O homem como personagem: a estetização da existência

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO DE JANEIRO PUC-RIO

Maria Cecilia Talavera Bastos

O homem como personagem a estetizao da existncia

Dissertao de Mestrado

Dissertao apresentada ao programa de PsGraduao em Comunicao Social da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social.

Orientador: Prof. Miguel Serpa Pereira

Rio de Janeiro, fevereiro de 2005

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO DE JANEIRO PUC-RIO

Maria Cecilia Talavera Bastos

O homem como personagem a estetizao da existncia

Dissertao de Mestrado

Dissertao apresentada ao programa de PsGraduao em Comunicao Social da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social.

Prof. Miguel Serpa Pereira Orientador

Prof. Andrea Frana

Prof. Tunico Amncio

Prof. Everardo Rocha (suplente)

Rio de Janeiro, fevereiro de 2005

Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora e do orientador. Maria Cecilia Talavera Bastos Graduou-se em Comunicao Social na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC-Rio em dez/2000. Especializouse em Comunicao e Imagem na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC-Rio, em set/2003.

Ficha Catalogrfica

Talavera Bastos, Maria Cecilia Ttulo do Trabalho: O homem como personagem a estetizao da existncia. Maria Cecilia Talavera Bastos; Orientador: Pereira, Miguel Serpa Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Comunicao Social, 2006. 1 v., 100 f.: il. ; 29,7 cm 1. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicao Social Inclui referncias bibliogrficas. 1. personagem, 2. dramaturgia, 3. televiso, 4. documentrio, 5. reality show., 6. identificao. Pereira, Miguel S. (Miguel Serpa). II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Comunicao Social. . Ttulo.

Agradecimentos

minha me, pela educao, carinho e apoio de todas as horas. Ao meu orientador Miguel Pereira, pela parceria para a realizao deste trabalho. PUC-Rio, pelo auxlio concedido, sem o qual este trabalho no poderia ter sido realizado. Aos professores da Comisso Examinadora. A todos os professores do Departamento pelos ensinamentos e pela ajuda. A todos os funcionrios do Departamento, especialmente Marise, pela pacincia e suporte. Aos meus colegas da PUC-Rio, especialmente s minhas amigas Regina e Vanessa, sem as quais este trabalho no seria possvel. Aos meus colegas de trabalho, por todo apoio, pacincia e compreenso. Aos meus amigos que contriburam diretamente neste trabalho: Bianca, Clarissa, Ins, Ingrid, Joanna, Lysandro, Luiz, Mariana, Rafael e Renata. A todos os amigos e familiares que de uma forma ou de outra, me estimularam e me ajudaram.

ResumoBastos, Maria Cecilia Talavera. Pereira, Miguel Serpa. O homem como personagem a estetizao da existncia. Rio de Janeiro, 2005. 117p. Dissertao de Mestrado Departamento de Comunicao Social, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

Este trabalho trata do personagem, partindo das origens desta figura, com os estudos de Aristteles, seguindo por seu papel na indstria do entretenimento, principalmente no que diz respeito ao star-system. Segue a anlise do cinema documentrio, das reportagens de televiso e, finalmente do reality-show como um gnero novo, capaz de atrair pela identificao, um grande pblico. abordada tambm a construo de um personagem miditico e a dinmica para encontr-lo e selecion-lo. No captulo final feito o estudo do reality Big Brother Brasil, especialmente de sua quinta edio, relacionando-o com a teoria descrita anteriormente e a partir da fala do vencedor do programa, Jean Wyllis, e de pessoas que trabalham no mesmo.

Palavras-chavePersonagem; dramaturgia; televiso; documentrio; reality-show; identificao.

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AbstractBastos, Maria Cecilia Talavera; Pereira, Miguel Serpa (advisor). The man as a character estetization of existance. Rio de Janeiro, 2005. 117p. Msc. Dissertation Departamento de Comunicao Social, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

This work is about the character, and it begins from his origins, with the studies of Aristoteles, going to his roll in the entertainment industry, especially regarding the star-system. Next we analise documentary cinema, television reports and, finally, the reality-show as a new genre, capable of atracting, through identification, a large number of viewers. This work is also about the construction of a mediatic character and the dymanics to find him and select him. The final chapter, is a study about the reality-show Big Brother Brasil, especially the fifth edition, relating it to the theory described before and through the interview of the winner of the show, Jean Wyllis, and part of the crew.

KeywordsCharacter; drama; television; documentary; reality-show; identification

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Sumrio1. Fade In 2. Plano Geral 2.1. Dramaturgia 2.2. Indstria do entretenimento e star-system 2.3. Cinema Documentrio 2.3.1. Cinema Direto 2.3.2. Cinema Verdade 2.4.Televiso 2.4.1. Reportagens o desenvolvimento das tecnologias 2.4.2. Reality-shows 3. Panorama 3.1. Confuso dos termos pessoa e personagem 3.2. Mscaras 3.3. Gnese do personagem e sua transformao em produto de mdia 3.4. Pode-se representar o real? 3.5. O que leva uma pessoa a se deixar filmar 3.6. Dinmica de casting 3.6.1. Muvuca 3.6.2. Agora ou Nunca 4. Close up estudo do Big Brother Brasil 5. Fade out Bibliografia Anexos 56 58 64 68 73 78 95 99 104 36 48 48 50 52 08 14 14 17 21 23 25 27 31

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1. Fade-inA luz fascina o ser humano. Desde o incio dos tempos o homem busca a claridade: o xtase pela descoberta do fogo, a adorao ao sol, lua, s estrelas O mito da Caverna, descrito por Plato no Livro VII da Repblica, tambm ilustra bem esta ligao do homem com a luz. Ele descreve a seguinte situao: uma caverna subterrnea onde, desde a infncia, seres humanos esto aprisionados. Presos de forma a permanecer sempre voltados para a frente, e tendo na entrada da caverna uma fogueira, enxergam na parede do fundo da caverna, para a qual esto virados, as sombras de objetos e pessoas que passam em frente fogueira. Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras so as prprias coisas. Plato pergunta: o que aconteceria se algum prisioneiro fosse libertado e colocado para fora da caverna? Num primeiro momento, ficaria completamente cego; depois, diz ele, acostumando-se com a claridade, veria as prprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, no vira seno sombras de imagens. Fazendo deste mito uma metfora da contemporaneidade em relao a ligao dos homens com as imagens, possvel pensar que sair da caverna e se ver no foco da luz corresponde se tornar visvel, se reconhecer e ser reconhecido. Atravs dos tempos o homem buscou aparatos que o ajudassem a se manter no foco da luz, por assim dizer. Desenvolveu, atravs do estudo da tica e da construo de aparelhos, a tcnica da fotografia, que a representao de um momento, de um lugar, de uma pessoa, escrito com luz. Assim como a parede da caverna de Plato serviu como suporte para as primeiras imagens vistas por aqueles homens das sombras, a pelcula fotogrfica e

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o papel na qual as fotografias eram impressas serviram como meio de difundir aquelas imagens repletas de informao e sentido. Pode-se dizer que um grande sentido da imagem a busca pela eternizao, pelo prolongamento daquele instante no qual o objeto esteve exposto claridade. Depois veio o cinema, que colocou a fotografia em movimento, ajudando a eternizar ainda mais situaes e pessoas. O cinema, medida em que foi se desenvolvendo, aliou simples sequncias de imagens um sentido narrativo e seu potencial tanto comunicacional quanto comercial se multiplicou, fazendo com que este se transformasse em um importante veculo de comunicao, capaz de mobilizar, atravs das imagens, pessoas em todo o mundo. A televiso trouxe nova revoluo em termos de aparato audiovisual. Conseguiu, atravs da tecnologia de pontos iluminados que juntos formavam a imagem captada, levar o encantamento das imagens em movimento para dentro das casas das pessoas. Com isso conseguiu potencializar a abrangncia do cinema, desenvolvendo diversos gneros capazes de atrair a ateno do pblico. Um destes gneros televisivos o reality show, cujo objetivo lanar um foco de luz constante e incessante sobre pessoas escolhidas para participarem daquela situao. Descobrir quem so estes personagens e porque eles aceitam ficar to expostos aos olhos de todos um dos objetivos deste trabalho. Todos os meios de comunicao descritos acima e outros foram responsveis pela globalizao da sociedade. Esse processo provocou mudanas no modo de pensar a vida em sociedade e na forma das pessoas se relacionarem. Pode-se dizer que hoje, atravs das imagens propagadas pelas mdias, que os sujeitos se constrem e se afirmam enquanto atores sociais.

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Se atravs da imagem que o sujeito se identifica e se relaciona com o outro, ter esta imagem estampada e reproduzida em um veculo de mdia aumenta o poder de reconhecimento deste sujeito, que passa a ser visto por muitos. Para chegar a tal ponto neste trabalho, ser importante passar pelo estudo da estrutura aristotlica de dramaturgia, pois foi Aristteles um dos primeiros pensadores a dedicar uma anlise detalhada e especfica sobre o personagem e sua importncia na construo de uma narrativa. A partir da, ser analisada a indstria do entretenimento e sua apropriao ficcional da estrutura de Aristteles. Esta indstria carregou o personagem de um sentido mtico, sobre-humano, capaz de influenciar e mobilizar pessoas de todo o mundo. Para embasar este pensamento, o estudo de Morin sobre os olimpianos ser fundamental. No item seguinte, ser abordado o cinema documentrio e sua relao com o personagem. Aps uma pequena introduo tratando dos primeiros filmes do gnero, estudarei duas vertentes cuja estrutura bastante similar, principalmente em termos tcnicos, com a realidade atual do telejornalismo. Este ser o prximo tpico, aps um breve resumo sobre o surgimento da televiso e seu histrico, tanto no mundo quanto no Brasil. Falarei tambm sobre o nascimento da TV Globo, a maior rede brasileira e a quarta do mundo. Ela responsvel pela exibio de vrios reality-shows de sucesso, inclusive do Big Brother Brasil, objeto de anlise no ltimo captulo. Alm disso, sua importncia para este trabalho tambm se explica pela facilidade conseguida na simples meno do seu nome: para o brasileiro, aparecer na Globo no aparecer em qualquer canal, mas no mais conhecido e assistido. Ao falar das reportagens, sero enfatizadas as novas formas de interao entre as pessoas proporcionadas pelo aparato televiso e a sensao de

