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Trata-se do impacto da revolução Russa no movimento operário do rio grande do sul.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
Frederico Duarte Bartz
O Horizonte Vermelho: O impacto da revoluo russa no movimento operrio
do Rio Grande do Sul, 1917-1920
PORTO ALEGRE MAIO DE 2008
Frederico Duarte Bartz
O Horizonte Vermelho:
O impacto da revoluo russa no movimento operrio
do Rio Grande do Sul, 1917-1920
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Orientadora: Prof. Dr. Slvia Regina Ferraz Petersen
Porto Alegre Maio de 2008
2
RESUMO
Esta dissertao tratar do impacto da revoluo russa no movimento operrio do Rio
Grande do Sul entre 1917 e 1920. A revoluo russa foi um dos processos histricos mais
importantes do sculo XX, sendo a primeira revoluo operria que sobreviveu por um
longo tempo e conseguiu criar instituies duradouras.
Durante os primeiros anos da revoluo russa no Rio Grande do Sul se vivia um
momento de grande agitao entre os trabalhadores, com a deflagrao de greves, a criao
de novos sindicatos e o surgimento de muitos jornais de classe. Neste contexto, aparecem
as primeiras associaes de trabalhadores que se diziam identificados com as idias da
revoluo russa, tambm surgem declaraes de apoio revoluo e desejo de seguir o
caminho da Rssia dos Soviets entre os militantes operrios.
Por esta recepo e o perodo de mobilizao, acredito ser necessrio estudar como a
revoluo russa influenciou as idias e as formas de ao do movimento operrio do Rio
Grande do Sul, considerando a ideologia dos militantes, suas origens tnicas e culturais,
suas formas de associao e de luta contra o estado e a burguesia.
Palavras-chave: movimento operrio, revoluo russa, primeira repblica.
3
RESUME
Cette tude traitera de l'impact de la rvolution russe en mouvement ouvrier de Rio
Grande do Sul. La rvolution russa a t un des plus importants processus historiques du
sicle XX, en tant la premire rvolution ouvrire qui a survcu pour un long temps et est
parvenue lever des instituiciones durables.
Pendant les premires annes de la rvolution russe dans le Rio Grande do Sul on
vivait un moment de grand agitation entre les travailleurs avec la dflagration de grves, la
creatin de nouveaux syndicats et le surgissement de periodiques de classe. Dans ce
contexte apparaissent les premires associations qui sont identifies avec les ides de
rvolutionne russe, aussi apparaissent dclarations d'appui la revolution et desir de suivre
le chemin de la Russie des Soviets entre les militants ouvriers .
Par cette rception et la priode de mobilisation, je cre tre ncessaire d'tudier
comme la rvolution russe a influenc les ides et les manires d'action du movimento
ouvrier durant ces annes, considrant l'idologie des militants, ses origines thniques et
culturelles, leurs formes d'association et de combattre contre l'tat et la bourgeoisie.
Paroles-cls: mouvement ouvrier, revolution russe, premiere republique en Bresil.
4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, como de praxe, agradeo ao Programa de Ps-Graduo em Histria
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao CNPq, por me financiarem uma bolsa
integral, sem a qual no teria conseguido me dedicar a esta dissertao como me dediquei.
Agradeo ao Professor Marcelo Badar Mattos, ao Professor Benito Schimidt e
Professora Beatriz Loner, por terem aceitado participar da minha banca. Agradeo de forma
especial Professora Carla Rodeghero, que participou da minha banca de qualificao e
com quem tive, no mestrado, uma das melhores cadeiras que j cursei nesta Universidade,
apesar desta, sobre historiografia da Ditadura Militar, nada ter a ver com meu tema de meu
trabalho. E sou tambm igualmente grato aos colegas que entraram junto comigo neste
curso, como o Ricardo Oliveira, o Diego Vivian, o Tiago Leito, a Carla Menegat, o Fbio
Chang e o Cleber Carls, que fizeram daquelas tardes algo muito mais interessante que
simples encontros acadmicos.
Agradeo aos professores que ajudaram em minhas pesquisas e me ajudaram a pensar
meu tema de trabalho. Novamente ao Professor Benito Schimidt, com quem pude
estabelecer uma fecunda troca de idias e que, de um outro ponto de vista, pde enriquecer
meu trabalho com novas referncias. Ao Professor Adhemar Loureno da Silva Junior e
mais uma vez Professora Beatriz Loner, por terem me dispensado pacincia e terem me
cedido seus materiais de pesquisa enquanto eu fazia minhas incurses aos arquivos do
movimento operrio do sul do estado. Tambm agradeo ao Mrio San Segundo, que me
hospedou na sua casa em Pelotas e conseguiu para mim hospedagem em Rio Grande, sendo
meu guia naquelas duas cidades. Agradeo ao Artur Peixoto, que me cedeu um
esclarecedor documento sobre Ablio de Nequete e ao Tiago Bernardon, com quem
estabeleci no s uma frutfera relao de troca de documentos, mas tambm um vnculo de
amizade.
Mas agradeo, sobretudo, a minha orientadora Slvia Petersen. Ela foi sempre
atenciosa, me tratou com respeito e foi me incentivando a desenvolver um trabalho cada
5
vez melhor. Tambm devo a ela a noo de que meus escritos no deveriam ser somente
meus, pois quando fazemos uma pesquisa devemos ter em mente que muitos outros alm
do orientador e do orientando podero l-los, o que d ao estudo um carter muito mais
pblico e coletivo do que um solitrio exerccio intelectual. Posso dizer, sem sombra de
dvida, que sem o seu conhecimento do tema e sua experincia no estudo do movimento
operrio, minha dissertao teria ficado muito aqum do que foi aqui desenvolvido.
Agradeo aos amigos dos tempos da graduao em histria na UFRGS, com quem
mantive contato durante o mestrado. Destaco antes de tudo Joana Dvila e o Gabriel
Aladrn, meus primeiros amigos de verdade no curso, com quem aprendi muitas coisas e
no somente no campo das idias, mas tambm das aes na realidade. Agradeo ao
Gabriel Berute e a Fabiane Mancilha, que foram amigos preciosos. Alguns destes amigos
esto longe agora, mas no os esqueci e espero que em breve possa encontr-los, para
contar da sensao de acabar este rduo trabalho. Tambm agradeo ao Guinter, ao
Fernando e ao Nauber, os dois ltimos que, como eu, tambm escolheram ser militantes
da histria da classe operria. Guardo tambm um agradecimento especial Thais e ao
Gabriel Focking, este ltimo que me ajudou inmeras vezes durante estes dois anos, sendo
para mim um exemplo de abnegao e companheirismo.
Agradeo aos novos amigos que encontrei e cujas marcas tambm podem ser
encontradas neste trabalho. Agradeo Cssia e ao Marcus, que no s foram grandes
colegas, como tambm ajudaram a me tornar professor de um curso pr-vestibular popular,
o Alternativa Cidad, o que tem sido motivo de grande alegria para mim. Mariana,
Fernanda, ao Tiago e Isabela, colegas de outros cursos, de outras barras, com quem nunca
tinha convivido antes, mas que hoje parecem ser meus amigos h muito tempo. Tambm
agradeo Alanna, que conheci no faz muito, mas que j se tornou uma pessoa muito
importante para mim. A companhia de vocs fez deste perodo final do curso algo muito
mais alegre do que a rotina mecnica de aprimorar ortografia e observar as normas da
ABNT. Vou lembrar nossas conversas absurdas nos bares da Cidade Baixa, em que tudo ia
contra o senso comum, em que no parecamos fazer parte deste lugar, mas parecamos ser
imigrantes ou refugiados de um pas perfeito que nunca aconteceu.
6
Os ltimos e principais agradecimentos so dedicados minha famlia. minha irm,
Dbora Bartz, que tem sido sempre a minha melhor amiga e ao meu pai e minha me. a
Frederico Bartz Netto e a Din Duarte Bartz a quem realmente dedico este trabalho. Eles
foram camponeses que vieram para cidade ser engolidos pela sociedade urbano-industrial.
Talvez fosse demaggico dedicar este estudo classe trabalhadora do Rio Grande do Sul,
nesta impossibilidade, dedico a meus pais, mas no somente por serem parte dela, mas
tambm por terem me formado com a carga de suas experincias pessoais; tudo eu devo a
eles e quando escrevia este trabalho, no pensava apenas naquelas pessoas que encontrava
em relatos perdidos e velhos papis, eu tambm pensava neles.
7
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................................10
1. O CRCULO QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE: a revoluo russa e seus
impactos internacionais.........................................................................................................33
1.1.A revoluo russa................................................................................................33
1.2.A revoluo mundial...........................................................................................39
2. HOSANNA, HOSANNA, FILHA DA JUSTIA QUE VENS PARA NS EM NOME DA
LIBERDADE: a experincia operria no Rio Grande do Sul e as primeiras interpretaes
da revoluo russa pelos trabalhadores organizados do estado.............................................45
2.1.A trajetria do movimento operrio no Rio Grande do Sul e suas caractersticas
nos primeiros anos da revoluo russa..................................................................................45
2.2. As condies sociais de apropriao dos impactos iniciais da revoluo russa
entre os operrios gachos....................................................................................................61
3. A HUMANIDADE UM TURBILHO E O MUNDO UM CREPITAR DE CHAMAS:
as transformaes nas formas de interpretar a revoluo russa no ano das grandes greves; novas experincias, novas leituras........................................................................................73
3.1. A revoluo como um processo universal.........................................................75
3.2. A Rssia como concretizao das esperanas operrias....................................83
3.3. A luta contra as interpretaes burguesas da revoluo russa; O Syndicalista
versus Correio do Povo em Porto Alegre e a polmica em torno do militarismo no Rebate,
de Pelotas..............................................................................................................................90
3.4.O esforo analtico dos militantes sobre a revoluo russa................................96
4. PARECER ABSURDO QUE UM LIBERTRIO QUE TEM POR TEMA A PAZ E A
CONCORDIA EXCLAME: SALVE A REVOLUO! a identificao dos militantes com a
revoluo e as aproximaes contraditrias com o sonho revolucionrio..........................105
8
4.1. Anarquismo e sindicalismo revolucionrio: algumas formas possveis de
identificao com os ideais da revoluo............................................................................106
4.2. Trajetrias de vida, identidades tnicas e escolhas polticas na aproximao com
a revoluo russa.................................................................................................................111
a) Friedrich Kniestedt e Zenon de Almeida: duas formas distintas dos anarquistas se
relacionarem com a revoluo russa.......................................................................111
b) Ablio de Nequete: a revoluo russa por uma perspectiva tnica e religiosa........122
c) Carlos Cavaco: a escolha pela revoluo de fevereiro............................................130
5. A VOSSA DIVISO A VOSSA FRAQUEZA- UNI-VOS POIS!, E, NO HAVER
FORA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR: associaes comunistas do Rio
Grande do Sul e suas relaes com grupos similares do centro do pas.............................134
5.1. O surgimento das associaes comunistas e maximalistas no Rio Grande do
Sul.......................................................................................................................................135
5.2. Relao com os grupos comunistas de So Paulo e Rio de Janeiro.................155
5.3. Participao do movimento operrio gacho na insurreio maximalista de
1919.....................................................................................................................................162
6. NO SE CONSEGUE DESCREVER O QUE SE PASSOU NA CABEA DE BOA
PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR DE OLHOS TORNARAM-SE
NOSSOS INIMIGOS: balanos e perspectivas do movimento operrio gacho em relao
ao futuro da revoluo russa............................................................................................170
6.1. A revoluo russa como motivo de discrdia: novas e velhas atitudes
anarquistas...........................................................................................................................172
6.2. O peso da reao: a campanha contra o maximalismo e a perseguio aos
militantes do movimento operrio.......................................................................................182
6.3. Rumo dcada de 20: o sonho da revoluo desfeito entre disputas internas e
ataques da classe dominante................................................................................................197
CONCLUSES.......................................................................................................210
FONTES..................................................................................................................220
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................223
9
INTRODUO
H noventa anos foi iniciado um processo que marcou profundamente a histria do
sculo XX: a revoluo russa. Pode-se dizer, sem muito exagero, que esta revoluo
ocorrida em um imprio distante, de misteriosas vastides, e seus desdobramentos
mudaram o mundo e ainda mais, mudaram a maneira de pensar o futuro da humanidade
naquele curto sculo XX. Hoje isto tudo parece muito distante, principalmente porque
depois de 1989 houve no s esforo enorme para apagar o significado deste
acontecimento, como apagar o prprio significado da palavra revoluo.
A histria no parou a e muita coisa aconteceu depois da queda do muro de Berlim
em 1989 e da dissoluo, em 1991, da Unio Sovitica, a herdeira da revoluo russa.
Hoje alguns dos velhos temas do sculo XX voltam a ser discutidos: a ao imperialista
americana e a luta contra a ocupao estrangeira, no caso do Iraque ou do Afeganisto; a
capacidade da mobilizao popular diante da presso dos governos ou dos empresrios para
destruir conquistas sociais, como nas recentes greves ocorridas nas capitais da Europa ou a
possibilidade de mudanas sociais radicais, acenadas em pases latino-americanos como
Venezuela, Bolvia e Equador, em que a palavra revoluo voltou a ter atualidade.
Talvez esta seja a hora para retomar velhos temas que pareciam estar esquecidos.
No h mais no ar o peso da guerra fria, que daria a este trabalho o ar polmico e partidrio
que outrora poderia ter, mas tambm, creio eu, no estamos mais sob o peso do alarmado
fim das ideologias, que faria deste estudo apenas um ato de visitar relicrios do passado.
Acredito que esta pesquisa, como disse acima, se insere em um esforo por rever velhos
temas, refazer velhos caminhos, que podem com este esforo voltar a ser objeto de
interesse. Talvez esse desejo esteja mesmo no ttulo O Horizonte Vermelho, inspirado no
livro 1917. O Ano Vermelho, escrito pelo intelectual baiano Luis Alberto Moniz Bandeira,
que fala das conseqncias da revoluo russa para o movimento operrio brasileiro. Sigo,
entretanto, um caminho diferente do livro de 1967; para mim a revoluo russa no marcou
aqueles anos com sua marca rubra, mas abriu largos horizontes que podiam ser, em
diferentes momentos, auroras ou crepsculos. E afinal de contas, quem sabe tambm no
10
voltamos a acalentar velhas esperanas observando a ao destes trabalhadores que, mesmo
por algum tempo, acreditaram com todas as suas foras estarem vislumbrando e
participando do nascimento de um novo mundo?
Vamos a eles.
A revoluo russa foi deflagrada em fevereiro de 1917. Desde a primeira hora o
movimento com forte participao operria impressionou o mundo, em parte pelo atraso e
represso que sempre caracterizaram o gigante russo, em parte pela radicalidade das
propostas e aes dos diversos revolucionrios que agiam no pas naquele momento.
A partir de outubro quando o Partido Bolchevique, grupo poltico operrio por
excelncia, tomou o poder e transferiu o centro decisrio do Governo Provisrio para um
Conselho (Soviet) de Operrios, Soldados e Marinheiros, o impacto foi ainda maior. Em
diversas partes do mundo, revolucionrios que desejavam mudanas profundas na sociedade
se identificaram com aquele movimento, logo pensando em reproduzir em seus pases o que
os russos haviam conseguido com sucesso em sua terra. Alguns desses movimentos foram de
extrema importncia e prenhes de conseqncias para seus respectivos pases, principalmente
na Europa. Assim, a revoluo alem de 1918, a revoluo hngara de 1919 e a multiplicao
de Conselhos Operrios na Itlia podem exemplificar quanto foi profundo o impacto da
revoluo russa no continente europeu.
Este perodo coincidiu com o fim da Grande Guerra, que havia jogado muitos pases
em uma crise profunda, com resultados nefastos para os operrios e deslegitimando os
governos que mais haviam sofrido com o conflito. A revoluo russa foi assim uma das
conseqncias desse perodo conturbado e umas das causas da ascenso das lutas nos
diversos pases onde o quadro se repetia.
A revoluo russa tambm repercutiu no Brasil. Na poca, em nosso pas no havia
partidos polticos operrios, seno efmeros e sem importncia. Se quisermos analisar a
importncia da revoluo russa no movimento operrio brasileiro, seu uso, suas
interpretaes, deve-se procur-la especialmente entre os militantes e associaes ligadas
luta sindical, onde se destacava a ao dos anarquistas. Devemos ter isso em mente ao
11
analisar as tentativas de explicar os modelos que nasciam da Rssia Sovitica e as aes
inspiradas nestas interpretaes.
No Rio Grande do Sul, destacavam-se as aes dos anarquistas e dos socialistas, estes
em parte ligados tradio da social-democracia alem, em parte ligados a velhos lderes
sindicais como Francisco Xavier da Costa. Os anos de 1917-1920 so de intensa
movimentao entre os operrios: greves, violenta represso, jornais que surgiam para logo
desaparecer, surgimento de novas associaes. neste ambiente que as notcias da revoluo
russa chegaram at aqui.
Muito cedo j aparecem referncias revoluo no nosso meio operrio. Em maro, um
ms apenas depois da revoluo de fevereiro, a Rssia j mencionada em uma importante
greve de calceteiros. Em julho, no maior comcio da grande greve de 1917, Joo Batista
Moll, militante anarquista, entusiasma-se com os exemplos da Rssia Revolucionria. Nestes
primeiros momentos, invariavelmente, as referncias revoluo se ligam aos anarquistas
que, no perodo de 1917 e 1918, estavam em franca ofensiva dentro do movimento operrio,
j que resultados da greve de 1917 os fizeram perder espao dentro da Federao Operria do
Rio Grande do Sul (FORGS). Um dos pontos importantes desta ofensiva , por exemplo, a
refundao do jornal A Luta, em fevereiro 1918, que tinha como uma de seus objetivos
principais a defesa da revoluo russa. Joo Batista Maral, em seu artigo 1917 Novembro.
As conseqncias da revoluo russa no Rio Grande do Sul, reproduz um exemplo desta
defesa, publicado na edio de 1 de maio do referido jornal:
Que a revoluo russa um acontecimento grandioso na histria dos povos para ns incontestvel. E se nada soubssemos sobre a mesma, quanto seus fins, uma coisa nos bastaria para que o nosso dever, dever dos trabalhadores, fosse defend-la: o fato e ter contra si toda a burguesia do mundo. Porque a burguesia no faria tanto escarcu se algo de grave a revoluo no anunciasse. 1
Mas estas no eram as nicas vises que os militantes ligados ao movimento
operrio tinham. Outras interpretaes tambm circulavam: Carlos Cavaco, lder socialista
e tribuno popular que tinha grande influncia entre os trabalhadores, foi muito crtico
revoluo sovitica de outubro. Outro operrio, o barbeiro libans Ablio de Nequete,
apoiou a revoluo russa, mas teve uma interpretao prpria dela, com referncias tnicas 1 MARAL, Joo Batista. 1917 novembro. As conseqncias da revoluo russa no Rio Grande do Sul. Revista O Sul: Porto Alegre. n. 18, 1987.
12
e religiosas que se afastavam muito da viso dos anarquistas. Isto mostra como, mesmo
entre os que atuavam no meio operrio, as maneiras de ver a revoluo podiam seguir
rumos diferentes, at dispares.
No ano de 1918 surgiram as primeiras associaes comunistas no Rio Grande do Sul.
Em novembro deste ano apareceu uma das mais destacadas entre elas: a Unio Maximalista2
fundada em Porto Alegre por Ablio de Nequete, que em 1922 ser o primeiro secretrio-
geral do Partido Comunista do Brasil. Esta associao atuava na capital e teve participao
importante nas greves de 1919, especialmente junto Unio Metalrgica, na qual logrou
conquistar adeptos. No ano de 1918 tambm surgiu a Liga Comunista de Livramento, que
atuou na greve dos frigorficos Armour em 1919. Centros similares aparecem tambm em
cidades de Passo Fundo, Rio Grande e em Pelotas.
Aparentemente, no existiam diferenas marcantes entre anarquistas e maximalistas
(ou comunistas), que teriam atuado juntos at o ano de 1919, o que parece no ocorrer mais
em 1920. Esta impresso reforada por Friedrich Kniestedt, imigrante alemo e lder
anarquista, em suas Memrias de um imigrante anarquista3. