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Claúdio F. Kiala

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I.

O primeiro dia de Junho

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Para a maioria das pessoas nessa cidade, o primeiro dia de Junho é um dia diferente, dedicado à alegria e diversão. Os pais mais presentes e aqueles que por algum motivo não conseguem passar grande tempo ao lado de seus filhos, fazem desse dia uma ocasião memorável para passar algum tempo com os mesmos. Neste dia, nessa cidade em concreto, os parques estavam lotados, crianças desfilavam pelas ruas acompanhadas por algum adulto que as segurava numa das mãos pois a outra carregava sempre balões, algodão doce, ou brinquedo qualquer.

O primeiro dia de Junho era estimado por todas as crianças naquela localidade pois durante o mesmo, era inevitável o reverendo tratamento que recebiam. A cidade estava agitada, era feriado nacional, os moradores estavam felizes, todos estavam felizes – ou pelo menos quase todos.

Dentro do meu escritório totalmente escuro, eu, calmamente passava o primeiro dia de Junho. Era assim em todos os anos. Todos os anos, no primeiro dia de Junho, acordava cedo, entrava para o escritório e lá passava boa parte do dia, com as luzes apagadas e as portas e janelas fechadas, e por volta das dez horas da noite saía por cerca de uma hora para um mesmo local infalivelmente, e sempre muito bem vestido. Esse ano não foi diferente. Estava a olhar para o lado de fora a partir da janela do escritório entre as persianas, quando vi alguns dos meus vizinhos com faces ornamentadas de um sorriso radiante, brincando com os seus filhos, alegres, aparentemente sem problemas nenhum na vida. Aquela imagem me trouxe uma recordação de quando tinha cinco anos…

**

Num dia ensolarado, meu pai, brincava comigo no jardim de um parque público localizado próximo à uma floresta, e ambos apreciávamos a companhia um do outro. Estávamos a jogar a bola quando ele decidiu se afastar por pouco tempo para comprar algodão doce. Enquanto esperava, com a minha bola vermelha na mão, surge atrás de mim uma criança com idade aproximada à minha e me rouba a bola, pondo-se em corrida logo em seguida. Enraivecido, e para não ficar sem a bola, não hesitei e comecei a correr atrás daquele desconhecido pequeno insurrecto. Ao que parece, nem ele sabia para onde estava a fugir, pois corria para frente rindo dos meus gritos – e de mim que o perseguia desesperado. Quando demos por nós, exaustos, estávamos dentro da enorme floresta, perdidos. - Devolve a minha bola - Só queria brincar contigo. Você é muito sério. Toma.

Logo a seguir, enquanto eu recebia a bola, ouvimos um ruído que agoniantemente ia se tornando mais intenso. Assustados, começamos a gritar com desespero evidente sem saber o que fazer. Era uma cobra de quase um metro e meio com olhar mortífero e com a língua de fora. Seu corpo brilhante e

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com desenhos amarelos rastejava pelo chão em nossa direcção que agora estávamos aos prantos imóveis. Quando a mesma se encontrava à distância bem próxima, essa ergueu a cabeça e soltou um ruído assustador que anunciava o seu próximo golpe. Antes que tivesse tempo de atacar, a mesma viu seu pescoço ser cortado por uma catana que veio voando em sua direcção, sabe-se lá de onde. Entreolhamo-nos por alguns segundos e a seguir olhamos para a serpente se contorcendo no chão, sem cabeça e a catana ao lado, banhada por um líquido gosmento e aparentemente pegajoso. O meu pai apareceu do nada, a perguntar se estava tudo bem connosco.

– Pai! Pai! – Gritei correndo em sua direcção com lágrimas nos olhos enquanto o outro rapaz estava boquiaberto, com o corpo a tremer, supostamente sem saber o que fazer – Tu atiraste aquela catana para matar a cobra? Tu és o maior!

– Sim filho! Fui eu. – De seguida me abraçou forte – O que fazes aqui? Esta floresta é perigosa.

– Juro que não tive culpa. A culpa foi dele… – Apontei para o vazio. O pequeno ladrão já tinha desaparecido dali. De repente, confesso que senti uma enorme raiva e jurei para mim mesmo nunca sequer sorrir caso por algum azar na minha vida, voltasse a encontrar aquele rapaz maluco. Não tinha duvidas nenhumas que o odiava, e que o odiaria até o meu último segundo de vida.

** De repente voltei ao meu presente quando ouvi alguém bater a porta do meu escritório. Eu tinha a certeza absoluta que não esperava alguém. Era assim todos os anos, no primeiro dia de Junho: a minha secretária recebia ordens para desviar todos os telefonemas, ninguém era autorizado a entrar em casa, e todos os meus amigos sabiam que nesse dia não atendia ninguém. Quem seria então, se até os guardas tinham ordem para não deixar que quem quer que fosse, me perturbasse? Logo a seguir, ouvi a voz dos guardas, do outro lado da porta a dizer:

– Senhor, com todo o respeito que temos por si, não nos obrigue a lhe tirar daqui com violência. Só estamos a cumprir ordens.

– Ordens? – Perguntou uma voz que não reconheci à primeira. – Já que gostam tanto de ordens, obedeçam essa: – Vão se lixar. Eu vou entrar nesse escritório.

Logo em seguida, ouviu-se um ruído estaladiço que durou apenas um segundo, sucedido pelo som da queda de um corpo ao chão. Confuso e curioso, saí da janela, caminhei até a porta para saber o que se passava, a destranquei e a abri. Quando o fiz, vi dois dos meus seguranças e um homem corpulento deitado no chão, imóvel.

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– Senhor – Disse um dos seguranças – Este homem rompeu o sistema de segurança e se opôs às nossas ordens de não lhe perturbar. Tivemos de usar a pistola teaser para o neutralizar.

Só tive tempo de pôr as mãos à cabeça quando me apercebi que o homem que havia rompido o sistema de segurança era o meu melhor amigo – Ronaldo – e agora se encontrava no chão, após ter levado um choque daquela pistola não-letal.

– Deixem que eu trato disto. Eu conheço esse homem. Podem ir. – Tive de o arrastar até ao divã no meu escritório, lhe deitar lá, e esperar até que acordasse.

Foram necessários aproximadamente trinta minutos para ele voltar a recuperar os sentidos. Quando despertou, logo que me reconheceu, disse ainda meio que tonto:

– Nunca fui tão bem recebido aqui em tua casa, Carlos. – E pusemo-nos a rir.

Passados alguns minutos, estávamos os dois dentro do escritório escuro, sentados quando ele rompeu o silêncio e começou a falar.

– Sinceramente, Carlos, eu tinha de vir aqui te fazer companhia, mesmo sabendo que tu preferes ficar sozinho. – Mesmo?

– Claro que sim. Para que servem os amigos? – Respondeu. –

Onde está a tua esposa, Ronaldo?

– Ok, Carlos. Nós discutimos hoje e ela quer ficar sozinha… – E

aí ficaste desesperado e vieste ter comigo, não é?

– Bem, quase isso. Para que servem os amigos? – E rimo-nos dele novamente. – Posso abrir uma excepção. Só não te habitues. – Adverti, meio com pena dele. – Por acaso antes de tu chegares, estava a pensar em como nos conhecemos, quando roubaste a minha bola, quase fomos mordidos por uma serpente e depois fugiste quando o meu pai corajosamente a matou com aquela catana.

– Já te disse que não fugi, só tinha assuntos a resolver. – Disse Ronaldo a tentar se defender.

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– Sim, como por exemplo limpar as calças que àquela altura estavam molhadas, de tanto medo que tinhas.

E o resto do dia foi assim, tivemos uma longa conversa sobre o nosso passado. Ronaldo era o menino insurrecto ao qual tinha prometido odiar para o resto da minha vida. Parece que não temos tanto poder sobre o nosso destino às vezes.

Chamo-me Carlos Artur, filho de uma humilde família que desde novo me ensinou o valor da boa educação e da importância do amor na vida. Cresci com os meus pais numa comunidade muito pobre e, depois que a minha família finalmente começou a enriquecer, mudamo-nos dessa comunidade para a grande cidade, onde o meu pai montou a sua pequena empresa, que hoje é uma das maiores do país, com filiais em oito países espalhados pelo mundo. Quarenta e três, é o número de velas que provavelmente apagaria nesse ano e enfim, quem sabe possa viver um pouco mais que o meu pai, que infelizmente faleceu com quarenta e quatro, no auge da sua carreira profissional. Depois da sua morte, além da instrução que recebia dele – pois já previa que eu seria o seu sucessor – recebi uma instrução bem mais sólida numa Universidade conceituada fora do país, para assumir o controle da empresa. Modéstia à parte, o meu reinado na empresa trouxe mais dinamismo. A empresa produziu mais, o que implica que lucrou mais. Meu pai nunca engoliu a possibilidade de estender filiais pelo país afora, pois apesar de os lucros serem grandes, ele não gostava da sensação de ter que controlar um empreendimento distante de si ou de deixar nas mãos de estranhos. Eu o fiz.

Não sou alto nem baixo, meus olhos são castanhos, numa tonalidade muito escura, minha pele é muito bem tratada e evidencia que a velhice não me apanhará tão cedo. Não fumo, não bebo, não uso drogas. Pele clara, abdómen bem definido era o que me incluía nos interesses do mundo feminino. Normalmente as mulheres com quem saio, elogiam o meu porte físico, charme, carisma e habilidade com palavras, e eu me orgulho disso pois era exactamente o que era o meu pai enquanto vivia e tinha idade aproximada à minha. Sou um homem extremamente rico, popular por causa da empresa e vivo numa mansão sozinho. Tenho os melhores carros, posso comprar o que quiser e bem entender sempre, mas com o meu pai aprendi a não deixar o dinheiro me dominar de maneira alguma. Portanto, mantenho-me humilde, religioso e todos os meses faço uma doação de cinquenta mil dólares que se destina à diferentes instituições de caridade. Ronaldo é o amigo que eu mais confio. Está sempre do meu lado, não me bajula, é totalmente diferente de mim e além disso, se opõe à mim de qualquer forma quando de alguma forma estou errado. Ele é o Director-Geral da minha empresa. Confiei-lhe tal cargo porque sei que merece.

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Nunca cheguei a me casar, mas já há aproximadamente três anos que venho vivendo um romance intenso com Trina De Albuquerque, uma deslumbrante jovem de 23 anos que apesar de ser bem mais nova que eu, sabe o que quer da vida, não se importa com o que eu possuo e me apoia sempre que possível. Trina é doce, meiga e de uma família muito humilde também. Loira, cabelos longos e suaves, pele macia, corpo esguio mas sensual. Suas feições são divinas, seus lábios rosados, pequenos e atraentes, olhos azuis e um andar de anjo. Conhecemo-nos em Paris, durante o festival de Cannes, a minha empresa era uma das maiores patrocinadoras e portanto eu lá fui para a representar e também para encontrar com amigos meus realizadores e actores, que já não via há muito tempo por causa dos filmes que haviam vindo a gravar ultimamente.

