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O Herege - Bernard Cornwell

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O Herege é um livro escrito pelo inglês Bernard Cornwell, sendo o último dos três volumes da trilogia A Busca do Graal

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  • Prlogo

    Vinte mil franceses alinhavam-se nas colinas, os estandartes abundantes aovento que soprava do mar. A auriflama, o sagrado galhardete de guerra daFrana, estava l. Era uma bandeira comprida, com trs caudas pontudas, umaondulao vermelho-sangue de preciosa seda, e se a bandeira tinha uma cor vivaera porque era nova. A antiga auriflama estava na Inglaterra, um trofuapanhado na larga montanha verde entre Wadicourt e Crcy no vero anterior.Mas a nova bandeira era to sagrada quanto a antiga, e em torno delatremulavam os estandartes dos grandes senhores da Frana: os estandartes deBourbon, de Montmorency e do conde de Armagnac. Bandeiras menosimportantes eram vistas entre as nobres, mas todas proclamavam que os maioresguerreiros do reino de Filipe tinham ido combater os ingleses. No entanto, entreeles e o inimigo estavam o rio Ham e a ponte em Nieulay, que era defendida poruma torre de pedra, em volta da qual os ingleses haviam cavado trincheiras, asquais tinham enchido de arqueiros e soldados. Do outro lado daquela fora estavao rio, depois os pntanos, e no terreno mais elevado, perto do alto muro de Calaise seu fosso duplo, havia uma cidade improvisada, de casas e tendas, onde vivia oexrcito ingls. E um exrcito como nunca se vira na Frana. O acampamentodos sitiantes era maior do que a prpria Calais. At onde a vista alcanava haviaruas margeadas por lonas, com casas de madeira e cercados para cavalos, eentre eles havia soldados e arqueiros. A auriflama bem que poderia ter ficadoenrolada.

    Ns podemos tomar a torre, majestade. Sir Geoffrey de Charny,soldado valente como qualquer outro no exrcito de Filipe, fez um gesto parabaixo da montanha, no ponto em que a guarnio inglesa de Nieulay estavaisolada do lado francs do rio.

  • com que finalidade? perguntou Filipe.

    Ele era um homem fraco, hesitante em combate, mas a pergunta erapertinente. Se a torre casse e, com isso, a ponte de Nieulay ficasse em seupoder, de que serviria ela? A ponte simplesmente levava a um exrcito inglsainda maior, que j se dispunha em ordem de batalha na terra firme beira doacampamento.

    Os cidados de Calais, com fome e sem esperana, viram os estandartesfranceses na crista sul e responderam pendurando as bandeiras deles em suasdefesas. Eles exibiam imagens da Virgem, retratos de S. Denis da Frana e, noalto da cidadela, a bandeira real azul e amarelo, para dizer a Filipe que seussditos ainda viviam, ainda lutavam. Mas a brava exibio no conseguiaesconder o fato de que tinham ficado sitiados por onze meses. Eles precisavamde ajuda.

    Tome a torre, majestade insistiu Sir Geoffrey, e depois ataque ooutro lado da ponte! Meu bom Cristo, se os malditos nos virem conseguir umanica vitria, podero perder o nimo!

    Um grunhido de concordncia veio dos senhores reunidos.

  • O rei estava menos otimista. Era verdade que a guarnio de Calais aindaresistia, e que os ingleses praticamente no tinham danificado os muros dacidade, ainda menos encontrado um meio de atravessar os fossos gmeos. Mastambm os franceses no haviam conseguido levar suprimento algum para acidade sitiada. O povo de l no precisava de estmulo, precisava de comida. Umjato de fumaa surgiu do outro lado do acampamento e, poucos segundos depois,o som de um canho ecoou pelos pntanos. O projtil devia ter atingido o muro,mas Filipe estava muito longe para ver o efeito.

    Uma vitria aqui ir estimular a guarnio insistiu lorde deMontmorency e implantar o desespero nos coraes ingleses.

    Mas por que iriam os ingleses perder o nimo se a torre de Nieulay casse?Filipe achava que aquilo iria apenas ench-los de vontade de defender a estradano lado oposto da ponte, mas tambm entendia que ele no poderia manter seusces contidos quando um inimigo odiado estava vista, e por isso deu apermisso.

    Tomem a torre disse , e que Deus lhes conceda a vitria. O reipermaneceu onde estava enquanto os senhores reuniam homens e se armavam.O vento que vinha do mar trazia um cheiro de sal, mas tambm um odor dedecomposio talvez proveniente de algas que apodreciam nos longos alagadiosque recebiam a mar. Aquilo deixou Filipe melanclico. Seu novo astrlogorecusara-se a atend-lo durante semanas, alegando estar febril, mas Filipesoubera que ele gozava de boa sade, o que significava que devia ter visto algumgrande desastre nas estrelas e simplesmente receava contar ao rei. Gaivotasgritavam sob as nuvens. Bem l ao longe, no mar, uma vela desbotada enfunava-se em direo Inglaterra, enquanto outro navio ancorava ao largo das praiasocupadas pelos ingleses e, em pequenos barcos, transferia homens para terra, afim de aumentarem as fileiras inimigas. Filipe olhou para trs, para a estrada, eviu um grupo de cerca de quarenta ou cinqenta cavaleiros ingleses cavalgando

  • em direo ponte. Ele fez o sinal-da-cruz, rezando para que os cavaleirosfossem encurralados pelo seu ataque. Ele odiava os ingleses. Odiava.

    O duque de Bourbon havia delegado a organizao do assalto a SirGeoffrey de Charny e Edouard de Beaujeu, e isso era bom. O rei confiava emque os dois seriam sensatos. Ele no duvidava de que pudessem tomar a torre,embora ainda no soubesse do que aquilo adiantaria; mas achava que era melhordo que deixar seus nobres mais afoitos usarem as lanas numa carga alucinadapela ponte, para sofrerem uma derrota total nos pntanos. Ele sabia que nada lhestraria maior prazer do que um ataque daqueles. Eles pensavam que a guerra eraum jogo, e cada derrota os deixava mais ansiosos por jogarem. Tolos, pensouele, e tornou a fazer o sinal-dacruz, perguntando-se que funesta profecia oastrlogo estava escondendo dele. O que precisamos, pensou ele, de ummilagre. Algum grande sinal de Deus. Ento estremeceu, assustado, porque umtimbaleiro acabara de tocar o seu grande timbale. Uma trombeta soou.

    A msica no pressagiava o avano. Eram, isso sim, os msicos que faziamo aquecimento, prontos para o ataque. Edouard de Beaujeu estava direita, ondereunira mais de mil besteiros e outros tantos soldados, e era evidente que elequeria atacar os ingleses por um flanco, enquanto Sir Geoffrey de Charny e pelomenos quinhentos soldados atacavam montanha abaixo, contra as trincheiras dosingleses. Sir Geoffrey percorria as fileiras mandando, em voz alta, quecavaleiros e soldados desmontassem. Eles obedeceram, relutantes. Acreditavamque a essncia da guerra era a carga da cavalaria, mas Sir Geoffrey sabia quecavalos de nada adiantavam contra uma torre de pedra protegida por trincheiras,e por isso insistia em que lutassem a p.

    Escudos e espadas gritou , nada de lanas. A p! A p! SirGeoffrey aprendera a duras penas que os cavalos eram lamentavalmentevulnerveis s flechas inglesas, enquanto que homens a p podiam avanaragachados, atrs de escudos compridos. Alguns dos homens de bero nobre

  • recusavam-se a desmontar, mas ele no lhes deu importncia. Um nmero aindamaior de soldados franceses apressava-se para participar da carga.

    O pequeno grupo de cavaleiros ingleses tinha atravessado a ponte agora.Parecia que pretendiam cavalgar pela estrada para desafiarem toda a linha debatalha francesa, mas em vez disso detiveram seus cavalos e olharam para ahorda agrupada na crista do monte. O rei, observando-os, viu que eramcomandados por um gro-senhor. Ele sabia disso devido ao tamanho do pavilhodo homem, enquanto que pelo menos uma dzia dos outros cavaleiros levava asbandeiras quadradas de galhardetes em suas lanas. Um grupo rico, pensou ele,que valia uma pequena fortuna em resgates. Ele esperava que cavalgassem at atorre e, com isso, ficassem encurralados.

    O duque de Bourbon voltou para perto de Filipe com o cavalo a trote. Oduque vestia uma armadura que tinha sido raspada com areia, vinagre e arameat ficar branca de tanto brilho. O elmo, ainda pendurado no aro anterior dasela, tinha em cima penas tingidas de azul. Ele se recusara a desmontar de seucorcel, equipado com uma testeira de ao para protegerlhe o rosto e umcaparazo de malha brilhante para proteger-lhe o corpo dos arqueiros inglesesque, sem dvida, estavam colocando as cordas nos arcos nas trincheiras.

    A auriflama, majestade disse o duque. Devia ser um pedido, mas dealgum modo parecia uma ordem.

    A auriflama? O rei fingiu no entender.

  • Posso ter a honra, majestade, de lev-la na batalha? O rei suspirou.

    Vocs tm em relao ao inimigo uma superioridade numrica de dezpara um disse ele e por isso praticamente no precisam da auriflama.Deixe-a aqui. O inimigo j deve t-la visto.

    E o inimigo iria ver o que a auriflama enrolada significava. Ela instrua osfranceses a no fazer prisioneiros, a matar todos, embora no houvesse dvida deque qualquer cavaleiro ingls rico ainda seria capturado em vez de morto, porqueum cadver no rendia resgate. Ainda assim, a bandeira de trs tiras, enrolada,deveria incutir o terror nos coraes ingleses.

    Ela vai ficar aqui insistiu o rei.

    O duque iniciou um protesto, mas naquele exato momento uma trombetasoou e os besteiros iniciaram a descida. Eles vestiam tnicas verde e vermelho,com o emblema do clice de Gnova no brao esquerdo, e cada qual eraacompanhado por um infante segurando um pavs, um escudo enorme que iriaproteger o besteiro enquanto ele recarregava sua desajeitada arma. A unsoitocentos metros de distncia, margem do rio, ingleses corriam da torre paraas trincheiras de terra que tinham sido cavadas h tantos meses, que agoraestavam cobertas com uma camada espessa de capim e algas.

  • Voc vai perder a sua batalha disse o rei para o duque que,esquecendo o estandarte escarlate, girou o seu grande corcel protegido porarmadura em direo aos homens de Sir Geoffrey .

    Montjoie St. Denis!

    O duque soltou o grito de guerra da Frana e os timbaleiros bateram seusgrandes timbales e uma dzia de trombeteiros clamou seu desafio para os ares.Ouviram-se estalos quando as viseiras foram abaixadas. Os besteiros j estavamno sop da encosta, espalhando-se para a direita a fim de envolver o flancoingls. Ento as primeiras flechas voaram: flechas inglesas, de penas brancas,adejando sobre a terra verde, e o rei, inclinando-se frente em sua sela, viu quedo lado do inimigo os arqueiros eram muito poucos. Em geral, sempre que osmalditos ingleses combatiam, seus arqueiros estavam em superioridadenumrica em relao a seus cavaleiros e soldados, no mnimo de trs para um,mas o posto avanado de Nieulay parecia estar guarnecido, em sua maioria, porsoldados.

    Que Deus os acompanhe! gritou o rei para seus soldados. Ele foratomado por um sbito entusiasmo, porque sentia o cheiro da vitria.

    As trombetas tornaram a soar, e agora a onda metlica de soldadosdespejou-se encosta abaixo. Berravam o grito de guerra e o som tinha aconcorrncia dos tambores, que martelavam as peles de cabra esticadas, e dostrombeteiros que tocavam como se pudessem derrotar os ingleses

  • apenas com o som.

