a sociedade (...). A midiatização (...) abarca processos que acontecem mesmo quando não estamos diante da mídia. A midiatização

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não acontece só quando se está produzindo e se está recebendo informação. (2009, s/pag.).

O que se percebe é um aprofundamento das lógicas de interação, que

ultrapassam a ideia de ação de um meio ou de receptores para incluir a ambos.

Neste sentido, a ideia de midiatização defendida se distancia da ideia trabalhada por

outros importantes autores como Stig Hjarvard, que transita da “mediação à

midiatização” (2015). No entanto, até o autor reconhece a similaridade empírica

entre ambas as teorias:

A distinção entre mediação e midiatização é teoricamente e analiticamente importante, mas os próprios processos de mediação e midiatização não são empiricamente distintos, uma vez que o efeito acumulado das práticas de trocas mediadas pode representar uma instância da midiatização. (HJARVARD, 2015, p.53).

Braga (2012) aponta que a performance dos processos sociais não decorre

pela inserção das tecnologias e sua capacidade de abrangência do público, mas sim

enfoca o que anteriormente Vera França fez em sua discussão epistemológica: dar o

destaque ao campo das interações. Por isso, as midiatizações insistem em não

retornar aos meios, mas continuar nas mediações, mesmo que para um autor

renomado como José Luiz Braga, seja necessário reconhecer a dificuldade em

escolher focos de investigação e desenvolvimento de conceitos de uma linha em

construção no campo comunicacional. Afirma Braga (2009):

Parto da perspectiva de que o processo não é mera da tecnologia, como se o avanço tecnológico é que determinasse essa ou aquela mudança. Creio que o avanço tecnológico é algo socialmente determinado. Não aparece uma tecnologia desenvolvida por um inventor que está fora do mundo, fora da sociedade. São as demandas da sociedade que provocam o avanço. Não é a mídia, a televisão, que cria uma sociedade nova. É uma sociedade caracterizada por diversos eventos que precisa de processos interacionais novos, porque os atuais não conseguem dar conta do que está em efervescência. (2009, s/pág).

Aprofundando a questão da circulação e da participação de dispositivos, os

quais ele chama de dispositivos sociais, Braga apresenta uma ampla trajetória

percorrida nessa discussão e é preciso trazer de alguma forma a obra A sociedade

enfrenta sua mídia (2006), segundo a qual o autor acrescenta junto aos sistemas de

produção e recepção um terceiro sistema que ele chama de “sistema de interação

social sobre a mídia” ou “sistema de resposta social”, cuja função seria fazer circular

conteúdos através de dispositivos sociais, podendo eles ter forma de mediações,

como sistemas de representações e apropriações.

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Esses dispositivos sociais fomentam processos de interpretação,

apropriação e produção de sentidos aos sujeitos, conferindo-se enquanto processos

de aprendizagem, que abarcam a dimensão educativa do processo comunicativo,

foco também da linha de pesquisa a qual esta dissertação está inserida. Embora a

abordagem cultural seja mais relevante e enfatizada na pesquisa, é importante

considerar que há o elemento de aprendizagem social, fundamental nos processos

de construção de sentidos, pois desloca o papel passivo do sujeito para uma

dimensão ativa e dialógica e, por isso, educativa (BARROS, 2012). A dimensão da

aprendizagem social será tratada com mais importância no próximo tópico,

relacionada à organização dos sujeitos ante a ideia de redes difusas.

Este sistema é de interação, pois o processo comunicacional é circular de

forma que, na midiatização, a circulação deixa de ser vista como a

passagem/contato do emissor ao receptor para ser vista “como o espaço do

reconhecimento e dos desvios produzidos pela apropriação” (BRAGA, 2012, p.38)26.

Embora fique claro na pesquisa a preferência pela visão que a midiatização

compõe a mediação é preciso identificar por onde a midiatização avança nas

mediações. Assim, a pesquisa contempla o “ser” da midiatização pela necessidade

de haver em determinada circulação comunicativa uma influência midiática como

sistema de referência, seja ela feita por mídias tradicionais ou não.

É interessante observar a pertinência do termo circulação, que de forma

especial faz com que os sujeitos perambulem por diferentes mídias, migrando de um

lugar a outro onde antes havia fidelização e estática. Além da circulação que ocorre

nas redes sociais virtuais, Braga (2012, p.39) sinaliza diversas possibilidades de

circulação, como debates, reposição do próprio produto para outros usuários, ou

elaboração de comentários mediante algum texto, ou mesmo uma “conversa de bar”,

por exemplo. Um dos aspectos mais importantes da midiatização para o autor é a

capacidade de escuta prevista ou pretendida por quem fala. Braga chama isso de

“contrafluxo”, em relação à composição da fala colocada em circulação que é, por

26 É possível, no entanto, notar uma diferença da construção desse sistema por Braga em dois

momentos diferentes. No livro A sociedade enfrenta sua mídia, de 2006, o enfoque da circulação está

mais atrelado à influência da mídia e seus dispositivos técnicos do que sua construção teórica de

2012, a qual utilizamos com mais ênfase. No entanto, em ambos os casos percebe-se um raciocínio

coerente ao que estamos considerando como midiatização e objeto da comunicação, focado nos

processos comunicativos.

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sua vez, constante nos macroambientes de interação social. Compreendendo que o

processo de midiatização se dá por fluxo contínuo, entende-se que um “produto

mediático não é o ponto de partida do fluxo. Pode muito bem ser visto como um

ponto de chegada, como consequência de uma série de processos, de expectativas,

de interesses (...)”. (2012, p.41). A constante circulação não ocorre por conta do

produto, mas nele, porque ele se encontra em um sistema de circulação que o

alimenta. Por exemplo, em uma entrevista, Braga (2009) fala sobre a conversação

gerada depois de um filme no cinema como processo de midiatização. Neste caso,

onde estaria o produto midiático? Ele poderia estar no início do processo, se for

considerado o filme; pode ser um processo intermediário, como a conversação

mobilizada por um grupo de pessoas na saída do cinema; ou no fim do processo,

como resultado de postagens nas redes sociais avaliando o filme. Além disso, este

“fim” é relativo, pois este novo processo pode desencadear novos processos como

comentários acerca da crítica e assim por diante.

Braga (2012) sinaliza que a ideia de fluxo contínuo/circulação é uma

perspectiva abrangente para a pesquisa empírica. Uma primeira aproximação

corresponde a perceber que tais fluxos não são apenas descrições abstratas, mas

ocorrem concretamente na sociedade na forma de circuitos, culturalmente

praticados. As múltiplas possibilidades e fluxos contínuos que fazem parte da

midiatização geram também processos interacionais de referência, dispositivos

sociais que referenciam a ação midiática. Como exemplo, tem-se o Carnaval do Rio

de Janeiro como um evento cultural que tem sua natureza transformada pela

sociedade midiatizada e, com isso, passa a ser midiatizado:

Temos processos sociais que já existiam sem a mídia e, portanto, as interações ocorriam fora de qualquer interferência midiática. Aos poucos, esses processos passam a ser midiatizados, perpassados pela mídia. Por exemplo, o carnaval no Rio de Janeiro. Ele se organiza como festa de rua. Num determinado momento, começa a ser mostrado. E, num outro momento ainda, ele se organiza em função da mídia. Os eventos passam a se organizar segundo o olhar midiático. Houve, então, uma midiatização. Do ponto de vista social geral, a partir daí percebo a midiatização como processo interacional de referência. (BRAGA, 2009, s/pag.).

Para melhor visualizar esta abstração do processo comunicativo, Braga

(2012) traz alguns exemplos, conforme expostos acima. Além disso, exemplos

concretos podem vir da própria dissertação, como, por exemplo, do questionamento

se os eventos promovidos pelas organizações de apoio aos migrantes representam

um processo de midiatização que se coloca nesta circulação.

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Para terminar este item seria negativo não falar na relação “circuitos versus

campos (sociais)”, expressão que dá título ao artigo de Braga (2012), referencial

para este tópico. A relação principal de ambos os termos está na condição de que os

circuitos não se desenvolvem no vazio. É assim que o autor inicia sua conversa

sobre os circuitos e os campos sociais, designando estes como estruturas

estabelecidas, que compartilham sua existência com outros campos. Braga fala

também do campo da mídia que, para o autor, não seria decorrente apenas da ação

dos meios, nem seria o campo da mídia o único responsável pela midiatização da

sociedade. Na sociedade em midiatização, a cultura midiática perpassa diversos

campos, havendo assim diversos modos de interagir na sociedade pelo fato da

midiatização ser um “processo interacional de referência”. O nome diz respeito a um

processo que é altamente interativo e de referência, porque faz com que todos os

processos de interação estejam, de alguma forma, em contato com as mídias.

Os campos sociais, sendo mais estruturados, são os principais responsáveis

pela articulação com o todo social, ao mesmo tempo em que podem incidir sobre ele

agentes externos devido a sua própria necessidade de interação externa. Braga

salienta com isso a deformação do campo social, não afirmando, contudo, que os

campos sociais se diluirão em uma espécie de “comunicação direta” através de

redes difusas, mas que os processos de interação “em midiatização” mudam as

formas de ação e o perfil destes campos. É possível citar como exemplo algo que

será visto nesta pesquisa: o campo comunicacional em relação às organizações e a

capacidade destas de poder informar diretamente algo a alguém ao invés de ser

apenas uma “fonte”. (2012, p.46), no sentido usualmente utilizado no jornalismo, um

dos subcampos da Comunicação mais relevantes para a visibilidade e

representação social das problemáticas migratórias.

Ao observar a construção feita até aqui, das primeiras teorias da

comunicação até as análises sobre os processos interacionais, percebe-se que as

tecnologias e técnicas contribuem para a interação, mas são os chamados

“dispositivos de interação” (BRAGA, 2012) através das matrizes sociais, que

permitem a tais interações serem acionadas culturalmente na lógica midiatizada.

A dinâmica cultural, que também é histórica, mostra-se estreitamente ligada

a este processo, pois, como salienta Braga (2012, p.50), “não são as características

da midiatização que ‘dizem’ o social – mas sim os modos pelos quais sejam

historicamente acionadas”. Desta forma, a midiatização não é um ente solto das

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suas matrizes culturais para não correr o risco de se encontrar representada por

uma volta “das mediações aos meios”. O processo de midiatização só se constitui

como tal porque há nele um componente de intersecção com a dimensão

sociocultural e a dimensão histórica e, por isso, sendo considerado algo importante

para esta nova sociabilidade – de cultura midiatizada – complexa demais para ser

vista a partir de uma análise causa-efeito. Por fim, a midiatização se propõe a

estudar:

(...) aquelas experiências sociais de produção de circuitos e de dispositivos interacionais para, através das percepções obtidas, identificar os riscos, os desafios, as potencialidades e os direcionamentos preferenciais; procurando perceber como estão se encaminhando as mediações comunicativas da sociedade e – sempre que relevante – tentando incidir praxiologicamente sobre elas. (BRAGA, 2012, p.50).

Ao ter como objeto de análise as práticas comunicativas realizadas pelos

imigrantes haitianos, estas se configuram como experiências sociais de produção de

circuitos e dispositivos interacionais? Antes de entrar na metodologia, contudo, é

importante pensar nesse processo comunicacional ligado ao próprio processo

migratório e como ambos os campos estão interligados.

2.3 COMUNICAÇÃO NOS PROCESSOS MIGRATÓRIOS

A elaboração dos conceitos trazidos dos estudos voltados aos processos

migratórios na comunicação tem incidência sobre as interações socioculturais a

partir da ideia de resposta social, como terceiro sistema, que organiza a sociedade e

dela extrai uma aprendizagem.

A aprendizagem social está em todo o processo da midiatização, mas

especialmente na capacidade de crítica social frente às interações sociais

proporcionadas por esse processo. Esta dimensão crítica está alinhada à

capacidade da recepção ativa enunciada pelos estudos latino-americanos em

oferecer caráter de resistência por meio da sua capacidade cultural de seleção e

interpretação. (BRAGA, 2006, p.61). Sem poder dar certeza sobre a eficácia dessa

capacidade de seleção e interpretação é, de todo modo, esta qualidade da recepção

que põe em circulação a informação.

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Neste meandro, Braga (2006, p.63) salienta que as condições culturais estão

ligadas às mediações, que, por sua vez, estão atreladas a campos extramidiáticos,

como a família, o trabalho e aquisição financeira, e as próprias redes migratórias, por

meio das organizações de apoio, no auxílio do processo de transição cultural desses

sujeitos diaspóricos.

Todo este ciclo está presente no processo de circulação dos produtos

midiatizados e contribui para a reflexão das causas individuais e coletivas que estão

por trás de cada um destes processos. No caso da migração dos haitianos em

Curitiba, o contexto está ampliado pelo tema macrossocial da globalização e dos

intensos fluxos migratórios que, ao evidenciar um choque de identidades e

estabilidade, não exclui a capacidade interacional desses sujeitos, mas, ao contrário,

a potencializa. Assim, Martín-Barbero compara a interação dos migrantes na cidade

da mesma forma que os fluxos de informações e comunicações interferem no

ambiente escolar, questionando hierarquias.

La presencia del inmigrante es resentida por los ciudadanos del lugar como una amenaza que, al poner en riesgo la seguridad de los de adentro, debe ser contrarrestada multiplicando los registros, los chequeos, es decir instalando la desconfianza como comportamiento normal y extendiendo la sospecha a los gestos, las voces, las vestimentas. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.26).

Nesse sentido, saindo um pouco das midiatizações para incluir as redes

como espaço de construção da aprendizagem social nesse ambiente, consideramos

o termo “comunicação cidadã em espaços transnacionais”, de Denise Cogo (2010).

Cogo chama de “comunicação cidadã” – em espaços transnacionais – as

formas de aproximação que os migrantes travam para resguardar suas culturas, as

quais estão atreladas a três processos de mudança social decorrentes da

globalização. Um primeiro modo se refere às possibilidades de experimentação

promovidas pelas novas tecnologias “como espaços relevantes de construção e

circulação de agendas relacionadas à disputa de cidadania”. (COGO, 2010, p.83).

Estas experimentações, no entanto, têm caráter difuso e de apropriação da gestão

da comunicação por estes sujeitos.

Um segundo processo está diretamente vinculado às redes sociais como

forma de relacionamento e mobilização da sociedade contemporânea, que tem seus

limites atravessados pelas fronteiras e dinâmicas locais. Cogo (2010) acentua mais

as redes sociais virtuais ou o que Scherer-Warren (1998) chama de “redes de

comunidade virtuais identitárias”, cujo processo de construção identitária é

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impulsionado por estas formas de vínculos através de um sentimento coletivo, de

pertencimento e reconhecimento.

O terceiro processo de mudança a que se refere a autora diz respeito ao

próprio processo migratório, que ao potencializar a cidadania intercultural e

cosmopolita acentua os conflitos culturais decorrentes da intensificação de fluxos na

globalização, que também impõem barreiras. Dessa forma, a dinâmica migratória

assumiria com a incisão das redes sociais uma nova forma de conflito com a

sociedade, que demandaria “respostas sociais” frente a um panorama global. Cogo

(2010) une esses três processos para pensar uma comunicação cidadã na

contemporaneidade.

Interessa identificar com mais clareza, no entanto, a relação principal entre

os processos comunicativos e os processos migratórios, expostos a partir de um viés

cidadão (cidadania, no recorte transnacional, não diz respeito apenas à busca pela

igualdade, mas também ao direito à diferença como parte da democracia).

Deslocando-se da proximidade com a comunicação popular e comunitária ou

alternativa – de caráter transnacional – e aproximando-se dos fluxos comunicativos

interacionais, a pesquisa destaca as redes sociais não virtuais.

As redes sociais podem ser todas as interações de indivíduos ou grupos em

suas relações cotidianas, as quais surgem a partir de demandas das subjetividades

e da identidade de cada um. Do mesmo modo é considerada rede social o impulso

que indivíduos ou grupos dão em torno de interesses coletivos, conglomerando

pessoas para fins comuns, como é o caso de movimentos e comunidades. (AGUIAR,

2006, p.14). Afirma Sônia Aguiar:

Embora o crescimento e a extensão das redes sociais nos últimos dez anos possam ser atribuídos, de forma significativa, à disseminação da Internet comercial, a abordagem aqui proposta leva em conta também os “elos invisíveis” através dos quais circulam informação e conhecimento, permitindo a expansão da rede para além dos meios digitalizados, das instituições legitimadas e dos detentores de poder. Esse tipo de abordagem é fundamental em contextos de alto grau de infoexclusão (...). (AGUIAR, 2006, p. 16).

Ainda que se considere este grande número de situações como redes,

Aguiar critica a concepção de rede como qualquer nó interconectado, pasteurizando

diferentes processos de enredamento, inclusive a relação de “nós” humanos e “nós”

não humanos, estes, por exemplo, como centrais de serviços ou pistas de

aterrissagem; ou mesmo na naturalização das redes neoliberais e de resistência.

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Deste modo, a autora defende que mais do que estar em rede o que interessa é

estar em rede para enfrentar algo. (AGUIAR, 2006, p.17).

Um dos enfrentamentos que se propõem fazer as organizações de apoio aos

migrantes haitianos em Curitiba é vinculado ao empenho em deslocar imaginários

prejudiciais para uma valorização da cultura desses novos sujeitos curitibanos.

Salienta Cogo:

Trata-se de contradiscursos em torno dos quais as redes migratórias se movem igualmente pela desestabilização daqueles discursos midiáticos que, a partir de contextos nacionais de produção, circulam transnacionalmente para afirmar a associação das migrações à delinquência, conflito e pobreza. (COGO, 2010, p.90).

Cogo relaciona a ótica dos estudos culturais e da matriz latino-americana à

lógica do transnacionalismo e ao rompimento de fronteiras, cujo cenário encontra na

comunicação cidadã uma das principais dimensões das perspectivas culturais e sua

alocação no pós-colonialismo de Hall, especialmente ao considerar as redes como

“espaço de relações sociais de caráter fronteiriço e da construção de comunidades

desterritorializadas”. (2010, p.94). Essa nova forma de sociabilidade é, para Cogo,

manifestada especialmente através das novas tecnologias de comunicação. No

entanto, não é o caráter de novidade da comunicação alavancado pelas novas

mídias que mais nos interessa, mas a forma com que as redes, virtuais ou não,

propiciem ou não que sujeitos tenham um espaço de circulação de informação e,

com ele, apropriem sentidos e os produzam.

Nesse caso, observa-se um empenho, por parte das redes migratórias, em

se constituírem enquanto “lugares simbólicos de convergência transnacional das

múltiplas e plurais subjetividades migrantes e/ou se converterem em espaços de

agregação de causas sociopolíticas e culturais ligadas à cidadania das migrações”.

(COGO, 2010, p.99). A constante busca por parte dos imigrantes às organizações se

deve pela credibilidade que estas apresentam no espaço público. Sobre isso, ElHajji

afirma:

(...) no atual espaço democrático, o discurso público investido de autoridade representativa, estabelecida e reconhecida pelos próprios membros do grupo deve ser particularmente valorizado, já que é por meio desse mesmo discurso que os grupos minoritários (étnicos e confessionais) elaboram as suas estratégias de legitimação e formação de consenso, tanto entre seu público interno como na sociedade. (ELHAJJI, 2005, p.201).

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Trazer o âmbito das redes (sociais) migratórias para a presente discussão

contribui para localizar as organizações no processo comunicativo da pesquisa.

Além da intensa circulação promovida entre migrantes e organizações de apoio, há

também o próprio processo migratório como ato comunicativo, quando sujeitos em

diáspora colocam-se em contato com outra cultura e a dialética que se estabelece

entre as distintas realidades caracterizam o hibridismo desse novo espaço. Essa

marca híbrida, que questiona fronteiras geográficas e faz uma contra-hegemonia ao

sistema global, é a principal marca da comunicação nesse fenômeno das migrações

contemporâneas, balizadas pela participação de atores em rede, no caso as

organizações e a comunidade haitiana em Curitiba.

Neste sentido, como os processos de comunicação realizados contribuem

para que os imigrantes haitianos que residem em Curitiba construam sua identidade

cultural? Quais são estes processos que se colocam em circulação? Como as

organizações atuam nesse processo? As próximas reflexões são encaminhadas pelo

capítulo metodológico e um aprofundamento na realidade migratória.

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3 O PANAROMA SOCIO-HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES

O capítulo traz um enfoque em quesitos sociológicos e históricos da migração.

Ambas as ênfases já estão tratadas nesta prévia do capítulo, mas se pretende fazer

um detalhamento da história das migrações em diversos níveis, a imigração histórica

no Brasil, no Paraná e em Curitiba, além das quatro etapas da diáspora haitiana. O

capítulo também pretende diagnosticar, a partir dos dados mostrados na Introdução

desta dissertação, a realidade migratória no Brasil e as políticas atuais para a

chegada dos novos imigrantes, especialmente os haitianos.

3.1 A SOCIOLOGIA DA MIGRAÇÃO E SUAS PERSPECTIVAS MACRO E MICRO

A migração é um fenômeno tão complexo de ser compreendido que mesmo

com o desenvolvimento dos grandes fluxos humanos no fim do século XIX e início

do século XX as teorias que tratam o tema não são tão evidentes e bastante

variáveis conforme afirma João Peixoto (2004). Mesmo com os intensos movimentos

migratórios internos, do campo para a cidade, ou com os movimentos

transoceânicos, que permitiram liberar o êxodo rural para novos continentes, o autor

afirma que é o campo da geografia que mais tem dado atenção ao tema graças à

sua relação com o espaço, mas a migração ainda constitui “terra de ninguém” no

debate teórico interdisciplinar. Neste sentido, afirmando não haver uma teoria geral

das migrações, Clifford Jansen já no fim da década de 1960 escrevia:

A migração é um problema demográfico: influencia a dimensão das populações na origem e no destino; é um problema económico: muitas mudanças na população são devidas a desequilíbrios económicos entre diferentes áreas; pode ser um problema político: tal é particularmente verdade nas migrações internacionais, onde restrições e condicionantes são aplicadas àqueles que pretendem atravessar uma fronteira política; envolve a psicologia social, no sentido em que o migrante está envolvido num processo de tomada de decisão antes da partida, e porque a sua personalidade pode desempenhar um papel importante no sucesso com que se integra na sociedade de acolhimento; e é também um problema sociológico, uma vez que a estrutura social e o sistema cultural, tanto dos

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lugares de origem como de destino, são afectados pela migração e, em contrapartida, afectam o migrante27. (JANSEN, 1969, p.60).

Um dos primeiros e principais autores da teoria das migrações é o geógrafo

inglês Ernest Ravestein que, na década de 1880, apresenta análises empíricas dos

fenômenos migratórios sob um olhar estrutural, ao considerar a centralidade do

processo em um agente racional que decide pela migração ou permanência a partir

de informações sobre os lugares. Esta ideia simples é, no entanto, impulso para a

sociologia da migração de caráter estruturalista e o papel ativo do sujeito.

(PEIXOTO, 2004).

Aproximando-se das contribuições sociológicas, as teorias de migração têm

na Escola de Chicago, no início do século XX, uma sociologia heterodoxa frente à

sociologia tradicional americana. Chicago desenvolveu com singularidade temas que

foram apropriados por outras disciplinas da sociologia, mas especialmente há uma

contribuição singular aos estudos sobre as migrações no que se refere à escolha

racional do indivíduo em uma aproximação com a ideia de espaço geográfico e do

racionalismo econômico. Exemplo disso provém da ideia de “ecologia humana” de

Robert Park (1915), que relaciona o indivíduo ao meio ambiente e atribui a este a

capacidade de modular comportamentos coletivos, em uma compreensão próxima

de “assimilação” de culturas imigrantes pela cultura hospedeira. (OLIVEIRA, 2014;

PEIXOTO, 2004).

Um dos exemplos que pode ser dado ao enfraquecimento dos vínculos

informais, tidos como comunitários, especialmente pela contribuição de Tönnies,

deve-se ao trabalho de Musgrove (1963), que afirmava existir uma crescente

mobilidade territorial das elites, especialmente no final do século XIX, tido hoje como

o principal período de mobilidade humana dos tempos modernos.

A partir desses referenciais, os estudos da migração e seu caráter

interdisciplinar vão abarcando diferentes formas de mobilidade, inclusive se

atualizando pela mobilidade virtual. E não são só pelas tecnologias e novas

possibilidades de migração que a temática chama a atenção da sociologia, mas as

características microssociológicas e macrossociológicas do fenômeno configuram as

principais explicações do porquê migrar.

27 Tradução: PEIXOTO, J. (2004).

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Esta pesquisa, que enfatiza os processos de globalização e a construção

das identidades mediadas por instituições da sociedade civil, pode ser considerada

como uma teoria macrossociológica da migração. Mas, antes de definir isto, é

importante passar um breve olhar nos principais referenciais teóricos de cada uma

dessas duas teorias.

3.1.1 As teorias microssociológicas da migração

Peixoto (2004) afirma que a maior parte das teorias micro tem um aporte

econômico devido à interpretação de que a principal decorrência de migrar deriva da

vontade de ascender economicamente. A partir desta relação, a própria teoria

microssociológica vai ampliando seu horizonte ao considerar, com Lee (1969), que o

processo migratório está associado também à área de origem, fatores ligados à área

de destino, ambos incluindo questões de infraestrutura; obstáculos intervenientes

que impulsionam ou refreiam o movimento (distância, custos, leis migratórias, grau

de informação, redes de apoio) e fatores pessoais.

Outra abordagem da teoria microssociológica baseia-se no modelo de

capital humano, que analisa a lógica das migrações pelo custo/benefício a longo

prazo, em muitos casos vinculados a uma motivação familiar. Consta também como

custo o investimento na aprendizagem de uma nova língua e cultura, buscando-se

um benefício pelo aumento de rendimento.

Uma terceira abordagem microssociológica apresentada por Peixoto (2004)

tem natureza biográfica na medida em que as principais variáveis trabalhadas são o

ciclo de vida individual e a trajetória de mobilidade, o que demonstra uma incidência

mais sociológica do que econômica. Um dos exemplos percebidos, por exemplo, é a

incidência de que os indivíduos casados apresentem menor probabilidade de

migração, segundo estudo de Sandefur e Scott (1981). A abordagem do ciclo de

vida em relação à trajetória social aproxima-se da ideia do modelo de capital social à

medida que enfatiza a mobilidade profissional como associação à mobilidade

espacial.

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3.1.2 As teorias macrossociológicas da migração

Como o nome sugere, as teorias macrossociológicas privilegiam aspectos

coletivos e estruturais que condicionam, por vezes, as decisões migratórias. Peixoto

(2004) argumenta que tal acepção pode ser encontrada na corrente estrutural-

funcionalista ou nas teorias marxistas ou neomarxistas, designadas muitas vezes

como histórico-estruturais. No entanto, é importante salientar que os autores veem

confluência entre as teorias macro e microssociológicas, o que demonstra a

complexidade dos estudos das migrações.

Uma das teorias está relacionada ao mercado de trabalho e à economia

informal e confirma a necessidade de haver uma motivação econômica para o

processo migratório. Essa teoria condiciona o movimento de indivíduos pelas ofertas

de emprego, especialmente os de característica informal, que ainda significaria

maiores oportunidades do que no território de origem do migrante. Esta ideia, no

entanto, não se coaduna somente com o viés econômico. Como afirma Peixoto: “A

existência de procura deverá conciliar-se com mecanismos econômicos e

sociológicos diversos (...) que determinarão o início e a auto sustentação de

determinadas correntes”. (2004, p.24).

As teorias que vêm a seguir são mais pertinentes a esta dissertação por

estarem mais próximas a conceitos de sistemas-migratórios e valorização da cultura

e formas de resistências locais. Assim, o modelo das “estruturas espaciais” está

relacionado à “variável espaço e procura enunciar os fatores que levam a um

desenvolvimento particular dos territórios” (PEIXOTO, 2004, p.24). Peixoto ainda

afirma que a questão territorial conduz os movimentos populacionais, levando em

conta dimensões como centro e periferia, por exemplo. Este modelo está

relacionado não só à sociologia, mas também aos estudos urbanos e à geografia

dentro de uma perspectiva socioespacial integradora.

De viés marxista, esta teoria incide sobre a formação estrutural do capital

nas sociedades modernas, tratando a migração como fenômeno consequente a esta

ligação entre estruturas espaciais e relações sociais, fomentadas pela diferença de

classe. Ressalta-se a lógica do desenvolvimento desigual do espaço, que gera a

mobilidade humana a partir do acúmulo privado do capital, concentração das

atividades produtivas, fragmentação das atividades, o que faz Castells (1999)

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chamar de “espaços de fluxos” a lógica de expulsão das populações mais abastadas

da cidade e seus recursos básicos de vida, ocasionada, sobretudo, pela alta

volatilidade do capital e trabalho.

Dentro deste cenário de valorização do espaço físico, a teoria do sistema-

mundo, de Wallerstein (1986), parte de uma análise internacionalista das migrações,

compreendendo o capitalismo moderno como cenário. Petras (1981) sugere que o

capitalismo global é responsável pela formação de um “mercado de trabalho global”

onde não só migram pessoas, mas capital, gerando o que ela chama de “zonas

salariais” diferenciadas. Essa ideia está ligada ao economicismo, pois acredita que

“as forças estruturais da economia mundial que geram os diferenciais econômicos e

que ‘transportam’, de certa forma, os migrantes”. (PEIXOTO, 2004, p.26).

Outro “sistema” trazido pela teoria macrossociológica é a dos “sistemas-

migratórios”, que se afasta mais do economicismo e tem por característica analisar

os fluxos humanos por contextos históricos particulares, cuja dinâmica interna

confere a eles um caráter sistêmico. Quanto às migrações internacionais, segundo

Peixoto, o caso mais habitual é o das “redes macrorregionais” que unem países que

alimentam fluxos entre si. Esta dinâmica apresenta para ele uma característica

distinta que figura na relação entre um contexto determinado e fluxos migratórios e

outros tipos de intercâmbio, abrindo brechas para características não só econômicas

como também políticas e culturais. A diferença para os sistemas-mundo reside na

contraposição que a formação de redes faz frente aos padrões globais, pois

separam contextos históricos de atuação, espaço e tempo. (PEIXOTO, 2004).

Outras três teorias apresentadas por Peixoto seguem as referências das

teorias macrossociológicas, mas se distinguem por aproximar a macro e a

microssociologia. A primeira teoria, referindo-se às instituições, tem como ponto de

inferência a centralidade atribuída a agentes coletivos, ou seja, são entidades

coletivas que se responsabilizam pelos destinos dos fluxos. Mais próximo a esta

pesquisa, Massey (1993) ressalta também as instituições de apoio ao migrante,

sendo este ponto de característica social inferior a outros.

Outra teoria se refere às redes migratórias. Embora parecida com a lógica

das instituições e de capital social (âmbito microssocial), neste caso salienta-se a

inserção dos migrantes em redes de pertencimento que os fazem não decidir

sozinhos pela migração migrar ou não migração. E como afirma Portes e Böröcz:

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Redes construídas pelo movimento e contacto de pessoas através do espaço estão no centro de microestruturas que sustêm a migração ao longo do tempo. Mais do que cálculos individuais de ganho, é a inserção das pessoas nestas redes que ajuda a explicar propensões diferenciais à migração e o caráter duradouro dos fluxos migratórios. (PORTES e BÖRÖCZ, 1989, p.612).

Tais redes são caracterizadas por uma “racionalidade limitada” de

conhecimento dos indivíduos pertencentes e de um avanço na ideia economicista

das justificativas migratórias. (PEIXOTO, 2004, p.30).

A última teoria macrossociológica identificada por Peixoto (2004) baseia-se

novamente em Portes e Böröcz (1989) e enfatiza os laços sociais e étnicos dos

migrantes pelo viés territorial. Esta teoria conecta a ideia de capital social e recursos

econômicos ao viés comunitário do grupo formado, organizando uma espécie de

“comunidade étnica solidária” (PEIXOTO, 2004, p.30), cuja importância econômica

vai desde a constituição de um mercado de bens e serviços culturais até a reserva

de trabalho assalariado.

Ao observar algumas das possibilidades de ênfase ao estudo das

migrações, as teorias que mais se aproximam dessa dissertação são as últimas

elencadas. Torna-se complexo optar por uma ou outra, sobretudo por não ser um

trabalho que tem nas dinâmicas migratórias suas principais referências teóricas e

metodológicas. Sendo um trabalho de comunicação, a teoria das migrações emerge

como um cenário importante para se compreender práticas de mediações culturais e

de midiatização. Desta forma, é interessante observar a teoria dos sistemas-

migratórios como cenário geopolítico, de cooperação entre países e incidência

cultural, que acentua a “crise das fronteiras” dos Estados-nação.

Igualmente, não se pode ignorar na pesquisa a contribuição dos processos

microssociais, especialmente quando se debate as identidades alinhadas à dinâmica

de grupos migrantes e instituições de apoio. Assim, a ênfase na abordagem das

teorias que reforçam as instituições, redes migratórias e laços sociais e étnicos são

observados no levantamento bibliográfico.

3.2 HISTÓRICO DAS MIGRAÇÕES, O BRASIL E A DIÁSPORA HAITIANA

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A imigração é um dos fenômenos mais antigos da história humana e carrega

consigo a marca de ser uma notável consequência de diversas problemáticas

sociais, em especial na atualidade. A primeira pergunta a ser feita quando se debate

o tema é: por que as pessoas migram? Por que sair de uma zona supostamente

mais confortável para se arriscar em um terreno de culturas, língua e valores

diferentes? Herbert Klein (2000) credita a busca por alimento como a principal causa

do trânsito de pessoas pelo globo, mas não descarta a influência das perseguições,

seja pela cultura majoritária sobre a minoritária ou perseguição religiosa, que

mantém estreita relação com a causa cultural.

Diferente do que pode se pensar a partir da realidade do Brasil, as

migrações não são recentes, mas ocorrem desde que o homem aprendeu a viver em

sociedade, sobretudo, pela necessidade de acesso à terra para sua alimentação. A

partir dessa informação, Klein (2000, p.14) afirma que o fenômeno é potencializado

a partir da redução da mortalidade e aumento da natalidade do século XVIII, que

diminuíram o acesso à terra pela tecnologização do campo – para suprir o aumento

da demanda – e promoveram um êxodo rural que inchou as cidades europeias já no

século XIX.

A partir dessa inferência, as terras na Europa se tornam escassas e, com o

elevado número de mão de obra, o valor do trabalho se torna baixo. Na América

colonial ocorre o oposto: as terras são muitas, porém, pelo baixo número de mão de

obra, a mesma é cara. Desta forma, explorando inicialmente o trabalho dos nativos

indígenas e, posteriormente, investindo no trabalho escravo africano, portugueses e

espanhóis trouxeram europeus para incentivar o marcado interno colonial.

Especialmente no Brasil do século XVIII, Klein (2000) afirma que houve cerca de 400

mil portugueses vindos ao país para o trabalho com o ouro em Minas Gerais, o que

resultou em uma forte imigração europeia no Centro-Sul do Brasil.

O século XIX assinala um importante momento para os fluxos migratórios

devido ao desenvolvimento da energia a vapor, que dinamizou o transporte e

aumentou decisivamente os fluxos euro-americanos. Além de potencializar novos

imigrantes de diferentes lugares da Europa, a busca pelo “Fazer a América”,

realizada especialmente por homens jovens, pode ser relacionada ao processo que

ocorre hoje, nas migrações atuais Sul-Sul:

Para eles, a prioridade básica consistia em acumular poupanças com as quais esperavam poder desfrutar de uma vida melhor em seus países de

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origem. Por isso, aceitavam quaisquer trabalhos que lhes oferecessem, ainda que de baixo status, porque esses trabalhos aparentemente sem perspectivas proporcionavam-lhes melhores salários do que os pagos em seus países. Para cerca da metade dos imigrantes que chegaram, essa estratégia funcionou e acabaram retomando a seus países nativos. (KLEIN, 2000, p. 24).

É neste contexto do “Fazer a América” que um fato interessante passa a

ocorrer na dinâmica das migrações: a preocupação exclusiva com o acúmulo

econômico passa a ser dividida com uma assimilação cultural por parte deste

imigrante na nova vida. Assim, a primeira geração de europeus, em muitos casos,

trouxe suas famílias para recomeçar no novo ambiente, ao passo que a segunda

geração, mais aculturada, começaria a formar suas famílias com os próprios nativos

dos países latinos (KLEIN, 2000). Klein (2000) também comenta que a Primeira

Guerra Mundial culminou com o primeiro declínio da migração internacional, ao

impedir o crescimento econômico dos países centrais, além de intensificar os limites

fronteiriços e alavancar os ideais nacionalistas com expansão dos mercados locais.

Outro momento de declínio seria até a Segunda Guerra, sendo que no intervalo

entre uma guerra e outra ainda houve a Crise de 1929.

No período pós-guerra, a América, especialmente os EUA, recebeu uma

nova leva de imigrantes, agora qualificados profissionalmente. Na América Latina,

até 1970, 35% dos imigrantes chegaram ao Brasil, em sua maioria, portugueses,

italianos, espanhóis e japoneses. A partir da década de 1990, com a postura

neoliberal no mundo ocidental e a reestruturação dos países do cone sul

(especialmente argentinos, uruguaios, paraguaios e bolivianos) há um aumento de

fluxo entre estes países, que atinge principalmente o Brasil com preferência pelos

estados do Sul e Sudeste, especialmente São Paulo. (SALA; CARVALHO, 2008). No

entanto, o destaque ao estado do Paraná é feito pelo recorte da pesquisa em ter a

cidade de Curitiba como cenário da chegada dos haitianos ao Brasil.

Antes ainda de atribuir ao Paraná características migratórias que se alinham

ao atual momento das migrações haitianas no país, Darcy Ribeiro (2008), na notável

obra O povo brasileiro, traça de modo sucinto a imigração no Brasil. Nas poucas

páginas que se dedica exclusivamente ao tema, importa-se em salientar a formação

de conglomerados regionais pelos imigrantes europeus, especialmente ao Sul do

país, as desigualdades sociais expressas racialmente pela depreciação do negro e

do mulato e por uma questionável – do ponto de vista dos estudos culturais

abordados nesse trabalho – homogeneidade cultural que o antropólogo confere ao

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Brasil e a ausência de “lealdades étnicas extranacionais” (2008, p, 243) que fizeram

com que os diversos povos fossem assimilados culturalmente pelo Estado-nação.

O conjunto, plasmado com tantas contribuições, é essencialmente uno enquanto etnia nacional, não deixando lugar a que tensões eventuais se organizem em torno de unidades regionais, raciais ou culturais opostas. Uma mesma cultura a todos engloba e uma vigorosa autodefinição nacional, cada vez mais brasileira, a todos anima. (RIBEIRO, 2008, p.243).

Embora concorde com a definição de Darcy Ribeiro (2008) de que não há

uma etnicidade exacerbada no Brasil, desconfia-se também da nomenclatura

“homogeneidade” para tratar de questões culturais nacionais. Sobretudo, no Brasil, é

Lesser (2001) quem vai questionar a ideia de uma definição nacional, “cada vez

mais brasileira” (2008, p.243) e da “ideologia integracionista encorajadora do

caldeamento” (2008, p.238), afirmadas por Darcy Ribeiro.

3.2.1 Imigração histórica no Brasil

A imigração histórica no Brasil pode ser pensada temporalmente até a

primeira metade do século XX, quando há uma transformação dos fluxos de pessoas

decorrentes de fatores geopolíticos, especialmente com as guerras mundiais,

definindo-se, posteriormente, o período de imigração contemporânea, que ganha

força na década de 197028, além de um amadurecimento industrial e urbano.

Se a história das migrações acompanha a história da humanidade, no Brasil

as considerações de Klein (2000) compõem o cenário de fluxos de pessoas,

especialmente europeus, a partir do século XVIII com a dinamização dos transportes

e a busca pela terra. É importante ressaltar a relação que existe entre a história

migratória no Brasil e a chegada dos europeus, pois é com a vinda destes que o

Estado preocupa-se mais com políticas para estrangeiros como, por exemplo, a

Provisão Régia, de 1747, que estimulava a migração de estrangeiros católicos ao sul

do Brasil e, em 1890, o Decreto-Lei nº528, que prevê a aquisição de terras,

reembolso e custos de viagem dos imigrantes, proibindo a entrada de imigrantes

negros e asiáticos. (OLIVEIRA, 2011).

28 Ver tópico 3.2.3.

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O que se tem antes no Brasil é um processo de colonização de portugueses

e a comercialização de escravos africanos, que não se adéquam ao panorama de

imigração que esta pesquisa apresenta, visto que consiste em um deslocamento

forçado pelo viés do tráfico de pessoas. Neste sentido, regido por políticas de

imigração selecionada, o Brasil se apresenta no cenário político das migrações como

um país avesso ao que o mito da miscigenação e da tolerância étnica tem

manifestado na identidade nacional para poder observar, especialmente entre o fim

do século XIX e o início do século XX, um incremento nas políticas de atração de

imigrantes com fins econômicos e demográficos seletivos.

Alguns exemplos podem ser dados a partir dos conceitos de superioridade

racial expressos por intelectuais como Nina Rodrigues e Silvio Romero, por exemplo,

que relacionavam diametralmente o desenvolvimento do país ao número de povos

não brancos. Segundo Schwarcz (2009), Rodrigues, de forma radical, argumenta

que a mistura de espécies seria uma forma de degeneração, enquanto Romero

advoga para uma forma de unificação nacional, acreditando, todavia, no

embranquecimento geral da população. (FERNANDES, 2015).

A criação dos núcleos coloniais e sua finalidade de expansão das terras

cultiváveis no país promoveu a vinda de colonos e trabalhadores agrícolas por meio

de um “serviço de imigração”, batizado de “Serviço de Povoamento do Solo

Nacional”, de 1921, visto que a herança escravista havia deixado marcas de

preconceito aos trabalhadores da terra. Sobre essa relação da terra e os imigrantes,

Márcio de Oliveira argumenta:

Em resumo, o objetivo aqui era de moldar a sociedade brasileira que deveria se organizar graças à imigração (...). Ou ainda talvez se assista aí a uma tentativa de miscigenação às avessas da população brasileira, ou seja, de brasileiros (brancos, mulatos ou negros) com europeus brancos. Mas, sobretudo, deve-se ver aí a organização de uma política de integração forçada, a exemplo da “Campanha de nacionalização” que seria posta em prática pelo governo Vargas ao final dos anos 1930. (OLIVEIRA, 2011, p. 13).

Para os estrangeiros, não só leis favoráveis eram encontradas no Estado

brasileiro, mas em 1921, por exemplo, foi decretada a “Lei dos Indesejáveis”, que

proibia, por parte do Estado, a imigração de doentes, portadores de deficiências e

até pessoas acima de 60 anos, mesmo as que pudessem se manter sem ajuda

externa. Além disso, a Constituição de 1934 define uma política de cota para

imigrantes, além de restringir a estes a atividade partidária ou a formação de

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qualquer tipo de associação, processo que se intensifica na Segunda Guerra

Mundial com a proibição de manifestações culturais. Essas políticas restritivas

coadunam para a criação, já na década de 1980, do Estatuto do Estrangeiro,

preocupado em garantir a segurança nacional, colocando o imigrante sob jurisdição

policial e penal. (FERNANDES, 2015).

Assim, pode-se presumir que as políticas migratórias no Brasil estiveram

voltadas para a imigração branca e de ocupação de terras para a agricultura, terras

que foram abandonadas após a abolição da escravatura. Negros, mulatos e

asiáticos foram diferenciados em tais políticas, acompanhados pelos europeus

apenas nos períodos das grandes guerras quando os alemães, por exemplo,

deixaram de ser bem-vindos ao Brasil. Neste interim, é possível observar o processo

de negociação que há entre nacionais e estrangeiros para uma construção cultural e

identitária do país, visto que a presença de agentes externos foi fundamental para a

construção do povo brasileiro, como afirma Darcy Ribeiro (2008).

3.2.2 A negociação da identidade no Brasil

Jeffrey Lesser (2001) enfatiza o que ele chamou de identidade hifenizada,

como um importante momento da história do continente e do Brasil em tempos de

negociação das identidades nacionais. Se hoje a ideia do pós-colonial avança as

fronteiras nacionais para a construção das identidades, Lesser aponta a realidade

migratória no continente como um impulso para a ideia de aculturação, princípio das

teorias defendidas nesta dissertação sobre identidade cultural que valorizam o

“outro” e sua potencialidade de incidir com sua cultura de fora, configurando uma

espécie de “carnaval” bakhtiniano.

Lesser (2001, p.22) afirma que a ideia de aculturação, embora muitas vezes

não reconhecida, prevaleceu sobre a ideia assimilacionista, que conferia a absorção

da cultura estrangeira pela cultura nativa, gerando desconforto das elites nacionais,

a ponto de:

Em 1889, a República foi proclamada, e o primeiro decreto do governo, com relação à imigração, proibia a entrada de asiáticos e africanos. Trinta anos mais tarde, o governo estendeu essa proibição a todos os que ele considerasse ‘africanos’ ou ‘asiáticos’, incluindo aqueles que jamais haviam

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estado na África ou na Ásia. A imigração foi de fato a construção da identidade nacional. (LESSER, 2001, p.28).

A construção da identidade nacional no Brasil foi erguida sob a estratégia de

“embranquecimento”, conforme podemos acompanhar nestes dados históricos. Se a

chegada estratégica de brancos europeus trouxe características à identidade

nacional conforme buscado pela política nacional, é indispensável contar, contudo,

com as ditas identidades hifenizadas, que transformaram a unicidade da identidade

brasileira em diversas formas como a identidade luso-brasileira, ítalo-brasileira, nipo-

brasileira ou afro-brasileira, por exemplo, pluralizando as formas culturais do país.

Assim, “jamais existiu” uma identidade nacional, como afirma Lesser (2001,

p.20), especialmente em um ambiente onde características globais “carnavalizaram”

uma suposta unidade cultural. A hifenização, ainda que confira diferenças ao

alemão, japonês, africano radicados no mesmo ambiente, não impediu que surgisse

no país uma ideia de “mestiçagem”, segundo o autor.

3.2.3 Imigração no Paraná

“Em Curitiba, por exemplo, come-se broa com vina. Em lugar algum do

Brasil sabe-se o que é vina, só o Paraná sabe que vina é a wienerwurst, a salsicha

feita à moda de Viena”. (BORUSZENKO, 1986, p.61).

A citação acima diz muito sobre este tópico, pois ao ser descrita a imigração

histórica no Paraná, mais especificamente na região do sul e sudeste do estado,

conta-se também nuances culturais deixadas pelos primeiros europeus em terras

paranaenses que aportaram no início do século XIX. Sem diferenciar-se

abruptamente dos processos migratórios do centro-sul brasileiro, a imigração para o

Paraná destaca-se pela elevada população eslava e pela formação de núcleos

coloniais ao redor de centros urbanos, o que potencializou a formação de um rosto

mais europeu nas regiões mais próximas à Curitiba.

Conhecido como o estado mais eslavo do Brasil até o início do século XX,

pelos milhares de imigrantes europeus que desembarcaram nas terras paranaenses,

como é o caso dos poloneses, ucranianos e mesmo os russos, mas também com a

chegada intensa de alemães e italianos, o Paraná chamou a atenção de europeus

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pelo clima temperado, próximo ao vivido no velho continente (OLIVEIRA, 2012). A

primeira chegada de imigrantes no estado é datada em 1816 com a vinda de 50

casais açorianos, nos municípios que hoje são Rio Negro e Mafra, seguido pelo

estabelecimento da primeira colônia alemã em 1829, com a chegada de 100

imigrantes na mesma região. A chegada massiva de europeus a partir do século XIX

é influenciada pelo decreto de 1808, que torna possível a propriedade de terras a

imigrantes. (BORUSZENKO, 1986).

Após as medidas antiescravistas, as províncias se viram insuficientes de

mão de obra agrícola e a solução passa a ser o incentivo da chegada de imigrantes

europeus para a realização deste trabalho. O Paraná se destaca frente a outras

províncias no Brasil por criar uma agricultura de abastecimento, desenvolvendo um

plano de colonização baseado no estabelecimento de colônias agrícolas em volta

dos novos centros urbanos, especialmente na região de Curitiba e, posteriormente,

estendendo-se ao litoral e a região dos Campos Gerais. (BORUSZENKO, 1986).

Neste sentido, a figura de Adolfo Lamenha Lins ganha importância na

história da imigração no Paraná, pois, ao se tornar governador em 1875, o mesmo

incentiva a formação de tais colônias agrícolas e deixa, segundo Wachowicz (2001),

uma “teoria” sobre a forma de promover a colonização europeia, como a

necessidade das colônias ficarem próximas de seus centros consumidores; a

facilidade para o transporte dos imigrantes nas colônias, a ligação do colono à terra

que habitava, facilitando a aquisição da mesma; o auxílio financeiro a cada imigrante

maior de 10 anos de idade; a divulgação da verdade sobre a nova pátria e; a

construção de escolas e capelas nas colônias.

Após esse auxílio estatal aos imigrantes, os anos decorrentes –

especialmente a partir de 1885 – se destacam pela iniciativa privada no fomento da

chegada dos europeus, especialmente com a formação de associações de

colonização. Essas, “tinham agentes de imigração na própria Europa, que

arregimentavam candidatos a imigrantes por toda a Europa, sobretudo entre a

população agrária”. (BORUSZENKO, 1986, p.57). Boruszenko conta ainda que a

chegada de europeus foi, em alguns casos, motivada por mitos, como a ideia de que

Nossa Senhora, no Brasil, havia pedido para que poloneses habitassem o país para

lá construírem um reino de felicidade. Percebe-se na pesquisa que, embora as

histórias sejam diferentes, a ideia exacerbada sobre o lugar de destino é ainda

recorrente, mesmo na imigração haitiana ao Brasil, em pleno século XXI.

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Como afirmado anteriormente, um dos destaques da imigração no Paraná se

deu pelo estabelecimento de núcleos coloniais nos centros urbanos. Essa iniciativa,

contudo, acabou limitando-se a áreas já ocupadas, não contribuindo para a

ocupação do resto do estado. As regiões norte, sudoeste e oeste do Paraná, por

exemplo, destacaram-se pelas migrações internas, especialmente por paulistas e

mineiros, e pela chegada de imigrantes não europeus (como os japoneses no norte

do Paraná), realizadas bem posteriormente às ocupações no sul e sudeste do

estado. (BORUSZENKO, 1986; WACHOWICZ, 2001).

Há um incentivo pela imigração europeia, ainda motivada pelas políticas de

embranquecimento surgidas com a proclamação da República, que desqualificaram

a vinda de asiáticos e negros ao país. Como um estado novo, o Paraná ainda

constrói sua história migratória ao longo do século XX, desde um rompimento da

chegada de alemães, devido às guerras mundiais, até a explosão populacional

ocorrida na década de 1960/70. A força da imigração europeia no Paraná pode ser

enumerada através de dados da entrada de pessoas até 1948:

TABELA 1 - CHEGADA DAS CINCO PRINCIPAIS NACIONALIDADES MIGRANTES AO PARANÁ

ATÉ 1948.

Poloneses 57 mil

Ucranianos 22 mil

Alemães 20 mil

Japoneses 15 mil

Italianos 14 mil

FONTE: WACHOWICZ, 2001, p.158.

Reconhecendo que a formação do Paraná passa pelos esforços de

imigrantes europeus, Wachowicz (2001) salienta que houve uma transformação

modernizante na sociedade paranaense a partir dessas contribuições. Por exemplo,

o autor afirma que esse processo lançou bases para o surgimento da classe média;

desenvolveu um ciclo rodoviário próprio; recuperou a dignidade do trabalho braçal

ocasionada pela herança escravista; deu início a indústrias pelo estado; criou uma

arquitetura característica e, consequentemente, tornou o Paraná majoritariamente

branco.

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3.2.3.1 A Curitiba moderna: cidade migrante

A história de Curitiba se confunde com a do estado do Paraná, até pelo fato

desta ser sua capital desde 1854, quando somava ainda 161 anos. Se nos primeiros

anos a nova capital tinha cerca de 10 mil habitantes, até o fim do século XIX os

moradores já passavam de 25 mil. As presenças de alemães e poloneses nesta

época se tornaram evidentes a ponto de a população branca passar a compor 79%

da cidade, contra 44% da média nacional, diferença sinalizada até hoje entre os 53%

que se declaram pretos e pardos no Brasil e os 19,7% em Curitiba, segundo dados

do IBGE de 2010. Além da raça, a forma europeia de ser – especialmente a alemã e

polonesa – também influenciou Curitiba no comércio, escolas, comunidades

religiosas, associações e imprensa.

Construída por décadas pelos imigrantes, especialmente de origem

europeia, Curitiba segue a lógica de grandes centros urbanos brasileiros ao se

configurar como destino de imigrantes, agora com características distintas àqueles

primeiros que chegaram à capital paranaense. Imigrantes latinos, refugiados da Ásia

e africanos constituem as novas migrações e já são facilmente visualizados em

algumas praças da cidade, como ponto de encontro e de trabalho (especialmente

para os africanos com a venda de bijuterias) e em bairros tradicionais de imigrantes,

como Santa Felicidade, historicamente construído pela colonização italiana, mas que

agora cede um espaço considerável à leva de haitianos.

Estes, como afirmado anteriormente, têm em Curitiba seu 4º principal

destino no país, o que exige da maior cidade da região Sul do Brasil novas reflexões

sobre o deslocamento humano. Por exemplo, uma das decisões tomadas

recentemente em relação às políticas para migrantes se concretizou no Plano

Estadual de Políticas Públicas para Promoção e Defesa dos Direitos de Refugiados,

Migrantes e Apátridas do Paraná (2014-2016), vinculado à Secretaria de Estado de

Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Paraná, e efetivado mediante intensa

pressão das organizações de apoio. O documento, que é inédito no Brasil,

acompanha uma série de movimentações em prol dos migrantes, como o Comitê

Estadual para Refugiados e Migrantes, criado em 2012, por meio do Decreto

Estadual nº4289, como afirma o próprio Plano. O mesmo tem por principal objetivo

“proporcionar meios para a construção e implementação de políticas públicas

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voltadas à proteção dos direitos da população de Migrantes, Refugiados e Apátridas

no Estado do Paraná”. (PARANÁ, 2014, p.20) e enfoca seis principais eixos:

educação; família e desenvolvimento social; saúde; justiça, cidadania e direitos

humanos; segurança públicas; e trabalho.

3.2.4 Imigração no Brasil contemporâneo

A história mostra que o Brasil foi construído também por imigrantes que,

buscando melhores condições de vida, chegaram ao “novo continente” e tornaram o

Brasil uma importante nação multicultural no mundo. O período que vai do início do

século XIX até meados da década de 1960, quando há uma diminuição dos fluxos

migratórios, é considerado pela pesquisa como “imigração histórica”. A partir dos

últimos 30 anos do século XX e o início de século XXI, nota-se um aumento de

fluxos dos países latino-americanos para a Europa, Japão e, principalmente, aos

Estados Unidos, ao mesmo tempo em que há um arrefecimento das migrações entre

os países latinos nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, a partir da década de

1980 incrementam-se as migrações latinas para o Brasil, especialmente se levarmos

em conta que, mesmo havendo um decréscimo de estrangeiros no país, segundo

dados dos anos 1950 até 2000, houve, concomitantemente, um aumento contínuo, a

partir de 1970, de imigrantes bolivianos, peruanos e colombianos. (COGO e BADET,

2013).

Na virada do século, o decréscimo do número de estrangeiros no Brasil

diminui, até chegar ao ponto de voltar a crescer a partir de 2010. Dados

provenientes do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça do

Ministério da Justiça do ano de 2011 confirmaram um aumento de quase 50% de

imigrantes no Brasil em relação a 2010, quando um crescimento já havia sido

constatado em relação aos anos anteriores. Este aumento inclui diversos fatores,

dentre eles o impulso econômico que o país viveu no início dos anos 2000 e a

propaganda nacional a partir de grandes eventos esportivos, como já citados na

Introdução.

A partir da década de 2010 são reforçados também os fluxos de haitianos ao

Brasil, o que contribui substancialmente para o aumento de estrangeiros residentes:

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1,87 milhão de pessoas, segundo dados de 2015 da Polícia Federal29. Em relação

aos refugiados, dados da Acnur/ONU revelam que em 2014 o Brasil teve 11 mil

solicitações de refúgio das 860 mil do mundo. Ainda que esse número não considere

os aproximados 50 mil haitianos que se encontram no país hoje, a quantia pode ser

considerada baixa se for dimensionada a capacidade que temos como 5º maior país

do globo terrestre. Como a característica de refúgio é mais específica, se

relacionada à imigração, o número de imigrantes no Brasil é bem maior do que as 11

mil solicitações expostas anteriormente: aproximadamente 833 mil estrangeiros

estão registrados no Brasil na última pesquisa realizada pelo Observatório de

Migrações da Universidade de Brasília (OBMigra/UnB)30. Esse número demonstra

um déficit de entradas para saídas no território brasileiro, ou seja, há mais brasileiros

saindo do país do que estrangeiros entrando, segundo o levantamento da mesma

organização. Outra informação levantada pelo OBMigra/UnB é de que a imigração

para o Brasil, de fato, é uma imigração para o Sul do país, sendo que 75% buscam

nos três estados do Sul brasileiro, além de São Paulo, lugares para viver.

A partir deste panorama de um novo crescimento de mobilidade, as políticas

migratórias no Brasil têm voltado à tona nos debates públicos, especialmente por

meio do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e do Comitê Nacional para

Refugiados (Conare). Ambos os órgãos reúnem uma gama de organizações da

sociedade civil e classe política que debate, sobretudo, a nova Lei de Imigração, que

busca substituir o Estatuto do Estrangeiro, em vigor nos últimos 35 anos, decorrente

da Ditadura Militar brasileira e que conferia ao Estado uma cautela sobre os

imigrantes a partir da ideia de segurança nacional. Dentre as principais diferenças

entre um e outro, a mudança do Estatuto para a Lei aumentaria a proteção aos

imigrantes no país e desburocratizaria a concessão de vistos para investidores e

estudantes, facilitando também o acesso ao visto humanitário a qualquer

nacionalidade31.

29 http://www.brasilpost.com.br/2015/06/03/fluxo-haitianos-brasil_n_7503292.html?utm_hp_ref=brasil-

mundo

30 Observatório de Migrações – UnB. Relatório de situação de pesquisa. Curitiba, 6 nov. 2015.

Palestra proferida na Universidade Federal do Paraná.

31 http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/02/projeto-de-lei-de-migracao-e-aprovado-

pela-comissao-de-relacoes-exteriores

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A forma restritiva do Estatuto do Estrangeiro não é novidade, no entanto,

relaciona-se à ideia clássica da migração seletiva, segundo a qual, os países,

inclusive o Brasil, selecionavam o tipo de imigrante desejável ao país, especialmente

nas políticas de embranquecimento e no período das guerras mundiais. Além disso,

o Estatuto em vigor no país restringe a participação política de migrantes em

território nacional, reservando aos nacionais a “cidadania plena”.

Atualmente as referências sobre os imigrantes e refugiados têm tido certo

destaque na mídia brasileira por conta da chegada massiva de haitianos pelo Acre,

destinando-se especialmente para São Paulo e outros grandes centros, como

Curitiba. Ao se comparar à diáspora do norte da África e de países do Oriente Médio

para a Europa, o Brasil tem recebido estes refugiados em menor número, mas a

cobertura midiática intensifica todos esses fluxos, chamando a atenção da

população para o fenômeno migratório. Pelas mídias sociais já é possível perceber

diferentes atitudes em relação à vinda daquele que é diferente: relações de

solidariedade e expressões de xenofobia atingem tanto a Europa quanto o Brasil e,

para isso, tornam-se necessárias políticas que garantam o bem-estar da população

receptora e também da que chega ao novo território. Neste sentido, algumas

políticas públicas aos imigrantes têm sido expandidas, como é o caso do Bolsa

Família32. Outra situação que tem se agravado é a exploração da mão de obra

estrangeira, possibilitada pelo desconhecimento de leis e direitos pelos imigrantes no

país. Neste sentido, são imprescindíveis políticas de informação e leis mais

rigorosas frente às falsas promessas de trabalho que frequentemente se

concretizam na escravidão moderna.

Em relação ao trabalho, principal aspecto da mobilidade interna de

imigrantes, pelo que a experiência cotidiana do próprio pesquisador tem notado,

levantamento do OBMigra/UnB (2015) afirmou que houve um aumento de 126% da

participação de imigrantes no mercado formal de trabalho, sendo que a grande

maioria se deve à entrada dos haitianos nesse nicho (de 815 haitianos no mercado

formal de trabalho em 2011 para 30 mil em 2014). Outro dado importante trazido

pelo Observatório de Migrações da UnB é a área em que atuam estas pessoas: o

32 O Bolsa Família começou a ser distribuído aos imigrantes em 2014, mas o auxílio já contemplava

esse segmento desde a criação do Programa, em 2003, segundo informações do Ministério do

Desenvolvimento Social. Para receber o auxílio o imigrante precisa estar legalizado no país e estar

com os documentos em dia.

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final da cadeia produtiva do agronegócio (por exemplo: o corte de aves) ocupa a

primeira colocação, seguido pela construção civil. Com a intensa procura por

emprego nos estados do Sul e Sudeste, houve um decréscimo no número de

empregabilidade em cidades como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis.

