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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ GUERRAS E REVOLUÇÕES NO SÉCULO XX] Ano 5, n° 8 | 2015, vol.2 ISSN [22364846] 1 O homem do Sputnik e Os cosmonautas: duas chanchadas no contexto da Guerra Fria Oscar José de Paula Neto * Cinema, história e chanchadas Em Cinema e História, Marc Ferro afirma que um documento histórico geralmente possui uma riqueza de significação que não é percebido no momento exato em que ele é feito por que novas significações se adicionam às narrativas à medida que o contexto passa por mudanças (FERRO, 1993, p. 88). O autor indicava que o cinema possuía as mesmas características documentais que outros tipos de documentos geralmente usados até aquele momento para o conhecimento e reflexão do passado. Assim, de acordo com os caminhos iniciais abertos por aquelas reflexões, qualquer obra cinematográfica, documental ou ficcional, contém representações diretas da sociedade da qual foi produto, tornando-se fonte histórica reveladora das práticas, imaginários, relações de poder e ideologias, escapando por vezes inteiramente da ação de seus realizadores e espectadores contemporâneos à obra. Dessa maneira, em consonância com os progressos advindos dos estudos que se dedicaram a relacionar cinema e história, tem-se a percepção de que os filmes enquanto fontes históricas auxiliam na própria resolução da disciplina e das pesquisas históricas, pois nos leva a tomá-los como “visões” da história que contem reflexões acerca da historicidade da própria história. Assim, um filme permite através da ponderação sobre as diferentes modalidades da narrativa, reflexões sobre a questão do tempo, assim como da realidade e representação, além de verdade e ficção. Aliás, * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista CAPES.

O homem do Sputnik e Os cosmonautas: duas chanchadas no ... · uma política baseada no estrelismo, como acontecia nos Estados Unidos. João Luiz Vieira indica que tais filmes eram

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Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

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O homem do Sputnik e Os cosmonautas: duas chanchadas no contexto

da Guerra Fria Oscar José de Paula Neto*

Cinema, história e chanchadas

Em Cinema e História, Marc Ferro afirma que um documento histórico

geralmente possui uma riqueza de significação que não é percebido no momento

exato em que ele é feito por que novas significações se adicionam às narrativas à

medida que o contexto passa por mudanças (FERRO, 1993, p. 88). O autor indicava

que o cinema possuía as mesmas características documentais que outros tipos de

documentos geralmente usados até aquele momento para o conhecimento e reflexão

do passado. Assim, de acordo com os caminhos iniciais abertos por aquelas reflexões,

qualquer obra cinematográfica, documental ou ficcional, contém representações

diretas da sociedade da qual foi produto, tornando-se fonte histórica reveladora das

práticas, imaginários, relações de poder e ideologias, escapando por vezes

inteiramente da ação de seus realizadores e espectadores contemporâneos à obra.

Dessa maneira, em consonância com os progressos advindos dos estudos que se

dedicaram a relacionar cinema e história, tem-se a percepção de que os filmes

enquanto fontes históricas auxiliam na própria resolução da disciplina e das pesquisas

históricas, pois nos leva a tomá-los como “visões” da história que contem reflexões

acerca da historicidade da própria história. Assim, um filme permite através da

ponderação sobre as diferentes modalidades da narrativa, reflexões sobre a questão do

tempo, assim como da realidade e representação, além de verdade e ficção. Aliás, * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista CAPES.

 

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como apontado por Michèle Lagny, o cinema ficcional, é muito mais indicado para

refletir a noção de representação por revelar a complexidade representacional nas

quais se embaraçam as tentativas de sedução ou enquadramento ideológico, revelando

então os medos conscientes e inconscientes, desejos confusos, fazendo do cinema

“um historiador inconsciente do inconsciente social” (LAGNY, 2009, p. 100 e 105).

Como diz Roger Chartier, a identificação da maneira como em diferentes

lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a

ler, nos revela as classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão

do mundo social, permitindo assim nos aproximar da percepção e da apreciação do

real de determinada temporalidade. O historiador francês ainda aponta que as

representações são historicamente produzidas a partir das práticas articuladas, sejam

estas de caráter político, social ou discursivo, que permite aos documentos que

expressam tais representações deixar de ser meros fornecedores de informações, e

passar a ser eles próprios objetos de estudo, seja em sua organização discursiva e

material, seja como fornecedoras das condições de produção ou de seus usos

(CHARTIER, 2002, pp. 16-17).

Portanto, os filmes, que são representações historicamente produzidas, se

tornam testemunhos cruciais do mundo contemporâneo, por permitir reflexões que

seriam impossibilitadas em momentos anteriores à invenção da fotografia e

cinematógrafo. Os mais importantes eventos ocorridos desde o final do século XIX

ganharam continuidade histórica por meio das imagens que reproduziram o mundo

em suas mais diversas possibilidades, além dos já costumeiros registros escritos. Os

filmes dão ao pesquisador a possibilidade de acessar outras representações de mundo

pela ação dos próprios contemporâneos aos eventos, sejam intencionais ou não. A

propósito, como afirmou Marc Ferro, o conteúdo e a significação de uma obra podem

ser apreendidos de diversas maneiras, até mesmo inversas em momentos diferentes da

história, mostrando que todo filme possui uma história que é História, construída a

partir de sua própria rede de relações que fogem ao produtor ou espectador inicial,

como ocorre com praticamente todos os produtos culturais (FERRO, 1993, p. 17).

Sendo assim, a utilização dos dois filmes escolhidos neste artigo para explorar

as relações entre cinema e história será reavaliada conforme as luzes de estudos e

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pesquisas orientadas no presente que possibilitam a percepção de elementos que

possivelmente não foram percebidos no momento em que os filmes foram assistidos

por seus contemporâneos. Infelizmente, não será possível abordar a recepção popular

que estas obras tiveram no momento em que os filmes foram realizados, devido à

dificuldade de acesso. A dimensão da recepção por parte do público brasileiro, os

depoimentos sobre o sucesso ou fracasso financeiro dos filmes, em geral, são

contraditórios e insuficientes, pois não existia ainda até aquele momento o controle

dos borderôs nos guichês das salas de exibição, tornando impossível precisar o real

sucesso de bilheteria das produções. Por isso, na ausência de melhor maneira de

apreender uma estatística confiável, as únicas possibilidades de se avaliar o êxito

comercial dos filmes estão baseadas nas várias especulações expressas nos

comentários dos cronistas e críticos da época, publicadas nos diversos periódicos

Somente após 1967, por meio da ação do Instituto Nacional de Cinema é que se tem o

início do controle mais bem estruturado da bilheteria dos filmes brasileiros (SILVA,

2014, p. 89).