    Deus e So Denis! gritava o rei.

    Os quadrelos agora voavam. Cada dardo curto de ferro era dotado dealhetas de couro, e estas faziam um chiado enquanto riscavam o ar em direos trincheiras de terra. Centenas de dardos voavam, e depois os genoveses forampara trs dos enormes escudos para manejar as lingetas que tornavam a curvaros dardos reforados com ao. Algumas flechas inglesas enfiavam-se nospaveses, mas ento os arqueiros voltaram-se para o ataque de Sir Geoffrey.Colocaram flechas com ponta de estilete nas cordas, flechas que tinham na pontasete ou dez centmetros de haste de ao que podia furar malha como se fossepano. Eles puxavam e soltavam, puxavam e soltavam, e as flechas penetravamem escudos e nas fileiras cerradas francesas. Um dos homens foi atingido nacoxa e cambaleou, e os soldados o cercaram e tornaram a cerrar fileiras. Umarqueiro ingls, de p para disparar seu arco, foi atingido no ombro por uma setade besta e sua flecha subiu alucinada.

    Montjoie St. Denis!

    Os soldados berravam seu desafio enquanto a carga chegava ao terrenoplano na base da encosta. As flechas entravam nos escudos com uma foradesesperadora, mas os franceses mantinham a formao cerrada, escudosobrepondo-se a escudo, e os besteiros chegavam mais perto para mirar nosarqueiros ingleses, que eram obrigados a ficar de p em suas trincheiras paradisparar suas armas. Um dardo trespassou um morrio de ferro e perfurou um

  • crnio ingls. O homem caiu para o lado, o sangue escorrendo-lhe pela face.Uma rajada de flechas saiu do alto da torre e os dardos de bestas que respondiambateram nas pedras enquanto os soldados ingleses, vendo que suas flechas notinham detido o inimigo, ficaram em p, espadas desembainhadas, paraenfrentar a carga.

    So Jorge! gritavam eles, e ento os atacantes franceses estavam naprimeira trincheira e golpeavam os ingleses abaixo deles. Alguns francesesdescobriram passagens estreitas que cortavam a trincheira e correram por elaspara atacar os defensores pelas costas. Os arqueiros postados nas duas trincheirasmais recuadas tinham alvos fceis, porm o mesmo acontecia com os besteirosgenoveses que saam de trs de seus paveses para despejar uma chuva de ferrosobre o inimigo. Alguns ingleses, sentindo a matana iminente, estavam deixandosuas trincheiras para correr em direo ao Ham. Edouard de Beaujeu, liderandoos besteiros, viu os fugitivos e gritou para que os genoveses largassem as bestas eparticipassem do ataque. Eles sacaram espadas ou machados e lanaram-se emgrande quantidade sobre o inimigo.

    Matem! gritava Edouard de Beaujeu. Ele montava um corcel e, aespada desembainhada, esporeou o animal para que avanasse. Matem!

    Os ingleses a postos na trincheira avanada estavam condenados. Eleslutavam para proteger-se da massa de soldados franceses, mas as espadas, osmachados e as lanas desciam com fora. Alguns tentaram renderse, mas aauriflama estava erguida e aquilo significava que no deveria haver prisioneiros,de modo que os franceses encharcaram a lama pegajosa do fundo da trincheiracom sangue ingls. Os defensores das trincheiras da retaguarda estavam todoscorrendo agora, mas os poucos cavaleiros franceses, aqueles que eramorgulhosos demais para lutar a p, foraram a passagem por entre seus prpriossoldados e soltaram o grito de guerra enquanto lanavam seus grandes cavaloscontra os fugitivos margem do rio. Garanhes giravam enquanto espadas

  • cortavam. Um arqueiro perdeu a cabea na margem do rio que, de repente,ficou vermelho. Um soldado gritou ao ser pisoteado por um corcel, e depoisgolpeou com uma lana. Um cavaleiro ingls ergueu as mos, oferecendo umamanopla como sinal de rendio e foi derrubado por trs, a espinha perfuradapor uma espada, e depois um outro cavalariano acertou-lhe o rosto com ummachado.

    Matem-nos! berrava o duque de Bourbon, a espada molhada. Matem-nos! Ele viu um grupo de arqueiros fugindo em direo ponte egritou para seus seguidores: Comigo! Comigo! Montjoie St. Denis!

    Os arqueiros, quase trinta, tinham fugido em direo ponte, mas quandochegaram ao grupo de casas de telhado de bambu margem do rio, ouviram otropel e voltaram-se, alarmados. Por um instante, parecia que entrariam empnico de novo, mas um homem os conteve.

    Atirem nos cavalos, rapazes! disse ele, e os arqueiros puxaram ascordas, soltaram, e as flechas com penas brancas penetraram nos corcis. Ogaranho do duque de Bourbon cambaleou para o lado quando duas flechasatravessaram sua armadura de malha e couro, e depois caiu enquanto outros doiscavalos eram derrubados, as patas agitando-se no ar. Os outros cavalarianos, porinstinto, fizeram meia-volta, procurando alvos mais fceis. O escudeiro do duquecedeu o cavalo ao seu amo e depois morreu quando uma segunda rajada inglesachegou chiando da aldeia. O duque, em vez de perder tempo tentando montar nocavalo do escudeiro, afastou-se andando com dificuldade com sua preciosaarmadura, que o tinha protegido as flechas. frente dele, em torno da base datorre de Nieulay, os sobreviventes das trincheiras inglesas haviam formado umaparede de escudos que agora estava cercada por franceses vingativos.

  • Nada de prisioneiros! gritou um cavaleiro francs. Nada deprisioneiros!

    O duque pediu que seus homens o ajudassem a montar.

    Dois dos soldados do duque desmontaram para ajudar seu lder a montar onovo cavalo, e naquele exato momento ouviram o troar de patas. Voltaram-se eviram um grupo de cavaleiros ingleses que atacavam, vindo da aldeia.

    Meu bom Jesus!

    O duque estava metade na sela e metade fora dela, a espada na bainha, ecomeou a cair para trs quando os homens que o ajudavam sacaram suasespadas. Que diabo, de onde tinham surgido aqueles ingleses? Ento, seus outrossoldados, no desespero de proteger o seu senhor, arriaram as viseiras e voltaram-se para enfrentar o desafio. O duque, esparramando-se na turfa, ouviu o estridorde cavaleiros vestindo armaduras.

    Os ingleses eram o grupo de homens que o rei francs tinha visto. Eleshaviam feito uma parada na aldeia para assistir ao massacre nas trincheiras eestavam para atravessar de volta a ponte quando os homens do duque de Bourbonse aproximaram. Chegaram perto demais: um desafio que no podia ser

  • ignorado. Por isso, o senhor ingls liderou seus cavaleiros numa carga quepenetrou no grupo de homens do duque de Bourbon. Os franceses no se haviampreparado para o ataque, e os ingleses investiram com a disposio adequada,joelho tocando joelho, e as longas lanas de freixo, levadas erguidas enquantoatacavam, de repente baixaram para a posio de matar e atravessaram malha ecouro. O lder ingls usava um manto azul atravessado por uma tira brancadiagonal na qual estavam pintadas trs estrelas vermelhas. Lees amarelosocupavam o campo azul que de repente ficou preto com o sangue inimigoquando ele golpeou com a espada para cima, na axila desprotegida de umsoldado francs. O homem tremeu de dor, tentou golpear com a espada, masento um outro ingls meteu uma maa na sua viseira, que amassou com o golpee projetou sangue de umas doze rachaduras. Um cavalo jarretado berrou e caiu.

    Fiquem juntos! gritava para seus homens o ingls com o mantovistoso. Fiquem juntos!

    O cavalo dele empinou, agitando as patas para um francs que foraderrubado da montaria. Aquele homem caiu, elmo e crnio esmagados por umaferradura, e a o cavaleiro viu o duque em p, indefeso, ao lado de um cavalo;reconheceu o valor da armadura do homem, que brilhava, e girou seu cavalo nadireo dele. O duque desviou com o escudo o golpe da espadas brandiu a dele,que vibrou contra a armadura da perna do inimigo, e de repente o cavalariano foiembora.

    Um outro ingls tinha puxado o cavalo do seu lder para longe. Uma massade cavaleiros franceses descia a montanha. O rei os mandara na esperana decapturar o senhor ingls e seus homens, e ainda mais franceses, impossibilitadosde participar do ataque torre porque um nmero demasiado de seuscompanheiros se reunia para ajudar a matar o que restava da guarnio, agoraatacavam a ponte.

  • Voltem! berrou o lder ingls, mas a rua da aldeia e a estreita ponteestavam bloqueadas por fugitivos e ameaadas por franceses. Ele poderia abrircaminho fora, mas isso significaria matar seus prprios arqueiros e perderalguns de seus cavaleiros no pnico catico, de modo que, em vez disso, olhoupara o outro lado da estrada e viu uma trilha que corria junto ao rio. Pensou queela poderia levar praia e, l, talvez ele pudesse dobrar e seguir para o leste evoltar para as linhas inglesas.

    Os cavaleiros ingleses cutucaram forte com as esporas. A trilha era estreita,s dois cavaleiros podiam cavalgar juntos; de um lado estava o rio Ham e, dooutro, um trecho de terreno alagadio, mas a trilha era firme e os inglesesseguiram por ela at alcanar um trecho de terreno mais alto, onde puderam sereunir. Mas no poderiam escapar. O pequeno trecho de terreno mais elevadoera quase uma ilha, que s podia ser atingido pela trilha e estava cercado por umatoleiro de junco e lama. Eles estavam encurralados.

    Cem cavaleiros franceses estavam prontos para segui-los pela trilha, mas osingleses tinham desmontado e feito uma parede com os escudos, e a idia deforar a passagem por aquela barreira de ao convenceu os franceses aregressar torre, onde o inimigo era mais vulnervel. Arqueiros aindadisparavam das defesas, mas os besteiros genoveses reagiam, e agora osfranceses lanaram-se contra os soldados ingleses formados aos ps dafortificao.

    Os franceses atacaram a p. O terreno estava escorregadio por causa dachuva de vero, e os ps revestidos com cota de malha transformavam-no emlama enquanto os soldados na dianteira berravam seu grito de guerra e atiravam-

  • se contra os ingleses que estavam em inferioridade numrica. Aqueles inglesestinham colado seus escudos uns nos outros e empurravam-nos para a frente a fimde enfrentar a carga. Houve um entrechoque de ao e madeira, um grito quandouma lmina enfiou-se por baixo da beira de um escudo e achou carne. Oshomens da segunda fileira inglesa, que era a retaguarda deles, brandiram maase espadas por sobre a cabea de seus companheiros.

    So Jorge! ergueu-se um grito. So Jorge! E os soldadosinclinavam-se frente a fim de tirar os mortos e os moribundos de seus escudos. Matem os bastardos!

    Matem-nos! gritou Sir Geoffrey de Charny em resposta, e osfranceses voltaram, aos tropees devido s cotas de malha e s armaduras,passando pelos feridos e mortos, e dessa vez os escudos ingleses no estavamcom as bordas encostadas umas nas outras, e os franceses encontraram brechas.Espadas batiam em armaduras, atravessavam malhas, batiam em elmos. Unspoucos defensores que restavam tentavam fugir para o outro lado do rio, mas osbesteiros genoveses os perseguiram, e foi uma simples questo de segurar dentrodgua um homem vestindo uma armadura, at que ele morresse afogado, edepois saquear-lhe o corpo. Uns poucos fugitivos ingleses saram cambaleantesna outra margem, indo para onde uma linha de combate inglesa formada porarqueiros agrupava-se para repelir qualquer ataque vindo do outro lado do Ham.

    L na torre, um francs com um machado de batalha golpeava repetidasvezes um ingls, abrindo a ombreira que protegia o ombro direito, cortando amalha que estava por baixo, batendo no homem a ponto de faz-lo acocorar-se, eainda assim os golpes continuaram at que o machado tivesse aberto o peito doinimigo e houvesse um esvaziar de costelas brancas entre a carne moda e aarmadura cortada. Sangue e lama formavam uma pasta sob os ps. Para cadaingls havia trs inimigos, e a porta da torre tinha sido deixada destrancada, paradar aos homens que estavam fora um lugar para o qual pudessem recuar, mas

  • em vez disso foram os franceses que foraram a entrada. Os ltimos defensoresque se encontravam fora da torre foram abatidos e mortos, enquanto que ldentro os atacantes comeavam a subir as escadas lutando.

    Os degraus voltavam-se para a direita medida que subiam. Aquilosignificava que os defensores podiam usar o brao direito sem problemas,enquanto os atacantes ficavam sempre prejudicados pelo grande pilar central daescada, mas um cavaleiro francs com uma lana curta fez a primeira investidae eviscerou um ingls com a lmina antes de outro defensor mat-lo com umgolpe de espada por cima da cabea do moribundo. Ali, as viseiras foramerguidas, porque estava escuro na torre e no era possvel enxergar com os olhosmeio cobertos de ao. com isso, os ingleses golpeavam olhos franceses. Soldadospuxavam os mortos dos degraus, deixando uma trilha de entranhas, e ento maisdois homens atacaram escada acima, escorregando em fezes. Aparavam golpesingleses, enfiavam as espadas em virilhas, e ainda mais franceses entravam pelatorre. Um grito horrvel encheu o poo da escada e depois outro corpoensangentado foi jogado para baixo e para fora do caminho: outros trs degrausficaram livres e os franceses tornaram a avanar subindo.

    Montjoie St. Denis!

    Um ingls, segurando um martelo de ferreiro, desceu a escada e bateu emelmos franceses, matando um homem ao esmagar-lhe o crnio e fazendo osoutros recuarem at que um cavaleiro teve a idia de agarrar uma besta eavanar sorrateiramente escada acima at conseguir uma viso livre deempecilhos. O dardo atravessou a boca do ingls e ergueu a parte posterior docrnio. Os franceses avanaram de novo, com gritos de dio e vitria, pisoteandoo moribundo com os ps sujos de dejetos e levando suas espadas ao alto da torre.L, doze homens tentaram empurrlos de volta escada abaixo, mas ainda haviamais franceses subindo. Eles foraram os atacantes que iam frente contra asespadas dos defensores e os homens que vinham em seguida passaram

  • desajeitados por cima dos moribundos e dos mortos para aniquilar o que restavada guarnio. Todos os homens foram abatidos. Um arqueiro viveu o suficientepara ter os dedos decepados, depois os olhos arrancados, e ainda estava gritandoquando foi atirado da torre sobre as espadas que aguardavam l embaixo.

    Os franceses ovacionaram. A torre era uma capela morturia, mas oestandarte da Frana iria ser hasteado em suas defesas. As trincheiras tinham-setornado sepulturas para os ingleses. Homens vitoriosos comearam a tirar asroupas dos mortos procura de moedas, quando soou uma trombeta.

    Ainda havia alguns ingleses no lado francs do rio: cavaleiros encurraladosnum pedao de terreno mais firme.

    De modo que a matana ainda no acabara.

  • CALAIS, 1347

    O ST. JAMES ANCOROU ao largo da praia ao sul de Calais e transferiu ospassageiros para terra em barcos a remo. Trs dos passageiros, todos em cotasde malha, tinham tanta bagagem que pagaram a dois tripulantes do St. Jamespara lev-la para as ruas do acampamento ingls, onde eles procuravam o condede Northampton. Algumas casas tinham dois pavimentos, e sapateiros, armeiros,ferreiros, fruteiros, padeiros e aougueiros tinham, todos, pendurado cartazes nosandares superiores. Havia bordis e igrejas, tendas de cartomantes e tabernasconstrudas entre as tendas e as casas. Crianas brincavam nas ruas. Algumastinham pequenos arcos e atiravam flechas sem ponta contra cachorros irritados.As moradias dos nobres estavam com seus estandartes pendurados no lado defora e guardas com cotas de malha postados junto s portas. Um cemitrioespalhava-se pntanos adentro, as covas midas cheias de homens, mulheres ecrianas que haviam sucumbido febre que assolava os pntanos de Calais.

    Os trs homens acharam a moradia do conde, que era um grande prdio demadeira perto do pavilho onde tremulava a bandeira real. Dois deles, o maisjovem e o mais velho, ficaram com a bagagem enquanto o terceiro, o mais alto,dirigiu-se a p at Nieulay. Tinham dito a ele que o conde liderara algunscavaleiros numa incurso em direo ao exrcito francs.

    Milhares de bastardos informara o intendente do conde

  • sem fazer nada l em cima, s de dedo no nariz, de modo que suaexcelncia quer desafiar alguns deles. Ele est ficando entediado. Olhou paraa grande arca de madeira que os dois homens vigiavam. E o que que tem adentro?

    Meleca dissera o homem alto. Depois levou ao ombro um longo arcopreto, apanhou uma sacola de flechas e saiu.

    O nome dele era Thomas. s vezes, Thomas de Hookton. Outras vezes eraThomas, o Bastardo, e, se quisesse ser muito formal, podia chamar-se ThomasVexille, embora raramente fizesse isso. Os Vexille eram uma famlia nobregasc e Thomas de Hookton era filho ilegtimo de um Vexille fugitivo, que no odeixara nem nobre nem Vexille. E, sem dvida alguma, nem gasco. Ele era umarqueiro ingls.

    Thomas atraa olhares enquanto caminhava pelo acampamento. Ele eraalto. Cabelos pretos apareciam sob a borda do elmo de ferro. Era jovem, mas orosto fora curtido pela guerra. Tinha faces cavadas, vigilantes olhos pretos e umnariz comprido que fora quebrado numa briga e posto no lugar de forma errada.A cota de malha perdera o brilho devido a viagens, e debaixo dela usava umajaqueta de couro, cales pretos e botas de montaria de cano longo, sem esporas.Uma espada embainhada em couro preto pendia de seu flanco direito, umembornal estava pendurado nas costas e uma sacola branca de flechas no quadrildireito. Ele mancava muito de leve, sugerindo que devia ter sido ferido emcombate, embora na verdade a contuso tivesse sido provocada por um religioso,em nome de Deus. As cicatrizes daquela tortura estavam escondidas agora,exceto quanto ao dano s mos, que tinham ficado tortas e encaroadas, mas eleainda podia disparar um arco. Ele tinha 23 anos e era um matador.

  • Ele passou pelos acampamentos dos arqueiros. A maioria tinha trofuspendurados. Ele viu uma couraa de armadura francesa de ao macio, quehavia sido perfurada por uma flecha, pendurada bem alto para alardear o que osarqueiros faziam com cavaleiros. Um outro grupo de tendas exibia uns vinterabos de cavalo pendurados num poste. Uma cota de malha enferrujada tinhasido enchida de palha, pendurada numa rvore nova e furada por flechas. Paraalm das tendas ficava uma rea pantanosa que fedia a esgoto. Thomas seguiuem frente, observando a disposio de tropas francesas nos planaltos do sul. Eleseram bem numerosos, pensou, muito mais do que os que apareceram para sermassacrados entre Wadicourt e Crcy. Para cada francs morto, pensou,surgiam mais dois. Ele agora via a ponte sua frente e a pequena aldeia depoisdela, e atrs dele chegavam homens vindos do acampamento para formar umalinha de combate e defender a ponte, porque os franceses estavam atacando opequeno posto avanado ingls na margem mais distante. Thomas os viadescendo em grande nmero pela encosta, e tambm viu um pequeno grupo decavaleiros que presumiu serem o conde e seus homens. Atrs dele, o barulhoabafado pela distncia, um canho ingls disparou um projtil de pedra contra oscastigados muros de Calais. O som rolou por cima dos pntanos e desapareceu,para ser substitudo pelo entrechocar de armas vindo das trincheiras inglesas.

    Thomas no se apressou. Aquela briga no era dele. Mesmo assim, tirou oarco das costas e encordoou-o, e percebeu como aquele ato se tornara fcil. Oarco era velho e estava ficando cansado. A negra vara de teixo, antigamentereta, agora se achava ligeiramente curva. Tinha acompanhado a corda, comodiziam os arqueiros, e ele viu que era preciso fazer uma nova arma. Masreconheceu que o velho arco, que ele pintara de preto e no qual prendera umaplaca de prata mostrando um estranho animal segurando um clice, ainda tinhanele a alma de alguns franceses.

    Ele no viu os cavaleiros ingleses investindo contra o flanco do ataquefrancs, porque os casebres de Nieulay escondiam a breve luta. Viu, sim, a ponteencher-se de fugitivos que atrapalhavam uns aos outros na pressa de escapar da

  • fria francesa, e por cima da cabea deles ele viu os cavaleiros seguirem emdireo ao mar, na margem mais distante do rio. Ele foi atrs deles pelo ladoingls do rio, saindo da estrada aterrada para saltar de tufo para tufo, s vezesespirrando gua ao passar por poas, ou patinhando pela lama que tentavaroubar-lhe as botas. E ento viu-se beira do rio e viu a mar cor de lamaavanar em remoinho terra adentro, enquanto o mar subia de nvel. O ventofedia a sal e decomposio.

    E ento, ele viu o conde. O conde de Northampton era o senhor de Thomas,o homem a quem ele servia, apesar de a rdea do conde ser frouxa e sua bolsa,generosa. O conde observava os franceses vitoriosos, sabendo que iriam atac-lo,e um de seus soldados tinha desmontado e tentava encontrar uma trilha firmebastante para permitir que os cavalos com armaduras chegassem ao rio. Outrosdoze de seus soldados estavam ajoelhados ou em p fechando a trilha deaproximao dos franceses, prontos para enfrentar uma carga com escudos eespadas. E l na aldeia, onde a matana da guarnio inglesa terminara, osfranceses voltavam-se, sedentos, para os homens encurralados.

    Thomas entrou no rio. Manteve o arco elevado, porque uma corda molhadano esticava, e vadeou contra o puxar da mar. A gua chegava-lhe na cintura, edepois ele saiu com dificuldade para a margem lamacenta e correu para onde ossoldados esperavam para receber os primeiros atacantes franceses. Thomasajoelhou-se bem junto deles, no pntano; espalhou as flechas na lama e pegouuma.

    Uns vinte franceses estavam se aproximando. Doze estavam montados, e oscavaleiros mantinham-se na trilha, mas em seus flancos soldados desmontadospatinhavam pelos pntanos e Thomas no se preocupou com eles, porque iriamdemorar a chegar em terra firme, e em vez disso comeou a disparar contra oscavaleiros montados.

  • Ele atirava sem pensar. Sem mirar. Aquilo era a sua vida, sua percia e seuorgulho. Pegar um arco, mais alto do que um homem, feito de teixo, e us-lopara disparar flechas de freixo, com penas de ganso na extremidade e armadascom ponta de estilete. Como o grande arco era puxado at a orelha, de nadaadiantava tentar mirar com o olho. Eram anos de prtica que permitiam saberaonde iriam suas flechas, e Thomas as disparava em ritmo alucinado, umaflecha a cada trs ou quatro segundos, e as penas brancas cortavam o ar emdireo ao outro lado do pntano, e as compridas pontas de ao atravessavamcotas de malha e couro e penetravam em barrigas, peitos e coxas franceses. Elasatingiam o alvo com o som de um machado de aougueiro caindo sobre carne, efaziam com que os cavalarianos parassem. Os dois que lideravam o grupoestavam morrendo, um terceiro estava com uma flecha no alto da coxa, e oshomens que vinham atrs no podiam passar pelos feridos que estavam na frenteporque a trilha era estreita demais, e por isso Thomas comeou a atirar contra ossoldados desmontados. A fora do impacto de uma flecha era suficiente parajogar um homem para trs. Se um francs erguia um escudo para proteger aparte superior do corpo, Thomas mandava uma flecha nas pernas, e se o arcodele estava velho, ainda era perverso. Thomas estivera navegando mais de umasemana e sentia a dor nos msculos das costas enquanto puxava a corda. Mesmopuxar o arco enfraquecido era o equivalente a levantar do cho um homemadulto, e toda aquela potncia era transferida para a flecha. Um cavaleiro tentouavanar pela lama, mas o seu pesado corcel patinhou no terreno encharcado;Thomas escolheu uma flecha para penetrar carne, com uma ponta grossa, quefurasse as entranhas e os vasos sangneos, e disparou-a a baixa altura, viu ocavalo estremecer, apanhou uma furadora do cho e disparou-a contra umsoldado que estava com a viseira levantada. Thomas no olhou para ver sequalquer uma das flechas tinha atingido o alvo, disparou e apanhou outro projtil,depois tornou a disparar, e a corda do arco raspou o braal de osso que ele usavano pulso esquerdo. Ele nunca se preocupara em proteger o pulso antes, gostandodo calor deixado pela corda, mas o dominicano torturara o seu antebraoesquerdo e o deixara encrespado com cicatrizes, de modo que agora a bainha deosso protegia a pele.

    O dominicano tinha morrido.

  • Faltavam seis flechas. Os franceses estavam recuando, mas no vencidos.Gritavam por besteiros e por mais soldados e Thomas, respondendo, ps na bocaos dois dedos que usava para puxar a corda e soltou um assobio estridente. Duasnotas, alta e baixa, repetidas trs vezes, depois uma pausa e ele tornou a assobiaras duas notas e viu arqueiros que corriam para o rio. Alguns eram os homens quetinham se retirado de Nieulay e outros vinham da linha de combate, porquereconheceram o sinal de que um colega arqueiro precisava de ajuda.

    Thomas apanhou as seis flechas e voltou-se para ver que os primeiros doscavaleiros do conde tinham encontrado uma passagem para o rio e estavamconduzindo seus animais pesadamente protegidos por armaduras pela mar quese agitava. Minutos iriam passar antes que todos eles chegassem ao outro lado,mas arqueiros seguiam patinhando em direo margem mais distante, agora, eos que estavam mais perto de Nieulay j atiravam contra um grupo de besteiroslevado s pressas para a luta inacabada. Mais cavalarianos desciam das colinasde Sangatte, com raiva pelo fato de os cavaleiros ingleses estarem fugindo. Doisdeles galoparam para dentro do pntano, onde os cavalos comearam a entrarem pnico no terreno traioeiro. Thomas encaixou uma das ltimas flechas nacorda, e ento concluiu que o pntano estava derrotando os dois homens e umaflecha seria suprflua.

    Uma voz veio de um ponto logo atrs dele.

    o Thomas, no ?

  • Excelncia. Thomas tirou o elmo, rpido, e voltou-se, ainda dejoelhos.

    Voc bom com esse arco, no ? O conde falava com ironia.

    Prtica, excelncia.

    Uma mente maldosa ajuda disse o conde, fazendo um gesto para queThomas se levantasse.

    O conde era um homem de baixa estatura, atarracado, com um rostocastigado pelo tempo, que os arqueiros dele gostavam de dizer que parecia otraseiro de um touro, mas tambm reconheciam que ele era um lutador, umhomem bom e to resistente quanto qualquer um de seus homens. Ele era amigodo rei, mas tambm amigo de quem quer que usasse o seu emblema. No erahomem de mandar outros para o combate a menos que os chefiasse, e eledesmontara e retirara o elmo para que a sua retaguarda o reconhecesse e ficassesabendo que ele partilhava do perigo deles.

    Pensei que voc estivesse na Inglaterra disse a Thomas.

  • Eu estava respondeu ele, agora falando francs, porque sabia que oconde sentia-se mais vontade naquela lngua , e depois estive na Bretanha.

    E agora est me salvando. O conde sorriu, revelando os claros ondeperdera os dentes. Acho que voc vai querer uma garrafa de cerveja porcausa disso, no?

    Tudo isso, excelncia?

    O conde soltou uma gargalhada.

    Ns bancamos os bobos, no? Ele observava os franceses que, agoraque uma centena ou mais de arqueiros ingleses estavam dispostos em linha namargem do rio, pensavam duas vezes antes de lanar um novo ataque. Pensamos que poderamos tentar quarenta deles para uma batalha de honra pertoda aldeia, e ento metade do exrcito deles desceu da montanha. Voc me traznotcias de Will Skeat?

    Ele morreu, excelncia. Morreu no combate em La Roche-Derrien. Oconde vacilou e depois fez o sinal-da-cruz.

  • Pobre Will. Deus sabe o quanto eu gostava dele. Nunca houve umsoldado melhor. Olhou para Thomas. E a outra coisa? Voc o trouxe paramim?

    Ele se referia ao Graal.

    Eu lhe trago ouro, senhor disse Thomas , mas no ele. O conde deuuma batidinha no brao de Thomas.

    Ns vamos conversar, mas no aqui. Ele olhou para os homens eergueu a voz: Voltem, agora! Voltem!

    A retaguarda desmontada, os cavalos j levados para um lugar seguroatravs da mar que subia, seguiu depressa para o rio e o atravessou. Thomas foiatrs e o conde, a espada desembainhada, foi o ltimo homem a vadear a guaque ficava mais profunda. Os franceses, privados da presa valiosa, zombaram dasua retirada.

    E o combate daquele dia acabara.

  • O EXRCITO FRANCS no permaneceu ali. Eles tinham matado aguarnio de Nieulay, mas at mesmo os mais sanguinrios entre eles sabiamque no podiam fazer mais do que aquilo. Havia ingleses demais. Milhares dearqueiros estavam rezando para que os franceses atravessassem o rio e dessemcombate a eles, de modo que em vez disso os homens de Filipe retiraram-semarchando, deixando as trincheiras de Nieulay cheias com os mortos e a cristade Sangatte, varrida pelo vento, vazia, e no dia seguinte a cidade de Calais serendeu. O primeiro instinto do rei Eduardo foi matar todos os habitantes, coloc-los em fila ao lado do fosso e cortar as cabeas de seus corpos macilentos, masseus grandes senhores protestaram que os franceses iriam fazer o mesmo comqualquer cidade ocupada pelos ingleses que eles capturassem na Gasconha ouem Flandres, e por isso o rei, com relutncia, reduziu a exigncia a apenas seisvidas.

    Seis homens, faces encovadas e vestindo os mantos de penitentes, comlaos de forca em volta do pescoo, foram levados da cidade. Eram todoscidados importantes, mercadores ou cavaleiros, homens de posses e posio, otipo de gente que havia desafiado Eduardo da Inglaterra durante onze meses. Eleslevavam as chaves das portas da cidade sobre almofadas que depuseram diantedo rei, depois prostraram-se em frente plataforma de madeira onde estavamsentados o rei e a rainha da Inglaterra e os grandes magnatas do reino. Os seishomens pediram por suas vidas, mas Eduardo estava zangado. Eles o tinhamdesafiado, e por isso o carrasco foi chamado, porm uma vez mais os grandessenhores alegaram que ele estava provocando represlias, e a prpria rainhaajoelhou-se diante do marido e pediu que os seis homens fossem poupados.Eduardo resmungou, fez uma pausa enquanto os seis mantinham-se imveis sobo tablado, e ento permitiu que continuassem vivos.

    Foram levados alimentos para os cidados que estavam famintos, masnenhum outro sinal de misericrdia foi mostrado. Eles foram expulsos, sempermisso para levar coisa alguma, exceto as roupas que vestiam, e at elasforam revistadas para ter-se a certeza de que nenhuma moeda ou jia fosse

  • contrabandeada para fora das linhas inglesas. Uma cidade vazia, com casas paraoito mil pessoas, com armazns e lojas e tabernas e cais, e uma cidadela efossos, pertencia Inglaterra.

    Uma porta para a Frana disse o conde de Northampton,entusiasmado.

    Ele ficou com uma casa que pertencera a um dos seis, um homem queagora caminhava pela Picardia com a famlia como um pedinte. Era umaluxuosa casa de pedra, abaixo da cidadela, com vista para o cais, que, agora,estava lotado de navios ingleses.

    Vamos encher a cidade com gente boa inglesa disse o conde. Quermorar aqui, Thomas?

    No, excelncia disse Thomas.

    Nem eu admitiu o conde. Ela no passa de um chiqueiro numpntano. Mesmo assim, nossa. Pois ento, meu jovem Thomas, o que quevoc quer?

  • Era de manh, trs dias depois da rendio da cidade, e a riquezaconfiscada de Calais estava sendo distribuda aos vencedores. O conde ficaraainda mais rico do que esperava, porque o grande ba que Thomas trouxera daBretanha estava cheio de moedas de ouro e prata capturadas no acampamentode Charles de Blois depois da batalha de La Roche-Derrien. Um tero daquilopertencia ao senhor de Thomas e os homens do conde tinham contado asmoedas, separando um tero da cota do conde para o rei.

    Thomas havia contado sua histria. Disse que, seguindo instrues do conde,ele tinha ido Inglaterra para investigar o passado de seu falecido pai, procurade uma pista para o Graal. No encontrara coisa alguma, exceto um livro no qualseu pai, que era padre, escrevera sobre o Graal, mas o padre Ralph tinha umainteligncia que vagava e sonhos que pareciam verdadeiros, e Thomas nadaentendera dos escritos, que foram tirados dele pelo dominicano que o torturou.Mas o livro tinha sido copiado antes de o dominicano roub-lo e agora, no novoaposento do conde iluminado pela luz do sol, um jovem padre ingls tentavaentender a cpia.

    O que quero disse Thomas ao conde chefiar arqueiros.

    S Deus sabe se haver algum lugar para onde chefi-los respondeu oconde, pesaroso. O Eduardo fala em atacar Paris, mas isso no vai acontecer.Vai haver uma trgua, Thomas. Iremos jurar amizade eterna, e depois voltarpara casa e afiar nossas espadas.

    Ouviu-se um estalar de pergaminho quando o padre virou outra pgina. Opadre Ralph escrevera em latim, grego, hebraico e francs, e era evidente que opadre entendia todas. De vez em quando ele fazia uma anotao num pedao de

  • pergaminho medida que ia lendo. Barris de cerveja estavam sendodescarregados no cais, com o ribombar dos grandes toneis parecendo trovoadas.A bandeira do rei da Inglaterra, leopardos e flor-de-lis, tremulava na cidadelacapturada acima da francesa, que estava hasteada de cabea para baixo, emsinal de escrnio. Dois homens, companheiros de Thomas, estavam entrada doaposento, espera de que o conde os inclusse.

    S Deus sabe que tipo de emprego haver para os arqueiros prosseguiu o conde , a menos que seja proteger muros de fortalezas. isso quevoc quer?

    Eu s sou bom nisso, excelncia. Atirar com um arco. Thomas falavaem francs normando, a lngua da aristocracia da Inglaterra e a lngua que seupai lhe ensinara. E eu tenho dinheiro, excelncia.