No entanto, tem havido uma expansão de imigrantes para o interior dos estados,

onde há oferta de trabalho, especialmente pelo baixo salário oferecido a este tipo de

trabalhador, que se apresenta em 60% dos casos com ensino superior.

3.2.5 A diáspora haitiana

Segundo o antropólogo haitiano Joseph Handerson (2015), são

considerados quatro os momentos da diáspora haitiana, que se inicia no processo

de colonialismo, até uma última diáspora, de caráter socioambiental, já no século

XXI. Antes de comentá-las, torna-se importante ressaltar um aspecto da pesquisa de

doutorado de Handerson que marca o mundo social haitiano, ligado ao fenômeno da

mobilidade. A pesquisa realizada por ele com compatriotas revela um sentimento de

“obrigação” e “predestinação” pela mobilidade por meio de falas expressivas como

“Desde que nasci, meu sonho era partir um dia” ou “Tenho de viajar um dia para peyi

etranje33”. (HANDERSON, 2015, p.67).

Este sentimento, segundo o antropólogo, provém dos tempos do Haiti como

colônia e a busca pela libertação do país e, concomitantemente, dos escravos

trazidos da África. A independência do Haiti, datada em 1º de janeiro de 1804, foi

fruto de um processo de dez anos de lutas entre escravos e colonizadores

franceses, sendo que a vitória, chamada de Batalha de Vertieres, tem um sentido

histórico e de valorização nacional por se constituir como a primeira independência

de um país frente ao colonizador (francês, no caso) por mãos de escravos34.

No entanto, o processo de independência uniu diversos interesses e uma

constante mobilidade forçada de haitianos para países como França, República

Dominicana e Estados Unidos gerando no Haiti uma cultura de mobilidade e

33 “País estrangeiro”, na língua crioula, do Haiti.

34 Outra data importante para os haitianos é 18 de maio, Dia da Bandeira Haitiana, criada pelos

revolucionários meses antes da conquista da independência contra a França de Napoleão Bonaparte.

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marronnage, que se refere à fuga do trabalho escravo pelos colonos. Esta prática

carrega ainda hoje a nomeação de marrons a indivíduos que fogem do Haiti por

diversos motivos, como brigas familiares, feitiçaria ou vodu, ou mesmo por questões

políticas e jurídicas. (HANDERSON, 2015).

A partir desse contexto, é possível pensar as diásporas haitianas, que

tiveram sua primeira expressão no período em que as forças militares

estadunidenses ocuparam o Haiti (1915-1943) e a República Dominicana (1912-

1924). Com o avanço da indústria de cana-de-açúcar para a República Dominicana

e Cuba, principalmente, houve uma escassez de mão de obra para o campo, o que

levou à vinda de haitianos, chamados de braceros. Handerson (2015) sinaliza que a

ocupação americana e a consequente diáspora haitiana deveram-se ao lugar

estratégico em que esses países estavam localizados, como possíveis instalações

alemãs no contexto das grandes guerras mundiais. No entanto, a própria

discriminação acometeu o Caribe internamente, fazendo com que a República

Dominicana ordenasse o assassinato de milhares de haitianos que ocupavam seu

território.

A segunda diáspora, afirma Handerson (2015), está relacionada à, cada vez

mais constante, presença estadunidense no Haiti, tornando obrigatório o ensino do

inglês e aumentando consideravelmente o número de igrejas protestantes no país.

Somada a essa interferência cultural, que foi responsável pelo envio dos filhos da

elite haitiana aos Estados Unidos, de 1957 a 1971 o Haiti foi dirigido sob a ditadura

de François Duvalier e a proclamação do mesmo como “Presidente vitalício”

reconfigurou a dinâmica migratória no país:

A autoproclamação de “Presidente vitalício” de François Duvalier em 1964 assustou os intelectuais e a classe média negra (médicos, advogados, professores) que não demoraram para ir ao exílio. Entre 1957 – o ano de ascensão de Duvalier ao poder – e 1963, 6.800 haitianos foram para os Estados Unidos com visto de imigrantes e outros 27.300 com visto temporário. Entre o ano da autoproclamação em 1964 até o ano da sua morte em 1971, os serviços de imigração estadunidense registraram 40.100 imigrantes e 100.000 não-imigrantes oriundos do Haiti35 (AUDEBERT, 2012, p. 26-27).

Handerson (2015) utiliza essa informação para prosseguir na descrição de

múltiplos destinos dos haitianos pelo mundo nessa segunda diáspora,

especialmente para países francófonos, como o Canadá (região do Quebec), com 90

35 Tradução de Handerson (2015).

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mil pessoas até 2001; países africanos como Senegal, Benin e República do Congo;

Bahamas a partir de 1940, onde existem entre 40 mil e 70 mil haitianos; a Guiana

Francesa, a partir de 1963, e, consequentemente, a França, que recebeu os

primeiros haitianos somente na década de 1960, mas que na década de 1990 já

contava com 20 mil imigrantes do país caribenho.

No entanto, é para os Estados Unidos o principal fluxo de haitianos,

especialmente no que se refere ao fenômeno no boat people, quando

aproximadamente 60 mil haitianos, de 1977 por eles próprios. Destes milhares de

imigrantes, muitos outros morreram no Oceano Atlântico e outros foram naufragados

por agentes estadunidenses, o que gerou a “mobilização de diversos militantes e

instituições religiosas, políticas e associativas em prol dos direitos humanos”.

(HANDERSON, 2015, p.72).

O terceiro período da diáspora haitiana está alocado na década de 1990 e

relaciona-se com as conturbadas sucessões presidenciais no país, especialmente

pelas três passagens do governo nacional de Jean-Bertrand Aristide, que ocupou,

ao todo, oito anos no governo ao longo de 13 anos. Os sucessivos golpes

espantaram os haitianos, que buscaram refúgio em países vizinhos, além de Cuba e

Estados Unidos.

A quarta diáspora é a vivenciada atualmente pelo povo haitiano e é a que

insere o Brasil na rota em questão, embora Handerson (2015) afirme que a

mobilidade não ocorreu apenas externamente, mas mobilizou pessoas – ainda que

pela primeira vez – para o interior rural do Haiti.

Agravada pelo terremoto de 7,3 pontos na escala Richter que devastou a

capital Porto Príncipe em 2010, a crise haitiana decorria de fatores políticos, sociais

e econômicos que foram agravados com o desastre ambiental, tornando o país

incapaz de reerguer-se sozinho. Dos 10 milhões de haitianos, o terremoto matou

aproximadamente 300 mil, deixando 500 mil feridos e 3 milhões desalojados, como

informa Fernandes (2015) em sua pesquisa. Além disso, comenta a pesquisadora

(2015):

O Haiti, que já contava com ajuda humanitária antes mesmo da catástrofe, recebeu então doações, reforços de efetivo nas missões já estabelecidas (MINUSTAH, Médecins Sans Frontières e USAid, entre outros) e recursos para auxiliar na reconstrução do país. Além da presença de militares e forças humanitárias brasileiras, medida provisória assinada pelo então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, em 26 de janeiro de 2010, destinou US$ 230 milhões para ajuda ao Haiti. Somados a outros gastos com a ajuda humanitária, perto de US$ 400 milhões foram cedidos ao Haiti

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pelo Brasil. Neste contexto, começa a circular na mídia haitiana um discurso sobre a postura humanitária do Brasil – do governo e do povo brasileiro – e sobre o novo momento econômico do país. (FERNANDES, 2015, p.41).

Assim, percebe-se que o Brasil não mostrou ser o principal destino dos

haitianos ao longo dessa história de diásporas, mas as atuais políticas tornam o tal

fluxo constante, a fim, não só de trazer novos parâmetros para a diáspora haitiana,

mas também para novas formas de recepção do Estado brasileiro, a partir de uma

política humanitária e de eixo migratório Sul-Sul.

3.2.6 A relação Brasil-Haiti

O acordo de ajuda humanitária do Brasil para o Haiti, após o terremoto de

2010, mobilizou um grande número de oficiais brasileiros na reconstrução do país

caribenho através da Minustah, e, ao mesmo tempo, trouxe uma leva de haitianos a

terras brasileiras pelas portas do Acre, rumando, em sua maioria, para São Paulo e,

em número considerável, para Manaus e Curitiba.

Embora este tópico já tenha sido adiantado na Introdução, é importante

ainda ressaltar que o Brasil acabou se tornando nos últimos anos o país da América

Latina com o maior número de pedidos de refúgio36. De 2010 a 2014 houve um

aumento de 2.123%, segundo o Ministério da Justiça, passando de 1.165 pedidos

para 25.99637. É importante lembrar que os haitianos, maior número de imigrantes

neste espaço de tempo, não estão inseridos como refugiados, mas sim como uma

migração humanitária, recebendo o visto humanitário de permanência. Por parte do

Haiti, o Brasil, desde 2010, foi o país que mais contribuiu com sua reconstrução

através da cooperação com a ONU, superando, inclusive, os Estados Unidos,

36 Dados de agosto de 2015 do Ministério da Justiça trazem os países com mais pedidos de refúgios

no Brasil, nesta ordem: Síria (2077 pedidos); Angola (1480); Colômbia (1093); Rep. Democrática do

Congo (844) e Líbano (389). Extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/08/1671083-

numero-de-refugiados-no-brasil-quase-dobra-em-quatro-anos.shtml?cmpid=fb-uolnot

37 http://www.dw.com/pt/chegada-de-refugiados-pressiona-brasil-a-reorganizar-fluxo-

migrat%C3%B3rio/a-18498897

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“apoiador”38 histórico dos haitianos. Uma das iniciativas, por exemplo, foi lançar no

segundo semestre de 2015 de 43,8 mil solicitações de residência permanente para

haitianos no país39, que pode acarretar, futuramente, em um aumento de fluxos

Haiti-Brasil.

Com estes acordos, torna-se evidente no cenário midiático, social e

acadêmico que a migração de haitianos para o Brasil se consolida como o principal

fluxo migratório para o país. Além dos acordos que propiciam elevadas levas de

imigrantes, outras evidências são caracterizadas pelas inúmeras mídias que surgem,

como a comunidade do Facebook Haitianos no Brasil, que visa a integração entre

brasileiros e haitianos; e o site Haiti Aqui, vinculado à ONG Viva Rio, que dá apoio

ao haitiano e promove sua cultura em diversos idiomas.

Outra forma de perceber tal incidência vem pelas próprias pesquisas sobre

imigrantes e o aumento expressivo de pesquisas sobre o Haiti, como é o caso do

Observatório de Migrações da UFPR, criado em 2015, e que se debruçou sobre a

presença dos nativos do país caribenho no Paraná em uma extensa pesquisa. Na

mídia brasileira pode-se notar um destaque também: com um monitoramento de 1

(um) mês, apenas com a palavra-chave haitianos, foram encontradas 72 menções

ao termo em títulos de matérias na internet através do Google Alerts, conferindo uma

média de 2,2 menções diárias apenas ao referido termo. Dentro do período de

acompanhamento (14/10/15 a 14/11/15), as principais notícias se referiam ao

assassinato de um haitiano no Brasil e às eleições presidenciais haitianas, que

possivelmente seria pouco noticiada se não houvesse esta relação entre ambos os

países.

Neste sentido, é importante construir este referencial para podermos chegar

ao estágio metodológico, buscando compreender como são realizados processos

comunicativos dos haitianos no Brasil, não só representados pela mídia, mas pelos

próprios sujeitos dessa pesquisa, os quais buscam também direitos e políticas

públicas que atendam necessidades primordiais. Considerando isso, passamos para

38 As aspas relativizam o apoio dos Estados Unidos, visto que desde o processo de independência

houve inúmeros interesses por parte destes sobre o Haiti, contribuindo, inclusive, nas ditaduras que

acometeram o país caribenho.

39 http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/ministros-assinam-ato-concedendo-

autorizacao-de-permanencia-para-haitianos

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o capítulo metodológico, que descreverá também organizações de apoio aos

haitianos em Curitiba, tidas nessa pesquisa como agentes importantes para a

realização de tais processos comunicacionais.

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4 METODOLOGIA DE PESQUISA

O capítulo metodológico apresenta algumas etapas, que se iniciam pela

construção de concepções gerais que demarcam o território epistemológico da

pesquisa e suas relações como abordagem teórico-metodológica dos estudos

culturais. Esta abordagem alinha-se à Hermenêutica de Profundidade, organizada

por John B. Thompson, em 1990, em seu livro Ideologia e Cultura Moderna (2011),

conformando a estrutura dessa pesquisa de mestrado.

Ao seguir essa estrutura, os objetivos da pesquisa se integram à proposta,

que culminam na exploração das técnicas de coleta e análise, sendo elas,

respectivamente, a observação não participante e entrevistas; e a análise de

conteúdo. Por fim, o capítulo descreve as organizações de apoio aos migrantes em

Curitiba, visto que a pesquisa parte do pressuposto que as mediações realizadas por

essas organizações têm papel central na construção da identidade dos indivíduos no

novo território geográfico-cultural.

*

Compreende-se que a pesquisa, ao utilizar os estudos culturais como base

teórico-metodológica, encontra-se na dimensão da Teoria Crítica pela marca

presente do marxismo de ótica gramsciana. Sobre isso, afirma Ambrosino (2009):

Outra forma de teoria crítica que emergiu nos últimos anos como um importante domínio de estudo são os estudos culturais, um campo de pesquisa que examina como a vida das pessoas é moldada por estruturas repassadas historicamente de geração em geração. Os especialistas em estudos culturais estão preocupados antes de tudo com textos culturais, instituições como os meios de comunicação, e manifestações da cultura popular que representam convergência entre história, ideologia e experiências subjetivas. (AMBROSINO, 2009, p.28).

A Teoria Crítica compreende uma dimensão ontológica a partir de um

realismo histórico, que é construído junto às teorias da globalização e aos

fenômenos migratórios contemporâneos como uma das consequências deste

processo. A dialogicidade se encaixa de modo importante na perspectiva dos

estudos culturais, pois ao valorizar culturas de resistência (no caso, culturas

migrantes), o trabalho põe em questionamento valores culturais hegemônicos para

dar visibilidade a formas híbridas de vida, identidade e territorialidade.

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A partir destas decisões filosóficas é possível estabelecer decisões

operacionais para a pesquisa, como métodos e técnicas. Antes, ainda, é necessário

pontuar que o tipo de pesquisa é de abordagem qualitativa e terá como principal

metodologia a Hermenêutica de Profundidade.

4.1 A HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE (HP)

A HP é o primeiro ponto da metodologia deste trabalho, pois compõe uma

relação entre teoria e abordagem metodológica, sendo esta sublinhada pela

presença da cultura e da ideologia que aqui se fazem presentes, seja pela vertente

dos estudos culturais expressos no olhar sobre o multiculturalismo da globalização,

seja pela vertente comunicacional que assume a ruptura epistemológica de Martín-

Barbero (2004), modificando o lugar da análise comunicacional do emissor para o

receptor, dos meios para as mediações. Antes de se aprofundar sobre a cultura, faz-

se necessário levantar alguns pontos pelos quais se escolheu a HP como

abordagem metodológica.

John B. Thompson, que constrói o mapa desta metodologia, argumenta que

a mesma tem como “objeto de análise uma construção simbólica significativa, que

exige interpretação” (2011, p.355), e essas formas simbólicas – que podem ser

textos, falas ou ações – construídas sobre distintos contextos sociais e históricos

podem ser inter-relacionadas com outros métodos, de forma que supram a

deficiência da análise positivista no que tange à capacidade interpretativa. Por

formas simbólicas compreende Thompson:

As formas simbólicas são construções significativas que são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e recebem, mas elas são também construções que são estruturadas de maneiras definidas e que estão inseridas em condições sociais e históricas específicas. (2011, p.365).

Essas formas simbólicas, caracterizadas pelas construções significadas, ao

mesmo tempo em que são dotadas de uma estrutura específica, correspondem às

práticas comunicativas realizadas pelos haitianos, objetos da pesquisa.

Caracterizadas pelas múltiplas interações, tais processos não desenvolvem seus

circuitos no vazio, mas apresentam estruturas estabelecidas que colocam o produto

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comunicativo em circulação. (BRAGA, 2012). Considerando este fluxo contínuo sem

ser totalmente livre de qualquer direção de circulação, as formas simbólicas

referendadas por Thompson (2011) estão em estreita relação com o objeto deste

trabalho.

Thompson (2011) delineia algumas condições dessa investigação sócio-

histórica considerando o campo de análise das ciências sociais como um campo-

sujeito. Sua argumentação reside no fato de que a pesquisa social considera o

objeto um “território pré-interpretado” (p.358) e, por isso ele é um campo-sujeito, pois

o objeto não é apenas observado, mas construído por sujeitos que se preocupam

em compreender a si mesmos e aos outros, interpretando falas e ações ao seu redor

por meio da vida cotidiana.

Assim, quando os analistas sociais procuram interpretar uma forma simbólica, por exemplo, eles estão procurando interpretar um objeto que pode ser, ele mesmo, uma interpretação (...) os analistas estão oferecendo uma interpretação de uma interpretação, estão re-interpretando um campo pré-interpretado. (THOMPSON, 2011, p.359).

Desta forma o autor acentua que na análise social o sujeito que constitui o

campo também pode refletir e compreender. Thompson fala de uma

retroalimentação deste sujeito frente ao resultado do analista social numa “relação

de apropriação potencial” (2011, p.359). Exemplo dessa apropriação é a própria

pesquisa aqui realizada que faz uma análise a partir da realidade sócio-histórica

vivida e também ressignificada pelos migrantes haitianos no decorrer de seus

trajetos pessoais e coletivos.

Disso pode se extrair a importância da hermenêutica, que considera que os

humanos estão inseridos em tradições históricas, sendo eles (nós) partes delas e,

por isso, o processo de compreensão é “mais do que um encontro isolado de

mentes”. (Idem, p.360). Thompson fala também da experiência com a historicidade,

ressaltando que os resíduos do passado não servem apenas para ser referência ao

presente, mas também para mascarar conflitos sociais deste tempo. E isso diz

respeito às tradições, que por muitas vezes são recentes, mas conformam as ações

e interpretações através de aparatos ideológicos como relações históricas de

gênero, raça e religiosidade em determinados espaços.

Thompson (2011) apresenta um referencial metodológico claro e

sistematizado, apesar de assumir a dificuldade e a necessidade da profundidade do

pesquisador para esta análise hermenêutica. Pensando na estrutura da cultura, o

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autor explica que a análise cultural, em síntese, “é o estudo da construção

significativa e da contextualização social das formas simbólicas”. (2011, p.363). O

autor considera a hermenêutica da vida cotidiana como um ponto de partida

primordial e considera enfoques etnográficos que abarcam entrevistas e observação

participante, por exemplo, como formas de aplicação de procedimentos para a

compreensão dos contextos e significados.

Esse processo, que é interpretativo do ponto de vista do cotidiano, consiste

no que Thompson chama de interpretação da doxa, ou seja, a interpretação de

opiniões e crenças que sustentam as compreensões dos indivíduos no mundo social

como fundamentais para entender como as pessoas compreendem as formas

simbólicas. (2011, p.364). Este passo configura-se como um momento etnográfico,

que reflete sobre como as pessoas pensam o mundo a sua volta de modo

interpretativo, reconstruindo esta realidade com base no acompanhamento

etnográfico. Sobre a doxa, Thompson critica as análises que se conformam em tratar

a doxa como todo o aporte investigativo e não só como uma das partes

fundamentais. Thompson (2011) apresenta um quadro que considera formas da

investigação hermenêutica: a primeira sendo a hermenêutica da vida cotidiana e a

interpretação da doxa; e uma segunda, sendo o referencial metodológico da HP, que

se divide em três: análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva,

interpretação/reinterpretação. O quadro abaixo sistematiza isso de forma mais clara:

FIGURA 1 – Esquema metodológico da Hermenêutica de Profundidade.

Hermenêutica da vida cotidiana Interpretação da doxa

FONTE: Thompson (2011).

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Assim, o primeiro momento desta pesquisa consiste no acompanhamento,

de caráter etnográfico, do cotidiano dos haitianos no que se refere aos processos

comunicativos junto às organizações de apoio, podendo ou não apresentar formas

midiatizadas. Especialmente mediada pelas organizações de apoio aos haitianos, a

hermenêutica da vida cotidiana não apresenta apenas um relato de campo, mas

também a interpretação dessa relação cotidiana, expressa por meio do

acompanhamento de momentos coletivos do grupo de imigrantes haitianos, a fim de

notar suas formas de identificação e reconhecimento construídas nesse processo

comunicativo.

Já referida à primeira parte da HP, a interpretação da doxa é seguida pela

análise sócio-histórica. Thompson afirma que “o objetivo da análise sócio-histórica é

reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das

formas simbólicas” (2011, p.366), cujos contextos são situações localizadas no

espaço-tempo, campos de interação (ex: campo educativo), instituições sociais

(localizadas dentro dos campos de interações; como a escola, por exemplo, no que

se refere ao campo educativo) e a própria estrutura social, cuja característica é mais

aprofundada e durável, mesmo em comparação aos outros aspectos.

Thompson (2011) considera a análise sócio-histórica como uma forma de

compreender a contextualização das formas simbólicas. Ele deixa claro que vê

dividida a produção, a circulação e a recepção destas, mas ao mesmo tempo

reconhece o caráter implícito do processo de produção, articulado pela adaptação às

condições de circulação e recepção, o que possibilita um diálogo mais próximo a

partir do panorama das teorias latino-americanas.

As construções simbólicas que circulam nos campos sociais têm uma

estrutura articulada que demanda a análise discursiva/formal. As formas simbólicas

são os produtos de ações, contextualizados e estruturados, por isso sempre dizem

alguma coisa sobre algo. Desta forma, esta análise se interessa pelo que há de

interno nas formas sociais (estruturas, padrões e relações).

Esta é a parte da HP a qual Thompson (2011) mais referencia em sua

contribuição metodológica. Não que ela seja mais importante do que as outras, mas

é nessa etapa que o autor considera central a ideia da estrutura, importante para a

análise da hermenêutica. Da mesma forma, a análise sócio-histórica também é a

que está mais implícita neste trabalho através da construção teórica, com base nos

estudos culturais. E tendo esta metodologia como norte para a evolução da

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pesquisa, o referencial teórico que discorre sobre a interação dos Estados-nação à

globalização e do nacional ao multicultural, revela o cenário sociológico do universo

pesquisado. Ao mesmo tempo, a mediação e a midiatização desvelam, ainda com os

olhos do cultural, seu cenário comunicativo, da mesma forma que a construção do

capítulo sobre a imigração no Brasil e no Haiti revela o cenário histórico da pesquisa.

Ao adentrar na etapa da análise formal ou discursiva, Thompson (2011) cita

a semiótica de Barthes como um componente desta análise e que compõe o

primeiro interesse dessa etapa: a constituição interna das formas simbólicas.

Embora Thompson fale da semiótica, afirma ele a possibilidade de outros tipos de

análises a serem aplicadas, como no caso desta pesquisa, que opta pela análise de

conteúdo dos processos de midiatização observados.

Para compreender melhor a abrangência da análise discursiva/formal de

Thompson, faz-se fundamental entender que o autor compreende o discurso como

“instâncias da comunicação correntemente presentes” (2011, p.371). Neste sentido,

esta análise não quer “testar nossas intuições linguísticas, mas antes casos

concretos da comunicação do dia a dia (...)”. (Idem), ou, como temos tratado até

aqui, da relevância da dimensão interacional da comunicação, que se estabelece na

relação entre os homens, mediados por contextos da vida.

A última fase do enfoque da HP é a Interpretação/reinterpretação, que é

facilitada pela análise discursiva (e também pela sócio-histórica), mas distinta dela,

porque avança para a construção criativa de possíveis significados. “As formas

simbólicas representam algo, elas dizem alguma coisa, e é esse caráter

transcendente que deve ser compreendido pelo processo de interpretação” (2011,

p.376) – argumenta Thompson para deixar claro que sua abordagem não exime o

papel do pesquisador e sua capacidade de se ocupar do transcendente de uma

realidade que já foi representada e, por isso, é reinterpretada. Ou seja, o processo

de interpretação também é uma reinterpretação porque os campos das formas

simbólicas analisados já são pré-interpretados pelos sujeitos que constituem o

mundo sócio-histórico, ainda que a reinterpretação possa divergir de quem

inicialmente a interpretou: os sujeitos sociais. Desta forma, o autor não exclui um

conflito de interpretação, que é intrínseco ao próprio processo. (THOMPSON, 2011).

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4.2 QUESTÕES DA PESQUISA APLICADAS À METODOLOGIA

Ao se definir como objeto da pesquisa os processos de comunicação

estabelecidos entre os imigrantes haitianos e a sociedade no universo de Curitiba, o

desafio da pesquisa não é simplesmente responder quais são esses processos, mas

descrever como eles são construídos, buscando analisar sob quais interferências

são organizados, mediados por quem e submetidos a qual circuito de informação. É

importante considerar que a pesquisa apresenta um pressuposto, o qual sugere que

as organizações de apoio têm papel central para que os processos de comunicação

se realizem e contribuam para a construção da identidade cultural destes indivíduos.

Assim, parte-se da ideia de que tais organizações, ao se relacionarem com

os haitianos, conseguem por excelência contribuir com o processo comunicativo,

que passa pela esfera das próprias organizações, dos indivíduos (haitianos) e da

sociedade, sem que a pesquisa se preocupe, neste momento, em analisar como

estas informações são recebidas pelo grande público, através da imprensa, por

exemplo. Adiante, serão discutidas organizações de apoio de referência em Curitiba,

as quais têm trabalhado com os haitianos residentes nesta capital e região

metropolitana. Antes de entrar na descrição das organizações e das técnicas de

análise, é preciso ter claro quais são os processos de comunicação que serão

analisados na pesquisa.

Sendo este o ponto de maior dificuldade em todo o processo de ação e

reflexão do pesquisador, justamente pelo objeto da pesquisa não se apresentar de

modo mais explícito, como um programa televisivo, páginas de jornais ou um

discurso político, por exemplo, a pesquisa buscou captar objetos empíricos que

contribuíssem para uma análise mais concreta. As práticas comunicativas, que serão

descritas com mais detalhes na análise, são compostas por alguns processos

empíricos, como eventos e cursos, realizados por algumas instituições, exposições

fotográficas da migração haitiana realizadas em eventos públicos; e alguns

processos comunicativos observados, sem que pudessem ser mensurados neste

momento antes de serem questionados aos indivíduos-sujeitos do processo, como

as inúmeras fotografias e filmagens registradas pelos haitianos em seus aparelhos

celulares nos mais diversos momentos coletivos acompanhados na pesquisa

exploratória, além das interações via rede social virtual, via Facebook. Sendo estes

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os objetos empíricos observados nos processos comunicativos, nota-se que todos

eles estão, de certa forma, envoltos pelo “cuidado” das organizações de apoio.

Assim, o pressuposto da pesquisa, que sugere a influência chave das organizações

em tais processos perde o poder de comparação se tudo está vinculado a elas.

Apesar da afirmação ser correta, visto que a observação do pesquisador se

manteve sobre as práticas realizadas com/através das organizações, o instrumento

de pesquisa busca responder este pressuposto pelas entrevistas semiestruturadas

realizadas com os atores envolvidos. Além da análise dos objetos empíricos, as

entrevistas apresentam-se como ponto central, não só por evidenciarem a voz dos

haitianos em meio a diversos outros espaços de fala observados na pesquisa, mas

por oferecerem a este trabalho a possibilidade de confrontar questões fundamentais,

como as noções de identidade cultural por meio de práticas comunicativas e a

referência das organizações de apoio a eles.

4.3 TÉCNICAS DE PESQUISA

As técnicas de coleta e de análise presentes na pesquisa permeiam a

Hermenêutica de Profundidade nas suas etapas e são mais bem delimitadas a

seguir:

4.3.1 Técnicas de coleta

São duas as técnicas de coleta utilizadas na pesquisa: a observação

participante (que compõe o momento da interpretação da doxa); e as entrevistas

semiestruturadas (que compõem o momento da análise discursiva). A primeira

técnica auxilia na percepção e categorização daqueles objetos empíricos

anteriormente citados e a segunda auxilia na obtenção de informações com os

imigrantes haitianos, cujos recortes de fala servem para uma confrontação das

realidades observadas e também como forma de captar os usos de midiatização

realizados pelos haitianos, especialmente na circulação dos eventos por meio dos

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registros via celulares nos diversos momentos observados nesta pesquisa. Assim,

apresentamos uma breve descrição do que é cada uma das técnicas.

4.3.1.1 Observação participante

A observação participante é vista aqui como uma interessante opção, pois

esta é compreendida como o modelo de pesquisa em que existe presença do

pesquisador junto ao público, podendo saber ele ou não da atividade daquele.

Segundo Peruzzo (2010), o pesquisador também pode participar de todas as

atividades, ou seja, acompanhando e vivenciando com menor ou maior intensidade

os processos. Peruzzo também afirma que o pesquisador é autônomo, tendo o

grupo ou qualquer elemento do ambiente a incapacidade para interferir na

formulação dos objetivos, tanto quanto nas demais fases do projeto. O pesquisador

também pode ser “encoberto” ou “revelado” para o grupo com o qual está lidando.

No caso da presente pesquisa, a presença do pesquisador como tal era encoberta,

ainda que o mesmo participasse e contribuísse, como voluntário, em alguns dos

processos comunicativos, como nos eventos e cursos realizados pelas

organizações.

Peruzzo não faz distinção entre observação-participante e não participante,

ou mesmo da pesquisa-ação, mas compreendendo que há uma diferença no papel

do pesquisador. A atual pesquisa recai sobre uma observação participante, em que

há uma participação passiva do pesquisador nos processos comunicacionais,

diferentemente da pesquisa-ação, cuja participação do pesquisador se torna

decisiva na metodologia. Da mesma forma, Peruzzo compara a observação-

participante com a investigação etnográfica no interesse que esta:

(...) tem em elaborar mapas descritivos dos modos de vida dos territórios estudados, enquanto na área de comunicação ela tem sido usada para descrever fenômenos comunicacionais, principalmente dos processos de recepção de mensagens dos meios de comunicação de massa. (PERUZZO, 2010, p.135).

Compreendendo a forma de se fazer a observação participante, a intenção

estabelecida aqui é promover uma análise sistematizada das mediações existentes

entre as instituições e os imigrantes, a fim de compreender como acontecem os

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processos de midiatização entre os atores e de que forma40 estas práticas

comunicativas chegam à esfera pública.

4.3.1.2 Entrevista semiestruturada

A fim de especificar alguns pontos, a técnica de entrevista semiaberta ou

semiestruturada pretende ser utilizada para enfatizar falas percebidas durante a

aplicação da pesquisa como fundamentais. Aproveitando que as entrevistas

dispõem de um resultado discursivo mais concreto do que a observação participante,

seus apontamentos são categorizados, como parte da análise dos resultados da

própria técnica de entrevista, mas aperfeiçoados pela análise de conteúdo. Para

esclarecimentos, a entrevista semiestruturada:

parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. (TRIVIÑOS apud DUARTE, 2010, p.66).

4.3.2 Técnica de análise

A técnica de análise selecionada para esta pesquisa é a Análise de

Conteúdo (AC). Baseada em Laurence Bardin (1988), a AC está presente como uma

das possibilidades da análise formal da HP, junto a outros tipos de análise, como a

análise do discurso ou a análise semântica, por exemplo.

Segundo Krippendorff (1990), citado por Fonseca Júnior (2010, p. 287), há a

consideração por parte da pesquisa sobre tais marcos de referências: 1) os dados,

de acordo como foram apresentados (através da observação dos processos

comunicativos); 2) o contexto dos dados (contexto comunicativo/midiatizado, através

da circulação interacional de informações que permeia o universo dos imigrantes na

sociedade); 3) conhecimento do pesquisador; 4) objetivo da AC (identificar como os

processos de midiatização contribuem na construção da identidade e

40 “Forma” não no sentido instrumental, de divulgação, mas sim quais as marcas comunicativas que

se apresentam à esfera pública e se relacionam com discursos já existentes nela.

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reconhecimento dos haitianos e a centralidade das organizações ou não nesse

processo); 5) inferência como tarefa intelectual básica; 6) validade.

Alguns dos elementos da AC são trazidos abaixo no âmbito desta pesquisa:

Unidade de amostragem: entrevistas.

Unidade de registro: discursos sobre a construção de identidade dos

haitianos em Curitiba,

Regra de enumeração: intensidade, que é “referente à quantidade de

associações e classificações manifestadas sobre um símbolo, ideia

ou tema (no caso, a identidade – nota minha), manifestada”.

(FONSECA JÚNIOR, 2010, p. 295).

Categorias e suas subcategorias:

o Práticas comunicativas mediadas por tecnologias: a) nas mídias

tradicionais; b) nas novas mídias.

o Manifestações culturais: a) em datas comemorativas; b) na música; c)

em formas de preconceito.

o Trabalho: a) relação com os motivos da vinda; b) ocupação atual e

relação com estudos.

o Organizações de apoio: a) formas de comunicação; b) atividades

cotidianas; c) eventos/atividades especiais.

Inferências

A AC traz diversas etapas, mas é a categorização que ganha mais destaque

nessa pesquisa. A categorização, segundo Bardin (1988), é um processo

estruturalista e trabalha com o isolamento de elementos e sua classificação,

agrupando as unidades de registro, ainda não identificadas; as categorias da AC

devem apresentar exclusão mútua, homogeneidade, pertinência, objetividade e

produtividade.

A inferência é um importante momento da AC, pois corresponde à

identificação do que está no texto superficialmente (de modo amplo) e as condições

de produção (fatores que determinam as características do texto). (BARDIN, 1988).

Observando isso, este momento da análise já se encaminha à reinterpretação da HP

de Thompson (2011), concluindo a fase da análise da pesquisa.

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4.4 ORGANIZAÇÕES DE APOIO

As organizações de apoio consideradas nesta pesquisa correspondem a

todas que apresentam algum nível de formalidade, profissionais qualificados,

relevância social, não estatais e não necessariamente tendo como principal objetivo

o atendimento aos imigrantes, embora esta seja uma das atividades desenvolvidas.

Como Curitiba é uma cidade com uma ampla região metropolitana, diversos

haitianos moram em municípios vizinhos, mas as organizações estão todas

localizadas na capital paranaense, além de ter como foco as políticas da cidade.

Dentre as organizações, as que recebem mais destaque são a Casa Latino-

Americana (Casla) e a Pastoral do Migrante, cujo acompanhamento foi feito

enquanto a pesquisa era desenvolvida. Além das duas, outras organizações foram

identificadas:

4.4.1 Associação dos Haitianos de Curitiba

A Associação dos Haitianos se organizou em Curitiba a partir do momento

da chegada dos primeiros migrantes na cidade e é coordenada pelos próprios

haitianos, com apoio físico da Casa Latino-Americana (as reuniões são realizadas no

prédio desta organização) e institucional da Prefeitura de Curitiba, que junto aos

haitianos têm realizado eventos em prol da cultura do país. Além disso, a associação

é referência no atendimento emergencial aos haitianos em diversas situações:

encarceramento, hospitalização, busca por moradia e documentação. A entidade

tem um papel importante na aproximação institucional entre outras organizações,

formando uma rede de apoio aos migrantes que incide em políticas locais e

regionais para os mesmos.

4.4.2 Cáritas Brasileira

Segundo seu site:

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“A Cáritas Brasileira é uma entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. Sua atuação é junto aos excluídos e excluídas em defesa da vida e na participação da construção solidária de uma sociedade justa, igualitária e plural41”.

A Cáritas, embora não seja submissa à Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil (CNBB), entidade máxima da Igreja Católica no Brasil, tem uma relação de

“parceria” com esta, em virtude de seus valores e posturas sociais.

Vinculada à Arquidiocese de Curitiba, a Cáritas desempenhou um trabalho

de denúncia de violação de direitos humanos, através do seu Centro de Referência

em Direitos Humanos Dom Helder Câmara (CRDH)42. O Centro atendeu diversos

imigrantes e contribui na formação de políticas públicas da cidade e do estado,

articulando-se com as unidades regionais e nacional da entidade.

4.4.3 Casa Latino-Americana (Casla)

A Casla é uma organização não governamental (ONG) que atua desde 1984

em Curitiba, prestando assessoria sobre questões ligadas aos povos latino-

americanos. Compõe uma rede continental formada pelos fundadores da própria

Casla de Curitiba e nos últimos anos tem como público principal os migrantes

oriundos do chamado Terceiro Mundo, como haitianos, africanos, sírios e sul-

americanos.

A Casla conta com um profissional que atua na secretaria executiva e auxilia

no primeiro contato com migrantes em busca de informações e documentos

necessários. No entanto, a principal referência da Casla nas políticas públicas para

migrantes ocorre no âmbito do assessoramento jurídico, por intermédio de um

núcleo jurídico amplo, composto por advogados voluntários. Além da assessoria

jurídica, a organização conta com outros núcleos, como os de cultura, comunicação,

psicologia e relações internacionais, também formados por voluntários. Ao longo dos

41 http://caritas.org.br/tag/arquidiocese-de-curitiba

42 O CRDH funcionou até o término do convênio com a Caritas Brasileira, no segundo semestre de

2015.

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anos, a entidade desenvolveu diversos eventos, sendo que em 2015 a principal

atividade foi um curso sobre direitos aos migrantes, que perdurou até o fim do ano.

4.4.4 Igreja Batista Pompeia

A Igreja Batista Pompeia está localizada na Vila Pompeia, bairro Tatuquara,

e desempenha um trabalho de assistência social sob demanda. Desde 2012

atuando com a temática dos migrantes, em sua maioria haitianos, a Igreja promove

encaminhamento para regularização de documentos de busca de empregos. Na

perspectiva religiosa há cultos semanais em crioulo, a língua oficial do Haiti, e

ensinamento bíblico aos interessados. O pastor da Igreja, brasileiro, conseguiu um

aluguel de uma lan house, onde os próprios imigrantes de auto-organizam para uso

da internet.

4.4.5 Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PR)

A atuação da OAB confunde-se com a atuação da Casla, visto que o corpo

de advogados da Comissão de Direitos dos Refugiados e Migrantes da organização

atua na Casla, especialmente por meio de suas coordenadoras, que são parte

constitutiva desta outra organização. Não há uma diferença na atuação no que tange

ao assessoramento jurídico, mas há um reforço deste trabalho por parte da OAB e

sua força institucional.

4.4.6 Pastoral do Migrante

A Pastoral do Migrante pertence à Igreja Católica e compõe uma das

diversas pastorais sociais da instituição religiosa. Seu caráter de pastoral social

incide justamente por ser o segmento da estrutura da Igreja Católica no Brasil

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preocupado com temáticas sociais, como as da infância e juventude, aleitamento

materno, questão carcerária, negra, indígena e a migrante, dentre outras.

Organizada em uma grande rede eclesial, a Pastoral do Migrante, assim

como todas as outras pastorais, está espalhada em diversos lugares do Brasil,

atuando concretamente em estruturas paroquiais ou arquidiocesanas (conjunto de

pastorais). A Pastoral do Migrante, em questão, da Arquidiocese de Curitiba, existe

há 12 anos e tem sua sede localizada na paróquia do bairro Santa Felicidade, onde

dispõe de uma assistente social contratada, um padre coordenador e uma equipe de

voluntários que se reveza no atendimento básico aos imigrantes que pedem auxílio.

Além da sede, há outra comunidade, localizada na região do Umbará (Curitiba), que

promove atendimentos e eventos, mais voltados ao calendário eclesial, como a

Semana do Migrante, por exemplo.

Atendo-se mais à sede, a Pastoral do Migrante atende a uma média de 200

imigrantes semanalmente, em sua grande maioria de nacionalidade haitiana,

especialmente pelo fato do padre coordenador ser natural deste país. Os

atendimentos são pontuais e cumprem a função de fornecer documentos, buscar

empregos e mediar com os empregadores os direitos trabalhistas desses imigrantes.

Para além das atividades rotineiras, a Pastoral organiza mensalmente missas para

imigrantes, celebrações festivas, como a Festa Haitiana e a Festa Latino-Americana,

e celebrações nacionais da Igreja Católica, como a Semana do Migrante.

4.4.6.1 Recanto Franciscano

É um braço da Pastoral do Migrante, não sendo submissa à sua

organização. É uma casa religiosa que acolhe migrantes desabrigados de 15 dias a

três meses, sem custos. Pertence à Ordem dos Franciscanos e, junto à Pastoral,

cumpre um importante papel de atendimento e formação de políticas públicas entre

a Igreja Católica e a sociedade civil.

4.4.7 Programa Política Migratória e Universidade Brasileira/UFPR

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Especialmente fomentado pelo Programa de Línguas da Universidade

Federal do Paraná, o Programa Política Migratória e Universidade Brasileira/UFPR

inicia-se com a inserção do curso de Letras da UFPR, mas abrange hoje outros

cursos, como Direito, Psicologia, Informática e Sociologia.

O Projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), do

Departamento de Letras, é uma referência na questão do idioma para os imigrantes,

especialmente haitianos. Desde 2013, o Projeto atende grupos de alunos

estrangeiros para ensino do idioma e contribui na organização da rede de apoio aos

migrantes, como auxílio básico de uma importante demanda: a língua. Além do

curso de português, o PBMIH contribui com outros tipos de formação e materiais,

como, por exemplo, dicas de amamentação, organização do encontro de

lançamento ao Programa de Políticas Públicas para Migrantes, Refugiados e

Apátridas do Governo do Estado do Paraná – que contou com uma exposição

fotográfica – e duas contribuições para documentários: O PBMIH lançou um

minidocumentário sobre os haitianos a partir da perspectiva dos imigrantes e foi

fonte para o documentário, Adeus, Haiti, do canal Globo News, produzido em 2014.

Além do PBMIH, outro destaque vem do curso de Direito, que apoia e realiza

atividades de defesa e promoção dos direitos dos migrantes e refugiados.

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5 ANÁLISE

De acordo com a Hermenêutica de Profundidade (HP), a análise a seguir se

dividirá em três partes principais, sendo elas: a) a interpretação da doxa feito por

meio da observação participante; b) a análise sócio-histórica, composta pelo

referencial teórico trazido nessa pesquisa, com algumas ênfases; c) a análise de

conteúdo das entrevistas a partir de categorias estabelecidas e a posterior

inferência/reinterpretação, a partir das reflexões realizadas pelo pesquisador nesse

trabalho.

5.1 A INTERPRETAÇÃO DA DOXA

Como afirma Thompson (2011), a interpretação da doxa é a hermenêutica

do cotidiano e busca, por meio de abordagem etnográfica, interpretar formas de vida

e opiniões frente a situações ou temas que sustentam o indivíduo no mundo social.

Neste sentido, foi realizada uma observação participante em duas das organizações

de apoio aos imigrantes identificadas, a fim de analisar previamente como se davam

as práticas comunicativas dessas organizações e dos imigrantes haitianos, de

variadas formas: entre organizações e haitianos; entre os próprios haitianos; entre as

organizações e a sociedade e entre os haitianos e a sociedade. A escolha pelas

organizações como mediadoras para essa observação vem pela minha experiência

– e passo a utilizar neste tópico o uso da primeira pessoa – por ser fundamental um

trabalho de acompanhamento constante, para possibilitar a compreensão do

cotidiano daquele que Eagleton (2011) chama de outro.

Na descrição feita a partir da observação participante e na concomitante

interpretação do cotidiano vivido fica claro que algumas das formas de comunicação

utilizadas se tornaram mais evidentes do que outras pelas próprias características de

trabalho das organizações; pelos eventos e atividades principais que compuseram o

cenário desses quase dois anos de acompanhamento; e pela conjuntura sócio-

histórica, que será especificada no próximo tópico. Cabe ressaltar também que a

aproximação às organizações não foi apenas estrategicamente pensada para a

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pesquisa, mas compõe uma ética pessoal de engajamento que já vinha sendo

realizada e de compatibilidade ideológica sem, contudo, deixar de se manter uma

reflexão científica – e por isso crítica – dos fatos observados e da própria ação

empregada como voluntário das duas organizações, que agora relembro: a Casa

Latino-Americana (Casla) e a Pastoral do Migrante da Arquidiocese de Curitiba.

Um ponto importante a se afirmar neste momento é a presença de ambas as

organizações no Facebook, por meio de suas páginas nesta rede social, que neste

trabalho não será objetivo de análise por serem administradas – ambas – por mim,

sendo necessário um respeito à metodologia da observação participante defendida

neste trabalho que se difere da pesquisa ação, a qual não há apenas a participação

do pesquisador, mas também uma ação que vai ao encontro da pesquisa, estando

uma relacionada a outra.

Assim, é necessário resgatar que a análise das práticas comunicativas que

são fomentadas a partir do universo das organizações e dos haitianos está ligada ao

pressuposto da pesquisa: as organizações de apoio aos imigrantes haitianos em

Curitiba, ao desempenharem processos comunicativos que envolvam práticas

culturais e de assessoria de direitos, constituem-se como as principais fomentadoras

dos processos comunicativos dos imigrantes haitianos com a sociedade da capital

do Paraná e seus arredores.

5.1.1 Pastoral do Migrante em foco

Minha primeira relação com os migrantes haitianos em Curitiba ocorreu por

meio da Pastoral do Migrante, a partir daqui chamada apenas de Pastoral, por ser o

único Serviço de Pastoral da Igreja Católica ao qual farei menção nesse trabalho. A

vinculação a essa organização se deu em maio/junho de 2014 e perdura até o

presente momento na função de voluntário: recepção aos imigrantes que buscam o

serviço de assistência social e documentação e contribuição em atividades de

comunicação da Pastoral. Ambas as atividades puderam colaborar para um

acompanhamento mais detalhado do cotidiano da entidade – suas necessidades

mais eminentes e anseios – e das atividades que ela realiza, respectivamente.

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Um ponto a ser comentado é que, há dois anos, o padre coordenador desta

Pastoral é um haitiano. No entanto, não é possível afirmar que sua presença tenha

feito o público haitiano ser a principal nacionalidade requerente de auxílio da

Pastoral – isto se deve ao real aumento destes imigrantes em Curitiba, comparados

a imigrantes de qualquer outra nacionalidade. Percebe-se, contudo, que a proporção

dos haitianos na Pastoral é maior do que a encontrada na Casla, sendo constantes

as buscas para “falar com mon père43”, referentes a assuntos que a assistente

social, funcionária da Pastoral, poderia ajudar com mais eficácia.

Diferentemente do público entrevistado para esta pesquisa, a maioria dos

haitianos que busca o serviço da Pastoral não teve acesso ao ensino superior em

seu país. A sua principal busca, em termos de acompanhamento, refere-se,

prioritariamente, à emissão e procura por documentos, como o documento consular,

de residência e passaporte; os outros motivos de busca pela Pastoral notados

durante a observação participante referem-se à procura por vagas de emprego,

roupas e cestas básicas.

O constante volume de haitianos, que chegam a aproximadamente 100

atendimentos em dias de pico, fez a Pastoral realizar uma interação com as

universidades, a fim de conseguir voluntários qualificados, em regime de estágio de

ensino superior, não remunerado, para contribuir no fluxo de atendimentos. Além

disso, conta-se com um aporte histórico dos leigos scalabrinianos, derivados da

Congregação de João Batista Scalabrini – bispo fundador e santo pela Igreja

Católica – e que historicamente contribui com as Pastorais de Migrantes pelo

mundo, sendo a de Curitiba uma das mais importantes no país a ser gestada pela

Congregação. Por fim, são constantes os voluntários espontâneos que chegam por

meio de alguma referência midiática sobre a Pastoral ou simplesmente por causa

dos imigrantes. Nesse segundo caso, alguns voluntários relataram não conhecer a

Pastoral anteriormente, tendo passado a conhecê-la em buscas pela internet.

Referindo-se às formas de comunicação que se estabelecem entre os

imigrantes haitianos e a Pastoral, a mais presente no cotidiano é a interpessoal,

realizada por meio das interações dos atendimentos e aquelas que ocorrem nas

celebrações litúrgicas realizadas mensalmente para os imigrantes. Mesmo a

Pastoral tendo uma página no Facebook, a pouca interação existente é feita por

43 “O padre”, na língua haitiana.

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brasileiros interessados no tema. Ao se observar a importância dos dispositivos

tecnológicos na vida dos imigrantes e ao buscar essa interação, a coordenação da

Pastoral criou um Whatsapp com alguns haitianos envolvidos sem, no entanto, haver

muitas pessoas (15 participantes no grupo, sendo dois voluntários – incluindo-me).

Assim, a principal prática comunicativa observada nessa pesquisa entre os

imigrantes haitianos e a Pastoral – mas também com a sociedade – são os eventos

realizados pela organização, que podem ser divididos em culturais e assistenciais.

A primeira categoria é constituída por eventos culturais pátrios, como a

Festa Latino-Americana (FLA) e a Festa Haitiana (FH). A primeira existe desde o

início da entidade em Curitiba, há 13 anos, e aglomera não só os haitianos, mas

todas as nações latino-americanas com o intuito de promover a cultura de cada país

por meio da música, dança, teatro e gastronomia. A FLA, que é realizada

anualmente em um espaço cultural no bairro Santa Felicidade de Curitiba, foi

observada por mim apenas nos dois últimos anos (2014 e 2015), sendo possível

extrair interpretações que permitem a análise das formas comunicativas

estabelecidas entre os diversos públicos componentes do evento.

A primeira parte da FLA tem característica institucional-religiosa, pois uma

missa é celebrada nas primeiras horas da festa, com comentários feitos pela

assistente social e ministrada pelo padre coordenador, acompanhado de outro

sacerdote como principal celebrante. Esse momento tem sido criticado pela própria

Pastoral pelo pouco alcance de pessoas externas à paróquia, mas visto como

necessário não só por abrir oficialmente a FLA, mas, sobretudo, por dar um tom

religioso em um evento promovido por uma organização católica. Em um segundo

momento, perto da hora do almoço, as barracas dos países se abrem ao público

visitante e vendem pratos típicos até o findar do dia, quando o terceiro momento do

evento, o das apresentações culturais, toma o palco e a atenção de boa parte do

público.

Embora seja bastante grande o número de imigrantes latino-americanos e

familiares presentes, há também uma popularização da festa, devido aos vários

anos de existência, que atrai uma diversidade maior de público do que a recente FH.

Dominada pelo idioma castelhano, a FLA traz boa qualidade musical e gastronômica

de seus anos de tradição, com cardápios variados e até mesmo exóticos. O mesmo

pode se dizer das músicas e danças, apresentadas por grupos voluntários, mas com

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experiência no tema como, por exemplo, o Grupo Folclórico Integración Latina. No

entanto, é a participação da comunidade haitiana que atrai a atenção na pesquisa.

A primeira diferença entre os haitianos e os demais públicos latinos é a

língua. Com todos os outros imigrantes dominando o espanhol nas barracas e

apresentações, o Haiti traz as línguas francesa e crioula/kreyol como características

marcantes de sua identidade. Um fato que destaca a participação do Haiti com o seu

idioma, nos dois últimos anos, é o cronograma cultural apresentado por um haitiano.

Com bom domínio do português e uma particular capacidade de animação (por

exemplo, ao pedir palmas ele gritava ao microfone: “plá-plá-plá”), o interlocutor da

festa com o público traz um protagonismo haitiano em meio aos anos de tradição de

argentinos, bolivianos, chilenos, peruanos e uruguaios, principais participantes da

FLA.

Diferenças, no entanto, também marcam a participação cultural e

gastronômica do Haiti frente aos demais países latinos. Enquanto todos os outros

países apresentaram, nos dois últimos anos observados, canções muito mais

vinculadas a grupos folclóricos, o grupo dos haitianos tem apostado em suas bandas

musicais para trazer um pouco do seu país para aquele espaço. Assim, as

apresentações das demais nações têm um caráter, muitas vezes, mais latino do que

de um país específico; já os haitianos imprimem um ritmo mais forte com seus

estilos musicais muito próprios – especialmente o ritmo Kompa44 – e não se

preocupam muito em explicar o que está sendo cantado para os demais, basta senti-

lo, com sua potencialidade dançante caribenha, sua sensualidade e guitarra bem

tocada. Aqui, a dimensão do corpo quer acompanhar a abordagem cultural da

pesquisa, referindo-se à observação de corpos em trânsito e suas múltiplas formas

identitárias. Segundo Santaella (2008):

O corpo – secularmente recalcado pelo fantasma do sujeito – não retornou para ocupar o lugar deixado por esse sujeito (...). O corpo retornou como um problema, uma interrogação em busca de respostas. Daí o corpo ter se tornado presença constante nos discursos atuais. Para alguns, trata-se simplesmente de encontrar um substitutivo para ocupar o lugar vazio deixado pelo sujeito. Para outros, trata-se de explorar um território cuja geografia ainda não está reconhecida. (SANTAELLA, 2008, p.24).

44 O Kompa ou Compa é um estilo musical nascido na década de 1950, no Haiti, e é derivado do

merengue. De estilo caribenho, é caracterizado por elementos que mantêm uma batida dançante e

uma voz de impacto. O Kompa tem uma fusão com outros estilos continentais como o Reggaeton e o

Kuduro.

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Santaella (2008) questiona: se não há corpo, onde estaria o suporte de

sustentação do sujeito? De fato, o acesso ao conhecimento e à cultura não se dá

apenas pela inteligência, mas com o corpo inteiro – físico, inteligência, sentimentos,

emoções, espiritualidade.

É neste momento que a presença haitiana conduz a FLA. Com o domínio

dos microfones de apresentação e da música, todos se unem ao redor do palco

improvisado e contribuem com um show que dura menos de 15 minutos. Ao mesmo

tempo em que o ritmo da música acelera o ritmo da festa, os haitianos, ora dançam,

ora registram tudo com seus celulares e tablets. Os mais animados brasileiros

também se unem ao grupo, mas é fácil perceber o haitiano corporalmente: sua pele

negra e suas roupas de marca e coloridas indicam que a alegria de ouvir a música é

a alegria de se sentir entre amigos.

Além dos momentos efusivos, uma apresentação cultural haitiana chamou a

atenção na FLA em 2015: um breve teatro feito por alguns atores amadores

haitianos, dialogado em altas vozes em um português pouco compreensível, marcou

a dificuldade do haitiano em viver ante o racismo e a violência. A peça termina com a

morte de uma das atrizes e com um silêncio da plateia frente à dificuldade de

compreender o diálogo, ao mesmo tempo em que tinha a certeza de que se tratava

de algo sério.

Se a música é uma marca forte da presença haitiana na FLA, a gastronomia

não demonstra o mesmo destaque. Com uma barraca menos enfeitada e com

menos variedades de pratos para se degustar do que a maioria das outras nações, o

espaço haitiano não reúne tanta gente – nem os próprios haitianos – como no palco,

embora muitos deles optem por comer na barraca de seu país, que não apresenta

um cardápio visível aos que desconhecem a cultura do país, o que é possível ser

visto na FH, por exemplo.

O outro evento considerado cultural é a FH, realizada desde a chegada

maciça dos haitianos em Curitiba. Com características muito próximas da FLA, a FH

segue a ordem missa-gastronomia-cultura artística, mas conta com um número

muito maior de haitianos e interessados pela cultura do país. Diferente da primeira,

essa atividade acontece por um motivo especial: a homenagem ao Haiti, que é

realizada no Dia da Bandeira Haitiana, 18 de maio. A festa acontece nesta data – ou

no fim de semana mais próximo – e conta com inúmeras bandeiras haitianas que se

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misturam no meio do povo, seja em seus braços, costas ou camisetas, o que impera

é o azul e vermelho decorando o ambiente.

As apresentações musicais e as danças reproduziram, em 2015, o que já foi

descrito na FLA sem, no entanto, ter havido qualquer preocupação com a tradução

para o português nas apresentações culturais e no cardápio, o que gerou certa

dificuldade comunicativa para alguns brasileiros ou outros latinos presentes, que

relataram se sentirem “perdidos” na festa dos haitianos, embora admirassem sua

cultura. Além disso, em 2015 houve uma liberdade maior no cronograma, o que

gerou certa desorganização da festa, visto que em 2014 a FH ficou muito

condensada em figuras de liderança da Pastoral, com atividades fechadas e,

inclusive, desconhecidas para os haitianos, segundo afirmou o próprio coordenador.

No entanto, a mudança da FH de 2014 para 2015 culminou em um notável espírito

de diversão não visto no ano anterior quando a presença da comunidade externa

nem existiu.

Outro ponto que é preciso comentar é a realização de duas festas haitianas

no mesmo dia de comemoração à Bandeira, em 2015. Por motivos ainda não

justificados, a Pastoral e a Associação de Haitianos não se uniram na realização de

uma mesma celebração e acabaram por dividir o público. Por motivos de escolha e

de envolvimento com a organização, minha observação participante se concentrou

mais na FH realizada pela Pastoral, mas houve tempo de conferir a FH realizada

pela Associação, em parceria com a Prefeitura de Curitiba.

Alocada em um espaço público – Memorial de Curitiba –, localizado no

centro histórico da cidade, essa festa teve um caráter mais oficial, com falas de

autoridades e apresentações culturais mais formais, de maneira bastante diferente

da festa que acontecia paralelamente na Pastoral, a qual privilegiou a música, a

dança e a venda de bebidas alcóolicas, que foi muito bem aceita em um domingo.

Além das bebidas e das apresentações culturais, cabe ressaltar a típica culinária

haitiana apresentada na FH da Pastoral, demonstrada por pratos como o Riz Colé

(estilo risoto acompanhado de frango, alface e “piclise”, uma salada haitiana, com

cenoura ralada); Banana Frite (bananas fritas, carne de porco e piclise); Poulet

(frango acompanhado de banana, salada e piclise); e Pôte (Prato com salada e

piclise).

Tanto a FLA quanto a FH, organizadas pela Pastoral, mostraram um público

de haitianos mais jovem e moderno – especialmente pelas roupas e aparelhos

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eletrônicos. Um aspecto diferente pode ser visto nos eventos assistenciais que a

Pastoral realizou, especialmente no fim de 2015, nos quais o público principal foi

constituído de mulheres-mães, pelo tipo de evento estar ligado a doações de cestas

básicas e presentes para crianças, além de um kit-bebê.

Em todos os eventos assistenciais o espaço da paróquia foi utilizado e a

divulgação, ao contrário dos eventos culturais, realizada internamente para pessoas

específicas. Voltados para o bom número de haitianas que têm seus filhos nascidos

no Brasil, ou que os trouxeram pequenos para cá, os eventos assistenciais se

caracterizam por um clima de familiaridade – com conversas e lanche – um maior

número de religiosos e pelo protagonismo da assistente social. Além disso, como a

Pastoral não possui recursos financeiros suficientes para esse tipo de ação, conta-se

com doações feitas por voluntários e pessoas comuns que se sentem solidários aos

imigrantes e, como existe uma relação entre assistencialismo e o trabalho das

igrejas, normalmente a Pastoral é referência para essas pessoas e, assim, tornam-

se possíveis esses grandes momentos de doação. Além das doações espontâneas

de indivíduos, a Pastoral também tem feito um trabalho de abordagem junto às

organizações privadas, o que tem resultado em consideráveis apoios no último ano.

Nota-se também nesses eventos um processo comunicacional entre os

haitianos, pois os contatos para doações são feitos, muitas vezes, em rede, entre

eles, a pedido da Pastoral. Aqui, no entanto, há uma potencialidade midiática que

não tem sido desperdiçada pela televisão. Mesmo tímidos, os haitianos costumam

aparecer nas imagens feitas pelos cinegrafistas que passaram pelos eventos

assistenciais e destacaram a necessidade dessas pessoas e a importância da

solidariedade, o que tem gerado um aumento de doações. Essa capacidade de

comunicação que a Pastoral tem com a sociedade, por meio das mídias tradicionais,

chama a atenção nessa pesquisa, mas, infelizmente, não foi possível realizar uma

avaliação entre os haitianos sobre o que achavam da cobertura midiática. Sabe-se

por conversas e observações, todavia, que alguns haitianos se sentiram

incomodados com a presença da televisão por tratá-los como indivíduos socialmente

vulneráveis. Perceptível é a dificuldade que tivemos em registrar com fotografias tais

momentos. Algumas haitianas não queriam ser fotografadas e, quando aceitavam,

normalmente não estampavam um sorriso no rosto, bastante diferente da reação dos

haitianos nos eventos culturais.

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É interessante notar também que nos eventos assistenciais houve presença

de haitianos voluntários que contribuíram para a organização da atividade. Se nas

festas, a participação dos haitianos voluntários estava na animação e na cozinha,

nesses eventos havia uma participação mais corpo a corpo dos voluntários, seja

para ajudar no grande número de pessoas para os poucos voluntários disponíveis,

seja para ter um papel importante na organização da distribuição de itens materiais

junto aos demais haitianos pela facilidade de comunicação.

Por fim, o que foi percebido discretamente nos eventos assistenciais foi a

falta de uma maior interação entre haitianos e a sociedade. Exceto pelas

apresentações culturais, as quais propiciaram uma interação de corpos, a interação

entre brasileiros e haitianos ainda não é uma constante, seja pela possível

dificuldade de idioma ou por um “aninhamento” que os haitianos buscam entre seus

pares, que dificulta a interação nesses momentos.

5.1.2 Casla em foco

A observação participante realizada na Casla iniciou-se a partir de um

contato mais recente, mas se deu de forma mais constante do que aquela

vivenciada na Pastoral do Migrante. Iniciada a partir de maio/junho de 2015, o

principal evento analisado é o curso “Direitos e Inclusão Social: aspectos jurídicos,

culturais e psicossociais”, organizado pela Casla em parceria com o Ministério

Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR), realizado no segundo semestre de 2015,

nas dependências da Casla, com aproximadamente 80 imigrantes45 de diferentes

nacionalidades, mas especialmente haitianos e africanos.

Além desse curso, a seguir descrito, é importante destacar a participação da

Casla como uma rede de luta por direitos humanos, especialmente no que tange à

questão de território na América Latina. A Rede, denominada Casla/Cepial, já

organizou ao menos quatro grandes eventos para reunir pesquisadores, povos

originários e militantes no continente e tem nos membros da diretoria da Casla, em

Curitiba, seus coordenadores gerais. É possível observar atualmente uma mudança

45A denominação “imigrantes” neste tópico se refere também aos refugiados e aos haitianos, estes,

imigração humanitária.

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de foco nas práticas da Casla no que diz respeito aos imigrantes de outros

continentes, como a Ásia e a África, pois o foco da organização sempre convergiu

para a valorização do território latino-americano, situação rompida pelos atuais

fluxos humanos e novas concepções identitárias como afirmam Hall (2013), Sousa

Santos (2002) e Bhabha (1998), por exemplo.

O crescimento exponencial do trabalho com os imigrantes pela Casla se dá

a partir de 2011/2012, quando há um aumento no fluxo de haitianos para Curitiba.

Atualmente, além do curso para imigrantes e do atendimento jurídico, que logo será

descrito, a Casla cedeu sua sede para a organização da Associação dos Haitianos

de Curitiba, pelo amplo espaço que a “Casa” oferece, além de ter se tornado ponto

para outras reuniões com diversas organizações de apoio.

Dado esse panorama da organização, é preciso ressaltar a estrutura atual

de atuação dos voluntários, dividida em núcleos de trabalho: o CaslaJur (assessoria

jurídica); CaslaRI (relações internacionais); CaslaCom (assessoria de comunicação);

CaslaCult (formação cultural) e CaslaPsico (assessoria psicológica). No entanto, o

único núcleo de trabalho constante na organização é o jurídico, que desempenha a

principal atividade da organização dos cinco últimos anos: a assessoria jurídica a

imigrantes. São diversos temas em foco, como problemas de documentação e

translado de familiares e pessoal, até questões mais graves, como exploração de

trabalho e agressão física. Sobre essa atividade, não foi possível fazer uma análise

mais detalhada, pois o atendimento dos advogados é feito de maneira particular com

a discussão de casos realizado semanalmente pela equipe jurídica. Os outros

núcleos se reúnem em dias diferentes da semana e organizam algumas atividades

de caráter institucional – como o CaslaCom tem feito –, de formação cultural e de

apoio ao núcleo jurídico, como é o caso do CaslaPsico.

No entanto, volta-se agora ao curso que se estendeu pelo segundo semestre

de 2015, em parceria com o MPT-PR, e reuniu um grande número de envolvidos,

seja no planejamento, execução e público de destino.

Sentindo a necessidade de oferecer uma formação aos imigrantes sobre o

Direito brasileiro em suas mais variáveis ramificações, devido às inúmeras dúvidas

que surgiam cotidianamente, o curso avançou em outras temáticas como a cultura

brasileira e a relação com as culturas de origem dos imigrantes; a possibilidade de

inclusão social através do mercado não formal de trabalho, como a economia

solidária; visitas a experiências de resistência e sustentáveis, como o assentamento

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do Contestado, no município da Lapa (região metropolitana de Curitiba); e

empoderamento comunicacional, por meio do treinamento com câmeras e discussão

do conceito de educomunicação.

A primeira oficina para os imigrantes ocorreu com alguns convidados que

falaram sobre empregabilidade na economia solidária, o que gerou uma grande

expectativa de alguns deles que estavam ali ansiosos por uma oportunidade. Muitos

quiseram deixar seus currículos, mas, ao longo do curso eles próprios

compreenderam que não se tratava de uma seleção de empregos, mas sim de um

espaço de formação e conscientização de possibilidades de trabalho e de atuação

na sociedade pelo viés contra hegemônico.

A oficina seguinte foi ministrada pela equipe de comunicação, que ajudou a

romper com a ideia do curso como fonte exclusiva de emprego, através de conceitos

de educomunicação – análise da mídia e caráter público dos meios de comunicação

– e treinamento de câmera. Na terceira oficina iniciou-se o módulo mais longo do

curso, o jurídico, que começou com a discussão do conceito de direitos humanos,

ministrada por um imigrante com doutorado acadêmico e participante da Casla.

Ao se levar em conta os diversos tipos de imigrantes, em termos de país,

sexo, idade e formação escolar, a participação durante as oficinas pode ser

considerada satisfatória. Além disso, a participação semanal de boa parte dos

imigrantes surpreendeu a equipe organizadora, o que possibilitou também a criação

de vínculos de amizade entre os presentes. Sobre a participação, era visível que os

imigrantes que tinham maior experiência escolar eram mais participativos, mas nos

trabalhos em grupo foi possível perceber uma sintonia satisfatória entre todos.

Cabe aqui relatar que as experiências vivenciadas pelo pesquisador nas

festas organizadas pela Pastoral e nesse curso da Casla resultaram em um

interesse maior, nesse trabalho de dissertação, em descobrir os usos dos registros

que os haitianos fazem por meio de telefone celular. Nas ocasiões citadas, notou-se

amplamente que os celulares eram bastante usados durante as formações, seja, de

forma negativa, para se distrair, tirando a atenção da discussão presencial – isso era

percebido especialmente pelo uso de fones de ouvido ao fundo da sala por parte de

alguns –, seja, de forma positiva, para registrar as falas e os slides de apresentação

dos cursos com fotos, filmagens e gravações em áudio e vídeo.

A partir dessa observação, podem ser inferidas algumas práticas

comunicativas. Primeiro, observou-se uma experiência intensa de trocas

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comunicacionais entre os imigrantes e a organização. Ainda que o espaço de

formação seja comunicativo intergrupal em si, o uso dos dispositivos tecnológicos

para registros das falas coloca em permanência o que foi ouvido naquele instante de

formação. Essa relação dos dispositivos tecnológicos com a memória tem uma

abordagem mais pedagógica e de uso exclusivo do indivíduo, podendo ser vista de

outra forma, além daquela que a relaciona com a perda da memória urbana, a que

se refere Martín-Barbero (2004) como consequência da modernização tecnológica:

Se de um lado urbanização significa acesso aos serviços (água potável, energia, saúde, educação), decomposição das relações patriarcais e certa visibilidade e legitimação das culturas populares, de outro significa também desenraizamento e crescimento da marginalização, radical separação entre trabalho e vida, perda constante da memória urbana. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.282).

Ao relacionar a perda de memória urbana à contemporaneidade, o autor

trata de colocar as tecnologias de comunicação como principais responsáveis por

essa perda, ao afirmar que as mesmas “agilizam os fluxos de informação,

revolucionam os acessos ao saber e condições de produção, mas ao mesmo tempo

em que redefinem o espaço-tempo apagam as memórias e ameaçam as

identidades”. (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.283). Por esse ponto de vista

apresentado pelo autor não há discordância nesta pesquisa, mas o uso pedagógico

observado especificamente dado a essa prática pode contribuir para que o registro

acione a memória desses imigrantes, contribuindo para sua inserção em um novo

espaço cultural/territorial. No entanto, o perigo existente aqui é que a memória

registrada na “memória” do celular seja facilmente esquecida se o fluxo de registros

de informações for subitamente substituído por outros e, assim, sucessivamente,

como afirmou um dos haitianos entrevistados. Essa problematização será retomada

posteriormente.

Outra forma de comunicação mediada por dispositivos tecnológicos é a dos

registros feitos pela equipe de comunicação durante todo o curso. Uma das

propostas era que a atividade resultasse em um documentário com características

institucionais, mas contando também com a experiência dos imigrantes e da própria

Casla nesse trabalho pioneiro no Paraná. Dessa forma, cada imigrante assinou uma

declaração de permissão do uso de imagem e voz e os registros das oficinas foram

realizados pelos voluntários e imigrantes que viessem a se interessar, mediante o

treinamento de câmeras realizado na segunda oficina do curso. As oficinas de

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comunicação e o acompanhamento do curso pelos olhos de câmeras mostraram

ainda o quanto é discrepante o intensivo e extensivo uso dos celulares para registros

pessoais e o questionamento da capacidade de muitos em relação ao manuseio da

câmera. Mesmo tendo uma afinidade com os olhos das câmeras, muitos imigrantes

resistiram em trazer imagens do seu cotidiano para compor o documentário,

conforme foi solicitado nas oficinas, o que demonstra certo receio em publicitar para

o grupo o que já fazem com facilidade em redes digitais.

No entanto, outras surpresas puderam ser percebidas, especialmente a

espontaneidade de tais sujeitos em se “mostrarem” para as câmeras, especialmente

no que se refere a momentos com música, para conceder entrevista ou para

preparar com gosto uma rápida apresentação musical para serem filmados.

Neste sentido, é possível perceber que a Casla conseguiu, por meio desse

curso e dos atendimentos jurídicos, uma comunicação interpessoal muito próxima

aos imigrantes haitianos, mas ainda há pouca interação com a sociedade. Refletindo

sobre isso, pode-se inferir que a futura produção do documentário46 sobre o curso

parece significar uma importante oportunidade para que sua veiculação em diversas

mídias fortaleça a interação com a sociedade local.

Além disso, destaca-se que o trabalho da Casla com os imigrantes foi

reconhecido externamente pela aceitação da candidatura da organização ao Prêmio

Innovare 2015, pela melhor prática de advocacia do país. Embora não tenha levado

o prêmio, o fato de ser finalista gerou uma mídia espontânea de grande alcance, por

meio de uma matéria no Fantástico (Rede Globo) de dez minutos, que abordou os

desafios e preconceitos que os imigrantes têm enfrentado no Brasil. Após a matéria,

a Casla recebeu inúmeras doações durante todo o mês de dezembro (2015) e

janeiro de 2016.

Se o vínculo da Casla com os imigrantes haitianos parece ter sido melhor

estabelecido por meio de suas práticas comunicativas do que na Pastoral, a relação

dos haitianos com a sociedade se deu de forma mais efetiva durante os eventos

realizados pela Pastoral em suas festas do que os eventos dirigidos aos imigrantes

promovidos pela Casla.

Ao considerar tais organizações, é necessário afirmar que há muitos outros

trabalhos sendo realizados em Curitiba por diferentes grupos de pessoas,

46 O documentário não foi finalizado até a finalização da pesquisa.

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destacando-se o Programa Política Migratória e Universidade Brasileira, da UFPR, e

a Associação dos Haitianos, que comumente trabalha em parceria com a Secretaria

Municipal de Direitos Humanos. O tempo da pesquisa e o necessário engajamento

em termos de observação participante não possibilitaram análises mais detalhadas

das ações de tais organizações; mas, ao menos as duas entidades acima citadas,

entram no teor da análise por meio de entrevistas qualificadas realizadas com

representantes de ambas as organizações/programas.

Ao retomar a metodologia da HP a ser seguida no próximo tópico, cabe

ressaltar que a interpretação da doxa, para Thompson (2001) não deveria

“negligenciar esses contextos da vida cotidiana e, as maneiras como as pessoas

situadas dentro dela interpretam e compreendem as formas simbólicas que

produzem e recebem” (p. 364). Embora exista a preocupação de fazer uma análise

detalhada sobre as práticas comunicativas – como forma simbólica – dos imigrantes,

o espaço de análise ficou reduzido a observar estes imigrantes no campo de

atuação das organizações, justamente pela já justificada necessidade de

engajamento. Nesse sentido, as entrevistas realizadas contribuíram para trazer

alguns aspectos da vida cotidiana, por meio de perguntas que se referem a práticas

do dia a dia, ao mesmo tempo em que a análise sócio-histórica, a seguir, reforça a

constatação de que “o campo-objeto de nossa investigação é também um campo-

sujeito em que as formas simbólicas são pré-interpretadas pelos sujeitos que

constituem esse campo”. (THOMPSON, 2011, p.364).

5.2 A ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

Thompson (2011) caracteriza essa fase da HP com o objetivo de “reconstruir

as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas

simbólicas” (p.366), sendo estas as práticas comunicativas dos imigrantes haitianos

em Curitiba. O autor define cinco aspectos básicos de contextos sociais que definem

um nível de análise distinto para a reflexão sócio-histórica: situações espaço-

temporais; campos de interação; instituições sociais; estrutura social; e meios

técnicos de transmissão.

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Além dessa linha de raciocínio apresentada por Thompson, é preciso

considerar que o aporte teórico também se configura por si só como uma construção

sócio-histórica, que será analisado nas categorias da etapa da análise formal ou

discursiva da HP, instrumentalizada pela técnica da análise de conteúdo.

Para caracterizar as situações espaço-temporais, Thompson (2011) diz que

as formas simbólicas, ao serem produzidas e recebidas por pessoas que estão em

lugares específicos, agindo e reagindo em tempos particulares, reconstroem esses

ambientes importantes para tal análise. Quando pensamos no espaço-tempo da

pesquisa, relembramos que a todo tempo os haitianos foram especificados como

“haitianos em Curitiba”. O fato de estarem em Curitiba não só sinaliza para

observarmos a especificidade dessa cidade, mas para observarmos que se

caracterizam como imigrantes, que saem de sua terra natal para buscar em outro

lugar situações que aquele espaço de origem não é suficiente. Essa relação do

espaço em uma pesquisa que versa sobre migrações humanas é fundamental para

podermos caracterizar a situação dessas pessoas e suas construções comunicativas

– chamadas por Thompson de formas simbólicas –, sobretudo quando se reconhece

no haitiano um povo historicamente destinado a migrar, conforme afirma em sua

tese o antropólogo haitiano, Joseph Handerson (2015).

Se é possível compreender pelos fatos históricos do Haiti que a migração é

uma realidade para seu povo, quase como um destino, é preciso também levantar as

bases sobre a imigração para o local de chegada à qual esta pesquisa se situa:

Curitiba. Como já afirmado, Curitiba teve um crescimento exponencial a partir do fim

da segunda metade do século XIX realizado por imigrantes europeus que, trazendo

seus hábitos para dentro da capital paranaense, ajudaram-na a ser considerada

como uma das capitais mais europeias do país. Neste sentido, ao ser Curitiba

considerada uma cidade de raça mais branca do que a média nacional (53% contra

19,7%) e lembrando que o Brasil apresenta inúmeras dificuldades em superar o

espírito racial que a escravidão e as políticas eugenistas trouxeram para reforçar o

racismo no país, é possível compreender minimamente as dificuldades de

aculturamento que alguns haitianos têm manifestado, o preconceito e a

desvalorização destes no mercado de trabalho em relação ao imigrante europeu, por

exemplo.

Uma pesquisa realizada pelo Observatório de Migrações da UnB em 2015

apontou que a média salarial dos imigrantes no Brasil é de R$ 1 mil, sendo que a

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nação que mais bem paga per capita é o Japão, com média de R$11 mil mensais,

enquanto a pior média é dos congoleses, com R$ 950 mensais. Além disso, o

relatório do OBMigra revela que o Paraná paga aos imigrantes uma média salarial

um pouco abaixo da nacional: R$ 992. Somando-se a esses dados a análise de

conteúdo das entrevistas, busca-se responder, mais à frente, o porquê da busca por

Curitiba, sendo que a cidade pode ser considerada como um local distante

culturalmente – ainda que seja um estado mais seguro aos negros, comparando-se

a outros47 – e de desvalorização de mão de obra.

Além do espaço, o tempo em que se estabelecem os haitianos, imigrantes

em Curitiba, é também fundamental para compreender suas vivências na cidade. Ao

refletir sobre o “destino de ser migrante”, Handerson (2015) afirma haver agravantes

temporais nos quatro momentos diaspóricos que ele levanta sobre a realidade

haitiana. Cada momento significa um tempo histórico, com suas particularidades e

ligações. A atual chegada dos haitianos, referindo-se ao quarto momento diaspórico,

sinaliza uma migração forçada, com características e consequências de desastres

socioambientais causados por um forte terremoto e um posterior furacão que

terminaram por agravar doenças, como a cólera, e a defasagem de infraestrutura do

já considerado país mais pobre das Américas.

Se a migração do Haiti para vários países é um dado histórico, por que o

Brasil aparece como destino neste quarto momento? A resposta também já foi dada

nessa pesquisa, ao afirmar que o período do desastre ambiental coincide com um

momento de euforia mundial sobre a economia brasileira, incluindo a escolha de

grandes eventos esportivos, como é percebido nas entrevistas. Além disso, outro

fator interfere: a presença das tropas brasileiras da ONU no Haiti é parte de um

acordo entre os governos e que facilita a entrada dos haitianos para o país,

justamente quando o mundo olhava desconfiado para aquele país que novamente

intensificava sua diáspora. Neste sentido, como seria esse trabalho se fosse

realizado há quatro anos, mais ou menos? O tempo de euforia passou e pode ser

notado pelo exemplo da revista britânica The Economist, que em 2009 estampou em

sua capa o Cristo Redentor impulsionando como um foguete com a frase “Brazil

takes off”48 e em 2013, em um tom mais crítico recordou a imagem com o Cristo

47 http://www.revistaforum.com.br/quilombo/2015/01/05/sobre-os-dados-genocidio-da-juventude-

negra-nao-sao-os-estados-nordeste-os-mais-racistas/

48 “O Brasil decola” (Tradução livre).

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Redentor “perdendo o rumo” em seu voo acompanhado da frase “Has Brazil blown

it?”49. Trazendo o Brasil mais algumas vezes em sua capa em tom cauteloso, a

primeira edição de 2016 da revista foi categórica em sua crítica ao país: “Brazil’s fall:

Dilma Rousseff and the disastrous year ahead”50, com a imagem da presidente

Dilma em tom abatido acompanhando ao fundo. Independente do momento político

que segue o país e as interpretações sobre isso, o contato com os haitianos e as

entrevistas demonstraram que a vinda para o Brasil não ocorreu apenas por uma

propaganda eufórica de anos atrás, mas que de fato havia um componente nacional

de esperança a pessoas em busca de uma vida melhor, o qual o país não parece

poder garantir mais como se esperava anteriormente.

Além disso, outro fato de mais longo prazo chama a atenção na

contemporaneidade: o uso abrangente das tecnologias de informação e

comunicação facilita o contato dos imigrantes que se distanciam de suas famílias.

Seja com os haitianos em Curitiba, seja com os povos de origem árabe na Europa, o

objeto que segue diversos imigrantes em suas jornadas é um celular à mão por meio

do qual podem comunicar sobre si a suas famílias e amenizar a perda dos vínculos

físicos.

O segundo aspecto da análise sócio-histórica de Thompson (2011) se refere

aos campos de interação, que para ele são “espaços de posições e um conjunto de

trajetórias, que conjuntamente determinam algumas das relações entre pessoas e

algumas das oportunidades acessíveis a ela”. (p.366). Guareschi e Veronese (2006)

relacionam ainda as posições e trajetórias a qual se refere Thompson ao capital

simbólico e capital cultural, como o reconhecimento e qualificações,

respectivamente. Além disso, são nos campos de interação que as instituições

sociais – tópico a seguir – se constituem, o que torna similar à ideia de campos

sociais de Braga (2012). É preciso, no entanto, enfocar que os campos de

interações se referem a pessoas e suas vivências e, no caso da pesquisa, os

campos de interações dos haitianos que estão em Curitiba. Assim, podemos

escolher alguns campos como o trabalho, a cultura, e a assistência humanitária

como campos de interações principais e que conseguem abranger as instituições

sociais.

49 “O Brasil estragou tudo?” (Tradução livre).

50 “A queda do Brasil: Dilma Rousseff e um ano desastroso pela frente” (Tradução livre).

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O trabalho é constituído como um campo de interação, pois é um espaço de

contato do haitiano com a sociedade curitibana; por meio dele, consegue manifestar

seu capital simbólico e intelectual, demonstrando suas qualificações e capacidades,

ainda que as empresas para as quais a maioria deles trabalhe não estejam

harmoniosamente vinculadas às suas aspirações profissionais, como foi possível

notar em toda a trajetória da pesquisa. Havendo uma desvalorização da mão de

obra haitiana, ainda que qualificada, o trabalho em uma boa empresa ou vinculada à

qualificação do haitiano, significa também um maior reconhecimento de suas

capacidades frente à comunidade estrangeira, visto que o acesso a melhores

empregos significa também um avanço social.

A cultura também aparece como campo de interação, pois congrega

instituições sociais como as organizações de apoio citadas neste trabalho e é um

espaço de reconhecimento da identidade do migrante na sociedade, por meio de

apresentações musicais, danças, comidas, hábitos e vestimentas, e comemorações

pátrias, trazendo um componente importante para a formação dos campos de

interação: as trajetórias históricas dos imigrantes, que são contempladas por meio

de seus costumes e que os tornam diferentes frente à sociedade receptora sem, no

entanto, haver reforço da ideia das purezas culturais, mas, ao contrário, a

transgressão ligada ao “diferente”, a qual cita Hall (2013), Bhabha (1998) e Derrida

(1991) ou ao que Bakhtin chama de “carnaval”.

O último campo de interação trazido na pesquisa é o da assistência

humanitária, que envolve um conjunto de atividades e apropriações de espaços

pelos imigrantes através da luta por direitos e conscientização sobre as

especificidades do seu país. A clareza das instituições sociais que atuam – neste

trabalho chamadas de organizações de apoio – confunde os próprios aspectos de

campos de interação e instituições sociais da análise sócio-histórica, pois, este

campo e sua constituição pelas instituições sociais são centrais na pesquisa ao

considerarmos as organizações de apoio um ponto chave na análise.

As instituições sociais seguem a lógica dos campos de interação como

aspecto da análise sócio-histórica, pois aquelas compõem estes. Thompson afirma a

importância de analisar as instituições sociais, pois possibilita “reconstruir os

conjuntos de regras, recursos e relações que as constituem (...) traçar seu

desenvolvimento através do tempo e examinar as práticas e atitudes das pessoas

que agem a seu favor e dentro delas”. (2011, p.367). Além disso, Guareschi e

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Veronese (2006) salientam a importância de se abordar como a ideologia opera ou

como tais relações sustentam uma dominação, visível em alguns momentos das

interações dos haitianos. Desta forma, a breve descrição sobre as instituições

sociais tem estreita relação com a análise feita anteriormente dos campos de

interação, que também estão ligados a relações de dominação.

O campo trabalho tem como suas instituições as empresas e o âmbito dos

estudos, especialmente a universidade, que oferece a formação/instrução que uma

pessoa necessita para ingressar qualitativamente no mercado de trabalho. Já o

campo da cultura apresenta como instituições sociais as festas, os feriados pátrios

institucionalizados e as próprias organizações de apoio, que também são

consideradas instituições sociais pelo campo de interação da assistência

humanitária.

Outro aspecto trabalhado pelo autor e já trabalhado no capítulo

metodológico e analítico é a estrutura social, que busca identificar as “assimetrias e

diferenças relativamente estáveis que caracterizam as instituições sociais e os

campos de interação” (THOMPSON, 2011, p. 367), ou seja, como que se dão as

regras que regem tais contextos sociais.

E, por fim, os meios técnicos de construção e transmissão são o quinto e

último aspecto, o qual busca compreender como a forma simbólica, as práticas

comunicativas dos haitianos, se dão na concretude do mundo, com quais meios

técnicos e para quê. Essa reflexão está relacionada à compreensão se as práticas

comunicativas dos imigrantes são midiatizadas ou não e ao objetivo geral da

pesquisar, em analisar com tais práticas comunicativas se dão como processos

comunicativos e como eles contribuem na construção da identidade dos haitianos no

novo território.

5.3 A ANÁLISE DE CONTEÚDO COMO ANÁLISE FORMAL OU DISCURSIVA DA

HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE

O tópico a seguir diz respeito à análise das formas simbólicas escolhidas

pela HP, que são os discursos sobre a construção de identidade identificados por

meio das entrevistas semiestruturadas dos haitianos residentes em Curitiba e as

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organizações de apoio. Embora Thompson (2011) chame este momento de análise

formal ou discursiva, o mesmo não limita a análise a ser de discurso e nem limita a

forma simbólica a sê-lo, mas sim este momento pretende avaliar quaisquer

“instâncias de comunicação correntemente presentes” (p.371). Por uma questão de

proximidade à análise procede-se, a seguir, a uma análise de conteúdo, a partir de

categorizações temáticas.

Antes, no entanto, de entrar no campo concreto da análise, é pertinente

afirmar que as entrevistas com os haitianos foram feitas a partir de um contato com

as organizações de apoio e uma presença (ativa ou passiva) dos entrevistados em

tais ambientes. Neste sentido, percebe-se claramente que os entrevistados

demonstraram ter um perfil parecido que, sem poder afirmar com dados, é,

simultaneamente, diferenciado do corpus de haitianos em Curitiba de maneira total.

A primeira impossibilidade de se inferir isso se dá pela própria dificuldade que o

Estado e as organizações têm em mensurar e classificar este universo populacional

e, a segunda é que, quando mensurado e classificado, há resistência em oferecer

isso à sociedade, visto que, em muitos casos, as informações são tratadas de forma

sigilosa.

Quanto ao lugar da realização das entrevistas houve variação, de acordo

com a preferência dos entrevistados: algumas foram realizadas nas organizações de

apoio (inclusive as “entrevistas qualificadas” – ver a seguir), outras foram feitas nas

casas dos haitianos e outras em lugares públicos. É válido ressaltar que nas

entrevistas domiciliares houve o desafio de conciliar a concentração da entrevista

com a constante presença dos demais moradores da casa, inclusive com a

participação de um dos moradores quando, em uma das entrevistas, houve uma

considerável dificuldade de compreensão entre entrevistador e entrevistada.

Antes de trazer aqui o perfil dos haitianos entrevistados (9 [nove] haitianos e

haitianas, ao todo), cabe lembrar também que as organizações de apoio, sendo uma

instância importante na presente análise, foram ouvidas também por meio de 4

(quatro) representantes de diferentes representações curitibanas, sendo 2 (dois)

deles haitianos51. No entanto, essas 4 (quatro) entrevistas com representantes das

organizações serão chamadas de entrevistas qualificadas, compreendendo-se a

“qualidade” como uma fala mais abrangente e menos individualizada, mas com o

51 A escolha numérica das entrevistas não seguiu um rigor, mas foi ratificada por uma decisão

pessoal minha e da orientadora, especialmente considerando o tempo restante da pesquisa.

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mesmo valor das demais entrevistas. Neste sentido, cabe enfatizar que a

abordagem da ideologia, tão presente na metodologia de Thompson, é traduzida

aqui pela ideia da ideologia gramsciana de “relação vivida”, considerando o

conhecimento a partir do conhecimento popular e do cotidiano e não apenas

vinculado à formação intelectual do sujeito.

Da parte dos entrevistados haitianos, sem contar as entrevistas qualificadas,

dos 9 (nove) entrevistados apenas uma pessoa não pertencia à faixa etária dos 29

aos 33 anos, que representou a principal homogeneidade da pesquisa. No entanto,

cabe considerar que, segundo pesquisa da PUC Minas e de outras instituições,

como o próprio Governo Federal (BRASIL, 2014), a faixa etária média dos haitianos

que vêm ao Brasil varia entre os 25 e os 34 anos, embora haja bebês e idosos.

Quanto ao sexo, a pesquisa se dividiu: dos 9 (nove) haitianos entrevistados

6 (seis) eram homens e 3 (três) eram mulheres, mas a escolha foi feita

estrategicamente, respeitando aproximadamente os 20% de mulheres haitianas

migrantes52. (BRASIL, 2014). Com relação a outra parte da coleta, as entrevistas

com as organizações, os dados foram inversos: 3 (três) mulheres para 1 (um)

homem, o que também foi feito estrategicamente, ao se observar que a participação

das mulheres nas organizações de apoio é mais constante do que a dos homens.

Com relação ao estado civil, apenas 2 (dois) entrevistados afirmaram ser casados,

sendo um de cada sexo. Além desses, outros dois homens afirmaram ter filhos. Se

os casados estão com a sua família completa no Brasil, ambos os homens solteiros

têm seus filhos morando no Haiti.

Um dos pontos em que o corpus da pesquisa não se alterou muito, frente

aos constantes atendimentos realizados pelo pesquisador na Pastoral do Migrante, é

o da religião. Dos 9 (nove) entrevistados, 8 (oito) afirmaram ser

protestantes/evangélicos e 1 (um) disse não ter religião. No entanto, dados sobre o

Haiti ainda afirmam que o catolicismo é a principal religião do país, seguido do

protestantismo e do vodu haitiano. De toda forma, a empiria realizada na Pastoral

compreende que a maioria dos imigrantes haitianos em Curitiba é de religiões

evangélicas.

Por fim, é importante ressaltar a escolaridade e a ocupação dos haitianos

em Curitiba. Dos 9 (nove) entrevistados, 5 (cinco) afirmaram ter tido acesso ao

52 No entanto, informa-se que a porcentagem de mulheres haitianas vem aumentando no Brasil desde

a pesquisa.

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ensino superior (concluindo ou não), 3 (três) têm ensino médio completo e 1 (um),

ensino fundamental completo. É preciso deixar claro que as especificações de

ensino fundamental completo e médio são traduzidas para a linguagem brasileira,

mas são diferentemente concebidas no Haiti. Quanto aos entrevistados qualificados,

todos têm o ensino superior completo e 3 (três), dos 4 (quatro) entrevistados, têm

sua formação universitária vinculada ao serviço que presta junto aos migrantes.

Quanto à ocupação dos haitianos, apenas 2 (dois) entrevistados afirmaram ter

ocupações próximas às suas profissões de origem (vinculadas, sobretudo, à

formação universitária). No entanto, é justamente uma dessas duas pessoas que

está entre as que não teve acesso à universidade, que a questão do idioma facilitou

sua inserção no trabalho atual: dos 9 (nove) entrevistados, 2 (dois) afirmaram

trabalhar com sua potencialidade de idiomas, inclusive esse).

Ao finalizar esta parte descritiva dos dados coletados de cada entrevistado,

ressalta-se a importância da decupagem e da leitura flutuante para o seguimento da

análise de conteúdo, as quais integraram um componente compreensivo

fundamental para a compreensão parcial da pesquisa, visto que as inferências dos

discursos analisados deverão ser efetivadas no decorrer da análise que se segue.

Antes, então, colocamos aqui alguns pontos analisados ao se fazer a leitura

flutuante das entrevistas:

A escolha por Curitiba se deve a interações interpessoais, mediadas

por dispositivos tecnológicos, motivadas por fatores como trabalho,

estudos e clima.

A escolha pelo Brasil se deve a interações interpessoais ou não,

motivadas por fatores como trabalho, estudos e a parceria entre os

governos, sendo esta influenciada pela propaganda positiva do Brasil

feita pela mídia internacional.

Há uma estreita relação de importância entre os dispositivos

tecnológicos de informação e comunicação e a manutenção de

vínculos com familiares e amigos.

Os usos das mídias digitais (especialmente Whatsapp e Facebook)

variam entre pessoal (fotos, vídeos e ligações) e de visibilidade social

(imagem positiva do Haiti, divulgação de algum trabalho musical e

divulgação de atividades comemorativas do país).

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Os usos das mídias como fonte de informação são variados, mas com

grande força da internet, por meio do Google e dos próprios grupos

do Facebook, além de alguns sites de notícias. A TV é apontada por

alguns, especialmente pelos telejornais (ênfase para os mais

populares) e recebe críticas frente ao conteúdo de violência e à

consequente sensação de insegurança provocada.

Alguns entrevistados já têm experiências midiáticas, em meios como

livros, rádio e televisão, pois um número significativo deles está ligado

à música.

Boa parte dos entrevistados foi sugerida pelas organizações de apoio,

o que representa um destaque destes na comunidade haitiana.

Todos creem que as organizações contribuem na construção de uma

imagem positiva, mas ninguém crê ser suficiente o que é feito hoje. A

reflexão vai além da capacidade das organizações para levantar

temas como a desorganização dos haitianos, o pouco costume dos

brasileiros a esta nova cultura e a necessidade de integração à

sociedade por meio dos estudos, política e cultura53.

Todos afirmaram que construir uma identidade no Brasil sem a ajuda

das organizações é difícil.

O maior problema de comunicação é o idioma. Em alguns casos o

preconceito surge com mais força, mas também é negado por outros.

Para eles, a principal forma de manifestar a identidade haitiana é por

meio das datas comemorativas atreladas à independência do país.

A mídia, normalmente, tem desempenhado um papel de “vilã” na

representação do haitiano, embora alguns deles desejem aparecer na

mídia, especialmente na TV.

5.3.1 Análise das categorias

53 Uma das entrevistas afirmou que as organizações não são importantes, mas a resposta foi

ambígua a outro momento, cuja confusão de fala estava ressaltada dificuldade de diálogo.

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A escolha das categorias de análise de conteúdo dessa pesquisa está

relacionada aos discursos registrados sobre a construção de identidade dos

haitianos em Curitiba, a partir das entrevistas realizadas, aqui constituídas enquanto

unidades de amostragem. São quatro as categorias definidas e suas respectivas

subcategorias intrinsecamente ligadas a como são construídos esses discursos no

cotidiano do grupo de imigrantes envolvido: 1) as práticas comunicativas mediadas

por tecnologias, 2) as manifestações culturais, 3) o trabalho e 4) as organizações de

apoio. Por meio dessas categorias de análise também se busca responder se as

práticas comunicativas desses imigrantes são midiatizadas.

a) Práticas comunicativas mediadas por tecnologias

As práticas comunicativas mediadas por tecnologias chamaram a atenção a

partir da observação participante junto aos imigrantes haitianos, quando se pode

perceber o intenso uso que eles faziam de seus celulares durante as atividades

realizadas pelas organizações de apoio. Mesmo no percurso etnográfico cotidiano

percebeu-se os haitianos comumente com seus smartphones em punho e fones nos

ouvidos. No entanto, a análise em questão precisava ir além desse olhar e entender

o porquê desses usos e como isso colaboraria ou não na construção de suas

identidades. Neste sentido, não só as ainda chamadas novas mídias, como o

telefone celular e a internet, mas também as mídias tradicionais, como a TV, o rádio

e os jornais, nos interessam. Sendo assim, é necessário analisar essa categoria sob

dois olhares (subcategorias): novas mídias e mídias tradicionais.

Subcategoria: Novas mídias

Nas entrevistas realizadas junto a nove (9) haitianos perguntou-se quais as

mídias por eles utilizadas, seus usos e se há algum tipo de conversação ou reflexão

entre eles sobre os conteúdos que as diferentes mídias oferecem. Além disso, outra

pergunta importante foi feita: qual a principal fonte de informação que os fez migrar

para o Brasil e para Curitiba?

A questão sobre o uso das mídias e sua relação com a migração ao Brasil,

formulada com a pretensão de estar relacionada a esta primeira categoria, logo foi

percebida como insuficiente para ser analisada apenas à luz de uma mediação

tecnológica, como presumido anteriormente. A diferença reside na hipótese de que

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os haitianos vieram ao Brasil por conta da intensa propaganda do país nas mídias

estrangeiras durante os anos recentes, como se nota nos inúmeros discursos feitos

sobre esta fase da imigração ao país, inclusive nessa pesquisa. Não se quer excluir

tal influência, pois coletaram-se falas neste sentido, mas o contexto das entrevistas

demonstrou que a escolha dos haitianos pelo Brasil foi também mediada pela

confiança nas informações dadas por pessoas que já estavam aqui. Vale ressaltar

uma das falas que expõe como fator para se decidir pela migração a necessidade

dos vínculos afetivos como canalizadores de confiança:

(...) eu tinha um amigo aqui no Brasil, em Curitiba, que me convidou: “Ô, E3*, vai ter Copa do Mundo, você fala vários idiomas, você manja em computador, você pode vir, daí você vai ter sorte pra trabalhar aqui”. Daí larguei tudo para vir aqui. (Entrevistado E3, 2015).

O que interessa analisar nessa categoria é a condição pela qual esses

vínculos afetivos foram realizados a ponto de influenciar a decisão de migrar. Só é

possível manter um contato permanente com tais pessoas, a quilômetros de

distância, se existirem tecnologias de comunicação disponíveis e facilmente

acessíveis. A acessibilidade da internet e de suas ferramentas de conversação

interpessoais ou grupais, como o aplicativo Whatsapp, tornam mais fáceis o

entendimento sobre a realidade do país para o qual se pretende migrar em relação

às mediações realizadas pelas mídias tradicionais. A preferência pelas novas

mídias na decisão de migrar, através de ferramentas, como o Whatsapp, que

possibilita a manutenção dos vínculos afetivos na cotidianidade, revela como a

imigração hoje pode ser influenciada fortemente por vínculos afetivos de amigos e

familiares, que expõe sua opinião e contam sobre os novos espaços de ocupação, o

que parece criar uma perspectiva de confiança muito mais forte do que as

informações veiculadas apenas pelas mídias tradicionais. O entrevistado a seguir

ressalta tal afirmação:

(...) depois do Haiti ter sido atingido pelo terremoto eu, com um primo que estava já aqui, ele conversava comigo – ele estuda para Engenheiro Industrial (...). Ele chegou aqui no Brasil e depois perguntou a mim se eu queria vir também (...) Meus pais não queriam pra mim viajar tão longe assim, mas meu primo conversou com eles e consegui o aceite. (Entrevistado E2, 2015).

Se na maioria dos casos a presença de alguma pessoa conhecida contribui

para a vinda do migrante ao Brasil e a Curitiba, em outros casos o conhecimento

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prévio a partir das informações veiculadas nas mídias, ainda que pequeno, também

colaborou para a vinda de haitianos: “Sobre o Brasil só (sabia) sobre futebol. Mas

uma coisa que eu sabia é que o Brasil produzia muito café”. (Entrevistado E8, 2015).

Também nessa outra fala o entrevistado revela mais conhecimentos sobre o país:

Eu tinha acesso à internet, lá na faculdade no Haiti e eu pesquisei bastante. A parte mais importante pra mim é que o Brasil estava no 5º lugar das economias no mundo. Às vezes eu penso que eu sou uma vítima da propaganda do Brasil lá fora. Porque lá fora não mostram as favelas (...). Eu sei que tem miséria no Brasil, mas eu achei que era fraco e quando eu cheguei eu vi que era outra coisa. Mas fora tem turismo, grande, e a economia é muito boa. Depois vai ter a Copa do Mundo, o Brasil vai crescer mais. Eu estava pensando assim. (Entrevistado E6, 2015).

Ao se observar a estreita relação que os dispositivos tecnológicos tiveram na

decisão de migrar, especialmente a partir de vínculos afetivos, percebe-se que após

a migração essa relação ainda se mantém, agora com os que ficaram no país de

origem. Todos os entrevistados afirmaram manter contato frequente com suas

famílias e amigos e acabam por manter o ciclo comunicativo migratório, sendo agora

eles os informantes das realidades externas à sua nação:

Agora eu sempre falo que aqui no Brasil... como tem eles que me perguntam, porque eles sabem que eu gosto muito de informação, essas coisas assim, eu sempre falo a verdade (...) eu ainda tenho um relacionamento com meu ex-colega que eu trabalhei lá no Haiti, no rádio, sempre fica uma conexão da informação. (Entrevistado E2, 2015).

Essa relação com as mídias foi ressaltada por muitos haitianos, todos

homens54, que disseram ter interesse em aproveitar os espaços midiáticos

disponíveis para emitir alguma informação e entendimento de mundo, por exemplo.

Essa questão de visibilidade midiática é fomentada pelo fato de alguns dos

entrevistados já terem tido contato com mídias ou dependerem delas para alcançar

realizações pessoais, como é o caso da música e do jornalismo, em quatro (4) das

falas analisadas.

Vocês têm alguma página que divulgam o trabalho? Tem. Qual? É Level Compa, no Facebook. Tem no Youtube? Tem um link no Youtube, na verdade. Mas o principal é a página do Facebook. No Facebook. (...) E para vocês como é esse tipo de trabalho? O pessoal interage? Interage. Mais

54 Mesmo sem se aprofundar na questão de gênero na pesquisa, vemos como algo importante

ressaltar o apreço maior pelo uso das mídias que há entre os homens haitianos comparado às

mulheres. A conclusão foi alcançada por meio de observação direta no cotidiano do grupo em estudo.

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haitiano ou brasileiro também? Tudo. Haitiano, americano, francês. (Diálogo com o Entrevistado E8, 2015).

Às vezes chega a mais de 500 pessoas que ouvem, mas até ano passado quando eu gravava alguma coisinha com a Maria* tinha mais de 300 pessoas ouvindo e já cantando, mas só de brincadeira várias pessoas já ficaram loucas pra assistir vídeo. Mas vídeo só lá no Facebook, não no Youtube. Só no Facebook dá quase 500 pessoas olhando. Por isso que eu falei queria, mas eu não lembro o nome dela que pretende fazer uma entrevista com nós e um showzinho na Casla pra levar o pessoal da Globo... gravar uma coisinha. (Entrevistado E2, 2015).

Ainda que seja a maioria dos casos, não é só a visibilidade voltada para a

publicidade de algum trabalho, como neste caso acima, que é vislumbrada pelos

haitianos quando se referem às mídias, especialmente às novas mídias, que é por

onde eles conseguem se inserir autonomamente. Uma importante visibilidade em

questão diz respeito à formação de um novo conceito do público brasileiro frente ao

Haiti, que interfere na própria vida destes no novo território. O uso das mídias como

estratégia para este objetivo foi reconhecido por apenas um dos entrevistados

explicitamente, mas chama bastante a atenção como uma forma de “repertório de

resistência” para buscar um equilíbrio nas relações de força, conforme traz Hall

(2013). No entanto, os principais “repertórios de resistência” não foram encontrados

nesta categoria e sim em outras, como as manifestações culturais e organizações de

apoio, mas vale esta citação como uma importante atribuição sobre as novas mídias:

Eu entro lá no Google, pego as imagens do Haiti, as imagens recentes, e compartilho com amigos ou amigas brasileiras. “Olha o que a mídia está fazendo, está falando sobre o Haiti e olha o outro lado, olha algumas praias bonitas lá, alguns lugares...”. Daí eles começaram a fazer uma comparação: “Ah, nossa, a mídia só fala do terremoto, que o Haiti é um país pobre, é um país que sempre tem guerra civil, etc. Mas a mídia nunca fala sobre o Haiti no sentido bom, “Ah, lá tem praia bonita”, “É a primeira República negra que foi independente”, uma guerra... isso não é tão fácil. Aí a gente usa o Face, usa o Instagram, postando as fotos, etc. (Entrevistado E3, 2015).

Essa inserção na esfera midiática, em especial pela via das mídias sociais, é

propriamente o que Cogo (2010) chama de “comunicação cidadã em espaços

transnacionais”, uma forma de resguardo de suas culturas na ótica transnacional e

que possibilita a “construção e circulação de agendas relacionadas à disputa de

cidadania” (2010, p.83), que, neste caso, representam um reconhecimento de sua

identidade a partir do outro. Embora os “repertórios de resistência” não tenham

ficado evidentes na atuação dos haitianos nas novas mídias, há uma identificação

destes pelas páginas das bandas musicais e vídeos do país, que ficam entre as

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principais preferências dos haitianos quando se referem a este tema da visibilidade,

mas que na pesquisa podem se traduzir em novas formas de cidadania. Além da

apropriação das mídias para permitir visibilidades, as mesmas também funcionam

como um reconhecimento identitário entre seus pares. Vídeos, fotos e ligações por

aplicativos de chamadas mantêm os vínculos com os familiares e amigos. Quando

se perguntou aos entrevistados o porquê de se fazer alguns registros estes

responderam:

“Olha o que eu faço! Estava cantando na Festa Latino-Americana!”. Para mostrar para amigos (...). Só minha prima que tinha, quando ela foi na Festa Latino-Americana. Não sei se você lembra, minha prima fez um teatro e ela tem isso no Youtube. (Entrevistado E4, 2015).

Na verdade eles tiram as fotos daí eles compartilham com a família. “Olha onde eu estava”, “eu estava com meus colegas”, essas coisas. Mas no meu caso, eu não mando todas as fotos, têm algumas que eu trato primeiro daí eu mando pra família. (Entrevistado E3, 2015).

Se estas respostas dizem respeito a um registro e sua divulgação para seus

pares como forma de reconhecimento identitário através da arte, outro

reconhecimento identitário pode ser alcançado por meio do próprio contato cotidiano

com familiares e amigos que estão no Haiti. Quanto ao uso do celular, este

entrevistado responde:

Pra usar um site... Facebook. Ligação... eu não sou um cara que gosta de falar bastante, não. Viber, Whatsapp pra poder me comunicar mais fácil, pra não gastar mais dinheiro, comprar mais crédito. Pra poder falar com minha família. (Entrevistado E6, 2015).

Nesta entrevista, embora o idioma tenha sido um grande obstáculo para a

coleta, observou-se uma forte incidência das mídias como instrumento de

manutenção de vínculos:

E liga para o Haiti? Sim. E depois vai para Curitiba, família visitar. Principalmente foto e ligação então? Foto. Foto principalmente. Ok. Você usa internet? Sim! Tenho internet no telefone. E você usa sempre? Sim, todo dia (...). Entendi. Mas quando você entra na internet, você acessa que site? Falo com amiga, amigos, escrevo. No Facebook? Tenho. E você usa bastante? Bastante. No Facebook vocês têm algum grupo de haitianos? Não tenho grupo, não. Não escrevo em grupos. Só com amigos pessoais? Só com amigos. (Entrevistado E1, 2015).

Essa relação que se estabelece entre os migrantes e as mídias sociais ou

mídias tecnológicas aproxima-se do que Martín-Barbero (2004) chama de “mediação

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comunicativa da cultura”, que amplia a atuação das mídias, de algo meramente

instrumental para se converter em estrutural. Assim, podemos afirmar que:

Las experiencias y narrativas del inmigrante se entremezclan cada día más densamente con las de los cibernautas. Millones de desplazados y emigrantes – dentro y fuera de cada país– practican la ciudad que habitan escribiendo relatos en el chat o en hipertextos de la web, desde los que individuos y comunidades se comunican con sus familiares que quedan al otro lado del mundo. Y ello mediante la circulación de historias y de imágenes en las que cuentan, se cuentan, para seguir contando entre la gente y para ser tenidos en cuenta por los que sobre ellos toman decisiones que les afectan. (MARTÍN-BARBERO, 2015, p.27).

Ainda sobre as novas mídias, constatou-se que a maioria dos haitianos

utiliza os telefones celulares para registrar momentos do cotidiano em vídeos e fotos,

como já salientado anteriormente e visto com destaque durante o processo de

observação participante. Assim, buscou-se compreender quais seriam os principais

motivos de usos das imagens, e as respostas, que tendiam para a afirmação do

compartilhamento das fotos para amigos e familiares distantes, mas sem uma

consensualidade.

Uma das falas chamou a atenção para a ideia do aprendizado social, que

Braga (2006) afirma ser importante para no contexto da midiatização. Embora Braga

utilize o termo majoritariamente para se referir à resposta crítica dada a uma

produção midiática, pode-se compreender também que a própria produção pode

servir como instrumento de interpretação crítica e uma resposta à determinada forma

comunicativa, como é visto a seguir: “Pra ver como ficou o evento (...). Pra chegar

em casa e ver o que precisa corrigir, entendeu? O que tem que fazer melhor, o que

foi bom e o que foi ruim”. (Entrevistado E8, 2015).

Outras duas falas também se destacaram:

É fantasia (...) Eles não vão fazer nada sério. Vai chegar em casa e vai deletar tudo (...) Vai colocar no Facebook às vezes... É muito engraçado. Às vezes tem um cara filmando, né. Tem um celular e está filmando. Por quê? O celular não tem capacidade, o celular vai ficar lento depois. E se vai ficar lento, o que você vai fazer? Vai apagar. É só uma fantasia. (Entrevistado E6, 2015).

Às vezes eu tenho o costume, mas quando eu chego em casa eu tiro tudo (...). Mas qual é o principal motivo, então, de fazer? Nada. Só às vezes passo, por exemplo, assim, você está fazendo um teatro, você vai se apresentar cantando e aí me pedem para fazer uma foto e eu faço. Depois eu mando para você e depois eu tiro. (Diálogo com Entrevistado E4, 2015).

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As citações acima vêm contribuir no sentido de que o uso das tecnologias

adquire contextos de usos particulares, em alguns casos, mas define também um

tipo de comportamento coletivo que não pode ser inferido pela análise de conteúdo,

mas talvez por uma reinterpretação das formas simbólicas, constituindo-se também

como expressão da identidade dos haitianos que aqui residem a partir dessa

inserção de dispositivos tecnológicos em suas vidas.

De toda forma, abarcando a incidência das redes sociais digitais como

espaço de encontro entre pares, poucos haitianos afirmaram compartilhar seus

registros em grupos no Facebook, por exemplo, ao passo que o compartilhamento

de registros via Whatsapp – com entes próximos ou amigos – é mais comum.

Quando se perguntou a eles sobre se participam de algum grupo de haitianos no

Facebook, uma resposta padrão foi essa:

Não sou um membro ativo, mas estou participando de alguns. Por exemplo, quando têm alguns que tem uma publicação eu vi (vejo), mas não... não sou muito ativo. O que eles postam mais nesses grupos? Às vezes notícias do Haiti, sobre trabalho, sobre coisas assim. (Diálogo com Entrevistado E7, 2015).

Há a procura de contato com outros haitianos que residem no Brasil (um

grupo do Facebook bastante citado foi o “Haitianos no Brasil”). Porém, esse contato

se mostrou para os entrevistados voltado à aquisição de informações, inclusive

dadas por brasileiros que participam dos grupos do Facebook. Desta forma,

percebe-se que as mídias alavancadas pela internet representam estruturas

importantes para a circulação de informações dos haitianos que estão no Brasil e

destes para outros, como haitianos que residem no país ou pretendem vir para cá,

especialmente.

Ao mesmo tempo, as novas mídias colocam em xeque o fechamento étnico,

ao se constituírem enquanto redes abertas, ou o que Hall (2010) também chama de

“espaços de relações sociais de caráter fronteiriço e da construção de comunidades

desterritorializadas”. (p.94).

Esses brasileiros que estão nesses grupos, eles ajudam ou atrapalham? Às vezes têm alguns que atrapalham e têm alguns que ajudam, mas a maioria ajuda. Então, pra você é positivo ter brasileiro nesse grupo? Sim. E tem algum grupo que é só de haitianos? Na verdade não, sempre mistura (...) a minha banda tem brasileiro, só meu futebol, meu time, é que não tem brasileiro. (Diálogo com Entrevistado E3, 2015).

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Você acha legal a participação dos brasileiros ou preferia que fossem só haitianos? Eu acho legal (...). É uma questão de comunicação, entendeu? Quem que pode passar as informações daqui, entendeu? É normal ter um grupo com eles. (Diálogo com Entrevistado E8, 2015).

O conceito de desterritorialização de Hall (2010) não é o que Santos (2012)

se refere quando relaciona a perda do território à alienação, mas sim quando a

desterritorialização se alinha a uma nova forma geográfica chamada por Sousa

Santos (2002) de “comunidades de sentimentos”. Ao mesmo tempo em que são

formadas comunidades de haitianos, as páginas do Facebook, ao conterem

brasileiros, abrem-se a uma comunidade não só étnica, mas “sentimental” – na linha

de raciocínio de Sousa Santos –, que se abre a sujeitos de diversas nacionalidades

em prol de uma causa, no caso, a migração haitiana e seus direitos humanos.

Subcategoria: mídias tradicionais

Quanto às mídias tradicionais, a televisão é a principal que chama a atenção

dos entrevistados e tal preferência carrega consigo uma contradição expressa nas

entrevistas. Ao mesmo tempo em que houve críticas ao conteúdo violento da TV

brasileira e da consequente sensação de insegurança que isto provoca, além de

críticas relacionando o discurso midiático ao preconceito que sofrem no Brasil,

alguns haitianos também manifestaram, ainda que não tão espontaneamente, o

sonho de “ser midiatizado”, não apenas pelas redes sociais digitais, mas pelas

mídias tradicionais, como a TV. Uma das entrevistas que resume a crítica à mídia é

realizada por um dos representantes de organizações de apoio. Outra crítica

realizada por outro representante de organização é referente à ação do jornalista

frente a um indivíduo cultural:

Mas a gente não percebe muito o movimento da mídia no sentido de mostrar as coisas positivas, as contribuições mesmo, ou de cobrir um evento desse, porque a gente sempre convidou. Então nos procuram muito mais quando parece que o haitiano foi chamado de macaco, banana e foi agredido, isso repercute muito mais do que uma ação que a gente faz para os haitianos de atendimento dentário ou que valorize essa autoestima, ou na Praça de Bolso onde estava todo mundo dançando juntos, monte de brasileiros e monte de haitianos dançando juntos e eles falando coisas positivas do Brasil e dos brasileiros. (Entrevistado EQ2, 2015).

A mídia também. Ela faz uma pergunta: “Por que você veio aqui ao Brasil?”. É sempre uma pergunta assim, é a pergunta mais comum da mídia. Sim, é curiosidade de saber porque o imigrante vem. Acho que não deveria ser a primeira pergunta. Deveria ser: “Quem é você?”. Acho que a primeira pergunta deveria ser perguntar a identidade da pessoa (...). A resposta já está aí, na pergunta. (Entrevistado EQ1, 2015).

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No entanto, a crítica sobre a televisão também aparece pelos próprios

haitianos:

Algumas imagens são feias, né. Como se o Haiti fosse um inferno, e eu não gosto, porque eu sei que todos os países têm dificuldades, têm lugares bons, têm lugares ruins, têm favelas e tem tudo isso também. Mas, não sei, porque têm alguns jornalistas que quando precisam de entrevistas só pede coisas ruins e eu não gosto. (Entrevistado E7, 2015).

Antes eu via os jornais de manhã, só que isso me estressa e agora eu não estou usando (...). Ver algumas coisas de violência, algumas coisas me estressam bastante. Ver uma pessoa invadir uma casa, essas coisas me estressam e aí eu não assisto mais jornal. (Entrevistado E5, 2015).

Quanto ao conteúdo violento, ao mesmo tempo em que recebeu críticas,

percebeu-se que um considerável conteúdo televisivo assistido por haitianos são os

telejornais policiais e que apelam à violência como forma de espetáculo.

Nesse contexto de força da televisão surgem também anseios de alguns

haitianos em aparecer nessa mídia, especialmente pela trajetória musical e do uso

da televisão como forma de aprendizado. Esses anseios são expostos por este

entrevistado quando relaciona a questão do ensino à televisão e também ao rádio:

Quando queria aprender o português escolhia um programa lá na TV e uma novela e começava a aprender, aprender, aprender (...). A rádio que eu gosto mais, porque parecia engraçada é a “Jovem Pan”, porque tem uma mistura do rap, essas coisas. Os caras falam muito bem também, eu gosto. Eu não quero perder meu inglês. (Entrevistado E3, 2015).

Eles vieram aqui na minha casa, o Felix*, gravando uma matéria, acho que semana que vem vou ter que ir lá na RPC para dar um show ao vivo, essas coisas. Mas é uma campanha mesmo pra ajudar os brasileiros saberem que os haitianos não só deixaram um país pobre para vir aqui só para trabalhar. Alguns de nós têm bastante coisa para fazer. (Entrevistado E3, 2015).

Compactuado a isso, parece também que há o interesse em transformar a

cultura do negro e do imigrante aos olhos do público por meio dos veículos

midiáticos, aspiração possível de ser percebida em uma das entrevistas do haitiano

que mais se referiu às mídias como porta de entrada para alcançar sonhos no Brasil:

(...) eu vejo várias vezes o jornalista, pessoal que vai fazer vídeos, pesquisas sobre sempre coisas negativas, das dificuldades, mas precisam saber também da nossa capacidade como povo. Eu não sei se é ignorância, não sei se eles não sabem que temos capacidade de conhecimento, capacidade de chegar muito mais longe do que estamos até agora, mas eles só procuram coisas negativas, não achei ainda pessoas que procurem coisas positivas de nós. É isso que eu acho. (Entrevistado E2, 2015).

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Aqui, é preciso novamente reforçar que esta pesquisa se detém na temática

das mediações e das midiatizações e não naquela da ação dos meios de

comunicação e o que eles produzem. Neste sentido, compreendem-se as mídias

tradicionais – especialmente a TV – como lugar de conhecimento externo do

indivíduo em confrontação a si mesmo e, que por sua vez, caracteriza-se por uma

ausência do conhecimento direto da realidade. Assim, o “estar na mídia” passa

também a ser um modo de “estar na realidade”, sempre diferenciado pela situação

histórico-cultural, como afirma Braga (2012). No entanto, é a realidade histórico-

cultural dos haitianos que precisaria estar clarificada, como relata um dos

entrevistados ao tomar contato com um grupo de estudantes de jornalismo que o

convidou para ser protagonista de um livro:

(...) daí elas descobriram: “Nossa esse cara fala bem português, vamos fazer uma matéria com ele, vamos pegar ele pra nos ajudar”. Assim, e começamos a trabalhar. Ficamos bons amigos e também porque elas estavam comigo no momento do parto da minha esposa, sempre ali na minha casa, tirando foto... (Entrevistado E3, 2015).

De forma ampla, pode-se afirmar sobre esta categoria de análise que as

práticas comunicativas mediadas por tecnologias ocorrem de forma muito individual

ou coletiva entre os haitianos, por meio de suas próprias iniciativas e não

propriamente pela intervenção das organizações sociais como poderia se pretender.

Pode-se assim dizer que estas práticas são espontâneas e inseridas naturalmente

em seu cotidiano.

A internet ganha força nas práticas comunicativas interpessoais que

configuram a condição do migrante, distante territorialmente, mas presente através

das redes sociais em seu sentido mais amplo (AGUIAR, 2006). Esses fatores se

devem também à tecnologização dos haitianos entrevistados, incluindo suas

capacidades técnicas e condição financeira, o que não foi percebido em um dos

casos, por exemplo, por um dos entrevistados que relataram o uso do celular: “E

você usa sempre? Sim, todo dia (...) Só no mês que eu trabalho e entra pagamento”.

(Entrevistado E1, 2015).

Já a aproximação com as mídias tradicionais não surpreendeu, exceto pelas

falas já expostas anteriormente, o que demonstra uma perda de força dessas

tecnologias, não só no Brasil, mas também no Haiti, ao constatarmos que as práticas

comunicativas envolvidas na migração dos haitianos para o Brasil estavam muito

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mais relacionadas ao uso das novas mídias para contato interpessoal do que pela

eficiência da propaganda do Brasil nos meios de comunicação de massa.

b) Manifestações culturais

Nessa categoria foram escolhidas três subcategorias que chamaram a

atenção na observação participante e nas constantes reflexões extraídas juntas aos

haitianos: as datas comemorativas (datas pátrias do Haiti); a música e; o

preconceito. Esses elementos unidos possibilitam compreendermos a relação que as

manifestações culturais estabelecem com a construção de identidades culturais dos

haitianos no Brasil.

Subcategoria: Datas comemorativas

Sobre as datas comemorativas, em especial as datas ligadas ao processo

de independência do Haiti55, os próprios eventos da Pastoral junto à comunidade

haitiana demarcavam a importância de tais momentos históricos no cronograma da

programação aos haitianos com a escolha do dia 18 de maio como o dia da Festa

Haitiana. Da mesma forma, outras entidades de apoio também realizam anualmente

nos dias 18 de maio e 18 de novembro eventos com a “cara e cores” do Haiti. No

entanto, há um componente que diferencia a simples escolha de datas pátrias para

se comemorar o dia do país em outra nação, como é, por exemplo, o Brazilian Day,

comemorado nas proximidades do dia 7 de setembro em Nova Iorque. Diferente do

Brasil, onde não é perceptível um nacionalismo por determinadas datas e fatos

históricos, mas sim por modos de vida e uma forte propaganda nacional no mundo

como um país alegre e acolhedor56, a dimensão do nacionalismo haitiano vem

55 São elas: 18 de maio (1803) – Dia da Bandeira, que retrata a escolha da atual bandeira do Haiti

como símbolo da independência, conquistada meses depois; 18 de novembro (1803) – Vitória da

Batalha de Vertières, que selou a independência haitiana por meio da vitória de escravos contra a

forte tropa de Napoleão Bonaparte; 1º de janeiro (1804) – Proclamação da Independência do Haiti.

56 A própria ideia do Brasil como país acolhedor vem sendo criticada pelas ciências sociais. Inclusive,

pesquisa de doutoramento defendida em 2015 na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre o

acolhimento aos imigrantes no Brasil afirma isso ao analisar diversos jornais brasileiros, como por

exemplo, a fala do autor, Gustavo Barreto: “Duas coisas foram cruciais ao longo do tempo: as

questões do trabalho e da raça. Em 1891, o governo decretou que amarelos e negros não poderiam

entrar subsidiados pelo Estado. Se entrassem, o dono da embarcação poderia perder o alvará de

funcionamento”. (“Racismo contra imigrantes no Brasil é constante, diz pesquisador”. Disponível em:

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150819_racismo_imigrantes_jp_rm. Acessado em

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justamente por uma história nacional que acabou por condicionar o “ser haitiano”,

como afirma Handerson (2015), inclusive, quando diz que o impulso migratório do

povo haitiano é característico, marcado por sucessivos processos invasivos e,

consequentemente, diaspóricos. Ao se perguntar qual seria a melhor ocasião para

manifestar o “ser haitiano”, boa parte dos entrevistados citou justamente tais datas:

Pra mim, a melhor ocasião é uma data histórica do nosso país. Quando vem

essa data a gente sempre comemora no Haiti. Quando vem essa data os

haitianos que estão vivendo no Brasil precisam comemorar também. Esse

momento, para nós, é um momento bem favorável (...) Batalha de Vertières,

Bandeira e dia da liberdade... Independência. (Entrevistado E8, 2015).