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proximidade proporcionada pela transmisso ao vivo do telejornalismo. Logo em seguida, esta sensao, levada para o entretenimento, coloca o pblico em situao de voyeur da vida e da intimidade alheia. Os reality-shows surgem como novo gnero, capazes de transformar o homem comum em personagem principal, com a promessa ou a iluso de faz-los compartilhar a mesma tela que mostra as celebridades que eles tanto admiram e se espelham. Depois de descrever um pequeno histrico deste tipo de programa, ser observado o motivo pelo qual o pblico se sente to atrado por ele. No captulo intitulado Panorama, abordarei os motivos para a confuso entre os termos pessoa e personagem; a questo dos arqutipos, responsveis pela estruturao das narrativas de forma a deixar bem claro para o pblico a funo de cada personagem no enredo; e as mscaras, tanto fsicas como simblicas, tais como as mscaras sociais, cujos moldes so fornecidos em grande parte, na atualidade, atravs das mdias. A partir da, ser tratado o surgimento do que se convencionou chamar de personagem, um ser humano comum que constri a si mesmo diante das mdias, de uma maneira X ou Y, por compreender o funcionamento e o papel destes veculos, a expectativa do outro em relao a ele e a sua prpria expectativa em relao ao que pensa de si. Ser discutido neste mesmo captulo a possibilidade de se representar o real e um outro ponto muito importante para o estudo do personagem audiovisual: o porqu se deixar filmar. No item seguinte, na tentativa de unir o universo da prtica profissional com o dos estudos tericos, achei necessrio apresentar como se chega a um personagem e quem o encontra. Um personagem fruto da intensa busca do pesquisador de personagem, figura muitas vezes desconhecida,

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bem como as caractersticas de seu trabalho. Tentarei ilustr-las com minha experincia profissional ao exercer esta funo, tarefa que tive na TV Globo, a partir de 1996. Alis, foi justamente esta experincia profissional que me levou a escolher o estudo deste tema. Sempre me causou curiosidade entender porque a maioria das pessoas se mostravam to disponveis ao serem abordadas na rua por um estranho e perguntadas sobre sua vida. Realmente devo levar em considerao que eu me apresentava como representante da TV Globo, o que me colocava na posio daquela que pode abrir as portas para a fama, guardadas as devidas propores. A grande maioria no se incomodava de contar detalhes da vida, davam endereo, com quem moravam etc. Ningum pensava o que eu poderia fazer com aquelas informaes sobre a rotina daquela pessoa ou a possibilidade e o desejo de aparecer era maior? Durante a conversa mesmo, j comeavam as brincadeiras entre o entrevistado e as pessoas sua volta: Vai para a Globo, n? Vai ficar famoso!, s quais as pessoas reagiam com uma orgulhosa vergonha. importante ressaltar que um dos grandes desafios deste trabalho ser tratar de um tema to pouco explorado e to subjetivo como o personagem. Tentarei exemplificar a dinmica de casting, relacionando situaes vividas na prtica com a teoria explicitada nos capitulos anteriores. A anlise final, no ltimo captulo, sobre o Big Brother Brasil pretende dar uma panorama de todas as etapas envolvidas no mecanismo deste novo produto televisivo. Desde a seleo dos personagens e sua construo, por si prprios e por um discurso repleto de referncias dramatrgicas, at os mecanismos de conquista da audincia, seduo, interesses comerciais etc.

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Entrevistei, para tal, o vencedor da quinta edio do programa, Jean Willys. Sua fala vai permear toda a descrio do programa, somada fala de um editor e de parte da equipe de pesquisadores do reality para, assim, tentar explicar este fascnio do pblico pela prpria imagem refletida na televiso, por estar sob a luz dos holofotes, mesmo que seja atravs de um outro que poderia ser ele.

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2. Plano Geral2.1. Dramaturgia Mais de dois mil anos nos separam de Aristteles, mas este j havia discutido em sua potica as tcnicas narrativas que possibilitam desenvolver o enredo como um contexto dramtico sustentado por personagens em conflito. Ele dizia que o homem tem uma tendncia instintiva para a imitao e esta seria a base da ao teatral. Esta ao teatral ou ao dramtica aquilo que impulsiona o drama para a frente, aquilo que muda a situao, produz movimento. o evoluir de acontecimentos e emoes que caminham para um fim. Para a apresentao de um personagem o autor deve se preocupar com: o visual (fsico), a aparncia externa do personagem, que pode influenciar decisivamente na ao (como no caso do personagem ser deficiente fsico, por exemplo sua atitude vai ser profundamente determinada por seu exterior); o nome, que aproxima o personagem do pblico, a questo social, onde se coloca o personagem em relao aos outros homens: profisso, situao econmica, posio na famlia, ligaes amorosas, amizades, crenas; e o modo de ser (psicolgico), suas qualidades e defeitos, humor, afetividade, pode-se dizer tudo aquilo que se convencionou ligar a alma (psique) (PALLOTINI, 1989, p. 65). Todos estes fatores so estruturados para que se construa um ser humano fictcio, coerente e convincente de sua existncia. Segundo Beth Brait, o prprio Aristteles ao pensar sobre o conceito de personagem, aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais: a personagem como reflexo da pessoa humana; a personagem como construo, cuja existncia obedece s leis particulares que regem o texto.( BRAIT, 1987,

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p.29). A partir da possvel perceber de onde vem a confuso que se faz entre pessoa e personagem, questo esta que discutiremos mais frente, no captulo 3. Aristteles falava que, para a construo do personagem, preciso combinar ethos e diania carter e pensamento, pois isso que vai explicar a natureza de seus atos. O pensamento o ativador da ao do personagem, sua vontade, sua funo; o carter so os traos contidos no personagem que o fazem se relacionar com o pblico afetos, piedade, raiva etc. Uma forma de fazer esta unio de carter e pensamento de forma lgica em em personagem atravs do que a dramaturgia clssica chamou de arqutipos. H uma diviso dos personagens em figuras-chaves, em tipos, facilmente reconhecidos pelo pblico. Esta tipologia, explicada por Christopher Vogler, por exemplo, em seu livro A jornada do escritor, subdivide os personagens de acordo com seus atributos conforme o personagem encarne este ou aquele aspecto, pertencer a este ou aquele arqutipo. A determinao de um arqutipo ajuda a construir um perfil mais consistente, criando unidade entre a psicologia do personagem (seu modo de vestir, de falar, o ambiente que o cerca etc) e a reao que este causar no pblico. Pode-se dizer que o arqutipo o ncleo estvel da identidade do personagem. Mas ele no fixo, pelo contrrio: a partir de uma nica matriz arquetpica possvel criar um nmero infinito de variaes na construo de personagens em uma histria. Este tema ser abordado mais frente, no captulo sobre mscaras. Aristteles fala do teatro, mas possvel utilizar suas noes de personagem para outras formas de expresso como a pintura, a televiso, o cinema e seus derivados.

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No cinema, por exemplo, atravs da narrativa, o espectador se transforma em mltiplos e vive possibilidades que nunca ocorreriam na vida. Em uma fico, com uma cena de assassinato: possvel ter a vivncia do desespero de quem acabou de matar, depois o arrependimento que veio em seguida. A experincia de matar uma pessoa, poucos tero, no entanto possvel trazer para a existncia pessoal aquela experincia que foi lida, aquele sentimento, seja de quem morreu, seja de quem matou. A dramaturgia , realmente, mais visvel na fico, mas acontece tambm no documentrio, onde, por exemplo, cartelas explicativas, imagens da cmera ou a prpria fala do entrevistado se encarregam de apresentar para o espectador aquela situao ou entrevistado. Na televiso, o maior smbolo da dramaturgia a novela, mas em relao aos reality-shows, tambm possvel ver claramente os indcios dramatrgicos. No reality-show, so os vts de apresentao somados fala dos participantes que constroem os personagens. A arte possibilita adquirir vivncias que no se viveu. E isso indispensvel ao homem. Sempre se achou que o homem gostava de ouvir histrias pela mera aventura, pelo encantamento da histria em si, mas as pessoas procuram as histrias para enriquecer sua experincia de vida e para ver como vive o outro. A histria revela, portanto, a alteridade, que o outro em mim, e com isso enriquece a vida com a experincia do outro.

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2.2 Indstria do entretenimento e star-system O sculo XX foi a poca da modernizao acelerada, com o surgimento da eletricidade, por exemplo, que alimentava os bondes que transportavam as pessoas, e que iluminava as cidades permitindo que estas circulassem at tarde nas ruas. Os avanos tambm permitiram o desenvolvimento das tcnicas de impresso, que facilitaram a reproduo de fotografias em revistas, livros e jornais. Muitos destes avanos tinham por fim somente o entretenimento, que tambm ganhou fora por uma mudana no pblico: as condies trabalhistas se modificaram, deixando o cidado comum com menos horas de trabalho e com um salrio maior. Neal Gabler aforma que: Havia tambm uma nova atitude entre os trabalhadores, que acompanhou essas mudanas uma reao espiritual, como disse um historiador, contra as condies de embotamento da era da mquina. (GABLER, 1999, p.49). Isso permitia que o pblico freqentasse os lugares de entretenimento ao fim de um dia de trabalho, a fim de se divertir e deixar de lado os problemas e o ritmo do expediente. A segunda metade do sculo XX representou, portanto, uma grande transformao cultural no mundo: graas aos novos meios de comunicao como o cinema (que se fortalecia) e televiso (que vinha surgindo), a fronteira entre fico e realidade comeou a ser rompida. O entretenimento acarretou uma crescente valorizao do prazer, do riso, da felicidade. O cinema veio para solidificar esta busca; ele foi o veculo que, inicialmente, mais se aproximou da realidade da vida, o que incitava no pblico a busca pelo que estava representado na tela.nas imagens do filme, o espectador se via mais inteiro que nos hbitos da vida () Ou nos termos de Benjamin: as massas,

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que durante o dia eram submetidas alienao e mecanizao, noite encontravam sua vingana executada pelo ator, que afirmava sua humanidade diante do aparelho.(GUIMARAES, 2005, p.3 e 4)

Como a vida nem sempre se comporta como nos filmes, o cinema passou a representar o sonho. Como o sonho, ele evoca o inconsciente e favorece o prazer ao invs da realidade. O espectador do cinema observa porque a imagem em si mesma sedutora, maior do que a vida, um objeto do desejo. (TURNER, 1997, p.112). A prpria concepo da sala de cinema e a abertura para percepo a que se sujeita quando se entra para assistir a um filme j favorece este clima de sonho. O espectador est totalmente entregue aos estmulos visuais e sonoros vindos da tela.O cinema entrega o espectador potncia da imagem. Trana sua ateno num domnio imaginrio, produzindo nela uma mistura dosada de passividade, fascinao, siderao e curiosidade. (SAMPAIO APUD BARTUCCI, 2000, p. 46).

O cinema passa a ser o ambiente no qual os desejos dos espectadores podem se realizar. Isso gera a crtica de que o cinema captura o sujeito em sua mquina de prazer e o coloca num ambiente imaginrio que no corresponde realidade.No cinema, a imaginao fica menos alerta, mais passiva. Ela acredita e confia na tcnica. Executa suas atividades secretas apenas em cmera lenta e em outras reas. Espera que o filme faa o trabalho rotineiro. (CARRIRE,. 1995, p. 78.)