O homem do Sputnik do estúdio Atlântida, lançando em 1959 e dirigido por

Carlos Manga, e Os cosmonautas, do estúdio Herbert Richers, lançado em 1962 e

dirigido por Victor Lima, são dois filmes cômicos, por assim dizer chanchadas,

representantes do gênero de cinema popular brasileiro em voga até início da década

de 1960. Ambos os filmes, por meio de linguagem simples e direta, se utilizaram do

contexto político como pano de fundo para delinear o espaço em que seus

personagens se envolveriam nas corriqueiras peripécias próprias do gênero. Tanto nas

páginas do Jornal do Brasil quanto d’O Estado de São Paulo, os críticos elogiaram os

filmes por causa da abordagem de temas tão recentes e direcionados ao debate

político que estava em voga naquele período. No entanto, criticaram o fato de que os

enredos dos filmes, principalmente Os cosmonautas, poderiam ter sido mais criativos,

assim como poderiam ter tido um elenco mais diversificado em vez dos figurões mais

 

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conhecidos que povoavam as fitas nacionais. Os críticos ainda lamentaram por estas

produções terem sido realizadas conforme os moldes da chanchada, pois as

consideravam como motivo da situação periclitante do cinema brasileiro, pois

alienavam o público e impediam a realização de obras sérias, classificando-as como

“sem valor”, “vulgar”, “desleixada” e submissa ao “apelo popular”.

Cabe salientar que durante a década de 1940, duas chanchadas dirigidas pelo

veterano realizador Luiz de Barros, que dirigia filmes desde 1914, também tiveram

seus argumentos relacionados com as guerras que marcavam o contexto político

mundial, relacionando os acontecimentos da Europa com o Brasil. Samba em

Berlim, de 1943, e Berlim na batucada, de 1944, que traziam críticas e gozações

diretas ao nazismo e caçoavam da figura de Adolf Hitler, assumindo uma atitude

antinazista declarada. Segundo Sérgio Augusto, a crítica não simpatizou com os

filmes, mas Samba em Berlim conseguiu destacado sucesso de bilheteria,

necessitando então que a Cinédia, produtora do filme, tivesse que dobrar mesmo sem

as condições necessárias as cópias do filme (AUGUSTO, 1989, p. 97-8). O sucesso da

fita se baseou nitidamente na presença dos vários artistas, muitos conhecidos do rádio

e cinema brasileiro, mas também por ter trazido um tema bastante atual que

despertava o interesse do público.

As produções de filmes de comédia, que ficaram conhecidas – e depreciadas –

como chanchadas, foram responsáveis pela manutenção do cinema brasileiro desde a

década de 1930, quando os filmes musicais carnavalescos eram a produção

hegemônica da indústria cinematográfica brasileira. Tais filmes tinham como

influência o teatro de revista, o rádio, o circo e diversos outros elementos sem

prestígio cultural, repetindo fórmulas de sucesso comprovado e buscando estabelecer

uma política baseada no estrelismo, como acontecia nos Estados Unidos. João Luiz

Vieira indica que tais filmes eram realizados num esquema industrial, sustentado por

técnicas pouco sofisticadas que tinham por objetivo o lucro máximo através de

poucos custos, criando filmes então unicamente feitos para o mercado (VIEIRA,

1987, p. 160). Embora tenha havido a experiência de alguns diretores e filmes

independentes – estes de certa forma tendo suas experiências por vezes

supervalorizadas mesmo que fossem modestas, traziam algum alento para os que

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ainda mantinham esperança de um cinema brasileiro de “qualidade”. Era a chanchada

que parecia sobreviver a todas as eventuais crises que se abatiam sobre o cinema

brasileiro ainda na primeira metade da década.

Assim, em 1941, foi inaugurada a Atlântida Cinematográfica, a principal

produtora das chanchadas, que funcionou até 1962, sendo responsável pela produção

de 66 filmes de ficção e 20 cinejornais. A Atlântida encontrou no gênero a melhor

forma de manter uma produção contínua e com garantia de público. O estúdio

produziu alguns “filmes sérios”, como A Sombra da Outra (Watson Macedo, 1950)

e Amei um bicheiro (Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952), que fizeram bastante

sucesso entre a crítica e público, mas foi com a chanchada que ela pôde manter a

produção em continuidade. Outros estúdios também produziram filmes musicais de

temática carnavalesca e do gênero chanchada, tais como Cinédia, Maristela e Herbert

Richers.

Cabe salientar que chanchada (ou a variação “abacaxi”) era um adjetivo

utilizado para caracterizar negativamente objetos culturais que eram tidos como

inferiores em relação aos ditames do cânone oficial e classificava qualquer objeto sem

valor e qualidade, podendo se referir ao teatro, música, literatura e cinema, e podiam

classificar produções brasileiras e estrangeiras. A transformação e aceitação do termo

“chanchada”, demonstra a transformação do status do gênero no pensamento

cinematográfico posterior ao momento em que os filmes eram realizados. A

chanchada ou qualquer outro termo negativo que se referia aos filmes musicais foram

gradualmente perdendo o caráter estritamente negativo para se consolidar enquanto

um gênero que abarcava genericamente filmes produzidos em determinada época e

seguia cambiantes regras.

Durante os anos 1940 e 1960, o termo passou por um processo de

“generificação”, que foi posteriormente, mais precisamente ao longo dos anos 1970 e

1980, transformado num processo de substantivação que, o livrou gradualmente de

 

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seu juízo de valor que o rebaixava em relação aos outros gêneros. Assim, o

substantivo ganhou habilidade para ser utilizado para descrever de uma forma mais

objetiva – embora simplista – o que seria um gênero de comédias – frequentemente

musicais – especificamente brasileiras (FREIRE, 2011, pp. 66-7). As chanchadas,

inclusive, passaram por transformações até em sua própria estrutura durante a década

de 1950: muitos dos filmes pertencentes ao gênero, que tinham como principal

elemento o caráter musical, deixaram de lado este aspecto e se focaram unicamente na

comédia, seja paródica, satírica ou outra, deixando cada vez mais de lado a sua

dependência dos temas carnavalescos e do sucesso dos artistas de rádio.

Sendo assim, é imprescindível avaliar os principais pontos que caracterizavam o

contexto do cinema brasileiro naquele momento para melhor compreender o papel da

chanchada e seu rechaço pelos críticos e outros intelectuais preocupados com as

questões que envolviam cinema e cultura no Brasil. Os críticos contemporâneos às

chanchadas não levaram em conta que estes, através de uma linguagem quase

“anárquica”, antes de parodiar o cinema e outras produções cinematográficas

estrangeiras, acabaram por parodiar o momento histórico e o contexto político na qual

estavam inseridos e eram produtos, parodiando então a própria ordem do mundo

(LIMA, 2011).

Dessa forma, os filmes aqui indicados alcançaram uma forma de discurso

político tão profundo e refinado como poucas vezes se viu na história do cinema

brasileiro. Todavia, a forma como os filmes abordaram assuntos tão delicados e

recentes como a Guerra Fria não correspondia ao modo como os críticos pensavam

que um filme com esta temática deveria ser realizado. As chanchadas não

encontravam simpatia junto à maioria dos integrantes do campo da crítica

cinematográfica brasileira, assim como dos outros intelectuais preocupados com

assuntos culturais, por causa principalmente da suposta falta de qualidade. Além

disso, buscavam no humor escrachado a forma de melhor dialogar com a política,

dispensando o tom sério que supostamente deveria ser utilizado como ferramenta de

crítica social e política, como por exemplo, foi realizado no cinema político dos

primeiros filmes do Cinema Novo.

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Fica claro segundo os textos dos críticos, que para além do problema referente

às deficiências técnicas e estéticas, as críticas presentes nas chanchadas ainda eram

tidas como “ingênuas”, “inocentes” e “alienadoras” em relação ao refinamento

engajado do cinema novo e suas críticas eficientes, por se utilizar do humor como

principal forma de causar efeito no público. Embora ambas partam de um universo

ficcional, a seriedade do cinema novo, é tida como superior ao achincalhamento

presente nas chanchadas. Assim, o gênero da comédia popular acaba por esbarrar na

concepção advinda desde a antiguidade clássica grega e perpetuada durante os

milênios seguintes, na qual se valoriza a tragédia e o drama em detrimento do cômico.