Têm umas datas muito importantes. A vitória do Haiti, no dia 18 de

novembro, que foi a última guerra da independência e o dia 1º de janeiro a

data da festa da independência do Haiti. Dia 18 de maio é o dia da Bandeira

do Haiti. (Entrevistado E7, 2015).

Para além da necessidade de motivar o “estar junto”, a organização de

eventos que comemorem o Haiti a partir de suas principais datas históricas

novamente fomenta o que Cogo (2010) chama de “comunicação cidadã em espaços

transnacionais”, pois resguardam culturas em espaços externos, ao mesmo tempo

em que inauguram novas formas de cidadania ao manifestar por meio de práticas

comunicativas e culturais seu modo de vida e sua história. Da mesma forma

salientamos que isso: “(...) determinará uma construção identitária sempre em

trânsito, na qual a cultura desterritorializada buscará seu ‘não lugar’, ocupando de

maneira incisiva um novo lócus de expressão”. (RIBEIRO e LOPES DA SILVA, 2015,

p.5).

Os eventos em comemoração ao Haiti, no entanto, condicionam algumas

diferenças ao próprio povo haitiano comparado a uma festa em seu país. A presença

de brasileiros, a necessidade de adequação ao idioma e a algumas regras locais

configuram um momento nem brasileiro, nem haitiano essencialmente, mas híbrido

culturalmente, em sua forma de “construir projetos de convivência despojados das

tendências a ‘resolver’ conflitos multidimensionais através de políticas de purificação

étnica”, como salienta Canclini (2003, s/p).

09/02/2016._____________________________________________________________________

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Embora isso seja perceptível nos eventos pela participação dos brasileiros, a

principal necessidade vislumbrada ainda pelos haitianos é que o país receptor

conheça minimamente sua cultura:

Meu interesse maior é que eles conheçam nossa cultura, nossa comida, umas coisas diferentes pra vocês (...). Eu não posso falar de todos eles, mas alguns vêm e falam “Ah, eu gostei da comida de teu país”. Porque alguns acham que nós só comemos terra lá, tem comentário assim e machuca, né. E aí ver que alguns conhecem nossa cultura e já vê com outra ideia, imagem, né. (Entrevistado E5, 2015).

Ao mesmo tempo, os haitianos são reconhecidos por características

impostas por sua condição de migrante, como o idioma estrangeiro:

Alguns deles subiram lá no palco e “parabéns, você fala bem português”, ficam me cumprimentando, eu me sentia muito bem. Para mim é um espaço pra descobrirem a nossa cultura, para ver que os haitianos estão se esforçando muito. (Entrevistado E3, 2015).

No entanto, é o caráter identitário desses eventos que chama a atenção e

demarca uma forma do “cosmopolitismo”, pelo entendimento de Sousa Santos

(2002), ao ser possível relacionar festas sobre uma luta de escravos pela

independência do seu país contra uma metrópole europeia no cronograma de

atividades de uma cidade cosmopolita/europeia como Curitiba. Lembrando que, para

Sousa Santos, a ideia de cosmopolitismo dialoga com a versão contra-hegemônica

da globalização, ao se estabelecer como organização transnacional por meio de

redes de solidariedade e a valorização do que não é global e, por isso, não é

hegemônico.

Subcategoria: Música

Outra subcategoria que está relacionada aos eventos – mas não restrita a

ele – é a música, que compõe um cenário identitário fundamental para a disputa de

espaços dos haitianos no Brasil e se mostra como uma das principais práticas

comunicativas destes com a sociedade brasileira, como pode ser visto abaixo nos

cartazes (Figura 2 e Figura 3), além dos vídeos das apresentações compartilhados

na internet que possibilitam o conhecimento da cultura haitiana por parte do

brasileiro. Assim, esta afirmação vem ao encontro de um dado observado na

pesquisa: o principal espaço dos haitianos no que se refere à visibilidade tem sido a

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música, seja por conta dos eventos relacionados à temática da migração, seja pela

presença das bandas haitianas na noite curitibana.

FIGURA 2 – CARTAZ DE SHOW EM UM PERFIL PESSOAL NO FACEBOOK (10/06/2014)

FIGURA 3 – CARTAZ DE SHOW EM UM PERFIL PESSOAL NO FACEBOOK (28/12/2015).

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Com diversos talentos em Curitiba, houve um questionamento metodológico

por conta da alta média de músicos, ou pessoas relacionadas a algum trabalho

musical, nas entrevistas. Dos 9 (nove) entrevistados, 4 (quatro) tinham relação com

alguma banda atuante na cidade e uma informação até então desconhecida

apareceu em uma das falas:

Lá no Haiti é bem difícil pra entrar em uma família em que nenhum membro não tem conhecimento da música ou não sabe fazer música, essas coisas (...). É bem difícil pra entrar em uma família que não gosta de música (...). Os haitianos gostam de música. Têm bastantes músicos aí haitianos, bastantes. (Entrevistado E7, 2015).

O apreço pela música não só pode ser percebido pelo volume de músicos

encontrados e por esta citação, como também durante a observação participante, na

qual foram verificadas intensas interações entre os haitianos e a música – seja de

modo particular, com o constante uso dos fones de ouvidos no meio das atividades

da Casla e nos próprios atendimentos na Pastoral do Migrante, seja de modo grupal,

com a interação de amigos por meio da dança com uma simples caixa de som. Em

pelo menos duas oficinas do curso ministrado na Casla aconteceram registros de

apresentações musicais de haitianos feitas espontaneamente.

Se estes espaços, somados aos eventos mencionados acima, propiciam que

os haitianos exponham sua cultural musical, não é garantido que o mesmo ambiente

favorável seja encontrado em casas noturnas curitibanas, por exemplo. No entanto,

todas as bandas haitianas com certo reconhecimento de seu trabalho musical

estavam voltadas a ritmos caribenhos, em especial ao Kompa.

(...) pra fazer música aqui a gente precisa ter um empresário (...). Sabe, não

vai ser fácil. Eu tenho um cantor... essas duplas que eu gosto, que eu

sempre falo deles... essa dupla, o Zezé di Camargo e Luciano, eu conheço

a história deles, como conseguiram surgir pra chegar um dia no lugar que

estão hoje, mas no passado, anos 80, mais ou menos, eles passaram por

coisas bem difíceis e hoje é a dupla mais famosa no Brasil. Eu espero

também chegar a este ponto, mas não vai ser hoje ou amanhã, mas a gente

vai continuar tentando, continuar cantando e Deus vai tocar o coração de

alguém pra ajudar e pegar a mão de nós pra poder crescer e poder subir aí

em cima (...). Aqui o pessoal não houve muita música em francês, né. É

mais inglês, português - muito inglês - mas eu vou encaixar também a

música francesa na cabeça de vocês. Mesmo sendo difícil pra vocês cantar,

mas vão aprender, né. (Entrevistado E2, 2015).

Embora o desejo de ascensão musical esteja ligado ao modus operandi da

indústria cultural brasileira, o entrevistado não abdica do sonho de poder cantar em

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seu idioma, contribuindo assim para uma mudança da cultura musical do povo

brasileiro, ainda que em pequenas dimensões. Além disso, não só a questão do

idioma como citado acima, mas toda a capacidade musical haitiana tem sido

utilizada como um leque cultural por essas bandas que se inserem no cenário de

Curitiba. Neste sentido, é possível perceber que a cultura hegemônica musical, em

especial ao que se refere ao idioma inglês, é contraposta por um novo locus cultural,

que influencia os corpos e seus ritmos e acaba por assumir a “cultura como uma luta

contra a uniformidade”. (EAGLETON, 2011, p.47). A proposta multicultural

interpelada pela composição haitiana em Curitiba critica em seu modo de ser a ideia

da cultura como civilização. Em decorrência, expõe a ideia do “carnaval”, na qual a

cultura não é apenas lugar de desejo e uma imagem refletida do outro, mas é em si

outra figura relacionando-se com o diferente (HALL, 2013), pois há algo de original

nessas expressões culturais que têm modificado a forma dos brasileiros conceberem

a música e a relação do homem com ela, através da dança e da sonoridade.

Embora isso seja perceptível, a diferença musical não foi citada pelos

haitianos, pois as falas em relação à música estavam muito mais ligadas aos sonhos

do que ao próprio estilo. De toda forma, a multiculturalidade exposta pela arte é

criticada em uma das falas:

A apresentação haitiana, não tem como... um povo, um povo muito calmo o de Curitiba... não tem como ser só o Kompa, que é muito barulho. Tem que se adaptar, entendeu? Isso falta. Nós podemos vir aqui para trabalhar e nós podemos mudar isso também para apresentar cultura, o que nós podemos fazer. (Entrevistado E6, 2015).

É necessário, neste sentido, ponderar que tal afirmação pode estar

relacionada a temas pessoais, que serão tratados com mais ênfase no momento da

categoria “organizações de apoio”, quando será perceptível uma desintegração da

unidade haitiana no cenário curitibano, acometida por questões internas dos próprios

migrantes. Além disso, o entrevistado alega: “Porque eu conheço pouco sobre a

cultura do Haiti”. (Entrevistado E6, 2015), ao mesmo tempo em que assume:

A gente está pensando em fazer outra coisa: fazer uma cultura intelectual. É uma coisa diferente. Não é todo mundo que vai poder integrar, mas eu vou ver (...). Aí a gente vai, junta, vemos o que podemos fazer com um movimento intelectual para pensar sobre o futuro do povo aqui no Brasil, porque a gente mal começou. (Entrevistado E6, 2015).

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Ou seja, há conhecimento de sua cultura, mas de formas de vista diferentes.

O ponto que chama a atenção aqui são os conflitos de relacionamento que também

são características culturais do haitiano e sua forma de transgressão à autoridade,

advinda de tempos ainda coloniais e vista ainda hoje, 2016, nos processos

eleitorais57. Um dos entrevistados, representante de organização, reforça este

conceito: “Foi o primeiro país em que aboliu a escravidão e isso é muito forte. Já

surgiu em vários debates nossos, na postura deles em sala de aula (...)”.

(Entrevistado EQ2, 2015).

Subcategoria: Preconceito

Por fim, a terceira subcategoria é composta pelo tema do “preconceito”.

Primeiramente, tal tema poderia ser visto a partir das outras categorias, como o

preconceito na televisão ou o preconceito no trabalho, por exemplo, ambos

percebidos nesta pesquisa. No entanto, a inserção do preconceito nesta categoria é

justamente por buscarmos um olhar voltado ao preconceito em suas formas de

construção da identidade haitiana.

A primeira questão que pode ser aqui inferida é em relação às

características naturais dos haitianos, especialmente a cor (o corpo) e o idioma, que

são as primeiras formas de comunicação. O idioma foi a principal resposta quando

perguntado aos haitianos a principal dificuldade de comunicação que eles tinham no

Brasil. Existe uma dificuldade natural e essa diferença demarca um “estrangeirismo”

acentuado também pela cor, como pode ser analisado nesta situação:

Esses eventos culturais, essa ideia de integrar (...) a gente vai ao Teatro Guaíra e têm as fotos. Então a gente tem 100 negros juntos no teatro inteiro branco e claro que isso surge em sala de aula e a gente tenta resgatar a nossa história também e mostrar isso. (Entrevistado EQ2, 2015).

A questão da cor também mostrou ser um incômodo para dois entrevistados

quando afirmaram ser esse um dos principais motivos para terem se mudado: “A

Argentina é um povo meio racista, sabe? Aham, muito racista. Depois ele estava

falando: ‘Ah, gente brasileira é boa’. Aí eu falo: ‘Melhor eu viver em um país como

57 As eleições presidenciais haitianas de 2016 estão ainda indefinidas enquanto este trabalho é

escrito. A população não aceita os resultados, acusa o presidente de fraude e tem questionado a

ajuda externa, como no caso da Organizações dos Estados Americanos (OEA) para intermediar o

processo.

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Brasil do que Argentina, porque eu não gosto de racismo’”. (Entrevistado E4, 2015).

E: “Eu passei três meses lá em Manaus e aí eu decidi deixar Manaus. Eu estava

procurando cidade onde tem menos racismo...” (Entrevistado E6, 2015). No entanto,

esta fala demarca uma diferença histórica com o Brasil e suas políticas de

embranquecimento que formataram a lógica de concebermos nacionalmente a

relação entre negros e brancos (LESSER, 2001). Quando questionado sobre como

sabia que o Brasil não era um país racista, a resposta foi simples – e remete ao

tema do vínculo afetivo falado na primeira categoria: “Ele falava que a gente

(brasileira) era melhor do que na Argentina”. (Entrevistado E4, 2015). No entanto,

embora possa ser melhor, não significa que não seja racista, como pode ser

percebido em outras falas: “Na verdade o mundo inteiro tem preconceito e no Brasil

também. Eu sou vítima de preconceito”. (Entrevistado E8, 2015).

“Ah, você é preto, não vou sentar ao teu lado”. Porque já aconteceu isso no ônibus. Você senta, ela convidou um brasileiro curitibano: “Ah, você tem uma cor...” – “Você pode sentar” – “Não, eu não vou sentar perto de você, é preto, né, vai me sujar”... já aconteceu bastante. Depois outra coisa é quando fala: “Ah não, porque vocês não ficaram lá no teu país morrendo de fome, porque vocês vêm de um país pobre, vêm aqui pra roubar o emprego dos brasileiros”, essas coisas. (Entrevistado E3, 2015).

O preconceito racial é também ponderado por um dos entrevistados, que

mantém uma opinião mais crítica:

O cara que estava falando ficou muito chateado porque estava sentado no

ônibus e o cara não queria sentar do lado dele, não sei se você já viu esse

vídeo (...) Não somos assim, coisa louca o que ele está falando. Isso não é

racismo, entendeu? Interpretação muito ruim, cara. Porque tem amigo meu

que fala isso também: “Ô, E6*, você não está percebendo que quando você

está sentando em um ônibus ninguém quer sentar ao lado de você?” Eu

não! (...). Você senta ao lado de uma pessoa e eu posso ver outro lugar,

cara, eu vou deixar esse lugar e vou sentar em outro lugar. Essa não é

minha preocupação: quem vai sentar ao lado de mim – velha, velho, mulher,

homem – não adianta, todo mundo é igual. (Entrevistado E6, 2015).

Ao mesmo tempo em que rechaça todo o tipo de acusação de racismo, o

entrevistado conta ter se ofendido, não pelo racismo, mas pela maneira como foi

tratado, embora o teor tenha sido sobre sua cor:

Eu lembro uma vez que eu estava lá (aponta para uma mesa58) e ele veio sentar aqui e ele chamou de “negão”, me chamou “negão”. “Negão, vem

58 Nota minha.

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aqui!”. Isso não é problema para mim, me chamar de negro, o problema era a tonalidade que ele estava usando, o jeito que ele estava falando comigo. Ele falou: “Ô, negão!”, eu sei que ele está tomando cerveja. Eu falei: “Cara, você pode me chamar o gerente pra eu ir embora, mas eu não vou te atender”. (Entrevistado E6, 2015).

Apesar deste entrevistado, em especial, ter criticado o comportamento

estigmatizante e de “vitimização”, em suas próprias palavras, é necessário

reconhecer este tema como um ponto de preocupação para algumas organizações

de apoio e suas derivações culturais no território em que se localiza a pesquisa:

Infelizmente, o brasileiroainda não conseguiu assimilar a questão do imigrante e, em geral, o brasileiro, é difícil ele assimilar o diferente. Então, nós temos muitos problemas em relação a esta questão por conta do preconceito, do racismo, da xenofobia. Muitos brasileiros não entendem que esses migrantes vêm para o Brasil porque no seu país estão passando por perseguições religiosas, políticas, étnicas, porque seu país vive uma guerra civil, um conflito armado e as pessoas não se colocam no lugar do outro. E isso é o principal problema, então, os migrantes sofrem muito preconceito e, principalmente a incidência maior no Brasil é no Sul do país. Porque nós temos as colônias, as comunidades de alemães, italianos, poloneses, ucranianos e essas comunidades têm um maior obstáculo, uma maior dificuldade para assimilar novas culturas, novos migrantes. (Entrevistado EQ3, 2015).

Mas agora não é uma vida melhor que tem no Brasil, para eles as coisas estão muito complicadas e fiquei surpresa esta semana com a notícia que tem nazista. Isso deixa o pessoal com medo porque não são só haitianos que vêm como imigrantes. A gente pode ter cor diferente, mas tanto brasileiro também sai para procurar em outro lugar – vai aos Estados Unidos, vai à França – porque no mundo a pessoa saiu para procurar uma vida melhor. (Entrevistado EQ4, 2015).

A diferenciação, que condena o migrante a ser eternamente o “outro”, acaba

por se refletir em ações de xenofobia e que estigmatizam a busca por ascensão

profissional do haitiano que vem ao Brasil:

Vejo muito eles acharem que vêm para roubar o trabalho deles. Isso não vai melhorar muito (...) se eles veem o migrante, vão achar que veio para roubar o emprego. Tem brasileiro que vai ser alegria, mas tem quem não vai ser. (Entrevistado E9, 2015).

Isso ajuda um país subir a renda e como imigrantes são haitianos que mandam mais dinheiro fora que todos. Mas ignorantes, têm pessoas que não percebem isso e sempre dizem que os haitianos vêm roubar emprego e por isso que sempre que dou entrevista falo isso. (Entrevistado EQ4).

Neste sentido, percebe-se que a questão do migrante haitiano no Brasil

carrega não só um eminente preconceito racial, mas também social e histórico,

especialmente pelo sentimento de diferença cultural que se estabelece àqueles que

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ingressam em um estado como o Paraná, conhecido por ser o mais eslavo do país

até meados do século XX por sua formação europeia especialmente polaco-

ucraniana (OLIVEIRA, 2012). E embora o Paraná não esteja nem entre os dez

estados mais perigosos para negros, segundo o IPEA59, esta pesquisa relata apenas

os índices de assassinatos, falhando também com relação a informar sobre o baixo

número de negros que o estado tem se comparado aos estados do Norte e

Nordeste, por exemplo. No entanto, o racismo cultural – ou seja, que não chega

necessariamente às últimas consequências, como o assassinato – apresenta o

Paraná como o 4º estado do país mais presente em conteúdos racistas na internet,

conforme revela uma pesquisadora ao estudar páginas neonazistas60. À frente do

Paraná só estão, respectivamente, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Assim, alguns comportamentos ligados à “guetização” são visualizados em Curitiba

e necessariamente problematizados:

Têm alguns deles que sofrem preconceito, porque aqui tem bastante preconceito, daí se torna assim se retirando: “Não, eu não vou falar com o Otávio porque ele vai achar que eu sou haitiano, venho de um país pobre”, daí começa se retirar. (Entrevistado E3, 2015).

Mas, eles se comunicam mais entre eles, eles não têm essa interação maior com o brasileiro. Essa é uma preocupação nossa (...) nós somos contra a formação de guetos. Então nós procuramos essa inserção social, essa interação com os brasileiros (...). É que essa questão de gueto é onde você aprofunda, você segrega, você aprofunda essas diferenças. (Entrevistado EQ3, 2015).

A noção do gueto é contrária à noção do multicultural, pois segrega as

diferenças ao invés de hibridizá-las. A junção da identidade individual com a

identidade coletiva, acelerada ainda pelos processos transnacionais da globalização,

é desconsiderada ao alegar que a identidade do migrante não pertence nem ao

lugar que veio, nem ao que está atualmente, culminando na sua perda completa do

próprio eu. (TRINDADE, 2003). Em relação a isso, uma das entrevistas ressalta um

olhar que busca a completude do migrante:

Acho que a primeira imagem, de qualquer haitiano que está aqui é sempre assim: ele é um imigrante (...) a Pastoral não fala aqui que o haitiano é

59 http://www.brasilpost.com.br/2014/02/28/estados-gay-mulher-negro_n_4876455.html

60 http://arquivo.geledes.org.br/racismo-preconceito/racismo-no-mundo/18522-rs-eo-segundo-estado-

que-mais-baixa-conteudos-neonazistas-na-internet-por-marcelo-gonzatto

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somente imigrante, mas também pessoa humana, com dignidade (...). Por ser um imigrante isso quer dizer que é uma pessoa que está em busca de uma vida melhor.. Outros podem dizer que é uma pessoa sem casa, sem trabalho; pode ser também uma pessoa vulnerável, porque muitas organizações usam assim para dizer o que é o haitiano imigrante. Para nós, da Pastoral, o haitiano imigrante é uma pessoa humana que quer viver com sua dignidade e plena dignidade (...). Além do nosso trabalho de acolhida estamos vendo como o migrante pode se integrar sabendo como os valores culturais do lugar que acolhe: a língua, ter um lugar onde pode viver como pessoa humana, um trabalho, poder se comunicar com a família, ver como viver com a família... toda a dimensão da pessoa a nível psicológico e não só afetivo... nós estamos vendo tudo isso. (Entrevistado EQ1, 2015).

Assim, a temática da identidade do migrante não fica apenas na sua

característica fugaz e de fuga, mas é composta, como salienta ElHajji (2011), pela

soma do individual e do coletivo, definidos também por Honneth (2013) como

elementos necessários ao reconhecimento de identidades. A totalidade da pessoa

migrante expressa nessa fala abarca a identidade dos haitianos no Brasil não só

como um ser migrante, mas um ser migrante que é cultural, histórico, social, afetivo

e político. A fala acima também se conecta facilmente à crítica feita por dois

entrevistados brasileiros que afirmaram que as organizações mantêm um olhar

diferenciado em relação à sociedade curitibana por estarem mais próximos a eles e,

por isso, potencializarem o haitiano para além do que visivelmente ele é percebido.

Eu acho que pra gente é um pouco claro, a gente está dentro da Universidade, convivendo com esse público há dois anos, enfim, a gente tem um interesse também muito grande de troca de aprendizado. Então, acho que hoje em dia eu posso dizer que têm muito mais coisas que nos aproximam do que nos diferem quando falamos “essas pessoas”. Então acho que não, acho que a gente tem muita similaridade, acho que a gente tem uma admiração (...). (Entrevistado EQ2, 2015).

No entanto, o olhar do brasileiro sobre o haitiano ainda é algo a ser

investigado, visto que esta pesquisa não foi até ao cidadão comum, aqui expresso

por aquele que não está junto aos imigrantes em seu cotidiano. De toda forma,

percebe-se que os brasileiros que atuam nas organizações mantêm uma postura

positiva, como percebido nessa entrevista.

c) Trabalho

O tema do “trabalho” é bastante extenso na literatura e alcança diversas

dimensões na ótica das migrações. Principal busca por migrantes, o trabalho

primariamente supre a necessidade econômica de qualquer indivíduo em outro

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lugar, seja ele com características desejadas pelo trabalhador ou não, tendo a

função principal de sobrevivência. No entanto, é possível perceber que a dimensão

do trabalho, na lógica das migrações, não só carrega um valor econômico, mas

também está estreitamente relacionado a valores histórico-culturais. Um dos

principais exemplos é observado a partir das médias salariais de japoneses e

congoleses, por exemplo, maiores e menores valores recebidos por imigrantes no

Brasil, respectivamente, como já mencionado na análise sócio-histórica. A diferença

abismal de salários que recebem ambos os trabalhadores destas nações no país

refletem, primeiramente, uma migração japonesa ao Brasil de mão de obra

qualificada, enquanto o Congo oferece ao Brasil uma mão de obra de menor

qualificação, advinda, principalmente, de condições de refúgio. A partir deste dado

socioeconômico, ao se observar apenas os números que demonstram a diferença

entre japoneses e congoleses – e os haitianos podem ser incluídos nesse exemplo,

junto aos congoleses – sem se questionar sobre as condições de vinda e a posterior

imagem que isso acarreta no país receptor, pode-se inferir a importante margem

cultural que a categoria “trabalho” apresenta nas discussões sobre migração.

Embora a migração de países desenvolvidos para o Brasil, como o Japão,

traga consigo uma maior qualificação de mão de obra, é importante ponderar que a

situação dos países de “mão de obra pouco qualificada” não condiz com tal

estereótipo em sua totalidade, como pode ser percebido no perfil dos entrevistados.

Além disso, as migrações, sejam quais forem, não recebem apenas mão de obra,

mas sim pessoas, com toda a sua história e cultura, como afirmou anteriormente o

entrevistado EQ1.

Se inserirmos a condição sócio-histórica do povo haitiano, como se fez em

um dos tópicos metodológicos, é possível perceber que a história de vida dessas

pessoas, atreladas à sua nação, está vinculada a lutas por independência

estrangeira, soberania e paz. Esses elementos são traduzidos na migração haitiana

ao Brasil pelo reconhecimento de esforço e pela fama de bons trabalhadores, como

correntemente a observação participante aferiu no cotidiano da Pastoral do

Migrante, em processos empregatícios, e a partir de falas como: “Os haitianos são

muito trabalhadores!”.

Além desse reconhecimento por brasileiros que atuam junto a haitianos, os

próprios migrantes ressaltam essa característica como algo cultural: “Melhor

maneira... de como você pode mostrar: ‘isso aqui é o Haiti’, entendeu? (...). Pela

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pele. Mas não só fisicamente. Haitiano trabalha muito. Mais do que brasileiro e

temos força (...). Trabalho... trabalho duro. Dinheiro é pequeno! ” (Diálogo com

Entrevistado E1, 2015). Há ainda o depoimento de um brasileiro sobre isso: “O que

marca mais para mim, porque mesmo nós estamos numa situação complicada, é

que eles são muito trabalhadores, isso admiro muito, muito neles. (Entrevistado

EQ4, 2015).

Por ser possível afirmar que o trabalho não é apenas uma categoria

socioeconômica, mas também histórica-cultural, a pesquisa busca observar por meio

de algumas subcategorias como o trabalho se relaciona com a construção da

identidade haitiana no Brasil.

Subcategoria: Motivos da vinda

A primeira subcategoria está relacionada aos “motivos da vinda” dos

haitianos ao Brasil, considerando que o trabalho seria um dos principais argumentos

de migração, visto que o Haiti, após os desastres ambientais, não era capaz de

abranger toda a mão de obra de seus próprios cidadãos. Outro motivo do trabalho

ser percebido como um importante motivo da vinda de haitianos ao Brasil é a

informação de que 20% do PIB do país advinha de remessas financeiras enviadas

de emigrados, como já salientado nesse trabalho.

As entrevistas confirmaram que a migração ao Brasil se deve, sobretudo, a

questões de trabalho, estudos e a um clima propício para viver. No entanto, o

quesito trabalho foi o mais ressaltado, influenciado, obviamente, pelas interações

pessoais, como já exposto na primeira categoria. No entanto, aqui reforçamos a

questão do emprego:

O cara me falou e daí eu tenho um amigo aqui em Curitiba e ele me falou também. O cara que vem de fora ele quer achar um emprego rapidinho também, entendeu? Aí o cara falou: “Lá tem um lugar e você pode achar um emprego rapidinho”. Qualquer lugar que você vai lá, qual o setor que você quer trabalhar e vai indo. O cara que está aqui falou: “Vem hoje e amanhã você já pode vir trabalhar”. (Entrevistado E6, 2015).

Em 2013, quando eu estava lá no Haiti, queria mudar de país. Eu queria morar em um país rico, mas a oportunidade do Brasil subir, é fácil de conseguir um visto permanente. Embarquei para cá. Eu vim para cá para estudar também, trabalhar. (Entrevistado E9, 2015).

(...) depois do Haiti ter sido atingido pelo terremoto eu, com um primo que estava já aqui, ele conversava comigo – ele estuda Engenheiro Industrial.

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Ele foi estudar na República Dominicana e depois ele veio pra cá pra ver se conseguia um emprego melhor, ou pra fazer mais experiência no trabalho dele. Ele chegou aqui no Brasil e depois perguntou a mim se eu queria vir também... (Entrevistado E2, 2015).

Um pouco além dessas falas, o trabalho se mostrou como o único fator para

a vinda de uma família haitiana para Curitiba:

Chegando em Manaus, uma empresa de mina de ouro contratou meu marido para Curitiba. Daí depois me contrataram como cuidadora de idoso. Foi assim que nós viemos aqui. Através daquela empresa que foi lá em Manaus nos contratar. (Entrevistado E5, 2015).

Ainda que as interações pessoais tenham se mostrado mais decisivas do

que a oportunidade de trabalho no Brasil, é importante referendar que havia nessas

pessoas um componente de esperança, de uma imagem potencializada pela mídia

haitiana sobre o país, que não é possível ser mensurada nessa pesquisa, mas

comentada nas entrevistas. Esse componente de esperança ainda pode ser

ratificado a partir das características favoráveis dos haitianos entrevistados, como

uma formação técnica ou superior e um conhecimento de idiomas: “(...) ‘você fala

vários idiomas, você manja em computador, você pode vir, daí você vai ter sorte pra

trabalhar aqui’ (...) Eu falo crioulo que é um dialeto de lá do Haiti, francês que é

nativo, inglês, espanhol e agora português”. (Entrevistado E3, 2015).

Quanto à escolha por Curitiba, o trabalho também aparece como um

componente, como pode ser percebido pela fala do Entrevistado E5, logo acima, e

por essa constatação:

Eles vêm muito por conta das Pastorais do Migrante e por conta do empresariado. Os empresários que acabam trazendo eles para o Sul, por conta da mão de obra, infelizmente, né, a mão de obra barata (...) vêm muitos ao sul, pra Santa Catarina, Rio Grande do Sul. (Entrevistado EQ3, 2015).

Desta forma, percebe-se que a vinda ao Brasil e, especialmente, à Curitiba,

está relacionada a questões de oportunidades vislumbradas frente ao conceito desta

como a “melhor cidade do país”, segundo levantamento em 2015 da Agência Austin

Ratings e pela Revista IstoÉ61; e do Sul, como a região mais desenvolvida

nacionalmente, cuja afirmação, inclusive, é aceita em uma das falas: “Se você

61 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/curitiba-ganha-premio-de-melhor-cidade-do-

brasil-7tadh2c7xzcejht1n5aku5s5w

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pensar em Curitiba, você pode pensar em qualquer cidade do mundo. Uma cidade

da França, do Quebec... não sei se você concorda comigo”. (Entrevistado E6, 2015).

No entanto, as últimas pesquisas sobre empregabilidade trazidas pelo

Observatório de Migrações da UnB afirmaram que as capitais do Sul e Sudeste

brasileiro, ao receber uma quantia elevada de imigrantes, demitiram mais do que

contrataram estrangeiros em 2015. Ainda assim, tais cidades continuam a receber

maior confiança dos haitianos do que outras.

Subcategoria: Ocupação atual e relação com os estudos

Nesta segunda subcategoria é possível visualizar a desvalorização da mão

de obra haitiana, mesmo nos casos de imigrantes que possuem qualificação.

Percebeu-se uma restrição dos entrevistados haitianos em comentar sobre seus

trabalhos e um foco mais ligado aos estudos, qualificações pessoais e sonhos de

vida no Brasil. É perceptível que os entrevistados depositem nos estudos a chance

de uma ascensão de vida não alcançada simplesmente pelo que tinham ou faziam

no Haiti, o que os faz nutrir algumas expectativas não simplesmente relacionadas ao

que estudaram.

A minha vida futura estou com muita vontade de fazer uma especialidade

em Direito Internacional, é isso. E depois eu estou com muita vontade de

voltar para o meu país, ficar e fazer minha vida lá. E estou aqui, na verdade,

gosto do Brasil, vim para o Brasil realizar o sonho de criança (...) no ano que

vem, quero fazer uma experiência no rádio, música e cinema e depois,

alguns anos, viver uma vida mais tranquila, né. (...) porque música e cinema

são as minhas paixões, entendeu? (Entrevistado E7, 2015).

Este, que é técnico em radicalismo, deposita sua confiança se comunicando

para um grande público, por meio da música:

Mas a gente ainda está batendo, procurando, porque pra fazer música aqui a gente precisa ter um empresário e a gente ainda não tem um empresário. Estamos procurando, mas ainda não conseguimos. Sabe, não vai ser fácil. (Entrevistado E2, 2015).

Outro entrevistado, sem ter uma formação universitária, aproveita sua

facilidade com a internet e a amplitude comunicacional por meio dos idiomas que

fala para entrar no ramo de negócios digitais:

Essas fotos são apenas para negócio digital porque no Instagram você atinge mais gente do que no Facebook. Tem foto que eu coloco no

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Instagram e tem 80 pessoas que curtem. No Facebook, pode ser 30, 20. Eu faço divulgação (...). Vender e filiação de produto. Se você tem um Mac, esse Mac tem um código que é seu. Se você vender esse produto, vai ganhar uma comissão. (Entrevistado E9, 2015).

Outro, no entanto, cria novos desejos profissionais a partir de sua atuação

como liderança haitiana em Curitiba, como é o caso do Entrevistado EQ4, que cursa

atualmente Fisioterapia e trabalha como cuidador de idoso, ao mesmo tempo em

que planeja cursar Relações Internacionais para continuar trabalhando com a

temática migratória, agora profissionalmente. Outro entrevistado também se

interessou pelas Relações Internacionais e atualmente faz o curso após viver a

experiência migratória, mas credita à ânsia pelo saber o principal motivo para

continuar os estudos, agora em outra área:

Para mim é diferente porque eu gosto de mais coisas, eu gosto de aprender, entendeu? Até que se eu estou conversando com uma pessoa eu tenho que aprender com você, daí não é pra ficar batendo papo de graça, eu gosto de aprender. Cada dia para mim eu tenho que aprender uma coisa nova. (Entrevistado E3, 2015).

Essas falas demonstram uma capacidade de recriar possibilidades a partir

de uma identidade em diáspora, que sendo multifacetada, composta e polifônica

(ELHAJJI, 2011), tem a necessidade e a capacidade de se mover em diversas

direções a partir de algo que é intrínseco a si mesmo, mas que também se forma

socialmente e culturalmente por sua condição dialógica (BARBALHO, 2011).

É perceptível que a condição transnacional dos haitianos não só modifica a

si mesmos, como também o ambiente em que estão inseridos, a partir da

necessidade de sobreviver e se situar no espaço por sua ação pelo trabalho e da

formação intelectual e, por isso, este trabalho define o migrante não em sua simples

adaptação ou pela ideia do melting pot62, mas por uma aculturação que o faz ser “o

estrangeiro que não cabe na sociabilidade básica da modernidade63” (MARTÍN-

BARBERO, 2004, p.25) ou mesmo no âmbito da lógica de Milton Santos (2012),

quando o geógrafo afirma que a relação entre o homem e o território “manifesta-se

dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova, que interferem

reciprocamente mudando-se paralelamente territorialidade e cultura, mudando o

homem”. (p.83).

62 Caldeirão de raças (tradução livre).

63 Tradução livre

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E essas formas de mudança também são percebidas pelos haitianos, às

vezes sob o discurso da dificuldade: “(...) o que eu achava que era totalmente

diferente, porque eu pensava que quando eu chegasse aqui no Brasil ia trabalhar e

a vida ia se tornar bem fácil pra mim, mas eu passei algumas dificuldades”.

(Entrevistado E3, 2015).

(...) o Brasil ofereceu oportunidade para vir para cá, mas eu vim para estudar e trabalhar por pouco tempo, mas quando eu cheguei a realidade é muito diferente do que eu pensava. Eu tive que trabalhar pra ter todas as coisas que a gente precisa e aí é bem difícil para eu estudar e trabalhar. (Entrevistado E8, 2015).

Quanto à perspectiva diaspórica ressaltada na identidade haitiana, em

alguns casos, quando a conversa se encaminhou para perspectivas futuras, não há

um consenso entre os entrevistados se voltariam para o Haiti ou ficariam no Brasil e

nem ao certo onde ficarão: “E depois eu estou com muita vontade de voltar para o

meu país, ficar e fazer minha vida lá”. (Entrevistado E7, 2015). Este diz: “Para o

Haiti, só para passear. Agora se eu vou sair do Brasil para ir para outro país, agora

eu não sei te dizer. Mas eu estou aqui e vou analisar como vou fazer isso”.

(Entrevistado E9, 2015). E este outro: “Agora, se eu voltar para o Haiti parece outra

vida para mim. Deixa assim, cara”. (Entrevistado E6, 2015).

Embora a análise seja temática e não léxica, é possível inferir que os

momentos nos quais essa reflexão foi realizada junto aos haitianos, houve respostas

breves, sem muitos alongamentos que explicassem sua condição futura. Ao

reconhecer o nível de incerteza das respostas, também é possível perceber o

componente da “diferença” a qual cita Hall (2013), ao comparar nativos que nunca

saíram de suas terras a outros, que emigraram, como os Góis, judeus-americanos,

por exemplo. Esta característica hifenizada (LESSER, 2001) das identidades

também alcança a dimensão dos haitianos que começam a reconhecer o Haiti não

mais como sua terra, como afirma o Entrevistado E6.

d) Organizações de apoio

As organizações de apoio aos imigrantes são aqui observadas,

primeiramente, a partir da visão que elas têm sobre si mesmas e sobre os haitianos

a quem apoiam; também são observados, no interior desta categoria, os processos

de comunicação que envolvem as instituições com os haitianos. Da mesma forma, é

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fundamental analisar a relação das práticas comunicativas realizadas entre os

imigrantes e as organizações, pois pressupõe-se, nesta dissertação, que tais

práticas são fundamentais para a construção da identidade haitiana desses

imigrantes em Curitiba.

A primeira relação de importância apresentada pelas organizações junto aos

haitianos está relacionada à chegada destes ao Brasil. Tendo pouco contato com a

cultura brasileira e desconhecendo o território, os haitianos recém-chegados não se

mantêm apenas à mercê de seus vínculos pessoais – outros haitianos já emigrados

– mas buscam nas organizações uma fonte de conhecimento do novo território,

especialmente em busca de condições mínimas para sua estada, como

documentação necessária, moradia, idioma e trabalho.

São relações interpessoais e também os órgãos públicos e instituições que encaminham esses migrantes (...). Então, por exemplo, a Polícia Federal encaminha, os consulados, as universidades, vereadores, deputados estaduais, acabam encaminhando os imigrantes para cá*. (Entrevistado EQ3, 2015).

Acho que eu não posso dizer que existe uma fonte de informação estabelecida para os migrantes chegar até nós (...), mas até agora eu não sei como eles acharam a primeira informação. São fontes de informação para os novos. Pode ser que os primeiros que chegaram aqui acharam essas informações, desde a sua chegada ao Acre. Dependendo da cidade de destino desse imigrante, se esse imigrante vai para Curitiba, há um centro de atendimento (...). Uma fonte de informação pode ser Acre, outra fonte de informação pode ser São Paulo (...). Então é sempre o lugar que acolhe antes que é fonte de informação, mas não sei se os coiotes também têm informações dos centros, pode ser que sim, pode ser que não. Sabemos que eles são pessoas informadas, que talvez busquem informações para fazer esse trabalho de encaminhamento. (Entrevistado EQ1, 2015).

Então, no início quando não existia essa rede (...) era muito do curso especificamente via Casla e o boca a boca e o que era interessante que a gente começou a perceber no decorrer do tempo é que quando eles chegavam eles preenchiam uma ficha de inscrição como nivelamento pra gente saber pra que turma eles iriam e uma das perguntas era: “Quanto tempo você está no Brasil?”. E a gente começou a perceber que era um pouco isso, boca a boca, porque ao mesmo tempo chegava uma pessoa que estava há um ano, seis meses ou até mais, a gente começou a ver muitas pessoas que chegaram ao Brasil há uma semana, três dias e teve vários casos que chegaram, inclusive, há um dia ou no mesmo dia e eles estavam ali fazendo o curso (...). Nem tinha dado tempo ainda dele ir até alguma agência do trabalhador ou, enfim, dessas coisas primeiras, da Polícia Federal, desse movimento primeiro mesmo, muitas vezes eles estavam já ali por uma rede de conhecidos que já levavam eles para o curso, né. Quando a gente via que ele já estava há uma semana, três dias, há dois dias eles já estavam no sábado ali pleiteando uma ficha e isso se traduz um pouco, talvez, nessas informações da cidade, que a gente percebia que eles tinham conhecimento muito grande, na grande maioria, sobre questões relativas ao trabalho. Então muitos sabiam, sim, onde tirar

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carteira de trabalho, já tinham feito isso pela agência trabalhadora, a grande maioria já tinha passado por lá, da Casla muitos conheciam, da Pastoral do Migrante, enfim, mas ao mesmo tempo pouquíssimo conhecimento da cidade em termos culturais. (Entrevistado EQ2, 2015).

Essa ideia de confiabilidade em organizações que atuam ajudando

migrantes externos faz coro à inserção desta categoria no trabalho, especialmente

no que se refere à compreensão das formas comunicativas que os haitianos têm em

Curitiba e que perpassam pela presença das organizações como referências de

apoio. Trata-se de relações humanas nem sempre midiatizadas, mas que acabam

por contribuir igualmente na construção de suas identidades.

Subcategoria: Formas de comunicação

Quanto às subcategorias, a ser: “formas de comunicação; “atividades

cotidianas”; e eventos/atividades especiais”, a primeira delas, “formas de

comunicação” realizadas entre organizações e imigrantes, é analisada a partir da

pergunta realizada aos representantes das organizações, que buscava saber quais

as formas de comunicação que a respectiva organização estabelecia com os

migrantes. Esta questão não foi apresentada nas entrevistas aos haitianos e, por

isso, o olhar sobre este aspecto neste trabalho é exclusivamente o olhar das

organizações de apoio entrevistadas embora seja possível reconhecer algumas

delas pelo que está implícito nas falas.

Duas das organizações, Casla e Pastoral do Migrante, que atuam como

postos de atendimento às necessidades dos migrantes, afirmaram ter como primeira

forma de comunicação o contato pessoal que mantém com os haitianos quando

estes buscam seus serviços em suas sedes. Por exemplo: “A primeira forma de

comunicação que temos com os migrantes é verbal. Eles têm que chegar até nós e

nós passamos informações (...)” (Entrevistado EQ1, 2015). Esta outra fala mostra a

realização de um trabalho mais específico: “Eles vêm, num primeiro momento,

porque nós trabalhamos com várias frentes, mas o principal em relação aos

migrantes e refugiados é a assessoria jurídica gratuita” (Entrevista EQ3, 2015)

No entanto, as mesmas instituições afirmaram também ultrapassar a

comunicação interpessoal, avançando para o uso de tecnologias de informação e

comunicação devido à necessidade de aprimorar essa questão:

(...)através do jornal, da rádio, televisão, nos comunicamos também. Mas não sei se eles escutam rádio, se têm um amor para a televisão ou talvez o

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canal que transmite essas informações (...). Estamos vendo a parte da comunicação, do Whatsapp – mais rápido e mais fácil para eles – já tínhamos no Facebook (...) onde nós divulgamos muitas coisas, porque sabemos que eles buscam informações via Facebook e o Facebook é um mundo que se abre para todos. Acho que nós estamos vendo nos últimos anos que é preocupação para saber onde o migrante busca a informação para a gente poder estar nesse lugar e divulgar a informação para ele. Como já falei antes, eu acho que eles estão mais no Whatsapp. Será que é somente isso? Precisamos saber para poder divulgar mais. (Entrevistado EQ1, 2015).

Essa busca pelas tecnologias midiáticas está relacionada à preocupação de

manter um contato mais ativo com os migrantes, fato que é impossível de ser

mantido apenas com a comunicação interpessoal ou mesmo pela mídia tradicional,

como relatado acima. A busca por esse contato faz parte do que Scherer-Warren

(1998) chama de “redes de comunidade virtuais identitárias”, cujo processo de

construção identitária é impulsionado por estas formas de vínculos através de um

sentimento coletivo, de pertencimento e reconhecimento, pois existe uma relação

pessoal e um compromisso mútuo que faz com que tais formas comunicativas sejam

necessárias para que haja continuidade nos trabalhos. Ainda em relação a essa

necessidade, outra fala de pessoa ligada às organizações de apoio chama a

atenção pelos desafios travados frente a esse tema:

Hoje em dia a gente já chegou em alguns caminhos porque no começo realmente isso foi muito difícil. Os e-mails eles não respondiam, a gente nem sabia se eles abriam, porque na ficha tinha e-mail, telefone, enfim (...). E-mail era catástrofe. Aí celular muitos caiam em caixa postal, quais os horários de trabalho, às vezes a gente conseguia deixar recado com alguma pessoa e, hoje em dia, posso dizer que com as pessoas que melhor consigo me comunicar é, ou por Whatsapp, porque daí alguns deles têm (...), e pelo Facebook, no sentido que a gente tem uma página do projeto no Facebook (...). Então eu sei que a grande maioria dos nossos alunos estão na página porque a gente posta as fotos deles, dos eventos culturais, a gente divulga as pessoas do projeto. Ali a gente sabe que eles olham, eles respondem por ali e pelo Facebook mesmo. Hoje em dia, por muitos terem curtido a página a gente acaba conseguindo falar com eles por mensagem, é até meio hilário, mas é o jeito que mais funciona hoje em dia quando a gente precisa falar. (Entrevistado EQ2, 2015).

Há também uma relação entre as tecnologias e a comunicação interpessoal

em situações onde não há uma estrutura organizacional formal, como no caso da

Associação dos Haitianos, realizada pelos próprios haitianos que estão em Curitiba:

“(...) a gente tem o telefone deles, são amigos no Face e quando eles precisam,

porque tem bastante que eu não conheço, um passa o telefone para o outro quando

eles precisam para ligar e espalha”. (Entrevistado EQ4, 2015). Ou neste caso, em

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que o entrevistado mostra que existe uma busca por feedback através de

questionários:

Sempre no final do ano a gente faz um questionário de satisfação do que eles mais gostaram, menos gostaram, material, enfim... e pra gente é muito claro, a grande maioria, 100%, sempre fala muito dessas atividades culturais que a gente promove. São das mais variadas possíveis: até ir para o museu, a gente foi à orquestra, assistimos exposição, shows, esses eventos fora que a gente organiza e esses são os que eles mais comentam. Eu digo que eles comentam porque eles não falam muito sobre a aula. Então acho que são duas frentes bem grandes que chegam pra gente: uma são comentários bem positivos destas saídas, com as fotos, extraclasses, digamos, de coisas que a gente promove e outra muito no sentido de pedir vaga que, hoje em dia, para os haitianos, a gente tem nove turmas, com vinte alunos em cada. (Entrevistado EQ2, 2015).

No entanto, especificamente na situação do entrevistado EQ2 há uma

possibilidade diferente de contato, visto que seu “apoio” está mais ligado à educação

escolar pelo ensino de línguas do PBMIH – o que presume um contato mais corrente

– do que um serviço esporádico, como é percebido pela maioria das outras

organizações.

É importante notar que, quando se perguntou sobre as formas de

comunicação, as respostas foram aquelas citadas acima, o que demonstra um

apreço pelas tecnologias mais populares, como o Whatsapp e o Facebook, e a

preocupação que as organizações têm em se utilizaram dessas ferramentas para

manter um contato mais próximo aos haitianos. Por outro lado, não foram citados

com ênfase os diversos eventos realizados pelas organizações como práticas

comunicativas (visto que nessa pesquisa consideramos os eventos como práticas

comunicativas e em alguns casos até midiatizados, como será refletido na

inferência/reinterpretação). Frente a esse panorama, buscou-se construir uma nova

subcategoria ligada aos “eventos/atividades especiais”, que será trabalhada logo

mais.

Subcategoria: “Atividades cotidianas”

A análise desta subcategoria, próxima a subcategoria anterior, tornou

possível perceber a comunicação interpessoal de modo mais evidente entre

organizações e haitianos. Ao mesmo tempo, por meio dela, percebe-se que há uma

busca pela construção identitária realizada por intermédio de comunidades de

sentimentos, como afirma Sousa Santos (2002), que influem em relações de

reconhecimento desses haitianos pelas organizações. No entanto, tal relação

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comunitária pode ser percebida especialmente onde existe, nas relações entre

migrantes e organizações, o componente do aprendizado, que neste caso, acaba

por evidenciar uma troca de saberes entre brasileiros e haitianos.

(...) a sala de aula acaba sendo um espaço terapêutico, nesse sentido, porque eles confiam nos professores que estão ali, porque estão há bastante tempo, porque sabem que estão fazendo alguma coisa por eles e eles veem de alguma forma que estão ajudando, que o professor acaba sendo essa ponte com o mundo, com a cidade, de levar aos lugares, de dar dicas (...). Então pra eles isso é muito positivo, diferente do que acontece em outras instituições. Surge em sala, que é sempre um exemplo clássico: surge em sala questões trabalhistas. A gente não vai resolver aquilo. Não, não que nos compete, mas a gente vai encaminhar ele para o pessoal do Direito do nosso programa (...). A gente vai encaminhar. Então, sala de aula, acho que é muito esse espaço de desabafo, (de mostrar) o preconceito. (Entrevistado EQ2, 2015).

Quando a gente vai tocar uma música brasileira, agora no intervalo têm vários grupos que já relataram que deixam eles mexerem no computador: “passa uma música do Haiti, então”. Pegar também esses artistas e incorporar. Enfim, valorizar um pouco essa história também do país (deles). (Entrevistado EQ2, 2015).

Se é perceptível por parte das organizações ligadas à educação esse

componente, as outras, mais ligadas à assistência humanitária, encontram essa

vinculação comunitária afetiva apenas nas atividades especiais. Não houve registro

de conteúdo que demarcasse contrariedade a essa afirmação, embora os haitianos

entrevistados reconhecessem as organizações de apoio, de modo geral, como

fundamentais na construção da identidade haitiana em Curitiba e embora haja, por

parte de todas as organizações, uma busca por torná-los próximos aos migrantes:

“Nós damos um apoio para ajudar e depois o migrante tem que caminhar sozinho. E,

por isso, acho que criar um ambiente onde tem fraternidade e união dos povos é

legal e isso é um dos objetivos (...)” (Entrevistado EQ1, 2015). Da parte dos

haitianos, há um reconhecimento pelos esforços das organizações e ponderem

sobre algumas das atividades realizadas por elas:

Eles fazem uma intervenção pra ajudar, pra deixar eles saberem que preconceito não vale nada, na verdade, todo mundo é igual. Acho que a Declaração Universal dos Direitos Humanos fala sobre isso: todo mundo nasce igual e por isso que no mundo inteiro existem associações, organizações que nos defendem. É bem bacana e eu acho que sem eles a gente não pode se organizar – fazer uma banda, organização – entendeu? Pra mim eles contribuem muito. (Entrevistado E8, 2015).

(...) têm algumas organizações aqui no Brasil que só se aproveitam dos

haitianos, tipo: “Ah, eu vou ajudar dez haitianos, vou pedir dinheiro no nome

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deles”. Daí pega o dinheiro e passa coisas ruins (...). Mas têm algumas

dessas organizações também que ajuda bastante. Eu não posso dizer que

foi uma organização, mas quando cheguei ao Brasil a minha igreja me

ajudava bastante (...) Nasci dentro da igreja, meus pais são membros da

igreja desde 82, daí eu sou bem conhecido da igreja. (Entrevistado E3,

2015).

Outro fator que chama a atenção no cotidiano das organizações de apoio é a

possibilidade de realizar seus objetivos de trabalho em rede. Algumas delas

apresentam distinções frente a outras neste sentido. Se a maioria consegue

contribuir na questão da documentação, algumas focam no assistencialismo, na

empregabilidade, outras no aprendizado do idioma, ou na garantia de direitos e até

mesmo no apoio espiritual, como é o caso de diversas religiões que têm envolvido

inúmeros haitianos aqui no Brasil. Essa potencialidade de objetivos integrados entre

as organizações é tratada por uma das entrevistadas:

(...) a gente sempre trabalha junto e quando eles (outras organizações) precisam da Associação, mandam mensagens e pedem ajuda e quando nós precisamos também, pedimos a ajuda deles (...). E não só com direitos humanos, mas com a saúde também. (Entrevistado EQ4, 2015).

Outras falas já explicitadas comprovam que existe um relacionamento entre

as organizações de apoio para um melhor atendimento aos migrantes. Além desse

aporte entre elas, outras organizações não abarcadas pela pesquisa – como os

órgãos governamentais, por exemplo, especialmente por meio da Secretaria

Municipal de Direitos Humanos – contribuem para a formação da rede de apoio aos

imigrantes, que juntas, inclusive, fizeram uma pressão sobre o Governo do Estado

do Paraná para formular o primeiro plano de políticas públicas pelos direitos dos

migrantes, refugiados e apátridas, que foi efetivado em 2014, como salientado no

capítulo do Panorama Sócio-Histórico das Migrações. Tal relacionamento entre as

organizações estudadas compõe o que Sônia Aguiar (2006) compreende como

redes sociais, sendo estas o impulso que indivíduos ou grupos realizam

coletivamente em torno de interesses coletivos que culminem em uma finalidade de

enfretamento, no caso, pelos direitos dos haitianos no novo território.

Sobre a defesa dos direitos dos migrantes frente a qualquer tipo de

discriminação, a fala a seguir é um exemplo: “Então, como princípio, nós temos a

solidariedade dos povos, o respeito às culturas, o respeito à identidade, nenhuma

cultura é superior à outra e temos essa visão de que todos somos irmãos”.

(Entrevistado EQ3, 2015).

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No entanto, é importante trazer novamente o resultado da observação

participante, a fim de não idealizar a atuação entre as organizações, que não é

perfeita na concretização das redes. Diferenças ideológicas e pessoais demarcam

as dificuldades do desenvolvimento dessas redes sociais, como salientado

anteriormente e ficou expresso nas entrevistas, especialmente em situações

adversas, como a realização de duas festas haitianas no mesmo dia: “E para fechar,

essa integração eu sempre quando pedi para fazer trabalho junto... não sei,

egoísmo... não sei. Porque a gente está fazendo o mesmo trabalho, não é um

trabalho pessoal (...)”. (Entrevistado EQ4, 2015).

Estava feio, não tem como organizar. 18 de maio (...). “Por que vai ter duas festas?” (...) Por quê? Estão fazendo o que? Estão transferindo a mesma coisa do Haiti: a divisão. Não tem como. Porque o japonês aqui, o alemão, todo o povo que está aqui no Brasil cresceu bastante? Olha a comunidade japonesa! Muito respeitada aqui no Brasil, por quê? Porque eles sabem como organizar. Conseguem fazer alguma coisa. Os haitianos, não. (Entrevistado E6, 2015).

Ainda que sejam perceptíveis determinadas diferenças entre as

organizações, o que é natural em um trabalho de coletividade e que envolve política

e formações socioculturais, a maioria das vozes se mostrou desatenta ao tema das

desavenças ou mesmo omissas a essa questão. O que é importante salientar nesse

último parágrafo da subcategoria corrente são os desafios do trabalho em rede,

mesmo através das diferenças já citadas entre as organizações, mas que são

fundamentais para a garantia de direitos dos migrantes.

Subcategoria: Eventos ou atividades especiais

A última subcategoria no âmbito da categoria “Organizações de Apoio”,

refere-se aos “eventos ou atividades especiais”, que são caracterizados como

momentos que fogem ao cotidiano das organizações, como festas, visitas, cursos

específicos, congressos, etc. Embora alguns eventos já tenham sido caracterizados

com ênfase na análise resultante da observação participante, pretende-se aqui

vinculá-los às considerações dos migrantes sobre o eixo comunicação-identidade,

considerando tais eventos como práticas comunicativas organizadas por meio de um

aparato institucional.

Uma das perguntas feitas nas entrevistas se referia à principal forma de se

manifestar o “ser haitiano”. A discussão, já feita na categoria “manifestações

culturais”, teve como principal resposta os eventos pátrios, que são costumeiramente

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organizados e midiatizados através do trabalho das organizações de apoio,

juntamente com os migrantes.

Um dos motivos para essa resposta não só está ligado à história de luta do

Haiti, mas também pelas possibilidades que os eventos oferecem para que os

brasileiros estejam mais próximos ao povo haitiano, com sua cultura e suas

tradições. Não é pretensão nesse momento voltar ao debate cultural, já feito em

categoria anterior, mas sim olhar determinadas atividades na perspectiva

interacional e que possibilita, inclusive, o fomento de comunidades de sentimentos

ao redor da valorização do migrante no Brasil. Tais interações podem servir como

uma circulação comunicacional, que pode gerar processos de midiatização, como

salienta Braga (2012). Além da circulação midiática fomentada pelas redes sociais

através dos registros dos celulares, um exemplo claro pode ser percebido pelo

entrevistado E3, cuja produção de um livro com sua vida estampada se deu pela

presença de jovens universitárias e do migrante em uma das festas realizadas pela

Pastoral do Migrante.

Por isso que quando eu achei as meninas da PUC para trabalhar sobre o livro eu me sentia muito bem, porque eu sozinho não podia fazer esse tipo de trabalho, até onde que ia chegar minha voz? Com elas, eu consegui mais ou menos sair no jornal Gazeta do Povo, contando a minha história e um monte de coisa e elas foram lá comigo na banda tirar algumas fotos, entrevistaram cada um dos músicos, elas vieram aqui no bairro assistiram partida do jogo, até que caí na RPC (Rede Paranaense de Comunicação). (Entrevistado E3, 2015).

Posteriormente, o livro permitiu que o haitiano participasse de outros eventos

e concedesse entrevistas para a mídia local. Neste sentido, há um claro processo de

midiatização, ao se considerar que o “produto mediático não é o ponto de partida do

fluxo, mas pode ser visto como um ponto de chegada, como consequência de uma

série de processos, de expectativas, de interesses (...)”. (BRAGA, 2012, p.41). Ou

seja, a participação do haitiano em um evento em si não é uma midiatização, mas se

torna parte do processo de midiatização quando passa a ser ponto de partida para a

circulação de um produto midiático futuro, que pode ser o livro e sua exposição na

mídia ou mesmo uma exposição fotográfica feita por entusiastas da causa migratória

a partir destes eventos.

Quanto à questão da visibilidade do Haiti para os brasileiros, as falas abaixo

argumentam:

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Porque eles (os brasileiros) acabam descobrindo algumas coisas que eles não sabiam que existiam porque eles só assistem as coisas ruins que existem e as organizações mostram outra imagem do Haiti; porque a maioria dos brasileiros só tem em mente o momento do terremoto. (Entrevistado E5, 2015).

(...) a nossa ideia é vender a nossa cultura, porque às vezes fico triste, porque têm alguns brasileiros que ficam perguntando se lá no Haiti tem hospital, tem internet. Daí quando você faz esse tipo de trabalho – festa para ver haitiano tocando música, tocando instrumento, tem haitiano que mais ou menos fala português, mestre de cerimonial, essas coisas – ajuda os brasileiros descobrirem a nossa cultura. (Entrevistado E3, 2015).

Além dos eventos já descritos, outros puderem ser aferidos com vistas ao

esforço das organizações em valorizar a identidade haitiana, como forma de

visibilidade e abertura cultural:

Alguns eventos que a gente promove, é justamente pra isso, né... como quando a gente promoveu o cinema haitiano lá na Cinemateca com debate (...) a gente promoveu um evento na Praça de Bolso do Ciclista no fim do ano onde a nossa ideia era justamente mostrar essa identidade, essa cultura, essas pessoas, para que as pessoas pudessem conhecer e então, aceitar. Porque o que a gente percebia, ou percebe, é que muitas das pessoas não entendem direito mesmo o que os haitianos estão fazendo aqui, o que aconteceu no Haiti ou mesmo a questão migratória no geral, não param para refletir sobre isso e julgam. E a partir do momento que elas conhecem, que esse evento foi um pouco nessa direção, a gente viu sim uma aceitação positiva das pessoas que estavam ali, que nunca... “ah, mas tem haitiano aqui?”. Porque eles são um pouco ainda invisíveis (...), Então, quando a gente foi lá no Guaíra pedir pra levar numa orquestra, enfim, também deles abrirem esse espaço, de fornecerem, a partir que a gente foi lá e explicou o contexto do projeto, explicou porque essas pessoas estão aqui, qual que era o objetivo, de poder fazer essa história diferente, pra que eles não ficassem em guetos, que eles pudessem pertencer a cidade, pra contribuir, pra não ter esse ódio em longo prazo. (Entrevistado EQ2, 2015).

Acho que cada vez que organizamos uma atividade assim onde oferecemos espaço para eles mostrar sua cultura, isso é um grande passo. Os valores culturais deles, porque chegando aqui o povo que acolhe não os conhece, mas através dessas atividades culturais dá para o povo conhecer alguma coisa deles. Assim, com essas atividades realizadas (...) eles estão se integrando, se inculturando e também estão, ao mesmo tempo, convidando o povo que acolhe a aceitar estes valores culturais. Aceitar esses valores culturais é também chamar o povo que acolhe a abrir o coração para uma melhor acolhida. Então seria uma aculturação. (Entrevistado EQ1, 2015).

Outra pergunta colocada relacionava-se à suficiência da atuação das

organizações de apoio junto aos haitianos. As falas anteriores representam a voz

mais forte, que reconhece as organizações tendo um papel importante para a

visibilidade haitiana em Curitiba, mas ao mesmo tempo há falas que não

consideraram suficiente o que vem sendo feito. No entanto, tal afirmação não diz

respeito somente à alçada das organizações, mas a diversos outros fatores, como a

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desorganização dos haitianos, o pouco costume dos brasileiros com esta nova

cultura e a necessidade de integração à sociedade por meio dos estudos, política e

cultura.