O reflexo deste comportamento a idealizao da vida, das relaes, de si mesmo. O cinema apresenta uma vida com um sentido incompatvel com o real, mas desta iluso que vem o prazer. Apesar de seu carter altamente tecnolgico, o prazer que o cinema oferece quase primitivo. Pensando nas categorias em que Freud dividiu o olhar, podemse obter as mesmas categorias no prazer que se obtm no cinema: prazer narcisista

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(ver a si prprio na tela), voyeurista (ver a imagem de outro na tela) e fetichista (exagerar o poder das coisas ou das pessoas para lidar com o medo que se tem delas). Todas oferecem os meios de identificao entre o filme e o pblico. O cinema tem lugar numa arena onde o prazer do pblico uma preocupao dominante. (TURNER, 1997: p. 13) A televiso tambm trabalha nestas mesmas bases: no conta com o ambiente perfeito como o cinema, mas est dentro das casas das pessoas, o que j uma grande potncia. Para assisti-la, no preciso nenhum esforo no preciso se arrumar, trocar de roupa, se deslocar para chegar at ela, como acontece com o cinema. Ela nos acompanha durante as refeies, enquanto se est fazendo outra atividade, uma tarefa domstica, por exemplo nos faz companhia. O poder de penetrao de seu contedo , portanto, to intenso ou maior do que o da indstria cinematogrfica (at porque a TV tambm exibe os filmes), e o prazer que esta oferece tambm. Um motivo de enorme atrao dos espectadores, tanto do cinema quanto da TV, so os astros e estrelas. A presena ou no de um determinado ator pode ser decisiva na escolha de um programa pelo pblico. Edgar Morin, em seu livro Cultura de massas no sculo XX, chamou estas vedetes da imprensa de novos olimpianos. Eles so os grandes modelos de personalidade a serem seguidos na sociedade formada pela cultura de massa. Na sociedade onde a mdia predomina, no se busca mais a identificao ou projeo em entidades mitolgicas como os deuses do Olimpo da Grcia Antiga, e tampouco em santos e imagens religiosas, mas sim em escolhidos da mdia:No encontro do mpeto do imaginrio para o real e do real para o imaginrio, situam-se as vedetes da grande imprensa, os olimpianos modernos. Esses olimpianos no so apenas astros de cinema, mas tambm os campees, prncipes, reis, playboys, exploradores, artistas clebres () O olimpismo de uns nasce

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do imaginrio, isto , de papis encarnados em filmes (astros), o de outros nasce de sua funo sagrada (realeza, presidncia), de seus trabalhos hericos (campees, exploradores) ou erticos (playboys, distels). (MORIN, 1967, p.105)

O que acontece que, para aumentar as relaes das estrelas com o pblico, preciso humaniz-las, preciso fazer com que os mortais participem da vida dos olimpianos. A imprensa de massa, ao mesmo tempo em que investe os olimpianos de um papel mitolgico, mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substncia humana que permite a identificao. (MORIN, 1967, p. 106/107). Os astros e estrelas tomam as pginas dos jornais, ostentando seus bens e inspirando no pblico a mesma admirao e aspirao pela fama e pelo que ela acarreta. A mdia cria uma aura em torno do que apresenta, e essa intensidade faz com que o pblico queira participar daquela magia, daquele momento. Isso traz a pessoa para o campo da emoo, o que as seduz e conquista. Com isso, os olimpianos passam a ser modelos para a vida, dramatizando para os mortais o que se deve querer para a vida.Fazendo vedete de tudo que pode ser comovente, sensacional, excepcional, a imprensa de massa faz vedete de tudo que diz respeito s prprias vedetes: suas conversas, beijos, confidncias, disputas so transmitidas atravs de artigos falatrios, flashes, como se o leitor fosse o voyeur de um grande espetculo, de um super-show permanente, cujos deuses seriam atores. Esse extraordinrio consumo da vida privada das vedetes caminha lado a lado com o desenvolvimento do setor privado da informao () (MORIN, 1967, p.99)

A informao eleva qualquer acontecimento e pessoa, mesmo que destitudos de significao, ao olimpo da mdia. Hoje, pode-se dizer que somos, ao mesmo tempo, atores e platia do grande espetculo que se tornou a vida. A aplicao deliberada de tcnicas teatrais em poltica, religio, educao, literatura, comrcio, guerra, crime, em tudo, converteu-os todos em ramos da indstria do

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entretenimento, na qual o objetivo supremo ganhar e satisfazer uma audincia. (GABLER, 1999, p.13) Esta teatralizao da vida pode ser percebida em vrios nveis. Nos noticirios dos telejornais, por exemplo, os fatos so tratados como enredos de filmes; nas revistas, os romances das atrizes so acompanhados como contedo de folhetins, com cada mudana, briga ou reatamento sendo publicados e relatados, dia aps dia. Hoje, para ser celebridade, basta ser captado por algum veculo da mdia. E a busca das mdias por personagens, seja de reality-shows, de reportagens, de filmes, um facilitador disto. So as pessoas comuns com uma participao maior no mundo do entretenimento. Pode-se dizer que os telespectadores deixam de ser apenas contempladores dos olimpianos e passam a poder ser os prprios olimpianos. Esta fama pode ser efmera, mas pode durar mais algum tempo, se a pessoa envolvida souber como se manter em evidncia.Ainda que o grande pblico constitua uma platia para o filmevida, ele tambm um participante ativo dele. Um segmento sempre crescente da economia americana dedica-se agora a projetar, construir e depois aprelhar os cenrios em que vivemos, trabalhamos, compramos e nos divertimos; a criar nossos trajes; a fazer com que nosso cabelo brilhe e nosso rosto cintile; a emagrecer nosso corpo; a fornecer nossos acessrios cnicos de tal forma que possamos nos apropriar do invlucro de celebridade, ainda que no de sua atualidade, para o filme-vida.(GABLER, 1999, p.15)

2.3 Cinema documentrio O primeiro filme documentrio a causar impacto foi Nannok of the North, de Robert Flaherty, lanado em 1922. Segundo Silvio Da-Rin: Seu filme inovava ao colocar os fatos que testemunhou em uma perspectiva dramtica: construa um

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personagem Nanook e sua famlia e estabelecia um antagonista o meio hostil dos desertos gelados do norte. (DA-RIN, 2004, p.46) Esta montagem, baseada na estrutura narrativa, facilitou a identificao do espectador com o personagem e acabou inaugurando uma nova vertente do cinema documentrio, independente dos cinejornais dos Lumire, que predominavam at ento. Depois de Flaherty, foi o escocs John Grierson que deu seqncia a este novo estilo de documentrio. Grierson percebia a importncia dos meios de comunicao de massa na formao educacional e poltica do indivduo, e para tal, procurava em seus documentrios dar significado social s situaes cotidianas retratadas. Mas no concordava com a idia defendida por Flaherty de heri individual. Ao contrrio dele, Paul Rotha (apud DA-RIN, 2004), outro importante documentarista ingls, acreditava que o personagem era sim um heri individual, o principal ator da civilizao, mas que deveria ser assim por seu prprio potencial comunicativo e no para atender a uma forma pr-determinada. Para DaRin (2004, p.83), o documentrio precisava satisfazer o desejo das platias de ver seres humanos e se identificar com suas emoes. Depois desta fase, o som chega ao cinema, mas sua captao era separada da imagem. Foi apenas com os cineastas do cinema direto e o cinema verit que se desenvolveu o som sincronizado com a cmera, o que possibilitou um grande desenvolvimento tecnolgico e de linguagem. Estas duas vertentes do documentrio so as que mais se aproximam com a nossa realidade atual de produo jornalstica e de TV de entretenimento. Elas tambm defendem o personagem como figura importante e sero explicadas abaixo.

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2.3.1. Cinema direto O cinema direto comeou a ser pensado por Robert Drew na dcada de 50. Ele pretendia reproduzir nos documentrios o frescor das fotografias espontneas que se viam nas revistas da poca (como a Life, por exemplo, na qual Drew trabalhava). Drew tambm queria levar o cinema para todo o mundo, para que as pessoas se conhecessem melhor. Percebeu que isso era possvel atravs da televiso, que j estava nas casas de vrias pessoas, mas que no tinha uma programao interessante. Os programas eram acompanhados de narrao, o que acabava se mostrando como uma verdade inquestionvel para o espectador tcnica que faz parte da tradio griersoniana do documentrio ingls, de pretenses sociais e didticas. Drew queria abolir isso. Ele chegou a fazer uma experincia na qual tirou o som de um programa televisivo e no conseguiu acompanhar o que estava sendo contado. As imagens, portanto, no diziam nada, apenas serviam para ilustrar um texto. Ao tirar a imagem e deixar apenas o som da narrao, o programa ficou claro. Ficou evidente para ele que os documentrios de televiso ainda eram documentrios de rdio, s que acompanhados de imagens. O cinema direto, portanto, nasce para a televiso, e tenta reformular sua gramtica (documentrios mais imparciais, equilibrados e, principalmente, objetivos, assimilando-se a linguagem do telejornalismo). Drew pra de usar as imagens como muletas para um texto, e faz com que elas contem a histria. A narrao passa a ser usada apenas para cobrir possveis lacunas deixadas pelas imagens.

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A idia bsica do cinema direto era filmar sem ensaios, roteiros ou encenaes, como se flagrasse a realidade. No se imagina o filme antes de sair para filmar, ou seja, no existe filme antes de ser efetivamente feito. As nicas decises tomadas antes so o tema e a unidade temporal do documentrio. Para se capturar a intimidade das pessoas sem perder a espontaneidade, o equipamento do cinema teve que ser todo reformulado (tambm para garantir a agilidade pretendida). Drew incumbiu alguns tcnicos desta tarefa. Liderados por Richard Leacock, um cinegrafista bastante prestigiado e a quem Drew admirava bastante, este grupo de tcnicos levou seis anos para desenvolver os equipamentos de udio e vdeo necessrios. A equipe de cinema direto tentava ser a mais invisvel possvel, para conseguir estar prximo do que precisava ser filmado. Os desafios eram diminuir a cmera, o gravador, e sincronizar imagem e udio sem utilizar a claquete. As novas tecnologias tornaram os equipamentos 85% mais leves (o que, consequentemente, acarretou na reduo da equipe de filmagem necessria). Enquanto isso, Robert Drew foi para Harvard estudar tcnicas de narrativa (storytelling). Queria desvendar a lgica dramtica existente nas situaes do mundo real e, atravs de uma edio bem feita, reafirmar este drama natural filmado pela cmera. Alm disso, aprendeu como fazer com que os personagens se desenvolvessem com o decorrer da histria, para que chegassem diferentes, modificados ao final do filme, atravs de uma tcnica presente em todos os grandes dramas da literatura, do cinema e do teatro: o arco do personagem. Uma exigncia do cinema direto era o acesso irrestrito. Assim, poderia mostrar os momentos de crise, base de sua linguagem. Estes momentos de crise do ao documentrio a tal lgica dramtica estudada por Drew. atravs da crise

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que o personagem se desenvolve e se modifica. Da a ausncia de perguntas, interferncias, trilhas e narrao. No so necessrias, diante da narrativa que a prpria realidade desenvolve.

2.3.2 Cinema Verdade O cinema verit, por sua vez, surge em 1960, com o filme Crnicas de um vero, do francs Jean Rouch, co-produzido com Edgar Morin. Eles aproveitam toda a evoluo da tecnologia de equipamentos para tambm fazer um cinema que buscava a verdade (da o nome deste movimento). Para estes cineastas, filmar significa provocar uma crise. A cmera procura o desconforto dos personagens para gerar a crise. A cmera no mais discreta, como uma mosca na parede, mas se faz presente, como um elefante na sala. Eles acreditavam no seguinte preceito: Se a neutralidade da cmera e do gravador era uma falcia, para que tentar dissimul-los? Por que no utiliz-los como instrumentos de produo dos prprios eventos, como meio de provocar situaes reveladoras? (DA-RIN, 2004. p.149.) Rouch queria fazer um cinema antropolgico, provocando, com a presena da cmera, a alterao da realidade. O desconforto faz com que as pessoas ponham mscaras, que, em vez de proteger, vo fazer surgir uma face mais profunda e sincera de sua personalidade. Eles no acreditavam, como os documentaristas do cinema direto, em uma verdade do evento, algo puro, que s podia ser captado pelo registro das aes, nunca pelo registro simples da fala (impregnada pelo que o outro acha que o cineasta quer ouvir). Os cineastas do cinma-verit se tornavam eles mesmos atores de seus filmes, acreditando que

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seus questionamentos e indagaes dariam a condio de possibilidade da revelao, pela palavra, daquilo que estivesse latente, contido ou secreto. (DARIN, 2004, p. 153) Outra caracterstica do cinema de Rouch levar o material filmado de volta para os personagens retratados, para obter respostas/retorno (que tambm so filmadas). Neste movimento, Rouch procura mostrar a transformao de seus personagens ao longo do filme, proporcionadas pelo filme. Pode-se dizer que ele o precursor da interatividade nos filmes, o que acaba abrindo uma brecha para a ficcionalidade no documentrio: se posso me construir atravs da fala e do gestual, interagir com outros e comentar sobre esta interao, acabo criando uma nova realidade, uma que no existiria se no existisse o filme. O cinema direto e o cinema verit tm vrias semelhanas, como o uso de cmeras e gravadores portteis, filmagem com cmera na mo (sem trip), equipe reduzida (normalmente um operador de cmera e um de udio), alm da mesma proposta de filmar a vida real sem pr-produo ou pesquisa. Mas as diferenas entre cinema direto e verit so grandes: no cinema verit, a cmera adota uma atitude de provocao e o documentarista participante confesso, chegando at mesmo a fazer perguntas, enquanto o cinema de Robert Drew prega o exato oposto. O documentarista do cinema direto leva sua cmera para uma situao de tenso e espera, sem se envolver, pelo momento de crise. O fato de fazer perguntas d ao cinema verit um carter mais militante/ ideolgico. O cinema direto, apesar de tambm ser ideolgico, era considerado apoltico, j que s observava, no interferia. As perguntas do cinema verit tambm servem para mostrar para o pblico o reconhecimento da interferncia de

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uma cmera na realidade. Para Rouch, a cmera sempre altera a realidade (at mesmo a do cinema direto). Sua presena faz vir tona o que estava reprimido.

2.4. Televiso Por ser to comum hoje em dia e estar presente nos na maioria dos lares, difcil imaginar que no incio, o principal veculo de comunicao mundial, a televiso, nada mais era do que uma caixa de papelo cheia de furos, com uma lmpada eltrica e um farolete de bicicleta. Foi somente em 1926 que o descobrimento da TV foi oficialmente reconhecido. A primeira imagem projetada foi a da cabea de um boneco numa tela instalada em um laboratrio. A revolucionria inveno que chocou cientistas em Londres foi criada pelo escocs John Baird. Ele transmitiu a imagem de uma sala pra outra graas a um disco giratrio acoplado a uma engenhoca. Desde seu nascimento, a TV j gerava polmica, inclusive sobre sua paternidade. Ao redor de todo mundo, vrias pessoas se dedicavam a projetos deste tipo, ao mesmo tempo: em Londres era Baird; nos Estados Unidos, Charles Francis Jenkins; e um russo, naturalizado americano, tambm estava no preo Vladimir Zworykin foi o responsvel pelos primeiros tubos catdicos usados numa cmera de TV, alm de ter a patente do primeiro tubo de imagens e da TV em cores. Todos esses especialistas faziam seus estudos embasados em pesquisas e descobertas que j haviam sido feitas por cientistas de vrias nacionalidades como, por exemplo, o sueco Jakob Berzelius, o ingls Willoughby Smith e alemo Paul Nipkow, que foi chamado de o fundador da tcnica de TV, por ter patenteado uma proposta de transmisso de imagens distncia.

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Apesar das pesquisas paralelas que colaboraram pra criao da televiso, ela no reconhecida como inveno de muitos, mas apenas de uma pessoa, o j citado John Baird. Mesmo com a paternidade de Baird reconhecida, a BBC, emissora londrina que foi a primeira a funcionar a partir de 1930, no usou seu aparelho, pois adotou um sistema eletrnico, e no o mecnico do escocs. As primeiras transmisses pblicas da Inglaterra ocorreriam seis anos mais tarde. Ainda na Europa, a Frana usava o seu monumento mais famoso, a torre Eiffel, para as primeiras transmisses na cidade-luz. Mas foi em 1938, nos Estados Unidos, que David Sarnoff, presidente da RCA (Radio Corporation of America), apresentou os primeiros aparelhos de TV. Por incrvel que parea, na poca, ele foi ridicularizado, at mesmo pela imprensa, por acreditar que a TV seria to popular quanto o rdio. Para os americanos, a televiso s nasceu mesmo em 1939 quando foi ao ar, na Feira de Nova York. Os americanos gostaram da inveno e em 1941 foi dada a primeira concesso a uma emissora. Em apenas trs anos o nmero de emissoras cresceu dez vezes. Com a Segunda Guerra Mundial, alguns pases tiveram que interromper suas transmisses. Enquanto a Europa se recuperava da Guerra, os Estados Unidos dispararam na frente e j em 1946 comearam a produo de televisores em larga escala. Dois anos bastaram para que eles atingissem a marca de um milho de aparelhos instalados. No Brasil, foi graas a Assis Chateaubriand que a TV comeou a funcionar. Ele era o dono de um verdadeiro imprio de comunicao no pas: Dirios e Emissoras Associadas. Essa empresa era responsvel por jornais, revistas e emissoras de rdio. Alis, o rdio nesta poca era um dos principais meios de

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comunicao, atingindo milhares de ouvintes em todo o Brasil. Baseado neste sucesso, em 1950, Chateaubriand resolveu trazer a TV para o pas. Ele importou equipamentos e quis retransmitir imagens captadas nos estdios dos Dirios Associados, atravs de uma antena instalada no edifcio do Banco do Brasil de So Paulo. Uma transmisso experimental e em circuito fechado foi feita no dia 4 de julho do mesmo ano. O ex-ator mexicano, Frei Jos Mojica, cantou para alguns telespectadores, diretamente do auditrio do Museu de Arte. Mas foi o dia 18 de setembro de 1950 que entrou para a histria como a data de inaugurao da primeira emissora de TV brasileira, a PRF-3 TV Difusora, que mais tarde passaria a se chamar TV Tupi de So Paulo. Neste dia, foi exibido o primeiro programa de TV, apresentado por Cassiano Gabus Mendes, o TV na Taba, que durou quase duas horas. A transmisso atrasou um pouco, pois uma das cmeras quebrou e o defeito s foi consertado quarenta minutos depois. Apesar dos problemas, a estria da TV foi grandiosa. Como havia poucos aparelhos de televiso no Brasil, Assis Chateaubriand mandou instalar duzentos deles em locais movimentados da cidade de So Paulo, para que o povo nas ruas tambm pudesse fazer parte do grande acontecimento: a inaugurao da TV Brasileira. Da inaugurao ao sucesso e expanso, bastou pouco tempo. Tanto que j no final dos anos 50 havia, no eixo Rio-So Paulo, seis emissoras: TV-Tupi do Rio e de So Paulo, TV-Paulista, TV-Recorde, TV-Continental e TV-Rio. A poca para o desenvolvimento da televiso no Brasil no poderia ser mais apropriada, afinal era o Governo Kubitschek. Com seu Plano de Metas e o objetivo de crescer 50 anos em 5, Juscelino manteve uma poltica econmica

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modernizadora que se fez s custas de emprstimos e investimentos estrangeiros, o que aumentou nossa dvida externa e foi considerada desnacionalizadora.No incio do perodo Kubitschek no havia mais que 250 mil receptores no pas, e no final da dcada, o total ficava muito aqum de um milho. A tev era realmente um brinquedo eletrodomstico de minoria, tanto de produtores como de consumidores. (SODR, 1984, p. 95).

Nem todos podiam comprar os aparelhos, mas ainda assim, investiu-se na televiso como algo revolucionrio. E assim a televiso foi invadindo nossas casas. A modernizao tecnolgica das comunicaes, conjugada com reconcentrao da renda e uma maior diversificao dos bens de luxo, favoreceu a expanso da tev. (SODRE, 1984, p. 99.). A televiso foi resultado de mudanas que vo desde a produo de aparelhos e receptores, at a organizao de setores especializados nesta nova tecnologia de comunicao. A TV passou a significar o futuro dos meios de comunicao. Foi a partir deste pensamento e aspirando o crescimento de sua empresa de comunicao que Roberto Marinho decidiu investir em uma emissora de televiso. A TV Globo nasceu em 1965, ocupando o canal 4 no Rio de Janeiro e logo em seguida a TV Paulista em So Paulo. A partir de 1969, formou-se a Rede Globo, com transmisso simultnea de atraes para todo o Brasil. Hoje, com 115 afiliadas, atinge mais de 99% do territrio brasileiro e tem uma participao de 60% no nmero de televisores ligados no horrio nobre. (DICIONARIO TV GLOBO, 2003, p.ix). A emissora mundialmente reconhecida pelas produes de dramaturgia e entretenimento e, a partir dos anos 90 pela criao de novos formatos visando interatividade e participao direta do pblico, acompanhando as caractersticas das grandes redes de televiso do mundo.

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Sua importncia tamanha por representar a televiso mais conhecida e respeitada em todo o pas. Da a necessidade de destacar sua criao e seu papel nesta trajetria do personagem. Foi atravs da TV Globo que o brasileiro construiu seu imaginrio dramatrgico e tambm atravs dela que teve contato com os primeiros formatos de reality-shows. E atravs dela que ele quer ver e ser visto Por sua presena dentro das casas das pessoas, primeiro de forma reduzida e atualmente de forma macia, a TV provoca uma enorme sensao de encantamento, pois traz at seu pblico toda a beleza e toda a informao sem que ele precise ir lugar algum.

2.4.1.