    Ele queria dizer que agora podia recrutar arqueiros, equip-los com cavalose lev-los a servio do conde, que nada custaria ao conde, mas este poderia ficarcom a tera parte de tudo que eles saqueassem.

    Foi assim que Will Skeat, de origem plebia, fez o seu nome. O condegostava de homens assim, lucrava com eles, e fez um gesto afirmativo com acabea.

    Mas chefi-los para onde? perguntou ele. Odeio trguas.

  • De sua mesa ao lado da janela, o jovem padre interveio.

    O rei preferiria que o Graal fosse encontrado.

    O nome dele John Buckingham disse o conde, referindo-se ao padre, e camareiro da receita do Tesouro, o que pode no lhe dizer muita coisa,jovem Thomas, mas significa que ele serve ao rei e provvel que venha a serarcebispo de Canterbury antes de completar trinta anos de idade.

    Dificilmente disse o padre.

    E claro que o rei quer que o Graal seja encontrado falou o conde, e ns todos queremos. Eu quero ver essa coisa na Abadia de Westminster!Quero que o rei da maldita Frana rasteje na porcaria dos joelhos para rezar aele. Quero que peregrinos de toda a cristandade nos tragam ouro. Pelo amor deDeus, Thomas, essa porcaria de coisa existe? Seu pai o tinha?

    No sei, excelncia respondeu Thomas.

  • Voc no serve para grande coisa resmungou o conde. JohnBuckingham olhou para suas anotaes.

    Voc tem um primo, Guy Vexille?

    Tenho disse Thomas.

    E ele est procura do Graal?

    Ele faz isso procurando por mim disse Thomas. E no sei onde oGraal est.

    Mas ele estava procurando pelo Graal antes de saber que voc existia assinalou o jovem padre , o que me parece que ele tem alguma informaoque nos foi negada. Eu aconselharia, excelncia, procurarmos esse Guy Vexille.

    Seramos dois cachorros correndo atrs um do outro interveioThomas com amargor.

  • O conde fez um sinal para que Thomas ficasse calado. O padre voltou aolhar para suas anotaes.

    E, por mais opacos que estes escritos sejam disse ele, em tom decensura h um fio de luz. Eles parecem confirmar que o Graal esteve emAstarac. Que estava escondido l.

    E foi roubado de novo! protestou Thomas.

    Quando se perde algo de valor perguntou Buckingham, paciente por onde se comea a busca? No lugar em que o objeto foi visto pela ltima vez.Onde fica Astarac?

    Na Gasconha respondeu Thomas , no feudo de Berat.

    Ah! exclamou o conde, mas depois calou-se.

  • E voc foi a Astarac? perguntou Buckingham. Ele podia ser jovem,mas tinha uma autoridade que provinha de mais alguma coisa do que o cargojunto ao tesoureiro do rei.

    No.

    Pois ento, sugiro que v disse o padre e veja o que pode apurar. Ese fizer bastante alarde durante a busca, bem possvel que seu primo v suaprocura, e voc possa encontr-lo e descobrir o que ele sabe.

    O padre sorriu, como que para indicar que tinha resolvido o problema.

    Fez-se silncio, exceto quanto a um dos ces de caa do conde coando-sea um canto do aposento, e no cais um marinheiro soltou uma torrente depalavres que poderiam ter feito corar as faces do diabo.

    No posso capturar o Guy sozinho protestou Thomas , e Berat nojurou vassalagem ao nosso rei.

    Oficialmente observou Buckingham , Berat jura vassalagem aoconde de Toulouse, que hoje significa ao rei da Frana. O conde de Berat , sem

  • Dvida alguma, um inimigo.

    Nenhuma trgua foi assinada at agora disse o conde, hesitante.

    E eu desconfio que vai levar dias para ser assinada concordouBuckingham

    O conde olhou para Thomas.

    E voc quer arqueiros?

    Eu gostaria de ficar com os homens de Will Skeat, excelncia.

    E no h dvida de que eles iro servi-lo disse o conde , mas vocno pode comandar soldados, Thomas.

    Ele queria dizer que Thomas, sem bero nobre e ainda jovem, poderia ter

  • autoridade para comandar arqueiros, mas soldados, que se consideravam decategoria mais elevada, ficariam ressentidos com a sua liderana. Will Skeat, quenascera em classe mais baixa do que a de Thomas, conseguira, mas Will eramuito mais velho e muito mais experiente.

    Eu posso comandar soldados anunciou um dos dois homens queestavam junto parede.

    Thomas apresentou os dois. O que falara era um homem mais velho, comcicatrizes, sem um olho, resistente como malha. Seu nome era Sir GuillaumedEvecque, lorde de Evecque, e ele j tivera um feudo na Norinandia at que seurei se voltara contra ele, e agora era um guerreiro sem terras e amigo deThomas. O outro, mais jovem, tambm era amigo. Era Robbie Douglas, umescocs que tinha sido preso em Durham no ano anterior.

    Pelos ossos de Cristo disse o conde quando soube da situao deRobbie , mas a esta altura voc j deve ter conseguido o seu resgate, no?

    Consegui, excelncia admitiu Robbie , e depois perdi.

    Perdeu!

  • Robbie baixou os olhos para o cho, de modo que Thomas explicou numapalavra curta.

    Dados.

    O conde pareceu enojado, e depois voltou-se outra vez para Sir Guillaume.

    Eu ouvi falar no senhor disse ele, e aquilo era um cumprimento esei que pode liderar soldados, mas a quem o senhor serve?

    A homem nenhum, excelncia.

    Neste caso, no pode comandar soldados disse o conde, mordaz, eficou esperando.

    Sir Guillaume hesitou. Era um homem orgulhoso, tinha 35 anos de idade,experincia em guerras, e uma reputao que comeara a ser feita ao lutarcontra os ingleses. Mas agora no possua terra alguma, no tinha um senhor, ecomo tal era um pouco mais do que um andarilho, e por isso, depois de uma

  • pausa, caminhou at o conde e ajoelhou-se diante dele e ergueu as mos comose estivesse rezando. O conde envolveu as mos de Guillaume com as suas.

    Promete servir a mim perguntou ele , ser meu vassalo, no servir amais ningum?

    Prometo disse Sir Guillaume, enftico, e o conde ergueu-o e os doishomens beijaram-se nos lbios.

    Eu me sinto honrado disse o conde, dando uma batida no ombro de SirGuillaume, depois tornou a voltar-se para Thomas. Ento, voc pode levantaruma fora adequada. Vai precisar de quanto? Cinqenta homens? A metade dearqueiros.

    Cinqenta homens no feudo distante? disse Thomas. Eles no vodurar um ms, excelncia.

    Mas vo, sim disse o conde e explicou a sua reao anterior, desurpresa, diante da notcia de que Astarac ficava no condado de Berat. Hmuitos anos, jovem Thomas, antes de voc ser desmamado, ns tnhamos umapropriedade na Gasconha. Ns a perdemos, mas nunca a entregamosoficialmente, de modo que h, em Berat, trs ou quatro praas fortes sobre asquais eu tenho um direito legtimo.

  • John Buckingham, lendo as anotaes do padre Ralph outra vez, ergueu umasobrancelha para indicar que o direito, na melhor das hipteses, era tnue, masnada disse.

    Vo, e tomem um daqueles castelos disse o conde , faam ataquesrelmpagos, juntem dinheiro, e homens iro juntar-se a vocs.

    E homens viro contra ns observou Thomas, com tranqilidade.

    E Guy Vexille ser um deles disse o conde , de modo que esta asua oportunidade. Aceite-a, Thomas, e saia daqui antes que se faa a trgua.

    Thomas hesitou por uns instantes. O que o conde sugeria parecia quase umaloucura. Ele iria levar uma fora para o extremo sul do territrio francs,capturar uma fortaleza, defend-la, ter a esperana de capturar seu primo, acharAstarac, explor-la, perseguir o Graal. S um louco aceitaria uma missodaquelas, mas a alternativa era apodrecer com todos os outros arqueirosdesempregados.

    Vou fazer isso, excelncia disse ele.

  • timo. Retirem-se, todos vocs! O conde levou Thomas at a porta,mas assim que Robbie e Sir Guillaume estavam na escada, puxou Thomas devolta para uma conversa em particular. No leve o escocs com voc disseo conde.

    No, excelncia? Ele meu amigo.

    Ele um maldito de um escocs e eu no confio neles. So todos unsmalditos ladres e mentirosos. Pior do que os porcarias dos franceses. Quem omantm prisioneiro?

    Lorde Outhwaite.

    E lorde Outhwaite deixou que ele viajasse com voc? Estou surpreso.Pouco importa, mande o seu amigo escocs de volta para Outhwaite e deixe-oapodrecer at que a famlia levante o dinheiro para o resgate. Mas no quero umporcaria de escocs tirando o Graal da Inglaterra. Est entendendo?

    Estou, excelncia.

  • timo disse o conde e deu um tapa nas costas de Thomas. Agorav, e tenha sucesso.

    V e morra, era o mais provvel. V numa misso infrutfera, porqueThomas no acreditava que o Graal existisse. Ele queria que existisse, queriaacreditar nas palavras do pai, mas seu pai s vezes era um louco, outras vezesmalicioso, e Thomas tinha uma ambio, que era ser um lder to bom quantoWill Skeat. Ser arqueiro. No entanto, a misso infrutfera lhe dava umaoportunidade de reunir homens, chefi-los e perseguir o seu sonho. Por isso, iriaatrs do Graal e veria o que acontecia.

    Ele se dirigiu ao acampamento ingls e bateu num tambor. A paz estavachegando, mas Thomas de Hookton estava reunindo homens e indo guerra.

  • PRIMEIRA PARTE: O BRINQ UEDO DO DIABO

    O CONDE DE BERAT era velho, piedoso e culto. Vivera 65 anos e gostavade jactar-se de que no sara de seu feudo nos ltimos quarenta. Sua fortaleza erao grande castelo de Berat. Ficava num morro de calcrio acima da cidade deBerat, que era quase cercada pelo rio Berat, que tornava o condado de Berat tofrtil assim. Havia azeitonas, uvas, peras, ameixas, cevada e mulheres. O condegostava de todas elas. Casara-se cinco vezes, cada nova mulher mais moa doque a anterior, mas nenhuma lhe proporcionara um filho. Ele nem mesmoimplantara um bastardo numa ordenhadora, apesar de, como Deus sabia, no serpor falta de tentativa.

    A ausncia de filhos convencera o conde de que Deus o amaldioara, demodo que em sua idade avanada ele se cercou de padres. A cidade tinha umacatedral e dezoito igrejas, com um bispo, cnegos e padres para ench-las, ehavia uma casa de frades dominicanos ao lado da porta leste. O conde abenooua cidade com duas novas igrejas e construiu um convento no alto do monte oestedo outro lado do rio e depois dos vinhedos. Ele empregava um capelo e, por umalto preo, comprou um punhado da palha que havia forrado a manjedoura naqual o menino Jesus fora colocado ao nascer. O conde guardou a palha numacaixa de cristal, ouro e Pedras preciosas, colocou o relicrio no altar da capela docastelo e rezava a ela todos os dias, mas nem mesmo aquele talism sagradoajudou. Sua quinta esposa tinha dezessete anos e era rechonchuda e saudvel e,como as outras, estril.

