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HVMANITAS Vol. XLVII (1995) JACYNTHO LINS BRANDãO Universidade Federal de Minas Gerais O HIPOCENTAURQ DE ZEUXIS: a poética da diferença em Luciano de Samósata O que me parece mais destacável na produção de Luciano é a existên- cia de um conjunto de obras que, já no primeiro período da fase ateniense ', comprova sua suficiente maturidade como escritor, o domínio 1 Para a datação relativa das obras do corpus lucianeum, adoto em geral a cro- nologia de J. SCHWARTZ, Biographie de Lucien de Samosate, Bruxelles, Latomus, 1965, situando a «fase ateniense» de Luciano como o período que vai de cerca de 157 a cerca de 181, a qual coincide praticamente, portanto, com o reinado de Marco Aurélio. Com exceção de Sobre o sonho, que geralmente se admite tenha sido lido em Samósata, por ocasião de viagem do autor ao Oriente (entre 162 e 164), de Imagens e de Sobre as imagens (talvez também de Sobre a dança), todos os demais textos desse período têm em vista um público atemiense, no auge do renascimento cultural dos valores gregos (sobre o período ver G.W. BOWERSOCK, Greeks Sophists in the Roman Empire, Oxford, Clarendon, 1969; E.L. BOWIE, Greeks and their Past in the Second Sophistic, Past and Present, 46, p. 3-41, 1970; C.P. JONES, Culture and Society in Lucian, Cambridge, Harvard Univ., 1986; B.P. REARDON, Courants litté- raires Grecs des Ile, et Hle. siècles après J.C., Paris, Les Belles Lettres, 1971). Mesmo Apologia e Uma falta cometida ao saudar, textos que SCHWARTZ acredita terem sido compostos durante a estada de Luciano em Alexandria (cerca de 171-174), são dirigi- dos a recebedores atenienses. Com relação à datação relativa, creio que se descobrem algumas tendências: a) de 157 a 164, isto é, da possível instalação inicial em Atenas atá o retorno da viagem ao Oriente, o período mais marcante do que R. HELM, Lukian und Menipp, Leipzig, Teubner, 1906, considera a «fase menipéia», mas que (para evi- tar mal-entendidos e marcar minha discordância da tese de HELM quanto a imitação de Menipo por Luciano) prefiro chamar simplesmente de «primeiro período da fase ateniense»; b) a partir da segunda instalação em Atenas (por volta de 165), até à parti- da para o Egito (cerca de 171), um redirecionamento de tendências da parte de Luciano, baseado na crítica à filosofia e à historiografia; c) finalmente, após 170, o

O HIPOCENTAURQ DE ZEUXIS: a poética da diferença em ... · Roman Empire, Oxford, Clarendon, 1969; E.L. BOWIE, Greeks and their Past in the Second Sophistic, Past and Present, 46,

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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)

J A C Y N T H O L I N S B R A N D ã O

Universidade Federal de Minas Gerais

O HIPOCENTAURQ DE ZEUXIS: a poética da diferença em Luciano de Samósata

O que m e parece mais destacável na produção de Luciano é a existên­

c i a d e u m c o n j u n t o d e o b r a s q u e , j á n o p r i m e i r o p e r í o d o d a f a s e

ateniense ' , comprova sua suficiente matur idade como escritor, o domín io

1 Para a datação relativa das obras do corpus lucianeum, adoto em geral a cro­nologia de J. SCHWARTZ, Biographie de Lucien de Samosate, Bruxelles, Latomus, 1965, situando a «fase ateniense» de Luciano como o período que vai de cerca de 157 a cerca de 181, a qual coincide praticamente, portanto, com o reinado de Marco Aurélio. Com exceção de Sobre o sonho, que geralmente se admite tenha sido lido em Samósata, por ocasião de viagem do autor ao Oriente (entre 162 e 164), de Imagens e de Sobre as imagens (talvez também de Sobre a dança), todos os demais textos desse período têm em vista um público atemiense, no auge do renascimento cultural dos valores gregos (sobre o período ver G.W. BOWERSOCK, Greeks Sophists in the Roman Empire, Oxford, Clarendon, 1969; E.L. BOWIE, Greeks and their Past in the Second Sophistic, Past and Present, 46, p. 3-41, 1970; C.P. JONES, Culture and Society in Lucian, Cambridge, Harvard Univ., 1986; B.P. REARDON, Courants litté­raires Grecs des Ile, et Hle. siècles après J.C., Paris, Les Belles Lettres, 1971). Mesmo Apologia e Uma falta cometida ao saudar, textos que SCHWARTZ acredita terem sido compostos durante a estada de Luciano em Alexandria (cerca de 171-174), são dirigi­dos a recebedores atenienses. Com relação à datação relativa, creio que se descobrem algumas tendências: a) de 157 a 164, isto é, da possível instalação inicial em Atenas atá o retorno da viagem ao Oriente, o período mais marcante do que R. HELM, Lukian und Menipp, Leipzig, Teubner, 1906, considera a «fase menipéia», mas que (para evi­tar mal-entendidos e marcar minha discordância da tese de HELM quanto a imitação de Menipo por Luciano) prefiro chamar simplesmente de «primeiro período da fase ateniense»; b) a partir da segunda instalação em Atenas (por volta de 165), até à parti­da para o Egito (cerca de 171), um redirecionamento de tendências da parte de Luciano, baseado na crítica à filosofia e à historiografia; c) finalmente, após 170, o

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das técnicas de composição do texto e — o que é mais importante — uma

consciência clara do que pretende fazer, como e visando a que fins. Essa

consciência manifesta-se sobretudo em termos de afirmação da diferença

contra o pano de fundo da expectativa reinante, de que são os melhores

exemplos És um Prometeu nos discursos e Zêuxis, mas que também se

descobre em outros textos.

Se for verdade que Âmbar ou os cisnes data do início da fase atenien­

se ou de pouco antes2, temos nele um bom exemplo de como se teria pro­

cessado paulatinamente a reorientação da atividade literária de Luciano nas

«águas da sofística», já perceptível nos Diálogos dos deuses e nos

Diálogos das cortesãs3. Ao contrário de em És um Prometeu e em Zêuxis,

em Âmbar Luciano absolutamente não dá indicações quanto ao conteúdo

das diferenças que afirma haver em seu discurso, no confronto com o de

outros oradores, a não ser de modo bastante vago: ele é simples, sem

fábula, sem canto, motivo por que o público não deve esperar nada de

maior4. É inegável contudo que esta laliá — que precederia a audição de

um outro texto que, lamentavelmente, nenhum indício aponta qual seja —

visa justamente a defender a diferença.