Dessa maneira, o riso como forma de refletir sobre a sociedade brasileira na década de

1950, atinge o mesmo patamar obtido nos séculos XVII e XVIII, por exemplo: não se

pode exprimir na linguagem do riso a verdade primordial sobre o mundo e o homem;

apenas o tom sério é adequado (BAKHTIN, 2012, p. 58).

Embora Aristóteles na Poética tenha classificado os diversos gêneros poéticos

como imitação do real, ele normativamente atribuiu juízos de valor e hierarquias entre

estes. O filósofo coloca que a principal diferença entre a tragédia e a comédia, é que a

primeira quer imitar os superiores da atualidade, enquanto a outra quer imitar os

inferiores, e que a “comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem

destruição” (ARISTÓTELES, 1996, p. 24). O riso é tido então como um divertimento

ligeiro, ligado a seres inferiores e corrompidos. No entanto, embora em lugar de

menor significação em comparação ao sério ao longo dos séculos, o cômico também

foi reavaliado pelo contexto que denota o riso como revelador do que não é

normativo, ou do desvio e do indizível, fazendo reconhecer, ver e apreender a

realidade que a razão séria não atinge.

Bakhtin aponta que na evolução seguida pela estética filosófica até aos nossos

dias, o riso e o grotesco não foram compreendidos nem apreciados de acordo com o

seu valor, já que não encontrou um lugar no sistema estético, sendo desta forma,

 

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sempre avaliados conforme os critérios que regem os outros cânones (BAKHTIN ,

2012, p. 39). No entanto, segundo Georges Minois, no século XX, o humor se torna

um instrumento de luta contra o poder, utilizando o riso como uma das ferramentas

para superar os males que assolaram a sociedade, “permitindo a humanidade a

sobreviver a suas vergonhas” (MINOIS, 2013, p. 553). O riso torna-se dessa maneira

indispensável para o conhecimento do mundo e para a apreensão da realidade

(VERENA, 1999, p. 12).

Com base nas indicações propostas por Minois, desde os primórdios do

cinema, o riso está presente e nele reencontramos as categorias habituais, ilustradas

por alguns intérpretes que contribuíram para fazer do riso uma ferramenta universal

no século XX. Dessa forma, o cinema demonstrou que tudo possuía um aspecto

risível, mostrando através do procedimento carnavalesco de rir das próprias tragédias

a possibilidade de amenizar, refletir e subverter tais ameaças: a miséria, a guerra, a

idiotia, a ditadura, a glória, a morte, a deportação, o trabalho, o desemprego, o

sagrado (MINOIS, 2013, p. 588). Assim, O homem do Sputnik e Os

cosmonautas contribuíram através da troça, do riso e da paródia para a reflexão da

Guerra Fria e seus reflexos no Brasil, além de nos possibilitar a aproximação da

leitura geral do conflito realizada de forma acessível ao público que consumia as

chanchadas, as camadas populares da sociedade brasileira.

Mesmo sem um engajamento definido, e se utilizando do humor como

principal arma, por meio da sátira e da paródia, tais filmes foram responsáveis por

levar – e refletir – reflexões a seu público, mesmo que de maneira

“descompromissada”. Segundo João Luiz Vieira, as chanchadas deram margem ao

surgimento e à elaboração de uma visão irônica e crítica da sociedade brasileira,

constituindo assim ironias a base de uma “sociologia de quintal”, que ampliava seu

olhar sobre o cotidiano da vida carioca e seus tipos populares (VIEIRA, 1987, p. 172).

Os filmes traziam diversas críticas aos vários problemas que assolavam a sociedade

brasileira, e de forma mais sistemática o Rio de Janeiro, quando ainda era a capital

federal do país. Assim, os problemas oriundos da inflação, das migrações rurais para

os grandes centros urbanos, do analfabetismo, da péssima qualidade dos serviços de

saúde e de transporte, do funcionalismo público, da corrupção na política e das

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diversas formas de desigualdade sociais, estavam presentes de forma direta ou

indireta nas chanchadas. No caso dos dois filmes aqui destacados, ainda relacionavam

estes aspectos geralmente discutidos no conjunto das produções nacionais com o

conflito que polarizava o mundo em prol dos interesses políticos das duas

superpotências.

Até a realização das duas chanchadas que se basearam mais intimamente com

os acontecimentos relacionados à Guerra Fria, muitos dos principais acontecimentos

que marcaram o conflito já haviam ocorridos, tal como a Guerra da Coreia, a

intensificação da corrida armamentista, a corrida espacial e a construção do muro de

Berlim. O homem do Sputnik está mais relacionado com a corrida espacial travada

entre os Estados Unidos e União Soviética, enquanto Os cosmonautas soma as suas

ponderações sobre corrida espacial, à corrida armamentista e o temor da guerra

nuclear, de forma mais diretamente relacionada ao conflito, com direito a mensagem

pacifista. A paz que parecia possível almejar após o fim da Segunda Guerra em 1945,

parecia cada vez mais difícil de ser alcançada: as divergências entre os aliados

ocidentais e os soviéticos no momento pós-guerra se intensificaram e foram as

origens imediatas do conflito que se estendeu por pouco mais de quarenta anos.

Segundo Eric Hobsbawm, o conflito se baseou numa crença ocidental,

retrospectivamente absurda, mas natural, de acordo com o contexto ainda

profundamente marcado pelas duas guerras que ocorreram na primeira metade do

século e de que as catástrofes ainda não haviam sido totalmente superadas

(HOBSBAWM, 2009, p. 228).

Os filmes dialogaram diretamente com as gerações que viveram as duas outras

guerras do século XX, que tinham a almejada paz como algo praticamente impossível

de ser alcançada, pois sempre havia a constante ameaça de batalhas nucleares que

podiam devastar a humanidade a qualquer momento. Tanto a União Soviética quanto

os Estados Unidos se utilizaram de tal ameaça, embora tivessem a noção de que a

 

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guerra direta seria suicídio para ambos. A ameaça nuclear se intensificou em algumas

ocasiões como, por exemplo, quando os Estados Unidos quiseram acelerar as

negociações de paz na Coréia e no Vietnã entre 1953 e 1954, assim quando a União

Soviética utilizou para forçar a retirada da Grã-Bretanha e França de Suez em

1956 (HOBSBAWM, 2009, p. 227).

Além disso, os filmes também dialogaram com o acelerado processo de

modernização pelo qual estava passando o país desde o final da Segunda Guerra e que

transformava as chanchadas em algo antiquado e fora da órbita desenvolvimentista

que clamava pelo novo em todas as esferas da sociedade brasileira. Segundo Lucília

de Almeida Neves Delgado, na segunda metade da década de 1950 a sociedade

brasileira foi tomada pelo afã da superação do subdesenvolvimento estrutural do país,

que impedia o Brasil de adentrar a era da modernidade, mesmo que tardia

(DELGADO, 2007, pp. 362-3). Portanto, as chanchadas em caminho outsider em

relação a esse processo acabavam por ser tidas pelos intelectuais como marcadoras do

Brasil que deveria ser superado, pois revelava as características arcaicas, provincianas

e tradicionais do país.