    No incio, o conde desconfiara de que tinha sido tapeado na compra da

  • palha santa, mas seu capelo lhe garantiu que a relquia viera do palcio papalem Avignon e mostrou uma carta assinada pelo Santo Padre em pessoa,garantindo que a palha era realmente do leito do menino Jesus. Ento, o condemandou que sua nova esposa fosse examinada por quatro eminentes mdicos eaquelas sumidades declararam que a urina dela era clara, suas partes estavamperfeitas e seus apetites eram saudveis, e assim o conde empregou seus prpriosconhecimentos na busca de um herdeiro. Hipcrates escrevera sobre o efeito dequadros sobre a concepo, e por isso o conde mandou que um pintor decorasseas paredes do quarto de sua esposa com retratos da Virgem e do menino; elecomia feijes vermelhos e mantinha seus aposentos aquecidos. Nada funcionava.A culpa no era do conde, disso ele sabia. Ele tinha plantado sementes de cevadaem dois vasos e regado uma com a urina da mulher e a outra com a urina dele, eos dois vasos tinham produzido brotos e isso, disseram os mdicos, provava que oconde e a condessa eram frteis.

    O que significava, conclura o conde, que ele estava amaldioado. Por isso,voltou-se mais avidamente para a religio, porque sabia que no lhe restavamuito mais tempo de vida. Aristteles escreveu que os setenta anos de idadeeram o limite da capacidade de um homem, e sendo assim, o conde dispunha deapenas cinco anos para fazer o seu milagre. Ento, uma certa manh de outono,embora na ocasio ele no percebesse, suas preces foram atendidas.

    Religiosos vieram de Paris. Trs padres e um monge chegaram a Berat,levando uma carta de Louis Bessires, cardeal e arcebispo de Livorno, legadopapal junto corte da Frana, e a carta era em termos humildes, respeitosos eameaadores. Ela solicitava que o irmo Jerome, um jovem monge deimpressionante saber, tivesse permisso para examinar os registros de Berat.

    do nosso conhecimento, escreveu o cardeal num latim elegante, que osenhor dedica um grande amor a todos os manuscritos, tanto pagos comocristos, e por isso rogamos a Vossa Excelncia, por amor a Cristo e para

  • promover o Seu reino, que permita que o nosso irmo Jerome examine seusregistros de propriedade.

    O que era timo, tanto quanto se podia entender, porque o conde de Beratpossua realmente uma biblioteca e uma coleo de manuscritos que talvez fossea mais ampla em toda a Gasconha, se no em todo o sul da cristandade, mas oque a carta no deixava claro era o motivo pelo qual o cardeal arcebispo estavato interessado nos registros de propriedade do castelo. Quanto referncia aobras pagas, aquilo era uma ameaa. Recuse este pedido, estava dizendo ocardeal-arcebispo, e soltarei os santos ces dos dominicanos e os inquisidores emseu condado e eles iro descobrir que as obras pagas estimulam a heresia. A,teriam incio os julgamentos e as fogueiras, nenhum dos quais iria afetar o condediretamente, mas seria necessrio comprar indulgncias, para que sua alma nofosse condenada. A Igreja tinha um apetite de gluto por dinheiro, e todo mundosabia que o conde de Berat era rico. Por isso, ele no queria ofender o cardeal-arcebispo, mas queria saber por que Sua Eminncia ficara, de repente,interessado em Berat.

    O que era o motivo pelo qual o conde convocara o padre Roubert, oprincipal dominicano na cidade de Berat, ao grande salo do castelo, que hmuito tempo deixara de ser um lugar de festas mas, em vez disso, estava cercadode estantes nas quais velhos documentos mofavam e preciosos livros manuscritosestavam envoltos em couro oleado.

    O padre Roubert tinha apenas 32 anos de idade. Era filho de um curtidor dacidade e subira na hierarquia da Igreja graas proteo do conde. Era muitoalto, muito rigoroso, com cabelos pretos cortados to curtos, que faziam o condelembrar-se das escovas de plos duros que os armeiros usavam para polir ascotas de malha. Naquela bela manh, o padre Roubert tambm estava irritado.

  • Eu tenho compromisso em Castillon dArbizon amanh disse ele , evou precisar sair daqui dentro de uma hora, se quiser chegar cidade luz dodia.

    O conde ignorou a rudeza do tom do padre Roubert. O dominicano gostavade tratar o conde como um igual, petulncia que o conde tolerava porque achavaaquilo divertido.

    O senhor tem compromisso em Castillon dArbizon? perguntou ele, eento se lembrou. Mas claro! O senhor vai queimar a beguina, no vai?

    Amanh de manh.

    Ela vai ser queimada com ou sem o senhor, padre disse o conde eo diabo ir pegar a alma dela, quer o senhor esteja l para regozijar-se, quer no. Ele olhou para o padre. Ou ser que porque o senhor gosta de vermulheres sendo queimadas?

    Trata-se do meu dever disse o padre Roubert, resoluto.

  • Ah, sim, o seu dever. Claro. Seu dever.

    O conde olhou de cenho franzido para o tabuleiro de xadrez em cima damesa, tentando decidir se devia avanar um peo ou recuar um bispo. Ele eraum homem baixo, gordo, com rosto redondo e barba aparada. Costumava usarum gorro de l na cabea calva e, mesmo no vero, raramente estava sem ummanto forrado de pele. Os dedos estavam eternamente manchados de tinta, demodo que ele parecia mais um escrevente trapalho do que um governante deum grande domnio.

    Mas voc tem um dever para comigo, Roubert ele censurou odominicano , e o dever este aqui. Ele entregou ao dominicano a carta docardeal-arcebispo e ficou olhando enquanto o frade lia o longo documento. Ele escreve muito bem em latim, no? disse o conde.

    Ele emprega um secretrio que bem culto disse o padre Roubertcom rispidez, e depois examinou o grande selo vermelho para certificar-se deque o documento era autntico. Dizem o padre agora usava um tom derespeito que o cardeal Bessires considerado o possvel sucessor do SantoPadre.

    Por isso, no se deve ofend-lo?

  • Nenhum homem da Igreja deve ser ofendido, em momento algum

    respondeu o padre Roubert, com firmeza.

    E, com toda certeza, nunca um homem que possa vir a ser papa

    concluiu o conde. Mas o que ele quer?

    O padre Roubert foi at uma janela que tinha como proteo uma trelia dechumbo apoiando caixilhos de osso aplanado que deixavam entrar uma luz difusano aposento, mas impediam a entrada da chuva, de pssaros e de alguns dosventos frios do inverno. Ele ergueu a trelia da moldura e respirou o ar que, noalto da torre de menagem do castelo, estava maravilhosamente livre do fedor delatrina na cidade mais baixa. Era outono e havia no ar um leve cheiro de uvasprensadas. Roubert gostava daquele cheiro. Ele se voltou de novo para o conde.

    O monge est aqui?

    Num quarto de hspedes disse o conde. Est descansando. Ele jovem, e est muito nervoso. Curvou-se para mim, com muita propriedade, masrecusou-se a dizer o que o cardeal deseja.

  • Um grande barulho no ptio l embaixo fez com que o padre Rouberttornasse a olhar pela janela. Ele teve de se inclinar muito frente, porquemesmo ali, a doze metros de altura na torre, as paredes ainda tinham metro emeio de espessura. Um cavaleiro vestindo uma armadura completa acabara deatacar o quintana no ptio e sua lana atingiu o escudo de madeira com tantafora, que toda a armao desabou.

    O seu sobrinho est brincando disse ele enquanto recuava da janela eendireitava o corpo.

    Meu sobrinho e os amigos dele esto treinando corrigiu o conde.

    Seria melhor ele cuidar da alma disse o padre Roubert, mal-umorado.

    Ele no tem alma, soldado.

    Um soldado de torneios disse o padre com ar zombeteiro. O condedeu de ombros.

  • No basta ser rico, padre. Um homem tambm tem de ser forte, eJoscelyn o meu brao forte. O conde disse aquilo em tom enrgico, emborana verdade no tivesse certeza de que o sobrinho fosse o melhor herdeiro paraBerat, mas se o conde no tinha filhos, o feudo deveria passar para um de seussobrinhos, e Joscely n talvez fosse o melhor de uma ninhada m. O que fazia comque fosse importantssimo ter um herdeiro. Eu lhe pedi que viesse aqui disse ele, escolhendo o verbo pedir e no ordenar porque voc poderia teralguma informao sobre os interesses de Sua Eminncia.

    O frade tornou a olhar para a carta do cardeal.

    Registros de propriedades disse ele.

    Tambm percebi o termo disse o conde. Ele se afastou da janelaaberta. Voc est provocando uma corrente de ar, padre.

    com relutncia, o padre Roubert recolocou a tela de osso. O conde, sabiaele, deduzira pela leitura de seus livros que para um homem ser frtil tinha deestar aquecido, e o frade se perguntou como que as pessoas nos frios pases donorte conseguiam reproduzir-se.

    Ento o cardeal no est interessado nos seus livros disse o

  • dominicano , mas apenas nos registros do condado!

    o que parece. Duzentos anos de rolos referentes a impostos? Oconde riu socapa. O irmo Jerome vai gostar muito de decifr-los.

    O frade no disse nada durante um certo tempo. O barulho de espadas seentrechocando ecoou da muralha do castelo enquanto o sobrinho do conde e seuscompanheiros treinavam o uso das armas no ptio. Se lorde Joscely n herdar istoaqui, pensou o frade, esses livros e pergaminhos sero todos queimados. Ele seaproximou mais da lareira na qual, apesar de no estar frio l fora, ardia umagrande fogueira, e pensou na jovem que devia ser morta na fogueira na manhdo dia seguinte, em Castillon dArbizon. Ela era uma herege, uma criatura m,um brinquedo do diabo, eele se lembrava da agonia que ela sentira enquanto atorturava para arrancar-lhe a confisso. Ele queria v-la queimando e ouvir osgritos que anunciariam sua chegada s portas do inferno, e por isso, quanto maiscedo respondesse ao conde, mais cedo poderia partir.

    Voc est escondendo alguma coisa, Roubert instigou-o o conde antesque o frade pudesse falar.

    O frade odiava ser chamado pelo seu simples nome de batismo, umalembrana de que o conde o conhecera quando menino e pagara pelo seuprogresso.

  • No estou escondendo nada protestou ele.

    Ento me diga por que um cardeal arcebispo iria mandar um monge aBerat?

    O frade virou-se de costas para a lareira.

    Ser que preciso lembr-lo disse ele de que o condado de Astaracagora faz parte do seu domnio?

    O conde olhou fixo para o padre Roubert, e ento percebeu o que o fradedizia.

    Ah, meu Deus, no! disse o conde. Ele fez o sinal-da-cruz e voltoupara a sua cadeira. Olhou para o tabuleiro de xadrez, coou um ponto quecomichava embaixo da boina de l, e voltou-se para o dominicano. No aquela velha histria?

    Tm circulado rumores disse o padre Roubert, altaneiro. Houveum membro da nossa ordem, um homem excelente, Bernard de Taillebourg, quemorreu este ano na Bretanha. Ele estava procura de alguma coisa, nunca nos

  • disseram o que era, mas os rumores dizem que ele se uniu a um membro dafamlia Vexille.

    Meu Deus Todo-Poderoso disse o conde. Por que voc no medisse isso antes?

    O senhor quer que eu o incomode com toda histria sem consistnciaque contada nas tabernas? retorquiu o padre Roubert.

    O conde no respondeu. Ele estava pensando nos Vexille. Os antigos condesde Astarac. Houve poca em que eles tinham sido poderosos, grandes senhoresde vastas terras, mas a famlia envolvera-se com a heresia dos ctaros, e quandoa Igreja queimou aquela praga, eliminando-a da terra, a famlia Vexille fugiupara sua ltima fortaleza, o castelo de Astarac, e l tinha sido derrotada. Amaioria foi morta, mas alguns conseguiram fugir, chegando at, pelo que oconde sabia, Inglaterra, enquanto que a Astarac em runas, morada de corvos eraposas, tinha sido engolida pelo feudo de Berat e com o castelo em runas veiouma histria insistente que dizia que os Vexilles derrotados tiveram a posse,durante um certo tempo, dos fabulosos tesouros dos ctaros, e que um dostesouros era o prprio Santo Graal. E claro que o motivo pelo qual o padreRoubert no fizera meno das novas histrias era que ele queria achar o Graalantes que qualquer outra pessoa o descobrisse. Ora, o conde lhe perdoaria isso.Ele olhou para o outro lado do amplo aposento.

    Ento o cardeal-arcebispo acredita que o Graal ser encontrado entreessas coisas? Ele fez um gesto em direo aos seus livros e documentos.

  • Louis Bessires disse o frade um homem ganancioso, umhomem violento e um homem ambicioso. Para encontrar o Graal, ele vai virar aTerra de cabea para baixo.

    Ento o conde compreendeu. Compreendeu o padro de sua vida.

    Havia uma histria, no? pensou ele em voz alta De que aqueleque estivesse com o Graal seria amaldioado at devolver o clice a Deus?

    Histrias disse o padre Roubert, com ar de zombaria.

    E se o Graal estiver aqui, padre, mesmo que se encontre escondido, sereio guardio.

    Se o dominicano voltou a manifestar desprezo.

    E assim Deus me amaldioou disse o conde, perplexo , porque semfazer a mnima idia disso estou com o Seu tesouro e no dei a ele o devido valor.

  • Abanou a cabea. Ele no me deu um filho porque no dei a Ele o clicede seu filho. O conde lanou um olhar surpreendentemente duro ao jovemfrade. Ele existe mesmo, padre?

    O padre Roubert hesitou, e fez um relutante aceno com a cabea.

    possvel.

    - Neste caso, melhor darmos ao monge a permisso para procurar disse o conde , mas tambm temos de fazer tudo para encontrar o que eleprocura antes que o ache. Voc ir consultar os registros de propriedade, padreRoubert, e passar para o irmo Jerome apenas aqueles que no mencionemtesouros, relquias ou clices. Est entendendo?

    Vou procurar obter do meu regente a permisso para realizar essa tarefa respondeu o padre Roubert, inflexvel.

    Voc no vai procurar nada, a no ser o Graal! O conde deu um tapano brao da cadeira. Vai comear agora, Roubert, e no vai parar enquantono tiver lido todos os pergaminhos que esto naquelas estantes. Ou vai preferirque eu expulse de casa sua me, seus irmos e suas irms?

  • O padre Roubert era um homem orgulhoso e empertigou-se, mas no erabobo e, por isso, depois de uma pausa, fez uma mesura.

    Vou consultar os documentos, excelncia disse, humilde.

    Comeando agora insistiu o conde.

    Isso mesmo, excelncia disse o padre Roubert e suspirou porque noiria ver a jovem ser queimada.

    E eu o ajudarei disse o conde, entusiasmado. Porque nenhum cardealarcebispo iria tirar de Berat o tesouro mais sagrado da Terra ou do cu. O condeiria encontr-lo primeiro.

    O FRADE DOMINICANO chegou a Castillon dArbizon no crepsculo deoutono, justo quando o vigia fechava a porta oeste. Uma fogueira tinha sido acesanum grande braseiro que ficava do lado de dentro do arco da porta, para aqueceros vigias da cidade no que prometia ser a primeira noite fria do ano queterminava. Morcegos esvoaavam acima dos muros semiconsertados e em voltada torre do alto castelo que coroava a ngreme montanha de Castillon dArbizon.

  • Deus esteja com o senhor, padre disse um dos vigias quando fez umapausa para deixar o frade alto passar pela porta, mas o vigia falou em occitano,sua lngua natal, e o frade no falava aquela lngua e, por isso, apenas sorriuvagamente e esboou um sinal-da-cruz antes de erguer as abas de suas vestespretas e avanar com dificuldade pela rua principal da cidade em direo aocastelo. Mulheres jovens, o trabalho do dia terminado, caminhavam pelas ruas ealgumas davam risadinhas, porque o frade era um homem bem-apessoado,apesar de um mancar muito leve. Ele tinha cabelos pretos espessos, rosto detraos firmes e olhos pretos. Uma prostituta o chamou da porta de uma taberna eprovocou gargalhadas de homens que bebiam a uma mesa colocada na rua. Umaougueiro molhou a frente de sua loja com um balde de madeira com gua,fazendo com que sangue diludo escoasse pela sarjeta, passando pelo frade,enquanto acima dele, de uma janela do ltimo andar onde estava secando aroupa numa Vara comprida, uma mulher gritou insultos para uma vizinha. Aporta oeste fechou com uma batida forte no fim da rua e a tranca encaixou-se nolugar com um som seco.

    O frade no ligou para nada daquilo. Simplesmente subiu para onde a igrejade So Sardos acocorava-se embaixo do plido baluarte do castelo e, assim queentrou na igreja, ajoelhou-se junto aos degraus do altar, fez o sinal-da-cruz eprostrou-se. Uma mulher vestida de preto, que rezava no altar lateral de SantaIns, perturbada pela presena malfazeja do frade, tambm fez o sinal-da-cruz esaiu depressa da igreja. O frade, deitado por inteiro no degrau superior, limitou-se a esperar.

    Um sargento municipal, vestindo libre cinza e vermelho de CastillondArbizon, observara o frade subir o morro. Ele percebera que a batina dodominicano era velha e remendada e que o frade era jovem e forte, e por isso osargento foi procurar um dos cnsules da cidade e aquela autoridade, enfiandosobre os cabelos grisalhos o chapu guarnecido de pele, mandou que o sargentolevasse mais dois homens armados enquanto ele foi buscar o padre Medous e umdos dois livros do padre. O grupo reuniu-se do lado de fora da igreja e o cnsulordenou que os curiosos aglomerados para ver a agitao se afastassem.

  • No h nada para ver disse ele, solcito.

    Mas havia. Um estranho chegara a Castillon dArbizon, e todos os estranhoseram motivo de suspeita, por isso a multido permaneceu e ficou olhandoenquanto o cnsul vestia sua toga oficial, de tecido cinza e vermelho, adornadocom pele de lebre, e depois mandou que os trs sargentos abrissem a porta daigreja.

    O que que as pessoas esperavam? Que um diabo brotasse da igreja de SoSardos? Ser que pensavam que iriam ver um grande animal chamuscado, comasas pretas batendo e uma trilha de fumaa atrs da cauda bifurcada? Em vezdisso, o padre e o cnsul e dois dos sargentos entraram, enquanto o terceirosargento, o basto que representava o seu cargo mostrando o emblema deCastillon dArbizon, que era um gavio levando uma folha de centeio, vigiava aporta. A multido esperava. A mulher que fugira da igreja disse que o fradeestava rezando.

    Mas ele parece mau acrescentou ela , parece o diabo. E, rpida,tornou a fazer o sinal-da-cruz.

    Quando o padre, o cnsul e os dois guardas entraram na igreja, o fradeainda estava deitado por inteiro diante do altar, com os braos bem abertos, demodo que seu corpo tinha o formato da cruz. Ele devia ter ouvido as botas comsolas pregadas pisando nas pedras irregulares da nave, mas no se mexeu nem

  • falou.

    Padre? chamou o padre de Castillon dArbizon, nervoso. Ele falou emoccitano e o frade no respondeu. Padre? O padre tentou o francs.

    O senhor dominicano? O cnsul estava muito impaciente paraesperar qualquer resposta abordagem insegura do padre Medous. Responda! Ele tambm falou em francs, e com rispidez tambm, como ficava bem nosprincipais cidados de Castillon dArbizon. O senhor dominicano?

    O frade rezou por mais um instante, uniu as mos acima da cabea, fezuma rpida pausa e depois levantou-se e voltou-se para os quatro homens.

    Eu vim de muito longe disse ele, com altivez e preciso de umacama, comida e vinho.

    O cnsul repetiu a pergunta.

    O senhor dominicano?

  • Sigo a orientao do bendito So Domingos confirmou o padre. Ovinho no precisa ser bom, a comida, apenas o que os seus membros mais pobrescomem, e a cama pode ser de palha.

    O cnsul hesitou, porque o frade era alto, evidentemente forte e umpouquinho amedrontador, mas o cnsul, que era um homem rico e devidamenterespeitado em Castillon dArbizon, empertigou-se todo.

    O senhor moo disse, em tom acusador para ser frade.

    para a glria de Deus disse o dominicano, com ar de quem queriaencerrar o assunto homens jovens seguirem a cruz em vez de a espada. Possodormir num estbulo.

    Qual o seu nome? ordenou o cnsul.

    Thomas.

  • Um nome ingls! Havia alarme na voz do cnsul e os dois sargentosreagiram erguendo seus bastes.

    Tomas, se o senhor preferir disse o frade, aparentemente sem sepreocupar, enquanto os dois sargentos davam um passo ameaador em suadireo. meu nome de batismo explicou ele , e o nome daquele pobrediscpulo que duvidou da divindade de Nosso Senhor. Se o senhor no tem essetipo de dvidas, eu o invejo e rogo a Deus que me conceda tamanha certeza.

    O senhor francs? perguntou o cnsul.

    Sou normando disse o frade e depois confirmou com a cabea. Sou francs, sim. Ele olhou para o padre. O senhor fala francs?

    Falo. O padre parecia nervoso. Um pouco. Pouquinho.

    Neste caso, posso comer em sua casa esta noite, padre?

    O cnsul no quis deixar o padre Medous responder, mas em vez dissoinstruiu o padre a entregar o livro ao frade. Era um livro muito antigo, compginas comidas por traas e uma capa preta de couro que o frade

  • desembrulhou.

    O que que o senhor quer de mim? perguntou o frade.

    Leia um trecho deste livro. O cnsul percebera que as mos do fradeestavam cheias de cicatrizes e os dedos, ligeiramente tortos. Danos, refletiu ele,mais prprios a um soldado do que a um padre. Leia para mim! insistiu ocnsul.

    - O senhor no sabe ler? perguntou o frade, em tom de troa.

    Se sei ler ou no disse o cnsul no da sua conta. Mas

    se voc sabe ler, jovem, da nossa conta, porque se voc no for padre,no ter condies de ler. Por isso, leia para mim.

    O frade deu de ombros, abriu uma pgina ao acaso e fez uma pausa. Asdesconfianas do cnsul foram provocadas pela pausa e ele ergueu a mo parafazer um sinal aos sargentos para que se aproximassem, mas de repente odominicano comeou a ler em voz alta. Ele tinha uma voz boa, confiante epossante, e as palavras em latim soavam melodiosas ao ecoarem nas paredes

  • pintadas da igreja. Depois de um instante, o cnsul ergueu a mo para calar ofrade e lanou um olhar inquiridor para o padre Medous.

    Ento?

    Ele l bem disse o padre Medous com voz fraca. O latim do padreno era bom e ele no gostava de admitir que no tinha entendido exatamentetodas as palavras que ecoavam, apesar de estar certssimo de que o dominicanosabia ler.

    Voc sabe que livro esse? perguntou o cnsul.

    Presumo disse o frade que se trata da vida de So Gregrio. Otrecho, como sem dvida o senhor reconheceu havia sarcasmo em sua voz descreve a peste que atingir aqueles que desobedecerem ao Senhor seu Deus. Ele envolveu o livro de capa preta, mole, e estendeu-o para o padre. provvel que o senhor conhea o livro como Flores Sanctorum?

    Exatamente. O padre recebeu o livro e fez um aceno de cabea parao cnsul.

  • Aquela autoridade ainda no estava de todo satisfeita.

    Suas mos disse ele. Como foi que elas se machucaram? E o nariz?Foi quebrado?

    Quando era criana disse o frade, estendendo as mos eu dormiacom o gado. Fui pisoteado por um boi. E o meu nariz foi quebrado quando minhame me bateu com uma caarola.

    O cnsul entendeu aqueles acidentes comuns infncia e ficouvisivelmente tranqilizado.

    O senhor h de compreender, padre disse ele ao frade , que temosde ser cautelosos com os visitantes.

    Cautelosos com os padres de Deus? perguntou o dominicano, mordaz.

    Tnhamos que ter certeza explicou o cnsul. Chegou umamensagem de Auch dizendo que os ingleses esto por a, mas ningum sabeonde.

  • Existe uma trgua assinalou o frade.

    Quando foi que os ingleses respeitaram uma trgua? retorquiu ocnsul.

    Se que so realmente ingleses disse o dominicano com desprezo. Hoje em dia, qualquer grupo de bandidos chamado de ingls.

    O senhor tem homens ele fez um gesto para os sargentos, que noentendiam uma nica palavra da conversa em francs e tem igrejas e padres.Por isso, por que iria ter medo de bandidos?

    Os bandidos so ingleses insistiu o cnsul. Eles levavam arcos deguerra.

    O que no altera o fato de que venho de muito longe e estou com fome,com sede e cansado.

  • O padre Medous ir cuidar do senhor disse o cnsul. Fez um gestopara os sargentos, liderou-os pela nave e saiu para a pequena praa. No hnada com que se preocuparem! anunciou o cnsul multido. O nossovisitante padre. um homem de Deus.

    A pequena multido se dispersou. O crepsculo coroava a torre da igreja eenvolveu as ameias do castelo. Um homem de Deus chegara a CastillondArbizon e a cidadezinha estava em paz.

    O HOMEM DE DEUS comeu um prato de repolho, feijo e bacon salgado.Ele explicou ao padre Medous que tinha feito uma peregrinao a Santiago deCompostela, na Espanha, para rezar junto tumba de So Tiago, e que agoraestava caminhando at Avignon para receber novas ordens de seus superiores.Ele no tinha visto assaltantes, ingleses ou de outra nacionalidade.

    - No vemos um ingls h muitos anos replicou o padre Medous, fazendoum apressado sinal-da-cruz para evitar o mal que acabara de mencionar masno faz muito tempo, eles mandavam aqui.

    O frade, comendo sua refeio, parecia no estar interessado.

    Pagvamos impostos a eles continuou o padre Medous , mas entoeles foram embora e agora pertencemos ao conde de Berat.

  • Espero que ele seja um homem temente a Deus, no ? perguntoufrei Thomas.

    Muito piedoso confirmou o padre. Ele guarda um pouco de palhada manjedoura de Belm na igreja dele. Eu gostaria de v-la.

    Os homens dele guarnecem o castelo? quis saber o frade, ignorando otpico mais interessante do leito de Jesus recm-nascido.

    Guarnecem confirmou o padre Medous.

    A guarnio vai missa?

    O padre Medous fez uma pausa, obviamente tentado a dizer uma mentira, edepois decidiu-se por uma meia-verdade.

    Alguns, vo.

  • O frade largou a colher de madeira e olhou srio para o padre constrangido.

    Quantos eles so? E quantos vo missa?

    O padre Medous ficou nervoso. Todos os padres ficavam nervosos quandodominicanos apareciam, porque os frades eram os implacveis guerreiros deDeus na luta contra a heresia, e se aquele jovem alto comunicasse que oshabitantes de Castillon dArbzon no eram to piedosos, ele poderia levar para acidade a Inquisio e seus instrumentos de tortura.

    Existem dez homens na guarnio disse o padre Medous e sotodos bons cristos. Como todo o meu povo.

    O frade Thomas pareceu ctico.

    Todos eles?

  • Fazem o possvel disse o padre Medous com lealdade , mas... voltou a fazer uma pausa, evidentemente lamentando que estivera prestes aacrescentar uma ressalva e, para encobrir a sua hesitao, foi at a pequenafogueira e acrescentou uma acha de lenha. O vento vibrou na chamin edevolveu uma corrente de fumaa rodopiando pelo aposento. Um vento norte disse o padre Medous , e ele traz a primeira noite fria do outono. O invernono est longe, eh?

    Mas? O frade notara a hesitao.

    O padre Medous suspirou enquanto se sentava.

    H uma jovem. Uma herege. Ela no era de Castillon dArbizon, graasa Deus, mas ficou aqui depois que o pai morreu. Ela beguina.

    E no achava que os beguinos chegassem to ao sul assim disse ofrade. Os beguinos eram mendigos, mas no apenas gente perturbadora. Em vezdisso, eram hereges que negavam a Igreja e negavam a necessidade detrabalhar e alegavam que todas as coisas vinham de Deus e, portanto, todas ascoisas deviam ser gratuitas para todos os homens e mulheres. A Igreja, paraproteger-se contra horrores daquele tipo, queimava os beguinos sempre que osencontrava.

    Eles perambulam pelas estradas assinalou o padre Medous

  • e ela chegou aqui, mas ns a mandamos para o tribunal do bispo e ela foideclarada culpada. Agora, ela est de volta aqui.

    De volta? O frade parecia chocado.

    Para ser queimada apressou-se a explicar o padre Medous. Foimandada de volta para ser queimada pelas autoridades civis. O bispo quer que opovo presencie sua morte, para que todos saibam que o mal que havia no meiodeles foi embora.

    O frade Thomas franziu o cenho.

    O senhor diz que essa beguina foi declarada culpada de heresia, que foimandada para c para morrer, e no entanto ela ainda est viva. Por qu?

    Ela deve ser queimada amanh disse o padre, ainda depressa. Euesperava que o padre Roubert estivesse aqui. Ele dominicano como o senhor efoi ele que descobriu a heresia da jovem. Ser que est doente? Ele me mandouuma carta explicando como a fogueira devia ser armada.

  • O frade Thomas teve uma expresso zombeteira.

    Tudo o que preciso disse ele, como para encerrar o assunto

    uma pilha de lenha, um poste, gravetos para tocar fogo e um herege. Oque mais se pode querer?

    O padre Roubert insistiu para que usemos pequenos feixes de gravetos eque eles fiquem em p. O padre ilustrou a exigncia juntando os dedos comotalos de aspargo. Feixes de gravetos, escreveu ele, e todos apontando para ocu. Eles no devem ficar deitados. Ele foi enftico quanto a isso.

    O frade Thomas sorriu quando compreendeu.

    Para que o fogo queime forte, mas no violento, eh? Ela vai morrerdevagar.

    a vontade de Deus disse o padre Medous.

  • Devagar e em grande agonia disse o frade, saboreando as palavras, mesmo esta a vontade de Deus para os hereges.

    E eu armei a fogueira segundo as instrues dele acrescentou, comvoz fraca, o padre Medous.

    timo. A jovem no merece nada melhor do que isso. O fraderaspou o prato com um pedao de po preto. Vou assistir morte da jovemcom alegria, e depois seguirei meu caminho. Ele fez o sinal-dacruz Eu lheagradeo esta comida.

    O padre Medous fez um gesto para a lareira, onde ele empilhara algunscobertores.

    Pode dormir aqui.

    Vou dormir, padre disse o frade , mas primeiro vou rezar para SoSardos. Mas nunca ouvi falar nele. Pode me dizer quem ele?

  • Um cabreiro respondeu o padre Medous. Ele no tinha certeza plenade que Sardos existira, mas o povo local insistia que sim e sempre o venerara. Ele viu o cordeiro de Deus em cima da montanha, onde a cidade se ergue agora.O cordeiro estava sendo ameaado por um lobo e ele o salvou, e Deus orecompensou com uma chuva de ouro.

    O que correto e adequado disse o frade e ps-se de p. O senhorme acompanha para rezar para o bendito Sardos?

    O padre Medous abafou um bocejo.

    Eu gostaria disse ele, sem entusiasmo algum.

    No vou insistir disse o frade, com generosidade. Pode fazer ofavor de deixar a porta destrancada?

    Minha porta est sempre aberta disse o padre e sentiu um forte alvioquando o incmodo hspede inclinou-se para passar pelo lintel da porta e saiupara a noite.

  • A governanta do padre Medous sorriu da porta da cozinha.

    Para um frade, ele bem bonito. Vai passar a noite aqui?

    Vai, sim.

    Ento, melhor eu dormir na cozinha disse a governanta , porquevoc no vai querer que um dominicano o encontre entre as minhas pernas meia-noite. Ele vai colocar ns dois na fogueira, junto com a beguina. Ela deuuma gargalhada e foi tirar a mesa.

    O frade no foi igreja, mas desceu os poucos passos pelo morro at ataberna mais prxima e empurrou a porta, abrindo-a. O barulho que havia ldentro foi diminuindo aos poucos enquanto os ocupantes do aposento lotadoolhavam para o rosto srio do frade. Quando se fez silncio, o frade estremeceucomo se estivesse horrorizado com a farra, e depois voltou para a rua e fechou aporta. Houve um instante de silncio no interior da taberna, e ento homenssoltaram gargalhadas. Alguns imaginaram que o jovem padre estivera procurade uma prostituta, outros simplesmente acharam que ele tinha aberto a portaerrada, mas em poucos momentos todos se esqueceram dele.

    Mancando, o padre subiu o morro de novo em direo igreja de SoSardos, onde, em vez de entrar no santurio do cabreiro, fez uma parada nassombras negras de um contraforte. Ali esperou, invisvel e silencioso, observando

  • os poucos sons da noite de Castillon dArbizon. Cantos e risos vinham da taberna,mas ele estava mais interessado nas passadas do vigia que percorria o muro dacidade que se ligava defesa mais forte do castelo logo atrs da igreja. Os passosvinham em sua direo, pararam a poucos passos, no muro, e depois recuaram.O frade contou at mil e o vigia no voltou, e por isso tornou a contar at mil,dessa vez em latim, e quando ainda no aconteceu nada a no ser o silncioacima dele, deslocou-se para os degraus de madeira que davam acesso ao muro.Os degraus estalaram sob o seu peso, mas ningum o interpelou. Uma vez emcima do muro, ele agachou-se ao lado da alta torre do castelo, a batina pretainvisvel na sombra projetada pela lua minguante. Ele observou o trecho em queo muro acompanhava o contorno do morro at fazer a virada para a porta oeste,onde um leve brilho vermelho mostrava que o braseiro queimava comintensidade. No se viam vigias. O frade imaginou que os homens deviam estarse aquecendo na porta. Ergueu o olhar, mas no viu ningum na defesa docastelo, nem qualquer movimento nas duas frestas semi-iluminadas quebrilhavam graas a lanternas que estavam dentro da torre alta. Ele tinha visto trshomens de libr no interior da taberna lotada e poderia haver outros que ele novira, e concluiu que a guarnio estava bebendo ou dormindo, e por isso ergueuas saias pretas e desenrolou uma corda que estivera enrolada na cintura. A cordaera feita de cnhamo endurecido com cola, o mesmo tipo de corda queimpulsionava os temveis arcos de guerra ingleses, e era comprida bastante parapermitir que ele enlaasse uma das ameias do muro e depois a deixasse cair ato terreno ngreme l embaixo. O frade ficou um momento olhando para baixo. Acidade e o castelo estavam construdos num rochedo ngreme que um riocontornava, e ele ouvia a gua chiando ao passar sobre um aude. Conseguiuapenas ver um brilho de luar refletido num lago, porm nada mais. O vento ocutucava, o esfriava, e ele recuou para a sombra projetada pela lua e cobriu orosto com o capuz.

    O vigia reapareceu, mas s foi at a metade do caminho no m