Acredito que essa diferença impõe-se em duas direções: o logos luci-

ânico é distinto do de outros; ele é distinto também do que se diz ser o

lógos luciânico. Assim, mais que afirmar qual seja esse logos da diferen­

ça, o texto ocupa-se em dar indícios do que ele não é, técnica que parece

ser uma marca distintiva dos textos críticos de Luciano5 . Em primeiro

interesse pela crítica à sofística em geral. Todas essas seriam etapas da «fase atenien­se» da carreira de Luciano, de que estariam portanto excluídos apenas Harmônides, Tiranicida, Deserdado, Faláris, Hípias, Elogio da mosca, Elogio da pátria, Sobre as Dipsadas, Cínico e Caridemo, considerando-se o corpus comumente admitido como autêntico.

2 SCHWARTZ, op. cit., p. 129, baseia-se, para a datação: 1) na alusão a recente viagem pelo vale do Pó, «ce que nous mène, semble-t-il, quelques années avant l'éta­blissement à Athènes» (cf. Dupla acus. 27); 2) na proximidade temática com os Diálogos dos deuses 25 e 12, o que sugeriria proximidade de datas para as três obras. Os argumentos, como se vê, são razoáveis mas vulneráveis. A proximidade de perspec­tiva crítica sugere-me, contudo, que é razoável supor a composição de Âmbar em data próxima da de Es um Prometeu e Zêuxis.

3 Cf. R. HELM, op. cit., p. 13. 4 Conforme o original, o logos luciânico é «ânXoiKr)ç», «ã/^vÕoç» e «ovSé tiç

âSrj KpóosffTiv»; «pr/ roíovzó TI náôrjç peiÇœ nspï f/pãv sXníoaç» (Âmbar 6). 3 Estudei essa técnica de definição do discurso luciânico pelo que ele não é, na

oposição com os discursos historiográfico, filosófico e retórico, em A poética do hipo-centauro: identidade e diferença na obra de Luciano de Samósata, São Paulo, 1992, p. 143-210 (tese de doutoramento).

O HIPOCENTAURO DE ZEUXIS 411

lugar, não é como a obra dos poetas mentirosos que contam mythoi a pro­pósito do âmbar e dos Cisnes de Eridan: quem procede assim não passa de embusteiro e mentiroso6. Por outro lado, afirma não ser como os lógoi de «outros... não poucos», de que destila não âmbar, mas o próprio ouro, e são muito mais melodiosos que os cisnes dos poetas7. Tudo isso, contu­do, deve ser mais exatamente enquadrado no contexto da laliá, prolaliá ou epídeixis que serviria para introduzir uma conferência sofística8, cap­tando a benevolência dos ouvintes, tornando-os propensos ao que será dito, aguçando sua curiosidade — em resumo, criando determinadas expectativas com relação ao lógos. O que me parece destacável nesse caso é justamente a preocupação com a expectativa de um público que o ouvirá pela primeira vez, mas que tem conhecimento de sua fama9. Contra essa expectativa é que faz a confissão de simplicidade, garantindo que nunca ninguém o teria ouvido gloriar-se de sua obra e que ela não tem nada de grande, como de âmbar e de cisnes

Mero torneio de estilo em que se esconde falsa modéstia? Talvez. Mas isso não é o importante. Importa antes ressaltar a efetiva presença de uma retórica da diferença que deseja agir sobre a expectativa 10 dos ouvintes pelo caminho inverso — ou seja, destruindo justamente as expectativas reinantes pela recusa do elogio de si mesmo. A diferença age assim não só no discernimento de seu discurso com relação ao dos «outros não poucos» sofistas, mas ainda na concepção da própria laliá, já que se inverte aparentemente a intenção do género, desestruturando expectativas correntes, deduzidas tanto da experiência dos outros discur­sos quanto do que garantiriam alguns ser o discurso lucâinico. Digo apa­rentemente porque isso só se faz na intenção justamente de criar uma expectativa do diferente.

6 «anarsmv» e «y/svSoXóyoç ãvOpamoç» (Âmbar 3). 1 «áXXoiç jisv jáp oÒK ôXíyoiç» (Ibid. 6). 8 Ver J. BOMPAIRE, Lucien écrivain; imitation et création, Paris, Boccard,

1958, p. 286-288. 9 Cf. a referência aos que garantiriam que em seus lógoi há muitos tesouros

(Âmbar 6). 10 O texto é montado justamente sobre o paralelo entre a èXníç do narrador

com relação aos mythoi sobre Eridan narrados pelo poeta e sua frustração, comparada à êXnlç de seus ouvintes, cf., com relação ao narrador: «áxovcov tmv TIOIT/TCõV áõóvTcov -qXniÇov» (Âmbar 1); «...nicjTsótjaç xoïç noir/raïç» (Âmbar 3); com rela­ção ao público: «fjXsKTpá -eiva Kal KóKVOVç èXníaavTSç evprjosiv» (Âmbar 6); «/ir? zoiovzo TI náOrjç p.síC,w nspi fj^mv sXníaaç» (Âmbar 6); «aavròv aixiácjr) xrjç èXníSoç» (Âmbar 6).

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És um Prometeu nos discursos explora a mesma senda11. A partir da

afirmação da personagem à qual o texto se dirige12, Luciano nega que sua

obra tenha alguma boa invenção (eumékhanori), insigne sabedoria (perittè

sophía) ou previsão (prométheia) que o faça merecer ser comparado com

o mítico Titã. Antes seria adequada a comparação para aqueles que, como

o destinatário, exercitam seu discurso nos agónes dos tribunais, produzin­

do obras animadas e vivas 13. A não ser que se queira dizer que, como

Prometeu, o narrador modele argila, condição de que declara não se

envergonhar e que contrapõe à atividade dos retores que, sempre nos tri­

bunais, modelam ouro. A metáfora plástica leva ainda a distinção impor­

tante com relação à finalidade de sua obra que, entendida como estátuas

de argila mostradas ao público nas audições, se destina a produzir prazer

(térpsis) e divertimento (paidiá)14" É relevante observar como Luciano

tem, nos dois casos, necessidade de lançar mão de um outro discurso que

sirva de contraponto ao seu: em Âmbar com relação ao de «outros não

poucos» e, por extensão, dos poetas que narram coisas inverossímeis;

neste caso, usando a retórica forense. Mais que um elogio ou cumprimen­

to ao destinatário, a alusão tem como função opor esses discursos de ouro

ao discurso de argila, o que, sob a capa da modéstia, insiste na diferença.