Entretanto, estas duas chanchadas que escolhemos para refletir sobre o

impacto da Guerra Fria na sociedade brasileira, acabaram por se transformarem em

testemunhos diretos da repercussão dos conflitos e de todo aquele debate político que

pululavam nas páginas dos jornais, rádio, cinejornais e televisão durante as décadas

de 1950 e 1960. Tais chanchadas tomaram uma conotação política inusitada por tratar

de temas bastante complexos os recentes acontecimentos da Guerra Fria. Assim, nos é

necessário a partir de agora nos dedicarmos mais especificamente aos principais

pontos que compuseram estas crônicas, objetos dos mais contundentes para a reflexão

da relação do país com os conflitos mundiais que marcaram o século XX.

O homem do Sputnik

O filme dirigido por Carlos Manga foi lançado nos cinemas do Rio de Janeiro

em 1959 e recebeu os prêmios de melhor diretor e melhor argumento, realizado por

Cajado Filho, no Festival de Cinema do Distrito Federal e de melhor atriz secundária

para Norma Bengell, por sua paródia de Brigitte Bardot, pela Associação Brasileira

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dos Cronistas Cinematográficos. O homem do Sputnik foi um dos últimos pontos altos

da Atlântida e sem dúvida um dos melhores filmes do gênero da comédia popular

brasileira.

Na edição de 5 de julho de 1959 do Jornal do Brasil, o crítico Geraldo

Queiroz declarou que o filme podia ser considerado a grande surpresa daquela semana

de lançamentos e ainda melhor do que a chanchada De vento em popa, tida com certa

simpatia pelos críticos. Queiroz apenas se lamentava de que o filme era acometido

pelo mesmo elenco repetitivo, mas que sem dúvidas aquela era a melhor realização do

diretor até aquele momento. Além disso, juntamente com Nem Sansão nem Dalila,

também dirigido por Carlos Manga, é um dos filmes em que o suposto discurso

inocente que constituíam a maioria das chanchadas alcançou crítica mais bem acabada

em relação aos acontecimentos políticos dentre todas as produções realizadas no

Brasil até aquele momento, mesmo que os intelectuais e críticos contemporâneos à

obra não tivessem percebido seu potencial. Enquanto Nem Sansão nem Dalila exibia

de forma clara e didática, as manobras de um golpe comunista, assim como os

mecanismos de contra reação (VIEIRA, 1987, p. 169), O homem do Sputnik exibia as

artimanhas e intenções das grandes potências mundiais para tomarem a supremacia

da corrida espacial.

Devemos apontar que a direção de Manga constitui um fator evolutivo para as

comédias da Atlântida, que juntamente com Watson Macedo, dotaram as

chanchadas de uma atmosfera mais sofisticada, a partir de melhor acabamento

técnico, diferente dos filmes anteriores, em que o fator do improviso era mais

explicito (VIEIRA, 1987, p. 172). No documentário Assim era a Atlântida, realizado

em meados da década de 1970 por Carlos Manga, o ator Cyll Farney revelou que

antes os filmes eram marcados por “bolas vermelhas, fumaça de gelo seco, muita

pancadaria” e posteriormente com a chegada de Manga à direção, “[...] os efeitos de

luz substituíram definitivamente as rampas, o gelo seco e as bolas coloridas; já a

 

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fotografia era um gosto especial do diretor, que privava por resoluções apuradas,

seguidas de música de boa sonoridade”. Além dos filmes já citados, Matar ou

Correr (1954), Treze Cadeiras (1957) e Esse milhão é meu (1958), possuem a mesma

dinâmica inovadora iniciada pelo diretor no estúdio carioca, como por exemplo, se

privar dos números musicais.

A sinopse do filme disponível no arquivo da Cinemateca Brasileira é muito

completa e nos revelava os principais eventos do filme:

O casal de caipiras comerciantes de ovos, Anastácio e Cleci, são

surpreendidos por um estrondo em seu galinheiro. Anastácio encontra

entre suas galinhas um globo metálico. No dia seguinte, Cleci lê no jornal

sobre o acidente com o satélite russo Sputnik e reconhece na fotografia um

objeto semelhante ao que caiu em seu quintal. Anastácio leva o globo à

casa de penhores e mostra-o para a funcionária Dorinha. Ela liga para o

jornal onde trabalha seu namorado, Nelson, e lhe conta o fato. Alberto,

jornalista inescrupuloso, ouve a conversa entre o casal e conta a novidade

ao chefe do jornal. Nelson vai ao encontro de Anastácio e pede a ele que

esconda o objeto. Anastácio coloca-o dentro do poço. A notícia de que o

Sputnik caiu no Brasil vira primeira página dos jornais. Anastácio e Cleci

se transformam em celebridades. Hospedam-se no Copacabana Palace,

onde recebem propostas de grupos de russos, americanos e franceses que

tentam seduzir Anastácio, apresentando-lhe a cantora francesa Bebe. Os

interesses desmedidos dos estrangeiros pelo satélite levam os dois à

loucura. Anastácio é raptado pelos franceses e Nelson pelos americanos.

Fogem e voltam para a casa de Anastácio. Russos, americanos e franceses

os seguem, disputando o valioso troféu, que ninguém sabe onde está.

Anastácio revela o local onde o Sputnik se encontra e todos se alvoroçam.

Não encontram nada no poço. Ao passar pelo local, o sacristão diz que

pegou o Sputnik e transformou-o em para-raios para a igreja. Os agentes

estrangeiros partem decepcionados e Anastácio e Cleci voltam para casa,

mas se deparam com o verdadeiro Sputnik que acabara de cair no

galinheiro.

O argumento e roteiro de Cajado Filho e a direção de Carlos Manga, unem as

costumeiras críticas aos problemas da sociedade brasileira com os acontecimentos

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mais marcantes da Guerra Fria até aquele momento. As notícias sobre o Sputnik, o

programa soviético que produziu a primeira série de satélites artificiais a fim de

avaliar as capacidades de lançamento de cargas úteis para o espaço era um dos

principais assuntos nos jornais que noticiavam os avanços das duas principais

potências mundiais no desenrolar da corrida espacial. O programa visava analisar os

efeitos da ausência de peso e da radiação sobre os organismos vivos, assim como

examinar as propriedades da superfície terrestre fomentando o desenvolvimento dos

projetos para os primeiros voos espaciais tripulados.

Durante a segunda metade da década de 1950, a União Soviética, agora sob a

direção de Nikita Khrushchev, passou a desenvolver uma política de âmbito mundial,

recuperando-se nos planos econômicos e demográficos dos impactos causados pela

Segunda Guerra Mundial. O país havia conquistado a dianteira na corrida nuclear em

comparação aos Estados Unidos e conseguira ultrapassá-los no que tangia à corrida

espacial. Em 1957, os soviéticos enviaram o primeiro satélite artificial, que

possibilitou o avanço nas pesquisas que acabaram por colocar em órbita o primeiro

homem em 1961, o cosmonauta Yuri Gagarin. 1 Além disso, Khrushchev

implementou, apesar das perceptíveis deficiências, uma diplomacia realmente

mundial, com programas modestos de ajuda ao nacionalismo no Terceiro mundo, que

permitiram a percepção do próprio país como uma potência mundial que em pouco

tempo ultrapassaria os Estados Unidos (VIZENTINI, 2000, p. 208). No entanto, a

concorrência com os americanos, mesmo sendo feita de maneira intensa pelos

soviéticos, principalmente no campo tecnológico, foi se tornando cada vez mais

difícil, principalmente depois que os Estados Unidos conseguiram chegar à Lua. O

desenvolvimento da tecnologia da URSS ficou rapidamente mais fraco se comparado

1 Durante o período da Guerra Fria, os termos "astronauta" e "cosmonauta" indicavam diferenças conforme o país responsável pelo envio dos tripulantes para o espaço. O primeiro se referia aos pilotos e passageiros de missões espaciais comandadas pelos Estados Unidos, enquanto o segundo denominava os participantes de viagens espaciais soviéticas.