Não, não é suficiente, tem que continuar ainda (...) É por isso que eu falei pra você que não vai ser em quatro anos que estamos aqui que vai mudar tudo. Demora. Talvez vá chegar 20 anos, talvez vá chegar 10 anos, mas também vai ser os filhos dos haitianos que vão fazer a mudança, mas tudo isso faz parte. Eu espero que vocês, os brasileiros, vão ter um dia uma lembrança de nós, do povo que está. Nós somos imigrantes na verdade, porque todos os brasileiros têm descendência de africano, europeu, asiático e nós também, os haitianos têm descendência de africano e europeu porque nós fomos colonizados pela França e o Brasil foi colonizado por Portugal. Nós temos descendência da França, de sírios. Tem tudo, o haitiano tem de tudo. (Entrevistado E2, 2015).

Eu estou falando mais da organização haitiana mesmo. Por exemplo a Casla, está fazendo um trabalho que para mim é legal. Quando a gente tem um problema a gente vai lá direto pra ter um conselho, onde a gente pode ir, entendeu? Tem muita gente que não sabe, como iniciar um processo e a Casla pode ajudar. Caso contrário, a organização haitiana atrapalha muito. (Entrevistado E6, 2015).

Tem brasileiro que, quando eu cheguei aqui, veio me trazer roupa. Todas as roupas que eles trouxeram para mim, eu coloquei na garagem. Eu não usei. Se a Casla pode fazer mais? Os haitianos são muitos aqui, mas o que poderiam fazer para eles? Colocar eles em empresas, contratar quem não tem trabalho, mesmo salário que eles vão receber é muito pequeno. Só isso que pode ser um pouco suficiente. (Entrevistado E9, 2015).

Assim, nota-se que as organizações ainda funcionam como um

“organizador” da identidade haitiana no novo território, cuja construção identitária

tem como protagonistas os próprios haitianos. Essas considerações passam a ser, a

partir de agora, mais interpretativas – ou reinterpretativas, como afirma Thompson

(2011) – e possibilitam a resposta das questões e pressupostos dessa pesquisa. Por

conta dessa possibilidade, torna-se viável agora encerrar a análise das categorias e

partir para a última etapa da análise da HP.

*

Finalizando esta etapa, disponibilizamos uma tabela com os principais

resultados obtidos na fase da análise formal ou discursiva, concretizada pela análise

de conteúdo:

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TABELA 2 – Síntese da Análise de Conteúdo.

CATEGORIAS SUBCATEGORIAS SÍNTESE

Práticas comunicativas mediadas por tecnologias

Novas mídias

São ferramentas para a manutenção dos vínculos afetivos, que influenciam na decisão de migrar;

Lugar de visibilidade pessoal e étnica: comunicação cidadã em espaços transnacionais;

Uso cotidiano: reconhecimento identitário;

Uso do celular reforça a identidade imagética do haitiano e também como aprendizado social, seja por registros, seja pela participação em grupos nas redes sociais (fechamento étnico ameaçado no espaço digital por comunidades de sentimentos);

Atuação independe das organizações, especialmente pela força da internet.

Mídias tradicionais

Lugar de visibilidade pessoal e étnica: comunicação cidadã em espaços transnacionais;

Desejo pela visibilidade se contradiz frente à crítica sobre a televisão;

Violência como tema evidente e relação com criação de estereótipos, que afeta os haitianos.

Manifestações culturais

Datas comemorativas

Forte nacionalismo decorrente de fatores sócio-históricos;

Resguardo de culturas em espaços transnacionais: comunicação cidadã transnacional de uma identidade em trânsito;

Cultura hibridizada pelo novo território, mas necessária para dar visibilidade neste mesmo espaço que ainda não conhece o Haiti como deveria;

Espaço ao cosmopolitismo: organização transnacional através de redes de solidariedade e em busca de novas formas globais.

Música

Música como principal espaço de visibilidade;

Música como marca identitária haitiana;

A música é sonhada a partir de um modus operandi característico, mas em si se constitui como uma manifestação cultural que luta contra a uniformidade da música internacional anglo-americana: cultura não como civilização, mas como carnaval.

Preconceito

Idioma como maior dificuldade de comunicação dos haitianos no Brasil, que pode culminar em ações de preconceito;

Racismo pela cor muito citado;

“Ladrões de emprego”;

Questionamento frente ao fechamento étnico ou “guetização”, como resultado do preconceito: contrário ao multicultural e negador de identidades, pois não pertence ao lugar de origem, nem ao que está atualmente;

O olhar do brasileiro varia conforme o lugar em que olha: organizações busca o “ser migrante” mais completo, em toda sua “dignidade”.

Trabalho - Trabalho como categoria histórica-cultural e não

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apenas socioeconômica: figura do haitiano lutador, trabalhador, apropriada por eles mesmos.

Motivos da vinda Trabalho como motivo chave para a migração ao

Brasil (motivo socioeconômico);

Visão sobre Curitiba como cidade empregadora.

Ocupação atual e relação com os

estudos

Dificuldade de valorização da mão de obra haitiana, cuja esperança é depositada em novos projetos e estudos, referendando a potencialidade das identidades em diáspora por meio de sua condição dialógica. Tal relação não muda só o homem, mas também o ambiente em que ele está situado;

Não há consenso sobre o futuro: voltar ou não ao Haiti? Futuras identidades hifenizadas?

Organizações de Apoio

-

Importância dos vínculos entre organizações e haitianos, sendo aquelas, referência para a estruturação do migrante em Curitiba.

Organizações funcionam como “organizadoras” das identidades haitianas no novo território.

Formas de comunicação

A comunicação interpessoal ainda é a principal forma nas organizações assistenciais, ao passo que na de caráter educativo as novas tecnologias de comunicação são mais bem aproveitadas.

Atividades cotidianas

Ambiente de “comunidades de sentimentos”, influenciados pelo componente do aprendizado;

Trabalho em rede entre as organizações que não exclui, entretanto, diferenças ideológicas.

Eventos/Atividades especiais

Eventos não só como característica cultural, mas como característica interacional entre brasileiros e haitianos, especialmente na busca de visibilidade.

5.4 INTERPRETAÇÃO/REINTERPRETAÇÃO OU INFERÊNCIAS

Parte-se para a última parte da análise da HP, que correspondente à

interpretação/reinterpretação, cuja contribuição à pesquisa se dá no âmbito da

interpretação das formas simbólicas e seu aspecto “transcendente”, ou seja, o que

existe, mas precisa ser reinterpretado (THOMPSON, 2011). A reinterpretação existe,

pois Thompson afirma que as formas simbólicas também já foram interpretadas

anteriormente pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico, tendo o

pesquisador o papel de reinterpretá-lo. Ou seja, as entrevistas e a doxa já fazem

parte de uma interpretação daqueles que compõem o mundo, não são dados puros.

Do mesmo modo, consideramos nesta pesquisa as inferências obtidas por meio da

análise de conteúdo como parte dessa interpretação prévia, pois Bardin (1988) a

compreende como um momento da análise que corresponde à identificação do que

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só foi dito superficialmente pela análise das categorias a partir das condições de

produção.

Ao caracterizar este momento como de interpretação/reinterpretação/

inferências específicas do pesquisador, pretende-se responder às questões e ao

pressuposto de pesquisa, ao mesmo tempo em que seus objetivos serão

desvencilhados de expectativas para ganhar contornos concretos.

Inicia-se pelas duas questões da pesquisa. A primeira pergunta buscava

saber como são construídos os processos comunicativos dos imigrantes haitianos

residentes em Curitiba no âmbito da sociedade. A resposta a essa pergunta precisa

se dividir em duas partes: uma, que diz respeito aos processos que fazem os

haitianos se comunicarem individualmente ou em grupos de reconhecimento; e,

outra, sobre o que influi diretamente sobre os processos comunicativos que os

colocam em contato com a sociedade. A pergunta não se refere a uma descrição de

quais seriam as práticas comunicativas dos haitianos em Curitiba, como foi

respondido durante a análise de conteúdo e cuja descrição era um dos objetivos

específicos do trabalho. O que vale inferir aqui é a construção dos processos

comunicativos, que se concretizam por meio de práticas.

Primeiramente, há que se refletir que, por meio da análise das entrevistas,

demonstrou-se que a condição migratória carrega consigo uma peculiaridade

comunicacional entre emigrados e pretendentes à imigração. A maioria dos sujeitos

estudados neste trabalho veio para Curitiba a partir de referências afetivas e, já em

novo território, desempenhou o mesmo papel interacional e afetivo com relação a

outros possíveis imigrantes que ainda estão/estavam no Haiti.

Assim, percebe-se uma circularidade comunicacional – e não só

informacional, pois há trocas de saberes – mediadas, por sua vez, por dispositivos

tecnológicos, deixando claro que as novas migrações têm na sociedade midiatizada,

como afirma Martín-Barbero (2004; 2009; 2015) ao referenciar a sociedade atual,

este importante componente que fomenta o movimento transnacional de pessoas.

Aprofundando um pouco mais o que diz o autor, com a revolução tecnológica não

são modificadas as atividades da humanidade, mas emerge uma nova forma de

relação entre processos simbólicos, formas de produção de bens e serviços.

Além dessa influência interacional no processo migratório, outros processos

comunicativos acontecem já no novo território entre os próprios haitianos, mas tais

processos não apresentaram diferenças daqueles realizados por alguém que não

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migrou. O uso do Whatsapp para conversar com amigos, do Google para fazer

pesquisas e do Facebook para contato e divulgação remetem a um processo

comunicativo realizado por meio de tecnologias de comunicação, mas que não

dizem respeito à característica exclusiva do ser diaspórico, como percebido no

exemplo anterior. O que fazem os haitianos nesse sentido é o que fazemos nós,

brasileiros, no cotidiano. No entanto, o processo estimula a interação com a

sociedade no sentido de permitir que estejam informados e terem a possibilidade de

informar aqueles que pouco conhecem seu país.

Percebe-se, contudo, que a melhor forma da sociedade curitibana interagir

com a comunidade haitiana, e vice-versa, ainda passa pela mediação das

organizações. Os processos comunicativos construídos entre os haitianos e a

sociedade, mas mediados pelas organizações de apoio, ganham um componente de

visibilidade que os migrantes ainda não conseguiram encontrar mesmo presentes

nas redes sociais virtuais, segundo eles próprios afirmaram. Este é um ponto

nevrálgico e responde com clareza o pressuposto da pesquisa de que as

organizações de apoio aos imigrantes haitianos em Curitiba constituem-se como as

principais fomentadoras dos processos comunicativos dos imigrantes haitianos com

a sociedade. A afirmação do pressuposto pode ser referendada pelos próprios

migrantes ao defenderem a ideia de que as organizações (de brasileiros ou dos

próprios) desempenham um papel fundamental na construção de uma identidade

positiva dos haitianos no Brasil. Reinterpretando tais falas, nota-se que esse

reconhecimento das organizações de apoio só é alcançado por conta de um esforço

de ambas as partes em interagirem, primeiro entre si, para depois alcançarem o

resto da sociedade. Uma das falas de entrevistado que atua em uma organização,

que não foi trazida na análise de conteúdo, torna-se viável a este momento

interpretativo:

O que a gente prioriza muito, acho que isso é bem claro para o grupo como um todo, é a valorização da cultura deles. Essa integração nunca é vista como uma imposição – uma assimilação – da cultura brasileira, mas que a gente sempre tenta mostrar que isso é um movimento mútuo, que nós temos que estar abertos, mas que vocês haitianos também precisam estar abertos a essa nova cultura, novos códigos culturais e que a construção é justamente isso. (Entrevistado EQ2, 2015).

Embora não tenham sido explorados com tantos detalhes quanto as

atividades realizadas pelas organizações de apoio, outros campos sociais dos

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haitianos, como o do trabalho, dos estudos, da religiosidade e geográfico (o espaço

do bairro, por exemplo) também possibilitam um contato cotidiano dos haitianos com

a sociedade local. No entanto, é só por meio de um tipo de organização que é

possível a formação de comunidades de sentimentos (SOUSA SANTOS, 2002) que

contribuem para a construção de repertórios de resistência (HALL, 2013) em uma

sociedade composta por muitas vozes, ou o que Braga (2006) chama de “redes

difusas”. Essa necessidade pela organização compõe o marco teórico da pesquisa,

especialmente vista pela contribuição de Sousa Santos e sua ideia de

cosmopolitismo, como forma real da formação de uma globalização contra-

hegemônica, e que permita o migrante estender sua identidade para além da

capacidade de mão de obra para se situar como ser cultural. Neste sentido, e pela

ausência de uma recordação dos entrevistados sobre outros campos sociais em

seus processos comunicativos, afirmamos que o pressuposto da pesquisa se

confirma.

Quanto às organizações, os processos comunicativos com a sociedade

foram construídos especialmente por meio dos eventos/atividades especiais por elas

realizados. Neste sentido, a Pastoral do Migrante e a Associação dos Haitianos com

suas festas pátrias são destaque, pois conseguiram envolver o público a partir de

características marcantes do povo haitiano, como já expresso na observação

participante (interpretação da doxa). Ao mesmo tempo, atividades de outras

organizações, como as da Casla e a do PBMIH, embora tenham conquistado menos

o público externo, conseguiram cultivar a ideia comunitária de sentimentos junto à

comunidade haitiana. Assim, as práticas comunicativas fomentadas pelas

organizações, mesmo desempenhando papeis diferentes, contribuem na construção

do ser cultural para além do estereótipo de migrantes como mão de obra barata e da

ideia de pobreza haitiana, representações construídas costumeiramente pelas

mídias tradicionais, como assinalado pelos haitianos.

A segunda questão da pesquisa busca saber: As práticas comunicativas dos

haitianos em Curitiba constituem-se como práticas midiatizadas? Visto que este

trabalho parte de um olhar sobre a comunicação como interação (FRANÇA, 2001), a

lógica do deslocamento dos meios para as mediações continua e, com isso,

considerar práticas comunicativas midiatizadas não se refere apenas ao uso de

tecnologias de informação e comunicação ou das mídias tradicionais, mas a maneira

de como esses meios interferem nessas mediações.

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A pesquisa considera a sociedade atual estruturada pelos meios de

comunicação, como afirma Martín-Barbero (2009) partindo da análise das

mediações (comunicativas da cultura) pela certeza de que as interações

comunicativas do homem atual estão cada vez mais integradas às novas formas de

sociabilidade promovidas pela ascensão de novas mídias.

Sendo assim, “tudo” poderia ser midiatização se considerarmos que vivemos

em uma sociedade midiatizada. No entanto, a ideia deste trabalho buscou focalizar

os processos de midiatização por meio do que Braga (2006; 2012) considera como

“processo interacional de referência”, ou seja, a circulação/interação que, de alguma

forma, está em contato, são influenciados e, consequentemente, modificados pela

ação das mídias.

Um dos exemplos a ser analisado é o já exposto caso do haitiano que, a

partir de um evento organizado pelas organizações de apoio, se inseriu em um

projeto de estudantes, protagonizou um livro e, posteriormente, chegou a dar

entrevista para a televisão. O evento, em si, não é midiatizado em sua natureza, mas

serviu como mediação para uma posterior prática midiatizada de um migrante

haitiano. Aqui, a circulação comunicacional aconteceu e o produto midiatizado não

se encontrava no início do processo, mas a interação foi ganhando formas

midiatizadas em seu decorrer, tornando a ação comunicativa daquele haitiano,

midiatizada. Ressaltamos: não é a participação protagonista do haitiano no evento

que é midiatizada a priori, mas o que decorre dela por meio de sua inserção em

mídias, como o livro e a televisão, transformam a ação comunicativa desse haitiano

em algo midiatizado.

Neste sentido, os eventos ainda servem como exemplo se considerarmos o

motivo pelo qual chamaram tanto a atenção no início deste trabalho, ainda na fase

de observação: o intenso uso de celulares pelos haitianos quando seus pares

subiam aos palcos. Neste sentido, a midiatização já se encontra no início do

processo, pois as apresentações, assim como a maneira dos demais participantes

se portarem, com danças e poses para fotos com a bandeira nacional de seu país,

indica que o registro do momento nos celulares e, costumeiramente, compartilhado

entre amigos modifica a forma dos haitianos se portarem e de se relacionarem com

o evento. Novamente, vale ressaltar: não é apenas o uso do celular que indica a

midiatização, mas o quê o uso dos celulares faz com o comportamento e a própria

natureza do evento. A interação continua sendo o objeto de estudo do trabalho, mas

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reconhecemos a incidência decisiva que o aparato midiático tem sobre essa

interação.

Outro exemplo, ainda arguindo a favor das práticas midiatizadas, são os

próprios processos migratórios, como descritos anteriormente. A decisão de migrar e

a escolha de vir para o Brasil são influenciadas pela presença das mídias. O intenso

uso das redes sociais para aproximar haitianos que estão no Brasil e haitianos que

ainda residem em sua terra natal não fica restrito apenas à natureza das redes

enquanto ferramentas instrumentais para a manutenção de vínculos afetivos, mas o

uso intenso dessas redes sociais virtuais acaba por modificar a forma de “ser

migrante” e, inclusive, contribui na decisão de migrar, como afirmou o entrevistado

E2, quando disse ter ganho a permissão de sua família para vir ao Brasil apenas

porque seu primo, que já estava no país, conversou com seus pais pela Internet.

Se a midiatização atinge mais os haitianos nos processos comunicativos

identificados, é possível também perceber casos nos quais as organizações de

apoio também são atingidas. Uma das entrevistadas qualificadas comenta sobre um

documentário que foi feito com imigrantes onde eles respondiam algumas perguntas:

A gente fez um curta com os alunos pensando justamente nisso, foi nesse contexto que a gente quis fazer. “Quais são seus maiores medos (...). “Qual seu maior sonho?”, “seu maior medo?”, enfim, justamente pra tentar se aproximar. (Entrevistado EQ2, 2015).

A partir dessas perguntas montou-se um pequeno filme divulgado nas redes

sociais virtuais no fim de 2014, que hoje (início de 2016) conta com quase mil

visualizações no canal Youtube. A produção do vídeo poderia ser considerada uma

midiatização apenas por ser um vídeo documentário, dentro da perspectiva da

sociedade dos meios, mas considerando a interação como ponto-chave, o vídeo

documentário torna todo o processo de aprendizado e reflexões em sala de aula da

organização um processo de midiatização, que tem nessa produção o meio do

processo, visto que o vídeo foi divulgado em redes sociais virtuais e gerou uma série

de interações, agora com outros públicos. Ou seja, o espaço da sala de aula, a

priori, não é midiatizado, mas a produção de um documentário com questões

trabalhadas em sala o transformam em um espaço de midiatização, que se dá no

meio do processo de interação entre professores/migrantes e a sociedade.

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FIGURA 4 – DIVULGAÇÃO DO FILME “SOMOS TODOS MIGRANTES”, NO YOUTUBE.

Contudo, é preciso afirmar que nem todos os processos comunicativos

analisados podem ser expressos como midiatizações. As interações interpessoais

identificadas nos atendimentos e o uso do Whatsapp para manter um

relacionamento entre haitianos e as organizações não tornam tais processos

comunicativos midiatizados simplesmente pelo uso de tecnologias de comunicação,

pois não apresentam as mídias como processo interacional de referência das

interações estabelecidas e sim uma atribuição mais instrumental e que poderia ser

realizada sem tais mídias atualmente. Além desses exemplos impulsionados pelas

organizações, as inúmeras formas comunicativas que os haitianos mantêm entre si

no novo território não podem ser objetivadas como processos de midiatização, pois

não foram aprofundadas pelos haitianos em suas falas, tratando-se, nestes casos,

de usos particulares. Como dito anteriormente, não é só a presença da mídia em si

que nos faz considerar algo midiatizado, mas como estabelece – e se estabelece –

novas formas de interação. De todo modo não há como negar que o uso das mídias

pelos haitianos tenha um potencial considerável em tornar os processos

midiatizados pela característica de valorização da imagem pessoal que os haitianos

têm, incidindo, talvez, na maneira de se portarem em seus grupos afetivos.

Em relação às práticas comunicativas cotidianas, perguntou-se aos

haitianos, nas entrevistas, sobre as influências que os conteúdos midiáticos

(televisão, internet, rádio, etc.) tinham sobre suas conversas com amigos e

familiares, o que poderia tornar seu cotidiano comunicativo também midiatizado. No

entanto, alguns disseram se informar, mas não colocaram isso em conversações

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cotidianas, restringindo-se mais a temas afetivos. Outros, por exemplo, citaram o

tema da violência vista em programas policialescos para demonstrar medo diante da

insegurança brasileira, o que atinge seu modo de vida.

Enfim, é possível perceber que as práticas comunicativas dos haitianos

estão cada vez mais midiatizadas, especialmente quando se trata do uso das redes

sociais virtuais e por ocasião de atividades especiais, como os eventos pátrios ou

shows musicais. Neste sentido, ao responder esta questão de pesquisa, é possível

passar ao objetivo da pesquisa, que buscou analisar como os processos

comunicativos contribuem na construção da identidade dos imigrantes haitianos em

Curitiba.

Já identificado por meio de alguns pontos da análise de conteúdo, o objetivo

geral deste trabalho mescla, por meio das técnicas de coleta e de análise, o

conteúdo dos capítulos teóricos do trabalho, especialmente no que tange o papel da

comunicação, contribuindo com as discussões sobre identidade no cenário

transnacional da globalização.

Primeiramente, a pesquisa indica que a sociabilidade dos imigrantes passa,

necessariamente, por um reforço do uso de tecnologias de comunicação. No

entanto, essas novas formas de pertencimento manifestas por meio das novas

sociabilidades não substituem a comunidade original desses imigrantes, mesmo em

casos daqueles que afirmam não pretenderem voltar ao Haiti. Essa conclusão vai de

acordo com a ideia de que o ato migratório modifica as identidades, tornando-as

multifacetadas, ao mesmo tempo em que não perdem seu centro geográfico, que

não é só geográfico, mas cultural, afetivo e histórico, mesmo em casos nos quais a

identidade histórica aponta para um “destino de ser migrante”, como foi visto por

Handerson (2015), em seu olhar antropológico sobre o Haiti.

Na relação dos haitianos com as organizações, por exemplo, a identidade se

manifesta marcada por “repertórios de resistência” (HALL, 2013), como já expresso

na categoria das “manifestações culturais”: as músicas, as festas e a luta contra o

preconceito demarcam territórios e a disputa por reconhecimento. No entanto, a

busca por reconhecimento não se restringe apenas ao contato com as organizações

e nem sempre se dá apenas em níveis grupais, mas também individuais, como

afirma Honneth (2013), remetendo à presença de alguns haitianos nas redes sociais,

onde atuam como agentes desmistificadores da imagem construída no Brasil sobre o

seu país.

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Um dos pontos que chamou a atenção durante os eventos é o intenso uso

dos celulares como forma de registros que nem sempre são compartilhados. Se é

apenas uma ferramenta de “fantasia”, como cita o entrevistado E6, ou se apresenta

um uso estratégico, como afirma o entrevistado E8, o uso dos celulares demarca

uma forte ligação do haitiano à arte manifestada pelo corpo e pela fala. Além disso,

há também uma relação de intenso uso de tecnologias, não só no sentido de facilitar

trocas comunicativas, mas também como um “atributo social” em um país que vê o

imigrante haitiano ainda como miserável e, que simultaneamente, continua a

valorizar o celular como bem de consumo que confere status a quem o usa. Ou seja,

o uso dos celulares, bastantes modernos na maioria dos casos, parece ser uma

mostra também aos brasileiros de sua civilidade: em especial, quando se deparam

em situações em que precisam afirmar que “não comiam terra” no Haiti, como

salientou o entrevistado E5.

Neste sentido, reforça-se também o papel das organizações em

potencializarem as manifestações culturais haitianas, embora isso não demarque

uma abertura étnica tão forte quanto as redes sociais podem demonstrar. Enquanto

as atividades das organizações dizem algo como: “Brasil, estamos aqui!”, através da

exposição da cultura e do sujeito haitiano, o uso das redes sociais virtuais colocam

em xeque o fechamento étnico ao hibridizar a relação cultural entre brasileiros e

haitianos, como foi citado inúmeras vezes nas entrevistas em páginas dedicadas a

haitianos no Brasil, mas que eram compostas ativamente por brasileiros que se

sentem pertencentes à causa migratória e com isso geram trocas de saberes.

Assim, a composição de atributos comunicativos partícipes da sociedade

midiática possibilita a construção dessas comunidades de sentimentos que não se

isolam em comunidades geográficas, mas que são reforçadas pela “glocalização”

(SOUSA SANTOS, 2002), ou seja, movimentos globais como o da migração,

aglutinados a ações locais através das organizações de apoio – entendidos por

Cogo (2010) como “comunicação cidadã transnacional” – e demais sujeitos em um

movimento de pertencimento. São essas dinâmicas que acabam por reivindicar a

imersão de uma cultura minoritária (SODRÉ, 2005) – a imigrante, negra,

subdesenvolvida – em um território muito marcado pela cultura globalizada (SOUSA

SANTOS, 2002), especialmente quando a mídia tradicional reforça estereótipos,

como citaram alguns entrevistados, inclusive pertencentes às organizações de

apoio. Como disse o entrevistado EQ1, perguntar ao migrante “Quem é você?”,

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antes de “Por que você veio?”, demarca uma mudança de olhar, estrategicamente

pensada para humanizar uma relação que pode ser apenas coisificada como

instrumento jornalístico, de fonte/notícia. No entanto, não está apenas em jogo o

modo de fazer jornalismo, mas sim a forma de se colocar o migrante no novo

território, de modo a inserir aspectos de contra-hegemonia também em meios

hegemônicos, hibridizando-os (HALL, 2013), do mesmo modo que haitianos se

estabelecem em conferências públicas, casas de shows ou na rede social,

ressignificando todos estes lugares.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão dessa dissertação se inicia por meio da mesma imagem

descrita em seu início. A imagem do barco, à deriva, abarrotado de imigrantes que

buscam melhores condições de vida na Europa, continua permeando os imaginários

globais por meio das notícias diárias. Esse dado pode ser afirmado categoricamente

por mim – e aqui novamente peço licença para falar em primeira pessoa – pelo

mapeamento de notícias realizado durante mais de um ano (2014-2015), por meio

de instrumentos de pesquisa, como o Google Alerts, que me permitiu acompanhar

as notícias e dados mais importantes dos fluxos transnacionais de pessoas e,

especialmente dos haitianos, neste período de intensa imersão no universo

migratório.

Se a cena de asiáticos (especialmente do Oriente Médio) e africanos rumo à

Europa continua a acontecer, seja pelo Mar Mediterrâneo, Mar Egeu, Estreito de

Gibraltar ou pelas terras turcas, fazendo o continente romper a barreira de 1 milhão

de migrantes ilegais e refugiados ingressos só em 2015, segundo a OIM64, há

diferenças não só nas políticas europeias, mas também em outras mudanças que

marcam o fluxo de haitianos ao Brasil desde que esta pesquisa começou a ser

realizada.

Um fato ocorrido no dia 11 de novembro de 2015 marcou uma nova etapa

para aproximadamente 44 mil haitianos que vivem no Brasil: a assinatura – feita

pelos Ministérios da Justiça e do Trabalho – do ato conjunto de reconhecimento,

autorização e concessão permanente a imigrantes haitianos passou a permitir que

eles tenham direito à sua carteira de identidade de estrangeiro no Brasil, o que

garante, teoricamente, uma acolhida com mais segurança pela via da inserção social

e de programas sociais65. Em âmbito local, a notícia vinda de Brasília também trouxe

repercussão: um aumento considerável de haitianos chegou às organizações de

apoio de Curitiba, buscando formalizar a concessão dada pelo Governo Federal,

fazendo com que tais organizações se reordenassem para dar conta da nova

64 http://www.jornal.ceiri.com.br/oim-total-de-refugiados-e-imigrantes-na-europa-ultrapassa-1-milhao-

em-2015/

65 http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/ministros-assinam-ato-concedendo-

autorizacao-de-permanencia-para-haitianos

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demanda que se estende até o presente momento (fevereiro de 2016). Além disso,

outro contexto migratório, mais ligado à geografia, foi modificado: a emissão de

vistos em Porto Príncipe (Haiti), de forma a evitar que mais haitianos cheguem ao

Brasil ilegalmente pelas mãos de coiotes diminuiu drasticamente o número de

migrantes nos alojamentos acreanos, no segundo semestre de 2015. Segundo

informações da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre dadas ao site

G166, enquanto o mês de janeiro de 2015 registrou 1.393 pessoas, dezembro, do

mesmo ano, registrou apenas 54.

Entretanto, a par dessas políticas públicas que facilitam a vida dos haitianos

no Brasil, outros fatos lamentáveis aconteceram. Haitianos foram alvejados por tiros

em atos de xenofobia e racismo70, manifestações do mesmo cunho apareceram nas

redes sociais virtuais, ainda que sem muita adesão, organizações integralistas e

anti-imigração ganharam forma, e um aumento de desconfiança do Brasil pelos

próprios haitianos, marcado pelo discurso da crise econômica e política agravada no

país, e, em muitos casos, concretizada pela dificuldade na conquista de novos

postos de trabalho nas capitais onde há maior chegada de imigrantes, como

Curitiba.

Frente a esse cenário em constante mutação, minha atuação nas

organizações de apoio que, a princípio, foi sinal de alerta para a validação científica

da pesquisa demonstrou-se fundamental para a realização desse trabalho. Com a

temática preenchendo os noticiários, ao mesmo tempo em que citamos os fatos

xenófobos e racistas acometendo os haitianos, outras muitas vozes apareceram com

o intuito de contribuir, mas também utilizá-los como objetos de estudo. Essa

exploração da imagem do haitiano ainda chama a atenção. Inúmeros interessados

pelo tema surgiram enquanto essa pesquisa era realizada, porém, em alguns casos

a falta de engajamento continua incomodando a atuação das organizações,

entendendo-se que a boa intenção não basta para melhorar a condição de vida

desses migrantes.

Ainda que meu processo de vinculação a eles esteja em permanente

desenvolvimento, o olhar sobre as práticas comunicativas e como elas referenciam

66 http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2016/01/n-de-haitianos-que-entram-no-brasil-pelo-acre-cai-96-

em-12-meses.html

70 Um dos fatos mais graves foi o assassinato de um haitiano em Navegantes (SC), morto a facadas

por dez homens no dia 17/10/2015.

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as identidades desses sujeitos pode contribuir para este tema, o comunicacional,

ainda obscuro para as organizações de apoio, que têm tido a necessidade de

abarcar prioritariamente questões básicas, como capacitação, emprego, idioma e

documentação.

Ao adentrar nos processos que compuseram a pesquisa, vale ressaltar

novamente o que já foi comentado no fim da análise: os objetivos de pesquisa foram

alcançados, o pressuposto foi confirmado e as questões norteadoras foram

validadas, mas acrescento que isso só foi possível mediante um processo de intensa

reflexão sobre as realidades observadas e as teorias estudadas. Se foi simples

descrever as práticas comunicativas dos haitianos, como pedia um dos objetivos

específicos, relacionar seus processos à construção de suas identidades no Brasil

demarcou uma necessidade interpretativa iniciada etnograficamente e mais bem

concretizada durante a realização das entrevistas e sua análise. Se a escolha pela

metodologia da HP de Thompson (2011) foi fundamental para dar cabo a um

processo intensamente qualitativo e permeado por subjetividades de formas

simbólicas, a teoria dos estudos culturais contribui para compreender processos de

hibridização a qual estão condicionados esses sujeitos em constante fluxo. Além dos

estudos culturais, as teorias de globalização e da migração em perspectiva histórica

e social contribuíram para formar tal cenário dos haitianos no Brasil.

Ao se destacar o pressuposto da pesquisa, pode-se afirmar que as

organizações de apoio têm se mostrado fundamentais para a construção de

identidades dos haitianos no novo território. A ressalva, que já foi feita em outro

momento, pondera que todos os entrevistados estão relacionados, de certa forma, a

atuação dessas organizações, o que poderia representar uma aproximação óbvia ao

pressuposto. No entanto, cabe ressaltar que a relação dos haitianos com a

sociedade sempre foi potencializada a partir dessa mediação institucional. Ainda que

os espaços midiáticos pudessem contribuir, as organizações ainda aparecem como

lugar de reconhecimento dessas identidades, demarcando um importante locus de

disputa de hegemonia. Cabe ressaltar, no entanto, que o pressuposto inicial foi

sendo flexibilizado ao longo da pesquisa e, especialmente, visto como um lugar

metodológico propício para encaixar as reflexões sobre as organizações, que não

seriam objeto de análise, mas sim um componente essencial para compor o cenário

migratório em Curitiba e contribuindo ao alcance dos objetivos.

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Das duas questões de pesquisa validadas, uma delas, aquela que pergunta

se as práticas comunicativas dos haitianos em Curitiba seriam práticas midiatizadas,

acabou se constituindo como principal ponto de discussão e reflexão durante todo o

trabalho, por vários motivos: ora pelo fato das teorias de midiatização se mostraram

ainda demasiadamente fluidas, trilhando diversos caminhos que se confundiam; ora,

pela volta intensificada aos meios; ora, como uma geminação das mediações. O

desafio deste trabalho foi trazer, a partir das pesquisas latino-americanas, a

midiatização como parte da mediação, mas ultrapassando-a no que se refere à

formação de circuitos comunicativos compostos por processos interacionais de

referência mobilizados pela ação de mídias. Essa foi a principal descoberta pessoal

que tive durante esse processo, mas creio que ele não se isola aqui. Diferentes

abordagens da midiatização podem compor novas reflexões, como a

institucionalização das mídias nos campos sociais e até mesmo um enfoque maior

nos meios de comunicação a partir de suas tecnologias materiais, como afirma

Hjarvard (2015). No entanto, permanecer, neste momento, na linha das mediações e

da comunicação como interação gerou também uma identidade no trabalho com a

lógica das midiatizações.

Cabe ressaltar as surpresas, limites e desafios que o trabalho provocou ao

longo dessas centenas de páginas. Primeiramente, duas surpresas foram

percebidas nessa pesquisa: a força social da internet e a importância dos vínculos

afetivos na decisão de migrar. Quando era esperado um intenso consumo televisivo

no Brasil e no Haiti, referenciando o ato de migrar, ambas as “surpresas”

apareceram preponderantes. Em segundo lugar, sentiu-se a necessidade de

mensurar como os brasileiros percebem essa identidade haitiana, mas brasileiros

que não atuem no âmbito das organizações: da pessoa comum, que transita pela

natureza edificada da cidade cosmopolita. Entender melhor isso responderia por

outro caminho a ideia das identidades do imigrante frente à sociedade, não

analisada, aqui, pela ótica daqueles, mas sim por este outro lado, das minorias. De

toda forma, a opção por este lado foi de natureza teórico-metodológica,

especialmente a partir da ótica de Martín-Barbero (2004; 2013) em enfatizar as

vozes advindas das culturas minoritárias.

Outro limite apresentado pela pesquisa recai na dúvida que ainda

permanece sobre os motivos da vinda dos primeiros haitianos ao Brasil. Quando se

questionou sobre a principal influência que os motivou a migrar, os haitianos

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responderam que ela veio de amigos ou familiares que já estavam aqui. Mas, e os

primeiros que aqui chegaram? Presume-se que a influência da mídia haitiana

exaltando o Brasil tenha sido um diferencial, mas a concretização dessa resposta só

poderá ser dada em outro momento, quem sabe em uma pesquisa de doutorado. E

talvez este seja o principal desafio que a pesquisa de mestrado imponha ao

pesquisador.

Por fim, vale reafirmar a importância do percorrer metodológico, que se

iniciou com uma extensa interpretação etnográfica, coletada por meio de observação

participante, para uma compreensão do que é ser migrante em Curitiba, o que

permitiu uma dimensão humana ao processo, que facilitou outra etapa da

metodologia: a realização das entrevistas. Todos os esforços aproximativos

compõem um eixo importante na pesquisa em humanidades: enxergar o ser humano

como sujeito cultural e não como objeto analítico, a fim de que não se repitam os

erros de parte da sociedade que os veem como mão de obra, apenas, retirando-lhes

toda uma dimensão cultural e afetiva.

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APÊNCIDES

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ENTREVISTAS DO TIPO NÃO QUALIFICADA

ENTREVISTA (E1)

Idade: 33

Sexo: F

Estado Civil: Solteira

Instrução: Fundamental Completo

Religião: Batista

Profissão: Comerciante

Ocupação: Limpeza geral

Cidade que veio: Porto Príncipe

Quando e como chegou: De avião, para Panamá, São Paulo e Curitiba. Há 1 ano.

Otávio: Qual foi a sua principal fonte de informação para você vir pra cá, antes de vir

para Curitiba? Alguém te disse pra vir, como você ficou sabendo sobre Curitiba e

como que foi? Foi pela internet, televisão, algum amigo...?

Entrevistado (E1): Amigo.

Otávio: Que já estava aqui?

E1: Já.

Otávio: Que tipo de coisa ele falou para você que te convenceu a vir pra cá?

E1: Eu gastava dinheiro pra vir pra cá...

(Intervenção do primo tentando explicar)

E1: Amigo, amigo.

Otávio: Ela falou pra você que aqui era bom, é isso?

E1: Isso.

Otávio: Você conversa com pessoas sobre o que passa na mídia haitiana e

brasileira? Mídia: jornal, televisão, internet...

E1: Tudo. Haitiana, brasileira, tudo.

Otávio: Dá pra dar algum exemplo? Que tipo de coisa que vocês conversaram que

chamou a atenção de vocês?

(Intervenção do primo tentando explicar)

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E1: Que a gente fala mais?

Otávio: Isso, que vocês falam mais.

E1: Eu escuto o presidente... tudo.

Otávio: O que chamou mais atenção de vocês na televisão, de assuntos?

(Intervenção do primo tentando explicar)

E1: Novela. Eu escuto muito.

Otávio: Qual o nome? Da Globo, Record...?

(Intervenção do primo tentando explicar)

Otávio: Você tem celular?

E1: Tenho.

Otávio: Você usa ele para que?

E1: Eu uso aqui.

Otávio: Mas para que? Para ligar, pra ver alguma coisa nele... tirar foto...

E1: Tirar foto.

Otávio: Você tira muitas fotos no celular?

E1: Sim.

Otávio: E liga para o Haiti?

E1: Sim. E depois vai para Curitiba, família visitar.

Otávio: Principalmente foto e ligação então?

E1: Foto.

Otávio: Foto principalmente. Ok.

Otávio: Você usa internet?

E1: Sim! Tenho internet no telefone.

Otávio: E você usa sempre?

E1: Sim, todo dia.

Otávio: E que sites que você entra mais?

E1: (Risos). Só no mês que eu trabalho e entra pagamento.

Otávio: Entendi. Mas quando você entra na internet, você acessa que site?

E1: Falo com amiga, amigos, escrevo.

Otávio: No Facebook?

E1: Tenho.

Otávio: E você usa bastante?

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E1: Bastante.

Otávio: No Facebook vocês têm algum grupo de haitianos?

E1: Não tenho grupo, não. Não escrevo em grupos.

Otávio: Só com amigos pessoais?

E1: Só com amigos.

Otávio: Você já viu em Curitiba algum vídeo sobre os haitianos?

E1: Já vi, sobre haitianos, brasileiros...

Otávio: O que você achou do vídeo?

E1: Vídeo?

Otávio: Sim... vídeo, gravações sobre os haitianos aqui em Curitiba?

E1: Não vi...

Otávio: Tudo bem.

Otávio: Você escuta rádio?

E1: Não. Só televisão.

Otávio: Televisão é o principal então... e rádio?

E1: Não.

Otávio: Só televisão então. E quando vê televisão é mais novela?

E1: Sim.

Otávio: Normalmente a gente viu que nos cursos, eventos, lá da Casla, por

exemplo, os haitianos registravam o curso com celulares, ficavam filmando. Você

chegou a fazer isso alguma vez ou não?

E1: Sim.

Otávio: Quando você tira foto do curso, filmou, o que você fez com esse material?

Você tirava pra você mesma...?

E1: Não mando. Só tiro para mim, não mando.

Otávio: Nesses cursos, eventos, festas que temos, todos relacionados ao Haiti aqui

em Curitiba, você percebeu se mudou a maneira como os brasileiros tratavam

vocês?

E1: Não vi festa haitiana, não vi.

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Otávio: Você acredita que essas organizações – Pastoral, Casla, etc – elas ajudam

para que vocês tenham uma imagem boa, positiva no Brasil?

E1: Só a Casla.

Otávio: É o único grupo que você tem contato? Ok. Mas você acha que esse

trabalho na Casla ele ajuda com que os brasileiros tenham uma visão positiva de

vocês?

E1: Não.

Otávio: Qual a principal dificuldade que vocês têm aqui no Brasil, de comunicação?

E1: Não tem... o trabalho é difícil...

(intervenção do primo)

Otávio: A questão do idioma, da língua, é um ponto difícil?

E1: A língua? É difícil, difícil.

Otávio: Qual é a melhor maneira de você manifestar, mostrar, (compreende?), o

“ser haitiano” – a identidade haitiana – aqui no Brasil?

E1: ...

Otávio: Melhor maneira... de como você pode mostrar: “isso aqui é o Haiti”,

entendeu? Como é a melhor maneira do brasileiro enxergar isso?

E1: Pela pele.

Otávio: Mas não só fisicamente. Quais atitudes identificam vocês? Action?

E1: Haitiano ou brasileiro?

Otávio: Haitiano.

E1: Não sei.

Primo: Haitiano trabalha muito. Mais do que brasileiro e temos força.

Otávio: Essa é uma característica então. O haitiano trabalha muito. E isso é bom?

Primo: É bom.

Otávio: E mais alguma coisa?

E1: Trabalho... trabalho duro. Dinheiro é pequeno!

Primo: Agora o dinheiro está muito caro para mandar ao Haiti.

Otávio: Vocês mandam dinheiro ao Haiti?

Primo: Sim, nós temos família no Haiti.

E1: É difícil dinheiro aqui.

Otávio: E dá conta de mandar dinheiro e sobrar pra vocês?

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Primo: Não.

E1: É difícil, é difícil...

Otávio: Só uma última pergunta. Hoje o mundo está muito interconectado. Vocês

conseguem conversar com alguém lá no Haiti, eu ligo pra você da minha casa,

combino de vir aqui. A gente consegue ter uma conexão mais intensa, plus fort.

Você acha que isso é pior ou melhor hoje?

E1: É melhor.

Otávio: Por quê?

E1: Haiti já quebrou, não tem trabalho.

Otávio: E essa conexão ajudou você? Sim ou não?

E1: Ajudou? Sim.

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ENTREVISTA (E2)

Idade: 33

Sexo: M

Estado Civil: Solteiro (tem um filho)

Instrução: Ensino Médio completo e técnico em radialismo e contabilidade.

Religião: Protestante

Profissão: Radialista (já trabalhou)

Ocupação: Fiscal de loja (segurança)

Cidade que veio: Gonaives

Quando e como chegou: há 4 anos

Otávio: Qual foi a principal fonte de informação sua que fez você vir ao Brasil, até

Curitiba?

Entrevistado 2 (E2): Na verdade, essa é uma pergunta que eu vou responder como:

eu gosto de história, geografia, política. Eu sou uma pessoa que gosta muito, muito,

de política, por isso eu estou me interessando muito pelo radialismo, jornalismo, da

comunicação. Porque eu gosto da coisa política, futebol... Eu sempre tenho

informação sobre a política internacional, algumas coisas. Mas mesmo assim, antes

de 2000, não estava interessando em vir morar ou visitar o Brasil, porque todo

mundo sabe que o Brasil não fazia parte dos 20 países mais ricos antes de 2000,

estava começando. A Argentina estava mais desenvolvida, mas depois do governo

do PT, depois do presidente Henrique Cardoso, Lula, Dilma, o Brasil começa a

crescer muito no nível internacional, o mundo inteiro começa a sentir que o Brasil

está crescendo, mas tudo isso não tem o Brasil na minha cabeça pra ver. Porque,

sabe, a maioria dos haitianos sempre sonharam em ir para um país, se não para

França ou Canadá, é os Estados Unidos. Eu estava pensando nisso, mas depois do

Haiti ter sido atingido pelo terremoto eu, com um primo que estava já aqui, ele

conversava comigo – ele estuda Engenheiro Industrial. Ele foi estudar na República

Dominicana e depois ele veio pra cá pra ver se conseguia um emprego melhor, ou

pra fazer mais experiência no trabalho dele. Ele chegou aqui no Brasil e depois

perguntou a mim se eu queria vir também... porque pode tentar, porque ele sabe que

tudo que aconteceu demora pra gente se recuperar e construir um futuro melhor

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depois que fomos atingidos pelo terremoto. Meus pais não queriam pra mim viajar

tão longe assim, mas meu primo conversou com eles e consegui o aceite. Eu saí de

lá e vim pra cá. Eu cheguei por Manaus. Na hora que cheguei... o salário de Manaus

não é muito bom pra gastar e pra receber é bem pouco e é por isso que não

consegui me estabelecer lá. Depois eu fiquei em uma empresa, mas a empresa não

conseguiu ficar com a gente muito tempo e eu saí da empresa e fiquei mais ou

menos dois meses desempregado e eu consegui a empresa Atlas, em Pato Branco,

que contratou a gente. Eu fui pra Atlas, em Pato Branco, depois eu demorei cinco

meses morando lá. Em Pato Branco, a Atlas não paga muito bem pra gente pagar

despesa de casa, aluguel... complicado pra gente. Aí eu saí de lá. Eu tenho uma

amiga minha que mora em Curitiba... “Ah, E2*, vem aqui, seria melhor se vem pra

Curitiba...”. Naquela época, em 2012, não estava tão difícil empregar a gente, pra

gente conseguir uma empresa para trabalhar. Eu consegui vir e começo a me

envolver na cidade, mas demora um tempo agora para eu me estabelecer aqui em

Curitiba e é dessa forma que eu consegui morar aqui.

Otávio: O que te convenceu mais a vir para vir ao Brasil foi mais essa questão

política que você sabia que o Brasil estava bem ou foram pessoas que estavam

aqui... Quem te convenceu?

E2: Um motivo mesmo, depois de ter tido o terremoto no meu país... todo mundo

sabe que vai demorar... todo mundo sabe como é nosso governo, sempre falam, que

faz pouco, por isso, meu conselho, eu falei, é tentar se talvez hoje você aqui ou

amanhã não sei aonde... se você tem capacidade, vem aqui, tenta, e vamos juntos e

tenta pra ver como conseguimos crescer não só aqui no Brasil, mas onde a gente

tenha vontade... sorte. Só tentar. Eu vim, e mesmo a gente não conseguindo muita

coisa, mas tá crescendo um pouco, pra ver como a gente consegue, porque não é o

Brasil que vai me ajudar a crescer, eu que tenho que fazer meu passo. Eu estou

fazendo, mas espero que as coisas agora melhorem porque as coisas agora no

Brasil estão difíceis, mesmo para os brasileiros.

Otávio: Eu vou insistir um pouquinho nessa pergunta da informação. Quando viu as

informações do Brasil, por onde você via essas informações? Internet...

E2: Internet, rádio, jornal. Porque eu gosto de ler, assistir o jornal, todas as redes

sociais... eu sempre me informo. Por exemplo, o que está acontecendo aqui, nos

países francófonos, nos países europeus ou em vários lugares... eu sempre procuro

a informação.

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Otávio: E em relação à mídia, você conversa com parentes, amigos, sobre o que

está passando na mídia aqui no Brasil ou no Haiti? Vocês conversam sobre o que

aparece na mídia?

E2: Agora eu sempre falo que aqui no Haiti... como tem eles que me perguntam,

porque eles sabem que eu gosto muito de informação, essas coisas assim, eu

sempre falo a verdade. Porque me perguntam também porque eu ainda tenho um

relacionamento com meu ex-colega que eu trabalhei lá no Haiti, no rádio, sempre

fica uma conexão da informação. Ainda tenho informação de como funciona lá... das

novidades, o que tem, o que não tem... a gente sempre fica na informação. Eu

também dou um jeito pra eles...

Otávio: Então o conteúdo da mídia é pauta da conversa de vocês também?

E2: É.

Otávio: Como foi a nossa agora quando você comentou da notícia quando a gente

chegou.

E2: É.

Otávio: Você tem celular? Qual o principal uso que você faz dele?

E2: Eu uso muito o Facebook e o Whatsapp e fazer ligação.

Otávio: E esses usos são feitos com amigos, família... tem alguém específico?

E2: É. Mais minha família, minha mãe. Eu tenho uma filha lá e tenho que ter

informação de como ele está...

Otávio: Ah, você tem uma filha! E principalmente é contato com o Haiti...

E2: No Haiti e aqui no Brasil, porque eu sou envolvido com a música e tem meus

colegas da banda ali que eu canto e eu preciso ter sempre informação com eles, e

também com o pessoal do trabalho. Eu tento me envolver com todo o mundo, tenho

sempre que conversar com todo mundo.

Otávio: Bom, você usa internet, e qual a frequência do uso da internet?

E2: Quase todo dia.

Otávio: E qual o principal objetivo de utilizá-la?

E2: Para procurar mais informações sobre a realidade de hoje e como seria amanhã.

Como foi no passado, o que aconteceu na semana. Por exemplo, tem uma mudança

climática que está fazendo mais sucesso no mundo agora, porque ontem teve lá

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uma reunião de vários países que fazem parte da ONU sobre mudança climática

porque têm vários países, por exemplo, a Índia, a China agora, se você percebeu

têm várias mudanças acontecendo climáticas. E aqui no Brasil também. Na região

do Norte quase não chove e no Sul quase todos os dias está chovendo e isso causa

muito perda, gastos do governo, do povo e vários animais que estão morrendo de

fome lá no Norte e vários que estão morrendo aqui de água... E isso nós precisamos

nos informar de como envolver o mundo. E como também agora sobre a religião

islâmica... tudo que faz sucesso no mundo agora. Vários países ficam com medo,

países europeus ficam cuidando... todo mundo agora tem mais medo do outro. E

informação no também Brasil está subindo e a quantidade de povo que está

desempregado. O estado do Paraná agora passou a frente do estado de Santa

Catarina. Mais de 6% ainda no Paraná do pessoal está desempregado e lá em

Santa Catarina está 4% que está desempregado, e tudo isso a gente precisa se

informar pra saber como se relaciona com o povo. O social, o plano social, o lado

social, o lado político, o lado religioso... tudo, eu gosto de saber um pouco de tudo.

Otávio: E pra você se informar quais são os principais sites que você acessa?

E2: Às vezes na Globo News, mas também na CNN. Eu procuro no rádio, aqui, lá no

Haiti também. Eu sempre assisto jornal, das coisas que acontecem no Haiti. Na RFI

também, da França, rádio francês. Eu sempre escuto essas informações. Também

Globo, Record, televisão, Rádio Massa, que aqui passa música, mas dá também

informação. Pra mim informação nunca acaba. Eu sempre procuro.

Otávio: Eu queria saber de você, se você participa de algum de haitianos nas redes

sociais? Ou só de imigrantes?

E2: Na verdade é só o grupo da nossa banda. Da banda Melody. No Whatsapp. A

gente conversa, mas eu não estou conversando muito no grupo. É um jeito, porque

talvez não tenha uma coisa, assim, pra falar... eu gosto de ficar mais quieto, mas se

preciso de alguma pessoa na rua eu mando uma mensagem ou ligo pra pessoa,

mas na maioria das vezes eu não converso tanto.

Otávio: Mas o grupo é mais da banda mesmo? É só haitiano?

E2: Isso! É só haitiano.

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Otávio: Eu queria saber se você assistiu algum vídeo/documentário sobre os

haitianos aqui no Brasil?

E2: Várias vezes.

Otávio: E o que você achou?

E2: Por exemplo, o que você está fazendo agora comigo, mas eu vejo várias vezes

o jornalista, pessoal que vai fazer vídeos, pesquisas sobre sempre coisas negativas,

das dificuldades, mas precisam saber também da nossa capacidade como povo. Eu

não sei se é ignorância, não sei se eles não sabem que temos capacidade de

conhecimento, capacidade de chegar muito mais longe do que estamos até agora,

mas eles só procuram coisas negativas, não achei ainda pessoas que procurem

coisas positivas de nós. É isso que eu acho.

Otávio: Normalmente os haitianos têm registrado nos celulares os eventos. Tinham

os celulares nas mãos e filmavam. Eu queria saber se você já fez isso e como

depois vocês utilizam esse conteúdo?

E2: Eu não faço, nunca filmei.

Otávio: E dos outros que filmaram, você sabe?

E2: Eu não sei dos outros. Até o último dia, você não estava aí, o último dia que o

pessoal foi entregar o certificado pra gente, eu tava cantando uma música e a

pessoa disse que gostava da música e pediu pra combinar comigo e com a Maria*

pra ver se conseguia fazer um showzinho pra eles. E eu até estou esperando as

pessoas da Casla. Se eles quiserem nó fazemos um showzinho pra Casla. Eu ainda

não conversei sobre isso com a Maria*, mas eu penso que a Casla faz muita, muita,

muita coisa pra nós, estão apoiando a gente e não precisa ser dinheiro pra isso. A

Casla é uma casa que não é preparada pra fazer eventos assim, mas não tem

problema. Eu, a Maria*, a banda, tudo, no final do ano, no ano que vem, eles que

sabem. Pra nós apresentamos um showzinho... deve ser de graça, eles que sabem.

Não tem nenhum problema pra organizar um show. Canto sertanejo, canto música

daqui, nós não tocamos muito rock, não, porque eu sei que muitos de vocês gostam

de rock...

Otávio: Mas o povo gosta de sertanejo aqui também! (Risos). Mas a pergunta é em

relação a se você recebeu algum vídeo desses cursos da Casla, por exemplo? Você

sabe o que eles fazem com esses vídeos e fotos ou não?

E2: Eu não recebo, mas eles gravam pra guardar como lembrança.

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Otávio: Ok, está certo. Desses eventos, cursos, festas haitianas, enfim, qualquer

evento em Curitiba que você participou que era sobre, com, para os imigrantes...

Após estes eventos, você percebeu que a maneira dos brasileiros olharem os

haitianos mudou ou você acha que não?

E2: Viu, tem a Emília*, que uma moça que está muito envolvida nesse sentido de

ajuda aos haitianos, porque a Emília* é a primeira haitiana que morou aqui em

Curitiba... ela faz muito, apresenta nós pra dar apoio. Porque, às vezes, o pessoal

pensa que o haitiano passa fome, está sem roupa, sem comida, não! A Emília*

mostra também pra eles que os haitianos têm capacidade de se envolver na música,

na cultura, no teatro... tudo, no futebol, em tudo. Nós também capacidade de fazer

de tudo, porque o Brasil ainda não conhece a nós, mas mais pra frente, eu sempre

falo, depois de 10, 20 anos, vocês vão saber que é o haitiano, porque o que nós

passamos aqui, o que a gente não conhece aqui, os americanos vão ser a mesma

coisa, porque eles sabem da gente já. O canadense, a França, conhecem a gente já

porque a gente faz sucesso já. Tem um haitiano que foi cantar no final da Copa do

Mundo e ninguém sabe se é haitiano ou americano. O nome dele é Wyclef Jean e

estava cantando junto com o Alexandre Pires e com Carlos Santana. Wyclef Jean é

haitiano, nasceu no Haiti, mas vive nos Estados Unidos, mas ninguém pensa que ele

é haitiano porque ele canta música com Alexandre Pires. E tem outro haitiano que

canta com Cláudia Leite, ele é haitiano e canta com Cláudia Leite. Haitiano também

é muito famoso na música. Tem haitiano que é grande cantor na França, no Canadá

e nós precisamos também. Por isso que eu gosto de cantar, por isso que eu quero

oferecer tudo, mas o povo não vai mudar de um dia. Só uma coisa que eu fizer hoje,

um ano, três anos, não vai mudar um povo de 200, quase 300 milhões de pessoas

que o Brasil tem. Não vai mudar o pensamento, pois vocês nos conhecem muito

recentemente. Faz mais ou menos quatro anos que o povo do Brasil começa a fazer

conhecimento do povo do Haiti, mas demora, certo. No dia a dia vocês conhecerão,

o povo vai saber quem é nós e nossa capacidade que nós temos: um povo também

bem intelectual, um povo também bem educado. Tem povo ruim, mas também tem

pessoa boa...

Otávio: E pra você é suficiente isso que tem sido feito?

E2: Não, não é suficiente, tem que continuar ainda. Tem que continuar ainda.

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Otávio: Depende do tempo, vai um tempo ainda?

E2: É, vai, demora. É por isso que eu falei pra você que não vai ser em quatro anos

que estamos aqui que vai mudar tudo. Demora. Talvez vá chegar 20 anos, talvez vá

chegar 10 anos, mas também vai ser os filhos dos haitianos que vão fazer a

mudança, mas tudo isso faz parte. Eu espero que vocês, os brasileiros, vão ter um

dia uma lembrança de nós, do povo que está. Nós somos imigrantes na verdade,

porque todos os brasileiros têm descendência de africano, europeu, asiático e nós

também, os haitianos têm descendência de africano e europeu porque nós fomos

colonizados pela França e o Brasil foi colonizado por Portugal. Nós temos

descendência da França, de sírios. Tem tudo, o haitiano tem de tudo.

Otávio: E assim, pra construir uma imagem positiva do haitiano no Brasil uma

identidade efetivamente, você acha que essas organizações de apoio têm um papel

importante?

E2: Isso mesmo. Elas têm um papel importante, porque se não existisse essas

organizações, como a Emília* está envolvida na Casla e em várias outras, se não

existe essas organizações ninguém vai conhecer que existe imigrante haitiano no

Brasil. Graças a vocês, ao apoio, cada vez que acontece. Por exemplo, no mês de

outubro foi morto um haitiano, depois outro haitiano foi xingado... “vagabundo,

bandido, mata ele!”. Mas quem falou, gritou? Foram as organizações, que dão apoio,

que acompanham o povo haitiano aqui pra ver se para com a xenofobia, para com o

racismo. Tudo isso ajuda, esse papel é muito importante pra nós.

Otávio: Mudando um pouco o foco da pergunta. Você tem alguma dificuldade de

comunicação no Brasil?

E2: A dificuldade que não vai jamais parar, eu sempre digo pra gente, eu... tá certo

que eu posso fazer um curso de português, como eu aprendo a falar português. Da

conversação com a gente. Eu leio muito, por exemplo, jornal, papel, tudo. Eu assisto

televisão muito. Eu ouço música. Tudo isso ajuda e graças a isso eu consigo falar e

falta muito ainda, mas todos os dias a gente está aprendendo. É por isso que eu

consigo falar, se eu falo você consegue entender. Talvez tenha coisa que não está

certo, mas você entende, mas também eu jamais vou falar do jeito de vocês porque

não sou daqui. Mesmo se eu levo vocês lá você jamais vai falar como eu falo no

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meu idioma, mas espero que no dia a dia eu consiga, para eu superar as barreiras

na minha frente e conseguir crescer muito mais.

Otávio: Outra pergunta que também está relacionada a ideia de identidade. Qual a

melhor ocasião para você manifestar o “ser haitiano” aqui?

E2: Eu tenho dois lugares que eu falei. Eu gosto de me envolver na música, eu

espero na música minha identidade quando eu canto, porque é um lugar que

apareceu gente e eu tenho um gosto e um conhecimento pelo radialismo. Eu penso

nesses dois lugares porque me ajudam muito para aparecer. Porque uma força

muito forte no mundo são os meios, é um dos poderes do mundo. Têm três poderes,

cada país tem três poderes, mas o último poder que há no mundo inteiro é a

imprensa. A imprensa é um poder muito forte porque quando alguém fala na

imprensa chega muito longe, chega até debaixo d’água. Eu espero que com isso, a

imprensa e a música vão me ajudar a crescer muito mais que eu espero.

Otávio: E em relação à música, à imprensa, mas, sobretudo à música que é uma

ocupação que você tem aqui, você faz registros para divulgar... você falou que vocês

têm um vídeo, né?

E2: Na verdade nós temos uma coisinha no Youtube, tem pouquinho, tem algum

showzinho que a gente faz e nós gravamos, entendeu, essas coisas. Mas a gente

ainda está batendo, procurando, porque pra fazer música aqui a gente precisa ter

um empresário e a gente ainda não tem um empresário. Estamos procurando, mas

ainda não conseguimos. Sabe, não vai ser fácil. Eu tenho um cantor... essa duplas

que eu gosto, que eu sempre falo deles... essa dupla, o Zezé di Camargo e Luciano,

eu conheço a história deles, como conseguiram surgir pra chegar um dia no lugar

que estão hoje, mas no passado, anos 80, mais ou menos, eles passaram por coisas

bem difíceis e hoje é a dupla mais famosa no Brasil. Eu espero também chegar a

este ponto, mas não vai ser hoje ou amanhã, mas a gente vai continuar tentando,

continuar cantando e Deus vai tocar o coração de alguém pra ajudar e pegar a mão

de nós pra poder crescer e poder subir aí em cima.

Otávio: O canal de vocês no Youtube tem bastante visualização?

E2: Tem. Às vezes chega a mais de 500 pessoas que ouvem, mas até ano passado

quando eu gravava alguma coisinha com a Maria* tinha mais de 300 pessoas

ouvindo e já cantando, mas só de brincadeira várias pessoas já ficaram loucas pra

assistir vídeo. Mas vídeo só lá no Facebook, não no Youtube. Só no Facebook dá

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quase 500 pessoas olhando. Por isso que eu falei queria, mas eu não lembro o

nome dela que pretende fazer uma entrevista com nós e um showzinho na Casla pra

levar o pessoal da Globo... gravar uma coisinha. Depois do dia 22 (de dezembro de

2015) eu vou ter mais tempo e eu vou combinar certinho com ela pra ver como vai

conseguir fazer. A gente ensaia e vamos ver se lá cantamos uma música em

francês, deixa com a gente. Aqui o pessoal não houve muita música em francês, né.

É mais inglês, português - muito inglês - mas eu vou encaixar também a música

francesa na cabeça de vocês. Mesmo sendo difícil pra vocês cantar, mas vão

aprender, né.

Otávio: A última pergunta: O mundo hoje é muito interconectado. Você acha que

esse mundo contribui ou piora o aprendizado das pessoas em relação ao mundo, a

percepção delas ao mundo?

E2: É, todas as coisas têm partes negativas e partes positivas. Até eu tomar um

remédio, se você está com dor, bebeu e toma um remédio, tem o lado positivo do

remédio e tem consequências também. O mundo agora, que é quase 100%

tecnológico, contribui também, como eu falei pra você as mudanças climáticas. O

que causa a mudança climática são as mudanças tecnológicas porque as pessoas

procuram muita coisa na natureza, né, destroem a natureza para construir

tecnologias. Tudo há uma consequência. Também a tecnologia ajuda as pessoas a

se aproximarem. Mesmo eu longe, eu consigo ter uma boa relação com a pessoa

que está longe de mim como se a gente morasse junto e isso ajuda a gente a ter

informação sobre o mundo. Como vai ser amanhã... porque tem um problema... se

vai chover amanhã todo mundo já vai saber, já sabemos que amanhã vai ter chuva.

É tecnológico, porque tem uma pessoa que cuida da natureza e sabe tudo. Eu gosto

e acho que o mundo tem que continuar tecnológico para ajudar o humano estar mais

informado de tudo, mas também podem esperar consequências porque tudo tem

consequências. Não vai ser só coisa boa, mas vai ter coisa ruim também que vai

chegar, mas tem que superar quando chegar coisas ruins.

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ENTREVISTA (E3)

Idade: 31

Sexo: M

Estado Civil: Casado

Instrução: Superior completo (2 formações)

Religião: Protestante

Profissão: Jornalista

Ocupação: Triagem dos Correios

Cidade que veio: Petit-Goave

Quando e como chegou: 2 anos e meio (Avião: Porto Príncipe – Panamá – São

Paulo).

Otávio: Eu queria saber qual foi a sua principal fonte de informação pra você vir até

Curitiba, se foi por algum meio de comunicação, por amigos que estavam aqui,

porque você veio pra cá e qual foi sua principal fonte pra chegar aqui?

Entrevistado 3 (E3): No meu caso foi uma indicação porque eu estava trabalhando

lá no Haiti como administrador de um hotel e tinha várias coisas que eu estava

fazendo, eu tinha um amigo aqui no Brasil, Curitiba, que me convidou: “Ô, E3*, vai

ter Copa do Mundo, você fala vários idiomas, você manja em computador, você

pode vir, daí você vai ter sorte pra trabalhar aqui”. Daí larguei tudo para vir aqui. Fui

lá na embaixada consegui um visto, até que eu cheguei no Brasil, mas o que eu

achava que era totalmente diferente, porque eu pensava que quando eu chegasse

aqui no Brasil ia trabalhar e a vida ia se tornar bem fácil pra mim, mas eu passei

algumas dificuldades.

Otávio: Quantos idiomas você fala?

E3: Agora eu falo cinco.

Otávio: Quais são?

E3: Eu falo crioulo que é um dialeto de lá do Haiti, francês que é nativo, inglês,

espanhol e agora português.

Otávio: E agora português, é verdade... bastante, né?

E3: É.

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Otávio: Então os seus principais argumentos que fizeram você vir foi essa

possibilidade que você tinha de conseguir coisas melhores de emprego?

E3: É.

Otávio: Entendi. Em relação às coisas que vocês veem na televisão, na internet,

sejam as coisas do Brasil ou do Haiti, ou seja, na mídia lá do Haiti com seus amigos

que estão lá, por exemplo, vocês conversam, isso é pauta da conversa de vocês, por

exemplo, ou a pauta da conversa de vocês é algo mais pessoal?

E3: É, algo mais pessoal.

Otávio: Tá. Você tem celular?

E3: Sim.

Otávio: Qual o principal uso que você faz do celular?

E3: Facebook, Whatsapp e Instagram.

Otávio: Ah, tá. Eu procurei você no Facebook e não achei.

E3: É um nome bem grande.

Otávio: Depois você me passa para eu te adicionar. Você tem Instagram também?

E3: Também.

Otávio: Pra que você usa mais... as fotos?

E3: Ah, sim, pra postar as fotos, todas aí, as notícias, tudo...

Otávio: Mais fotos pessoais?

E3: Sim.

Otávio: Da tua família?

E3: Sim.

Otávio: Beleza. Você usa internet no celular, tem computador?

E3: É, tenho computador, tenho internet na minha casa, tenho cabo e tenho celular.

Otávio: Você usa com qual frequência a internet?

E3: Como estou fazendo um estudo a distância, daí eu uso bastante, especialmente

de noite.

Otávio: As Relações Internacionais, sua graduação, são à distância, na Uninter?

E3: Isso.

Otávio: Tá bom. Então, o seu principal motivo de acesso é pra estudo. E o que

mais?

E3: Pra estudo e pra conversar com minha família à noite.

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Otávio: Ah, tá. Quem está lá à noite?

E3: Meu pai, minha mãe e meus irmãos.

Otávio: Tem algum parente aqui?

E3: Não, só eu e minha esposa.

Otávio: Entendi. Uma pergunta sobre o Facebook ou das redes sociais. Você

participa de algum grupo fechado, que é, por exemplo, só de haitianos?

E3: Sim, eu tenho bastante.

Otávio: Quais são?

E3: “Haitianos no Brasil”, um grupo chamado “Haitianos no Brasil”.

Otávio: Ah, você está nesse grupo. Esse grupo eu acabei entrando também e eu vi

que tem bastante brasileiro lá.

E3: Tem. Quem está administrando é uma brasileira, mas ela coloca bastante

haitiano.

Otávio: Esses brasileiros que estão nesses grupos, eles ajudam ou atrapalham?

E3: Às vezes têm alguns que atrapalham e têm alguns que ajudam, mas a maioria

ajuda.

Otávio: Então, pra você é positivo ter brasileiro nesse grupo?

E3: Sim.

Otávio: E tem algum grupo que é só de haitianos?

E3: Na verdade não, sempre mistura.

Otávio: Tem algum grupo de Curitiba, que é de haitianos de Curitiba, mesmo tendo

brasileiros, mas é só de Curitiba?

E3: Não. Porque a minha banda tem brasileiro, só meu futebol, meu time é que não

tem brasileiro.

Otávio: Então você tem grupo da banda e do futebol também?

E3: Sim.

Otávio: Você, em relação à internet ainda, quais principais sites e mídias sociais que

você acessa?

E3: Na verdade eu gosto mais de fazer pesquisa, daí eu uso o Google.

Otávio: Mas é pesquisa acadêmica, coisas da faculdade?

E3: Sim, faculdade e acadêmica.

Otávio: Só por curiosidade. Qual seu interesse nas relações internacionais?

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E3: Na verdade tem pessoa que só fica no Whats o dia inteiro, no Face o dia inteiro,

daí passa o dia sem fazer nada. Para mim é diferente porque eu gosto de mais

coisas, eu gosto de aprender, entendeu? Até que se eu estou conversando com uma

pessoa eu tenho que aprender com você, daí não é pra ficar batendo papo de graça,

eu gosto de aprender. Cada dia para mim eu tenho que aprender uma coisa nova. É

isso que me incentiva a aprender o português, porque falam assim: “É obstáculo,

você não fala português”. Daí, quando você chega a algum lugar você fica meio

perdido, comecei a aprender o português sozinho, nem fiz curso, aprendi sozinho,

até que cheguei nesse nível, entendeu? Mas quando eu fico lá na internet, só

pesquisa, coisas acadêmicas ou conversa com minha família lá pra saber minhas

notícias.

Otávio: Entendi. Pra seu aprendizado do português a internet ou outro meio de

comunicação te ajudou?

E3: Não, só a TV.

Otávio: A TV ajudou?

E3: Sim, porque eu tinha que largar a internet porque às vezes, como eu estava

dizendo, você fica batendo papo com algumas pessoas, coisas que não valem nada,

entendeu? Daí quando queria aprender o português escolhia um programa lá na TV

e uma novela e começava a aprender, aprender, aprender...

Otávio: E o que você assiste mais na TV?

E3: Eu assisto “Cidade Alerta”, que eu gosto.

Otávio: Ah, “Cidade Alerta”. É o da Record, da Band?

E3: Da Record.

Otávio: Tem algum outro programa que você costuma assistir também?

E3: É, na verdade tem também a que acabou “Dez Mandamentos” que eu gostava

muito, tinha bastante novela antigamente que eu gostava.

Otávio: Rádio, você escuta?

E3: A rádio que eu gosto mais, porque parecia engraçada é a “Jovem Pan”, porque

tem uma mistura do rap, essas coisas. Os caras falam muito bem também, eu gosto.

Eu não quero perder meu inglês.

Otávio: Ah, tá. Você escuta músicas em outros idiomas... inglês também, entendi.

Mas a rádio é mais pra escutar música?

E3: É, na Jovem Pan.

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Otávio: Acho que você já percebeu também nos eventos, na Festa Latina, na Festa

Haitiana... Normalmente os haitianos eles registram, praticamente toda hora, no

celular. Se está tendo um show lá o pessoal está filmando, tirando foto. Eu queria

saber que uso vocês fazem disso, dessas imagens. Em primeiro lugar, se você faz

também isso, mas se você sabe que uso os haitianos fazem normalmente, se vocês

compartilham essas imagens, essas fotos, o que vocês fazem?

E3: Na verdade eles tiram as fotos daí eles compartilham com a família. “Olha onde

eu estava”, “eu estava com meus colegas”, essas coisas. Mas no meu caso, eu não

mando todas as fotos, têm algumas que eu trato primeiro daí eu mando pra família.

Otávio: Uma pergunta agora, já entrando um pouco numa outra questão que é da

identidade, da imagem dos haitianos. Se você percebeu que alguns dos eventos que

você já participou, pode ser da Pastoral ou de repente outro realizado pra essas

organizações, se esses eventos, na sua opinião, mudaram a forma dos brasileiros

perceberem os haitianos?

E3: Sim, muito, porque a nossa ideia é vender a nossa cultura, porque às vezes fico

triste, porque têm alguns brasileiros que ficam perguntando se lá no Haiti tem

hospital, tem internet. Daí quando você faz esse tipo de trabalho – festa para ver

haitiano tocando música, tocando instrumento, tem haitiano que mais ou menos fala

português, mestre de cerimonial, essas coisas – ajuda os brasileiros descobrirem a

nossa cultura para ver. “Ah não, eles têm uma cultura bem ampla”. Porque hoje em

dia têm vários brasileiros que estão perguntando: “Lá no Haiti tem feijão, tem Coca-

Cola, tem hospital?” Para mim é um absurdo, só entrar lá no Face, no Google, fazer

uma pesquisa e você vai saber. Igual que eu fiz quando pretendia vir aqui. Fui lá ao

Google, fiz uma pesquisa do Brasil, nem sabia que o Brasil tinha esse tamanho

grande. Por isso que cada vez que acontece esse evento ajuda os brasileiros a

descobrir os haitianos. Melhor do que ficar escondido, sem saber nada.

Otávio: E você acha que só esses eventos que a gente tem feito, essas atividades,

são suficientes?

E3: Não, não são suficientes. Por isso que lá no Face tem uma campanha falando

sobre os haitianos que estão chegando, tem haitiano que é engenheiro aqui que não

consegue trabalhar, agrônomo, professor de letra, professor de idioma e têm vários

haitianos, mas a gente está fazendo uma campanha. Por isso que quando eu achei

as meninas da PUC para trabalhar sobre o livro eu me sentia muito bem, porque eu

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sozinho não podia fazer esse tipo de trabalho, até onde que ia chegar minha voz?

Com elas, eu consegui mais ou menos sair no jornal Gazeta do Povo, contando a

minha história e um monte de coisa e elas foram lá comigo na banda tirar algumas

fotos, entrevistaram cada um dos músicos, elas vieram aqui no bairro assistiram

partida do jogo até que caí na RPC. Eles vieram aqui na minha casa, o Felix*,

gravando uma matéria, acho que semana que vem vou ter que ir lá na RPC para dar

um show ao vivo, essas coisas. Mas é uma campanha mesmo pra ajudar os

brasileiros saberem que os haitianos não só deixaram um país pobre para vir aqui só

para trabalhar. Alguns de nós têm bastante coisa para fazer.

Otávio: É sobre o que esse livro que elas estão fazendo?

E3: Vida dos migrantes.

Otávio: Só haitianos ou em geral?

E3: Não, só haitianos.

Otávio: Vidas dos migrantes haitianos aqui em Curitiba?

E3: É, vida dos migrantes, daí eu sou personagem oficial do livro. Eu tenho o livro

aqui.

Otávio: Deixa eu ver... Nossa que legal!

E3: É um TCC

Otávio: Ah, um TCC de alunas?

E3: Isso.

Otávio: Trabalho de conclusão de curso de jornalismo da PUC 2015. “Manifestações

culturais, jornalismo e estudo sobre a imigração haitiana em Curitiba”. Puxa que

bacana! Ah, e você é o primeiro?

E3: Isso.

Otávio: Já começou com você?

E3: Tá na capa também, né.

Otávio: “E3 é quase um presidente”. Por quê?

E3: Porque eu conheço vários haitianos, até fui pra São Paulo. Fui delegado aqui na

cidade para representar os haitianos na primeira Conferência Nacional sobre

Imigração e Refúgio, daí bastantes pessoas me conhecem, ajuda bastante.

Otávio: E essa é tua esposa?

E3: Isso.

Otávio: Legal. E como é que essas meninas chegaram até você, como é que elas te

descobriram?

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E3: Lá da Pastoral do Migrante, no dia 17 de maio.

Otávio: Elas foram até a Pastoral?

E3: Isso.

Otávio: Entendi. E aí você estava lá?

E3: Eu estava animando a Festa da Bandeira, dia 17, daí elas descobriram: “Nossa

esse cara fala bem português, vamos fazer uma matéria com ele, vamos pegar ele

pra nos ajudar”. Assim, e começamos a trabalhar. Ficamos bons amigos e também

porque elas estavam comigo no momento do parto da minha esposa, sempre ali na

minha casa tirando foto...

Otávio: Ah, elas foram até no parto da sua esposa?

E3: Sim.

Otávio: Nossa, que interessante! E depois que você apareceu na televisão mudou

alguma coisa pra você, alguém foi atrás de você, te procurou, te reconheceu?

E3: Primeira coisa com essas meninas e estava caindo a notícia porque tem uma

página lá no Face: “Vida de Migrante”, também tem no Instagram “Vida de Migrante”

e parece que as pessoas da RPC estavam observando. Daí entrou em contato

comigo, vem até aqui na minha casa, aí filmamos uma parte do jogo – foi organizado

um jogo aquele dia – e depois eles foram comigo lá na banda – filmei também uma

parte do ensaio dos meninos – daí a gente fica aguardando para entrar no estúdio

pra fazer um show ao vivo, contando a minha história mas eles estavam esperando

sair o livro para não atrapalhar o trabalho das meninas. Como já saiu o livro agora,

estão lançando a impressão para distribuir e agora acho que logo, logo a RPC vai

ligar para ir lá.

Otávio: A sua banda toca que tipo de música?

E3: Kompa.

Otávio: Aquela típica do Haiti, né?

E3: Isso.

Otávio: O que você toca?

E3: Eu não toco, eu sou o vice-presidente da banda.

Otávio: Ah, você é o vice-presidente, que legal. Eu quero ouvir sua resposta em

relação a isso, você acha que as organizações de apoio elas ajudam, elas

contribuem, para que o imigrante tenha uma imagem, uma identidade positiva aqui

no Brasil?

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E3: Algumas delas porque têm algumas organizações aqui no Brasil que só

aproveitam dos haitianos, tipo: “Ah, eu vou ajudar dez haitianos, vou pedir dinheiro

no nome deles”. Daí pega o dinheiro e passa coisas ruins. Por exemplo, às vezes eu

fico triste vendo brasileiro passando coisas, não é usado, é coisas que não vale

nada para os haitianos. Daí eu falo: “Nossa, será porque eles sabem que a gente

vem de país pobre que estão fazendo isso?” “Ah, eu não vou querer essa camiseta”,

“era pra jogar no lixo mesmo”, “ah, eu conheço algum haitiano, deixa passar pra ele”.

Mas têm algumas dessas organizações também que ajuda bastante. Eu não posso

dizer que foi uma organização, mas quando cheguei ao Brasil a minha igreja me

ajudava bastante, os Mormons. Que eu fui à missão, sempre uma missão. Nasci

dentro da igreja, meus pais são membros da igreja desde 82, daí eu sou bem

conhecido da igreja.

Otávio: Em relação aos brasileiros, por exemplo, que não tem esse contato

diretamente com as organizações você acha que ajuda? Um brasileiro que não está

por dentro do fluxo de imigração, você acha que se ele vai a alguma atividade,

alguma coisa realizada pelas organizações isso ajuda a mudar a opinião dele?

E3: Ajuda.

Otávio: Por que?

E3: Porque você veio, tem que aprender sobre nós, entendeu? Quando, por

exemplo, no caso da Festa Latino-Americana, quando você foi lá, você aprende

sobre a cultura dos haitianos, aprende sobre a cultura dos peruanos, aprende de

cada um. Daí você consegue descobrir as capacidades dos haitianos.

Otávio: Como você estava animando lá, algum brasileiro chegou a você e falou

alguma coisa?

E3: Ah, sim. Alguns deles subiram lá no palco e “parabéns, você fala bem

português”, ficam me cumprimentando, eu me sentia muito bem. Para mim é um

espaço pra descobrirem a nossa cultura, para ver que os haitianos estão se

esforçando muito.

Otávio: Com certeza. Eu queria te fazer uma pergunta, depois eu vou voltar nessa

questão da identidade. Você poderia apontar quais são os principais problemas de

comunicação que vocês têm aqui no país?

E3: Quando você fala problema de comunicação, em relação a que?

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Otávio: Pode ser em relação a qualquer coisa que faz vocês terem um

relacionamento com brasileiro, por exemplo, qualquer coisa que faz esse intermédio.

E3: Para mim é tipo grupo, né, grupo ou espaço, você conversa com brasileiro, por

exemplo, no meu caso que tenho bastante, bastantes amigos brasileiros e

brasileiras, não só aqui em Curitiba mas tenho em Minas Gerais, São Paulo, então a

gente conversa bastante, bastante. Se eu tivesse uma mulher ciumenta daí eu não

ia ficar nessa casa porque ela entende o meu trabalho. Ela sabe o que eu estou

fazendo, não estou buscando uma popularidade, mas eu acho que depois de dois

anos eu vou me tornar um vereador aqui na cidade, porque todo mundo ta me

procurando: “Oh, E3*, me fala sobre isso, me fala sobre isso”. Até no hospital, na

delegacia, na Federal, porque eu posso estar dormindo que toca meu celular: “Oh,

E3*, onde é que você está?” – “Ah, eu estou na minha casa” – “Você pode vir aqui

na UPA? Nós temos um haitiano que não sabe falar nada, a gente vai pagar ida e

volta pra você”. Entendeu? A referência dos direitos humanos: “A gente tem um

haitiano aqui que não fala nada, que não sabe do que está precisando, você

consegue ir até lá?” Um haitiano preso, eu vou lá à delegacia converso com o

delegado e assim começo todo mundo conversar.

Otávio: E como é que você conheceu essas pessoas lá em Minas Gerais? Você

nunca morou lá?

E3: Nunca morei lá, mas estou doido para ir lá nesse feriado, em dezembro. É pela

internet, pela propaganda. Aquela vez que eu postei uma coisa lá no Face eles

curtem: “Nossa é o primeiro haitiano que pensa assim, que faz assim”. Sempre estou

no meio...

Otávio: Então, pra você não há muitos problemas de comunicação?

E3: Não.

Otávio: E pra esses outros haitianos que você vê que, às vezes, são mais isolados

na comunidade haitiana, qual o principal problema que você acha que existe?

E3: Têm alguns deles que sofrem preconceito, porque aqui tem bastante

preconceito, daí se torna assim se retirando: “Não, eu não vou falar com o Otávio

porque ele vai achar que eu sou haitiano, venho de um país pobre”, daí começa se

retirar. Pra mim não, não é assim. Sei que o preconceito existe no mundo inteiro,

não é só no Brasil, daí eu deixo esse preconceito de lado e falo: “O E3* vai seguir,

vai ir mais pra frente”, porque se eu vou deixar o preconceito dentro de mim eu não

vou crescer, entendeu... Eu vou.. “Ah , não, eu vou ficar na minha, eu não vou sair”.

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Para mim não. Na França tem haitiano sofrendo preconceito, nos Estados Unidos

tem, Canadá tem, tem no mundo inteiro...

Otávio: E que tipo de preconceito você acha que existe mais aqui?

E3: Preconceito pela cor. “Ah, você é preto, não vou sentar ao teu lado”. Porque já

aconteceu isso no ônibus. Você senta, ela convidou um brasileiro curitibano: “Ah,

você tem uma cor...” – “Você pode sentar” – “Não, eu não vou sentar perto de você,

é preto, né, vai me sujar”... já aconteceu bastante. Depois outra coisa é quando fala:

“Ah não, porque vocês não ficaram lá no teu país morrendo de fome, porque vocês

vêm de um país pobre, vêm aqui pra roubar o emprego dos brasileiros”, essas

coisas. “Os haitianos estão lotado aqui no Brasil, não sei mais o que Dilma está

fazendo”. Começam a falar assim, começam a xingar. Xingando, xingando. Os

haitianos ficam com medo, né. Hoje em dia têm vários haitianos que estão levando

tiro por causa de brincadeiras, essas coisas, mas pra mim está tudo certo.

Otávio: Em relação a essa luta contra o preconceito também, qual a melhor

maneira, qual a melhor ocasião, que você vê aqui no Brasil pra manifestar o ser

haitiano, a identidade haitiana?

E3: Nas festas, nos eventos, na mídia e lá no Face. Como agora acabou de cair na

mídia na TV, daí eu vou focar mais no trabalho que a mídia esconde do Haiti, não

fala sobre o Haiti, mas eu vou falar, porque no Haiti tem praias bonitas, lugar mais

famoso e eles não falam, eles só falam do terremoto, entendeu? Daí essa campanha

lá no Face nos eventos, a gente está lutando para deixar todos os brasileiros saber

que o Haiti não é só um país pobre, mas lá tem riqueza também.

Otávio: Ok. E dessas festas, dessas questões da mídia você faz registros disso,

você guarda esse tipo de informação?

E3: Sim, guardo.

Otávio: O que você faz com elas?

E3: Cada vez que tiro fotos guardo as fotos também. Daí mando imagem,

compartilhamos também. Eu entro lá no Google pego as imagens do Haiti, as

imagens recentes e compartilho com amigos ou amigas brasileiras. “Olha o que a

mídia está fazendo, está falando sobre o Haiti e olha outro lado, olha algumas praias

bonitas lá, alguns lugares...”. Daí eles começaram a fazer uma comparação: “Ah,

nossa, a mídia só fala do terremoto, que o Haiti é um país pobre, é um país que

sempre tem guerra civil, etc. Mas a mídia nunca fala sobre o Haiti no sentido bem,

“Ah, lá tem praia bonita”, “É a primeira República negra que foi independente”, uma

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guerra... isso não é tão fácil. Aí a gente usa o Face, usa o Instagram, postando as

fotos, etc. Nos eventos também fala sobre o Haiti, vende a nossa cultura, isso.

Otávio: E você acha que isso tem alcance para os brasileiros, eles olham e mudam

a opinião?

E3: Sim, mudam.

Otávio: Legal. Eu quero só voltar numa pergunta, que você, uma hora falou, que

você faz as pesquisas para o teu curso, para as Relações Internacionais. Eu queria

voltar naquela primeira pergunta. Quando você decidiu vir para Curitiba, você falou

que tinha um conhecido aqui, você pesquisou sobre Curitiba no Google?

E3: Sim.

Otávio: Então você chegou já conhecendo alguma coisa sobre a cidade?

E3: Sim, conhecendo algumas coisas porque aquele meu amigo que morava aqui,

quando ele falou eu morei aqui em Curitiba, estado do Paraná, etc. Daí eu falei:

“Curitiba? Deixa eu fazer uma pesquisa”. Entrei lá, Curitiba, estava vendo Jardim

Botânico que todo mundo conhece, Rodoviária... pesquisei alguns lugares, até que

descobri que tudo estava na internet e aí falei: “Ah, então tá bom”. Olha o tamanho

do Paraná mesmo é muito grande e eu consegui vir até aqui... Nunca fui em outro

lugar, só em Curitiba.

Otávio: Só no Paraná. E você pretende conhecer outros lugares aqui?

E3: Só pra passear.

Otávio: Só pra passeio. Você gosta de morar aqui?

E3: Sim, eu gosto aqui, porque no Brasil cada estado fala um idioma diferente, então

como eu peguei o português curitibano, não quero misturar mais senão fico perdido.

Otávio: E sua filhinha é curitibana?

E3: É, curitibana. Nasceu aqui na UPA.

Otávio: Bacana. Uma última pergunta pra gente poder terminar. É evidente que o

mundo hoje está muito interconectado e vocês sentem isso na pele quando têm que

conversar com pessoas de fora. Assim, como está hoje, você acha que essa

interconexão tem ajudado mais ou atrapalhado para as pessoas compreenderem o

mundo?

E3: Aquela interconexão que você está falando ajuda e atrapalha. Ajuda mais

porque posso dizer que graças a essa interconexão entre mim e você é que hoje

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você está aqui, mas tem gente que só usa para criticar, entendeu? Mas você está

usando no sentido bom. Você está fazendo um trabalho, você vem até a casa do

E3* conhece um pouco do E3*, conversa. Essa interconexão é boa, mas tem gente

não: “Ah, eu fui lá à casa do E3* e ele está morando bem mal, está dormindo no

chão”. Dessa não vale a pena, entendeu? Para mim é assim.

Otávio: Entendi. Você tem contato com a Associação dos Haitianos?

E3: Sim.

Otávio: Como você é liderança é uma boa relação?

E3: É uma boa.

Otávio: Que é um grupo também de haitianos. E você acha que eles têm ajudado na

imagem, têm feito coisas interessantes aqui para os haitianos em Curitiba?

E3: Sim. Por exemplo, no livro, vamos supor, não é só E3* que está no livro, a gente

organiza partida de futebol, joga futebol, porque na verdade não é só futebol que a

gente tem, é Associação mesmo, Associação Esportiva Haitiana do Paraná, daí

dentro dessa associação a gente tem teatro, tem música, tem futebol e logo, logo a

gente vai colocar uma parte de educação para ajudar os haitianos, quem fala melhor

português ajuda o outro. Também a gente vai colocar a parte de saúde. A gente vai

até a Prefeitura, bem no começo de janeiro para conversar com o Prefeito, com o

Secretário Geral da Prefeitura. Vamos supor, uma vez por mês pra fazer uma clínica

aqui ou os haitianos têm direito para fazer consulta, essas coisas. A gente está

lutando por isso, mas é uma associação isso.

Otávio: Mas essa não é dos haitianos, lá da Emília*, que ela é Presidente. É outra

associação?

E3: É outra associação.

Otávio: Beleza, é isso.

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ENTREVISTA (E4)

Idade: 29

Sexo: F

Estado Civil: Solteira

Instrução: Estudante (enfermagem)

Religião: Protestante - Mórmon

Profissão: -

Ocupação: Desempregada

Cidade que veio: Ilha de Tortuga

Quando e como chegou: 2 anos / Argentina (viveu 3 meses) e ônibus para Curitiba.

Otávio: Quando você veio para Curitiba, qual foi sua principal fonte de informação?

Foi alguém, algum meio de comunicação...

Entrevistado 4 (E4): Sim, foi alguém. Agora ele mora em Curitiba. Quando eu

estava na Argentina estava dependendo da minha mãe, porque minha mãe que

mandava dinheiro pra mim, depois faltava um papel na faculdade, não consegui

trabalhar. Argentina é um povo meio racista, sabe? Aham, muito racista. Depois ele

estava falando: “Ah, gente brasileira é boa”. Aí eu falo: “Melhor eu viver em um país

como Brasil do que Argentina, porque eu não gosto de racismo”. Depois eu falo pra

ele: “Pode levar a gente?”. E ele: “Sim, posso”. E a gente veio para o Brasil.

Otávio: Então foi uma questão pessoal sua e você conhecia alguém que te trouxe.

E4: Aham.

Otávio: Como você sabia que o Brasil não era racista? Ele falava para você?

E4: Ele falava que a gente (brasileira) era melhor do que na Argentina.

Otávio: E porque você foi para a Argentina?

E4: Não sei... Porque depois do terremoto, sabe, estava um pouco difícil pra gente

estudar e tinha uma prima minha que morava na Argentina e depois ela morava

antes da Argentina. E ela falou, o pai dela, ela falou com minha mãe: “Ah, agora a

situação está difícil por causa do terremoto...”

Otávio: Em relação aos amigos e parentes que você mantém no Haiti, as pessoas

que você tem contato aqui no Brasil. Os temas de conversas de vocês são

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relacionados ao que aparece na mídia? Por exemplo, apareceu uma coisa na

televisão, vocês conversam sobre isso ou dificilmente?

E4: ...

Otávio: Não tem muito? O que aparece não é pauta de conversa...?

E4: (Aceno negativo).

Otávio: Ok.

Otávio: Em relação à televisão, você assiste?

E4: Aham, muito.

Otávio: Que tipo de programa?

E4: Eu gosto de Tribuna da Massa – no SBT –, as novelas e jornal também. Às

vezes eu assisto programa na Globo também, que é... Voz do Brasil...

Otávio: Rádio? Rádio você ouve?

E4: Não.

Otávio: Jornal? Impresso, de ler.

E4: Não.

Otávio: Mais TV.

E4: Mais TV.

Otávio: E internet?

E4: Eu gosto muito.

Otávio: E qual a frequência que você acessa a internet?

E4: Quando eu uso a internet é só Whatsapp e Facebook...

Otávio: Mas é diário, todo dia?

E4: Quando não tem nada para fazer daí eu uso.

Otávio: Você usa mais o celular?

E4: Eu uso.

Otávio: E esse é o principal uso? Facebook...

E4: Whatsapp, Quick.

Otávio: O que é o Quick?

E4: Eu acho que só gente dos Estados Unidos sabe o que é. “Imo”...

Otávio: São aplicativos de relacionamento?

E4: Aham. Youtube, não.

Otávio: Youtube não?

E4: Às vezes, porque eu faço plano quando eu uso o Youtube e acabou.

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Otávio: E você participa de algum grupo de haitianos nas redes sociais?

E4: Aham.

Otávio: Qual?

E4: Team Brothers.

Otávio: Hãm?

E4: O nome é um pouco difícil.

Otávio: Está em crèole?

E4: Posso mostrar pra você depois.

Otávio: Ok. E que o significa em português?

E4: Tem um monte de amigas minhas que moram nos Estados Unidos e tudo...

Otávio: Mas só de haitianos?

E4: Não. Por exemplo, os haitianos que estão fazendo isso, mas se assistir como no

cobo (?) você não entende nada. Depois a gente está falando: “Ah, gosto desse

grupo”. Se você quer eu posso adicionar você.

Otávio: Mas a maioria é haitiano?

E4: Sim.

Otávio: E você interage nesse grupo ou mais lê?

E4: Só quando a gente faz uma publicação e se eu gosto eu curto.

Otávio: Eu queria saber se você já assistiu a algum vídeo ou documentário sobre os

haitianos, feito aqui em Curitiba. Chegou assistir algum?

E4: Não.

Otávio: Normalmente nos eventos que as organizações, Festa Latina, Festa

Haitiana, percebemos que os haitianos usam muito os celulares, registram muito,

tiram muitas fotos. Primeiro eu gostaria de saber se você costuma fazer isso

também...

E4: Às vezes eu tenho o costume, mas quando eu chego em casa eu tiro tudo.

Otávio: Como assim? Joga fora?

E4: Eu chego em casa e tiro tudo.

Otávio: Mas qual é o principal motivo, então, de fazer?

E4: Nada. Só às vezes passo, por exemplo, assim, você está fazendo um teatro,

você vai se apresentar cantando e aí me pedem para fazer uma foto e eu faço.

Depois eu mando para você e depois eu tiro.

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Otávio: Ah, tá. E esses registros o pessoal usa mais para quê?

E4: Para guardar... “Olha o que eu faço! Estava cantando na Festa Latino-

Americana!”. Para mostrar para amigos.

Otávio: E você já recebeu?

E4: Só minha prima que tinha, quando ela foi na Festa Latino-Americana. Não sei se

você lembra, minha prima fez um teatro e ela tem isso no Youtube.

Otávio: E aí ela faz isso pra registrar...

E4: Aham.

Otávio: Essa já é uma pergunta de reflexões. Desses eventos, que as organizações

têm feito junto com os haitianos e de outras nacionalidades que estão aqui, mas

especialmente os haitianos, você acha que essas atividades mudaram de alguma

maneira a forma dos brasileiros olhares os haitianos?

E4: Não sei, porque nunca fui assistir, fui uma vez só.

Otávio: Mas até aqui, os brasileiros que vêm conhecer a Pastoral, você acha que

muda um pouco a forma de ver? Ou alguém que tem contato com haitiano. Tem uma

mudança de olhar?

E4: Não.

Otávio: Beleza. Em relação a essas organizações de apoio, você acha que elas são

importantes para construir uma imagem positiva aqui na cidade?

E4: Sim, claro. Ajuda bastante.

Otávio: Por quê?

E4: Porque... como, por exemplo. Ai, não sei como posso explicar isso.

Otávio: Se quiser falar em espanhol eu entendo.

E4: Não sei como posso explicar isso. Quando, como... ai, não sei se o que eu vou

falar é verdade. Por exemplo, quando uma pessoa chega aqui, como, por exemplo...

Eu quero fugir dessa...

Otávio: Você não quer responder?

E4: Não...

Otávio: Não tem problema. Mas você acha que ajuda?

E4: Ajuda!

Otávio: Tem uma mudança de olhar...

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E4: Ajuda. Bastante.

Otávio: E qual é a melhor ocasião para os haitianos manifestarem sua identidade na

cidade? “Isso aqui é o Haiti!”, e mostrar isso para que as pessoas possam ver. Como

é a melhor maneira disso ser passado?

E4: ...

Otávio: Não tem ideia?

E4: Não...

Otávio: Beleza. Eu gostaria de saber a sua opinião sobre quais são os problemas de

comunicação que vocês têm aqui no Brasil?

E4: Comunicação. Como o quê?

Otávio: Em todos os sentidos.

E4: Nada. Pra mim nada.

Otávio: É fácil pra você se comunicar... com brasileiros também?

E4: Aham.

Otávio: Onde você conversa mais com brasileiros?

E4: Em minha casa! Nunca morei com gente do Haiti.

Otávio: E quantos brasileiros são?

E4: Três. Eu moro em um condomínio que não tem haitiano e agora tem um. Não é

um casal, é um menino que trouxe a namorada. Mas só com brasileiro. Trabalho só

com brasileiro.

Otávio: Então toda sua vida está permeada por pessoas do Brasil! Você ter morado

com brasileiros desde sempre ajudou você a se integrar mais?

E4: Como na igreja também... eu estou em uma igreja que não tem haitiano.

Otávio: Qual que é?

E4: É na igreja de Mormon, que está aqui perto. Eu moro só com brasileiros, não

moro com haitianos, trabalhando só com brasileiros. Como eu estava em um

trabalho que tinha – eu acho que – 117 pessoas e eu só de haitiana.

Otávio: Legal. E você pretende ficar aqui no Brasil?

E4: Sim.

Otávio: Você pretende voltar para o Haiti?

E4: Vou voltar. Depois de estudar.

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Otávio: Uma última pergunta: Hoje o mundo está mais interconectado, né. Meios de

comunicação, todas essas coisas. As pessoas conseguem se conectar cada vez

mais rápido. Você acha que isso ajuda mais ou atrapalha mais?

E4: Ajuda mais.

Otávio: Por quê?

E4: (Risos)

Otávio: Esses porquês são chatos, né!

E4: Esses porquês são chatos demais!

Otávio: É só pra instigar mais!

E4: Às vezes eu não consigo explicar muito, sabe?!

Otávio: Ah, tá bom!

E4: Tem perguntas que eu quero fugir.

Otávio: Mas você acha que ajuda mais, né?

E4: Ajuda muito!

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ENTREVISTA (E5)

Idade: 31

Sexo: F

Estado Civil: Casada (2 filhos).

Instrução: 2º grau completo

Religião: sem religião

Profissão: Vendedora Turismo

Ocupação: Tradutora escolar / Diarista

Cidade que veio: Semak – Punta Cana

Quando e como chegou: há 4 anos (Rep. Dominicana – Chile por 9 meses – Peru –

Manaus, tudo por avião).

Otávio: Eu queria começar perguntando para você qual foi a sua principal fonte de

informação para você chegar aqui em Curitiba. Qual foi a principal forma de

comunicação, se foi pessoas, se foi algum meio de comunicação que fez com que

você descobrisse Curitiba. Como essa descoberta de Curitiba?

Entrevistado 5 (E5): Curitiba foi mesmo porque foi uma empresa, chegando em

Manaus, uma empresa de mina de ouro contratou meu marido para Curitiba. Daí

depois me contrataram como cuidadora de idoso. Foi assim que nós viemos aqui.

Através daquela empresa que foi lá em Manaus nos contratar.

Otávio: Então vocês descobrirem por eles. E vocês chegaram a pesquisar algo

sobre a cidade ou descobriram tudo aqui?

E5: Descobrimos tudo aqui porque chegamos direto e no outro dia começamos a

trabalhar. Eu não tive tempo para fazer pesquisa, essas coisas.

Otávio: E quando vocês vieram da República Dominicana para o Chile, porque

escolheram o Chile?

E5: Porque como eu trabalhava com turismo conhecia muito o Chile e o pessoal

convidou falando como era o Chile, o salário, tudo. Nós pensamos que lá era melhor

do que nós ganhávamos e decidimos ir para o Chile, mas chegando lá nós não nos

adaptamos por causa do frio que faz lá. Daí pensamos em mudar e já que tínhamos

amigos que moravam em Manaus, ele nos explicou sobre os documentos que

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davam aqui, que podíamos vir aqui e íamos receber os documentos, que não ia ficar

ilegal e aí decidimos ir para Manaus. Chegando em Manaus nós não ficamos nem

um mês. Conseguimos aquela empresa que te falei e viemos para cá.

Otávio: Você tem parentes no Haiti e na República Dominicana ainda, né?

E5: Sim.

Otávio: Eu queria saber se alguns assuntos que passam na mídia – na televisão, no

jornal – tanto do Brasil quanto de lá é pauta da conversa de vocês. Vocês chegam a

conversar sobre os assuntos que estão na mídia?

E5: Não entendi. Pra eles falaram ou na mídia mesmo?

Otávio: É assim: pra vocês conversarem, o que mostra, o que aparece na mídia...

vocês chegam a conversar sobre alguns assuntos?

E5: Não.

Otávio: Você tem celular?

E5: Tenho.

Otávio: E qual o principal uso que você faz dele?

E5: Para fazer chamadas, aqui mesmo. Porque quando eu vou chamar para lá –

Haiti, qualquer outro país – eu não faço no celular. Eu vou a um centro... cyber café,

não sei como fala... que tem chamada, ligação, ou eu faço por notebook. É muito

caro, muito, muito.

Otávio: Você usa Skype?

E5: Às vezes eu uso, mas depende do sinal porque a internet também é ruim; mas

eu vou a um centro de chamada e faço a ligação e pago.

Otávio: Então o celular para você é mais para uso de ligação local?

E5: Aham. Local, isso.

Otávio: E você usa o Whatsapp nele. Tem?

E5: Tenho agora, mas uso pouco também.

Otávio: E internet? Você usa... tem?

E5: Tenho. Uso internet.

Otávio: Com que frequência?

E5: Agora é mais final de semana, mais ou menos, porque durante a semana é

muito corrido e aí... ou às vezes se tenho que fazer relatório do trabalho ou alguma

coisa assim, aí eu uso. Mas eu uso bem pouco, final de semana eu uso mais.

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Otávio: E qual o principal motivo que você usa a internet?

E5: Ah, pra ver meu e-mail, ver se meu serviço me mandou um e-mail, meu chefe

me mandou um e-mail, para ver os amigos. Às vezes eu dou uma olhada no Face,

mas eu uso mais no final de semana mesmo.

Otávio: E televisão, jornal, revista... Você usa algum deles?

E5: Antes eu via os jornais de manhã, só que isso me estressa e agora eu não estou

usando.

Otávio: Mas por quê?

E5: Ver algumas coisas de violência, algumas coisas me estressam bastante. Ver

uma pessoa invadir uma casa, essas coisas me estressam e aí eu não assisto mais

jornal.

Otávio: E aí tirando isso você não tem assistido mais TV?

E5: Aham. Eu assistia, agora não. Agora pra ver TV em casa é desenho mesmo

porque meus filhos assistem muito desenho e às vezes eu acompanho eles, mas a

maioria das vezes eu não consigo.

Otávio: Você disse que não usa muito o Facebook, mas mesmo assim vou

perguntar: você participar de algum grupo de imigrantes, de haitianos, no Facebook?

Aqueles grupos fechados.

E5: Eu vi um grupo, não sei se coloquei que gostava desse grupo e me mandam

tudo que passa lá. Um grupo que eu vi que eles colocaram “Haitianos no Brasil”. Eu

coloquei que gostava e aí eles me mandam tudo... as fotos, tudo. Mas não comento

nada, só vejo as fotos.

Otávio: Em relação às fotos, e aí eu já vou entrar um pouco no trabalho das

organizações, nas atividades que as organizações fazem, uma coisa que é muito

comum da gente ver é os imigrantes usarem muito o celular para registro. Às vezes

tem uma banda e muitas pessoas ficam filmando e eu queria saber, primeiro, se

você costuma fazer isso também e se você sabe qual uso é dado para esses

registros. Como é que as pessoas usam depois?

E5: Eu não sei, não sei. Como eu te falei, eu não sou muito de telefone e eu não

filmo quando eu estou lá, só vejo. Às vezes quando alguma pessoa me manda um

vídeo, assim, mas possivelmente que eles divulgam para verem o que fizeram,

atividade que está tendo. Não só do Haiti, mas se está tendo dia da bandeira, eles

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divulgam nossa festa ou mandam para os outros haitianos que estão longe, mas eu,

principalmente, quase não filmo.

Otávio: O que você gosta mais dessas festas? Qual é seu interesse maior nelas?

E5: Meu interesse maior é que eles conheçam nossa cultura, nossa comida, umas

coisas diferentes pra vocês.

Otávio: Em relação a esses temas que você tocou, essas atividades realizadas,

você percebeu uma mudança na forma dos brasileiros olharem os haitianos?

E5: Não sei. Eu não posso falar de todos eles, mas alguns vêm e falam “Ah, eu

gostei da comida de teu país”. Porque alguns acham que nós só comemos terra lá,

tem comentário assim e machuca, né. E aí ver que alguns conhecem nossa cultura e

já vê com outra ideia, imagem, né. Mas isso aí é com quem está mais próximo de

mim, né. Daí os outros eu não sei o que eles pensam.

Otávio: E você acha que pra essa construção de uma imagem positiva do haitiano

aqui no Brasil essas organizações elas desempenham um papel importante nisso?

E5: Acho que sim.

Otávio: Por quê?

E5: Porque eles acabam descobrindo algumas coisas que eles não sabiam que

existiam porque eles só assistem as coisas ruins que existem e as organizações

mostram outra imagem do Haiti porque a maioria dos brasileiros só tem em mente o

momento do terremoto.

Otávio: E você acha que esse é o principal problema de comunicação que há entre

brasileiros e haitianos...

E5: Não, com certeza que não.

Otávio: Você consegue pensar em outro problema de comunicação?

E5: Não sei. Porque se tem alguma coisa que eu não tenho certeza e é só da minha

imaginação eu não vou afirmar para você que é a realidade, não sei se me entende.

Otávio: Sim, não tem problema. Em relação a identidade haitiana, qual a melhor

ocasião que você pra que vocês possam manifestar o “ser haitiano” aqui em

Curitiba?

E5: Acho o Dia da Bandeira mesmo. Eles pegam a bandeira, colocam um uniforme,

uma camiseta com a bandeira do Haiti e é esse dia, eu acho.

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Otávio: E você já chegou a fazer registro disso, ou não?

E5: Não.

Otávio: Mas o pessoal faz...? Já recebeu alguma imagem?

E5: Imagem, foto. Uma vez recebi sim de uma amiga que estava na festa. Ela

mandou algumas fotos pra mim.

Otávio: Ela estava na festa de Curitiba e você não?

E5: Eu estava, mas eu estava na cozinha! Eu sempre vou e ajudo na cozinha, com

as comidas e ela sabendo que eu não estava naquela parte que eles cantam, daí ela

mandou algumas fotos para mim.

Otávio: Aí os amigos te ajudam e você consegue ver um pouquinho!

E5: Aham.

Otávio: Uma última pergunta: O mundo está muito mais interconectado. Vocês

conseguem ter contato com pessoas de longe, ao mesmo também tem de tudo...

Você acha que isso ajuda ou atrapalha para compreendermos o mundo como ele é?

E5: Depende de como a pessoa vai usar. A maioria às vezes ajuda, mas depende

de como a pessoa usa, não ajuda. Por exemplo, se a pessoa pega uma foto e

coloca tudo ao contrário do que estava acontecendo e faz uma coisa contra ou um

comentário negativo que não era... através de uma mentira, não sei, qualquer coisa,

aí não está ajudando. Mas se está mostrando, falando, aí sim vai ajudar. Por

exemplo, aquele dia eu não podia tirar as fotos porque eu estava na cozinha e minha

amiga veio, faz e manda pra mim no Face, daí ela ajuda, né. Eu nem vi como estava

o lugar, como estava decorado, porque eu só fiquei na cozinha, aí ajuda.

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ENTREVISTA (E6)

Idade: 30

Sexo: M

Estado Civil: Solteiro

Instrução: Ensino Superior (Contabilidade e cursando Análise de Sistemas)

Religião: Batista

Profissão: Contador

Ocupação: TI

Cidade que veio: Gonaives

Quando e como chegou: Há 3 anos (Avião: República Dominicana – Manaus)

Otávio: Qual foi sua principal fonte de informação para você vir pra cá? Primeiro,

como você ficou sabendo do Brasil e depois porque Curitiba? Alguém falou, você viu

em televisão, como é que foi isso?

Entrevistado 6 (E6): Cara, pra mim acho que é um pouco diferente. Antes, quando

eu fui tomar a tomar a decisão de ir ao Brasil eu pesquisei bastante, entendeu? Eu

tinha acesso à internet, lá na faculdade no Haiti e eu pesquisei bastante. A parte

mais importante pra mim é que o Brasil estava no 5º lugar das economias o mundo.

Às vezes eu penso que eu sou uma vítima da propaganda do Brasil lá fora. Porque

lá fora não mostram as favelas, não tem demonstração da miséria do Brasil, isso fica

mais escondido. A propaganda do Brasil é forte e eu cheguei aqui e vi outra coisa,

entende? Eu sei que tem miséria no Brasil, mas eu achei que era fraco e quando eu

cheguei eu vi que era outra coisa. Mas fora tem turismo, grande, e a economia é

muito boa. Depois vai ter a Copa do Mundo, o Brasil vai crescer mais. Eu estava

pensando assim, mas aí eu cheguei ao Brasil e estava em Manaus, porque eu tinha

uma amigo lá e ele me ajudou bastante, mas aí eu cheguei lá e vi que Manaus tem

uma grande diferença com o Haiti: a temperatura, o calor demais... Manaus é uma

zona franca, entendeu? Quando você olha Manaus é outra coisa, parece que você

não está no Brasil ainda... o povo, a cultura. “Nossa, isso aqui é difícil”. Eu passei

três meses lá em Manaus e aí eu decidi deixar Manaus. Eu estava procurando

cidade onde tem menos racismo... Tudo que estava fazendo estava baseado em

uma pesquisa, eu sou diferente. Porque quase todos os meus amigos sempre me

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esperaram eu tomar uma decisão. Por exemplo, o cara que mora aqui veio comigo

porque eu que fiz as pesquisas todas. “Nossa, vamos escolher Curitiba!”. A gente

encontrou um curitibano lá também em Manaus e ele falava bem de Curitiba,

embora a gente faça pesquisas sobre as diferenças dos lugares do Brasil e aí o cara

não falou bem de Curitiba. São Paulo, eu não gostei de São Paulo, porque tinha

uma ONG lá... Médicos Sem Fronteiras, aí falou sobre cada cidade do Brasil. Ele

falou que São Paulo, quando, tipo, quando tem bastante fuga, tem bairros onde

sempre chega água. Nossa, eu não vou morar em São Paulo... todo mundo queria

São Paulo! Rio é uma cidade muito cara, é uma cidade que só faz turismo,

entendeu? E se a gente está procurando uma vida melhor não tem pra gastar mais.

Então, uma cidade pra eu não poder gastar mais, uma cidade pra eu economizar,

pra eu poder sobreviver. Rio não tem segurança confiável. São Paulo tem bairro que

você pode morar e vai encontrar muita chuva. Porque eu vivi na minha cidade, uma

vez a água chegou a doze (dois) metros. Se um dia você fizer uma pesquisa sobre

Gonaives você vai achar isso. Uma vez teve uma inundação e teve quase 3 mil

mortos. Quando falou em água eu logo fico com medo, não gostei, né. O cara me

falou e daí eu tenho um amigo aqui em Curitiba e ele me falou também. O cara que

vem de fora ele quer achar um emprego rapidinho também, entendeu? Aí o cara

falou “Lá tem um lugar e você pode achar um emprego rapidinho”. Qualquer lugar

que você vai lá, qual o setor que você quer trabalhar e vai indo. O cara que está aqui

falou: “Vem hoje e amanhã você já pode vir trabalhar”. Nossa, não tem jeito, cara.

Você vai escolher essa cidade também. Tipo, eu não sabia que Curitiba também era

uma cidade assim. Chegando em Curitiba eu gostei, apesar que eu tenho um amigo

que já deixou Curitiba, entendeu? Nossa, eu não sei quando eu vou deixar Curitiba

porque eu estou muito bem aqui. Não é preciso ganhar muito dinheiro pra poder

sentir muito bem, mas estou legal aqui, pra mim. Não sei se vou conseguir fazer

minha vida aqui, essa pergunta não tem como responder, só Deus que sabe, mas,

por enquanto, estou legal e escolhi uma cidade legal também. Se você pensar em

Curitiba, você pode pensar em qualquer cidade do mundo. Uma cidade da França,

do Quebec... não sei se você concorda comigo.

Otávio: Ótimo, era isso mesmo. É legal porque você teve várias influências. Você

pesquisou e teve amigos também que te ajudaram. Então você teve uma escolha

consciente para onde você estava indo. E eu queria saber em relação às notícias

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que aparecem aqui no Brasil e as notícias que têm no Haiti, sobre vários assuntos.

Você e os haitianos que estão aqui e seus parentes que continuam no Haiti, vocês

costumam conversar sobre esses assuntos que vocês veem na televisão, na

internet... vocês conversam sobre isso?

E6: Do Haiti sim. Quinta-feira ou sexta-feira eu estava ouvindo uma rádio do Haiti e

ela estava falando sobre o impeachment da Dilma. Tipo, pra mim ele estaria falando

outra coisa. Nossa, eu estou aqui e isso não é verdade, entendeu? Falar sobre os

assuntos do Brasil com meus amigos do Haiti. Estou falando de verdade, cara, não

dá pra se preocupar da propaganda da TV. Tem um monte de coisa que está

escondida e quando você chegar lá na realidade você vai ver, entendeu? Porque

tem amigo meu: “E6*, eu já tenho visto lá do Brasil, o que você acha?”. “Nossa você

já tem visto, cara?”, eu falei. “Você quer começar do zero? Se você quiser começar

do zero pode ir. Eu posso te acolher na minha casa, eu vou te ajudar a procurar

emprego, mas se você quiser começar do zero”. Porque eu comecei do zero, tem

que deixar tudo para trás. Tipo, você estuda uma coisa, né. Tem que colocar menos

dois, não zero, porque você vai enfrentar uma língua que não é sua... que é difícil,

cara, pra se adaptar. Cara, cheguei em Curitiba por aqui eu fiz bastante amizade. O

patrão não é o fator principal. O gerente, meus amigos, se eu quiser voltar aqui eu

não tenho problemas de voltar aqui. Porque graças a mim, cara, o gerente pode

colocar outro haitiano nesse salão. Você pode perguntar para qualquer gerente aqui.

O cara, só uma vez me olhou lá atrás na cozinha... ele me olhou, cara e disse “Você

não vai ficar no staff, cara, você vai ficar no salão”. Eu falei: “Como eu vou conseguir

fazer isso? Eu não sei nada sobre a língua, como eu vou falar?”. “Só olhar o cliente,

dá um sorriso, falar oi, levar prato, trazer o pedido...”. Aí a gente começa a crescer.

Depois de três meses ele me dá o código pra eu começar a vender. Pra eu poder

vender é só eu escrever em uma coisa. Eu estudei um pouco pra poder lembrar e

poder falar para o cliente. Aí começa mudar, eu fui ao Celin, estudei um pouco a

língua e me ajudou bastante. Aí eu decidi sair daqui, entendeu? Aí eu vou

recomeçar, deixar zero agora, pra ir a um, a dois... Do Brasil, se você quiser voltar,

vem. Caso contrário, fica no Haiti, não tem muita diferença. Também estava foda,

tem muita pressão da minha família, pressão pra não poder voltar. Porque eu tinha

um irmão meu, irmão falecido por morte de câncer, e minha família estava com

medo porque o médico falou que pode ser uma coisa hereditária e no Haiti não tem

médico pra poder curar essa doença, entendeu? Eu estava com medo, cara! E isso

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me ajuda pra poder sair. Agora, se eu voltar para o Haiti parece outra vida para mim.

Deixa assim, cara. Tá bom?

Otávio: Perfeito. Você tem celular, né? E qual o principal uso que você faz do

celular?

E6: Pra usar um site... Facebook. Ligação... eu não sou um cara que gosta de falar

bastante, não. Viber, Whatsapp pra poder me comunicar mais fácil, pra não gastar

mais dinheiro, comprar mais crédito. Pra poder falar com minha família.

Otávio: Em relação à internet. Qual a frequência que você usa?

E6: Como assim?

Otávio: Quantas vezes você por dia, se usa todo dia...

E6: Pra mim todo dia.

Otávio: E principalmente que tipo de site, pra quê você entra...?

E6: O Google, que é minha página principal, Gazeta do Povo, daqui do Brasil, um

site do Haiti, Le Nouvelliste, quase mesma coisa, mesmo assunto...

Otávio: É um jornal?

E6: Sim. Dá informações sobre o que está acontecendo no Haiti, entendeu?

Otávio: Ah, tá. É o principal site do Haiti esse? De notícias?

E6: Pra mim sim. Tem 100 anos. Que mais? Euronews. Eu sou um cara mais ligado

na notícia.

Otávio: Você entra na internet pra se informar. E Facebook, você bastante uso dele

ou não?

E6: No Facebook é pra ser de tudo. É tecnologia, notícia, tudo. Por exemplo, aqui,

você pode deixar ligado, pra ver notícia.

Otávio: Euronews é da França, né?

E6: Não é só da França, tem em Portugal também. Mas pra mim fica melhor por

causa do idioma.

Otávio: E em relação ao Facebook, você participa de algum grupo fechado só de

haitianos ou só de imigrantes?

E6: Estou, mas não deu certo pra mim porque eu não gostei.

Otávio: Que grupo que é? Você pode falar pra mim ou não?

E6: Esqueci, cara. Não tem uma coisa boa nesse grupo. Tem cara que só posta foto

e no grupo do Whatsapp também, o cara só posta foto, falando que está tomando

cerveja. Tira foto com a cerveja e aí vai fazer o barulho no meu telefone. Eu tenho

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um grupo que eu coloquei lá e tem só cinco pessoas que a gente tá morando. São

cinco pessoas diferentes. Por exemplo, o cara pode fazer uma coisa que pareceu

ruim e outro cara vai escrever no grupo: “Ô cara, aquilo lá que você fez eu não

gostei”. É assim. No grupo, eu tenho outro grupo – eu tenho dois grupos – eu não

vou falar três grupos porque o grupo que estou lá agora, “Haiti 2016”, o grupo da

galera que vai ao Haiti lá. Eu tenho um grupo que chama “Friends forever”, passa

muito tempo, muito tempo... a gente estudou e estamos em vários países e fazemos

um grupo, entendeu? Você vai ver como vai, tipo... guardar amizade entre nós.

Otávio: Deixa eu perguntar uma curiosidade. Essas fotos que o pessoal tira

bastante, eu já vi, é meio comum, me parece, você acha que os haitianos têm mais

essa coisa da imagem do que os brasileiros ou não?

E6: Depende do grupo, entendeu? Por exemplo, um dia eu acabei ficando em casa

e não gosto de usar crédito da Tim, gosto de usar o wireless que está em casa. Aí...

quase 80 mensagens, cara. Nossa, que isso!? 80, por quê? Eu estava em um grupo

e a galera colocou, né. Pergunta antes. Eu vi as fotos... a mesma coisa! Imagem, os

haitianos têm bastante coisa feia... morte, tudo. Eu não gostei de ver de morte, não

sei pra que colocar. Eu gosto de um grupo que tem um assunto. Se tem uma

atividade pra fazer cria um grupo. Eu sou um cara que não gosto de colocar muita

foto, colocar foto, ficar mostrando, entendeu? Até no Facebook... eu postei uma

coisa para lembrar. Por exemplo, eu tenho um amigo que foi lá para o México e a

gente postou uma foto junto e eu não sei como vai ser em Curitiba, pra marcar esse

evento, mas não é toda foto, não.

Otávio: Você chegou a assistir a algum vídeo ou documentário aqui no Brasil que

fizeram sobre os haitianos?

E6: A última vez estava assistindo era um cara falando, estava na internet, acho que

a Casla também porque eu curto Casla na internet, no Face. O cara que estava

falando ficou muito chateado porque estava sentado no ônibus e o cara não queria

sentar do lado dele, não sei se você já viu esse vídeo.

Otávio: Mas é um vídeo real?

E6: Reportagem. Não somos assim, coisa louca o que ele está falando. Isso não é

racismo, entendeu? Interpretação muito ruim, cara. Porque tem amigo meu que fala

isso também: “Ô, E6*, você não está percebendo que quando você está sentando

em um ônibus ninguém quer sentar ao lado de você?” Eu não! Entendeu? Pode

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procurar, tem um vídeo lá. Novela também, eu vi um ator e eles só falam sobre

isso... ninguém quer sentar ao lado dele. Nossa, que besteira cara, isso não é o

maior problema para mim. Tipo, tem lugar, até eu já fiz. Você senta ao lado de uma

pessoa e eu posso ver outro lugar, cara, eu vou deixar esse lugar e vou sentar em

outro lugar. Essa não é minha preocupação: quem vai sentar ao lado de mim –

velha, velho, mulher, homem – não adianta, todo mundo é igual. Eu acho coisa que

tem gente que começa assim, que qualquer coisa é racismo... quando é cor

diferente, entendeu? Eu lembro uma vez que eu estava lá e ele veio sentar aqui e

ele chamou de “negão”, me chamou “negão”. “Negão, vem aqui!”. Isso não é

problema para mim, me chamar de negro, o problema era a tonalidade que ele

estava usando, o jeito que ele estava falando comigo. Ele falou: “Ô, negão!”, eu sei

que ele está tomando cerveja. Eu falei: “Cara, você pode me chamar o gerente pra

eu ir embora, mas eu não vou te atender”.

Otávio: Você falou isso pra ele?

E6: Falei. “Eu tenho que trabalhar”. Eu falei em voz alta: “Eu não vou te atender.

Você não é educado. Pode ficar de pé, você não vai me encher. Você não fez nada”.

Eu falei: “Eu não vou te atender”. O gerente mandou me chamar: “Ô cara, você pode

me mandar embora hoje, mas eu não vou atender esse cara, ele não é educado.

Esse lugar não é pra ele”. Ele pode ir num barzinho, lá no Guadalupe, pra tomar uma

cerveja e falar qualquer besteira... Aqui você pode vir mais educado. Esse lugar não

é pra ele. Aí o gerente que estava aqui falou: “Ele não vai te atender e você pode ir

pra sua casa. A gente não vai pegar seu dinheiro”. Ele ficou frustrado depois e ele

me chamou: “Ô, cara, desculpa, eu estava bebendo”. “Eu sei, cara, eu te conheço.

Não tem problema me chamar de negro...”. Isso não tem problema, não é racismo

para mim. Cara, racismo é uma etiqueta, entendeu? Se você está, nossa, se você

concorda, você é uma vítima. Quando o cara está colocando etiqueta sobre você é

outra coisa. Ele está tentando colocar uma coisa. Isso não é uma etiqueta. Porque

uma coisa eu não gosto é quando o cara está difamando o meu nome. Se eu chamo

E6* eu me chamo E6*, não dá outro nome pra mim. Se você me chama de outro

nome eu não vou te responder. Se você me chamar “E6*” eu vou te responder. Você

pode fazer qualquer coisa, porque eu faria isso com qualquer pessoa. Até hoje eu

não fui vítima de racismo. Não sei porque eu não consegui faz uso. Cara, aqui no

Brasil eu ainda não sou uma vítima do racismo. Sério!

Otávio: Nem nesse caso?

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E6: Cara, isso aqui não é racismo. É um cara que é mal educado, entendeu? Um

amigo meu pode chamar, alguma vez, um cara de “Ô, brancão!”. Ele pode dizer

então que é racismo, cara. O racismo não é cor diferente... o cara fala: “Ô, brancão,

vem aqui!”. O cara fica nervoso, entendeu? Então ele me chama de negão...

racismo. Se você concorda, aí é outra coisa. Pra mim é difícil, é educação às vezes.

Otávio: Beleza. Só pra terminar em relação a esses meios de comunicação que eu

estou te perguntando – TV, rádio – você assiste algum aqui no Brasil?

E6: TV. Não gosto, cara. Fico na internet. Meu computador fica perto da minha

cama. Faço tudo. Assisto futebol, tudo no computador.

Otávio: E rádio?

E6: Rádio? Tipo... rádio, esqueci, cara... E-Paraná, passa música clássica,

entendeu? Às 5 horas passa jazz, eu adoro. De manhã também dá informações,

entendeu?

Otávio: Tá. Eu vou entrar um pouco nas perguntas sobre as organizações,

especialmente na Casla, na Associação – as que você teve mais contato, né. No

curso da Casla a gente percebeu, por exemplo, ou em qualquer outro evento que a

gente faz com os haitianos, é que o pessoal usa muito o celular para fazer registros

dos momentos. Eu queria saber duas coisas: primeiro, se você costuma também

fazer isso e se você sabe pra que eles usam esses registros?

E6: É fantasia.

Otávio: Como assim?

E6: Não tem nada. Você está gravando?

Otávio: Sim.

E6: Porque você está fazendo uma coisa séria. Eles não vão fazer nada sério. Vai

chegar em casa e vai deletar tudo.

Otávio: Ah, é? Você acha que eles não guardam?

E6: Guardar o que? Vão fazer o que? Eu peguei outra coisa e fiz assim (...). Não

precisa aparecer essa foto dele, porque ele vai colocar, não sei, no Facebook...

Otávio: Você acha que nem pra registro pessoal?

E6: Vai colocar no Facebook às vezes... É muito engraçado. Às vezes tem um cara

filmando, né. Tem um celular e está filmando. Por quê? O celular não tem

capacidade, o celular vai ficar lento depois. E se vai ficar lento, o que você vai fazer?

Vai apagar. É só uma fantasia.

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Otávio: Mas é meio geral isso, né? Aqui também o pessoal usa toda hora.

E6: É.

Otávio: Você acha que algumas dessas atividades conseguiram mudar a maneira

que o brasileiro vê o haitiano ou outra pessoa que está aqui?

E6: Sim. Porque, pra mim, tem um problema de organização. Os haitianos não têm.

Por exemplo, se eu fosse brasileiro eu falaria isso: Nossa... fazer nada. Cara, você

tem que pensar nisso. O Haiti tem uma cultura boa, uma cultura rica. É difícil, cara...

o povo que está aqui conseguir mostrar. É difícil achar uma pessoa que, tipo, a

música estava ruim. A última vez lá, que eu fui numa festa, estava bastante país lá...

Otávio: Na Festa Latino-Americana?

E6: Isso. Você estava lá também, né? Cara, eu fui lá atrás, estava olhando o lugar

da Argentina... estava muito bonito! Nossa, aí eu fui lá ver o lugar do Haiti... nossa,

que bagunça, cara. Demais, cara! Não sei, você pode me falar direito... O Pedro*,

que é haitiano, ele foi o organizador, né, responsável pela festa. Nossa, o que deu?!

Você faz isso, cara?! A comida que tem aqui, cara, não tem uma decoração perfeita.

Nossa, estava muita bagunça! Isso pode ajudar. Esse povo não tem como vender a

cultura do país. Estava feio, não tem como organizar. 18 de maio... estava falando

com o Pedro*. “Por que vai ter duas festas?”. Eu falei com a Associação também:

“Por que vai ter duas?”. Por quê? Estão fazendo o que? Estão transferindo a mesma

coisa do Haiti: a divisão. Não tem como. Porque o japonês aqui, o alemão, todo o

povo que está aqui no Brasil cresceu bastante? Olha a comunidade japonesa! Muito

respeitada aqui no Brasil, por quê? Porque eles sabem como organizar. Conseguem

fazer alguma coisa. Os haitianos, não. Por que ela quer fazer uma coisa lá no centro

e ele quer fazer uma coisa lá no Santa Felicidade? O Pedro*, cara, está aqui para

poder unir. Vamos pensar com a cabeça junto e fazer uma coisa só pra dar uma

imagem melhor do país. É, cara, tudo fica feio! Na festa da América Latina estava

feio demais, cara. A apresentação haitiana, não tem como... um povo, um povo

muito calmo o de Curitiba... não tem como ser só o Kompa, que é muito barulho.

Tem que se adaptar, entendeu? Isso falta. Nós podemos vir aqui para trabalhar e

nós podemos mudar isso também para apresentar cultura, o que nós podemos fazer.

Vai demorar porque a comunidade haitiana em Curitiba cresceu. Não é que falta

apoio, apoio tem. Se você olhar o povo que tenta entrar na Europa, tipo, apoio é

ruim e no Brasil aqui é bom. Você vai à escola para aprender língua, você vai à

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Federal onde tem o projeto para integrar estudantes, entendeu? Cara, isso aqui é

mole. Você tem trabalho, você tem um visto permanente. Aqui é bom, o apoio do

Brasil é muito forte pra nós, mas nós precisamos colocar a cabeça junto pra poder

crescer. Aí você vai falar do racismo que é o problema. Não é isso cara que é o

problema! Você vai falar que é o racismo e que aqui não tem como crescer, mas se

olhar pra trás, se nós fizemos isso nós podemos chegar mais longe. Mas, porque, se

a televisão, aqui tem um grupo. No centro, a Sueli* faz uma, no Santa Felicidade, o

Pedro* faz uma, todo mundo quer apresentar a ideia do haitiano aqui. Eu tenho essa

possibilidade. Tem um grupo de haitianos aqui que já me chamou. Não tinha

ninguém, cara, e “você vai porque é o presidente da organização”. Se sempre tem

um grupo de Pinhais... de Curitiba, do Santa Felicidade, não tem como trabalhar.

Não tem como trabalhar. Nossa, é divisão, cara. A gente está pensando em fazer

outra coisa: fazer uma cultura intelectual. É uma coisa diferente. Não é todo mundo

que vai poder integrar, mas eu vou ver. Se no final de janeiro, quando chegar, pode

me chamar, entendeu? Aí a gente vai, junta, vemos o que podemos fazer com um

movimento intelectual para pensar sobre o futuro do povo aqui no Brasil, porque a

gente mal começou. Muito ruim. Ano passado, o Globo fez uma reportagem bem

legal no início e esse não teve nada. Tinha a Associação, Santa Felicidade, tudo a

mesma coisa, mas com divisão. Se fosse o contrário, acho que sim, melhor, cara.

Porque, no Chile, a comunidade haitiana, como posso dizer, ela cresceu mais que

aqui no Brasil. Até no Haiti a notícia fala sobre isso, entendeu? Um grupo do Haiti

que já foi para o Chile pra ficar. Aqui no Brasil vai demorar. Eu sei que a passagem é

cara, tipo, o custo, porque lá é mais alto, mas quando a gente assumir é mais fácil

da gente fazer essas coisas. Até quando, por exemplo, Sueli*, está no cargo

presidencial há quanto tempo? Ninguém sabe, parece uma coisa pessoal. Se tiver

uma coisa, um grupo, uma chapa, fazer eleição, a gente vai ver, tem uma política. Aí

a gente vai ver a Associação crescer, mas até aí vai demorar.

Otávio: Outra pergunta em relação a isso: você acha que as organizações de apoio

são importantes para construir uma identidade positiva de vocês aqui?

E6: Dessa maneira é ruim para mim. Não dá para mostrar.

Otávio: Como é hoje?

E6: Como é hoje é ruim.

Otávio: Você acha que as organizações têm mais atrapalhado do que ajudado?

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E6: Tem mais atrapalhado.

Otávio: Por quê?

E6: Eu estou falando mais da organização haitiana mesmo. Por exemplo a Casla,

está fazendo um trabalho que para mim é legal. Quando a gente tem um problema a

gente vai lá direto pra dar um conselho, onde a gente pode ir, entendeu? Tem muita

gente que não sabe, como iniciar um processo e a Casla pode ajudar. Caso

contrário, a organização haitiana atrapalha muito.

Otávio: Mas a organização, você diz, dos próprios haitianos.

E6: Dos próprios haitianos. É ruim, cara. É uma coisa pessoal. Até o Pedro*, eu não

gostei. Não, eu não gostei, cara. Não tem como colocar a cabeça junto pra fazer

uma coisa. Eu não gostei, cara.

Otávio: Então pra você a maior dificuldade está entre os haitianos por conta dessa

desunião?

E6: Isso, verdade.

Otávio: E aí você acha que a participação dos brasileiros nisso é integradora?

E6: Ajuda bastante, como eu falei, e não sei se tem haitianos dentro da Casla...

Otávio: Tem poucos. Que são da organização, não.

E6: Na Casla não têm haitianos?

Otávio: Não.

E6: É o que estou falando. O povo da Casla ajuda bastante, mas fora de tudo... a

organização haitiana aqui é horrível. Não tem como fazer nada, cara. Porque eu

lembro, uma vez, a gente pegou uma fala com a Prefeitura de Curitiba... Cara, eu

tinha projeto para montar. Eu falei com o prefeito, “Se você conseguir, cara, eu vou

te apoiar”. E não sei, cara, com quem eu vou falar pra fazer isso? Com o Pedro* ou

com a Sueli*, entendeu? Ontem eu estava num restaurante, churrascaria, eu fui

comer, e eu encontrei um grupo nigeriano lá que está fazendo uma programação

para o fim do ano. Ele fala: “com quem?”. “Tem Sueli*, tem Pedro*, tem o grupo de

Pinhais”. “Com quem eu posso falar?”, o cara me falou. “Não sei com quem você

pode falar”.

Otávio: Sempre as mesmas referências.

E6: É, cara, nossa... É foda, cara. Até um grupo do Boqueirão quer fazer a mesma

coisa, entendeu?

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Otávio: Entendi. Beleza. Em relação a todas essas perguntas que nós estamos

conversando, qual a melhor ocasião para você manifestar o “ser haitiano”, a cultura,

a identidade haitiana aqui em Curitiba? Você consegue pensar em algo?

E6: Difícil. Porque eu conheço pouco sobre a cultura do Haiti. O que nós podemos

fazer. Porque aqui não tem como apresentar. Uma vez a Sueli* me chamou para

fazer uma coisa, mas só. É difícil de apresentar. Eu não tenho problema para

apresentar. Quando eu fui pela primeira vez na reunião de encontro do Haiti eu me

apresentei como haitiano, eu não tenho problema de falar essas coisas, eu falei que

sou do Haiti. Pessoalmente, é mais fácil para mim falar que eu sou do Haiti, mas em

um grupo apresentar o que é o Haiti é difícil.

Otávio: Tá. E você pode apontar para mim quais são os seus principais problemas

de comunicação que você encontra?

E6: Língua. Até hoje!

Otávio: Você fala super bem. Mesmo assim é uma dificuldade?

E6: É dificuldade, cara. Por exemplo, eu lembro, eu estava fazendo uma coisa

assim, igual no Le Monde, não sei se você conhece, um site de notícia,

reportagem... fala muitas coisas. Português não é minha língua. Cara, às vezes

vocês está procurando, como posso chamar... até escrever é difícil. A língua é um

problema.

Otávio: E dos haitianos em geral você acha que esse é o principal problema

também?

E6: Para mim, sim. Por exemplo, eu tenho um amigo que está quase oito dias lá em

casa, ele estava em Rio Branco e veio aqui só para esperar se a Federal vai chamar

ele. Ele fala bem e ele escreve muito bem. Ele está acostumado a falar inglês,

espanhol e até alemão ele pensa um pouco, porque o cara que tem uma habilidade

assim é fácil pra ele se adaptar com outra língua. Pra mim foi a primeira experiência,

além do francês na escola. Crioulo é minha língua maternal.

Otávio: Português é sua terceira língua?

E6: Imagina: outro país pra mim ficaria mais fácil agora. Espanhol, inglês... porque já

tenho experiência. Então o cara que não tem experiência nenhuma de língua vai ter

mais dificuldade para se adaptar. Para comunicação a língua é o mais importante.

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Otávio: Última pergunta pra gente poder acabar: Hoje o mundo está mais

interconectado – informações, tecnologias, que contribuem para isso. Você acha que

esse mundo mais interconectado contribui ou ele prejudica a compreensão das

pessoas sobre o mundo?

E6: O Haiti está muito atrasado, né, sobre a educação. Eu não vejo problema da

educação, é um problema, por exemplo, a gente está atrasado, né, até o povo está

atrasado porque a educação está atrasada no Haiti. Aí você vai ver que de forma

geral... cara, eu não estou entendendo sua pergunta direito, não tem como

responder! Não tem como você poder fazer de outra forma para eu entender?

Otávio: Eu queria saber se esse fluxo de informação que a gente tem hoje, no que

ele ajuda e no que ele atrapalha, por exemplo. Ou se ajuda mais ou atrapalha mais

as pessoas. Porque assim: quando a gente tem muitas informações às vezes as

pessoas têm várias opiniões sobre tudo. Isso é positivo, negativo...

E6: Cara, se você está fazendo uma pesquisa, por exemplo, você está fazendo uma

pesquisa, você está pesquisando. Se tiver um fluxo de informações não vai ficar

melhor pra você? É assim que funciona. Se a gente tiver mais informações, por

exemplo, aqui tem uma menina que está fazendo um projeto sobre o Haiti e falou

que não tem como acessar as informações do Haiti, faltam muitas coisas. Eu falei:

“É normal”. A língua, as informações lá, a maioria é em francês e crioulo, não tem

um banco de dados como tem em português e agora o brasileiro está interessado

sobre o Haiti mais, entendeu? Era uma coisa mais diplomática antigamente e agora

você acha uma coisa mais social. Tem cara que me pergunta: “Onde fica o Haiti?

Qual a língua do Haiti? Como você vive no Brasil? De barco, avião?” Eu falei: “A pé”.

Cara, porque eu falei isso aí? Porque é o mínimo, é geografia! Um cara que está na

escola não tem como perguntar isso. Se você me pergunta uma questão, por

exemplo, “onde fica Santa Catarina?”, eu vou falar onde está. “Onde fica a França?”,

eu falo. “Onde fica Jerusalém?”, eu vou falar onde fica Jerusalém. “Onde está

Austrália?”, eu vou falar onde está Austrália porque é o mínimo de base na escola.

Eu sei que o Haiti é pequeno, mas “onde está o Haiti?”! Nossa, até eu fico frustrado,

cara. Onde fica o meu país?! Meu país não está aí... onde está o Haiti? Pra mim é

engraçado, cara. Onde fica o Brasil?! Imagina você, você está nos Estados Unidos:

“Onde fica o Brasil?”. Você não fica irritado, você não fica nervoso com o cara que

faz essa pergunta?

Otávio: No mínimo desapontado...

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E6: Claro! “O que você diz, cara? O quê? Onde fica o Brasil?”. Você não vai

responder. Porque você vai imaginar o Brasil, o Brasil... todo mundo tem que saber o

que é o Brasil. Eu faria a mesma coisa. O mundo está interconectado, não é? Isso

ajuda bastante. Eu tinha vontade de deixar o Brasil pra ir à Austrália, aí, cara, eu

pesquisei e minha pesquisa estava bem legal – a pesquisa que eu fiz do Brasil –

porque tinha mais informações sobre a Austrália que eu achei. Uma interconexão,

né. Porque você pode ficar no Brasil e saber o que aconteceu lá no outro lado do

planeta. O Brasil está um pouco diferente. Você pode ver o mundo de três anos

atrás atrasado, né. Agora, com o fluxo de informações em qualquer lugar, um banco

de dados você vai achar o que você quiser. Tipo, não sei porque, em inglês, na

Austrália é mais avançado. O Brasil, na língua portuguesa, é mais difícil achar um

site com informações sobre o Brasil no Haiti, entendeu? É difícil achar um site sobre

o Brasil. Eu tenho certeza que, agora, muita gente no Haiti vai querer informações

sobre o Brasil, até eu estou com vontade de escrever, de fazer um blog pra falar

sobre a vida no Brasil, entendeu? Estou pensando! Estou pensando em falar sobre

isso, né. Porque essa ideia? Essa ideia é de Austrália mesmo. Eu vi um anúncio em

francês lá na Austrália para fazer um blog pra falar sobre a Austrália. Aqui também.

Eu conheço um cara que chama Dorival* - ele é brasileiro, paulista – eu estava

procurando e esse cara tem um blog de Youtube e ele tem um site com informações

sobre a Austrália. Um formato legal, cara! Eu achei bem legal.

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ENTREVISTA (E7)

Idade: 30

Sexo: M

Estado Civil: Solteiro

Instrução: Superior completo (Direito)

Religião: Protestante

Profissão: Cineasta, Advogado

Ocupação: Professor língua

Cidade que veio: Gonaives

Quando e como chegou: Há 2 anos (Avião: Porto Príncipe – São Paulo).

Otávio: Eu queria saber qual foi sua principal fonte de informação para você chegar

até Curitiba, ao Brasil.

Entrevistado 7 (E7): Quando eu estava lá eu tinha alguns amigos que já estavam

aqui no Brasil e aí a gente conversava às vezes e como eu estava com vontade de

sair do país para estudar um pouco mais para fazer um mestrado, uma

especialidade em Direito Internacional, aí eu saí do país. Quando eu conversei com

alguns amigos eu falei que em primeiro lugar eu não estava em vir aqui para o

Brasil, eu tinha outro pensamento pra ir a outros países, mas depois eu conversei

com alguns amigos, eu decidi vir aqui. Eu fui na embaixada, eu fiz um pedido de

visto e aí quando eu consegui o visto eu decidi vir. Mas quando eu cheguei foi outra

realidade porque foi muito difícil para eu conseguir entrar na faculdade e trabalhar

aqui e pagar uma faculdade privada é muito caro, né. Não dá porque o salário

mínimo não dá pra trabalhar e pagar faculdade. Assim, pra estudar. E porque eu vim

aqui? Porque eu já tinha um amigo aqui e depois me falaram que essa cidade tem

muita gente formada e como eu estou com vontade de estudar é uma cidade legal

pra vir e estudar mesmo. É isso.

Otávio: Aqui você mora com amigos?

E7: Com amigos.

Otávio: E você conseguiu entrar na universidade?

E7: Estou.

Otávio: O que?

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E7: Cursando direito.

Otávio: Aqui na Federal?

E7: Sim.

Otávio: Legal. Outra pergunta: Eu queria saber, em relação ao contato, às

conversas que você tem com amigos, tanto no Brasil quanto no Haiti, o que passa

na mídia, brasileira ou haitiana, é pauta de conversa de vocês, vocês discutem

assunto que está na mídia ou não?

E7: Sim, às vezes. Às vezes, sim. Por exemplo, têm alguns casos de haitianos que

estão morrendo aqui. Às vezes com facas, essas coisas assim, e a gente ficou

conversando sobre a insegurança que tem, como ninguém está seguro aqui,

entendeu? Às vezes a gente conversa sobre isso.

Otávio: Ah, tá. É mais quando tem o tema do Haiti aqui no Brasil, seja quando fala

de um haitiano ou sobre a política do Haiti, algo assim...

E7: Sim, porque gosto de Curitiba, gosto do meu país. E sobre as notícias do Haiti a

gente conversa sempre, né.

Otávio: Você tem celular, né?

E7: Sim.

Otávio: Qual o principal uso que você faz dele?

E7: O principal uso é conversar com minha família e meus amigos aqui pela noite.

Otávio: Você usa mais fazendo chamada, usa alguma ferramenta...?

E7: Chamada para o Haiti é muito cara! Messenger, Whatsapp...

Otávio: A internet, você tem? Você usa também? Qual a frequência?

E7: Uso, bastante, todo dia.

Otávio: E por que você utiliza principalmente?

E7: É meio para nós estrangeiros falar com a nossa família.

Otávio: E quais principais sites que você acessa?

E7: Pra conversar?

Otávio: Em geral.

E7: Em geral, o Google para fazer pesquisas e Messenger e Whatsapp.

Otávio: Beleza. Em relação ao Facebook, você tem?

E7: Tenho sim.

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Otávio: Eu queria saber se você participa de algum grupo fechado, aqueles grupos,

comunidades, de imigrantes, haitianos. Você participa de alguma?

E7: Não sou um membro ativo, mas estou participando de alguns. Por exemplo,

quando têm alguns que tem uma publicação eu vi, mas não... não sou muito ativo.

Otávio: O que eles postam mais nesses grupos?

E7: Às vezes notícias do Haiti, sobre trabalho, sobre coisas assim.

Otávio: Aham. E aí você mais acompanha do que interage? Não é muito ativo?

E7: Não muito.

Otávio: Eu queria saber se você chegou a assistir algum vídeo, algum documentário

sobre os haitianos feito aqui no Brasil já?

E7: Sim.

Otávio: Qual que é?

E7: Têm alguns que eu vi que eu não gosto, têm alguns que são legais, mas não

lembro os nomes.

Otávio: O que diferencia de você gostar ou não? Quais as características que fez

você gostar ou não desses vídeos?

E7: Têm alguns que eu vi que não retrata a realidade. Algumas imagens são feias,

né. Como se o Haiti fosse um inferno, e eu não gosto, porque eu sei que todos os

países têm dificuldades, têm lugares bons, têm lugares ruins, têm favelas e tem tudo

isso também. Mas, não sei, porque têm alguns jornalistas que quando precisam de

entrevistas só pede coisas ruins e eu não gosto.

Otávio: Você falou que trabalha com cinema também. Você já teve a oportunidade

de pensar algum filme aqui no Brasil?

E7: Já. Vários filmes, documentários, mas não tem muita oportunidade. Os materiais

são caros, não tenho muita possibilidade de comprar os materiais, mas estou aqui.

Já participei em filmes, um curta eu participei como ator. É isso.

Otávio: Legal. Desculpa, quero voltar nesse tema do curta metragem: isso já está

veiculado?

E7: Ainda não, mas daqui a pouco vai.

Otávio: E como eles chegaram até você pra você ser o ator?

E7: Do mesmo jeito que você chegou em mim hoje! Com a professora Márcia*.

Tenho uns amigos aqui muito legais.

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Otávio: Legal! Em relação a outros meios de comunicação como TV, rádio, jornal

impresso, você acessa algum, utiliza?

E7: Sim. TV, muito.

Otávio: O que você assiste mais na TV?

E7: Jornal da Globo, e jornal das 8 da noite.

Otávio: Jornal impresso você lê algum?

E7: Às vezes.

Otávio: Rádio...

E7: Rádio, não.

Otávio: Ok. Agora eu queria entrar um pouco na sua relação com as organizações,

tá? Uma das coisas que a gente já percebeu em algumas atividades culturais,

alguns eventos que são realizados junto com alguns haitianos, é que vocês utilizam

muito os celulares para fazer registros do que está acontecendo. Eu queria saber se

nesses eventos que você participou você também já fez isso, se costuma fazer

esses registros e, independente se sim ou se não, se você sabe que usos as

pessoas que fazem dão a esses registros.

E7: Eu nunca fiz, mas eu já fui a alguns eventos dos haitianos aqui porque eu estou

na faculdade e no projeto “português para estrangeiros”, estou na Associação dos

Haitianos e têm alguns eventos. Por exemplo, quando a gente vai ao museu com o

projeto eu tirei algumas fotos, algumas coisas assim, mas não gravei porque não

tem muitas coisas e o uso dessas gravações depende da pessoa. Por exemplo, têm

pessoas que gravam umas coisas assim pra escutar depois, tem o que colocou no

Face, mas depende da pessoa, né. Não posso dizer exatamente o que eles fizeram

com essas imagens.

Otávio: Eu queria saber se você percebeu, em decorrência dessas atividades que

as organizações realizam com esses imigrantes, você já percebeu alguma mudança

na forma dos brasileiros compreenderem o haitiano aqui na cidade?

E7: A verdade é que tem bastantes organizações que trabalham com imigrantes

aqui e não conheço todas, não participo de todas as atividades...

Otávio: Pode focar nas que você participou junto ao curso de idiomas.

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E7: Sim, sim. A aula de português ajuda muito os imigrantes haitianos ou outros

imigrantes. Não só haitianos, porque a gente conhece um pouco mais a cidade e

nessas atividades é um jeito pra fazer a integração dos estrangeiros na sociedade.

Otávio: Mas em relação aos brasileiros, você já viu alguma mudança? Você viu

alguma mudança de olhar em decorrência dessas atividades?

E7: A mudança de olhar, isso pode ser feito, mas as pessoas... tem gente que olha

mal para os estrangeiros por falta de informações – mas não é do sangue porque

quando era criança não estava assim – mas é da pessoa mesmo, não vai ter

mudança porque a pessoa é assim, entendeu? E nós esperamos que todos os

brasileiros verão os estrangeiros de maneira diferente, vai ter mudança de todas as

coisas, porque cada pessoa é uma pessoa e quando participo de alguns eventos é

não para os brasileiros de maneira diferente, é pra saber os meus direitos, o que eu

tenho que fazer para entrar na sociedade. É isso.

Otávio: E você acha que as organizações desempenham um papel importante para

ser construída uma imagem positiva do imigrante aqui?

E7: Sim, acho que sim.

Otávio: E o que é feito é suficiente hoje?

E7: Não é suficiente, mas as organizações trabalham muito. Muito, muito. E não é

porque eu participo do projeto de “português para estrangeiros”, mas para mim, não

vou dizer que é a melhor iniciativa, não vou dizer isso, mas pra mim é um, porque

com o problema da língua – é o pior problema que o estrangeiro pode ter em

qualquer país estrangeiro, né. Tem que tentar ajudar os estrangeiros com o idioma,

sim, acho muito legal e também a integração desses imigrantes aqui na faculdade.

Pra mim é muito bom o trabalho do projeto, acho muito legal, muito legal, pra uma

mudança na vida dos estrangeiros e para integração na sociedade porque todas as

pessoas querem ter uma vida melhor, mas sem o idioma – eles precisam de um

trabalho, trabalho bom – sem o idioma, a formação profissional não vai conseguir.

Com o idioma pode ter umas mudanças. Gosto muito do trabalho.

Otávio: Legal. Outra pergunta que eu ia fazer está relacionada a isso. Eu queria te

perguntar quais são os seus principais problemas que vocês enfrentam aqui no

Brasil de comunicação. Acho que a questão do idioma talvez seja uma. Além dessa,

você algum outro problema evidente?

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E7: Pode ter, mas não lembro agora.

Otávio: Mas o idioma sim?

E7: A questão da língua é um problema.

Otávio: Essa pergunta está relacionada à ideia de identidade. Qual a melhor

ocasião para ser mostrado o “ser haitiano” na cidade? Existe uma ocasião que é

ideal para você?

E7: Têm umas datas muito importantes. A vitória do Haiti, no dia 18 de novembro,

que foi a última guerra da independência e o dia 1º de janeiro a data da festa da

independência do Haiti. Dia 18 de maio é o dia da Bandeira do Haiti.

Otávio: Você costuma fazer registros disso quando está em alguma dessas festas?

Já participou de alguma?

E7: Já. Participei com a minha banda em alguns eventos. Desde 2014, em 2015 a

gente participou... nos eventos.

Otávio: Qual é a tua banda?

E7: Recif Music.

Otávio: Você que é da Recif?! Ah, saiu no jornal uma vez e fiquei com ela na

cabeça. Todos os haitianos que eu entrevisto tem alguma relação com música!

Todos não, mas vários.

E7: Quase, quase todos.

Otávio: Por que a música... é uma referência pra vocês?

E7: Lá no Haiti é bem difícil pra entrar em uma família. Nenhum membro de uma

família não tem conhecimento da música, não sabe fazer música, essas coisas.

Otávio: Nenhum?

E7: É bem difícil. É bem difícil pra entrar em uma família que não gosta de música,

quem não faz música...

Otávio: É uma questão, não de status, mas de...

E7: Os haitianos gostam de música. Têm bastantes músicos aí haitianos, bastantes.

Otávio: Já percebi! Não é coincidência eu estar entrevistando vários, é porque é

assim mesmo...

E7: É.

Otávio: O mundo está mais conectado, as pessoas têm mais possibilidade de

contato e acho que vocês vivem bem isso conseguindo conversar com pessoas que

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estão em outro país. Eu queria saber se esse mundo mais conectado ajuda ou

atrapalha mais pra que a gente possa compreender o mundo como ele é em sua

realidade?

E7: O que é importante... como eu posso dizer... Nada é perfeito para eu dizer que

isso é uma coisa positiva totalmente. Onde tem a positividade tem a negatividade,

né. Faz bem e faz mal, os dois são assim. A conexão ajuda muito as pessoas, o

mundo todo, mas não vou dizer que é totalmente bom, positivo, mas têm coisas

boas e ruins.

Otávio: Você tinha falado que algumas coisas que você vê você não gosta sobre os

haitianos, como os vídeos, por exemplo, e ao mesmo tempo você fala que assiste

bastante jornal. Isso pra você, como tem sido essa relação? Você tem esperança de

ter algo que seja passado ou você acha que isso vai continuar acontecendo e vai

atrapalhar vocês?

E7: Vai acontecer, vai continuar, mas eu não tenho muito problema com isso porque

eu já sabia que a vida mesmo é assim e tem gente que conversa comigo, por

exemplo, muito jornalista que conversa comigo só quer saber do terremoto e a

situação depois como é, mas eu nunca encontro alguém que me pediu... Têm alguns

lugares bons, têm turistas. Por exemplo, “se eu quero ir ao Haiti, quais lugares que

um turista pode ir?”. Essas coisas, não. Mas eu sei que é assim mesmo a vida, né!

Tem gente positiva que quer mostrar outra imagem. É isso, depende do interesse da

pessoa, o que ele vai fazer, o que ele quer fazer. Chegou um momento, eu falei...

Aqui, quase todos os estudantes das faculdades ou de outras faculdades que têm

trabalho para fazer, converso com quase todos, às vezes: “Ah, pode conversar com

o E7*”. (Risos). Quase todas! Mas chegou um momento que eu falei: “Não vou mais

fazer entrevista, não gosto mais”. Mas às vezes eu fiz porque têm alguns trabalhos,

por exemplo, têm algumas pessoas que têm alguns trabalhos para fazer e como eu

tenho hoje, pode não ser, mas vou precisar de ajuda de alguém para fazer um

trabalho da faculdade. Eu ajudo, ajudo, mas não é porque gosto muito, não. E

também poucos haitianos querem fazer entrevistas. Não sei se você já conversou

com haitianos: “Não vou, não gosto”. Poucas. É porque, às vezes, quando uma

pessoa tenta conversar com um haitiano e não quer, têm algumas pessoas que

falam: “Hum, fala com o E7*, ele te ajuda”.

Otávio: Já ficou com fama de entrevistado.

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E7: O que gosto... Não posso olhar com lado ruim isso, mas também tem gente

trabalhando pra ajudar, pra dar uma imagem, pra mostrar outro lado, pra mostrar os

imigrantes de maneira diferente. Tem gente na esquerda, mas tem também à direita.

Otávio: Só pra terminar. Você falou de quatro atividades que você tem: você é

advogado – está estudando –, você é professor de idiomas, você é músico e você

trabalha com cinema – ator e diretor de cinema. Eu não sei se você pretende

continuar aqui no Brasil, mas, enfim, para os próximos anos, para sua vida futura,

como você se olha? Trabalhando com o quê especificamente...?

E7: A minha vida futura estou com muita vontade de fazer uma especialidade em

Direito Internacional, é isso. E depois eu estou com muita vontade de voltar para o

meu país, ficar e fazer minha vida lá. E estou aqui, na verdade, gosto do Brasil, vim

para o Brasil realizar o sonho de criança, porque quase todos os haitianos são

torcedores da seleção brasileira, e quando era criança falei: “Tudo que eu estou

trabalhando ganhando dinheiro eu vou para o Brasil”, mas minha vinda aqui é a

concretização de um sonho de criança, mas estou com muita vontade de voltar e na

minha vida aqui no Brasil, no ano que vem, quero fazer uma experiência no rádio,

música e cinema e depois, alguns anos, viver uma vida mais tranquila, né, porque,

não sei, depende da experiência, se é minha experiência aqui no rádio ou se é na

música, se é boa posso ficar, fazer minha vida como artista, mas se não já tenho

outro projeto, mas vou ficar sendo ator, produtor de cinema, qualquer coisa que eu

fizer na vida, porque música e cinema são as minhas paixões, entendeu? Se é

advogado, doutor, médico, qualquer coisa, eu vou ser artista.

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ENTREVISTA (E8)

Idade: 31

Sexo: M

Estado Civil: Solteiro (tem filha)

Instrução: Graduando (Direito)

Religião: Protestante

Profissão: Professor

Ocupação: Auxiliar de remessa

Cidade que veio: Lagonave

Quando e como chegou: 1 ano e 3 meses (Avião: Porto Príncipe – Panamá – São

Paulo – Curitiba).

Otávio: Qual foi sua principal fonte de informação para você vir ao Brasil, vir pra

Curitiba? Foi uma pessoa que estava aqui e te falou, você ouviu falar sobre

Curitiba/Brasil por algum meio de comunicação ou você pesquisou até você escolher

esse destino?

Entrevistado 8 (E8): Pra vir aqui no Brasil, depois do terremoto que passou no Haiti

estava bem fraquinho lá, bem ruim e o Brasil ofereceu oportunidade para vir para cá,

mas eu vim para estudar e trabalhar por pouco tempo, mas quando eu cheguei a

realidade é muito diferente do que eu pensava. Eu tive que trabalhar pra ter todas as

coisas que a gente precisa e aí é bem difícil para eu estudar e trabalhar e agora eu

não sei, estou com certeza que eu vou fazer outra. Meu primo morava em Curitiba,

deram uma direção pra ele vir pra cá porque é difícil você vir para um país e você

não ter nenhum parente, nenhum amigo pra dar uma orientação, entendeu? E por

isso que eu vim para Curitiba.

Otávio: Você falou que quando você chegou aqui era diferente de como você

pensava. Essa percepção que você tinha do Brasil antes de vir pra cá foi construída

como? Pessoas que falaram... como você imaginava o Brasil sem ter vindo pra cá?

E8: A língua para mim é bem diferente porque nunca tinha ouvido, entendeu? Nunca

tinha ouvido o português. Então, aos poucos o Brasil... dá para acostumar com eles

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a viver bem. A língua é minha maior dificuldade para acostumar, entendeu? As

comidas...

Otávio: Entrando em outra pergunta: O principal problema que você tem de

comunicação então é a língua ou tem alguma outra coisa que te dificulta?

E8: Na verdade o mundo inteiro tem preconceito e no Brasil também. Eu sou vítima

de preconceito.

Otávio: Em relação a que?

E8: Das pessoas que estão aqui.

Otávio: Com os haitianos que estão aqui?

E8: Não, com os brasileiros.

Otávio: Sim, mas os brasileiros têm preconceito com vocês, né?

E8: Sim.

Otávio: E você acha que é porque eles têm uma visão errada do Haiti?

E8: Preconceito, pra mim, é geral. É uma percepção que eles têm e aí... eles fazem.

Otávio: Eu vou voltar um pouquinho na questão dos meios de comunicação tá?

Quando você resolveu vir do Haiti se falava do Brasil lá nos meios de comunicação?

O que você sabia?

E8: Sobre o Brasil só sobre futebol. Mas uma coisa que eu sabia é que o Brasil

produzia muito café.

Otávio: Beleza, está bom. Em relação aos meios de comunicação aqui do Brasil e

os meios de comunicação do Haiti – televisão, jornal, internet – o que passa lá e o

que passa é tema de conversa com seus parentes que estão lá no Haiti, seus

amigos que moram aqui com você? Vocês conversam?

E8: Do Brasil ou Haiti?

Otávio: Em ambas as situações. Tanto daqui quanto lá.

E8: ...

Otávio: Primeiro aqui. Vocês discutem sobre o que está sendo falado ou não é um

tema que vocês conversam?

E8: Tenho preocupação com essa crise que tem agora, entendeu? Porque faz mal

pra todo mundo, essa crise faz mal pra todo mundo. E nós estamos procurando um

jeito pra acostumar o Brasil.

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Otávio: O pessoal que está no Haiti ouve algo sobre o Brasil ou mais por vocês?

E8: Ouve, porque quando têm muitos haitianos que vêm pra cá eles ficam

preocupados com os parentes deles. Daí eles veem jornal, escutam algum jornal ali

para ver como que é essa situação.

Otávio: Ah, tá. E às vezes eles encontram coisas?

E8: Sim.

Otávio: Você tem celular, né? Qual o principal uso que você faz dele?

E8: Principalmente pra fazer ligação. Fazer ligação pra ficar conectado com meus

parentes no Haiti, pra ficar com as novidades do jornal, internet... Na verdade é pra

tudo.

Otávio: Você usa internet no celular também. E você usa a internet todo dia?

E8: Todo dia.

Otávio: E quais são sites acessa?

E8: Facebook. Quando entro no Facebook tem outro site que dá informações. Eu

clico pra abrir outro site, geralmente tanto faz. Se eu quero pesquisar, entendeu?

Otávio: Você usa bastante então a internet?

E8: Eu uso bastante.

Otávio: Você usa a internet para fazer contatos com sua banda? Pra negociar algum

show...?

E8: Sim, uso.

Otávio: Você participa de algum grupo de imigrantes, haitianos, no Facebook?

Esses grupos fechados, sabe?

E8: Eu participo. “Haitianos no Brasil”, eu acho.

Otávio: Nesses grupos que você participa, você interage na página, você posta

fotos ou você só acompanha?

E8: É raro.

Otávio: Mais vê o que eles estão falando.

E8: É.

Otávio: Você acha legal o que eles postam?

E8: Pra mim é legal.

Otávio: Esse grupo tem bastante brasileiro, não é?

E8: Tem.

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Otávio: Você acha legal a participação dos brasileiros ou preferia que fossem só

haitianos?

E8: Eu acho legal.

Otávio: Por que?

E8: É uma questão de comunicação, entendeu? Quem que pode passar as

informações daqui, entendeu? É normal ter um grupo com eles.

Otávio: Esse grupo é bastante grande, né? Tem muita gente.

E8: Na verdade eu não sei muito do grupo, mas quando eles vão dar uma coisa,

curtir alguma coisa, eu vejo o que eles curtiram. Não deu muito tempo...

Otávio: Esse grupo “Haitianos no Brasil” está em português mesmo ou em créole?

E8: Na verdade eu não sei se é um grupo, acho que é uma página, uma coisa

assim. “Haitianos no Brasil” é uma página... é uma página? Deixa eu ver. Não, é um

grupo.

Otávio: É um grupo. Público. Que todo mundo pode entrar... ah, tá! É só esse ou

tem mais algum?

E8: Só esse.

Otávio: Beleza! E8*, eu queria saber se você chegou assistir algum

vídeo/documentário sobre os haitianos que estão aqui no Brasil, na televisão ou na

internet. Você viu alguma coisa?

E8: Não.

Otávio: Nenhum? Ok. Outra pergunta: – não sei se você percebeu nas festas que

vocês vão, que vocês tocam, como a Festa Latino-Americana – nessas festas,

normalmente os haitianos fazem muitos registros, com o celular na mão, da banda,

das apresentações e etc. Eu queria saber se você costuma fazer registros também e

como vocês utilizam essas imagens e esses vídeos depois?

E8: Faço...

Otávio: E como você utiliza esses registros depois? Para que?

E8: Para gravar e mandar pra alguém que pediu pra ver o que a gente está falando.

Pedem um videozinho pra ver como que ficam nossas atividades, por isso. Pra ver

como ficou o evento também. Pra chegar em casa e ver o que precisa corrigir,

entendeu? O que tem que fazer melhor, o que foi bom e o que foi ruim.

Otávio: Vocês usam esses vídeos para estudar a própria apresentações de vocês.

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E8: É. Pra mandar a outras pessoas...

Otávio: Vocês têm alguma página que divulgam o trabalho?

E8: Tem.

Otávio: Qual?

E8: É Level Compa, no Facebook.

Otávio: Tem no Youtube?

E8: Tem... Tem um link no Youtube, na verdade.

Otávio: Mas o principal é a página do Facebook.

E8: No Facebook.

Otávio: Vou curtir lá então. Você é o administrador da página?

E8: Eu sou.

Otávio: E para vocês como é esse tipo de trabalho? O pessoal interage?

E8: Interage.

Otávio: Mais haitiano ou brasileiro também?

E8: Tudo. Haitiano, americano, francês. Aqui, “Level Compa”.

Otávio: Ah, mas aqui está com “C”. É com “C” ou com “K” o nome?

E8: Na verdade, eu fiz assim, mas é com “K”.

Otávio: Ah, tem que trocar então.

E8: Eu vou trocar. “K” é crioulo e “C” e francês. Significa a mesma coisa.

Otávio: O que significa “Level Kompa”? Kompa é um ritmo, né?

E8: Kompa é nosso ritmo. Level significa uma coisa que a gente pode fazer muito

bem, tem potencialidade pra fazer. Tem poder pra fazer, é tudo que a gente pode

fazer. É uma palavra assim.

Otávio: Em relação a esses eventos que você participa, depois deles terem

acontecido, você percebeu alguma mudança na forma dos brasileiros olharem

vocês?

E8: Pra mim, na minha opinião, brasileiros ficam muito fechados. Quando eles ficam

na rua ou alguns lugares ficam fechados, entendeu? Mas quando eles estão no meio

da gente, assistindo o que a gente pode fazer eles acham diferente do que eles

pensavam.

Otávio: Essas atividades são suficientes para que as pessoas percebem quem

vocês são de verdade?

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E8: Não é suficiente, não é. É o que a gente pode fazer pra divulgar nossa

capacidade pra ficar boa, pra ficar boa, pra ficar um pouquinho famosa, pra gente

falar assim. Porque tem gente que vê diferente, tem gente que acha que a gente

vem aqui só para trabalhar, mas é diferente, tem outras coisas aqui que a gente

pode fazer muito bem.

Otávio: Como, por exemplo, o que?

E8: Primeira coisa: tocar música. Nosso ritmo é o Kompa, mas pessoalmente eu sou

cantor de rap. Eu tenho som lá no Youtube a amanhã, eu acho, vou fazer uma

apresentação lá no Piraquara. Pra estudar: a gente estuda... é humano. Humano é

questão de inteligência, é uma questão de poder fazer. A gente pode fazer tudo que

existe.

Otávio: Você disse que não é suficiente apenas o que é feito hoje. O que pra você é

realmente preciso ser feito para as pessoas enxergarem?

E8: É. Realmente temos que entrar na faculdade, estudar e integrar a sociedade do

Brasil, mas partir da sociedade do Brasil trabalhando em qualquer lugar. Qualquer

lugar que existir do Brasil. Pra ver como é nossa raça, entendeu?

Otávio: Entendi. Essas organizações que, de certa forma, têm apoiado os

imigrantes, seja com assessoria, ajudando a realizar festas, como a Pastoral e

outras organizações, você acha que essas organizações contribuem pra vocês

terem uma imagem positiva frente à sociedade ou você acha que não?

E8: O que eu posso dizer... A Associação dos haitianos você diz?

Otávio: Todas que trabalham com os haitianos. Até a Associação.

E8: Eles ajudam porque eles nos defendem nos direitos, recursos humanos. O

governo, principalmente, e todas as associações que existem para defender os

direitos humanos.

Otávio: Ajudar você concorda que ajuda, mas você acha que sem as organizações

é possível construir uma identidade haitiana aqui no Brasil?

E8: É difícil.

Otávio: Por que você acha?

E8: É difícil porque quando acontece alguma coisa, por exemplo, quando a gente

está trabalhando numa empresa, aconteceu uma coisa que merece uma orientação

jurídica precisa consultar os advogados que trabalham com direitos humanos,

entendeu? Eles fazem uma intervenção pra ajudar, pra deixar eles saberem que

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preconceito não vale nada, na verdade, todo mundo é igual. Acho que a Declaração

Universal dos Direitos Humanos fala sobre isso: todo mundo nasce igual e por isso

que no mundo inteiro existem associações, organizações que nos defende. É bem

bacana e eu acho que sem eles a gente não pode se organizar – fazer uma banda,

organização – entendeu? Pra mim eles contribuem muito.

Otávio: Mais duas perguntas pra gente acabar. Qual a melhor ocasião, na sua

opinião, pra vocês manifestarem o “ser haitiano” – a identidade haitiana – aqui na

cidade? Qual o melhor momento?

E8: O melhor momento pra mim, na minha opinião... você está falando de uma data,

de ocasião...?

Otávio: Tanto faz.

E8: É. Pra mim, a melhor ocasião é uma data histórica do nosso país. Quando vem

essa data a gente sempre comemora no Haiti. Quando vem essa data os haitianos

que estão vivendo no Brasil precisam comemorar também. Esse momento, para nós,

é um momento bem favorável... como fala...?

Otávio: Celebrar o ser haitiano.

E8: Isso. Pra fazer um...

Otávio: A essas datas você se refere ao Dia da Bandeira e à Batalha de Vertières?

E8: Batalha de Vertières, Bandeira e dia da liberdade... Independência.

Otávio: São as datas mais importantes para o Haiti, né.

E8: Mais importantes. Se não esquecer eu vou te falar para ajudar nós a dar uma

conferência no dia 1º de janeiro, se possível vai fazer. A gente quer dar uma

conferência sobre um pouquinho da história do nosso país. Na verdade, eles sabem

que o Haiti foi a primeira nação negra independente do mundo inteiro, é

interessante.

Otávio: E a segunda independência da América, né. Só depois dos Estados Unidos.

Isso é muito legal.

E8: É verdade.

Otávio: Você já fez registros dessas festas? 18 de novembro também tem aqui.

Você já participou de alguma...?

E8: Sim, no ano passado. Ano passado já participei, já fui tocar lá no lugar que foi

feita a Festa Latina.

Otávio: Verdade! A Festa Haitiana, né?! Foi 18 de maio esse ano.

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E8: Mas a gente celebrou no dia 17 porque segunda-feira tem serviço...

Otávio: Segunda-feira ninguém vai. E quando vocês estão tocando você faz

registros, né?

E8: Faz.

Otávio: Como você já tinha falado. Uma última pergunta: Seguinte, o mundo hoje é

mais conectado pelos meios de comunicação, pelas tecnologias. Você acha que

essa conexão mais fácil hoje no mundo ela ajuda mais ou atrapalha mais pra gente

compreender o mundo como é na sua realidade?

E8: Você pode repetir a pergunta pra mim?

Otávio: Você concorda que o mundo hoje está mais conectado, né? Celular,

tecnologias, a gente consegue falar com alguém que está longe.

E8: Sem dúvidas.

Otávio: Você acha que ajuda mais ou atrapalha mais para as pessoas

compreenderem a realidade?

E8: Pra mim ajuda mais. Qualquer forma ajuda mais. É verdade que os aparelhos

que a gente usa têm consequências, mas ajuda mais.

Otávio: Beleza! Eu me esqueci de fazer uma pergunta. Era dos seus hábitos,

lembra? Eu me esqueci de perguntar se você assiste televisão?

E8: Não muito.

Otávio: Tá. Quando você assiste é mais o que?

E8: Mais jornal...

Otávio: Jornal impresso você lê?

E8: Não.

Otávio: Só da televisão. E rádio?

E8: Rádio, não. Me falta tempo, na verdade.

Otávio: Ah, é falta de tempo também.

E8: Mas eu trabalho em uma empresa e eu lia o jornal lá.

Otávio: Qual era? Gazeta do Povo?

E8: Gazeta e O Povo também.

Otávio: Ah, tá. Beleza, é isso!

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ENTREVISTA (E9)

Idade: 23

Sexo: Masculino

Estado Civil: Solteiro.

Instrução: Ensino Médio completo.

Religião: Evangélico.

Profissão: Webdesigner.

Ocupação: Desempregado.

Cidade que veio: Porto Príncipe.

Quando e como chegou: Há 2 anos e 2 meses. Veio de avião e chegou por São

Paulo.

Otávio: Qual foi a principal fonte de informação que fez você vir ao Brasil, a

Curitiba? O que você ficou sabendo sobre o Brasil, o seu interesse de ter vindo para

cá ou especialmente Curitiba? Você falou do Sul do Brasil, como você criou essa

expectativa?

Entrevistado 9 (E9): Eu ouvi falar, lá em Belo Horizonte, que as pessoas do Sul

eram diferentes, mas eu não gostei do jeito das pessoas de Minas Gerais. Por isso,

eu mudei de estado.

Otávio: E por que você veio para o Brasil? Que tipo de informação te convenceu a

vir para cá?

E9: Em 2013, quando eu estava lá no Haiti, queria mudar de país. Eu queria morar

em um país rico, mas a oportunidade do Brasil subir, é fácil de conseguir um visto

permanente. Embarquei para cá. Eu vim para cá para estudar também, trabalhar.

Otávio: Você veio estudar o quê aqui?

E9: Engenharia Mecânica. Eu já fiz um vestibular em uma universidade particular, a

Universidade Anhanguera.

Otávio: Essa informação do Brasil como um país rico, você teve como? Mediante

informações, pessoas?

E9: Já sei que o Brasil não é um país rico.

Otávio: Mas você achava que era quando estava no Haiti?

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E9: Não.

Otávio: Então você veio aqui por questões...

E9: Já sei que é um país emergente. Não tem muita diferença de um país pobre,

ocupado. Só algumas coisas que são um pouco diferentes.

Otávio: Em relação ao que passa na mídia, no Brasil ou no Haiti, você conversa

sobre isso com amigos e parentes, tanto daqui quanto de lá? Você assiste à

televisão, lê jornal e conversa disso com as pessoas ou não?

E9: A mídia é mais internet porque gosto de ler artigos.

Otávio: Artigos do que? Científicos?

E9: Não, científicos.

Otávio: Ok, que é da sua área, né. Você tem celular, né? Qual o principal uso que

faz do celular?

E9: Mais Whatsapp, Instagram.

Otávio: De fotos então. E essas fotos, você tira em que momentos?

E9: Essas fotos são apenas para negócio digital porque no Instagram você atinge

mais gente do que no Facebook. Tem foto que eu coloco no Instagram e tem 80

pessoas que curtem. No Facebook, pode ser 30, 20. Eu faço divulgação de alguns

produtos que eu vendo pelo Instagram.

Otávio: Então internet você usa no celular, né?!

E9: No celular e no notebook.

Otávio: E qual a frequência?

E9: Todos os dias.

Otávio: Você usa a internet principalmente para quê?

E9: Para conversar com a família, amigos, atingir pessoas, meu negócio digital, só

pra isso.

Otávio: O que são esses negócios digitais? Me explica, eu não sei direito.

E9: Vender e filiação de produto. Se você tem um Mac, esse Mac tem um código

que é seu. Se você vender esse produto, vai ganhar uma comissão.

Otávio: É uma espécie de revenda então.

E9: Isso, revenda.

Otávio: Você tem Facebook. O Facebook é uma das ferramentas que mais usa na

internet?

E9: Não, Instagram.

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Otávio: Você participa de algum grupo fechado de haitianos ou de migrantes que

estão no Brasil?

E9: Não.

Otávio: Para que você mais usa o Facebook?

E9: Mais para conversar com amigos.

Otávio: Então, você não participa de grupos?

E9: Grupo eu tenho de minha igreja só.

Otávio: Ah, na igreja você tem? Esse grupo é de...

E9: Jovens.

Otávio: Mas têm mais imigrantes ou brasileiros?

E9: Só brasileiro.

Otávio: Em relação à TV, rádio, jornal. TV, por exemplo, você assiste bastante?

E9: TV não. TV e rádio são antigos.

Otávio: Jornal impresso...?

E9: Não.

Otávio: OK. Você está bem moderno! Você já chegou a assistir a algum vídeo ou

documentário sobre haitianos aqui em Curitiba?

E9: Aqui em Curitiba não, mas já assisti documentário de haitianos que chegaram

pelo Acre, acho que em 2010.

Otávio: Quem produziu?

E9: Não sei, mas é do Brasil.

Otávio: E o que você achou?

E9: Quando cheguei aqui, em 2013, eu já sabia a verdade sobre os haitianos que

chegam pelo Acre. São haitianos que chegaram à América do Sul, que estavam

morando no Chile, Peru e Equador. Na América Latina também. Eles decidem entrar

no Brasil, não sei como, se já existia outro haitiano morando no Brasil.

Otávio: Os modos como eles trataram o migrante você gostou do vídeo?

E9: Não, é muito feio.

Otávio: O que você achou feio?

E9: O jeito que eles entraram, o jeito que eles moravam. Para mim não é o jeito que

um ser humano deve ser, mas pra mim não é, não é.

Otávio: Vou fazer agora umas perguntas mais relacionadas às atividades das

organizações, da Casla, que você tem participado mais. No curso, a gente percebeu

que vocês faziam muitos registroa, filmavam bastante as atividades, os eventos, a

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questão da bandeira haitiana. O pessoal usa muito o celular para registro. Você

costuma fazer isso também? E independente de fazer ou não, você sabe qual o

principal uso que o pessoal faz dessas fotos, desses vídeos que gravam?

E9: Eu gosto de fazer isso, mas você quer saber o que fazem com esse vídeo?

Otávio: Você guarda para você, compartilha com pessoas, posta no Instagram?

E9: Mais para mim. Mas se eu tenho outra pessoa, eu não vou guardar só para mim.

Se tiver irmão, vô, primo, eu vou compartilhar no Facebook, Instagram.

Otávio: Essas filmagens, você assiste de novo depois? Ou foto, você costuma ver

depois para lembrar ou só guarda?

E9: Guardo. É gostoso de ver de vez em quando.

Otávio: Essas atividades e eventos que as organizações têm feito, na sua opinião,

contribuem e mudam um pouco a forma dos brasileiros perceberem os haitianos

aqui?

E9: As atividades?

Otávio: Ou os eventos, as festas que existem...

E9: Aqui?

Otávio: Da Casla ou outra instituição.

E9: Na Casla, vocês são diferentes, o jeito é diferente. Basta haitiano gostar [de

algo] e vocês fazem. Vocês mostram que são humanos e têm humanidade. Em você

mesmo, eu vejo algumas coisas verdadeiras, o lado que você tem verdade, que você

se mostra pessoa humana. Vocês incentivam. O curso que vocês fazem é bom

também. Vocês me ajudam muito, no que vocês podem fazer.

Otávio: E em relação aos outros brasileiros, que não fazem parte das organizações?

Por exemplo, as organizações contribuem para vocês terem uma imagem positiva

aqui na cidade, frente a essas pessoas?

E9: A Casla é uma boa maneira de apresentar os migrantes e refugiados. Vocês têm

uma coisa diferente. Alguns lugares que eu já fui, as pessoas são fechadas. Não é

um jeito que alguém deve ser.

Otávio: Você acha que os brasileiros são fechados?

E9: Não. Não são todos. Não é esse assunto que eu queria entrar. Mas eu não

participo muito das outras organizações, só na Casla, mas eu não sei dizer se eles

são bons, mas a Casla faz a diferença.

Otávio: Você acha que as atividades que as organizações têm feito são suficientes

para construir uma imagem positiva de vocês na cidade ou é preciso mais?

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E9: Suficiente não é a palavra. Já encontrei bastante brasileiro que impediu de me

ajudar aqui e em Belo Horizonte. Não é sobre a Casla que eu vou falar, mas depois

vou falar sobre o assunto que você me pediu. Eles falam comigo “qualquer coisa que

você precisar, pode falar comigo”. Mas se eu vou pedir pra eles o que eu vou

precisar? Se me pedir qualquer coisa eu posso pedir pra você. O que eu quiser. Mas

tem brasileiro que faz isso comigo, eu acho que vou pedir para fazer um cheque

para mim de 50 mil reais. O que ele vai falar? Só ele fazer o cheque pra mim e vai

na minha conta. Eu falei pra ele: “Eu vou pensar”. Quando eu fui à minha casa para

pensar sobre isso, eu nunca pedi isso pra ele. Porque eu olhei e analisei algumas

coisas dele e ele não vai conseguir me dar esse dinheiro. Tem brasileiro que,

quando eu cheguei aqui, veio me trazer roupa. Todas as roupas que eles trouxeram

para mim, eu coloquei na garagem. Eu não usei. Se a Casla pode fazer mais? Os

haitianos são muitos aqui, mas o que poderiam fazer para eles? Colocar eles em

empresas, contratar quem não tem trabalho, mesmo salário que eles vão receber é

muito pequeno. Só isso que pode ser um pouco suficiente.

Otávio: Você acha que se tiver uma inserção melhor dos haitianos no mercado de

trabalho, isso melhora a forma de ver vocês?

E9: Não.

Otávio: Eu queria entender melhor essa coisa da imagem, das pessoas de fora

olhando vocês, como vocês sentem isso.

E9: Um trabalho que fico mais aqui é um trabalho de promotor. Vejo muito eles

acharem que vêm para roubar o trabalho deles. Isso não vai melhorar muito. A

imagem dos migrantes e refugiados não é o lado de bastante brasileiro olhar, mas se

eles veem o migrante, vão achar que veio para roubar o emprego. Tem brasileiro

que vai ser alegria, mas tem quem não vai ser.

Otávio: Na sua opinião, qual o melhor momento para você manifestar o ser haitiano,

a identidade haitiana?

E9: Não sou uma pessoa cultural. Eu sou evangélico e têm algumas coisas que eu

já mudei faz tempo.

Otávio: Você pode citar algum exemplo?

E9: Já nasci numa família evangélica e nós não celebramos a festa da bandeira na

nossa família, mas é uma coisa cultural para nós.

Otávio: Por que vocês não celebram?

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E9: Porque nossa bandeira tem um significado cultural. Assim, nós celebramos a

bandeira, tanto de nossa casa, nós sabemos que isso é contrário com nossa fé. Por

isso, que outros haitianos, se eles querem mostrar que são haitianos, tem uma festa

da bandeira, tem 1º de janeiro também que é festa da Independência...

Otávio: Vocês não comemoram essa festa?

E9: Nessa festa, nós comemos uma comida diferente, cada 1º de janeiro. Só a

comida, que nós fazemos em casa. Mas para outros haitianos, que é cultural, que

têm uma cultura do Haiti, podem mostrar isso. Para mim, só quando vou falar com

outro haitiano na rua, que vai ter brasileiro lá é que vai saber que sou haitiano.

Otávio: Como alguns desses momentos vocês não celebram por motivos religiosos,

existe algum outro momento que, aqui no Brasil, você consegue mostrar o “ser

haitiano”? Dentro das possibilidades que você oferece a você mesmo?

E9: Tem isso, mais na igreja que tem esse tipo de momento. Mas aqui nunca [em

Curitiba]. Em Belo Horizonte, quando meu pai foi a uma igreja para pregar a palavra,

eles pregaram em crioulo e um irmão traduziu.

Otávio: Aquele foi um momento que as pessoas entenderem o “ser haitiano” através

do idioma. E se fosse escolher um principal problema de comunicação que você tem

no Brasil, qual falaria?

E9: Eu não tenho um grande problema de comunicação. O que eu tenho é minha

língua nativa que é um problema pra mim, de ter o sotaque. Você vai ver, quando

outro estrangeiro vem para cá, mesmo se morar aqui dez anos, vai ter um sotaque

diferente do brasileiro nativo.

Otávio: O idioma.

E9: O idioma.

Otávio: O mundo hoje está mais conectado, isso é um fato. As pessoas têm mais

contato, ligar no celular, Whatsapp. Na sua opinião, esse mundo mais conectado

ajuda mais ou atrapalha mais para as pessoas compreenderem o mundo como ele

é, nas suas realidades, diferenças?

E9: Ajuda mais. A comunicação é mais fácil. Se agora acontecer uma coisa na

França, você vai saber na hora. Se acontecerem coisas no Haiti, você vai saber na

hora.

Otávio: Essa distância não pode atrapalhar? Às vezes, a comunicação acaba

fazendo muitos “ruídos” e a gente entende aquilo de uma maneira errada? Você

acha que isso acontece?

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E9: Acontece, mas isso é opinião. Isso não atrapalha muito, isso é opinião de cada

pessoa. Se uma coisa acontece na França, isso vai atrapalhar as pessoas que tem

família francesa aqui. Mas não vai atrapalhar muito o brasileiro nativo. A

comunicação é boa, a coisa de internet é muito boa. As palavras vão com uma

velocidade e isso ajuda muito.

Otávio: Você tem bastante expectativa em relação à internet, pelo o que eu

percebo, por conta do seu trabalho. Você se vê no futuro trabalhando aqui com isso?

E9: Eu vejo, mas sou um cidadão do mundo. Não vou ficar num lugar fixo.

Otávio: Você pretende voltar para o Haiti ou ir para outro país?

E9: Para o Haiti, só para passear. Agora se eu vou sair do Brasil para ir para outro

país, agora eu não sei te dizer. Mas eu estou aqui e vou analisar como vou fazer

isso.

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ENTREVISTAS DO TIPO QUALIFICADA

ENTREVISTA (EQ1)

Idade: 34

Sexo: M

Estado Civil: Solteiro

Instrução: Pós-graduação strictu sensu

Religião: Católica

Profissão: Religioso

Ocupação: Pastoral do Migrante

Cidade que veio:

Quando e como chegou: Fevereiro de 2014

Otávio: Qual a principal fonte de informação dos haitianos quando eles chegam à

Pastoral? Como eles conseguem essas informações?

Entrevistado Qualificado 1 (EQ1): Acho que eu não posso dizer que existe uma

fonte de informação, assim, estabelecida pelos migrantes chegar até nós, mas só eu

sei que cada migrante que já passou aqui, mas até agora eu não sei como eles

acharam a primeira informação. São fontes de informação para os novos. Pode ser

que os que primeiro que chegaram aqui acharam essas informações, desde a sua

chegada ao Acre. Dependendo da cidade de destino desse imigrante, se esse

imigrante vai para Curitiba, há um centro de atendimento aos migrantes. Lá eles

podem transmitir a vocês algumas informações. Uma fonte de informação pode ser

Acre, outra fonte de informação pode ser São Paulo. Então, o lugar onde o migrante

chegou, antes ou pela primeira vez, já o orienta. Porque se o migrante quer ficar no

Acre a questão não vai ser divulgada, mas se quer sair a pergunta vai ser: “para

onde você vai? Para Curitiba, para São Paulo?”. Ela já tem um ponto de referência

em Curitiba ou São Paulo. Então é sempre o lugar que acolhe antes que é fonte de

informação, mas não sei se os coiotes também têm informações dos centros, pode

ser que sim, pode ser que não. Sabemos que eles são pessoas informadas, que

talvez busquem informações para fazer esse trabalho de encaminhamento.

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Otávio: Essas fontes de informações são muito mais interpessoas do que mediadas

por tecnologias, então?

EQ1: Sim, claro.

Otávio: Pensando nas tecnologias de comunicação, pensando desde celular, até

televisão, celular, rádio... há alguma muito utiliza pelos imigrantes aqui no Brasil? Ou

alguma mais usada, pelo menos?

EQ1: A mais usada é o Whatsapp, né... o celular. Pelo celular eles fazem

comunicação rápida agora. Antes do Whatsapp era o Facebook, que era o

responsável, via internet, computador e telefone. Com esses meios eles passam

comunicados rápidos para seus familiares ou seus amigos, que seja. Mas o mais

usado é o celular.

Otávio: E o principal uso que eles dão ao celular, Whatsapp?

EQ1: A primeira finalidade é para comunicar. Mas com quem? Comunicar com as

famílias, amigos e também para comunicar algumas informações a respeito da

situação deles. Pode ser sobre a documentação deles, para a questão do trabalho

ou para buscar informações, via Whatsapp ou Facebook. Por exemplo, nós estamos

fazendo agora um grupo para comunicar com eles e com esse grupo eles podem

também buscar informações com a gente. É assim: para comunicar e buscar.

Otávio: Quais as formas de comunicação que a Pastoral tem com os imigrantes?

EQ1: A primeira forma de comunicação que temos com os migrantes é verbal. Eles

têm que chegar até nós e nós passamos informações e também a outra pode ser

através da mídia, quando vem um jornal aqui até nós, a televisão... rádio... a gente

aproveita também para comunicar aos migrantes algumas coisas boas pra eles e os

serviços que estamos desenvolvendo para eles. Assim, comunicamos o que temos

para eles, nessa dimensão da acolhida. Então esse contato com a Pastoral nos

comunicamos e também através do jornal, da rádio, televisão, nos comunicamos

também. Mas não sei se eles escutam a rádio, se têm um amor para a televisão ou

talvez o canal que transmite essas informações. Nós comunicamos, mas não sei se

eles buscam onde estão essas informações. E, acho que atualmente com vocês,

estamos vendo a parte da comunicação, do Whatsapp – mais rápida e mais fácil

para eles – já tínhamos no Facebook, graças a sua ajuda, informações e onde nós

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divulgamos muitas coisas, porque sabemos que eles buscam informações via

Facebook e o Facebook é um mundo que se abre para todos. Acho que nós

estamos vendo nos últimos anos que é preocupação para nós saber onde o

migrante busca a informação para a gente poder estar nesse lugar e divulgar a

informação para ele. Como já falei antes, eu acho que eles estão mais no Whatsapp.

Será que é somente isso? Precisamos saber para poder divulgar mais.

Otávio: Interessante. E como o senhor avalia a comunicação da Pastoral com os

imigrantes haitianos?

EQ1: Eu avalio essa parte da comunicação da Pastoral, assim que... como estamos

fazendo é um pouco limitada. Acho que nós temos que abrirmos mais, divulgar mais

informações. É limitada no sentido de que eu posso fica somente esperando o

migrante via Whastapp. Acho também que eu posso começar a escrever se eles têm

este amor para a leitura... escrever também no jornal, colocar algumas coisas no

Google para eles terem acesso a mais informações. É limitado porque não pode ser

somente assim verbal, esperando que eles venham aqui para comunicar, mas

também colocar informações onde eles estão. Eu avalio que é um pouquinho

limitado, mas temos que consciência que podemos fazer mais coisas para divulgar,

para comunicar com eles.

Otávio: Mudando um pouquinho, falando um pouco das atividades que a Pastoral

faz – os eventos, as festas. Dessas atividades que a gente tem realizado com eles,

tem algum tipo de feedback que os haitianos trazem?

EQ1: Eu tenho ouvido sobre as atividades que nós realizamos, à luz da experiência

deles coisas positivas que a festa foi boa. “Nossa, que atividade!” “Nós gostaríamos

que sempre houvesse esta atividade porque é bom para a gente se divertir...”.

Então, e queixas como é sempre atividades boas: “O tempo é curto, não é

suficiente...”. E você, acho que já tem experiência, nós organizamos atividades com,

às vezes, três partes: a parte religiosa, a parte cultural e a parte gastronômica. E a

parte que interessa mais aos imigrantes é, começando pela parte gastronômica e

indo até a cultural. E, na parte cultural, eles estão esperando mais tempo. A

atividade deveria ser mais comprida porque é a parte que eles mais gostam. Então a

avaliação deles vem da parte que eles experimentaram, a parte cultural, que é boa,

a comida também é boa, mas talvez nós perdemos a parte de antes. Bem poucos

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dizem que a missa foi boa, porque eles veem a parte que mais lhes interessam, que

é a parte cultural.

Otávio: Como que essas atividades que a gente tem feito influenciam na construção

da identidade dos haitianos aqui no Brasil? Há uma influência? E se há, como?

EQ1: Há. Como... Como, nós estamos trabalhando a parte da integração dos

migrantes. Acho que cada vez que organizamos uma atividade assim onde

oferecemos espaço para eles mostrar as culturas, isso é um grande passo. Os

valores culturais deles, porque chegando aqui o povo que acolhe não os conhece,

mas através dessas atividades culturais dá para o povo conhecer alguma coisa

deles. Assim, com essas atividades realizadas pela Pastoral eles estão se

integrando, se inculturando e também estão, ao mesmo tempo, convidando o povo

que acolhe a aceitar estes valores culturais. Aceitar esses valores culturais é

também chamar o povo que acolhe a abrir o coração para uma melhor acolhida.

Então seria uma aculturação. Não é que o povo que acolhe está perdendo sua

cultura, mas está entrando na cultura do diverso, do outro, para poder conviver com

o outro diverso. Então essas atividades seriam para facilitar uma convivência

multicultural. Acho que isso influencia muito a comunidade. Quando organizamos

não é por puro prazer de organizar, mas para poder chegar a esta finalidade que é

convivência multicultural dos povos, do povo haitiano que chega e do povo brasileiro

que acolhe e também os outros povos, como os latinos que estão chegando ou que

já chegaram.

Otávio: E esses objetivos que o senhor está falando de repente seriam a principal

finalidade da Pastoral dos Migrantes?

EQ1: Sim, sim. Seria isso porque a Pastoral deve acompanhar para formar para o

protagonismo, para a pessoa ser o sujeito da sua própria realização, pois nós não

vamos estar sempre ao lado do migrante. O migrante, depois de um tempo, tem que

ser capaz de fazer seu caminho. Nós damos um apoio para ajudar e depois o

migrante tem que caminha sozinho. E, por isso, acho que criar um ambiente onde

tem fraternidade e união dos povos é legal e isso é um dos objetivos da Pastoral.

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Otávio: Mais uma pergunta sobre a identidade, como o senhor percebe a identidade

haitiana é vista na sociedade de Curitiba e como essa identidade haitiana é vista

pelas organizações de apoio aos haitianos? Há uma diferença de olhar?

EQ1: Acho que a primeira imagem, de qualquer haitiano que está aqui é sempre

assim: ele é um imigrante. Com essa informação eles querem transmitir muitas

coisas que, às vezes, não bate com o nosso conceito de imigrante. Quando essa

imagem, ou quando talvez a entidade, a organização, ou seja, que não usa muito a

Pastoral... porque a Pastoral não fala aqui que o haitiano é somente imigrante, mas

também pessoa humana, com dignidade, mas não sei como eles estão usando essa

imagem do imigrante... eu não sei o que eles querem dizer. Pode ser também que é

um imigrante e isso quer dizer que é um imigrante e isso quer dizer que é uma

pessoa que está em busca de uma vida melhor... Outros podem dizer que é uma

pessoa sem casa, sem trabalho; pode ser também uma pessoa vulnerável, porque

muitas organizações usam assim para dizer o que é o haitiano imigrante e nós, da

Pastoral, o haitiano imigrante é uma pessoa humana que quer viver com sua

dignidade e plena dignidade. Porque quando você diz “a organização usa o haitiano

em busca de uma vida melhor” você pode oferecer para ele um trabalho, acho legal,

outro também pode ficar só na parte do assistencialismo, dar um pão, pensando que

o problema já está aí resolvido. Não, acho que nós dizemos que é uma pessoa com

dignidade. Além do nosso trabalho de acolhida estamos vendo como o migrante

pode se integrar sabendo como os valores culturais do lugar que acolhe: a língua,

ter um lugar onde pode viver como pessoa humana, um trabalho, poder se

comunicar com a família, ver como viver com a família... toda a dimensão da pessoa

a nível psicológico e não só afetivo... nós estamos vendo tudo isso. Quando o

migrante sofre já sabemos porque estamos vendo o imigrante como pessoa

humana, não como uma pessoa em busca de algo. Um cachorro também pode estar

na rua em busca de algo. O que você oferece para ajudar esse cachorro, por

exemplo, a viver como cachorro, mas se é uma pessoa humana o que você oferece

para ela viver como pessoa humana? Acho que é a imagem de um migrante deve

ser bem vista e analisada. O imigrante é uma pessoa e isso é importante. É uma

pessoa! Pessoa humana com dignidade e tem que viver...

Otávio: E a sociedade? Será que, na sua opinião, ela enxerga isso?

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EQ1: Depende, né. Depende com que tipo de lentes essa sociedade está olhando.

Se está olhando com as lentes, com uma visão teológica de que o migrante é

pessoa humana, criada a imagem e semelhança de Deus, acho que está bem

enxergando, mas se está enxergando com outro tipo de olhar pode cair no perigo da

discriminação, do preconceito, de tudo.

Otávio: E a mídia?

EQ1: A mídia também. Ela faz uma pergunta: “Por que você veio aqui ao Brasil?”. É

sempre uma pergunta assim, é a pergunta mais comum da mídia. Sim, é curiosidade

de saber porque o imigrante vem. Acho que não deveria ser a primeira pergunta.

Deveria ser: “Quem é você?”. Acho que a primeira pergunta deveria ser perguntar a

identidade da pessoa. “Quem é você?”. A pessoa vai contar sua história e a partir da

história, sem fazer essa pergunta “Por que você veio?” captar o motivo da vinda. A

resposta já está aí na pergunta. Porque a mídia está vendo a pessoa como

imigrante, aquele que vem como imigrante e não como pessoa. Não é somente o

pobre que imigra, mas a migração pode ser uma coisa voluntária ou uma pessoa

que vai estudar pode sair também do seu país para buscar um ensino melhor e

porque sou muito fechado eu posso dar só uma resposta: “Eu vim aqui para

trabalhar”. E não é somente para isso, não resolve o problema.

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ENTREVISTA (EQ2)

Idade: 33

Sexo: F

Estado Civil: Solteira

Instrução: Doutoranda (Letras)

Profissão: Professora

Ocupação: Professora

Otávio: Eu queria perguntar, de início, quando os haitianos chegaram aqui até

vocês, qual a principal fonte de informação deles? Ou a própria chegada em Curitiba

e depois procurando a instituição de vocês, quais as principais fontes de

informações que eles têm até chegar onde...

Entrevistado Qualificado 2 (EQ2): Você diz informação sobre o curso?

Otávio: Pode ser sobre o curso, sobre a cidade também, as informações que eles

mais têm atuais, pode ser sobre o curso específico.

EQ2: Então, no início quando não existia essa rede, que a gente trabalha no

programa, na Universidade, não só no projeto, eu acho, como eu comentei com

você, era muito do curso especificamente via Casla e o boca a boca e o que era

interessante que a gente começou a perceber no decorrer do tempo é que quando

eles chegavam eles preenchiam uma ficha de inscrição como nivelamento pra gente

saber que turma eles iriam e uma das perguntas era: “Quanto tempo você está no

Brasil?”. E a gente começou a perceber que era um pouco isso, boca a boca, porque

ao mesmo tempo chegava pessoa que estava há um ano, seis meses ou até mais, a

gente começou a ver muitas pessoas que chegaram ao Brasil há uma semana, três

dias e teve vários casos que chegaram, inclusive, há um dia ou no mesmo dia que

eles estavam ali fazendo o curso. Então pra gente isso chamava muita atenção no

sentido que nem tinha dado tempo ainda dele ir até alguma agência do trabalhador

ou, enfim, dessas coisas primeiras, da Polícia Federal, desse movimento primeiro

mesmo, muitas vezes eles estavam já ali por uma rede de conhecidos que já

levavam eles para o curso, né. Quando a gente via que ele já estava uma semana,

três dias, há dois dias eles já estavam no sábado ali pleiteando uma ficha e isso se

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traduz um pouco, talvez, nessas informações da cidade, que a gente percebia que

eles tinham conhecimento muito grande, na grande maioria, sobre questões relativas

ao trabalho. Então muitos sabiam, sim, onde tirar carteira de trabalho, já tinham feito

isso pela agência trabalhadora, a grande maioria já tinha passado por lá, da Casla

muitos conheciam, da Pastoral do Migrante, enfim, mas ao mesmo tempo

pouquíssimo conhecimento da cidade em termos culturais. Por exemplo, mesmo de

espaço físico mesmo, quando a gente sempre ia fazer uma atividade – porque a

gente tem varias atividades de integração que a gente leva eles pra alguns lugares –

, então quando a gente tentava referenciar isso na própria reunião com a

Associação, “Ah, Praça Santos Andrade... Teatro Guaíra”. Não, ninguém sabia, ou,

“o Largo da Ordem, a feirinha, o centro antigo”... Eu lembro isso claramente que não

tinha esse pertencimento da cidade, essa informação da cidade enquanto cidadão

pertencente.

Otávio: Em relação a Curitiba vocês chegaram a descobrir, ter essas informações

com eles de quando eles estavam no Haiti porque que eles chegaram aqui em

Curitiba, qual era o conhecimento que eles tinham das cidades, porque vieram pra

cá?

EQ2: A grande maioria já tinha algum conhecido aqui, então de novo essa relação

do... tanto que pra gente é bem claro, os dados que a gente levanta do projeto que

agora já chegou essa segunda leva, agora mulher veio, irmão veio, primo veio, então

já está nesse segundo, de 2013 pra cá, por exemplo, pra gente é bem mais claro até

pelo aumento de mulheres no curso que antes quase não existia, a gente já

consegue perceber essa segunda fase, assim, desse fluxo haitiano. Então a grande

maioria quando eu comentava era porque tinham conhecidos aqui...

Otávio: Faz sentido. Vocês percebem o uso intensivo de alguma tecnologia de

informação que eles usem mais, que está sempre presente ou que eles conversam?

EQ2: A grande maioria é do celular, eu diria assim, mas o que a gente também já

percebeu que pra gente era uma dificuldade quando eles estavam na lista de

espera, ou quando a gente queria dar alguma informação, é que eles compartilham

o celular com o grupo muitas vezes, então não tem o celular da EQ2*, mas tem o

celular da casa. Então a gente ligava pra chamar um aluno que estava na lista de

espera, mas ele estava trabalhando e esse celular estava com outras pessoas. Não

sei se é essa a pergunta, mas do celular a gente percebe e daí como a gente

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começou e também a gente procurou. Foi interessante o caminho que se deu

porque a gente foi fazer aula de currículo no laboratório de informática e a gente

percebeu que muitos não tinham quase esse letramento digital, não tinham e-mail e

tinham dificuldade mesmo em lidar com o computador por mais simples que fosse a

atividade. Daí a gente chegou a contatar o professor Alberto*, que é da Informática

aqui da Federal e convidar pra ele participar do projeto. Então, desde o começo de

2014, ele com os alunos de informática do grupo teste de informática – eles dão

aulas de informática da 1 e meia às 3, antes da nossa aula de português que

começa às 3, nos dois laboratórios, ali na Letras – e o legal foi que eles relatam isso

pra gente em relação a essa questão da tecnologia, que, claro, é bem heterogêneo,

têm pessoas realmente não tem nenhum letramento digital, não tem e-mail, alguns

mais, mas sempre a primeira coisa ali que eles pedem é pra ensinar ou pra

disponibilizar tanto Facebook, quanto e-mail porque eles querem se comunicar com

a família, com quem está no Haiti. Isso, no ambiente do projeto cresceu também, de

fazer uma conta de e-mail, de postar, de entrar no Facebook. Ele sempre dá um

tempo, porque muitos só têm computador aqui, enfim, então tem também esse canal

de... eu me lembro também que ele relata de... coisa bem simples assim, do que

está acontecendo na cidade, de ferramentas que eles podem usar na internet pra

ver os e-mails gratuitos, o que está acontecendo, isso acontece também ali na aula

de informática.

Otávio: Ah, legal... Uma pergunta em relação à comunicação dessa questão de

vocês ligarem às vezes pra avisarem de alguma coisa e ligam nos celulares,

independentemente das pessoas, mas há esse processo. Além desse processo

comunicativo pelo telefone há alguma outra forma de comunicação entre vocês e os

migrantes?

EQ2: Hoje em dia a gente já chegou em alguns caminhos porque no começo

realmente isso foi muito difícil. Os e-mails eles não respondiam, a gente nem sabia

se eles abriam, porque na ficha tinha né... e-mail, telefone, enfim. Então a gente ia

para o e-mail e voltava ou não respondia. E-mail era catástrofe. Aí celular muitos

caiam em caixa postal, quais os horários de trabalho, às vezes a gente conseguia

deixar recado com alguma pessoa que a gente não sabia também e, hoje em dia,

posso dizer que com as pessoas que melhor consigo me comunicar é, ou por

Whatsapp, porque daí alguns deles têm, né, têm algumas redes que eu sei, e pelo

Facebook, no sentido que a gente tem uma página do projeto no Facebook, do

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PBMIH. Então eu sei que a grande maioria dos nossos alunos estão na página

porque a gente posta as fotos deles, dos eventos culturais, a gente divulga as

pessoas do projeto. Ali a gente sabe que eles olham, eles respondem por ali e pelo

Facebook mesmo. Hoje em dia, por muitos terem curtido a página a gente acaba

conseguindo falar com eles por mensagem, até meio hilário, mas é o jeito que mais

funciona hoje em dia quando a gente precisa falar.

Otávio: Mas há interação no Facebook, por exemplo, eles acessam a página?

EQ2: Sim, não posso dizer que todos, mas vários, porque eles comentam, a gente

sabe por causa disto. “A gente foi ao Teatro Guaíra ver a orquestra” daí a gente

coloca umas fotos deles lá, daí muitos comentam a foto e de um evento que a gente

fez agora com a, em relação ao grupo lá de dentistas, também foi um evento

diferente pra eles terem atendimento odontológico, foi um evento bem grande,

alguns escreveram ali para confirmar horário quando eles tinham alguma dúvida

sobre o que a gente tinha passado. Então a gente percebe que ali é muito mais do

que... E hoje em dia também, é um ponto importante na comunicação é que, nesse

ano que a gente começou em 2015, foi o primeiro ano que a gente começou a fazer

o atendimento na sala 28, ali na Santos Andrade todos os dias da semana porque

até então eles iam sempre aos sábados e os haitianos faziam a ficha de inscrição.

Tudo isso lá mesmo, paralelo às aulas, e esse ano a sede do programa, que é esse

Política Migratória Universidade Brasileira, onde o PBMIH está dentro junto com

outras áreas, a sede do programa é na sala 28. Então a gente da Letras, do curso, a

gente tem um rodízio de atendimento todos os dias lá e os alunos já sabem disso

também, porque lá tem assessoria jurídica pra eles, tem atendimento da psicologia

se eles quiserem... acabou sendo uma sala da universidade pra eles. Então, hoje em

dia, a gente sabe que muitos vão pra lá quando tem alguma dúvida ou querem

informação, então acaba que esse ano acho que foi que isso cresceu, assim da sala

28 ser uma referência de informação pra eles.

Otávio: Eu queria que você falasse um pouquinho dessas práticas, elas parecem

ser bem interessantes. Pelo que você comentou há um feedback deles, há um

retorno desses migrantes em relação a algumas atividades que vocês fazem por

exemplo, vocês colocam as fotos lá no Facebook ou em algum outro meio de

comunicação e eles comentam, curtem. Você pode falar um pouquinho sobre quais

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são esses feedbacks que vocês recebem, qual é a maioria do tom da conversa, o

que eles falam mais?

EQ2: Sempre no final do ano a gente faz um questionário de satisfação do que eles

mais gostaram, menos gostaram, material, enfim... e pra gente é muito claro, a

grande maioria, 100%, sempre falam muito dessas atividades culturais que a gente

promove. São das mais variadas possíveis: até ir para o museu, a gente foi à

orquestra, assistimos exposição, shows, esses eventos fora que a gente organiza e

esses são os que eles mais comentam. Eu digo que eles comentam porque eles não

falam muito sobre a aula. Então acho que são duas frentes bem grandes que

chegam pra gente: uma são comentários bem positivos destas saídas, com as fotos,

extraclasses, digamos, de coisas que a gente promove e outra muito no sentido de

pedir vaga que, hoje em dia, para os haitianos, a gente tem nove turmas, com vinte

alunos em cada. Já passou do máximo que a gente consegue de fato, é muita gente,

a gente atende quase 200 pessoas – haitianos – porque a questão de língua

também tem esse limite por sala pra que todos consigam falar. Não adianta eu dar

aula de língua pra 70 pessoas, né, isso não funcionaria. Então pra eles isso é difícil

um pouco de entender, sabe. Então, muito que chega pra gente também é “eu já me

inscrevi”, “eu preciso fazer curso de português”, “eu preciso, eu preciso, eu preciso,

por favor, pelo amor de Deus” e a gente sempre tenta explicar um pouco isso da

questão do número máximo de alunos, da questão que precisa ter professor

qualificado pra dar aula pra eles e que a gente já está atendendo bastante gente,

que a gente não consegue atender todo mundo. Então, o que chega pra gente

bastante feedback por atividades, atividades culturais quem já está no curso, essa

questão pedindo vaga e também por a gente ter uma lista de espera grande dessas

aulas dos haitianos a gente acabou fazendo um sistema de que se você faltar três

vezes seguidas você perde sua vaga e a gente chama alguém da lista de espera.

Então, também algumas vezes o nosso setor, porque o que a gente tem de

comunicação é um pouco esse aluno que faltou três vezes e depois de dois meses

ele aparece e daí ele não tem mais a vaga e ele tenta também entrar em contato

com a gente na sala 28 ou ali mesmo no sábado tentando recuperar essa vaga e

não querendo entrar de novo nessa fila. Acho que esses são os maiores temas,

digamos, da comunicação com a gente hoje em dia. Acho que poderia ser essas três

esferas, né. Não falando de sala de aula, obviamente, do que aparece ali, da

demanda deles em sala de aula é outro... mas acho que não te interessa muito, mas

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é um outro. Em relação a preconceito, o que eles sofrem, a sala de aula acaba

sendo um espaço terapêutico, nesse sentido, porque eles confiam nos professores

que estão ali, porque estão bastante tempo, porque sabem que estão fazendo

alguma coisa por eles e eles veem de alguma forma que está ajudando, que o

professor acaba sendo essa ponte com o mundo, da cidade, de levar aos lugares,

de dar dicas. Como a gente tem hoje em dia essa rede dentro da Universidade das

migrações pela Cátedra, que é esse programa, a gente acaba também, muitas

coisas que surgem em sala de aula, redirecionando. Então pra eles isso é muito

positivo, diferente o que acontece em outras instituições. Surge em sala, que é

sempre exemplo clássico: surge em sala questões trabalhistas. A gente não vai

resolver aquilo. Não, não que nos compete, mas a gente vai encaminhar ele para o

pessoal do Direito do nosso programa pra levar isso naquele horário, pra falar com

aquela pessoa, pra encaminhar isso, surge uma questão de documentos, surge uma

questão que a gente percebe muito forte que a gente acha que a psicologia podia

ajudar. A gente vai encaminhar. Então, sala de aula, acho que é muito esse espaço

de desabafo, do preconceito.

Otávio: Eu queria entrar um pouco no tema da identidade dos haitianos. A primeira

é como que essas atividades que vocês realizam, acho que primeiro as atividades

que vocês fazem pra além da sala de aula, mas também o espaço da sala de aula

que é uma atividade, enfim, ou que vocês caracterizam mais no ensino da língua...

Como é que essas atividades, sejam elas de sala de aula, sejam elas fora, essas

idas ao museu, enfim, as atividades culturais, como é que elas influenciam na

construção da identidade desses imigrantes aqui em Curitiba?

EQ2: É uma questão bem delicada que a gente se debruça bastante na área de

língua dessa questão da identidade que está em constante construção. O que a

gente prioriza muito, acho que isso é bem claro paro grupo como um todo, é a

valorização da cultura deles. Essa integração nunca é vista como uma imposição –

uma assimilação – da cultura brasileira, mas que a gente sempre tenta mostrar que

isso é um movimento mútuo, que nós temos que estar abertos, mas que vocês

haitianos também precisam estar abertos a essa nova cultura, novos códigos

culturais e que a construção é justamente isso. Então em sala de aula e nas

atividades também a gente sempre propõe nos nossos finais de ano a gente sempre

convida eles. Então, no Dia da Bandeira do Haiti a gente sempre faz, em relação aos

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materiais didáticos mesmo, a gente vai falar de biografia a gente vai pegar, sei lá, o

Jacques Roumain que é um escritor super famoso do Haiti ou figuras importantes da

cultura deles porque isso muda de fato a aula. Quando a gente vai dar uma música

brasileira, agora no intervalo têm vários grupos que já relataram que deixam eles

mexerem no computador: “passa uma música do Haiti, então”. Pegar também esses

artistas e incorporar. Enfim, valorizar um pouco essa história também do país.

Alguns eventos que a gente promove, é justamente pra isso, né... quando a gente

promoveu o cinema haitiano lá na Cinemateca com debate. Também pensando

nessa valorização dessa cultura que agora é nossa também ou mesmo do ciclo de

leitura pegando autores haitianos, convidando os nossos alunos pra ler o original

creole e depois traduzirem para o francês, pra gente traduzir para o português. Mas

ao mesmo tempo a gente percebe que precisa dessa abertura deles também, que

isso é bem trabalhado em sala de aula porque é um país que eles não escolheram

estar, a grande maioria, e talvez nem quisessem estar. Então a mesma coisa

acontece com a língua, é uma língua que eles precisam aprender, mas não

necessariamente eles querem. Então, essa rejeição é um contexto de aprendizagem

também peculiar, eles precisam daquilo, mas eles rejeitam, eles não se sentem

parte, então na formação de professor a gente trabalha isso muito. Esses eventos

culturais, essa ideia de integrar, mas pra eles é clara também, então a gente vai ao

Teatro Guaíra e têm as fotos. Então a gente tem 100 negros juntos no teatro inteiro

branco e claro que isso surge em sala de aula e a gente tenta resgatar, a nossa

história também e mostrar isso. Porque eu falo um pouco de tentar criar esse novo

“nós”, e agora, o que é esse nós? Somos todos que estão aqui nesse momento, que

estamos em constante construção de identidade sempre, que eles não precisam, pra

pegar a cultura brasileira, deixar a deles. Eles precisam se abrir pra que eles

consigam assimilar algumas coisas também nesse novo momento, desse novo

contexto.

Otávio: Perfeito. Em relação a identidade desses haitianos, dois olhares. O primeiro

olhar: como é que você percebe que vocês, enquanto organização, olham essa

identidade haitiana, como é que vocês conversam, pensam isso? Acho que já está

um pouco inserido na sua fala nessa pergunta anterior. E como é que você vê

também o olhar que a sociedade, Curitiba e a opinião pública em geral, as pessoas

que não têm o contato com o migrante, têm esse olhar sobre essa cultura imigrante

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do haitiano? São olhares similares, são muito diferentes, são diametrais? Como você

avalia isso?

EQ2: Eu acho que pra gente é um pouco claro, a gente está dentro da Universidade,

convivendo com esse público há dois anos, enfim, a gente tem um interesse também

muito grande de troca de aprendizado. Então, acho que hoje em dia eu posso dizer

que têm muito mais coisas que nos aproximam do que nos diferem quando falam

que “essas pessoas”. Então acho que não, acho que a gente tem muita similaridade,

acho que a gente tem uma admiração, nós, enquanto grupo, grupo de estudos,

muito grande pela história do país. Foi o primeiro país em que aboliu a escravidão e

isso é muito forte. Já surgiu em vários debates nossos, na postura deles em sala de

aula, essa questão do negro não ser diferente. Acho o que acontece muito aqui no

Brasil, sem generalizar, mas nessa posição mais submissa e que pra eles eu

percebo, a gente percebe em sala uma postura muito mais de confronto e de se

colocar e “não sou um coitadinho”. Então acho que a gente tem, pela nossa visão,

eu acho que é diferente. Mas ao mesmo tempo, claro, que quando muitas das ações

do projeto surgiram no final do ano passado, por exemplo, bem clássica quando saiu

na mídia grandes atos de preconceito, de violência bem sérios e a gente se sentiu

quase que obrigados, enquanto instituição, a fazer algo a respeito, mas não de uma

forma agressiva, eu digo, claro que a gente escreveu uma carta em nome do projeto,

por exemplo, quando saiu a reportagem na Gazeta no final do ano, mas também a

gente promoveu um evento na Praça de Bolso do Ciclista no fim do ano onde a

nossa ideia era justamente mostrar essa identidade, essa cultura, essas pessoas,

para que as pessoas pudessem conhecer e então, aceitar. Porque o que a gente

percebia, ou percebe, é que muitas das pessoas não entendem direito mesmo o que

os haitianos estão fazendo aqui, o que aconteceu no Haiti ou mesmo a questão

migratória no geral, não param para refletir sobre isso e julgam. E a partir do

momento que elas conhecem, que esse evento foi um pouco nessa direção, a gente

viu sim uma aceitação positiva das pessoas que estavam ali, que nunca... “ah, mas

tem haitiano aqui?”. Porque eles são um pouco ainda invisíveis. Hoje menos, mas na

época ainda era mais invisível e a nossa idéia era justamente aflorar, mostrar que

eles estavam aqui e que são como a gente, tem coisas que aproximam e mostrar

essa cultura, essa identidade. Chamamos a banda a noite pra tocar, comida, a sopa

do ano novo pra eles fazerem, a Emília* falou: “A gente queria que tivesse esse

momento da fala e também ter músicas e coisas brasileiras” e a gente mostrou. A

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gente fez um curta com os alunos pensando justamente nisso, foi nesse contexto

que a gente quis fazer. “Quais são seus maiores medos”, são coisas que são

sentimentos que a gente queria pensar que qualquer cidadão tem, independente da

condição dele social ou de nacionalidade, né; “Qual seu maior sonho?”, “seu maior

medo?”, enfim, justamente pra tentar aproximar. Eu vejo hoje em dia, infelizmente,

também pelo momento que a gente está passando da sociedade em geral, algumas

manifestações bem negativas, tanto de preconceito, de xenofobia, violência, mas eu

vejo um movimento contrário de algumas pessoas não tendo entendimento, e a

partir do momento que tem algum certo tipo de entendimento, algum tipo de contato,

se abrem também pelo próprio projeto. Então, quando a gente foi lá no Guaíra pedir

pra levar numa orquestra, enfim, também deles abrirem esse espaço, de

fornecerem, a partir que a gente foi lá e explicou o contexto do projeto, explicou

porque essas pessoas estão aqui, qual que era o objetivo, de poder fazer essa

história diferente, pra que eles não ficassem em guetos, que eles pudessem

pertencer a cidade, pra contribuir, pra não ter esse ódio em longo prazo. Então, a

gente também viu várias aberturas que, a priori, a gente não tinha certeza que isso

ia acontecer. Então, todos os espaços que a gente tentou no início foi muito bem

acolhido, com entradas gratuitas, que a gente está falando de um numero de 150

pessoas, grande número para as instituições. Agora eu acabei de apresentar uma

proposta também para uma rádio que está começando agora da Funpar, que é a

rádio universitária, pra inserir vinhetas falando sobre a questão migratória no sentido

de informar. Eu acredito muito que se as pessoas tiverem um mínimo de noção do

que esta acontecendo, a chance delas aceitarem ou olharem de uma forma diferente

é um pouco maior, né. Na nossa página do Facebook a gente começou também há

alguns meses a colocar relatos bem positivos, de puxar pra essa coisa, então de

mostrar como uma pessoa comum, de criar algum tipo de elo de aproximação, de

identificação. Então, a gente pega nossos alunos: “Ah, ele gosta de fazer tal coisa”,

“a rotina dele é assim”, “ele gosta disso”, “faz isso no fim de semana”, enfim, de dar

voz um pouco, né, o projeto tem um pouco essa ponte.

Otavio: Queria fazer uma pergunta em relação a isso, porque já acabou, mas eu

tinha interesse nesse tema. Vocês fizeram aquele documentário, eu assisti ele, e a

página de vocês também é bastante atualizada e em cima dessas informações que

vocês colocaram, vocês viram necessidade de vocês produzirem peças

comunicativas. Qual foi o principal motivo? Dentro de tudo isso que você falou, mas

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a mídia convencional não estava dando conta, ela não dá conta de fazer com que as

pessoas, porque você falou que as pessoas ao conhecerem mais o preconceito ela,

pelo menos, repensa os preconceitos dela. A mídia convencional sozinha não dá

conta?

EQ2: É, não da conta, eu diria assim. A nossa experiência por mídia muitas coisas

extremamente negativas, de mostrar os problemas um pouco ou muito estudo de

caso - um cidadão que faz isso, isso, isso. Mas a gente não percebia muito o

movimento da mídia no sentido de mostrar as coisas positivas, as contribuições

mesmo ou de cobrir um evento desse, porque a gente sempre convidou. Então nos

procuram muito mais quando parece que o haitiano foi chamado de macaco, banana

e foi agredido, isso repercute muito mais do que uma ação que a gente faz para os

haitianos de atendimento dentário ou que valorize essa autoestima ou na Praça de

Bolso onde a cultura deles, estava todo mundo dançando junto, monte de brasileiro

e monte de haitianos dançando junto e eles falando coisas positivas do Brasil e dos

brasileiros. Esse lado um pouco mais positivo e menos sensacionalista, não sei, não

me parece...

Otávio: Você acha que a mídia tem focado mais nisso?

EQ2: Pelo o que a gente vê, sim. Ou neste fato de como é difícil essa vida aqui, mas

não valorizando muito as ações que tão acontecendo positivas, não só da

universidade, mas quando a gente está dentro desse mundo das migrações você vê

quantas ações também paralelas estão acontecendo, como é uma rede, como têm

pessoas se mobilizando, como tem esse movimento contrário. Então acho o que

aparece muito, é claro que tem efeitos positivos, por exemplo, a Prefeitura mesmo

se coloca muito claramente na página dela à favor. Claro, muitos comentários alguns

positivos e muitos de um teor bem forte, agressivo, mas no geral, não sei se eles

têm uma voz de fato na mídia de uma forma mais positiva, não vejo isso na verdade.

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ENTREVISTA (EQ3)

Idade: 36

Sexo: F

Estado Civil: Solteira

Instrução: Ensino Superior Completo (Advogada)

Religião: -

Profissão: Advogada

Ocupação: Advogada

Otávio: Eu queria saber qual que é a principal fonte de informação dos haitianos

quando eles chegam aqui até o atendimento com vocês na Casla. Como é que eles

chegam aqui, como é que eles ficam sabendo da Casla, ou, no Brasil, também,

como é que eles ficam sabendo de Curitiba? Como é que são essas fontes de

informação deles até chegar aqui, têm referências mediáticas, são mais relações

interpessoais, vínculos pessoais... Como que é isso?

Entrevistado Qualificado 3 (EQ3): São relações interpessoais e também os órgãos

públicos e instituições que encaminham esses migrantes para a Casa Latino-

Americana. Então, por exemplo, Polícia Federal encaminha Consulados,

Universidades, Vereadores, Deputados Estaduais, acabam encaminhando os

imigrantes para a Casa Latino-Americana. Nos países deles, alguns já conhecem,

mas por conta dessas relações interpessoais. Alguns conhecem já o trabalho da

Casla.

Otávio: Ah, tá, nos próprios países também.

EQ3: Isso, algumas pessoas, né.

Otávio: E, você sabe como é que é essa chegada deles em Curitiba, o

conhecimento deles sobre a cidade, o que vocês têm ouvido?

EQ3: Eles vêm muito por conta das Pastorais do Migrante e por conta do

empresariado. Os empresários que acabam trazendo eles para o Sul, por conta da

mão de obra, infelizmente, né, a mão de obra barata.

Otávio: E, você acha que isso no Sul, é mais evidente que nos outros estados?

EQ3: Sim, vêm muitos pro sul, pra Santa Catarina, Rio Grande do Sul.

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Otávio: Eu queria saber se você percebe, se alguma tecnologia de informação,

comunicação é mais presente na vida dos haitianos, na forma mais intensiva e, se

você percebe isso, que uso eles dão a essas tecnologias?

EQ3: É, a gente percebe que eles utilizam muito o celular, o Whatsapp, eles se

comunicam muito por meio desta ferramenta. Email não muito, mas o celular,

bastante. Eles se comunicam muito com seus familiares via Whatsapp. É mais

celular.

Otávio: Como é que você avalia a comunicação, a interação dos imigrantes entre si,

dos haitianos entre si, aqui em Curitiba, e dos haitianos com a Casla ou com as

organizações em geral – porque você tem atuação em mais de uma organização: a

OAB, também no caso. Como é que você avalia esses dois tipos de interações de

comunicação?

EQ3: Então, a interação com a Casla é grande, do grupo de haitianos e de outras

nacionalidades. Mas, eles se comunicam mais entre eles, eles não têm essa

interação maior com o brasileiro. Essa é uma preocupação nossa, por que, o que

nós somos contra na Casa Latino-Americana é a formação de guetos. Então nós

procuramos essa inserção social, essa interação com os brasileiros.

Otávio: Você acha que a interação que os haitianos têm com os brasileiros é mais

uma interação com os brasileiros que estão nas organizações?

EQ3: Sim, mais com os brasileiros que estão lá.

Otávio: Em relação aos outros imigrantes, você acha que a questão dessa ideia de

gueto, embora existindo ou não, mas essa tendência de gueto é mais presente com

os haitianos do que outros ou não?

EQ3: Não, acho que de forma igual. A gente observa essa formação de guetos em

relação a outras nacionalidades: nigerianos, congoleses, senegaleses. Mas nós, na

Casla, lutamos contra isso... a formação de guetos. Porque o objetivo da Casla é a

integração dos povos.

Otávio: E a comunicação dos haitianos entre si, como é que você percebe isso?

EQ3: A comunicação entre eles é boa, eles procuram sempre andar em grupos, é

muito pela questão da segurança, e a comunicação é boa entre eles.

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Otávio: Eu queria saber se vocês receberam algum tipo de feedback dos haitianos,

das atividades que a Casla tem organizado ao longo desses anos, em relação à

eles, com eles, para eles, o que vocês recebem de feedback deles?

EQ3: Num primeiro momento, eles agradecem muito, essa oferta dos cursos, o

apoio para suas festas, festas dos seus países. Eles agradecem e continuam

conosco nesse diálogo, solicitando esse apoio para suas festas pátrias e outras

atividades.

Otávio: Eu vou entrar um pouquinho no tema da identidade. Eu queria saber como é

que esses eventos, essas atividades que a gente tem feito, como elas influenciam

nessa construção da identidade dos haitianos aqui em Curitiba?

EQ3: É importante, porque, por exemplo, o curso que nós ofertamos: “Direitos e

Inclusão Social, os aspectos jurídicos, culturais e psicossociais”. Esse curso foi

importantíssimo porque eles conhecem, eles têm a oportunidade de conhecer a

cultura brasileira, conhecer um pouco dos seus direitos e isso favorece muito a

questão da inserção social e favorece... faz com que eles interajam mais com o

brasileiro, justo nesse sentido de conhecer a cultura.

Otávio: Eu esqueci de uma aqui: Quais as formas de comunicação que a Casla

têm? Para chegar até os haitianos?

EQ3: Eles vêm, num primeiro momento, porque nós trabalhamos com várias frentes,

mas o principal em relação aos migrantes e refugiados é a assessoria jurídica

gratuita. Então, num primeiro momento eles vêm porque a Polícia Federal

encaminha e outros órgãos, então eles vêm para regularizar sua situação no país,

para procurar seus direitos, que seus direitos sejam assegurados, muitos trabalham

na construção civil e em outros locais e seus direitos, por exemplo, seus direitos

trabalhistas não são assegurados. Então, eles vêm procurar os advogados. É uma

primeira comunicação que nós temos e temos os núcleos que são importantíssimos,

que é o Casla-Psico, o Casla-Com, que é o núcleo de comunicação da Casla, que

também é uma ferramenta que auxilia nessa interação com os refugiados e

migrantes, não só haitianos.

Otávio: Então, você avalia que a principal forma de comunicação que a Casla tem

com esses imigrantes parte de uma premissa interpessoal, de contato, deles

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contarem problemas, histórias de vida e a Casla contribui de alguma forma, aí, é um

primeiro momento e, depois, é um primeiro vínculo.

EQ3: Sim, exato. Sim, um primeiro contato.

Otávio: Como é que você percebe e como a sociedade de Curitiba percebe a

identidade haitiana. Como é que Curitiba, a cidade, o cidadão médio, vê esse

imigrante haitiano, a partir da identidade dele, o que é que ele é?

EQ3: Infelizmente, o brasileiro, ele ainda não conseguiu assimilar a questão do

imigrante e, em geral, o brasileiro, é difícil ele assimilar o diferente. Então, nós temos

muitos problemas em relação a esta questão por conta do preconceito, do racismo,

da xenofobia. Muitos brasileiros não entendem que esses migrantes vêm para o

Brasil porque no seu país estão passando por perseguições religiosas, políticas,

étnicas, porque seu país vive uma guerra civil, um conflito armado e as pessoas não

se colocam no lugar do outro. E isso é o principal problema, então, os migrantes

sofrem muito preconceito e, principalmente a incidência maior no Brasil é no Sul do

país. Porque nós temos as colônias, as comunidades de alemães, italianos,

poloneses, ucranianos e essas comunidades têm um maior obstáculo, uma maior

dificuldade para assimilar novas culturas, novos migrantes.

Otávio: Como é que a Casla, enquanto organização, vê essa identidade, dos

haitianos?

EQ3: A Casla sempre trabalhou com a questão da integração dos povos. Então,

como princípio, nós temos a solidariedade dos povos, o respeito às culturas, o

respeito à identidade, nenhuma cultura é superior à outra e temos essa visão de que

todos somos irmãos.

Otávio: Para terminar, você falou da “guetização”, se tem um pouco a ver com isso,

da identidade, como a Casla vê, você pode aprofundar esse tema? A Casla ela é

resistente em relação a essa ideia de guetização, pode aprofundar mais sobre isso?

EQ3: É que essa questão de gueto é onde você aprofunda, você segrega, você

aprofunda essas diferenças e, a Casla, a gente pensa totalmente o contrário. A

Casla tem como objetivo, como “missionê”, a integração dos povos. Então, você

criando guetos, é uma forma de segregar os povos.

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Otávio: E você acha que as organizações têm um papel fundamental para construir

uma identidade mais positiva, mudar a forma como se tem visto?

EQ3: Sim, organizações que trabalham em prol dos direitos humanos, elas têm um

papel fundamental para essa integração, para essa inserção social, dos migrantes,

dos haitianos em específico.

Otávio: Sem as organizações, seria mais difícil para os haitianos?

EQ3: Sim, sem as organizações seria muito mais difícil.

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ENTREVISTA (EQ4)

Idade: 35

Sexo: F

Estado Civil: Solteira

Instrução: Superior completo e cursando Fisioterapia

Religião:

Profissão: Secretária Executiva

Ocupação: Cuidadora

Cidade que veio: Vallières

Quando e como chegou: 5 anos e meia (Avião: Porto Príncipe – Curitiba).

Otávio: Qual a principal fonte de informação dos haitianos até eles chegarem aqui

em Curitiba e também em relação a maioria dos haitianos, pra eles chegarem em

Curitiba como é esse processo normalmente?

Entrevistado Qualificado 4 (EQ4): O processo certo, a pessoa tem que pedir visto

lá na embaixada do Haiti.

Otávio: Mas, em relação à informação, como eles ficam sabendo de Curitiba,

porque vêm pra Curitiba?

EQ4: Outras pessoas dão informação, porque, talvez, têm alguns que têm amigos,

têm família que já está em Curitiba e fica com eu fiz é uma coisa que é um contato

mais de amigo. Tem amigo no Face e está conversando: “E como é sua cidade que

você está?” Começa a perguntar e a pessoa vai explicar, dizer que está bom, está

melhor ou está ruim e se é ruim a pessoa vai perguntar para outros amigos e vai em

outra cidade. Mas se tem, como no início Curitiba que estava mais ou menos e

chega bastante. Saiu de São Paulo e tem notícia e tem alguns também quando a

gente pergunta: “Mas você vem sem saber, não tem ninguém aqui? Eu falo: “Ah, eu

estava no caminho com eles e dizer que vem pra Curitiba e eu falei, eu venho junto”.

É assim.

Otávio: Essa vinda para o Brasil, porque Curitiba é muito específico para o Brasil

como um todo. O interesse dos haitianos de vir para o Brasil, está certo que teve

muitos acordos, facilidades para os haitianos virem pra cá, mas, o interesse é

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motivado mais por pessoas, familiares, amigos que já estão aqui no Brasil e chamam

os amigos que estão no Haiti pra vir? Ou há também, como por exemplo, uma coisa

da mídia, que fala do Brasil como possibilidade?

EQ4: Sim, no início é isso e, depois divulgado que o Brasil abriu a porta para os

haitianos conseguir visto humanitário depois do terremoto e a Presidente Dilma fez

um acordo junto com o governo lá para conseguir visto humanitário e saiu na lei do

Brasil que os haitianos têm direito para conseguir visto humanitário. E não só o

Brasil que fez isso, no início tem o Canadá também que facilitou se a pessoa tem

família lá no Canadá e facilita as coisas. Mas quando eles sabem já tem prazo e

fechou e tem o Equador e outras cidades que as pessoas no Haiti não precisam de

visto para entrar e entra sem visto na Argentina, sem visto. Mas, mesmo o Brasil

abrindo a porta precisa ir à embaixada porque tem uma burocracia para ter visto e

como a burocracia é muito grande eles acabam passando por outros caminhos para

tentar procurar uma vida melhor.

Otávio: E todas essas informações, do acordo entre o Brasil e o Haiti, entre os

presidentes, isso foi midiatizado?

EQ4: Sim! Falou lá no Haiti em todas as mídias que o Brasil abriu a porta para os

haitianos.

Otávio: E você acha que isso motivou a vinda?

EQ4: Sim, isso motivou...

Otávio: Porque os primeiros não tinham pessoas aqui.

EQ4: Não, essa foi a divulgação que fez na mídia e depois quando começaram a

trabalhar, começaram buscar família, ajudar família e buscar uma vida melhor. Mas

agora não é uma vida melhor que tem no Brasil, para eles as coisas estão muito

complicadas e fiquei surpresa esta semana com a notícia que tem nazista. Isso

deixa o pessoal com medo porque não são só haitianos que vêm como imigrantes. A

gente pode ter cor diferente, mas tanto brasileiro também sai para procurar em outro

lugar – vai aos Estados Unidos, vai à França – porque no mundo a pessoa saiu para

procurar uma vida melhor. Não é porque a pessoa escolhe deixar o país para vir

morar em outro país, isso é uma coisa bem triste, bem complicado.

Otávio: No seu caso o motivo da vinda foi mais um contato com uma organização

que você tinha de estudo?

EQ4: É porque eu vim com visto de estudante. Tudo resolveu lá no Haiti, ninguém

tinha uma coisa certa, lá na embaixada resolveu tudo, dar visto para a pessoa e

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pensou que era uma coisa normal porque falou que a gente vinha estudar na

Universidade Federal e quando eu vi outra coisa. Eu falei: “Tenho que estudar”.

Otávio: E você percebe se há algum tipo de tecnologia de informação, de

comunicação que é muito presente na vida dos haitianos aqui no Brasil?

EQ4: Como falei no início, com a comunicação do Face, Whatsapp, telefone, o

mundo ficou só um e qualquer coisa vai espalhar porque a pessoa está procurando

uma coisa melhor e se a pessoa escuta como têm vários que perdem dinheiro pra

tentar sair do Brasil para ir no outro país, porque está tentando pegar uma

informação que não sabe se é verdade, se é falsa e tentar pegar o dinheiro e

começar de novo. O que mais problema é o telefone e as redes de informação.

Otávio: E isso é mais positivo ou mais negativo?

EQ4: Para mim a comunicação é positiva de um lado e negativa no outro lado.

Otávio: Tem as duas moedas?

EQ4: Sim.

Otávio: Qual o principal uso dessas redes sociais?

EQ4: É Face e Whatsapp.

Otávio: Ok, mas é em relação pra conversar com pessoas daqui, fora?

EQ4: É, porque Whatsapp e Face é uma comunicação internacional, você na vai

pagar para ligar para uma pessoa lá no Haiti, para ligar para uma pessoa lá em Nova

York e por isso tem mais facilidade que telefone, do que fazer uma ligação.

Otávio: Há realmente uma facilidade muito grande para você conversar com

pessoas que estão em outro país, familiares, amigos através de celular, Whatsapp,

mas como é que você avalia a comunicação dos haitianos que estão aqui? Entre

eles.

EQ4: O que eu sempre avalio é que falta comunicação entre eles. Por que? Se eu

não conheço a pessoa, talvez eu que fico mais curioso, pode vir a pessoa haitiana

cumprimentou. Mas, um pode encontrar com outro e não cumprimentar porque não

conhece a pessoa. E esta integração, é por isso, a idéia para criar a Associação é

para isso, mas o trabalho falta, por problema do tempo, para ter mais integração.

Otávio: E você acha que a Associação tem um papel importante nisso?

EQ4: Sim.

Otávio: E tem conseguido?

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EQ4: É, a gente consegue o que a gente pode, porque a gente não tem

possibilidade para realizar algumas coisas. Como tempo, a gente não está

ganhando nenhum centavo, não pode pedir para as pessoas na Associação ficar

num lugar para prestar serviço, como a Pastoral que tem espaço, e nós não temos

ainda um espaço próprio e tudo isso deixa a gente um pouco restrito.

Otávio: E como que a Associação faz para se comunicar com os haitianos?

EQ4: A gente, como no início, a gente tem o telefone deles, são amigos no Face e

quando eles precisam, porque tem bastante que eu não conheço, um passa o

telefone para o outro quando eles precisam para ligar e espalha.

Otávio: Então é mais no pegar o telefone, boca a boca?

EQ4: É, boca a boca um passa para o outro, pode escutar o nome e pedir amizade

no Face.

Otávio: Vocês não têm um grupo no Facebook dos haitianos?

EQ4: Temos.

Otávio: Ah, tá. Bom, aí vocês também conversam com eles?

EQ4: Quando a gente tem alguma coisa para anunciar, a gente coloca no grupo e

também no pessoal porque não são todas as pessoas que estão dentro do grupo.

Otávio: Eu percebo que às vezes outros órgãos públicos, a Secretaria de Direitos

Humanos, a Casa Latino-Americana, ajudam a divulgar algumas coisas que a

Associação faz. Há uma parceria nisso?

EQ4: Sim, a gente sempre trabalha junto e quando eles precisam da Associação,

mandam mensagem e pedem ajuda da Associação e quando nós precisamos

também, pedimos a ajuda deles.

Otávio: A Associação funciona como um ponto fixo, mas em rede também, como

fosse uma rede de mobilização?

EQ4: É, e não só com direitos humanos, mas com a saúde também. E para fechar,

essa integração eu sempre quando pedi para o Pedro* fazer trabalho junto e não sei,

egoísmo... não sei. Porque a gente está fazendo o mesmo trabalho, não é um

trabalho pessoal, e...

Otávio: Algumas dessas atividades que vocês organizam para/com os haitianos em

relação às festas da Bandeira, Batalha de Vertières. Que tipo de feedback você tem

recebido da comunidade haitiana – se gostou, não gostou? Como é que é isso?

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EQ4: Na verdade, tem lado ruim e lado bom. E no primeiro momento quando faz tem

mais pessoas a elogiar. O primeiro que a gente fez foi na paróquia, o segundo no

Memorial e o terceiro no Memorial, mas como no terceiro estava mais crítico, porque

no terceiro estava com confusão entre a Pastoral e a Associação, que fez duas

festas no mesmo dia e ficou, como posso dizer, sem saber porque aconteceu as

duas e ficam falando e a comunicação, eu sei como divulgar a comunicação para

eles entenderem o que aconteceu e quando não entendem, tem confusão muito

grande.

Otávio: Tá. Esses são os pontos negativos.

EQ4: Os positivos, na maioria ficam felizes porque a gente colocou uma atividade

para eles e lembra um dia que é mais importante para nós no nosso país e a gente

trás ele aqui, este é o lado positivo que tem. E mesmo assim tem pessoa que fala,

como não aconteceu ainda a festa das crianças que a gente vai fazer dia 19 e tudo

para a gente ver como trazer uma energia entre a família haitiana, como lá no Haiti

sempre tem atividades para as crianças e para eles não se sentirem isolados. É por

isso nosso objetivo da festa das crianças.

Otávio: Eu queria saber em relação a esses eventos, atividades que são realizadas

para os haitianos aqui em Curitiba, como você acha que essas atividades

influenciam na construção da identidade do haitiano aqui na cidade? Você acha que

tem alguma influência, isso ajuda, não ajuda muito?

EQ4: Como a pessoa não conhece nós, na ajuda ficou um pouco restrito, mas eu

acho que pouco a pouco quando eles começarem a envolver, ver nossa cultura,

conhecer um pouco nós eu acho que eles vão ter mais confiança para investir, não é

investir em dinheiro, mas é dar um voto de confiança.

Otávio: Eles quem, você diz?

EQ4: As pessoas do Brasil. Dar para nós imigrantes e toda dificuldade que você viu

que estava acontecendo é falta de confiança.

Otávio: E a construção de identidade dos próprios haitianos, você acha que isso

influencia também? Não é nem uma construção, é uma reconstrução. Você muda de

lugar, você tem uma mudança de identidade. Você acha que isso ajuda – os

eventos, atividades – de alguma forma?

EQ4: É, para mim eu vi que ajuda porque têm pessoas que tem um conhecimento

para chegar quando precisa de uma coisa e porque a gente divulga e têm pessoas

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que vêm, que não sabem nada e no momento a gente sempre dá papel para dizer:

“se você precisa ir em tal lugar, vai em tal lugar”. Isso, a comunicação passa no

momento que tem o evento e mais, se a gente conseguir fazer evento e convidar

eles, é mais informação que vai sair.

Otávio: Uma última pergunta, ainda sobre a identidade. Eu queria saber como você

percebe que a sociedade brasileira, de Curitiba, vê o imigrante haitiano e uma

segunda pergunta: é como vocês se veem, as organizações e vocês se veem aqui

no Brasil?

EQ4: Bom, eu vou começar no início. No início Curitiba teve um acolhimento, não

perfeito, mas melhor. Depois quando começou 2012 as coisas começaram a reduzir.

Não sei se é ignorância, mas começou a reduzir a quantidade de pessoas que abriu

mão para acolher imigrantes no início e pouco a pouco começou... não sei se eles

ficam um pouco frustrados com tantos haitianos que estão chegando e, não sei

porque nós somos humanos, não sei como é. Mas, no início estava bom e dia a dia

fica pior para a integração entre haitianos e brasileiros e este vai ser um começo

porque a gente não pode dizer vai dar uma oportunidade no trabalho assim, tem que

viver a situação para ver como vai...

Otávio: E porque você acha que mudou?

EQ4: Mudou no jeito de acolher tanto no trabalho, tanto para alugar casa, tanto na

rua e falta educação. Exploração, tudo. Isso é muito grave, como dizer que nós

teremos direito para tudo, mas que não é verdade.

Otávio: E como é a Associação, não só a Associação, mas as organizações que

trabalham com os imigrantes, que acompanham, como é que elas enxergam os

haitianos?

EQ4: Eles para enxergar como eu falei, a maioria das coisas que precisar sempre

procura a Associação para ter um contato mais junto porque a maioria do problema

é barreira da língua porque não são todos que falam, não são todos que falam

francês, têm pessoas que só falam dialetos e isso é complicado. A sociedade

sempre corre, tanto dentro do hospital, no trabalho, sempre corre para conseguir

uma ajuda. E mesmo, têm haitianos que não sabem a importância da Associação,

mesmo haitianos que a gente não conhece e está no trabalho, numa empresa, a

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empresa ligou não sei onde, conseguiu telefone, pediu ajuda e nosso papel é muito

grande.

Otávio: Como é que você observa, pra você o que é ser haitiana aqui em Curitiba?

EQ4: Eu sou feliz, eu gosto do que estou fazendo para ajudar todos, mesmo fico

sofrendo porque tem coisa que a gente tem vontade, mas não tem poder, não tem

como ajudar e isso me deixa doente também, porque não só eu fiquei cansada, mas

quando eu não consigo ajudar e me deixa mais presa.

Otávio: O que é ser haitiano, no sentido de que identidade marca mais pra você o

haitiano aqui na cidade. Que característica de identidade que marca mais?

EQ4: O que marca mais para mim, porque mesmo nós estarmos numa situação

complicada, mas sempre ergue a cabeça para a gente conseguir o que quer e

trabalhador também, eles são muito trabalhadores, isso admiro muito, muito dentro

deles.

Otávio: E você acha que o Brasil já ta vendo isso, consegue ver isso?

EQ4: Não, mesmo alguns falando, mas é só para explorar, não fala de coração.

Mas, para fechar, desde a vinda dos haitianos ao Brasil a economia do Brasil

aumentou, não só dentro do trabalho, eles entram no trabalho fazem o trabalho,

mesmo ganhando pouco fazendo trabalho e eles também mandam muito dinheiro.

Isso ajuda um país subir a renda e como imigrantes é haitianos que mandam mais

dinheiro fora que todos. Mas ignorantes, têm pessoas que não percebem isso e

sempre dizem que os haitianos vêm roubar emprego e por isso que sempre que dou

entrevista falo isso. Como o responsável não faz o trabalho para divulgar, mesmo

quando vai ter eleição, divulgar em todas redes, explicar as pessoas como vota, mas

eles têm que, se acolheu imigrante tem que fazer um trabalho para explicar, quem

é? Lei migratória, como não tem, mas explicar, imigrante quem é imigrante?

Imigrante é tal, tal, tal... para eles entenderem. Imigrante vem, nós haitianos vêm.

Não é porque têm pessoas que falam, sair da guerra. A gente não saiu da guerra.

Aconteceu catástrofe e a gente acabou caindo aqui, depois do terremoto no Haiti. Lá

na África tem guerra, por isso tem diferença entre visto humanitário, entre imigrante

e refugiado. Tem grande diferença que a pessoa não consegue e confunde tudo

junto e este trabalho que tem que fazer para eles entenderem. Mas quando não tem

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esse trabalho, olha o que tem e vai ficar do mesmo jeito e vai empurrar as coisas,

infelizmente.