Mas todo esse jogo 15 não faz mais que introduzir o que o opúsculo

tem de essencial: a reflexão sobre a novidade (kainourgón) de ajuntar-se

numa só peça o diálogo e a comédia16. Há diversas observações a fazer.

Em primeiro lugar, Luciano tem consciência da originalidade de sua

invenção, que «não de algum outro arquétipo (arkhétypon) foi imitada»,

podendo ser comparada à obra de Prometeu que, «não existindo os

homens ainda, refletindo (ennóesas), os plasmou», como aquele que

«ôXov áp%iT£KTCov aôzòç fjv», isto é, como primeiro fabricante, autor

de todo original. Com relação a seu diálogo-comédia, «nem poderia

alguém dizer alguma mais antiga forma de que esta seja procedente» 17.

11 Ver os interessantes comentários de B. BRANHAM, Unruly Eloquence: Lucian and the Comedy of Traditions, Cambridge, Harvard Univ., 1989, p. 40-43, que, contra a tendência geral de desclassificar os prefácios, se ocupa deles de modo criativo e, muitas vezes, se aproxima de minha análise tratando de És um Prometeu e Zeuxis.

12 «OVKOVV IJponyOéa iis slvai cpf)ç» (És Pr. 1) 13 «Çãa yovv áç álr/Oãç KC/A s^y/vxa b\iïv rà è'pya» (Ibid. 1). 14 Ibid. 2. 15 Ibid. 1-2. 16 Ibid. 3-7. 17 «ê/Áol 8s ov návv íKCCVÓV, si Kaivonoieïv Sotcoírjv, ^i-qSè ê'xoi ziç

Xéysiv ápxo.iÓTepóv TI rob" nXaajiaroc ob TOVTO ânójovóv êcmv» (Ibid. 3).

O HIPOCENTAURO DE ZEUXIS 413

De fato, reconhece ele, o diálogo e a comédia não eram nem familiares,

convivas, habituados, de éthos comum (synéthes), nem amigos (phíloi)

desde o princípio (ex arkhês). Cada um guardava as marcas de seu caráter

e de sua destinação originais que os tornavam incompatíveis: o diálogo

permanecia em casa e discutia gravemente passeando com poucos; a

comédia, ao contrário, frequentava o teatro e fazia rir, dançava e mesmo

algumas vezes atacava os amigos do diálogo, no gozo da liberdade dioni-

síaca. Assim, conforme a linguagem dos músicos, entre eles havia «duas

oitavas com relação a harmonia, do mais agudo ao mais grave» 18. Trata-

-se da mesma distância que separa a história do panegírico, géneros consi­

derados inconciliáveis pelo próprio Luciano em Como se deve escrever a

história, o que tornaria temerário querer mesclar comédia e diálogo.

A par pois da novidade, é essa diferença radical e básica de princípio

{ex arkhês) que sublinha a originalidade do projeto de Luciano, o que faz

dele, literalmente, um arkhitékton como Prometeu. Não vejo, de fato,

razão para negar a sinceridade da declaração nem para desclassificá-la,

atribuindo a novidade da invenção a um período anterior ao conhecimento

da obra de Menipo, como pretende Helm I9. Creio ainda inúteis as tentati­

vas de identificar a que obra especificamente Luciano se refere: como a

MacCarthy20, parece-me improvável que seja apenas aos Diálogos dos

deuses marinhos, conforme supunha Helm, em que as marcas da influên­

cia da comédia são pouco evidentes; nesse caso, os indícios conduziriam

de preferência aos Diálogos das cortesãs, admitindo-se a utilização de

modelos tomados da comédia nova2 1 , o que seria ao menos plausível.

E evidente, contudo, que Luciano se refere especificamente a Aristófanes

e, em particular, ao ataque contra os filósofos que fornece o entrecho para

18 «ô)CTT£, rò T&V yovaiKtSv XOVTO, Slç Sià TCCMjãv eivai TTJV âpfio-víav, ânò rov ô^vrárov êç rò Papúrarov» (Ibid. 6).

19 Discuti a questão da dependência de Luciano com relação a Menipo no traba­lho acima referido (A poética do hipocentauro, p. 283-316). Acredito que HELM supe­restima o fato. De acordo com o que declara o próprio Luciano em Dupla acusação e Pescador, a sátira menipéia seria apenas mais um dos elementos que se somam para gerar o diálogo luciânico, ao lado do diálogo platónico, das comédias de Aristófanes e Êupolis, da poesia iâmbica e da produção cínica (cf. Dupla acusação 33). Concordo com a afirmação de J. COENEN (in LUKIAN, Zeus tragodos, Meisenheim am Glan, A. Hain, 1977, p. 36-37): «So díirfen wir Lukians Behauptung, dass er den Menipp 'in der Dialog enfuhrte', durchaus wortlich verstehen. Menipp war nicht sein ausschliessli-ches Vorbild, sondem er bot ihm satirische Stoffe, aus denen er unter Hinzunahme von Formen und Motiven aus der Komõdie seine dramatischen Dialoge schuf».

20 B.P. MCCARTHY, Lucian and Menippus, Yale Classical Studies 4, 1934. 21 Ver P.E. LEGRAND, Les Dialogues des courtisanes comparés avec la comé­

die, Revue des Études Grecques XX, p. 176-231, 1907; XXI, p. 39-79, 1908.

414 JACYNTHO LINS BRANDÃO

as Nuvens 22, mas isso não significa que a alusão à comédia não possa ser de ordem mais geral23, o que apenas confirmaria uma tendência da poéti­ca luciânica em que venho insistindo. Aristófanes, de fato, não é dos auto­res mais usados por Luciano24, embora, dentre as obras do antigo comedi-ógrafo, as Nuvens sejam seu texto favorito. Mais ainda: a peça é citada, aludida ou referida em textos de especial importância para a compreensão da poética de Luciano: além de em Es um Prometeu, também no Pescador e na Dupla acusação. Ora, entre esses textos parece-me que há um traço comum marcante que consiste na situação de juízo, de discussão a propósito do próprio estatuto da poética luciânica. A reminiscência do modelo aristofânico é assim relevante, talvez em vista do simples fato de tratar-se de texto cómico sobre filósofos (ou sobre a filosofia), o que toca no cerne da opção luciânica. De qualquer modo, é ainda nas Nuvens que a comédia demonstra o quão incompatível seria com o diálogo filosófico por princípio e o que Luciano deseja realçar é exatamente a peculiaridade dessa arkhé que, manipulada adequadamente, vem a ser a arkhé de uma arquitetura poética inovadora e original.