 

14  

com o avanço tecnológico empreendido pelos Estados Unidos, e a fase da liderança

soviética na corrida espacial logo se esmaeceu (BIAGI, 2001, p. 103).

Embora disputada pelas duas grandes potências mundiais, a corrida espacial

foi marcada por transformações que influenciaram o mundo de maneira marcante,

afinal o evento foi mais do que um simples desenvolvimento científico e tecnológico,

tornando-se parte do jogo de disputas que envolvia não apenas as nações diretamente

ligadas à corrida, mas o imaginário da sociedade como um todo. Conforme as

palavras de Hobsbawm, aquele era o momento em que a humanidade se deparava

com um “universo desconhecido”, de contornos indefinidos e prognósticos

catastróficos, aonde o temor dos conflitos nucleares se tornou uma presença constante

(HOBSBAWM, 2009, p. 227-234). Através da expansão dos meios de comunicação,

dentre eles a crescente difusão da televisão, os problemas longínquos eram

apresentados de forma cada vez mais cotidiana para milhões de pessoas, mais

rapidamente e facilmente que o jornal, tornando-as familiarizadas com os desenlaces

da corrida e do conflito como um todo (BIAGI, 2001, p. 93-94).

Neste contexto, Cajado Filho, numa viagem ao interior do Rio de Janeiro

avistou em cima do telhado de uma casa, uma reluzente bola de metal com cerca de

60 centímetros de diâmetro e concebeu o argumento de O homem do Sputnik e o

apresentou a Carlos Manga (AUGUSTO, 1989, p. 143). Assim nasceu o filme que

satirizava os absurdos da Guerra Fria por meio do viés carnavalesco que marcava as

chanchadas. O medo perante a eminência do possível conflito nuclear que marcou o

período foi avaliado pelo riso, que na sua forma carnavalesca, tal como indicado pelos

apontamentos de Bakhtin, atinge sua forma universal, fazendo com que todas as

coisas e pessoas pareçam cômicas, até mesmo a guerra (BAKHTIN, 2012, p. 10).

Sendo assim, Manga em atitude ousada, satirizou em seu filme muito mais o

poder americano e sua relação com a América Latina e mais especificamente o Brasil

do que o regime soviético. Segundo o crítico Sérgio Augusto, o diretor se referia a O

homem do Sputnik como o seu ajuste de contas com o poder cultural e econômico dos

Estados Unidos. Em entrevista com o crítico, Manga confessou que “em 1959 eu

finalmente me conscientizei de que havia sido usado, manipulado, pelos americanos”.

Além disso, afirmou que por causa das críticas feitas aos americanos no filme, ele

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teve problemas com a censura e perdeu uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, que

já estava praticamente acertada. Segundo o diretor, a censura implicou com um close

realizado no filme, que mostrava a águia americana, símbolo de sua democracia,

desenhada com uma coca-cola em suas garras e emoldurada por duas palavras: USA e

ABUSA (AUGUSTO, 1989, p. 144).

Um ponto que merece ser destacado são as representações das grandes

potências realizadas durante a fita. De forma satírica, Manga nos apresentou além das

duas grandes potências que se opunham na Guerra Fria, a participação da França, país

que também havia se destacado no momento posterior à Segunda Guerra. Dessa

forma, foram representados os estereótipos claros de cada um desses países, focando

em seus interesses pela posse do Sputnik que supostamente teria caído no quintal de

um homem brasileiro no interior do Rio de Janeiro. Podemos indicar que uma das

grandezas do filme se nota na atitude de seus realizadores de não tomarem partido de

nenhum dos envolvidos na corrida pelo resgate do Sputnik, nem mesmo do brasileiro,

pois Anastácio Fortuna e sua esposa aproveitam-se da condição de donos do satélite

para enriquecer e aproveitar dos frutos do prestigio que aquela posição lhe trazia,

apostando agora numa vida de luxo e glamour na capital, bem enquadrado na fórmula

do “jeitinho brasileiro”.

Sendo assim, cabe repassar os principais aspectos estereotipados dos

envolvidos na guerra levantados pelo filme. Na representação dos soviéticos os

estereótipos se mostram através do clima sombrio com que são retratados os chefes do

governo soviético. O ambiente é escuro, pesado e antigo, dando uma atmosfera

sufocante tal como ocorre num filme de terror. Isso também pode ser visualizado na

figura dos personagens retratados. A iluminação, a direção de arte e a montagem da

cena, que contou com movimentos de câmera ousados para o padrão médio das

chanchadas foram responsáveis por causar este efeito.

 

16  

A cena se inicia com um casal de camponeses velhos e moribundos clamando

ajuda aos dirigentes por não terem alimentos e passando dificuldades, sobrando-lhes

apenas para as vacas que produzem alimentos para o progresso da nação. Porém, o

dirigente em tom intransigente e arrogante afirma que o regime do país é feito a base

de “lutas e sacrifícios”, o que acabou por expurgar a palavra “interesse” do dicionário,

a fim do regime alcançar o seu principal ideal: dominar o mundo. Assim, o dirigente

afirma que naquele regime “só ganha quem produz” e coloca os camponeses em

posição inferior às vacas, já que estas produzem alguma coisa de útil ao governo.

Além disso, os dirigentes são mostrados como ignorantes: não sabem onde

fica o Brasil, e é a camponesa que indica a localização geográfica do país, afirmando

que este é na América, mas “a de baixo”. A seriedade da cena se quebra quando na

saída dos camponeses do aposento, os dirigentes sérios e sombrios iniciam uma dança

louca e desajeitada e confirmam sua partida para o Brasil, terra de lindas morenas e

samba. Cabe salientar aqui, uma contradição da sociedade soviética expressada no

filme: enquanto a população soviética estava afundada em fome e pobreza, o alto

escalão do governo estava alojado num ambiente luxuoso, usufruindo de regalias cada

vez mais distantes da população comum, como por exemplo, consumir coca-cola, que

está no armário de bebidas dos dirigentes do partido.

Enquanto isso, a cena que retrata os americanos se inicia com a narração dos

experimentos fracassados por parte do governo americano no envio de satélites ao

espaço, enquanto os russos já haviam colocado em órbita os satélites do programa

Sputnik. Aqui é confirmada a supremacia do desempenho soviético e a posição de

liderança nesta etapa da corrida espacial. Quando um dos personagens recebe a

notícia da queda do Sputnik no Brasil, se pergunta o porquê do satélite não ter caído

em solo norte-americano, afirmando isto se tratar de uma desconsideração com o país

mais rico do mundo. Os americanos são representados de maneira imbecilizada, jovial

e no clima mais farsesco da juventude geralmente representada no cinema americano.

Estes estão mascando chiclets e bebendo coca-cola, e assim como os russos também

não sabem onde fica o Brasil. Após uma hilária conversa que faz com que lembrem

do Brasil por causa do café, estes se perguntam se o país fica na Malásia ou é a

capital de Buenos Aires.

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Os americanos do filme expressam todos os estereótipos possíveis em relação

ao Brasil e citam os principais aspectos reconhecidos mundialmente quando se

referem ao nosso país: samba, rebolado e bananas na cabeça, fazendo alusão à figura

de Carmen Miranda. Quando o alto comando americano resolve enviar estes agentes

para cá a fim de conseguir o Sputnik, um deles indica que será necessário apenas

enviar alguns dólares ao Brasil, para que enviem o satélite para eles. Entretanto o líder

dos jovens agentes, interpretado por Jô Soares, afirma que não precisa de tanto

esforço: basta enviar chicletes, coca-cola, meias de nylon e outras bugigangas de

matéria plástica para enganar “um bando de índios”. Esta cena acaba por remeter às

transações dos índios quando da chegada dos europeus, que eram baseadas na troca

das riquezas minerais e naturais por espelhos e outros apetrechos sem importância.

Por fim, fazem um brinde à missão como parte da “política de boa vizinhança

americana”.

Por último, e com menor destaque em relação às cenas que remetiam às duas

grandes potências mundiais, os franceses são representados em um requintado

ambiente luxuoso e repleto de obras de arte. Aqui nos deparamos com Norma

Bengell, interpretando BB, clara alusão à atriz francesa, Brigitte Bardot, sensação

naquele momento. Esta é uma das agentes que virão em busca do Sputnik. Assim

como os americanos, os funcionários do líder francês também se perguntam o porquê

da queda do satélite no Brasil. No entanto, os franceses ainda não sabem o que iriam

fazer com o Sputnik, como podemos apreender no diálogo de um dos personagens

que indica que a França deve se lançar nesta busca por também intenciona participar

da conquista espacial, empreendidas pelos americanos e soviéticos. Curiosamente, em

vez de tomar o satélite por meio da força, acreditam ser possível conquistar o objeto

através do “amor” e, portanto, a ação de BB será imprescindível. Assim, o chefe

francês ordena a seus agentes que partam para a “Terra do Pelé”.

 

18  

Assim os personagens e países são apresentados através de todos os

estereótipos mais reconhecíveis de cada uma dessas nações, seja através do sotaque

característico a cada um deles, seja através das vestimentas e maneiras de se

comportar. Os primeiros encontros dos agentes de cada país com o personagem

representado por Oscarito são muito significativos para demonstrar a relação destes

com o malandro sagaz, híbrido de ingenuidade e esperteza, papel desempenhado com

experiência pelo principal ator das chanchadas. Enquanto os soviéticos são mostrados

pela sisudez, suposta seriedade e atitude opressora, os americanos são representados

por meio do humor indisfarçado do agente interpretado por Jô Soares, que força

relações de intimidade com o brasileiro. O americano se coloca como o vizinho que

veio especialmente para encontrar o dono do Sputnik, pois os americanos querem

ocupar sua posição de vanguarda a fim de justificar suas posições de “o maior, o

melhor, o mais inteligente, o mais sábio, o mais organizado, o mais rico, o mais

amigo”, complementado sarcasticamente por Oscarito: “da onça”. No entanto,

reforçando o estereótipo mulherengo do homem brasileiro, este quase é seduzido pelo

charme feminino, por meio da ação de BB, na antológica cena de striptease

desempenhada por Norma Bengell, em ótima imitação de Brigitte Bardot.

Assim O homem do Sputnik, acaba por zombar de todas as grandes potências

que estavam ali naquela corrida sem sentido em busca do Sputnik, caçoando da

loucura que era a Guerra Fria, principalmente em seu final quando se revela que o

suposto satélite era apenas um para-raios do telhado de uma igreja. Também o filme,

como era de praxe nas chanchadas trouxe várias críticas aos problemas enfrentados

nas mais diversas esferas da sociedade brasileira. Podemos indicar aqui a costumeira

crítica ao funcionalismo público no Brasil, marcado pela morosidade, mau

atendimento e falta de interesse dos funcionários da Caixa Econômica Federal, na

cena em que o personagem de Oscarito, é tratado com desdém pelo bancário que faz

pouco caso da posição subalterna do homem rural. Mais direta é a crítica por meio do

trecho em que a personagem de Zezé Macedo entra em contato com o DPI,

Departamento de Pesquisas Interplanetárias. Após buscar orientações do funcionário

que atende ao telefone no departamento, a mulher é informada de que todos os

funcionários estão em horário de café e, portanto, não poderá ser ajudada.

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Além disso, numa cena muito rápida e supostamente “inocente”, um

personagem, o vigário, montado num burro batizado de Vereador ao se despedir de

Oscarito fala: “vamos Vereador, vamos trabalhar um pouquinho”. Esse trecho do

filme causou um mal-estar em meio aos vereadores tal como expressa a edição de 7

de julho de 1959 do Jornal do Brasil:

Houve uma reunião na Câmara dos Vereadores que, esquecida de que não

são os únicos Vereadores do Brasil, resolveram enfiar a carapuça e

protestar contra o fato de o filme O homem do Sputnik ter um burro

chamado “Vereador”. Não se lembram de que existem animais no Prado

com nome de gente, o que constituem uma homenagem. Mas houve um

detalhe curiosíssimo. O único Vereador que achou perfeito o burro

chamar-se “Vereador” foi o Sr. Frederico Trota. A vida tem dessas

coisas...

Os cosmonautas

O filme escrito e dirigido por Victor Lima foi lançado nos cinemas em 1962,

num momento em que as chanchadas já pareciam ter esgotado sua boa recepção pelo

público. Os filmes que antes pareciam ser a única produção possível dos estúdios

brasileiros, agora pareciam cada vez mais com algo ultrapassado em relação aos

outros gêneros de filme, mesmo entre as produções brasileiras. O estúdio Herbert

Richers, responsável pela realização de Os cosmonautas, produzia chanchadas apesar

do visível esvaziamento do sucesso das comédias populares, propiciado por muitos

fatores, entre eles o crescente sucesso da televisão e a migração desse tipo de humor

para os programas televisivos. Cabe salientar, que ainda em 1962, a Atlântida lançou

seu último filme, Os apavorados, antes de encerrar definitivamente suas atividades.

Inicialmente o estúdio Herbert Richers se dedicou à produção e distribuição de

filmes musicais carnavalescos, mas com a crescente estabilidade do mercado e o

 

20  

esgotamento daquele tipo de filme passaram a produzir dramas, e deram origem a

filmes de grande sucesso de público e crítica como O pagador de promessas

(Anselmo Duarte, 1962), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, e Assalto ao trem

pagador (Roberto Farias, 1962), filme que conquistou sucesso junto ao público e

crítica. Em balanço sobre a produção de filmes realizados no Brasil em 1964, a edição

de setembro do periódico mineiro Revista de Cinema, informava que o estúdio

Herbert Richers, que antes fora marcado pelo “conservantismo” e pela “política de

chanchadas”, percebeu o boom originado pelo cinema nascedouro (neste caso o

cinema novo) e resolveu investir em um cinema que fosse digno de nota.

Em 28 de outubro de 1962, no momento do lançamento do filme em São

Paulo, em coluna não assinada d’O Estado de São Paulo algum cronista

cinematográfico afirmou que aquela não passava de mais uma tentativa de

sobrevivência do gênero, que estava “sempre em dia com a gíria e com tudo que

parecia acontecer ao redor dos seus estreitos horizontes”. No entanto, não se

considerou a profundidade dos assuntos e a forma como estes foram tratados no filme.

Além disso, era um diferencial nos próprios temas tratados geralmente pelas

chanchadas. Por outro lado, na edição de 7 de outubro de 1962 do Jornal do Brasil, o

colunista elogiou o filme apesar das deficiências indicadas por ele, como o uso dos

atores repetitivos e ruins das chanchadas, mas que se tratava de “um divertimento

para o grande público, muito apropriado para a época atual em que os feitos dos

heróis do espaço ganham as manchetes de toda a imprensa do mundo”. Ainda achou

que o público perceberia o tom pacifista assumido pelo filme, “no sentido de que o

homem venha abolir as guerras e acabe com os armamentos”.

Segundo a ficha do filme, presente no acervo digital da Cinemateca Brasileira,

a sinopse resume os principais eventos narrados na película:

O professor Inacius Isidorius, Chefe do Centro de Pesquisas Espaciais de

Cabo Carnaval, aqui no Brasil, acaba de lançar com sucesso um de seus

foguetes e de colocar em órbita em torno da Terra uma cápsula tripulada

por um símio. Agora ele prepara-se para a sua maior proeza: enviar dois

homens à Lua, antes que os americanos ou os russos cheguem a esse nosso

satélite. Há, no entanto, um problema. Ainda não foram encontrados os

dois cosmonautas. Assim, o professor decide enviar o chefe de seu FBI

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(Fiscalização Brasileira de Investigações), o irrequieto Zenóbio, para

encontrar, com a máxima urgência, os dois cosmonautas, que deverão ser

duas pessoas completamente inúteis e desnecessárias, pois se a experiência

falhar ninguém perderá nada. Depois de um treinamento intensivo a que se

submetem os cosmonautas, chega o dia do lançamento. Eles estão prontos

para a grande partida, rumo ao desconhecido. Zeca, um dos cosmonautas,

que descobrira que onde o professor também guardava a sua perigosa

invenção, uma bomba de cobalto capaz de destruir de uma só vez grande

parte de nosso planeta, havia milhões de cruzeiros. Decide ficar na Terra

para roubar todo esse dinheiro e, na hora da colocação dos cosmonautas na

cápsula, põe em seu lugar, contra a vontade deste, naturalmente, o

irrequieto Zenóbio. Isso provoca uma grande confusão na Terra, com a

ameaça de explosão da bomba de cobalto.

Assim, por meio das aventuras da dupla de comediantes Ronald Golias e

Grande Otelo, o filme dialogava de forma mais próxima com os mais recentes

acontecimentos ligados à Guerra Fria, tanto na corrida armamentista quanto na

corrida espacial. O personagem de Ronald Golias se chama Gagarino, em clara alusão

ao cosmonauta russo Yuri Gagarin. É interessante a soma de imagens documentais de

envio de satélites ao espaço, além de cenas documentais de ações da aeronáutica

brasileira e da AEG, Companhia Sul-Americana de Eletricidade, para simular a

Centro de Pesquisas Espaciais de Cabo Carnaval, a estação espacial responsável por

fazer com que o Brasil adentrasse à corrida espacial empreendida pelas grandes

potências mundiais. Aliás, numa passagem do filme, um repórter, ao noticiar o

sucesso que foi o lançamento do primeiro foguete espacial brasileiro, o Nacionalista I,

tripulado por um macaco, também em alusão ao envio da cadela Laika pelos

soviéticos, afirma que o sucesso daquela empreitada mostrava a tentativa do governo

 

22  

brasileiro de transformar o país na terceira força entre as nações que pretendiam a

conquista do espaço.

Desse modo, com o lançamento e sucesso do primeiro foguete agora era a

hora do Brasil ser a primeira nação a enviar homens ao espaço. Assim, os cientistas

responsáveis pela empreitada cogitam o envio de dois homens para a órbita espacial,

mas salientando que estes sejam inúteis e desnecessários ao mundo, pois tencionavam

evitar problemas decorridos de acidentes caso o envio do foguete fracassasse. Assim,

um dos escolhidos é o personagem de Golias, que é um vendedor de aspiradores de

pó, tidos como a “maravilha do século criada pela indústria nacional”. Os

cosmonautas, assim como outras chanchadas, tinha forte relação com o tema do

desenvolvimentismo e industrialização por qual passava o país naquele momento.

Durante o filme, o discurso nacionalista é tomado de maneira controversa,

focando, por um lado, na esperança da população brasileira que estava curiosa e ávida

pelas notícias em torno do envio dos satélites brasileiros ao espaço, numa notável

demonstração do clima efervescente por qual passava o país, assim como no uso

desse discurso nacionalista pelo Deputado Veloso, de maneira desonesta a fim de

angariar votos, e de poder lucrar algum dinheiro. Segundo Lucília de Almeida Neves

Delgado, durante as décadas de 1950 e 1960, a concepção nacionalista adicionou-se

ao projeto nacional desenvolvimentista, desenvolvendo-se dentre muitas

preocupações, a necessidade de superar a face subdesenvolvida da nação. Até 1964, o

programa nacionalista foi apropriado por expressivas organizações da sociedade civil

e por inúmeros parlamentares, que transformaram tanto o Poder Legislativo como os

sindicatos, as organizações estudantis, os movimentos camponeses, as universidades e

associações profissionais em espaços privilegiados de discussão e divulgação de suas

principais teses. Assim, o nacionalismo era tido como instrumento necessário ao

progresso, à superação do subdesenvolvimento e à afirmação da nacionalidade, e

ganhava notável destaque nos diversos meios, obtendo amplo apoio também dos

populares. (DELGADO, 2007, pp. 361-2).

Ainda, juntamente com a corrida espacial, a corrida armamentista ganhou

grande espaço na trama do filme, a partir da criação da primeira bomba de cobalto,

fabricada pelos cientistas brasileiros, cuja força era capaz de destruir todo o sudeste

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do Brasil. O Deputado Veloso acredita que nada melhor do que uma bomba forte para

garantir o prestígio de um país e afirma que já desviou dinheiro dos ministérios da

educação, cultura e fazenda para financiar sua produção, almejando a projeção no

mundo do Brasil como potência de primeira grandeza. Por acidente, a bomba acaba

por ser enviada ao espaço com os dois primeiros cosmonautas humanos. É nesse

ínterim que entra em ação a extraterrestre Krina Iris, a fim de evitar a catástrofe na

Terra. A extraterrestre pretende ajudar a salvar a Terra porque o povo de seu planeta é

muito parecido com os terráqueos e vive num estágio avançado por ter abolido as

guerras. Daí sua tentativa de convencer os humanos a investirem o dinheiro gasto em

armamento e guerras em melhorias para a população mundial.

Assim, Krina Iris após as muitas peripécias dos comediantes enviados para o

espaço, acaba por convencer aos dois cosmonautas a insistirem junto aos cientistas e o

governo brasileiro, e também com os outros chefes de Estado responsáveis pelas

guerras de que aquilo deveria ser evitado. Aqui a mensagem pacifista do filme

também acaba por tomar uma faceta contraditória a fim de que a paz saísse vitoriosa:

se os responsáveis não desistissem do plano da bomba de cobalto, esta seria largada

em direção à Terra, causando eminente destruição em algum lugar do planeta. Assim

é dado um prazo para que os governantes brasileiros e as outras nações envolvidas na

Guerra Fria se compadeçam com o destino dos terráqueos e concordem em destruir

seus armamentos nucleares para colocar um fim definitivo nas guerras. Desse modo,

em cena muito similar à realizada em O homem do Sputnik, se tem a encenação dos

chefes de Estado envolvido nos conflitos da guerra: brasileiro, americano, soviético e

cubano, cada um sendo representado por meio de seus devidos estereótipos.

Enfim, os presidentes das grandes potências se unem em prol da paz e aceitam

o acordo, havendo então um pacto de paz entre os soviéticos e americanos, que

concordam em cessar suas atividades bélicas. As grandes potências decidem destruir

todas as armas e por fim acabar com as guerras. No caso brasileiro, os oitocentos

 

24  

milhões de cruzeiros que seriam gastos com os programas de armamento são

prometidos a serem reinvestidos na melhoria das condições de vida da sociedade

brasileira. Comemorações nas ruas são mostradas para ressaltar como a população

estava clamando por paz e ansiosos por melhores qualidades de vida. São exibidas

manchetes de jornais e faixas levadas pelo povo indicando os principais motivos da

felicidade que tomaram as ruas: "As favelas vão acabar! Viva os cosmonautas!",

"Adeus, Miséria! Viva Gagarino!", "Obrigado, cosmonautas! Teremos estradas!" e

"Os cosmonautas acabam com a fome!". Os cientistas e o deputado responsável pela

fabricação da bomba de cobalto cinicamente se convertem à paz e se posicionam de

maneira oportuna e se unem às comemorações, a fim de trabalhar em prol do discurso

pacifista e pensando em tirar proveitos diretos para a próxima eleição.

Entretanto, por pouco tempo a paz durou. Nem mesmo a ficção foi capaz de

dar conta da cruel realidade em que a guerra não parava de se propagar no breve

século XX. Nem mesmo os finais das chanchadas, sempre felizes marcados pela

eterna vitória do bem contra o mal foram capazes de manter a paz. Na escolha por um

desfecho pessimista, totalmente incomum ao grosso do gênero, Os Cosmonautas

termina de forma imprevisível: apesar de todo o pacifismo defendido ao longo do

filme, que acabou por tornar realidade a erradicação dos principais problemas do

Brasil, os humanos não cumprem os acordos estabelecidos anteriormente, no

momento da ameaça por parte dos cosmonautas de lançarem a da bomba de cobalto

contra a Terra e reiniciam a guerra. A União Soviética retorna as experiências

nucleares por causa dos desentendimentos em relação ao caso de Berlim, causando a

recusa por parte dos Estados Unidos de também se retirar da capital alemã e retomar o

uso de armamentos pesados. Enquanto isso, o governo brasileiro decide cancelar os

planos de destinar verba para a resolução dos problemas das favelas, da saúde pública

e da alimentação. Todo o trabalho dos cosmonautas havia sido em vão, pois os

humanos já estavam perdidos em meio à barbárie.

Apesar de todas as qualidades inerentes ao filme, o crítico Francisco Salles

d’O Estado de São Paulo, na edição de 4 de novembro de 1962, advertia que o

espectador desprevenido que assistir aos dez minutos finais de Os Cosmonautas

ficaria maravilhado, pois acreditaria que a chanchada havia superado seu estado de

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“indigência intelectual”, iniciando um novo período de existência ainda que não fosse

original. Entretanto, segundo Salles, o filme ainda era igual a todas as outras

chanchadas. O crítico afirmou também que apesar da “vivacidade de ritmo e bom

aproveitamento das situações que, aliados à atual crise internacional, dão ao filme

uma nota de atualidade inesperada e particularmente saborosa”, que tornou o filme

“involuntariamente curioso”, não conseguiu superar as suas próprias deficiências

marcadas pelo “padrão baixíssimo adotado pelo cinema brasileiro deste gênero”. Mais

uma vez a crítica contemporânea às comédias populares não levou em conta as

potencialidade da chanchada em seu diagnóstico e análise.

Conclusão

Em tom costumeiro às várias gerações de críticos de cinema brasileiros até

início da década de 1960, formados unicamente por critérios críticos e estéticos

estrangeiros, seus textos acabavam por analisar o gênero da chanchada conforme

fundamentos que não eram muito adequados para refletir conjunturalmente a

incipiente produção cinematográfica brasileira. Sendo assim, os críticos tentavam

ajustar os filmes brasileiros aos modelos de crítica estrangeiros muito distantes ou

inapropriados para a reflexão das características inerentes à realidade cinematográfica

do país, marcada por dificuldades que iam desde a produção até a exibição nos

cinemas.

A chanchada, mesmo sendo um gênero que conseguiu boa aceitação do

público e garantiu a continuidade do cinema brasileiro durante duas décadas, era

malquista pelos críticos, principalmente, por estar alheada dos critérios estéticos que

atestavam a qualidade de uma fita como obra cinematográfica de fato. Somente a

partir da década de 1970, muitos dos críticos começaram mais sistematicamente a

perceber pontos positivos naqueles filmes que antes foram julgados como alienados

ou de má qualidade, possibilitando a “redescoberta” das chanchadas e sua inserção

 

26  

como um dos pilares do cinema brasileiro. Assim, ambos os filmes ganham a cada

dia, como também as outras chanchadas, novos espaços e chances de serem

reavaliados e enxergados de forma mais condizentes com suas ricas potencialidades

para o conhecimento histórico.

Como afirmamos anteriormente, não era a primeira vez que as chanchadas se

utilizavam do contexto bélico para traçar suas aventuras e lançar suas piadas, através

da atuação dos comediantes que o público adorava. Essa certamente fazia parte das

heranças do teatro de comédia, uma das principais raízes do cinema popular

brasileiro. As revistas sempre estavam atualizadas com os principais eventos que

marcavam a sociedade na qual eram produzidas. Por isso, o teatro de revista e

consequentemente, as chanchadas, faziam tantas críticas aos problemas econômicos,

políticos e sociais que afligiam o país.

Assim, a novidade indicada por estes dois filmes escolhidos para nossa

reflexão, consiste na escolha pelo tema tão atual e de grandes proporções mundiais

que foi a Guerra Fria, e a capacidade de transportar toda aquela atmosfera que

diretamente não afetava o Brasil, tal como a corrida espacial e os conflitos nucleares,

para a realidade brasileira. E nossos filmes apesar de todas as deficiências técnicas

que infelizmente acometiam todas as produções do gênero devido ao baixo orçamento

e má qualidade dos estúdios, não ficaram muito atrás das grandes produções de

cinema que também tiveram a Guerra Fria como principal temática. Estes foram

críticos, irônicos, reflexivos e, sobretudo, usaram e abusaram do fator carnavalesco

que era próprio deste gênero cinematográfico brasileiro.

Referências Bibliográficas

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Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. São Paulo:

Annablume/Hucitec, 2012.

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Regional, volume 6, número 1, p. 61-111, 2001.

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CHARTIER, Roger. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto

Alegre: Editora Universidades, 2002.

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