**

Lembro-me ainda que estava, durante um dos dias do festival, a conversar com André Mendes – realizador brasileiro – quando ele começou a falar sobre o seu filme que por acaso tinha uma história muito interessante mas que com maior patrocínio ele conseguiria fazer algo maior e melhor. Confesso que estava a pensar na possibilidade de aceitar, mas quando ele me apresentou Trina como actriz principal, senti-me eufórico e me ofereci a patrocinar o filme. O que mais gostei nela é que ela não usava sua beleza para seduzir homens, ela simplesmente era ela mesma. Misteriosa, calma, com um sorriso lindo. À princípio nos tratamos muito formalmente e não pude ver nela algum interesse por mim que não fosse profissional. Era a primeira mulher que aparentemente resistiu ao meu charme. Convidei-a para jantar três vezes. Na primeira ela aceitou e mostrou ser uma mulher de família, super-educada e discreta. A segunda vez, rejeitou, justificando que tinha compromissos importantes previamente agendados mas que poderia ficar para outra ocasião. Eu queria desistir mas não conseguia. Convidei uma terceira vez e ela aceitou. Nesse dia, ela não apareceu. Saí frustrado do restaurante depois de ter esperado uma hora por ela e à caminho de casa vi alguém me fazendo sinal para parar. Era uma mulher, ao lado de um carro. Só podia ser obra do destino. Era Trina, desesperada, dizendo que o seu carro avariou à caminho do restaurante e o seu móvel ficara sem bateria. Disse-lhe que a minha casa se localizava a alguns quarteirões não muito distantes dali e lhe ofereci uma boleia até lá. Chegando lá, os empregados se encarregaram de preparar um banho para ela, visto que se tinha sujado tentando arranjar o carro. Após o banho, foi improvisado um jantar em minha residência mesmo, comemos, conversamos, tentei beijar-lhe e ela não aceitou. Sentiu-se ofendida e queria ir embora. Eu pedi imensas de desculpas e disse que era tarde para ela sair sozinha. Ela insistiu e eu mandei o meu motorista lhe levar para casa, sem outra opção. No dia seguinte mandei flores para a casa dela e ela não deu nenhum sinal. Foi duro ter de suportar aquilo. Eu podia sair com mulheres mais fáceis e mais maduras que aquela criança, mas não a conseguia tirar da cabeça. Um dia, convidei-lhe para caminhar no parque e ela aceitou. Durante a caminhada, ela me confessou que apreciava coisas mais simples assim, e que com os jantares em restaurantes caros que eu

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tentava a proporcionar, só me afastava mais dela pois sentia que o seu meio não era estar encurralada em etiquetas mas sim ar livre e planos bem mais simples.

Desde então, passei a optar por convites mais simples e ela aceitava sempre. Fizemos piqueniques em parques, fomos assistir jogos de futebol sentando-nos nas bancadas do povo – quando eu podia arranjar bilhetes até sentado ao lado do treinador de uma das equipas se quisesse – visitamos zoológicos, fizemos passeios de bicicleta e muitas outras coisas simples mas divertidas. Com o passar do tempo, fomos nos tornando mais chegados e eu fazia questão de assistir a todas as filmagens do filme de André Mendes no qual ela era a actriz principal. O inesperado aconteceu no dia da quinquagésima sétima gravação, em que ela, no seu papel de Elisa, chorava por ter sido abandonada pelo namorado. Parecia real, ela era uma óptima actriz, conseguia passar a emoção pretendida aos espectadores. Esse filme seria um sucesso. Depois da gravação, ela que normalmente ia directamente para o camarim, dessa vez veio em minha direcção, me abraçou forte e sussurrou no meu ouvido: “Leva-me para qualquer lugar”. Aquilo espantou-me, mas era o que eu mais esperava. Não havia sombra de dúvidas, que eu estava realmente apaixonado. Até já me tinha conformado. Saímos dali e fomos para a praia, sentamo-nos na areia e começamos a olhar para a lua. Parece que nossas almas instantaneamente se conectaram, ambos olhamos para os olhos um do outro, e nos beijamos. A nossa história de amor começou ali.

**

Eram nove horas da noite e Ronaldo tinha adormecido no divã, a roncar que nem um porco. Saí calmamente do escritório, vesti o meu sobretudo preto e saí de casa. Do lado de fora, a ventania se fazia sentir sem grande intensidade e o céu estava escuro e limpo. Entrei no BMW 528i dourado e acelerei fundo rumo ao meu destino. Depois de alguns tantos quilómetros percorridos, eis que atinjo o meu destino: O cemitério. Entrei com uma única flor na mão e caminhei pelo caminho que bem conhecia, que me levava ao túmulo do meu pai. Chegando lá, pousei a flor e fiquei a reflectir sobre o nosso passado durante cerca de uma hora, antes de voltar para a minha residência.

A maior parte das pessoas que me conhece de verdade sabe o motivo para eu detestar tanto o primeiro dia de Junho. Esse foi um dia que já fez muito sentido quando era mais pequeno. Este, que já foi o dia que me fazia sentir criança de verdade, passou a ser o dia que me tirou a infância, com a morte do meu pai diante dos meus olhos. O meu pai morreu de alguma doença qualquer que nunca cheguei a saber. As notícias dos jornais, na altura da morte, davam como causa da morte, um cancro. Meu pai foi o último dos seus irmãos a morrer. Nunca os pude conhecer. Morreram todos muito jovens, por razões pelas quais nunca cheguei a me interessar.

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Ronaldo é meu amigo desde tenra idade, por isso, assim que assumi o controle da empresa, a primeira coisa que fiz, foi lhe dar poder, pois sempre estive convicto que nele posso confiar cegamente, mais do que qualquer outra pessoa. Sempre foi um profissional excelente, sabendo sempre distinguir a nossa amizade do trabalho, sempre competente e nunca me deu razões de queixa. Desta vez, me tinha dado uma ideia esplêndida. Sugeriu que eu pedisse Trina em casamento e que a levasse para Portugal para a apresentar à minha mãe. Estava tudo preparadíssimo e ela parecia Eufórica para a conhecer, sua provável futura sogra. Eu também estava excitado com aquela viagem que estava prestes a acontecer. Era sempre um prazer voltar a ver a minha mãe. Dentro de dois dias, eu e Trina estaríamos a viajar para Portugal.

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II.

As Férias mais sombrias

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O segundo dia de Junho era sempre um tédio, pois tudo o que ficou pendente e acumulado no dia anterior, me invadia inevitavelmente. O dia estava horrível, com milhares de tarefas para cumprir, e parecia que as horas nunca mais se esgotavam. Ainda assim, durante aquele dia horrível de trabalho, marquei uma audiência com Ronaldo e lhe pedi que na minha ausência, tomasse conta de tudo. Falei-lhe do contracto multimilionário que a nossa empresa estava prestes a assinar com uma empresa Japonesa – contracto esse que valeria milhões de dólares só pela assinatura, e um incremento de cerca de 25% nos actuais lucros da empresa, que já não eram poucos – e que o incumbia de tamanha responsabilidade, pois só nele podia confiar. A princípio ele ficou apreensivo, mas depois se mostrou lisonjeado pela confiança que depositava nele e até me abraçou forte, me chamando de irmão, logo em seguida.

O resto do dia foi calmo, jantei com Trina em minha casa e acabamos deitados na minha enorme cama de casal, abraçados e a fazer planos para a viagem que se avizinhava. Naquele instante falamos de muita coisa, inclusive dos nossos medos. Eu amava Trina pois ela era uma mulher diferente e forte, via sempre o lado positivo nas coisas e conseguia sempre recuperar de acontecimentos que a abalavam com uma naturalidade impressionante. Quando mais nova, ela pertenceu a um orfanato, segundo ela, e lá foi muitíssimo bem tratada, apesar das poucas condições que aquele lugar possuía. Quando foi adoptada, aos catorze anos, pela sua humilde actual família, ela prometeu que ajudaria o orfanato sempre que pudesse. Daí, tornou-se actriz e, sempre que podia, visitava o orfanato e oferecia algum dinheiro para eles. Quando passei a saber dessa história, numa das vezes em que saímos juntos, decidi que além das instituições de caridade que aleatoriamente escolhia para doar dinheiro, obrigatoriamente mandava sempre muito dinheiro para aquela instituição também, e segundo ela, nunca soube o que fazer para me agradecer por tanto. Simplesmente disse que o fiz porque a amava.

O dia da viagem não demorou muito a chegar. Horas antes da viagem, Ronaldo foi me buscar em casa, com o seu enorme Escalade preto personalizado com jantes pretas. Ele era bem maior que eu, com um porte físico mesmo enorme. Sua barriga era bastante saliente, suas pernas, braços e mãos eram muito grandes. Lábios grossos, pele escura, calvo, voz grossa, esse era o meu “grande” Ronaldo. Era por possuir aquele porte físico que nunca me senti ameaçado quando com ele caminhava na rua quando mais novo.

Após termos pousado todas as minhas malas no carro, fomos buscar Trina, que estava deslumbrante. Vestia uma camisa azul com colarinho, aperta com carcela de botões, peitilho arredondado e ligeiramente franzido, com manga comprida com punho e botões, bermudas de cor branca com pequenas rachas laterais na base, usava óculos de sol e

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calçava sandálias azuis que realçavam os seus lindos pés pequenos. Beijei assim que a vi, e a ajudei a colocar as malas no carro de Ronaldo, antes de sairmos dali, rumo ao aeroporto. No caminho, Ronaldo disse:

– Já reservei tudo, vocês serão muito bem recebidos. Haverá um motorista lá à vossa disposição 24/24 que vai vos levar para onde quiserem. Desfrutem da viagem ao máximo possível e não tenham pressa de voltar.

– Obrigado mano. És mesmo grande. – Retruquei enquanto acariciava as mãos de Trina.

– Sim, sim, já sei que sou grande. Trata bem da Trina, e manda um abraço do meu tamanho para a tua mãe. Diz à ela que quando puder, eu vou para lá lhe visitar.

Fizemos tudo como devia ser, fizemos o check-in e esperamos até à hora do voo. A minha empresa tinha um avião particular à minha disposição, mas sempre gostei de preservar o meu lado de cidadão comum. Os nossos bilhetes de passagem eram para a primeira classe, onde fomos muito bem recebidos – e reconhecidos pela posição que ocupávamos na sociedade. A viagem prometia ser longa. Segurei a mão de Trina, ela sorriu para mim, eu retribuí o sorriso e a beijei suavemente. O avião descolou.

** Há cinco anos, depois de Trina ter participado num filme, em que tinha o papel de uma adolescente meiga e que amava a natureza, muita gente – incluindo realizadores e simples amantes de filmes – ficou de olhos nela, pois sabia representar perfeitamente o seu papel, tinha uma beleza inquestionável e um carisma bastante interessante. Uma dessas pessoas que esteve de olhos nela, era um rapaz rico que pagou um bilhete muitíssimo caro para sentar ao seu lado durante um festival de cinema que ocorria em Roma. Ele confessou-lhe que o seu desejo era a conhecer e que tinha viajado até Roma para tal, uma vez que leu na internet que ela lá estaria. Trina tinha dezoito anos, e portanto, achou aquilo estranho, mas também gostou da ideia de ser famosa e reconhecida até aquele ponto. Na mesma noite, aceitou conhecer o rapaz, que era um ou dois anos mais velho que ela, só que depois se aborreceu facilmente com ele, pois falava muito e mais do que devia, enquanto ela só estava a tentar prestar a atenção ao que as pessoas no palco diziam. Ele foi tão chato e falador, que ela nem conseguiu ouvir quando a nomearam “Actriz Revelação”. Teve de ser chamada duas vezes, e só na segunda ouviu. Desde então, decidiu se afastar daquele rapaz o máximo possível, mas era irritante pois ele mandava milhares de e-mails que ela não respondia, procurava sempre ir aos mesmos eventos sociais que ela participava e enfim, havia se tornado extremamente obcecado e

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chato. Num certo dia, após uma entrevista dela num programa de televisão, ele fez um escândalo. Aproveitou-se do facto de o seu pai ser dono da cadeia televisiva, entrou inesperadamente no estúdio enquanto o programa decorria ao vivo e se declarou para ela, pedindo-lhe em casamento logo em seguida. Trina ficou irritada com aquilo e saiu do programa muito alterada sem nem dizer nada.

Do lado de fora, subiu no seu carro enquanto algum pessoal da produção ia atrás de si pedindo calma, desculpas, e prometendo que a situação já estaria resolvida. Ela não deu ouvidos, colocou o sinto de segurança, e saiu daquele lugar numa velocidade impressionante. Para o seu total desconforto, eis que de repente aparece atrás de si, um carro inquestionavelmente mais rápido que o seu, se aproximando a medida que o tempo passava. Era um Ferrari amarelo. Segundo ela, a princípio pensou que fosse mais um desses homens que não pode ver alguém a andar em alta velocidade na estrada que já quer algum desafio para ver quem é mais rápido. Ela simplesmente ignorou. O Ferrari se aproximava e soava a buzina a medida que o fazia. A buzina era irritante para ela, principalmente naquele estado de espírito em que se encontrava. Encostou o seu carro mais à direita da faixa de rodagem e reduziu um bocado a velocidade, para ver se o condutor do Ferrari passava de uma vez por todas e a deixava em paz. Engano seu. Para o seu azar, o condutor do Ferrari era o jovem rico que invadiu o programa de televisão para se declarar. Ela abriu o vidro do seu lado e pediu que lhe deixasse em paz e ele retrucou que não a deixaria pois ela era tudo que ele queria.

Infelizmente ele passou de “apaixonado” para “psicopata” e logo começou a encostar o seu carro ao dela, obrigando-lhe a encostar cada vez mais da parede da auto-estrada. Ela aumentou a velocidade mas era inútil pois o carro dele era indubitavelmente mais rápido que o seu, e portanto, não se cansava de se aproximar. O pânico começou quando ele tirou uma arma do carro e num tom autoritário gritou para ela e ordenou que parasse o carro para explicar o que sentia por ela, soltando uma palavra nada bonita a seguir para lhe descrever. Irritada, ela pisa fundo no travão quando ele estava decidido a lançar o seu carro contra o seu. Foi rápido. Ela travou o carro, o que fez com que o acto homicida do rapaz, fosse só suicida. Apenas ele foi contra a parede com força e talvez fosse a velocidade que facilitou a capotagem do carro, ali mesmo. Em total estado de choque, ela parou o carro ali mesmo, colocou um triângulo à alguns metros de distância, e ficou sentada com as mãos na cabeça aos prantos até que alguém a fosse socorrer. O rapaz morreu, a polícia a interrogou, ela foi dada como inocente e teve de fazer uma terapia de um ano com um psicanalista para recuperar do trauma.

**

Longas horas de voo se passaram e lá estávamos nós, no aeroporto de Lisboa, a carregar as nossas bagagens pelo chão liso do aeroporto até termos sido identificados por um homem de fato que prontamente nos fez sinal assim que nos viu. Ele apresentou-se como o motorista que Ronaldo

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tinha mandado para nos apanhar. Gostei do homem. Não vi nada de suspeito nele, e além disso era educado.

Hospedamo-nos num hotel de cinco estrelas chamado “Pestana Palace”, muito bem escolhido por Ronaldo, pois tinha um ambiente mesmo agradável, desde o saguão ao último infinitésimo de porção daquele lugar. A suite era extremamente confortável, e após ter ligado para a minha mãe a avisar que já me encontrava em Lisboa, eu e Trina entrelaçamo-nos na enorme cama do hotel, dissipando as saudades que nos dominavam e gozando ao máximo daquelas férias que certamente mudariam o rumo de nossas vidas.

No dia seguinte, vestidos à maneira, fomos com o motorista até à casa da minha mãe. Pelo caminho pudemos reparar a beleza da cidade, as pessoas bonitas que circulavam pelas ruas, as estradas largas e as paisagens que às vezes se punham a aparecer sem timidez alguma, revelando sua beleza e originalidade. Chegamos finalmente à mansão onde vivia a minha mãe, uma residência enorme com um vasto gramado verde vivo, com flores de diversas cores e árvores de diversos tamanhos. Depois de passar o portão principal, o carro subia devagar pelo caminho asfaltado, que levava até ao topo do lote, onde se encontrava a residência. Vimos uma dúzia de trabalhadores alegres trabalhando, uns regando o jardim, outras jovens devidamente uniformizadas saindo da residência carregando toalhas brancas na mão, entre outros executando outras diversas tarefas. Na porta de madeira que dava acesso à residência, estava a senhora idosa (mas em forma) de sessenta e nove anos de idade – Eulália Artur – minha mãe, com um vestido comprido azul de alças, calçava as famosas “sabrinas”, tinha óculos escuros e um enorme chapéu na cabeça sofisticadamente feito à palha, nos esperando com um sorriso radiante no rosto. O carro finalmente parou, eu fui o primeiro a descer para abrir a porta para Trina, que desceu sem cerimónias e com um igual lindo sorriso no rosto. Sem hesitar, peguei na sua mão e a levei até minha mãe. Apresentei-lhes e pareceram ter tido uma óptima primeira impressão uma da outra, o que também já era previsível, visto que as duas eram mulheres fantásticas, ao meu ver. Dei um forte abraço à minha mãe e confessei que estava com imensas saudades. Fomos convidados a entrar, onde nos esperava uma farta mesa para o almoço. A casa era muito agradável. Cheirava a incenso, tinha imensas janelas, de maneira que se sentia em proximidade com a natureza lá fora, o chão era de madeira castanha e em algumas partes da casa havia carpete sobre o mesmo. Antes da refeição, minha mãe levou Trina para a cozinha, pois estava empolgada para mostrar tudo e falar sobre coisas de mulheres. Comecei a sentir uma ligeira dor de cabeça mas não liguei muito. Não devia ser grande coisa. Durante o almoço, falamos de muita coisa e até experimentamos uma receita tradicional que minha mãe fez questão que comêssemos. Foi

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esplêndida. Amei. Disse à minha mãe que eu estava com planos de casar com Trina e ela se mostrou muito entusiasmada com a ideia. De repente, o meu telemóvel começou a tocar, era da empresa e eu decidi não atender. Quando tocou pela segunda vez, Trina disse que não se incomodaria se eu atendesse, pois podia ser importante, e a minha mãe amou aquela atitude dela. Decidi atender.

Quando anoiteceu, voltamos para o hotel e prometemos à minha mãe voltar para a sua casa. Já na suite, enquanto me preparava para tomar banho, Trina disse que notou que estava estranho e perguntou o que se passava.

– Lembras do telefonema que recebi hoje da empresa? Era do Rómulo, o chefe administrativo. Ele me disse que foi desviado um milhão de dólares da empresa mas eles conseguiram fazer o rastreamento. – E descobriram para onde foi?

– Sim. Para onde menos esperava. Para a conta do Ronaldo. Não acredito que ele me possa ter traído assim. Ele nunca precisou me roubar.

– Calma, Carlos – Retrucou ela me acariciando – Não entres em pânico agora. Se calhar pode ter havido algum erro. Alguma armadilha ou qualquer coisa que prejudique Ronaldo. Não deves colocar a vossa amizade em risco desse jeito. Se calhar devias tentar ouvir o que ele tem a dizer sobre isso e só depois julgar.

– Tens razão. Vou ligar para ele amanhã cedo. – Afirmei, mais calmo, embora a dor de cabeça se tivesse intensificado.

A noite demorou a passar e finalmente quando os primeiros raios de sol se fizeram presentes, eu me levantei calmamente da cama pois Trina ainda dormia que nem um anjo, caminhei até à pequena varanda e liguei para Ronaldo. Chamou muitas vezes e ninguém atendeu. Tentei uma segunda vez e aconteceu a mesma coisa, até deixei uma mensagem de voz pedindo que ele me ligasse assim que pudesse. Impaciente, tentei uma terceira vez e dessa vez era a voz da mulher da companhia telefónica dizendo que aquele número estava desligado. Não sabia mais o que fazer, queria muito acreditar no Ronaldo, mas as evidências tendiam a me levar pensar o contrário. Confuso, me sentei na poltrona da suite e fiquei muito pensativo, dando a possibilidade de inúmeros pensamentos passarem pela minha mente numa velocidade incrível. Sem me aperceber da sua presença, senti a mão de Trina na minha cabeça e a sua voz perguntando porquê que tinha acordado tão cedo, uma vez que estávamos de férias. Ela estava ali, sensual e coberta apenas pelo roupão amarelo que nem estava apertado.

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– Tentei ligar para o Ronaldo – Fiz uma breve pausa para olhar bem o seu rosto – E ele não atendeu.

– De novo, amor? – Mostrou-se um bocado incomodada mas era a primeira vez que me tinha chamado de amor – Hoje não é o dia do contracto com a empresa japonesa? Se calhar ele deve estar a se preparar para a reunião. – Tens razão. – E de facto tinha.

– Levanta-te. Vamos sair e conhecer a cidade e depois jantar em casa da tua mãe. Amei ter-lhe conhecido.

Fiquei feliz. Aquele parecia mesmo ser um dia que prometia surpresas muito agradáveis. Preparamo-nos, tomamos o pequeno-almoço e logo a seguir desfrutamos o resto do dia em diversas actividades. Visitamos o famoso Colombo, gostamos do que vimos, Trina ficou deslumbrada com o Oceanário de Lisboa, tiramos muitas fotos no Castelo de São Jorge e no Aqueduto das Águas Livres, terminando o nosso passeio pela Torre de Belém, ao pôr-do-sol. Depois do longo e exausto dia de passeio, decidimos voltar para o hotel, para trocar de roupa e ir à casa da minha mãe.

Após o meu banho, estava a tomar café na suite do hotel enquanto esperava Trina acabar de se preparar quando recebi um telefonema de Rómulo, mais uma vez. Achei estranho. Atendi. – Rómulo, dê-me boas notícias. – Gostaria, senhor. Gostaria imenso mas as coisas não estão no seu melhor por aqui. – Retrucou ele com um ar aparentemente preocupadíssimo, como se me quisesse dizer algo. – O que aconteceu? – Perguntei tenso.

– Esse é o problema, não aconteceu nada. Ronaldo não apareceu a tempo e os homens do Japão saíram daqui irritadíssimos, cancelaram o contracto com a empresa e ainda tive de ouvir uma ofensa dita por um japonês, em português totalmente deficiente. Ninguém merece. O senhor precisa voltar pois as coisas estão a sair do controle. Ronaldo não está bem.

– Obrigado Rómulo. Quero que sejas os meus olhos e ouvidos naquela empresa. Saberei te recompensar por isso.

Logo a seguir, tentei novamente ligar para Ronaldo e ele não atendia. Fiquei irritado e deixei cair a chávena de café. Trina finalmente apareceu

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pronta e me deu um abraço. Ela me pediu que por algum instante tentasse esquecer o trabalho, por ela, e que nós viajamos para nos divertir. – Mas Trina. Esse problema é urgente.

– E eu não? – Perguntou ela num tom elevado – Você me trouxe aqui para acompanhar o teu stress por causa do serviço?

– Por favor Trina, deixa-te disso. – Falei-lhe furioso e num tom mais elevado que o dela – Não consegues ver o que está a se passar? O meu melhor amigo está a me apunhalar pelas costas, com o meu dinheiro e afundar a minha empresa. Queres que eu fique calmo?

– A tua mãe está a nossa espera… – Esta foi a última frase da noite que eu ouvi da boca dela, para além dos soluços que ela teve para tentar conter o choro.

O resto da noite foi estranho. Ela não me dirigia a palavra mas falava lindamente com a minha mãe. Eu estava naquela mesa pensativo e nada mais parecia fazer sentido. Tinha raiva de tudo. Anunciei às duas que havia uma emergência para resolver, portanto marquei uma viagem com bastante urgência para a manhã do dia seguinte. Trina detestou a ideia e se viu logo pela expressão facial dela. Minha mãe disse ter ficado triste porque estava mesmo a gostar da nossa estadia em Lisboa, perto de si, mas eu prometi que voltaríamos assim que a situação na empresa estivesse resolvida por completo. De repente, a dor de cabeça se intensificou, tentei ignorar mas alguns segundos depois estava desmaiado no chão sem conseguir me mexer, embora estivesse com os olhos abertos. Pude ver minha mãe entrar em pânico e Trina chorar de desespero a gritar por ajuda.

Fui socorrido por um dos empregados da casa e finalmente pude melhorar depois de algum tempo. Fui deitado no sofá com algumas almofadas debaixo dos meus pés esticados, enquanto Trina passava sua mão pela minha cabeça.

– Eu estou bem.

– Não, não estás! – Retrucou a minha mãe. –

Já te disse que sim, estou bem.

– Pára! Pára! Pára! Pára com isso – Começou a gritar histericamente a minha mãe, e eu e Trina não entendemos. Ela começou a chorar – Filho, o teu pai teve os mesmos sintomas antes de morrer, eu insisti que ele não estava bem, e como se fosse um dejavu, ele respondeu exactamente da mesma forma como respondeste agora. Viste o que aconteceu? Perdi-o

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porque ele não procurou se tratar por achar que estava tudo bem. Ele tinha exactamente a tua idade. E o mesmo aconteceu com o irmão dele. Morreu com a mesma idade.

– Achas que isso pode ser alguma doença hereditária? – Interferiu Trina assustadíssima.

– Não sei filha, mas aconselho a procurar o médico de família com extrema urgência assim que vocês voltarem para lá para resolver os problemas da empresa. – Disse a minha mãe me passando um cartão de visita em seguida. Dr. Júnior André. – Eu te aconselho a procurar por esse pois ele já estudou alguns casos da família e além disso um outro médico qualquer poderia deixar vazar a informação e te comprometer.

Assenti preocupado e logo que recebi o cartão, o coloquei no bolso da minha camisa. Ficamos mais cerca de trinta minutos na companhia da minha mãe, e depois decidimos ir embora porque viajaríamos cedo. Trina de facto é uma jovem excepcional, diferente das outras. Ela é sincera, transparente, expressa sempre as suas emoções e não tem medo de dizer o que pensa. Era a única coisa que me motivava a não perder a cabeça enquanto tudo aquilo acontecia. Pedi-lhe desculpas por ter sido tão rude com ela no quarto do hotel e ela respondeu que entendia aquilo, e que me amava muito. Ao caminho de casa, numa das avenidas da cidade de Lisboa às onze horas da noite, paramos diante de um semáforo que tinha a luz vermelha acesa. Ao nosso lado, pararam mais dois carros e deles desceram homens carregando martelos grandes e uns com pequenos revólveres na mão. Vinham em nossa direcção. Trina pegou firme na minha mão e começou a ficar assustada. Um deles deu uma martelada no vido de trás, exactamente do lado de Trina e ela entrou em pânico, soltando gritos. O vidro não partiu. Imediatamente, dei ordens ao motorista para nos tirar daquele lugar e ele obedeceu prontamente acelerando à todo gás entrando no primeiro cruzamento à nossa frente, para evitar que fôssemos atingidos por balas. O chiado dos pneus eram resultado das curvas apertadas que ele fazia entre aquelas ruas àquela hora da noite para despistar. O velocímetro atingia os oitenta quilómetros por hora e às vezes reduzia nas curvas. A cidade passava por nós em vultos e os nossos corações pareciam bombas prestes a explodir.

Finalmente chegamos ao hotel. Pedi que ele estacionasse o carro bem longe dali depois de descermos, para não atrair atenções inesperadas. Subimos o elevador do hotel e logo que entramos na suite, Trina começou a chorar igual a uma criança. O pior é que ela tinha razão, a culpa era toda minha. Ela não merecia passar aquilo por minha causa. Só consegui lhe garantir que tudo iria ficar bem e que ela já não se precisava preocupar. Ela me fez lembrar do trauma que ganhou ao ser perseguida pelo seu fã psicopata. Ela passou toda a noite agarrada à mim na cama. No dia seguinte, fomos ao aeroporto, e voltamos de onde viemos.

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III.

Huntington

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A primeira coisa que fiz ao chegar à casa foi tirar o cartão de visita do médico que a minha mãe recomendara. Li-o antes de ligar: “Dr. Júlio André”. Chamou algumas vezes e uma voz sólida, porém velha atendeu do outro lado da linha. – Dr. Júlio André…

– Boa tarde Doutor. O senhor talvez não me conheça, o meu nome é Carlos Artur…

– Conheço-te perfeitamente. Teu pai foi meu paciente e me falava muito de ti nas consultas que fazia comigo. – Tossiu duas vezes e prosseguiu – Na verdade, estava mesmo a espera que me ligasses, mais cedo ou mais tarde. – Como assim? A minha mãe falou consigo? – Perguntei desconfiado.

– Não. Porque eu tinha a certeza que ela te daria o meu número assim que… – Fez uma breve pausa e mudou o tom de voz, para um mais aterrorizante – Você já começou a sentir as dores de cabeça?

Demorei para responder porque nada daquilo fazia sentido. Ele perguntou se ainda estava em linha e eu, assustado respondi que sim. Ele voltou a perguntar se já tinha começado a sentir as dores de cabeça e eu respondi que era melhor falarmos pessoalmente. Ele assentiu e marcou o encontro para as primeiras horas da manhã do dia seguinte, pois eu devia estar exausto. Eu concordei e disse que não iria faltar ao encontro. Desliguei o telemóvel e comecei a ter ligeiras dores de cabeça. Mas o que se estava a passar comigo?

Adormeci na minha cama e só voltei a acordar três horas depois com o toque do meu telemóvel que se encontrava na cabeceira. Era Rómulo. Atendi.

– Soube que o senhor já se encontra aqui novamente. Como correu a viagem?

– Correu muito bem, Rómulo. Obrigado pela preocupação. Tens alguma novidade?

– Tenho sim, senhor. – Respondeu ele aflito – O Sr. Ronaldo viajou com o avião da empresa para Portugal, ontem à noite.

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Tive de me conter enquanto falava com Rómulo ao telemóvel e prometi passar na empresa no dia seguinte.

Quando desliguei o telemóvel, fiquei irritadíssimo e pus-me a gritar e a partir coisas no quarto. Parti perfumes, candeeiros, atirei a estante de livros para o chão. Parecia um louco, não conseguia conter a minha raiva. Queria acordar daquele pesadelo o mais rápido possível. Terminei uma garrafa de whisky em cerca de dez à quinze minutos e acabei atirado ao chão, totalmente desgraçado.

A manhã seguinte chegou fria, e prometia fortes acontecimentos. Quando acordei, estava deitado no chão, com uma garrafa de whisky vazia do meu lado esquerdo, uma imensidão de coisas espalhadas no chão, entre elas, os meus livros preferidos. Levantei-me com uma dor de cabeça insuportável, sem me lembrar de quase nada do que havia acontecido no dia anterior, apenas pequenos flashes de memória ainda se faziam sentir. Tentei caminhar até a casa de banho arrastando os meus pés pelo chão, me apoiando no que podia e evitando pisar em algum dos cacos escondidos no chão. Demorei para conseguir alcançar a porta da casa de banho porque ainda não conseguia controlar bem o meu corpo. Quando abri a mesma caí no chão por falta de equilíbrio. Deitado no chão, arrastei-me pacientemente até a banheira e fiz um enorme esforço para abrir a água e deixá-la jorrar. Voltei a me deitar no chão, de alívio. Agora só faltava conseguir entrar para a banheira.

Eu estava com uma aparência miserável. Meus olhos estavam inchados, meu cabelo despenteado e a minha cabeça às marteladas de tanta dor. Tomei um banho de sacrifício e me vesti de maneira bem simples. Vesti uma camiseta verde escura de mangas compridas, calças jeans pretas e ténis pretos também, e ordenei que o motorista me levasse até ao consultório do doutor Júlio.

Era uma rua estreita, com apenas um sentido. Pouca gente passava por ali. Olhei novamente para o cartão e vi o número do consultório. Caminhei até a porta correcta e bati duas vezes. Esperei durante alguns segundos e eis que um senhor idoso abriu a porta.

Era um homem de baixa estatura, totalmente magro, com uma cabeça grande, pele enrugada, corpo curvado para frente com óculos enormes na cara, vestindo calças caqui brancas e uma camisa velha de cor verde já a desgastar. Sua imagem era assustadora. Parecia na casa dos oitenta e cinco. Ele levou a sua mão fria com dedos finos e compridos à minha face e disse:

– És mesmo filho do Artur. Quanta honra. Entre por favor.

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Entrei sem cerimónias, e passando pelo corredor estreito, fui dirigido até um quarto com pouca iluminação, cercado de estantes de livros, uma escrivaninha velha com alguns livros por cima, um estetoscópio, um candeeiro, algumas folhas de papel, um copo que continha variadas canetas, uma chávena de café quente, algumas radiografias de um crânio qualquer e um par de óculos de leitura por cima delas. A sala cheirava a medicamento, cheiro que para ele devia ser o paraíso e para mim era nauseabundo. O chão de madeira soltava ruídos à medida que se pisava nele e as paredes cremes pareciam gastas. Haviam ainda espalhadas no chão, algumas caixas empilhadas, como se estivesse a fazer mudanças, ou talvez armazenando livros que não couberam nas estantes de dois metros. Havia um divã no meio do quarto e uma pequena poltrona de couro já descascada do lado. Convidou-me a deitar no divã e após hesitar um bocado, o fiz. Ele sentou na poltrona ao lado do divã e começamos a conversar. Ao meio da conversa eu perguntei o que tinha, e ele disse que precisava extrair sangue para um pequeno teste. Deixei-o fazer e trinta minutos depois, impaciente, voltei a perguntar o que eu tinha. Ele sentou-se na poltrona e falou com olhar penetrante e firmeza na voz: – As suspeitas se confirmaram. Você tem a doença de Huntington. – Nunca ouvi falar…

– É muito normal. Essa doença é muito rara e normalmente afecta pessoas na meia-idade. Você confirmou há pouco tempo que tem tido sintomas como dores de cabeça, perda de memória, ataques de agressividade, movimentos involuntários e coisas assim. – E então? Não pode ser outra coisa?

– O problema está aí. Os exames dizem que não podem ser outra coisa. É necessário que saiba que esta é uma doença degenerativa e hereditária que é causada pela falha de uma substância chamada huntingtina, que tem uma certa irregularidade na distribuição em pessoas portadoras desta síndrome, e em consequência acaba por prejudicar o tecido estriado, que se localiza no córtex cerebral, e vai se espalhando pela região periférica do cérebro, comprometendo muitas funções motoras psíquicas.

– Com todo o respeito, doutor… Fale português. – Disse impaciente e meio que desesperado.

– Deixa-me ver se esclareço dessa vez. Você tem uma doença que lhe faz ter os sintomas que tem tido recentemente, conforme me confirmou. Essa doença é muito rara e atinge pessoas da sua faixa etária, provocando certos distúrbios no seu cérebro.

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– Como apanhei essa doença? – Perguntei chateado. – É muito simples. Você apanhou por ser filho do seu pai.

Ele respirou fundo, levantou-se, caminhou lentamente pelo chão que gemia com ruídos à medida que um pé exercia força sobre ele, até a sua mesa, e de lá trouxe duas folhas com algumas fotografias de homens e o nome “ARTUR” escrito em ponto grande e letras maiúsculas. Prosseguiu o seu discurso:

– Este é um quadro com o lado masculino da família do teu pai. Este senhor aqui no princípio – Apontou para um homem careca – Ele foi seu tataravó, morreu com quarenta e três anos, mas teve um filho. Este daqui de nome Benjamin Artur – Apontou para outro com um bigode pontiagudo – é o filho a que referia, foi seu bisavó e morreu com quarenta e três anos. Aqui mais em baixo, filho de Benjamin, Lourenço Artur, seu avô, morreu com quarenta e três anos e teve três filhos. Estes dois, – Apontou para um homem com uma expressão engraçada e outro mais sério – Luís Artur e Emanuel Artur, seus tios, que morreram ambos com quarenta e três anos. Quase a terminar, temos o terceiro filho, o mais novo de todos, Romeu Artur, seu pai – Apontou para uma foto do meu pai, com um sorriso radiante exibindo a boa disposição que todos os dias o pertencia – que infelizmente também morreu aos quarenta e três anos. – Fez uma breve pausa para respirar fundo e tomar café. – Seu pai teve um filho, esse filho é você. Você fará quarenta e três anos esse ano, você é homem da família Artur. Sabes o que isso significa?

– Que esse é o meu último ano de vida? – Perguntei com lágrimas nos olhos, não me conformando com a ideia. – Lamento imenso… – Disse ele muito seriamente.

– Mas, tem de haver alguma solução. Eu tenho muito dinheiro. Eu posso pagar todos os tratamentos necessários para melhorar. Que hospital você me receita para ter um atendimento digno para melhorar a minha situação? – Disparava perguntas incansavelmente com lágrimas no rosto.

– Infelizmente o único hospital que lhe posso indicar é o mundo. Tenta visitá-lo e explorá-lo bem. Aproveita esse dinheiro para isso.

– Como assim? O que estás por aí a dizer? Como assim o mundo? – Perguntei já com vontade de lhe atingir com um murro na face pela frieza e calma que ele apresentava naquele momento que para mim era tão avassalador.

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– A doença de Huntington… – Ele parou, franziu a testa, como se estivesse com medo da minha reacção após as suas próximas e cortantes palavras – Não tem cura.

Naquele mesmo instante, grande parte do meu mundo desabou. Não me lembrava de ter chorado tanto desde a morte do meu pai, quando mais novo. De repente comecei a me sentir ansioso e não entendia porquê, comecei a ver o meu corpo tremer e minha respiração se tornar cada vez mais tensa. Despedi-me do doutor, dei-lhe algum dinheiro e saí dali totalmente fora de mim. Subi no meu carro e ordenei que o motorista me levasse até à empresa.

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IV.

“V” de Vingança

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Quando entrei pela porta principal da empresa, todos olhavam para mim de forma diferente, eu não entendia exactamente porquê. Subi o elevador até ao décimo segundo piso, o único que tinha apenas um escritório: o meu. Para se chegar até ao décimo segundo, era necessário que a pessoa pedisse autorização prévia, e se fosse concedida, ela podia entrar no único elevador reservado para o meu piso. Uma vez dentro do elevador, era necessário que essa pessoa colocasse o olho direito no leitor altamente sofisticado, enquanto era filmado pelas duas câmaras dentro do elevador. Uma que vez esse protocolo de aproximadamente dez segundos estivesse confirmado, o elevador subia, caso a minha secretária autorizasse.

Quando o elevador atingiu o décimo segundo piso, a porta se abriu e eu saí dali. O ar como sempre era fresco, ao invés de parede, foi instalada uma cobertura de um vidro monolítico de isolamento térmico de grande espessura, cujo tamanho ia do chão ao tecto, o que dava a incrível e igualmente propositada sensação de se estar a trabalhar “no céu” ou ainda “nas nuvens”. De lá, era perfeitamente visível o resto da cidade. Azulejos castanhos e perfeitamente polidos eram o chão que se pisava naquele compartimento, com muito luxo. Haviam ainda algumas estátuas como a do pensador, a escultura com a cabeça do grande filósofo Sócrates, entre alguns quadros famosíssimos completamente originais decorando as paredes.

A minha secretária levantou-se da mesa e disse que lamentava, mas não entendi porquê. Entrei para a minha sala e havia lá dentro cerca de vinte e cinco homens, sendo alguns deles directores, vice-directores ou assistentes da empresa, entre alguns accionistas da mesma. Parei e encarei-os. Eles olharam para mim, Rómulo estava no meio deles e ao seu lado estava Trina, totalmente vestida de preto. Hesitei, ninguém falava nada, até logo em seguida ela não conseguir se conter e vir em minha direcção para me abraçar, chorando.

– O que se passa aqui, Trina?

– Amor, você precisa ter calma. A notícia vai te deixar chocado. Eu preciso que antes de mais nada você lembre que eu estou aqui e estou pronta para o que der e vier. – Trina tentava escolher as palavras, talvez por não saber como dizer algo mesmo trágico que tivesse acontecido com a empresa.

– Trina, deixa de me dar voltas. O que se passa afinal? – Comecei a perder a paciência.

– Ronaldo foi visto visitar a tua mãe ontem de madrugada. – Interrompeu Rómulo. Começou a se aproximar de mim com calma. Pegou no meu ombro e prosseguiu: – Ela foi encontrada morta hoje de manhã, e segundo

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os guardas, mais ninguém a visitou ou foi detectado a entrar na casa depois de Ronaldo.

Outra parte do meu mundo desabou mesmo ali naquele instante. O que mais faltava acontecer? O que fiz eu para merecer tanta traição por parte de Ronaldo? Caí ajoelhado no chão, e como uma criança voltei a chorar. Nada em minha vida fazia sentido. Não podia aturar mais sofrimento. Só me restava Trina, a mulher que nunca me abandonou. Ela pegou na minha mãe e pediu que nos deixassem a sós naquele escritório. Quando todos saíram, apreensivos, ela ajoelhou-se como eu e me abraçou.

**

Depois de termos sido salvos pelo meu pai naquela floresta, eu e Ronaldo não nos voltamos a ver tão cedo. A minha mãe, além de executiva, na altura, também fazia trabalhos com instituições de ajuda humanitária. Ela sempre foi muito paciente e sempre amou crianças. Por vezes, alguns dos meninos que encontrava na rua, levava para a nossa casa para almoçar ou jantar connosco. Ela os incentivava a se manterem afastados das drogas e os ensinava muita coisa como costura, reciclagem, desenho, pintura, tocar instrumentos, cantar e escrever. Era sempre muito divertido pois eu também aprendia, e dali eles ganhavam mais vontade de viver e de praticar o seu lado artístico. Como isso tudo era na altura em que o meu pai começou a trabalhar na empresa a qual hoje presido, ele já não ficava lá com as crianças com tanta frequência como antes.

Num certo dia, ele me levou para pescar. Quando voltamos, ao anoitecer, encontrei minha mãe preocupadíssima. Ela disse que havia encontrado um menino muito doente e que ela não podia fazer nada senão ajudar. A princípio aquilo não tinha nada de estranho, mas quando fui ver o estado da criança é que me espantei de verdade. A criança em questão era o mesmo menino gordo de pele escura que outrora me roubara a bola das mãos e me conduzira involuntariamente até à floresta, de onde fomos salvos de uma serpente pelo meu pai. Era o mesmo rapaz que prometi odiar para sempre, o mesmo rapaz que se tornou meu irmão adoptivo, – embora não legalmente –, o mesmo rapaz que se tornou meu melhor amigo, e também, o mesmo rapaz que me estava agora a apunhalar aos poucos e que matou a mulher que o devolveu a vida. Ronaldo.

**

Chorei durante duas horas depois de saber a causa da morte da minha mãe. Ela foi afogada enquanto tomava banho e, segundo as autoridades, haviam evidências no seu corpo de que foi pressionada no pescoço por alguém muito forte, durante o afogamento. Decidi que ela devia ser enterrada aqui, no país onde ela nasceu e vivemos boa parte de nossas vidas. Decidi também proclamar guerra por vingança contra Ronaldo. Era uma questão de honra. Liguei para um dos responsáveis dos aviões da empresa e me foi informado que o avião da empresa que Ronaldo havia

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usado para ir para Portugal, saiu esta manhã de lá, e que à essa altura já devia estar a chegar.

– Quero que vocês mandem cinco seguranças até ao aeroporto num carro grande, levem aquele homem bem longe e dêem a maior surra que conseguirem dar. Só não o matem… Ainda – Agora soava frio e cruel, ao telefone.

Trina, insatisfeita com a minha atitude disse:

– O que é isso agora? Vais te vingar? Isso está correcto?

– Trina! As coisas já não são como antes. – Bati na mesa com muita força – Ele tem de pagar pelo que está a fazer.

– E é dessa forma? – Perguntou ela confusa. – Sinceramente, já não estou a reconhecer o homem maduro com quem iria me casar.

– Eu sei que tu és uma mulher muito bondosa então não vais perceber o que… – Parei para processar a frase de Trina. Engoli a seco e perguntei – Iria casar?

– Sim, iria. Mas agora já não porque estás a te revelar um belo monstro com essas atitudes. – Disse ela irritada – Eu sei que não é fácil, mas fazendo justiça com as próprias mãos, não estarás a melhorar nem um pouco o teu estado de espírito. Eu cansei. Queria muito casar com o homem bom que eu conheci em ti. Vou-me embora. Os meus pêsames.

Ela pegou na sua pequena carteira preta e começou a atravessar o meu escritório até à porta principal. Eu gritei: – Trina! Ela parou e olhou para mim. Eu continuei:

– Se calhar é melhor assim. – A minha voz estava trémula – Sabes onde fui hoje de manhã? Para o médico que a minha mãe indicou. Eu tenho uma doença chamada Huntington. O que significa que logo depois de eu fazer quarenta e nove anos, ou melhor, a minha morte está agendada para o próximo mês.

Vi o seu rosto se empalidecer. Ela parecia não saber o que fazer. Seus olhos começaram a deixar escorrer lágrimas. Olhávamos um para o outro e ninguém se movia, até que ela resolveu sair da sala em passo acelerado, com a mão na boca para que o seu choro fosse mudo. Parecia que aos poucos estava a aprender a chorar menos e ser mais frio. Sequer me prontifiquei a correr atrás dela. Era melhor assim.

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Como venho a saber mais tarde, Ronaldo foi brutalmente espancado e deixado ao relento pelos meus seguranças. Àquela altura ele devia estar a experimentar fisicamente, o sabor da dor que sinto por dentro. Como já nada fazia sentido, saí da empresa e fui até a minha casa, e durante muitas horas fiquei no escritório, como no primeiro dia de Junho. Pensei em tudo e nada, tive algumas recordações, e tive também algumas falhas na memória, que só serviram para confirmar o efeito que a doença causava em mim. Antes de definitivamente matar Ronaldo, eu teria de lhe fazer experimentar o sabor de ser torturado, tinha de lhe fazer conhecer os cantos do inferno enquanto ainda vivia pois Deus se encarregaria de lhe mandar para lá depois que eu lhe matasse com as minhas próprias mãos.

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V.

O Começo do fim

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Quando eram onze horas na noite sombria, saí de casa e fui para um lugar onde nunca antes havia estado: Uma discoteca.

O ambiente lá dentro era muito estranho, haviam luzes por todos os cantos, mal se via as pessoas e o som estava muitíssimo alto. Aquele lugar cheirava à muita coisa. Cheirava a tabaco, álcool e cheiros que nunca antes tinha sentido. Mulheres dançavam com homens, mulheres dançavam com mulheres, mulheres beijavam homens, mulheres beijavam mulheres. Mulheres bebiam, homens bebiam. Mulheres e homens dançavam em varões num pequeno palco semi-nus e recebiam dinheiro por quem naquela altura apreciava suas danças. Eu estava ali parado a observar tudo aquilo acontecer diante de mim. Um ambiente que certamente não me pertencia, mas ignorei esse pensamento. Antes mesmo que pudesse dar um passo, surgiram do meu lado, um par de moças esbeltas pegando no meu corpo. Uma delas era de baixa estatura, com grandes seios e pernas grossas, cabelo curto e cacheado acastanhado, vestindo um vestido apertadíssimo e muito curto que realçava perfeitamente a sua fisionomia altamente sedutora. A outra era mais alta e morena. O seu sotaque a denunciava: era brasileira. Tinha olhos verdes e um longo cabelo. O abdómen musculado era visto por causa do tamanho da blusa que ela vestia. Suas ancas eram visíveis sem grande esforço e usava um salto muito alto. Elas me convidaram para dançar.

Passamos a noite dançando, bebi muito. Experimentei os mais variados tipos de bebida e, quando já estava exausto, as levei para a minha mansão para nos divertirmos um bocado mais. Chegando lá, elas não acreditaram no tamanho da minha casa. Levei-as para o meu quarto e lá ficamos os três até amanhecer.

Quando chegou a manhã, elas já se tinham vestido e disseram-me que tiveram uma noite animadíssima comigo e que certamente devíamos repetir. Fiquei com os números delas e lhes dei muito dinheiro. Não lembro de quanto era, mas sei que era mais de dois mil dólares.

Dentro de um dia, chegaria o corpo da minha mãe para ser enterrado aqui logo pela manhã. Pedi que me arranjassem um maço de cigarro dos melhores que havia, e assim foi. Algumas horas depois, o meu motorista me entregou duas caixas grandes de Cohiba Behike, supostamente o charuto mais caro do mundo. Experimentei a sensação e amei o que senti. Passei o resto do dia a fumar e, quando chegou à noite, saí novamente. Desta vez, visitei o casino mais caro da cidade. Lá só costumavam ir grandes homens, homens conhecidos na sociedade. O casino tinha uma vigilância muito rígida e compacta. Já começava a ganhar aparência de miserável. Não cortava a barba, meus olhos estavam sempre vermelhos – sem contar com as olheiras – e os meus dentes amarelados. Sempre tive

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jeito para cartas, sempre fui muito sortudo. Mas parece que naquele lugar eu não era o único. Lá encontrei grandes homens da sociedade, dentre eles, actores, ministros e executivos bem sucedidos, todos um bando de viciados.

Juntei-me à eles numa mesa gigante e apostamos. O jogo durou muito tempo e infelizmente não consegui ganhar nada. Enunciando tudo o que perdi apenas naquele dia diria: os meus quinze carros, doze bilhões de dólares e os dois aviões da empresa. Fiquei irritado mas eles encorajaram-me a voltar quando quisesse pois nem todos os dias eram dias de sorte, mas que se eu quisesse, podia sempre reaver o que perdi, jogando para ganhar. E esse espírito me motivou a voltar mais e mais vezes.

No dia seguinte, no funeral da minha mãe, cheguei totalmente bêbado, mas assisti toda a cerimónia. Quando acordei, estava deitado em minha cama e Rómulo andava de um lado para o outro histérico. A dor de cabeça parecia que me iria matar em algum segundo. A doença estava decidida a me eliminar.

– Que fazes por aí, Rómulo? Virou meu guarda-costas?

– Graças a Deus acordaste! – Exclamou ele aparentemente aliviado – Eu vim te prevenir de um escândalo.

– Que escândalo? – Perguntei tentando me recompor. – Do que estás por aí a falar?

– A imprensa está toda lá fora. – Disse ele com os seus característicos ataques de histeria exagerada. – A polícia também.

Saí da cama, mas estava sem forças, e antes que eu pudesse cair, Rómulo – sempre prestativo – foi ágil ao me segurar. Pedi que me acompanhasse até à janela do meu quarto, e ele assim o fez me carregando no ombro. Olhei para a janela e vi uma multidão enorme do lado de fora da minha casa. Alguém no meio da multidão reparou que eu estava na janela e gritou. Em menos de dois segundos eram máquinas fotográficas a serem disparadas ao mesmo tempo. Deixei-me cair ao chão para desaparecer da visibilidade deles. Estava caído no chão, levei às mãos ao rosto e perguntei o que se passava. Rómulo respondeu:

– O senhor fez o maior escândalo ontem no funeral de sua mãe. – Fez uma pausa para roer as unhas e prosseguiu – O senhor disse palavras horríveis. A imprensa gravou, mas não se preocupe que nós acordamos que eles nunca iriam passar aquelas imagens à lugar algum. Tratei de tudo.

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– Como posso ter feito isso? E não me lembrar de nada?

– Depois o senhor ficou agressivo. – Falava num tom assustado, que era irritante, parecia uma criança – O senhor me agrediu aqui – E mostrou o seu olho esquerdo ligeiramente roxo – E o mais surpreendente, o senhor ganhou uma raiva inimaginável, que inclusive conseguiu derrubar Ronaldo, que apareceu lá todo inchado. Não sei de onde vinha.

– Pelo menos uma coisa boa o meu inconsciente fez. – Exclamei com raiva de Ronaldo – Rómulo, peço imensas desculpas. Não sei o que se passa comigo. Estou a perder o controle dos meus actos.

– Não se preocupe, Carlos. Nunca irei esquecer de tudo aquilo que já fizeste por mim. – Disse ele – É o mínimo que posso fazer por ti. Mas há ainda algo que não te disse.

– O que foi? Lutei também com o Homem-aranha, o Batman e o Joker? – Disse eu tentando manter o humor num momento como aquele.

– Talvez teria sido menos doloroso. – Disse ele com uma seriedade assustadora. – Foste para um casino e perdeste esta casa.

Aquela notícia me atingiu como um banho nas águas do pólo norte. Foi fria demais para o meu sistema nervoso. Comecei a ficar desesperado. Aquilo não podia estar a acontecer comigo. Onde é que estava Deus quando eu mais precisei? Ele foi capaz de me abandonar, logo ele a quem eu sempre confiei. Ele me pregou uma partida enorme, arruinou a minha vida. Agora já não acredito nele. Para mim nunca existiu.

Agora, eu tinha apenas mais cinco meses para sair daquela casa, e menos de um mês para viver. Os dias a seguir passaram numa agonia tremenda e desgosto pela vida. Deixei de ir à igreja porque para mim, aquilo já não fazia sentido algum.

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VI.

Contagem regressiva

para Morrer

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No primeiro dia de Julho, estava deitado no meu quarto, com a habitual dor de cabeça, olhando para as paredes do mesmo, imaginando que teria de deixar aquilo tudo que o meu pai começou a construir e eu inteligentemente soube continuar a fazer crescer.

É preciso ter muito azar para num ano só ser traído pelo melhor amigo, perder a mãe e a mulher que nos fez conhecer o que é amar de verdade. À isso os humanos chamam destino. Mas o que fiz eu para ser apunhalado dessa forma? Sempre fui bom, sempre fui caridoso, sempre fui à igreja e sempre acreditei em Deus, excepto até a altura em que ele simplesmente me abandonou.

Agora estava ali, deitado, um dia antes da minha morte. Já nem testamento posso escrever porque simplesmente perdi tudo o que algum dia tinha em abundância, simplesmente por ter escolhido mal o meu melhor amigo. Se eu pudesse fazer diferente… Bem, não sei se faria, porque Ronaldo sempre esteve nas ocasiões mais importantes da minha vida, por isso nem sei afirmar com certeza se estou com tanta raiva dele. Acho que era capaz de o perdoar, mas só se pudesse entender o que lhe fez me trair. Vida injusta.

Ali estava, há apenas um dia antes do meu aniversário e morte. Deve ser engraçado, perder a vida no mesmo dia em que a ganhamos. Chego a conclusão que devia ser assim com todos, assim como eu, todos saberiam as datas de suas mortes, só seria estranho pelo facto de comemorar cada aniversário com medo de que aquele fosse o ano da morte, mas por outro lado, a festa seria maior quando se descobrisse que não foi daquela vez que a morte bateu a porta.

Será que todos são assim? Será que todos, antes de morrer, têm esses momentos filosóficos? Pensar na morte, formular suposições, dar uma de sábio, ver luzes, falar com anjos, jogar cara e coroa para saber se vai para o céu ou para o inferno, fazer um balanço de todas as acções passadas, reflectir sobre se foi uma boa ou má pessoa durante o seu tempo de vida… Será? Será que o meu pai e aqueles homens todos da minha família sabiam dessa doença antes de morrer? Será que cada um, excepto o meu avô, só fez um filho por causa disso? Para não causar sofrimento à muita gente, se calhar? Agora se calhar isso faça sentido.

Só queria poder morrer ao lado da mulher que eu amo. Tudo bem que não desejo que ela me veja morrer porque sei que iria sofrer, e até porquê ela é jovem e tem ainda muitos anos pela frente, mas pelo menos se pudesse morrer sabendo que ela me pertencia quando finalmente parti… Já seria um grande alívio para mim. Talvez teria doído menos.

Tudo o que me resta agora são lembranças, maior parte delas de bons momentos, momentos vividos ao lado de pessoas especiais, momentos de

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aprendizagem, momentos de paz, momentos de alegria, momentos de conquista, momentos de glória, momentos de fé, momentos de amizade, momentos de coragem, momentos de experiências positivas, momentos de sorrisos, momentos de felicidade, momentos de descobertas, momentos de amor, e acima de tudo, momentos de vida.

Às vinte e três horas e cinquenta e dois minutos, sentei-me na poltrona do meu escritório, com um copo de vinho pousado sobre a mesa, um charuto caro na mão, barba feita, vestindo o melhor terno e gravata que alguma vez havia comprado. Em dez minutos eu tinha a certeza que faria quarenta e nove anos – a idade da morte – só não sabia com que pontualidade chegaria a mesma.

Se for para ser como aconteceu com o resto dos meus familiares, ela não passará do dia do aniversário, então, pode chegar a qualquer momento, pode tardar mas não falhar. Dia um de Julho, vinte e três horas e cinquenta e nove minutos, acompanhava com os olhos a trajectória do ponteiro de segundos do caríssimo Rolex que se encontrava no meu pulso esquerdo. Em termos de segundos, bem, faltavam agora… Dez… Nove… Oito… Sete… Seis… Cinco… Quatro… Três… Dois… Um…

A porta do meu escritório abriu com uma agressividade enorme quando faltava aquele segundo único. Para o meu espanto, era Ronaldo, com uma caixa de chocolates na mão dizendo: – Feliz aniversário…

Meu corpo enrijeceu. Meus músculos se contraíram. Era mais provável eu ter naquele momento, uma raiva incalculável daquele homem grande, mas simplesmente não consegui.

Ele fazia isso em todos os anos. Sempre, sem falha, ele costumava abrir a porta seja lá de onde eu estivesse, quando o ponteiro apontasse o primeiro segundo do meu dia de aniversário. Era impressionante a sua pontualidade, e dessa vez não foi diferente. Queria matá-lo, queria lhe falar coisas que estavam entaladas na minha garganta, queria que ele sofresse… Sim, antes queria, mas agora não conseguia querer, só queria

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abraçá-lo e lhe chamar de irmão. Comecei a chorar ainda imóvel, a olhar para ele, e a sua cara estava inchada, eu sabia que era por culpa minha, mas sabia que ele merecia… Quando eu estava com raiva. Agora não. Sentia pena por ele ter que ter passado por aquilo, por minha causa. Ele começou a se aproximar de mim, com o olho direito inchado, um corte no lábio e tiras de ligadura envolvendo o enorme braço esquerdo. Ele mancava em minha direcção com um sorriso no rosto e a caixa de chocolates na mão, como sempre fazia. Levantei-me, hesitei, era como se eu não me estivesse a controlar. A parte negativa da minha consciência gritava para que eu não tivesse misericórdia, mas a parte positiva da consciência é que agia, me orientava a me levantar e, pelo menos no meu último dia de vida, fazer o que eu realmente queria: dar um abraço à Ronaldo.

Venci aquela pressão, e sem mais pensar em nada, corri e o abracei, começando a jorrar lágrimas logo em seguida. A seguir, enquanto o abraçava, retirei do meu bolso um revólver, me distanciei alguns centímetros dele num ápice, e sem hesitar, apertei o gatilho em direcção ao seu peito. Não tinha erro, fui ágil. O dia dois não estava reservado só para mim. Começamos juntos, teríamos de acabar juntos. Mas ele mais cedo.

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VII

A luz no último dia

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Estava tudo previsto. Desta vez era certeiro. Dedo no gatilho, som ensurdecedor sair, trajectória da bala… Bem… Esta foi para cima. Na altura em que eu apertei no gatilho, Ronaldo, meio que já prevendo a minha acção, pegou na minha mão e me fez disparar a bala do revólver para cima da minha cabeça, no tecto, acertando o enorme candeeiro que não demorou a cair em minha direcção. Aconteceu tudo tão rápido que eu já sentia o mesmo cair por cima da minha cabeça e me matar de uma vez por todas, mas naquela mesma fracção de segundos em que tudo estava a acontecer ao mesmo tempo, ele se atirou para cima de mim, não evitando que o candeeiro caísse sobre as suas costas. Como se já não bastassem os ferimentos que o tinha causado propositadamente, agora estava ali ele, novamente ferido, mas dessa vez por tentar me salvar.

Eu estava por baixo daquele homem corpulento que estava imóvel, mas respirando. Achei que ele tivesse desmaiado. – Estás bem? – Perguntou ele.

– Porquê que estás a fazer isto? – Perguntei, fazendo o inútil esforço de tentar retirar aquele homem corpulento de cima de mim.

– Não saio de cima de ti até não falar contigo sobre o que se está a passar aqui. – Disse ele com tom autoritário – O que foi? Perdeu a cabeça de vez? Que história é essa de perder tudo no casino?

– O que foi agora? – Gritei ainda tentando sair debaixo dele – Já não basta tudo o que você fez comigo? Já não basta ter morto a minha mãe?

De repente ele, se levantou um bocado e me deu uma chapada dolorosa na face.

– Nunca mais te atrevas a dizer isso – Disse ele noutro tom de voz – Achas que teria a discrepância para fazer isso?

– Depois de tudo o que fizeste comigo, não duvido nem um pouco. Sai de cima!

– Depois de tudo o que fiz? – Perguntou ele surpreso e exercendo mais força. – Tudo o que fiz foi te proteger.

– Belo discurso – Disse eu em tom irónico – Me proteger de quê? –

Da Trina, e de toda a sua gang.

Aquelas palavras cortantes me fizeram parar de tentar reagir. Não entendia como ele teve coragem de dizer algo como aquilo da única mulher a quem amei de verdade, depois de minha mãe. Tentei agarrar o

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revólver ainda no chão mas ele apertou-me com mais força até eu gritar e deu um jeito de o afastar ainda mais de mim. Disse que eu tinha de o ouvir.

– A Trina… Ela sabe de tudo. – Disse ele despejando tudo o que tinha na mente com uma respiração bastante tensa. – Ela está por trás de tudo o que está a acontecer contigo. Eles são uma máfia. Eu descobri tudo.

– Que porcaria é esta agora? – Perguntei irritado. – É essa a forma que encontraste para limpar o teu cadastro? Você mesmo me aconselhou a casar com ela. A não ser que sejam os dois da mesma máfia.

– Cala-te! – Disse ele irritado, começando a elevar o tom de voz em seguida com uma agressividade assustadora – A Trina não é quem você pensa que é. Eu te aconselhei a casar porque até naquela altura eu tinha a certeza que ela era uma boa pessoa. Ela planejou tudo desde o início. Ela sabia de tudo, dos teus passos. Foi tudo programado. – O quê? Que provas tens?

– Tudo começou quando eu reencontrei um velho amigo meu. – Falava mais calmo, agora – Ele me disse que agora estava a trabalhar numa empresa de serviços de inteligência e durante a conversa eu lhe falei de ti. Disse o quão especial és para mim e a única foto tua que eu carregava, era a que tu tinhas ao lado de Trina. Assim que ele viu Trina ficou assustado e perguntou quem era aquela mulher. Eu respondi que era a tua futura esposa e ele disse que se eu te amava, teria de impedir que isto acontecesse e lhe ajudar a pará-la. Não entendi mas ele explicou. Ele explicou que Trina trabalha para uma máfia e que tu podias estar a ser usado para eles terem o poder que desejam. Desde então, conversamos e eu fui juntando todos os factos que vocês passaram juntos. Têm todos, uma conexão. Não achas coincidência, ela estar parada exactamente na estrada de volta para a tua casa no vosso primeiro jantar quando ela devia estar a ir para o restaurante?

Comecei a ficar pensativo, embora não querendo deglutir aquela informação e ele finalmente me soltou.

– E a tua ida à Portugal? – Perguntei – Não é uma coincidência teres ido à Portugal depois de sairmos dali, não responder os meus telefonemas e ainda por cima não comparecer à uma das reuniões mais importantes da empresa? Eu te confiei.

– Eu fui para Portugal, mas era para te alertar. Eu não fui sozinho. Levei o meu amigo comigo. – Alertar de quê?

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– Trina tinha tudo planejado, homem. – Disse ele impacientemente tentando encaixar aquilo na minha cabeça – Eu descobri que a empresa japonesa era uma farsa. Tu estarias a confirmar a passagem dos teus bens para essa máfia. O advogado da empresa também pertence à essa máfia, pois ele devia ter lido o contracto. Na verdade leu, mas como sabe que o confias, não irias meter olho clínico num contracto com mais de vinte páginas de cláusulas, regalias e coisas assim. – Voltou a alterar o tom de voz – Eu li, eu vi. Você estaria a passar todos os seus bens para Trina.

– Mas… – Disse eu com as mãos na cabeça – Eu entrei em contacto com eles para regularizar a situação, pedi desculpas e… – Fiz uma pausa fechando os meus olhos, engoli a seco e prossegui – …assinei.

Ronaldo soltou um grito de raiva por não ter conseguido chegar a tempo. Ainda assim prosseguiu, mas desta vez, mais paciente:

– A propósito, que história é essa de não atender os teus telefonemas? Nunca recebi nenhum desde que foste para Portugal, e além disso eu é que tentei ligar para ti, mas sempre esteve desligado, embora soubesse que sempre usas roaming. Por isso pensei que ela fez algo de mal contigo e fui atrás de ti. De facto visitei a tua mãe, falei com ela e ela me contou que você não passou bem, me falou da doença e me disse que te deu o número do doutor Júnior André…

– Júlio… – Júnior… – Insistiu ele.

– Já disse que é Júlio. A minha mãe me deu o cartão dele. – Com o rosto suado, afastei-me dele e fui até à uma das gavetas da escrivaninha e tirei o cartão de visita com o nome “Júlio André” e o mostrei.

Logo em seguida, ele retirou um cartão que alegou que lhe foi dado também pela minha mãe, para o caso de eu não querer ligar. No cartão estava inscrito o nome “Júnior André”. – Vamos ligar para ele. – Decidi.

– Espera. Há mais uma coisa que o meu amigo me alertou. – Disse ele antes que eu digitasse qualquer número. – Você disse que tentou ligar para mim e ninguém atendia, quando por outro lado, eu tentava ligar para ti e dava desligado. Não achas isso estranho? Deixa-me ver teu telemóvel.

Entreguei-lhe o telemóvel sem saber mais o que fazer. Tudo de repente passou a tomar uma trajectória diferente. Observei-o apertar nas teclas do mesmo com agilidade, até que se viu no seu rosto a surpresa com

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relação a algo que tivesse encontrado no que procurava. Perguntei o que era e ele respondeu:

– O meu amigo Taylor tinha toda a razão. É muito simples esse golpe. Trina andava contigo, o que lhe permitia pegar no teu telemóvel quando quisesse. Ela simplesmente alterou o meu número no teu telemóvel, de maneira que tu passes a ligar para um número que certamente os pertence, o qual nunca atendem. Tu és um homem cheio de coisas na cabeça, portanto, não tens o meu número decorado. Logo, só recorres à lista telefónica e digitas o meu número.

– E porquê você não consegue ligar para o meu? – Perguntei tentando entender todas as partes desse quebra-cabeças.

– Muito simples. Porque você não tem o teu cartão sim aí dentro do teu telemóvel, mas sim um que eles devem ter trocado. – Disse ele convicto do que dizia. – Você recebeu telefonemas enquanto viajava? De quem?

– Sim, recebi – Respondi prontamente – O Rómulo ligou para mim, e… – Parei para pensar, e vi que ele foi a única pessoa que ligou para mim durante a minha estadia em Portugal – Só ele… – O Rómulo faz parte dessa máfia. Ele é um espião dentro da empresa.

Sentei-me para tentar processar todas aquelas informações que penetravam o meu cérebro. Não entendia porquê que aquilo tudo resolveu se desvendar apenas no dia da minha morte.

– Quando eu comecei a desconfiar disso, realmente desviei o dinheiro para uma conta em meu nome, para te proteger. – Tirou do bolso um cheque – Dois biliões de dólares. Dá para sobreviveres. O meu amigo mostrou-me uma investigação que estava a ser feita e viu-se que o suposto fã psicopata que você disse que Trina teve, de facto existiu, mas não com esse papel. Ele nunca assediou Trina como ela te disse. Ela te contou que ele invadiu o canal televisivo, por acaso alguma vez viste imagens ou ouviste falar nesse escândalo? Foi tudo inventado. Escândalos como estes seriam motivo de manchetes de jornal por longos dias. A imprensa não deixaria passar um furo destes, ainda mais num programa ao vivo.

– Quem era ele? – Perguntei sem acção, respirando fundo agora.

– Alguém da mesma agência em que trabalha o meu amigo, que descobriu a existência dessa máfia e tinha prometido contar à polícia. Ela o matou na auto-estrada e como boa actriz que é, fez questão de fazer com que tudo parecesse acidente.

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Ficamos ali algumas horas a conversar sobre aquilo tudo e, depois de não mais aguentar, eu disse que precisava descansar e que era melhor nos encontramos às onze horas da manhã, caso ainda estivesse vivo. Pedi-lhe imensas desculpas pelo que fiz e dolorosamente contei que o tinha mandado agredir. Ele pareceu nem se importar com aquilo. Apenas pediu que me cuidasse.

Só consegui dormir por uma hora. O tempo parecia não passar.

Chegou a manhã do meu último dia de vida. Vesti-me de maneira bem simples, e às sete horas da manhã, apanhei um táxi até à minha empresa e subi até ao décimo segundo piso. Quando lá cheguei, a minha secretária estava assustadíssima. Disse que fora demitida por Trina e que ela estava à minha espera dentro da sala. Furioso e cheio de coragem, caminhei à passos acelerados e abri a porta do escritório que sempre me pertenceu. Lá dentro, estava Trina e alguns homens ao seu lado direito e esquerdo.

– Trina! Eu já sei de tudo, desgraçada.

– Tudo mesmo? – Perguntou ela – Acho que ainda não sabes de tudo, querido, mas eu faço questão de te explicar com toda a calma do mundo. Antes de mais nada, diga olá à minha irmandade. Os homens que pertencem à Organização.

Reparei bem nos homens e fiquei espantado com aquela máfia. Lá estava: Rómulo, Dr. Júlio André – O doutor que visitei –, o advogado da empresa, um dos meus empregados da mansão, um jovem magro e baixo que eu não conhecia e André Mendes – O meu amigo realizador de filmes. Não podia acreditar naquilo que estava diante de mim. Ela tomou a palavra:

– Cada um destes homens teve um papel importantíssimo nessa história. – Apontou para o primeiro homem e prosseguiu – Rómulo, tratou de te ligar para te informar tudo aquilo que queríamos que soubesses para incriminar Ronaldo. – A seguir apontou para o velho – Dr. Júlio André, ou melhor Anastácio Raimundo, fez-te um enorme favor a identificar a tua doença. Se calhar devias saber que ele é o meu pai biológico. – Apontou para outro – Este, você conhece bem. O seu advogado preferido. Ele tratou que você fosse enganado com aquele contracto enorme. – Continuou apresentando – André Mendes. Esse você conhece bem. A nossa agência para gravar o novo filme nunca existiu. Você simplesmente fazia depósitos que nunca teriam retornos, e fazíamos questão de com o teu dinheiro, pagar os actores que faziam o papel de produção enquanto ias assistir as filmagens do filme. Que excitante.

– Eu vou morrer hoje. – Disse eu com raiva daquilo tudo – Quero morrer a saber o que aconteceu comigo, e como vocês fizeram isso.

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– Vai ser um prazer – Disse Trina confiante – Todos os nossos encontros foram planeados. Soubemos que irias para França no festival de Cannes e então fomos apresentados propositadamente. Eu me fiz de difícil igualmente propositadamente. O meu carro nunca avariou no dia em que jantamos em tua casa, foi tudo farsa. Nunca existiu o fã psicopata e já agora desculpa pela morte da tua mãe… Era necessária. Soubemos que o azarado do teu irmão negro foi agora de manhã procurar o verdadeiro doutor. O mais provável é que seja incriminado pela morte que preparamos para o doutor. A instituição de caridade onde supostamente fui criada, nunca existiu. Você depositava dinheiro para nós. Obrigada desde já. Tem mais… O casino é de nossa conta, ou seja, tudo o que você perdeu nas apostas, perdeu para nós, não se preocupe, está em boas mãos, assim como esta empresa. Ela é minha agora, portanto, aproveite bem o seu último dia de vida. Os guardas farão a gentileza.

Logo a seguir, entraram na sala cinco homens robustos e me carregaram agressivamente para fora da empresa. Era uma humilhação autêntica. Todos os indivíduos que outrora me respeitavam e encaravam como seu líder, me viam agora ser escorraçado na empresa que eu ajudei a fazer crescer. Alguns dos funcionários mais fiéis encaravam aquilo com um olhar de tristeza nos olhos, outros tentavam impedir aquela violência toda pedindo aos seguranças que tivessem piedade. Eles tinham pena de mim. Tudo o que um dia fui como empresário, se estava a desvairar naquele instante. O respeito e o poder que algum dia conquistara, naquele instante não me podiam salvar. Eles já não faziam parte da minha vida no presente, apenas das lembranças do passado.

Eles deviam ter previsto que eu os procuraria porque assim que fui empurrado para fora da empresa, haviam jornalistas à espera, com inúmeras máquinas fotográficas e de filmar, jovens com distintivos de variadas cadeias televisivas nacionais e internacionais carregavam microfones na mão para reportar o acontecimento. – Sabe-se lá quais eram as manchetes do rodapé nos canais de televisão. Era inevitável ser filmado. Todos estavam de olhos postos em mim, enquanto aqueles homens brutalmente me empurravam diante do meu próprio império. Fui atirado para o chão, mais propriamente num poça de água suja que se havia formado próximo à empresa. A minha face, e boa parte da minha roupa estavam inundadas de água suja. Enquanto tentava limpar a minha face e igualmente tentar me levantar, a imensidão de jornalistas começou a vir atrás de mim para reportar de perto aquilo e fazer perguntas sobre o que se estava a passar. Quando me apercebi daquilo, m levantei com enorme esforço e comecei a correr incansavelmente para um destino que nem eu mesmo conhecia. Só queria fugir, queria desaparecer. Onde estava a minha morte quando eu mais precisei dela? Estava atrasada. Pus-me a correr dentro de uma estreita passagem, pulei um muro alto, subindo primeiro no contentor de lixo que se encontrava junto à parede e

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logo a seguir pulei, abandonando-os ali exaustos atrás de mim com os seus materiais e a sua curiosidade pertinente.

Parecia um desgraçado. Na verdade, estava um verdadeiro desgraçado. Já não tinha nada. Àquela altura, conforme Trina havia dito, Ronaldo devia estar a ser incriminado pela morte do doutor Júnior. Que injustiça. Tudo por minha causa. Se calhar, não mereça mesmo viver, uma vez que todos os que se relacionam comigo estavam a morrer ou a me trair. Nenhum ser humano na face da terra, por mais males que tenha feito durante a sua vida, merece isso tudo. Cansei de viver. Já que a morte não chega, eu vou buscá-la… Vou antecipá-la. Caminhei alguns tantos quilómetros com os pés dormentes sobre as diferentes ruas daquela cidade, sendo reconhecido em alguns pontos, uma vez que a notícia já havia sido rapidamente difundida pela televisão. Ignorei os comentários, os olhares indisfarçados, os risos direccionados e a existência de qualquer ser humano na face da terra. Só precisava morrer. Talvez mais ninguém pudesse sofrer por minha causa.

Dirigi-me até uma auto-estrada e surpreendentemente consegui ficar num dos extremos do sentido para quem estava a sair da cidade. Só mais uma pessoa precisava sofrer um bocado: a pessoa que me iria matar. Sentei-me na parede que protegia a auto-estrada observando os carros passar em velocidades incríveis. Precisava ser de uma vez só. A auto-estrada se situava em cima de um enorme rio que se situava à imensos pés de distância. Ele era temido pelas suas violentíssimas correntezas. Até barcos raramente passavam por aquela parte do rio. Mas não. Não era aquela morte que precisava ainda. De olhos postos na estrada, avistei dois carros velozes se aproximando como se estivessem a competir e algo dentro de mim me disse que aquele era o momento cero para morrer. Não hesitei, me levantei e corri para o meio da estrada, indo agora contra os carros que vinham em alta velocidade. Alguém só precisava me atropelar. Nada mais. Comecei a correr de olhos fechados e ouvia o ruído dos carros cada vez mais se aproximando e as suas buzinas soando histericamente. Corria porque tinha de encontrar a minha morte.

Tudo o que tentei fazer, deu em insucesso, encontrei motoristas bastante atentos, todos os que me viam correr na estrada desviavam os seus carros embora estivessem em alta velocidade. Ninguém teve o descuido de me atropelar. Aquilo irritou-me. Ajoelhei no meio da estrada e os carros que começaram a vir a seguir começavam a fazer paragens bruscas por minha causa. Alguns carros bateram noutros por causa das paragens bruscas, mas ninguém conseguiu bater em mim. Quando dei por mim, três agentes da polícia estavam a vir em minha direcção para saber o que se passava. Olhei para eles, olhei para o outro lado da ponte. Só tinha de escolher para onde queria ir: Para a cadeia ou buscar a minha morte. Preferi o mais fácil. Levantei-me e pus-me a correr feito um louco. A maior parte das pessoas começou a gritar histericamente já prevendo o

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meu próximo passo. Eu estava a correr em direcção à parede que limitava aquela estrada. Intensifiquei a minha corrida quando ouvi os polícias ordenando que eu parasse senão disparavam e simplesmente me lembro que saltei, trepei a parede em dois segundos e me atirei de lá… Se a morte não ia até mim… Eu fui à ela.

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VIII

Huntington?!?

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Tocavam sinos gigantes. Já me estava a habituar com aquela vida. Os sinos gigantes significavam que tínhamos todos de ir ao encontro do Pai. Todos nós, não importava o que estivéssemos a fazer, ao som dos sinos tínhamos de ir ter com Pai, que nos aguardava para ser adorado. Eu e os outros, vestíamos impecáveis roupas brancas… Éramos anjos de verdade. Fazíamos o bem, vivíamos a justiça, partilhávamos, recebíamos ensinamentos do Mestre, vivíamos em paz. A paz que todo o homem vivo desejaria.

Enquanto caminhava para o encontro do Pai, juntamente com os outros, todos diferentes, – uns loiros, outros morenos, brancos, negros, albinos, do oriente, ocidente, altos, baixos, magros, robustos, sem a mínima descriminação – pensei no facto de que tudo o que eu conquistei enquanto “vivia” já não fazia sentido “aqui” onde me encontrava.

O último cheque de dois biliões de dólares que carregava no meu bolso, já não existia, e também “aqui” ninguém precisa dele. O respeito, prestígio, poder que lá tinha, “aqui” não existe. “Aqui” não sou líder, sou discípulo. “Aqui” não sou superior, mas sim aluno, educando. “Aqui” só há um Mestre, “aqui” sempre existiu apenas um Mestre. Fui aceite de braços abertos, mesmo depois de ter blasfemado agressivamente e culpado ao Mestre de me ter abandonado quando mais precisei. Fui fraco na fé, Ele não me abandonou, eu o fiz. Ainda assim Ele foi bom comigo, Ele me perdoou e me deu a oportunidade de estar ali. Agora só O agradecia por tudo o que Ele fizera por mim. Ao som dos sinos, todos nós, “anjos”, caminhávamos para o encontro do Pai, que nos aguardava para ser louvado.

**

Depois de me ter lançado para o rio, minha mente apagou. Quando abri os olhos, estava cercado de seres com vestes brancas olhando para mim. Perguntei quem eram eles e eles me responderam que eram anjos e o Pai ordenara que me fossem buscar. Parece que finalmente aquilo era a vida depois da morte. E realmente era, mas não como muitos devem estar a pensar. Eu não morri. Surpreendentemente, fui arrastado pela correnteza algumas vezes e fui parar numa região muito distante da cidade. Fui levado até uma espécie de aldeia com um grande templo e algumas cabanas ao redor do mesmo. Aquele era um lugar divino. Parecia uma representação do que a bíblia falava sobre o jardim do Éden. Lá residiam homens bons, que recrutavam homens para os tornar bons, os instruíam com a palavra divina, os induziam a evangelizar, os ensinavam a viver em paz, partilha, e acima de tudo comunhão com o Pai.

Confessei os meus pecados aos pastores idosos que lá se encontravam e eles disseram que eu podia recomeçar. Podia começar uma nova vida. Um ritual no rio simbolizou o meu baptismo, e agora eu era outro homem. Todos os meses, eram seleccionados cinquenta homens e mulheres para ir à cidade levar à

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palavra santa para diversos lugares. Normalmente íamos para hospitais, prisões, parques e igrejas, num período de uma semana. Funcionávamos como missionários e dormíamos na rua. Desprezávamos tudo o que era bem material, vivíamos como epicuristas. A beleza exterior de nada nos importava.

Certo dia, quando finalmente acharam que estava preparado para tal, fui um dos cinquenta escolhidos para evangelizar em uma unidade presidiária. Por obra do destino, eu calhei numa cela especial. Dentro daquela cela, se encontrava Ronaldo, que foi preso injustamente pela morte de minha mãe e do Dr. Júnior André. O nosso encontro mudou muita coisa. Ele havia conseguido provas suficientes para afirmar a sua inocência e garantiu-me que em dias seria o seu julgamento. Eu fiquei feliz por ele e contei tudo o que se passou comigo. Ele também achou que eu tivesse morrido no rio. Logo a seguir, eu manifestei a minha preocupação com o facto de já se terem passado cinco meses e eu ainda não ter morrido. Contei-lhe também que deixara de sentir as dores de cabeça da doença e os movimentos involuntários. Ele disse que tinha algo para me contar.

– Eu ameacei Trina logo depois de você ter se atirado para o rio. Estava frustrado com tudo o que ela te fez passar. Estava prestes a matá-la quando ela confessou tudo. Um dos teus empregados tinha a missão de te drogar. A droga que eles colocavam nas tuas refeições diárias, te dava aquelas dores de cabeça. A seringa que foi usada pelo pai de Trina para te tirar sangue, serviu para te injectar outra substância, que te fazia sair do estado sóbrio. Você nunca fez o escândalo no funeral da tua mãe, você nunca agrediu Rómulo, a televisão nunca filmou nada porque não houve nada. Você, inclusive, mesmo drogado, falou as palavras mais sinceras que podias dizer num momento como aquele. Eu vi de longe, porque fui barrado por eles para que não assistisse ao funeral. – Ele parou por algum tempo para recuperar o fôlego, e prosseguiu. – O Dr. Júnior André deixou uma carta por cima da mesa quando o encontrei morto. – Explicava sobre a minha doença? Eu investiguei e ela existe mesmo.

– Sim, ela existe e eles não mentiram quando disseram que aqueles membros todos da tua família tiveram e morreram daquela forma, aos quarenta e nove anos.

– E porquê ainda não morri? – Perguntei preocupado.

– Bem… – Ele começou mas hesitou.

– Fala, pelo amor de Deus! – Alterei um bocado o tom de voz, atraindo a atenção dos guardas e outros presidiários.

– Carlos… – Começou ele hesitando mais uma vez. – A dona Eulália, sempre foi uma boa mãe, mas ela nunca pôde gerar filhos. – Não estou a perceber. – Comecei a gritar – Fala logo de uma vez!

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– Você foi adoptado, tal como eu. – Disse ele de uma vez por todas. – O Doutor Júnior escreveu aquilo na carta. Portanto, ainda te restam anos de vida.

Lembro que aquela notícia mudou o rumo de toda a minha vida. Eu chorei. Fui tratado como um filho biológico, daquilo nunca poderia esquecer. Continuamos o resto da semana naquela missão evangélica e pude ver Ronaldo muito mais vezes. Podia simplesmente tentar lutar para reaver o que perdi, mas do que adiantaria? Iria estar a lutar pelo material, quando eu tinha o suficiente no espiritual. Tinha a certeza de que Deus faria a sua própria justiça. E fez. Trina e o resto do grupo foi preso porque finalmente Taylor, o amigo de Ronaldo, conseguiu os incriminar e fazê-los pagar pelos seus crimes, na prisão, provando assim a inocência de Ronaldo.

**

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IX.

Para terminar…

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“Ao som dos sinos subíamos a enorme escada que dava ao templo sagrado. Aquele era o nosso paraíso. Todos nós vestidos de branco, ajoelhamo-nos e adoramos à Deus durante quatro horas. Aprendi a viver de novo. Orei por Ronaldo, pois ele agora tinha sido liberto e teria de começar a sua vida novamente, presidindo a empresa. Já me tinha habituado com o “céu”.

Independentemente dos factos que algum dia te depares, nunca desistas de viver. A vida pode muitas das vezes parecer dura demais para suportar, mas nunca desistas dela. Deus nunca te dá pesos maiores do que podes suportar. Se acreditas Nele, não ache que Ele te abandonou quando algo te corre mal. Lembra-te que alguma vez Ele foi bom para contigo.

A doença de Huntington existe, e é muitíssimo rara. Ainda assim, não cabe aos homens prever o dia de sua morte, mas de viver a sua vida ao máximo possível. Eu antecipei a minha morte, mas renasci, noutra dimensão, noutro estado de espírito. Com muita estima, escrevo esta história, com desejo que algum dia, algum homem possa encontrar e poder compartilhar com o resto do mundo, traduzindo-a em diferentes línguas e fazer dela uma lição de vida. Aqui termina a tinta da minha caneta, a história da minha vida e… O meu legado como ser humano.”

Carlos Artur

FIM

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Cláudio Fernando Kiala nasceu em Luanda aos 26 de Julho de 1992. Filho de Kiala Pierre e Luzolo Ameriança. Começou a

escrever desde tenra idade mas só aos 18 anos, no dia 03 de Setembro de 2010 teve a honra de publicar pela UNIÃO DOS

ESCRITORES ANGOLANOS a sua primeira obra literária intitulada PERDIDOS NA ESCURIDÃO, apadrinhada pelo

conceituado escritor Manuel Rui Monteiro. Cláudio Kiala, sob o pseudónimo CFKAPPA, é artista de música RAP (com uma obra

discográfica publicada), além de estudante Universitário a residir nos Estados Unidos de América.

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