O importante, insiste o narrador de És um Prometeu, não está na mistura exótica, mas no modo como ela se faz: separados o diálogo e a comédia ex arkhês, «nós ousamos ajuntá-los e harmonizá-los»25. É essa dupla atividade — ou seja: a conjugação entre o ajuntar o diferente e o harmonizar — que determina o anseio da poética luciânica. Sem isso, sua produção teria o efeito de provocar, em vez de prazer e divertimento, ape­nas o pavor e o riso, como as novidades de Ptolomeu: um camelo coberto de jóias e um homem de duas cores que, apresentados em espetáculo, levam o público a reação inesperada de repulsa pelo estranho26. Ora, Luciano reconhece que há em sua obra um elemento de estranheza que gera o perigo de seu desvirtuamento:

«e temo não seja também minha obra um camelo entre os egípcios e os homens apenas o freio admirem e a vestimenta de púrpura, já que nem por

22 Este ponto parece-me suficientemente destacado por B.P. MCCARTHY, op. cit., p. 3-55. O texto por si só já é, de qualquer modo, claro.

23 Sobre a crítica aos filósofos na comédia, ver P.E. LEGRAND, op. cit., p 214-217, 1907.

24 Ou, pelo menos, mais citados, cf. F.W. HOUSEHOLDER, Literary Quotation and Allusion in Lucian, Columbia, King's Crown, 1941, p. 41; 59-60; 64 ss.

25 «Kcd ôpcoç SToX/.irjaansv rjpsïç rà OVICûç é%ovTO. npòç âXXrjXa £,vvajo.jsïv Kai E,vvapnó<jai où návv nsidófisva oòSè sv/dapcõç ávsxópeva Ttjv Koivmvíav» (És Pr. 6).

26 Ibid. 4.

O HIPOCENTAURO DE ZEUXIS 415

partir da reunião de duas coisas belíssimas — o diálogo e a comédia — nem por isso se atingirá necessariamente a boa forma (eumorphía), se tam­bém a mistura harmoniosa e conforme a simetria não for»27.

As duas possibilidades da mistura repartem-se em dois exemplos: de

um lado o hipocentauro, em que prevalece o allókotos (diferente, estra­

nho, extraordinário), a partir do modo como o representam os pintores; de

outro, o ajuntamento de vinho com mel, mistura agradabil íssima2 8 .

Contudo, não sustenta o narrador que sua obra se assemelhe à segunda

opção, mas teme não ter perdido a mistura o belo de cada um dos compo­

nentes. Pode ser que se trate ainda uma vez de torneio de falsa modéstia.

Fica entretanto declarado que o resultado tende mais para o hipocentauro,

entendido o esforço de reunião harmónica como ato de ousadia29. Na dis­

tância de duas oitavas que separa os dois géneros primitivos, é possível

arquitetar uma certa harmonia, marcada todavia pelo signo da diferença.

Existe um risco, portanto, nesse processo, que diz respeito tanto à

natureza do produto quanto à forma como pode ser recebido. És um

Prometeu constrói-se justamente a partir de um dado decorrente do pro­

cesso de recepção — com exatidão, do comentário do anónimo ouvinte

que compara Luciano a Prometeu: nessa esfera, o risco é o mesmo que

cercava a recepção do camelo de Ptolomeu, uma vez que o público pode

não estar preparado para a apreciação do conjunto em sua harmonia sem

deixar-se levar, de um lado, apenas pelo estranho da novidade ou, de

outro, apenas pela riqueza dos acessórios. Nesse sentido é que a recusa do

valor da novidade se impõe, enquanto chama a atenção para a harmonia

do todo que, ajuntando o diferente, é ele também diferente sem deixar de

ter graça (de ser kharíen). Definitivamente, portanto, não se nega a novi­

dade, apenas se recusa reduzir o valor da obra a essa novidade.

Por outro lado, enquanto produto, ela é bem definida no que é e no

que pretende: junção do diálogo filosófico e da comédia, soma o masculi­

no ao feminino, harmoniza o separado por duas oitavas visando a, como

Prometeu, enganar os ouvintes, servindo-lhes ossos escondidos pela gor­

dura, «o riso cómico sob a gravidade filosófica»30. Algo portanto que não

é o que aparenta — não é nem só comédia nem só filosofia, mas comédia

sob filosofia e não mais, como em Aristófanes, comédia sobre filosofia, o

27

28

29

30

Ibid. 5. Ibid. 5. Ibid. 6. Ibid. 7.

416 JACYNTHO LINS BRANDÃO

que dá bem a medida da inversão provocada por Luciano a o reunir os

dois géneros. Do fato, a invasão de um género pelo outro, ou a presença

de elementos ou de temas de um no outro não perturbaria a radical dife­

rença que afirma existir entre eles ex arkhês. É inegável que o diálogo

platónico utiliza muitas vezes elementos de comicidade, relativos sobretu­

do ao que se costumou tratar como ironia socrática31, Deve-se ter em

conta que Platão figura como o segundo autor mais citado, aludido ou

lembrado por Luciano, logo após Homero; nessa preferência por Homero

e Platão, Luciano não fugiria todavia da tendência comum a outros auto­

res da idade imperial32. As estatísticas, contudo, não devem perturbar a

percepção correta da intencionalidade que rege a composição dos textos:

não se pretende fazer comédia; não se pretende igualmente fazer filosofia.

Na fórmula clara do próprio Luciano, pretende-se servir ao ouvinte comé­

dia sob filosofia, ou seja, o riso cómico é a base, mas um riso sob a capa

da seriedade filosófica. A questão da «conversão» à filosofia fica assim

bem elucidada, pois esta de fato serve às necessidades do riso que é o

fundamento real da poética de Luciano33. O elemento filosófico só tem

sentido enguanto cobertura do riso, enquanto determina uma forma nova,

original, de provocar o riso, em princípio entendido como o avesso da

filosofia34.

O sentido do texto parece-me denunciar assim um elevado grau de

consciência do trabalho poético proposto: há riscos e é preciso ousar; há

riscos com relação ao produto; há riscos com relação à sua recepção. Mas

desses riscos não há como fugir: «mas o que fazer? pois é preciso perse­

verar no que uma vez preferi». Isso justamente porque a escolha é origi­

nal: de roubo é a única coisa de que declara não poder ser acusado —

diferentemente de Prometeu — na conclusão do texto. De fato, estamos

diante de um programa bem estabelecido, literalmente eleito, preferido

31 O Eutidemo seria um bom exemplo dessa exploração do cómico no diálogo platónico, como já observava R. HELM, op. cit. Tratei desses aspectos em O jogo e o labirinto no Eutidemo, Revista Filosófica Brasileira IV (3), p. 23-48, 1988. Ver ainda as considerações de B. BRANHAM, op. cit., p. 46-57, especialmente a p. 50: «... the figure in which the serious and comic are most memorably and potently intertwined is the Platonic Socrates: a teacher, social critic, and philosophen par excellence, and yet a jester, a mocker, an ironist, a character».

32 Cf. F. W. HOUSEHOLDER, op. cit., p. 41-44. 33 Ver K. KORUS, The Theory of Humour in Lucian of Samosata, Eos 72,

p. 295-313, 1984, e B. BRANHAM, op. cit. Talvez por isso muitos comentadores per­cebam em Luciano uma sorte de riso contido, intelectualizado, diferente, portanto, do riso solto da comédia.

34 Sobre o assunto, ver os comentários de B. BRANHAM, op. cit., p. 39-40.

O HIPOCENTAURO DE ZEUXIS 417

dentre outras possibilidades, o qual exige ousadia. Não se reduz à novida­

de, mas não se dissolve no costumeiro, sob o signo da harmonia na dife­

rença ou da harmonia do diferente. O que ressalta, portanto, é o discurso

da diferença ou a reflexão crítica sobre o estatuto dessa diferença, sobre

sua natureza, seu sentido, sua intencionalidade e sobre os efeitos pretendi­

dos — e não um discurso da originalidade. Não teria dúvidas em ver em

És um Prometeu não uma peça de ocasião, mas uma declaração progra­

mática. Eventualmente poderia ter sido mesmo motivado pela observação

do anónimo ouvinte, mas não é mera resposta a ela, que apenas dá mar­

gem a uma autêntica declaração de intenções como é raro possuirmos de

outros escritores, pelo menos expressa com tamanha coerência e clareza.

Na mesma direção desenvolve-se a laliá Zêuxis ou Antíoco, confirman­

do, desenvolvendo ou esclarecendo os citados pontos de vista. Em especial,

ressalta, neste caso, o aprofundamento da reflexão a propósito da questão

da novidade em vista dos riscos de reduzir-se a ela todo o valor da obra.

Não há referências à mistura da comédia com o diálogo, mas se confirma

sobejamente que a produção de Luciano é percebida como algo de extre­

mamente novo pelo público que, como das vezes anteriores, é o ateniense:

«Há pouco eu, tendo-vos mostrado o discurso, me retirava para casa e, aproximando-se de mim muitos dos ouvintes — pois nada impede, creio, dizer também isso a vós que já sois amigos — aproximando-se então cum-primentavam-me e pareciam admirados. E acompanhando-me muito de um lado e de outro gritavam e louvavam-me a ponto de fazer-me corar, de medo que pudesse ficar aquém dos elogios Pois o principal para eles con­sistia nisto — e todos uma só e mesma coisa manifestavam: o caráter de meus escritos ser estranho e muita neles ser a inovação. Mais que isso, é melhor dizer o que falavam: ó que novidade! Héraclès! que extraordinário! Engenhoso homem! Ninguém poderia dizer algo de mais novo com rela­ção à concepção! E eles muitas coisas assim diziam, como que movidos claramente pelo ouvido.»35

A questão da estranheza ixénerí), da inovação (neoterismón) e da

novidade (kainótetos) impõe-se assim à reflexão de Luciano em vista do

efeito que a audição de seus escritos provoca no público. Não vejo pois

como pôr em dúvida esse fato, no nível da descrição dos efeitos da recep­

ção da obra, não encontrando nos textos nada que permita entendê-la

35 Cf. a fala do público: «"Í3 zãç Kaivózrjzoç! HpaxXsic, zr\ç napaSoÇo-Xoyíaç. Eô[iiJxavoÇ ãv9pa>noç. OvSèv ãv TIç sïnoi irjç ênivoíaç vsapmze-pov. oi iisv roíavra noXXà sXsyov, á>ç sKSKÍvrjvzo SrjXaSi] òKò xrjç àKpoáascoç.» (Zêuxis 1)

418 JACYNTHO LINS BRANDÃO

como embuste36. A questão não se resolve, contudo, nesse estágio, mas se

torna problemática justamente na tensão entre a intenção e a recepção, ou,

noutros termos, no embate entre as expectativas de recepção alimentadas

pelo autor e a reação — ou seja, a recepção efetiva — observada objeti-

vamente. Está pois em jogo o sentido da obra, que nasce da tensão entre

intencionalidade e as diversas possibilidades de leitura. No testemunho do

autor que registra a reação do público e — mais ainda — na reflexão

sobre essa reação, temos um precioso exemplo de crítica circular, o que

torna extremamente complexa a questão do sentido pois, além dos dados

fornecidos pela produção e pela leitura, intervém no processo o dado da

leitura de Luciano sobre a leitura de seu público.

O problema levantado, como em Es um Prometeu, é o da redução do

valor da obra à mera novidade. Observe-se bem: mais uma vez, não se

nega que a novidade seja parte integrante da mesma. Mas não se admite

que ela se reduza a isso, que se leia nela apenas isso, o que leva às preci­

sões que o texto pretende estabelecer:

«porventura pois só esta graça há nas minhas coisas? que não sejam usuais nem caminhem conforme o comum aos outros? E, porventura, de palavras belas em si, conformes ao antigo cânon, ou de inteligência aguda, ou de certa penetração, ou de graça ática, ou de harmonia, ou de arte sobre tudo — disso está igualmente longe minha obra?» 37

De fato, o efeito da novidade (kainón) e da estranheza (xénon) é

fruto de uma leitura superficial e empobrecedora — pois, conforme a

declaração homérica, «o novo caminho é agradável para os ouvintes»38.

A novidade e a estranheza são dados efetivos na produção luciânica, mas

apenas como parte adicional39 do conjunto que pretende ter as qualidades

referidas acima. Em suma, para usar a própria figura escolhida pelo autor,

36 Parece-me assim redutora tanto a posição de R. HELM, op. cit., que desauto­riza as afirmações de originalidade - a quem segue J. BOMPAIRE, op. cit. - quanto a de MCCARTHY, op. cit., p. 6, que admite que Luciano finge depreciar o mérito da novidade unicamente para realçá-lo. A interpretação de M. CASTER, Lucien et la pen­sée religieuse de son temps, Paris, Belles Lettres, 1937, p. 386, parece-me mais ade­quada. Ver também B. BRANHAM, op. cit., p. 38-46.

37 «OVKOVV xovxo póvov %ápiEv xoïç Xóyoiç svscrriv, âxi prj avvrjOrj pr]Sè Kaxà xò KOIVOV BaSiÇsi xoïç ãXXoiç, ôvopáxwv Se ãpa KCCXôJV êv avxoïç real npòç xòv àp%aïov Kavóva auyKeinévcov f\ vou ôi;soç 0) 7tspi-voíaq Tivòç f) %ápiTOç 'ATTIKTJç t) àpu.ovíaç f) "céxvnç TTJç sep' ánaai, TOUTCOV Sé 7ióppa> ïcraç TOU^óV (Zeuxis 2).

38 Ibid. 2, cf. Odisseia I, 352. 39 «êv npoaQrjícriq polpa» (Ibid. 2).

O HIPOCENTAURO DE ZEUXIS 419

um hipocentauro, mas não um hipocentauro qualquer, senão o hipocentau-ro de Zêuxis.

O paradigma da pintura de Zêuxis dá margem a que se possa pensar mais agudamente toda a questão. Como Luciano ao escrever, aquele — o mais excelente dos pintores40 — tinha como característica marcante não pintar coisas comuns41, mas

«sempre procurava criar coisas novas e, algo extraordinário e estranho por­ventura concebendo, naquilo manifestava a acuidade de sua arte» 42.

Note-se bem: de fato, distingue Zêuxis de outros, faz dele «áristos graphéon», um elemento poético de diferença, mas que tem valor apenas porque dá margem à manifestação da akríbeia de sua arte. A necessidade dessa relação é que importa — ou seja: a diferença somada à capacidade de execução poética. Desse modo, a representação do hipocentauro de Zêuxis, como produto, corresponde ao que pretende ser a produção luciâ-nica: um achado novo, original, estranho, tratado com harmonia no todo, tanto no que concerne aos detalhes do quadro — a paisagem, o jogo de cores, etc. — quanto à delicadeza com que se ajuntam, nas figuras da família de centauros representada, as partes humana e equina:

«também a mistura e a junção dos corpos, naquilo em que se conjuga e se conecta ao feminino o equino, transpondo lentamente, e não de brusco, e mudando pouco a pouco, deixa oculto à vista ser ela conduzida do diferen­te ao diferente.» 43

Ao ser contudo apresentada a obra do pintor ao público, como após a apresentação do lógos luciânico, todos se põem a gritar maravilhados não com a perfeição do conjunto, mas com o estranho da idéia e a novidade da concepção44, o que determina a decisão de Zêuxis de levar de volta para casa o quadro, já que o público era incapaz de apreciar outra coisa que não a matéria (a argila, tòn pelón) e não a conformidade com a arte e

40 «ãpiaxoç ypaqiécav» {Ibid. 3). 41 «ià Koivà xavia OVK sypatpev» (Ibid. 3) 42 «áei Sè Kaivonoisïv snsipãro Kai TI dXXÓKorov áv Kai E,évov

êmvoíjaaç ên' sKsiq> xrjv áKpífisiav trjç TS%VTJç STisSeiKvvro» (Ibid. 3). 43 «Kai f) ni^iç Sè Kai âpp.oyij TCõV <ya>narœv, Ka6' 6 avvámstai

Kai avvSsïtai xã> yvvaiKeím ró íKIZIKÓV, f/pé/ia Kai OVK áOpómç USTafiaivovoa Kai éJC npoaaycoyrjç TpsKOjiévrj XavQávsi TTJV õy/iv SK Qazé-pov síç zò srspov onayonéviq» (Ibid. 6).

44 «r?7ç êmvoíaç rò E,évov ... yvá^rjv XTJç ypa(p7)ç á>ç véav Kai xoïç ëjinpocjOsv áyv&ra ovoav» (Ibid. 7).

420 JACYNTHO LINS BRANDÃO

a acuidade da execução45. A kainotomía, isto é, o abrir novos caminhos,

não passa pois de matéria prima em que deve manifestar-se tékhne e akrí-

beia. O contrário seria ter o sucesso de Antíoco, quando venceu os gálatas

apenas pela estranheza provocada por dezesseis elefantes postos na van­

guarda do exército: em nada dependeu a vitória da perícia bélica do gene­

ral, mas tão-somente do pavor provocado pelo desconhecido. O paradigma

de Antíoco, seguindo o de Zêuxis, delineia bem o processo de reflexão de

Luciano: de fato, recusa ele o efeito da mera novidade e pretende o da

matéria nova, compósita, trabalhada em harmonia. Se em Es um Prometeu

a figura do hipocentauro é negada como paradigma, por não constituir uma

soma harmoniosa capaz de produzir prazer estético, o hipocentauro de

Zêuxis, isto é, justamente o mítico ser cuja característica básica é ser com­

pósito46, oferece-se como modelo pela acção da tékhne e da akríbeia de

um artista definido como áristos. O que o pintor logrou na transição equili­

brada do diferente ao diferente é o que Luciano pretende erigir como valor

primordial de sua própria arte, ou seja, o extraordinário, o estranho, o dife­

rente apresentado em espetáculo pela mediação de uma arte acurada.

Está em jogo assim o próprio fundamento da atividade poética, isto é,

o estatuto do objeto como resultado de um processo de transposição e de

mediação: o poíema não é retrato, repetição de um objeto qualquer, mas o

produto de uma poíesis. Luciano, de fato, deseja que se tome como ele­

mento principal de fruição na obra as marcas dessa poíesis, não apenas seu

objeto — ou o barro que se modela. É significativo que o paradigma do

hipocentauro se tome justamente da obra de um pintor que, como artista

plástico, exercita sua poíesis como a atividade de plasmar materiais concre­

tos insuflando neles a perícia de sua arte. Pintando o inusitado, essa ativi­

dade plástica — equiparável portanto à de Prometeu modelador de barro

— deve fazer realçar justo os elementos poéticos, na medida em que nega,

ao tomar um objeto estranho, seu carater imitativo imediato, ou seja, incita

43 Cf. a afirmação do pintor: «oúroi yàp f^iãv ròv %-qXòv zfjç ré%vr)ç snaivovai, rãv 8è cc5 cpárcov si KaX&ç s%si Kai ícatà rrjv zé%vriv, ou noXbv noiovvrai Xóyov, áXXà napsvSoKipsï rrjv dxpiflsiav TCõV spycav fj trjç ÒKoQéaemç Kaivoropía» {Ibid. 7).

46 Esse dado é extremamente relevante, por ser ressaltado frequentemente, cf., por exemplo, XENOFONTE, Ciropedia VI, 3: «dos viventes, o que me parece mais invejável é o centauro, se existem centauros, porque planeja com inteligência humana, executa com as mãos o que tem de fazer, tem a celeridade e a força dum cavalo...» A afirmação é de Crisantes, que declara ainda que, tornando-se cavaleiro, «que serei eu senão um centauro cujas partes se podem desmontar e armar de novo?» (cito a tradução de J. BRUNA, São Paulo, Cultrix, 1965, p. 122).

O HIPOCENTAURO DE ZEUXIS 421

o público a não se perder na fruição do grau de realismo que a obra logre

alcançar, impõe a evidência do uso de um objeto de mimesis novo e origi­

nal a fim de deslocar a atenção do espectador do objetivo para o mimético

ou, em outros termos, para o poético 47. No exercício do pensamento crítico

sobre sua própria produção, Luciano pretende exatamente levar o leitor a

essa apreciação também acurada, na medida em que a akríbeia de sua arte

exige a akríbeia dos que dela fruem. De outro modo, restaria apenas a

alternativa de Zêuxis de encobrir o objeto, furtando-se aos riscos de uma

recepção equivocada. E esse risco, de fato, que leva Luciano a fazer acom­

panhar sua produção de uma outra produção de textos em segundo grau ou

de uma metaliteratura de feição crítica, nos moldes de um guia de leitura,

de juízo e de valoração. Luciano se põe como leitor de Luciano, aprecia e

assume mesmo o ponto de vista do público enquanto seu outro, o outro de

sua obra, esse outro autor que é o crítico.

Essa atividade só é possível por situar-se num contexto em que a

reflexão crítica sobre a literatura já tivera suficiente desenvolvimento,

realçando os processos de leitura. O hipocentauro de Zêuxis aponta assim

para dois ângulos: de um lado, para aspectos da produção, ou para a fun­

ção poética da obra; de outro, para aspectos de sua recepção48. A passa­

gem harmoniosa do diferente ao diferente, que ele advoga ter regido a

composição de seus textos, deve repetir-se na passagem do produto para o

público, a fim de que a função estética possa vir a realizar-se. O exemplo

47 Cf. Zêuxis 12: «áXX' Sn pèv õijXsia 'InnoKsvxavpoç ysypap.ij.evr], zovzo póvov sKnXrjppovrai tzai &onsp sari, KCCIVÒV KO.1 xspáoiiov õoxeí aÛToïç. rà õè ãXXa párr/v ãpa rã ZsvÇiSi jtSTioírjzai; áXX' ov páxrjv -ypacpiKoi yàp vpsïç Kai psrà réxvrjç sicaa-za ópãrs». Não adoto a teoria da mimese proposta por J. BOMPAIRE, op. cit., pois parece-me reduzir excessivamente o processo mimético e seus aspectos imitativos (imitação da realidade, imitação de outros autores, etc.). Para a crítica a essa posição, no que diz respeito à obra de Luciano, ver B. BALDWIN, Studies in Lucian, Toronto, Hakkert, 1973. Entendo que a mimesis grega não corresponde exatamente à imítatio dos tratadistas romanos; na linha de L. C. LIMA, Mimesis e modernidade, Rio de Janeiro, 1980, concordo que, ao contrário da imitatio, é próprio da mimesis provocar distanciamento e estranhamento. Tratei desses problemas em Identidade cultural e crítica literária na Antiguidade, 2° Congresso ABRALIC: Literatura e memória cultural, Belo Horizonte, 1991, p. 634-644; e Mito e literatura na Grécia: a questão da mimese, in Mito religião e sociedade (Atas do II Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos), São Paulo, 1991, p. 9-35; ainda em A poética do hipocentauro, p. 40-135.

48 Utilizo os conceitos e terminologia da Escola de Constança, especialmente os de H.R. JAUSS, Asthetische Erfahrung und literarische Hermeneutik, Milnchen, W. Fink, 1977, na distinção das três funções básicas da obra literária: a poética, a estética e a catártica.

422 JACYNTHO LINS BRANDÃO

do hipocentauro de Zêuxis serve pois a dois propósitos: de um lado, num sentido positivo, como paradigma de sucesso poético; de outro, negativa­mente, como modelo de fracasso catártico, demonstrado na ação do pintor ao recusar à obra sua intenção comunicativa, furtando-a à visão do públi­co, e confirmado definitivamente pelo fato de ter-se perdido o próprio ori­ginal (tò arkhétyporí) do quadro, ao ser enviado a Roma por Sila, em con­sequência de naufrágio ocorrido no cabo de Maléia49. Ora, o efeito da novidade sobre o público cria justamente o risco do fracasso comunicati­vo, gerando atitude similar à dos egípcios diante dos prodígios de Ptolomeu ou dos gálatas diante dos elefantes de Antíoco: não se aprecia o objeto de arte, apenas se reage de modo impulsivo diante dele ou, noutros termos, a estranheza impede a contemplação e a fruição estética.

Não se busca, assim, uma poética do diferente a qualquer custo: um caminho novo de fato sempre agrada, mas não atende, por si só, às aspira­ções do projeto poético de Luciano. O caminho é novo, sem dúvida. Como se afirma em És um Prometeu e em Âmbar, a poética luciânica tem a marca da diferença. Essa marca estaria, em princípio, no fato de não enquadrar-se em qualquer dos géneros existentes, ou seja, de ser surpreen­dente em vista das expectativas alimentadas pelo público a que se dirige. Ajuntando o diferente ao diferente, o diálogo filosófico à comédia, Luciano cria um produto compósito, em tudo semelhante a um hipocen­tauro ou ao homem de duas cores de Ptolomeu. Esse mesmo produto, contudo, é em tudo dissemelhante dessas entidades que têm na estranheza apenas seu valor de atração. De fato, o camelo de Ptolomeu e os elefantes de Antíoco são vistos como compósitos só porque se apresentam entre egípcios e gálatas, respectivamente, ou seja, são estranhos porque se encontram deslocados espacialmente, sendo na verdade corpos unos e, da perspectiva de um outro próprio, em nada surpreendentes. Seu valor é relativo, portanto.

O diálogo-comédia de Luciano tem, por seu lado, a natureza essen­cialmente híbrida do hipocentauro: é na mistura que reside o que há nele de original, mais que na estranheza ou na novidade. Ele é misto, híbrido, compósito nesse contexto do próprio, logo, não totalmente outro, mas um outro próximo ou um outro habitual. Desde eras muito antigas, em espa­ços onde os Gregos se haviam habituado a reconhecer as marcas de sua propriedade — como no templo de Zeus em Olímpia ou nos mitos de

Cf. Zêuxis 3.

O HJPOCENTAURO DE ZEUXIS 423

Héraclès — representavam-se centauros em pedras e em palavras. O cen­tauro, portanto, diz algo sobre o que é ser grego, ainda que através da visão terrorífica de um ser disforme em luta com o próprio, como na cena de Olímpia. Também o diálogo e a comédia têm essa função de reconhe­cimento, logo, o diálogo-comédia, como um hipocentauro (ou homem-cavalo), não se enquadra no estatuto do totalmente outro, mas insere-se na esfera do próprio em função de embate, de disputa, de agón, de zelos. Na esfera do inclassificável que se classifica através de termos compostos — como spoudaiogéloion, diálogo-cômico, etc. — ele encontra no composto, na mistura e na soma sua própria classificação50.

A classificação como composto entretanto não diz ainda tudo: a har­monia e a arte que permite a passagem do diferente ao diferente é que, enfim, o institui como produto estético, como poíema e como mímema. O processo mimético assume assim grau máximo e a perspectiva de ino­vação depende mais dele que da argila que fornece o objeto. Ou seja, mais que o hipocentauro, interessa a arte de Zêuxis; mais que a mera soma de diálogo e comédia, está em causa a akríbeia de Luciano. Caso contrário, sua obra deveria sofrer as mesmas restrições levantadas contra as dos historiadores das guerras párticas, dos filósofos e dos retores que desajeitadamente misturam o diferente ao diferente sem preocupação de harmonia, coesão e sentido51.

Gostaria de insistir, circularmente, ainda que correndo o risco da repetição, que os textos considerados devem pertencer à primeira fase da atividade literária de Luciano em Atenas. São portanto produtos de refle­xão sobre uma determinada opção estética e, ao mesmo tempo, termos de profissão de fé. Demonstram suficientemente o grau de domínio de Luciano com relação às opções que efetua e aos efeitos que busca. Diante disso, é irrelevante se o caráter de suas obras é totalmente original ou se

50 Sobre o género sério-cômico na Grécia, ver B. BRANHAM, op. cit., p. 26 ss. Observa-se que o termo grego spoudaiogéloios é registrado parcamente (Estrabão, Diógenes Laércio e uma única inscrição são as reduzidas fontes). O uso pouco difundi­do do termo não deve levar a conclusão relativa à pouca importância ou difusão do género, embora os textos nem sempre tenham sido conservados (cf. as notícias sobre uma produção razoável, ligada ao cinismo). Essa tradição foi o que M. BAKHTIN, Problemas da poética de Dostoïevski, Rio de Janeiro, Forense, 1981, tentou rastrear com a teoria da carnavalização. A crítica antiga passa ao largo do spoudaiogéloios tal­vez porque, como lembra BRANHAM, op. cit., p. 43, esse tipo de produção contraria toda a tradição que se construíra com base na «conception of literary unity as a reflec­tion of natural unity».

51 Cf. Como se deve escrever a história, Hermótimo, Mestre de retórica, Lexifanes, etc.

424 JACYNTHO LINS BRANDÃO

depende de outros modelos. Ela inclui como elementos básicos de compo­sição o xénon, o kainótes, o terástion, o allókoton — o que não pode ser posto em dúvida, a partir do testemunho unânime de autor e público. Isso se obtém pela mescla da diferença à diferença, como ocorre na figura do hipocentauro, em que os elementos que se somam na composição da figu­ra híbrida não se reduzem ao estado de indiferença. Mas a diferença, pre­servada em seu estatuto, não se toma como elemento de disjunção, antes sublinha a arte e demonstra a possibilidade da passagem harmoniosa do diferente ao diferente52. Não é qualquer hipocentauro que se erige como modelo, mas o hipocentauro de Zêuxis.

Por outro lado, se a realização desse hipocentauro é perfeita em ter­mos de produção, a atitude do pintor é falha em termos da recepção da obra. Ao invés de voltar atrás em sua opção estilística, como Zêuxis ao ocultar a obra, Luciano pretende guiar o público ministrando-lhe a pers­pectiva do que deve ser uma apreciação adequada, recusando assim a ati­tude de Epimeteu, o que sabe depois e se arrepende53. Agindo desse modo, mais que criticar as falhas de fruição observadas no passado, preo-cupa-se com o futuro — daí os textos apresentarem, de fato, um conteúdo programático. Não se coloca para ele a opção fácil de ocultamente mas, pelo contrário, deseja que sua obra seja digna do público54, o que supõe assumir os riscos que comenta, advindos da passagem da mesma para os recebedores, do diferente ao diferente, portanto, num segundo nível. Através dessa metaliteratura, ele pretende provocar, também com relação ao percurso da obra até o público, uma passagem em harmonia.

Trata-se, como se vê, de uma opção poética complexa, não apenas do caminho fácil que é o novo. O discurso luciânico não pretende o estatuto do discurso historiográfico, filosófico e retórico, cuja propriedade se assenta num procedimento mimético uno. A propriedade do discurso luci­ânico reside justamente numa certa mimesis da diferença, obtida pela recusa da indiferença sem perda da harmonia, ou seja, pretende que seja possível fugir dos limites tradicionalmente estabelecidos pelo próprio — os quais regulam as expectativas do público — sem perder a propriedade que garante o valor da produção poética.

32 Veja-se, sobre este aspecto, o estudo de K. KORUS, The Motif of Panthea in Lucian's Encomium, Eos 69, p. 48-56, 1981, em especial a reflexão sobre a crítica ao procedimento homérico que, comparando partes de seus heróis aos deuses, desmembra-os, em oposição ao projeta luciânico de soma harmoniosa de elementos diferentes con­jugados num objeto uno.

53 És Pr. 7. D4 «sirj /uóvov ã£,ia rov 9sázpov Ssitcvósiv» (Zêuxis 12).