Reportagens desenvolvimento de tecnologias

Durante a maior parte da histria humana, as relaes entres as pessoas aconteciam face a face e todo conhecimento era transmitido oralmente, atravs de histrias contadas de gerao para gerao. Com o desenvolvimento dos meios de comunicao, isto se modificou: o interesse por atingir um pblico cada vez maior incentivou as pesquisas por avanos tecnolgicos que proporcionassem isto a informao alcanando e influenciando um nmero cada vez maior de pessoas. Uma das tecnologias desenvolvidas que favoreceram os meios de comunicao, por exemplo, foram os equipamentos desenvolvidos pelos cineastas do cinema direto, conforme j abordado anteriormente. Estes documentaristas estudaram e criaram um equipamento de udio sincronizado com a cmera, o que era muito mais prtico, leve e discreto do que os aparelhos utilizados at ento. A

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televiso, principalmente o telejornalismo, se utilizou bastante desta inovao para dar agilidade suas reportagens. Foram criadas no apenas novas formas de transmisso, mas que mantivessem intactas as relaes sociais: surgiram novas formas de interao entre as pessoas, e esta interao passou a ser dissociada do ambiente fsico e de temporalidade. De acordo com John B. Thompson (1998, p.77), se antes as tradies eram restritas em termos de alcance geogrfico, pois sua transmisso dependia da interao face a face e do deslocamento fsico de indivduos de um ambiente para o outro, com os veculos de comunicao, indivduos distantes fisicamente podiam ter acesso s mesmas informaes. A questo do tempo tambm foi alterada: a tecnologia possibilitou o registro permanente de imagens, sons e textos, o que possibilita que indivduos de pocas diferentes, que no compartilhem o mesmo referencial de tempo, acessem a mesma informao.O desenvolvimento dos meios de comunicao no somente criou novas formas de interao, mas tambm fez surgir novos tipos de ao que tm caractersticas e conseqncias bem distintas. A caracterstica mais geral destes novos tipos de ao que eles so responsivos e orientados a aes ou pessoas que se situam em contextos espaciais (e talvez tambm temporais) remotos. (THOMPSON, 1998, p.92)

No telejornalismo, por exemplo, os reprteres e apresentadores falam diretamente para a cmera, para um destinatrio receptor que acredita que aquela palavra est sendo dirigida a ele, como no caso do Boa noite, dado pelos apresentadores do Jornal Nacional e ao qual muitas pessoas respondem, literalmente. Neste caso, os apresentadores esto em um estdio no Rio de Janeiro, seu pblico est espalhado por todo o pas, em fusos horrios diferentes at, mas o olhar de ambos recproco.

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Mas importante ressaltar que os veculos de comunicao de massa, especialmente a TV, ao contrrio da interao face a face, possuemum fluxo de mensagem predominantemente de sentido nico: dos produtores para os receptores. As mensagens que so intercambiadas numa quase-interao televisiva so produzidas na sua maioria esmagadora por um grupo de participantes e transmitidas para um nmero indefinido de receptores, que tm relativamente poucas oportunidades de contribuir diretamente para o curso e contedo da quaseinterao. () Para a grande maioria dos receptores a nica maneira que eles tm para intervir na quase-interao na deciso de sintonizar a televiso, de continuar com ela ligada, de prestar algum grau de ateno, de trocar de canal ou de deslig-la quando no tiver nenhum interesse na sua programao. (THOMPSON, 1998, p.89)

Como veremos no item seguinte, o reality-show aperfeioou esta caracterstica do telejornalismo de no permitir que o receptor participasse do contedo e proporcionou a ele, em nveis muito maiores do que qualquer outro produto de mdia, que decidisse o rumo de seus programas. Em um reality, o telespectador, atravs de telefone e internet, que vota em quem permanece ou sai do jogo, alm de poder participar, ele mesmo, do prprio jogo. importante ressaltar que o telejornalismo, especialmente no Brasil, surgiu com traos muito especficos. Tomemos o exemplo do j citado Jornal Nacional: criado em 1969, pode-se dizer que ele est inserido dentro de uma lgica de mercado teria audincia garantida por estar, dentro da programao, entre duas telenovelas, e justamente por isto, deveria seguir o fluxo da audincia (que a soma da herana do programa anterior com a expectativa pelo programa seguinte) (PENA, 2002, p.51). Seguindo, portanto, o fluxo de audincia, as reportagens tm tratamento de teledramaturgia: no so longas ou detalhadas, contam com flashes de episdios anteriores para situar o telespectador em matrias que se desenrolem por mais de um dia, e priorizam a imagem acima de qualquer coisa. Os planos e seqncias

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capturados pelos cinegrafistas assumem a funo vital de contar a histria, causando no telespectador a falsa sensao de que so a realidade sem mediaes. (PENA, 2002, p.53). Apesar de todos os recursos de edio e de construo dramatrgica da histria que so usados pelo jornalismo, e no apenas pelas novelas e filmes, como se poderia pensar, estes so disfarados para que o sentimento de compartilhamento de tempo e espao entre jornalista/ fato e telespectador se mantenha presente e forte, garantindo o sucesso das reportagens. Para reforar ainda mais esta sensao, o telejornalismo se utiliza largamente das entradas ao vivo. A tecnologia da TV traduziu a imagem em linhas de varredura, sobre as quais se perfilam os pontos luminosos de informao visual no televisor. (LEISGOLD, et WORCMAN, 1988, p. 216 ) Isto permitiu a divulgao das imagens em tempo real.A televiso nasceu ao vivo, desenvolveu todo seu repertrio bsico de recursos expressivos num momento em que ainda operava ao vivo e este continua sendo seu trao distintivo mais importante dentro do universo do audiovisual. () A partir da televiso, o registro do espetculo que se est ainda enunciando e a visualizao/ audio do resultado final podem se dar simultaneamente e esse justamente o trao distintivo da transmisso direta: a recepo, por parte de espectadores situados em lugares muito distantes, de eventos que esto acontecendo nesse mesmo instante. (MACHADO, 2003, p.125)

A transmisso em tempo real acaba aumentando a expectativa de verdade da imagem; o ao vivo uma legitimao do realismo, de uma imagem verdadeira temos espaos diferentes e a sensao de um s tempo. Segundo Beatriz Sarlo (2000, p.73),a transmisso ao vivo obrigatria dos primeiros tempos da televiso transformou-se numa possibilidade nova. A partir desse ponto, adquire outros valores e funes. A iluso de verdade do discurso ao vivo (at agora) a mais forte estratgia de produo, reproduo, apresentao e representao do real. Fica-se com a impresso de que entre a imagem e seu referente material no h nada ou, pelo menos,

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h pouqussimas intervenes, que parecem neutras porque so consideradas de carter meramente tcnico.

Por este motivo, e na maioria dos casos, mesmo quando um programa prgravado, ele produzido e editado incorporando os traos da programao ao vivo (sensao de tempo presente) e imprimindo atualidade em seu contedo. Muitos autores, como Pierre Bourdieu e Paul Virilio, criticam as transmisses ao vivo por no terem o intervalo entre a imagem produzida e a recebida, o que consideram grave, pois este intervalo seria importante na construo do imaginrio. Sem este distanciamento, a capacidade crtica do homem fica comprometida. A sincronia entre emisso e recepo acaba com o distanciamento, impedindo a crtica e deixando apenas o reflexo: passamos de uma sociedade de reflexo para uma sociedade de reflexo. J Arlindo Machado discorda destas afirmaes. Ele cita um exemplo dado por Virilio para criticar a TV, contra-argumentando em defesa desta: Virilio disse que a transmisso instantnea da Guerra do Golfo no permitiu distncia crtica, portanto, no permitiu reflexo sobre o que acontecia naquele momento da histria; Arlindo contesta, afirmando que, se fosse verdade que as pessoas no tivessem opino sobre o que era transmitido pela televiso, no teriam acontecido todos os movimentos de massa na metrpoles de Estados Unidos, Europa e outros pases pedindo o fim da guerra. Esta instantaneidade ser abordada no item seguinte em relao a sua apropriao pelo entretenimento e o impacto do ao vivo na construo dos personagens, em especial os do Big Brother Brasil 5.

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2.4.2. Reality shows A fora da transmisso ao vivo foi levada tambm para o entretenimento. Alm de programas de auditrio, os reality-shows tambm se apropriaram desta linguagem para reforar seu ponto de contato com o pblico: alm de permitir que o telespectador decida o rumo de seu contedo, este mesmo telespectador pode acompanhar em tempo real o que est acontecendo no desenrolar do reality.Surge assim uma iluso: o que vejo o que , ao mesmo tempo em que o vejo; vejo o que est sendo e no o que j foi e agora transmitido com atraso; vejo o decorrer da existncia e vejo o passar do tempo; vejo as coisas como so e no como foram; () Vejo, ento, como se estivesse ali.( SARLO, 2000, p. 72)

esta sensao de estar presente que d fora a realities como o Big Brother Brasil, por exemplo, pois refora o sentimento de que realmente poderia ser voc dentro da casa.Como na conhecida boutade de Andy Warhol, a televiso promete que um dia todos iremos ao ar, j que no existem qualidades especficas, mas s acontecimentos que podem levar-nos televiso; falta de acontecimentos, nossa qualidade de cidados suficiente para estarmos ali. (SARLO, 2000, p.76)

Mas o simples ao vivo, sem nenhum evento programado, no interessante. Como nossa percepo est educada para a dramaturgia, importante editar este real e transform-lo em um discurso. Este foco do reality, principalmente no Big Brother Brasil, ser abordado mais frente, no captulo referente a ele neste trabalho. O desenvolvimento das mdias cria um novo tipo de intimidade, diferente do compartilhado na interao face a face.Nos contextos de interao face a face, os indivduos so capazes de formas de intimidade que so essencialmente recprocas; isto , suas relaes ntimas com os outros implicam um fluxo de aes e expresses, de perdas e ganhos, de direitos e obrigaes que correm nos dois sentidos. (THOMPSON, 1998, p.181)

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Na intimidade mediada, no preciso compartilhar a mesma realidade espao-temporal. Esta intimidade distncia no , portanto, recproca; permite que se desfrute de companhia de outros, mas sem cobranas, sem compromissos, comuns na intimidade imediata.So companheiros regulares e confiveis, que proporcionam diverso, conselhos, informaes de acontecimentos importantes e remotos, tpicos para conversao, etc tudo de uma forma que evita exigncias recprocas e complexidades que so caractersticas de relacionamentos sustentados atravs de interaes face a face. (THOMPSON, 1998, p.191)

Este tipo de relao distncia muito comum atualmente, principalmente com o advento da internet e dos chats onde se conversa com gente de todo mundo, mas as caractersticas descritas acima se aplicam muito bem ao elo existente entre pblico e celebridades. Estas so ntimas e familiares, e assuntos relacionados a elas so discutidos como temas de conversas rotineiras. o que foi abordado em um captulo anterior, sobre o star-system. Estas celebridades passam a ser companheiros idealizados, pois a distncia de sua vida de todo dia e a divulgao apenas dos seus aspectos glamourosos as eleva ao patamar do que se gostaria de ser. A vida destas celebridades, extremamente explorada pela mdia, muito mais interessante do que a vida de um vizinho do prdio, por exemplo. Quantas pessoas moram anos lado a lado com outra pessoa e sequer se cumprimentam? No tm noo do que se passa a uma parede de distncia, enquanto sabe com detalhes da ltima viagem da atriz protagonista da novela das oito, que sequer viu pessoalmente? O interesse crescente pela vida retratada atravs da mdia pode explicar o sucesso dos reality-shows, gnero que cresce e ganha novos formatos a cada dia.

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Da tambm o interesse em participar deste tipo de programa: ser alvo de curiosidade e desejo de vrios, que gostariam tambm de estar naquele lugar. Traduzindo a expresso reality-show, chegamos a espetculo da realidade. Este tipo de programa caracterizado pelo fato de que as pessoas que dele participam supostamente no representam personagens de enredos fictcios, e sua inteno a de registrar acontecimentos da realidade vividos pelos participantes. Vale ressaltar que a forma como os participantes agem e reagem diante das rotinas impostas pelas regras do jogo livre. Entretanto, por se tratar de um espetculo, muitas vezes o dia-a-dia retratado pelas cmeras incrementado pelos diretores, especialmente na edio, para que a dinmica se torne atraente para o pblico deste tipo de produto. Outro ponto a ser apontado uma caracterizao a respeito do que seria retratar a realidade, especialmente no que tange ao significado social desta iniciativa. Enquanto que um telejornal tem a funo social de retratar os fatos e notcias de nossa realidade social abrangente, voltando-se para as questes relevantes (no mbito da poltica, economia, cultura etc) da esfera pblica, os reality-shows tm a funo de entreter o pblico com a veiculao de situaes ntimas de um determinado grupo, que podem ser semelhantes s situaes comuns vividas pela maioria da populao, assim como situaes inusitadas e incomuns. Em 1973, a rede pblica de televiso norte-americana PBS exibiu uma srie de doze episdios intitulada An American Family. Exibidos entre 11 de janeiro e 29 de maro, a srie havia sido filmada dois anos antes. Durante sete meses, o diretor Craig Gilbert e dois assistentes permaneceram na casa da famlia Loud, na Califrnia, filmando a vida de Bill, Pat e seus cinco filhos, Lance, Kevin, Grant,

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Delilah e Michele. O resultado final foi considerado por muitos como trivial e tedioso, embora tenha havido picos de interesse. No segundo episdio, por exemplo, Pat encontrou seu filho Lance em Nova Iorque e descobriu que os amigos do jovem eram homossexuais. O oitavo e o nono episdios foram dedicados crise conjugal e posterior separao de Bill e Pat. Em 9 de agosto de 1983 foi apresentada uma reedio desta srie, intitulada na poca American Family Revisit, desta vez atravs do canal a cabo HBO. Em 1992, tambm nos Estados Unidos, surgiu a srie The real world, que foi o precedente mais semelhante aos reality-shows atuais. A idia do programa era filmar a vida de sete jovens adultos pr-selecionados, com diferentes ocupaes e personalidades que, no conhecendo uns aos outros, teriam de conviver durante treze semanas numa casa. Com esta srie, o fenmeno dos reality-shows ganhou uma enorme dimenso comercial e mundial. A partir deste panorama, os realities ganharam o mundo e os formatos foram cada vez mais inusitados. Um bom exemplo disto foi a idia de dois produtores da CBS de colocar um grupo de pessoas numa ilha deserta durante semanas nasceu assim Expedition Robinson, testado pela primeira vez na Sucia, e mais tarde lanado nos Estados Unidos como Survivor, o mais bem sucedido dos reality-shows americanos. Ao longo de treze episdios, o pblico acompanha a aventura de dezesseis pessoas que tentam sobreviver numa ilha deserta. Cada participante chega ilha levando apenas um objeto pessoal e um kit de sobrevivncia fornecido pela produo. Na primeira fase, formam-se duas equipes que concorrem entre si. Um conselho independente decide quem fica na ilha e quem sai. Mais tarde, quando ambas as equipes contarem com apenas quatro elementos, cada um passa a

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concorrer individualmente. Nesta fase, os sobreviventes estaro separados e no podem dialogar com as duas nicas pessoas que tm contato prximo um reprter e um operador de cmera que fazem a cobertura do acampamento. Survivor arrecadou para a CBS muito dinheiro em publicidade o ltimo episdio, por exemplo, foi visto por cinqenta e dois milhes de pessoas. No Brasil, este mesmo tipo de reality foi produzido em 2000, com o nome No limite. A TV Globo comprou os direitos e, aps algumas mudanas no formato, inaugurou os realities no pas. O programa foi sucesso de audincia e alvo de muitas crticas. Da em diante, a febre dos realities tomou conta da TV e virou notcia de primeira pgina nos jornais. Enquanto no Brasil os realities eram uma novidade de sucesso, e parecia que no se podia inventar mais nada que despertasse o interesse do pblico, na Europa, a produtora holandesa Endemol, disposta a produzir programas que levassem a linguagem televisiva aos seus limites com baixos custos, criou o reality que mais faz sucesso na programao mundial: o Big Brother. A primeira edio ocorreu na Holanda, em 1999, e a repercusso levou rapidamente o programa Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Argentina, Portugal, entre outros pases. Aps trs edies do No limite no Brasil, o gnero reality show se espalhou no s pela programao da Rede Globo, mas tambm por outras emissoras. O sucesso do programa no Brasil reproduziu o movimento padro que o consagrou na Europa e nos Estados Unidos; no faltaram novos realities no nosso pas, tais como Casa dos Artistas, Amor a bordo, Ilha da Seduo, O jogo, Fama, Acorrentados, Popstars e, finalmente, o Big Brother Brasil,

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programa de maior sucesso no gnero, e que sobrevive at os dias de hoje, chegando j em sua sexta edio.Hoje ns estamos acostumados a pensar que os indivduos que aparecem em nossos televisores pertencem a um mundo pblico aberto para todos. Podemos sentir certo grau de familiaridade com as personalidades e os lderes polticos que aparecem regularmente na televiso e na mdia. Podemos at considerlos amigos, e referirmo-nos a eles com certa intimidade. Mas sabemos tambm que eles aparecem diante de milhares ou milhes de outros, que eles so acessveis a muitos outros alm de ns. E por isso, embora possamos ver e ouvir estas celebridades com certa freqncia, muito pouco provvel que alguma vez as encontremos no curso de nossas vidas cotidianas. (THOMPSON, 1988, p.109)

Isto s acontece pelo desenvolvimento dos meios de comunicao, como j explicado anteriormente. Antes deles, poucas pessoas tinham acesso a atores, a polticos etc. O que existe hoje um novo tipo de visibilidade, que fragiliza a fronteira entre o pblico e o privado. A partir de meados do sculo XVI, pode-se dizer que a noo de pblico passou a ser relacionada ao Estado, enquanto privado se relacionava aos outros aspectos da vida. J no final do sculo XIX, estas noes j no eram mais to facilmente determinadas: Os estados foram assumindo um papel cada vez mais intervencionista () Indivduos se uniram para formar organizaes e grupos de presso com o objetivo de influenciar a poltica governamental. (THOMPSON, 1988, p.111) Passou-se, ento, noo de pblico como aberto, acessvel, o que est visvel privado, pelo contrrio, o que se esconde dos outros, o que de foro ntimo, pessoal e secreto. A visibilidade, possibilitada pelos meios de comunicao, amplia a capacidade de ser visto e ouvido. A televiso eleva o sentido da viso a um nvel que engloba a noo de poder. Foucault usa a imagem do panptico, para caracterizar esta relao entre poder e visibilidade. Esta idia, desenvolvida

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inicialmente por Jeremy Bentham em 1791, era o modelo de uma penitenciria ideal:O princpio , na periferia, uma construo em anel; no centro, uma torre: esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior de um anel. A construo perifrica dividida em celas () Estas celas tm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo s janelas da torres; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta ento colocar um vigia na torres central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operrio ou um estudante. Devido ao efeito da contraluz, podese perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princpio da masmorra: a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo protegia. (FOUCAULT, 1979. p. 115)

O interessante perceber que, enquanto este modelo torna muitos visveis para poucos, o que acontece na mdia, e especialmente na TV, justamente o oposto: muitas pessoas recebem informao sobre poucos e so estes poucos visveis que passam a exercer um poder. O dispositivo do panptico, antes utilizado para vigilncia, passa por uma mudana radical e seus princpios passam a ser utilizados para exposio quase que total da intimidade. Este excessivo olhar sobre o outro e sua intimidade acaba por esgarar a fronteira antes existente entre pblico e privado. Um exemplo disso so as revistas como Caras e Quem, que exibem, com a prvia autorizao dos retratados, a casa, a famlia, as viagens, as refeies das celebridades. Sob a forma de reality-shows, como o Big Brother, do sof de casa, sua torre central, observando atravs da janela-televiso, o pblico acompanha a vida dos prisioneiros, pessoas como eles, expostos s lentes das cmeras espalhadas na casa-priso construda para devassar a intimidade de alguns poucos enquanto entretm a muitos.

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Podemos dizer que os reality-shows so o smbolo de uma programao de TV planetria no que diz respeito ao entretenimento. Em diferentes culturas, lnguas, modelos poltico-econmicos e sociais, o gnero atrai ateno, gera polmica, levanta discusses, modifica ou renova padres culturais, e sempre com a tnica de entreter, antes de mais nada. A frmula bsica no nenhum segredo, muito pelo contrrio: os reality-shows tm na sua raiz o jogo e o espetculo. Tais aspectos, como afirma Edgar Morin, criam um novo estilo de vida.Jogo e espetculo mobilizam uma parte do lazer moderno. Nada disso absolutamente novo, pois os espetculos, assim como os jogos (de azar e competio), sempre estiveram presentes nas festas e nos lazeres antigos, o que constitui novidade a extenso televisionria ou teleauditiva do espetculo, abrindo-se at os horizontes csmicos, so os progressos de uma concepo ldica da vida. (MORIN, 1967, p.70)

O gnero no se define somente por essas caractersticas. A televiso sempre esteve repleta de exemplos de programas de auditrio, por exemplo, que se desenvolveram com as caractersticas do jogo e do espetculo. Vale ressaltar que a grande maioria deles sempre teve o pblico como telespectador puro e simples, isto , o espectador distncia, afastado do ambiente efetivo em que o jogo e o espetculo so realizados, sem voz ativa de participao. No Brasil, atualmente, temos exemplos como os programas apresentados por Silvio Santos, Gugu Liberato e Fausto Silva, com os moldes antigos de jogo e espetculo. Neles, o pblico tem uma participao contemplativa. bem verdade, que o pblico pode estar presente no espetculo, mas essa participao feita como integrante da platia. Pode participar do jogo, mas essa participao pequena, superficial e passageira. At antes do surgimento dos reality-shows, o pblico podia sonhar, rir e se emocionar com as tramas de novelas, por exemplo, que eram apresentadas, mas jamais vivenci-las de forma

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prxima, experiment-las. O lazer do telespectador de novelas, ou de programas de auditrio, ou at mesmo do pblico que participava e ainda participa desses programas de auditrio, sempre foi algo distante.O espectador tipicamente moderno aquele que se devota televiso, isto , aquele que sempre v tudo em plano aproximado, como na teleobjetiva, mas, ao mesmo tempo, numa impalpvel distncia; mesmo o que est mais prximo est infinitamente distante da imagem, sempre presente, verdade, nunca materializada. Ele participa do espetculo, mas sua participao sempre pelo intermdio do corifeu, mediador, jornalista, locutor, fotgrafo, cameraman, vedete, heri imaginrio. (MORIN, 1967, p.70)

Os reality-shows modificam a participao dos telespectadores de forma muito significativa, uma vez que posicionam o espectador comum de uma forma mais profunda na televiso. Contam ainda com a presena do apresentador intermediando e fazendo o elo entre os participantes e o pblico, mas no mais s este quem comanda o show: mesmo depois que o apresentador sai do ar, continua o contato e a participao do pblico. No caso do Big Brother Brasil, por exemplo, o pblico acompanha o que acontece na casa pela internet, pay-per-view da televiso cabo, celular, e por estes meios decide desde que tarefas tero de ser cumpridas na casa at quem permanece nela. A partir desse momento, o lazer que consistia apenas em assistir televiso passa a ser uma prtica no mais contemplativa e observadora, mas sim uma participao mais ativa. Certamente, deve-se considerar que o formato realityshow, assim como a maioria dos produtos televisivos, mercadolgico. A mdia, a publicidade, exacerbam esta participao do pblico para conseguir ndices maiores de audincia.

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Mas esta mudana para uma participao maior por parte do pblico significativa, j que o telespectador convidado a participar de forma fundamental neste formato televisivo. Nunca foi dado ao pblico esta forma de lazer: realmente participar do jogo (fisicamente, por sorteio ou por veredito a respeito dos jogadores). E uma vez que o pblico pode estar presente dentro da casa, identifica-se intensamente com os jogadores e decide o rumo da histria. Talvez um dos grandes aspectos que faa com que este reality atraia tanto a ateno das pessoas comuns que participam dele, seja a possibilidade de vivenciar uma realidade diferente da sua, com conforto, festas, reconhecimento. A partir do momento em que o espectador entra no jogo, ele ter a oportunidade de viver por um curto perodo de tempo em um lugar onde no haver problemas de contas para pagar nem aluguel ou condomnio, e o melhor: sem muito trabalho a fazer. E no devemos esquecer que esta quarentena pode premi-lo com muito dinheiro, alm de no exigir dele excelncia ou habilidade especfica em nada alm do fato de saber se comportar no jogo. O reality-show serviria como uma vlvula de escape do cidado comum, para poder fugir da realidade angustiante, dos riscos e do sofrimento. Enfim, os realities seriam uma alternativa forma como vivemos, quando estamos sob o poder da tica do trabalho. Em outras palavras, os realities seriam uma possibilidade de se poder vivenciar o prazer, a felicidade e o lazer de uma forma permitida pelo Estado, pela mdia, pela sociedade em geral. Dentro desta perspectiva, os reality-shows so um fenmeno de audincia. Um ponto bsico que fez com que isso ocorresse o fato de que o pblico se identifica ou se projeta naquilo que mostrado. Os reality-shows, com essa manobra, fizeram com que a distncia anteriormente existente entre pblico-

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telespectador e os produtos televisivos, fosse praticamente extinta. Dessa maneira, no h mais uma ou mais pessoas com a funo de representar papis ficcionais na tela da televiso de sua casa, mas sim pessoas comuns, selecionadas de lugares comuns, com uma certa liberdade de atuar da forma com lhes seja conveniente. Os eleitos para participar dos realities tm autonomia para serem eles mesmos ou representarem papis de forma bastante espontnea ou naturalista, de tal maneira a despertar forte identificao no pblico. De qualquer modo, nos realities no h qualquer tipo de direo no sentido de conduzir o comportamento dos participantes. Essa liberdade um dos fatores para que o gnero conquiste o olhar dos telespectadores. Para Morin, aidentificao se estabelece num certo equilbrio de realismo e de idealizao; preciso haver condies de verossimilhana e de veridicidade que assegurem a comunicao com a realidade vivida, que as personagens participem por algum lado da humanidade quotidiana, mas preciso tambm que o imaginrio se eleve alguns degraus acima da vida cotidiana, que as personagens vivam com mais intensidade, mais amor, mais riqueza afetiva do que o comum dos mortais. (MORIN, 1967, p. 82)

Com esta citao de Morin, chegamos mais a fundo no entendimento do interesse pblico pelo gnero. Os realities procuram gerar, em boa parte de sua exibio, a possibilidade de o pblico se identificar internamente com os participantes. E para isso, h a necessidade de fazer com que a mensagem seja emitida com dupla funo: aproximar o telespectador pela representao do cotidiano e, ao mesmo tempo, afastar pela glamourizao. Em outras palavras, fazer com que o pblico se veja na televiso, j que pessoas comuns como ele esto ali vivendo experincias reais, nada fictcias; e, ao mesmo tempo, glamourizar essas experincias, torn-las especiais, nicas, inesquecveis.

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Os tipos de realities que exemplificam este raciocnio so os mais variados. No caso das edies do Big Brother Brasil, o glamour se deve ao fato de que os participantes ficam em uma casa enorme, com uma piscina a disposio, onde podem tomar muitos banhos de sol. Na casa pode-se encontrar eletrodomsticos de ltima gerao, uma academia de musculao, com o que h de mais moderno em aparelhos para atividades fsicas ao longo dos dias de gravao. So tambm repletas de glamour as festas temticas, com farta comida e bebidas alcolicas. Nas edies de Amor a Bordo, os participantes ficam hospedados em pousadas localizadas em locais paradisacos, como Ilha Grande e Angra dos Reis, e tm a disposio um enorme iate, abastecido com frutas e bebidas. A dinmica do jogo consiste em escolher um companheiro (a) para viver um romance. Neste caso do Amor a Bordo muito interessante perceber que os participantes so pessoas comuns, mas em sua grande maioria, modelos, com corpos atlticos e com um bom grau de instruo. Este, talvez, seria um bom exemplo do que Morin fala de identificao/ idealizao. So todos desconhecidos, mas com a aparncia ideal, do ponto de vista esttico atual. E assim como ocorre com estes dois exemplos de reality-show, muitos outros se enquadram nesta lgica explicitada por Morin. Vivncias que o telespectador nunca teve, so desejos projetados nos acontecimentos vivenciados pelos participantes do programa. E vivncias que o espectador j experimentou so automaticamente reconhecidas, gerando o processo de identificao. Dessa forma, os realities, a todo instante, procuram aproximar o telespectador dos participantes e coloc-los na fronteira entre o que contemplado e o que realizado.

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3. Panorama3.1. Confuso dos termos pessoa e personagem No incio deste trabalho, falamos sobre dramaturgia e abordamos o pensamento aristotlico sobre personagem. Relembrando, ele defendia o personagem como reflexo do ser humano, mas trabalhado pelo autor para atender construo daquele texto especfico. Foi o que ele chamou de verossimilhana interna da obra. Ele via, portanto, enorme semelhana entre personagem e pessoa, e construiu, a partir da, o conceito de mmesis. Este conceito foi traduzido como imitao do real, pois desde o momento da concepo das histrias. havia uma busca referencial do ser humano, mas o que ele acreditava era na verdade da obra acima do simples reflexo da realidade, na coerncia daquele personagem ou atitude dentro da realidade daquela obra. Horacio, pensador latino, seguiu o estudo a respeito personagem, atribuindo a este uma funo pedaggica: ele deveria ser uma verso melhorada do ser humano, o que dava arte um valor moralizante e tico, representativo do que o homem deve ou no deve ser. A partir de meados do sculo XVIII, estas concepes comeam a mudar, sendo substitudas por uma viso psicologizante que entende personagem como a representao do universo psicolgico de seu criador (BRAIT, 1987, p.37) Mas todas estas vises sobre o personagem ainda o relacionavam com o ser humano, no o viam como, segundo Brait, como seres de linguagem, como componentes de uma narrativa. Foi com os formalistas russos que isso aconteceu:De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes da fbula, e s adquire sua especificidade de ser fictcio na medida em que est submetida aos movimentos, s regras prprias da trama. Finalmente, no

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sculo XX e atravs da perspectiva dos formalistas, a concepo de personagem se desprende das muletas de suas relaes com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia prpria. (BRAIT, 1987, P.43/44)

Os formalistas foram um grupo de estudiosos do incio do sculo XX que buscaram investigar o que seria o especfico literrio. Autores como Victor Chklovski, Tomachevski e Jurij Tynianov defendiam que a relao entre os componentes da narrativa (personagens, eventos etc) era fundamental para o processo de construo dramtica, e que o importante era focar-se na elaborao artstica, no contexto da obra, no objetivo da criao do autor.(...) devemos buscar a explicao da psicologia dos personagens e de sua conduta no nas leis psicolgicas, mas nos condicionamentos estticos determinados pelo trabalho do autor. Se Hamlet demora em matar o rei, preciso buscar a causa no na sua indeciso e falta de vontade, ou seja, na psicologia, mas nas leis que governam a elaborao da estrutura artstica. A morosidade de Hamlet no mais que um procedimento necessrio tragdia, e se Hamlet no mata imediatamente ao rei, isto se deve a que Shakespeare necessitava prolongar a ao trgica por fora de leis puramente formais, da mesma forma que um poeta elege as rimas no porque as leis da fontica assim o exijam, mas de acordo com os objetivos da sua criao. (VYGOTSKY, 1972, p.75-76)

O personagem, portanto, no simples imitao da vida, ser de linguagem, e seus traos so determinados pelo autor para ter elos de identificao com a realidade e com o pblico, mas tambm tem liberdades que uma pessoa, um ser humano comum no teria. Um exemplo pode ser retirado da novela Pedra sobre Pedra, na qual o autor Aguinaldo Silva criou o personagem Sergio Cabeleira, interpretado pelo ator Osmar Prado. Na histria, Cabeleira, quando via a lua cheia, ela literalmente levado at ela flutuava e, se no fosse amarrado firmemente terra, ia embora. Ningum pode sair voando em direo lua, e este

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era o trao fabuloso do personagem, mas o pblico se identificava com ele, e Cabeleira era bastante querido. O espectador brasileiro est acostumado a este tipo de personagem real, concreto, do dia-a-dia, mas entende que, por este ser uma ser de linguagem, existir somente dentro daquela obra, seja um livro, uma telenovela ou um filme, permitido a ele ter traos fantsticos, estes justificados pela sua funo no texto.

3.2. Mscaras Ser fundamental trabalhar com a noo de Persona. Esta palavrade origem grega significa mscara, ou seja, caracteriza a maneira pela qual o indivduo vai se apresentar no palco da vida em sociedade. Portanto, diante do palco existencial cada um de ns ostenta sua Persona mas h, porm, uma respeitvel distncia entre o papel do indivduo e o que ele realmente , ou entre aquilo que ele pensa ou pensam que e aquilo que ele de fato. ( http://www.psiqweb.med.br/persona/personal.html)

A origem das mscaras est no teatro grego onde elas existiam para que os atores as colocassem sobre seus rostos para, a partir da, estarem visveis para o pblico. Os espetculos gregos eram realizados em grandes espaos e para um pblico muito grande, por isso a mscara ajudava atuando como um acessrio de fcil identificao daquele personagem para o pblico. A mscara dizia de incio, e o dizia com muita clareza, quem era quem. A mscara caracterizava (e ainda caracteriza, atravs dos tempos) fsica, psicolgica e socialmente os personagens. (PALLOTINI, 1989, P.66) Outra forma de mscara muito utilizada para caracterizar um personagem, especialmente na fico, so os arqutipos. Conforme j abordado no primeiro item deste trabalho, os arqutipos so padres universais reconhecveis por todos

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que facilitam a construo de personagens. Pode-se pensar nos arqutipos como mscaras, usadas temporariamente pelos personagens medida que so necessrias para o avano da histria. (VOGLER, 1997, p.49) Com isso, explicase como um personagem pode comear um texto de um jeito e terminar de outro. Os principais arqutipos utilizados pelos escritores so: o Heri, cujo propsito dramtico dar ao pblico a entrada para a histria, aquele com que o pblico se identifica no primeiro momento; deve ter qualidades, sentimentos e motivaes universais; o Mentor, figura positiva que ajuda ou prepara o heri; o Guardio do limiar aquele que testa o heri quando este tem que enfrentar seus obstculos; o Arauto, que chama mudana, que traz o desafio ao heri; o Camaleo, figura que traz dvida e suspense histria; a Sombra, que so os viles, os antagonistas; o Pcaro, que traz o alvio cmico para a trama. As mscaras sociais das quais o indivduo dispe nas diferentes situaes de sua vida vm surgindo a partir dos contatos sociais que ele tem no decorrer de sua existncia. Com isso, vai se construindo sua identidade. Hoje, pode-se dizer que a mdia uma das fontes de projeo e seduo e, conseqentemente, da construo identitria. Disponibilizando uma grande variedade de experincias, os produtos miditicos acabam por legitimar valores antes reservados a famlia e ao crculo de relaes sociais mais prximo. Ou seja, Freire-Medeiros e Bakker (2005. p.3) afirmam que as imagens miditicas

oferecem um cardpio comum de princpios de sociabilidade, dramatizam formas de pensar, agir, e se relacionar, conformando um currculo cultural bsico sem o qual torna-se difcil pertencer ao que quer que seja. Atravs da televiso e do cinema, principalmente, o pblico bombardeado com estas imagens de distino criadas e entregues pela mdia, o

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que desperta neste, sentimentos de fascinao e desejo por ser aquilo que impossvel ser. So referncias que se projetam mais sedutoramente do que aquelas ofertadas pelo lar ou pelo crculo de relaes sociais mais prximo. (idem, p.4) Goffman, em seu livro sobre a representao do eu, afirma que quando o indivduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tender a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e at realmente mais do que o comportamento como um todo. (GOFFMAN, 1985, p.41) So estes os valores apresentados pela mdia que se tornam reconhecidos pela sociedade apresentados maciamente e mundialmente, logo se estabelecem e so facilmente reconhecidos.

3.3. Gnese do personagem e sua transformao em produto de mdia A autora Renata Pallotini, em seu livro sobre dramaturgia afirma que, em uma pea de teatro ou cinema de fico o personagem um determinante da ao (). O personagem o ser humano (ou um ser humanizado, antropomorfizado) recriado na cena por um artista-ator, e por um artista-autor (PALLOTINI, 1989, p.11). possvel transpor estas mesmas caractersticas para o , documentrio e para o reality-show: em ambos, o personagem uma construo de si prprio (artista-ator) e tambm de quem o capta, seja ele o documentarista ou o diretor de TV (artista-autor), que vo trabalh-lo na edio e apresent-lo para o pblico. Eduardo Coutinho, no livro de Consuelo Lins, fala que bons personagens so pessoas que se narram bem. Saber contar uma histria fundamental. Porque

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no a simples palavra filmada que significa uma fala rica: mesmo que uma pessoa tenha a vida mais extraordinria, se ela no tiver a habilidade narrativa de apresent-la, isto a faz perder fora. Coutinho tambm acredita que a filmagem cria o personagem, pois fora aquela pessoa que est sendo gravada a se construir no contato com a cmera. Para ele, no existe uma realidade pronta, mas uma realidade sendo produzida no contato com a cmera. (LINS, 2004, p.39) A cmera, portanto, somada capacidade narrativa do retratado, fundamental na composio de um bom personagem. Pode-se dizer que ela a maior forma de caracterizao do personagem, exclusiva do audiovisual. A cmera apresenta, introduz, delineia, acompanha o personagem, detalha seu aspecto fsico, mostra-o na intimidade, acompanha seus gestos e suas aes (PALLOTINI, 1989, p.75). A cmera o olho que acompanha o personagem e nos mostra quem ele . Vive-se hoje cercado de cmeras por todos os lados. Pode-se dizer, seguramente, que uma gravao feita nos dias atuais tem uma repercusso diferente do que tinha no incio do cinema, por exemplo. Cezar Migliorin, em seu trabalho para a Comps 2005, descriminou trs mudanas na relao cmera/ personagem/ pblico:Falar para uma cmera no produzir um discurso, mas sim produzir material para que um discurso, separado do momento da filmagem, seja feito. () Toda pessoa filmada sabe que pode ser cortada na montagem apesar de no saber o nome do processo que a exclui e, para que isso acontea, ir utilizar uma pluralidade de mtodos; exagerar na histria, pensar no ritmo mais apropriado para a TV (toda cmera uma cmera de TV). Em resumo, o personagem faz o papel que ele imagina que o documentarista deseja que ele faa. A armadilha clara, o que restou para as cmeras o prprio mundo das imagens. Outra diferena significativa vem da presena de cmeras de vigilncia disseminadas nos espaos pblicos, cujos efeitos sobre nossas construes subjetivas ainda estamos tateando,

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mas a efetivao desta sociedade controlada obriga cineastas e artistas a dialogar com essa situao. Como fazer para que haja filmes se tudo filmado, se nada escapa s imagens? Finalmente, essa interseo entre imagem e vida trouxe para o senso comum a idia de direito de imagem. () para que algo seja uma imagem ele depende de algum vendo, enquanto que o direito imagem privatiza para o objeto o efeito de ser visto.( MIGLIORIN, 2005, p.10/11)

Hoje, portanto, o mecanismo da TV no mais um mistrio: as pessoas esto sendo educadas para e pela linguagem de TV. Sabem o que VT, close, entendem que aquilo que gravado no aparece na ntegra, que vo ser editados; mas o principal que o pblico sabe a importncia, no mundo atual, de ser retratado na televiso, de aparecer. Coutinho acaba se utilizando deste conhecimento que seus prprios personagens tm da linguagem de televiso para se aproximar deles. Ele diz para seus entrevistados, por exemplo, que seus filmes so reportagens para o cinema porque desta maneira as pessoas entendem de forma mais fcil sua abordagem. Como no documentrio no h o imediatismo da exibio, como acontece na televiso, e tambm a falta de uma total compreenso do gnero pelos participantes, para Coutinho as pessoas acabam falando mais com o intuito de serem ouvidas do que de serem vistas. Graas a este conhecimento que as pessoas tm da mdia e de como ela opera, h uma busca constante pela ateno desta. Estamos cmodos com a presena de cmeras e gostamos que estas nos procurem: no h olhar ingnuo, no h realidade que se entregue sem se espetacularizar, no h mundo sem que um olhar esteja colocado sobre ele (MIGLIORIN, 2005, p.11) Ao mesmo tempo que o olhar sobre o poder da mdia no ingnuo, nos sentimos intimidados por este poder No h como negar que a cmera um

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instrumento de poder. A jornalista Bia Abramo, em coluna na Folha de S. Paulo de 20/02/04, justifica a no-naturalidade da fala dos personagens afirmando que: como se a cmera fosse um outro mais poderoso, mais inquisitivo e intimidante do que qualquer pessoa de carne e osso e com uma expectativa muito fixa e definida do que so as reaes e atitudes adequadas ou no. A emoo passa ao largo. O que se observa quando uma pessoa como eu e voc est em qualquer situao vigiada uma luta entre os sentimentos de fato, pessoais e ntimos, e os postios. Vencem, claro, os ltimos. (ABRAMO, Bia. Emoo medida sobre medida. Folha de S. Paulo, 20/02/04)

O que podemos chamar de novo personagem seria aquele que sabe ou tem mais noo de como se comportar para a cmera, de como expor o que pensa de si para os outros, ou ainda de como os outros esperam que ele se exponha. Ele sabe de que mscara dispor em cada momento. Um exemplo desta situao pode ser os depoimentos de Hlio Luz para o documentrio Notcias de uma guerra particular, de Joo Moreira Salles e Ktia Lund, no qual o entrevistado como que vestia um manto de Secretrio de Segurana para dar suas declaraes. Ele sabia que estava ali, naquele documentrio, enquanto figura de autoridade e, por isso, era daquela mscara que ele precisava naquele momento. Coutinho acredita que o show-business e situaes como a do Big Brother por exemplo favorecem cada vez mais a invaso da privacidade e o fato das pessoas se despirem para o pblico, na necessidade absoluta de aparecer. As pessoas filmadas nos documentrios hoje vivem nesse mundo de reality-shows e exposio, ento sua relao com a cmera outra. Para ele, neste conflito com o fluxo incessante de imagens produzidas pela mdia que seus documentrios consegue existir. Coutinho acredita que por priorizar no a instantaneidade, mas sim a riqueza de um presente construdo a partir de memrias ricas de significados, ele consegue algo interessante.

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A cmera d ao espectador um carter de intimidade. Pode-se fazer aqui uma relao entre esta busca dramatrgica de intimidade e o melodrama. Em seu trabalho na Comps 2005, Mariana Baltar buscou a imaginao melodramtica nos documentrios de Eduardo Coutinho. Ela diz que:O pacto de intimidade que se procura firmar na narrativa entre personagem, diretor e pblico legitimidade dos depoimentos. ele que permite, e crena de veracidade, pois ativa uma sensao de (BALTAR, 2005, p.6) ordem da garante a adensa, a confisso.

Esta sensao de intimidade conseguida nos documentrios, principalmente os de Coutinho, acaba encontrando reflexo no pblico graas a uma construo pr-existente de dramaturgia. O que so as telenovelas seno uma exposio da intimidade alheia, s que de forma ficcional? Elas fazem sucesso porque tocam as pessoas, trabalhando com os traos melodramticos na estruturao de suas histrias. Documentrios intimistas como os de Coutinho esto na mesma situao, mas tratam da re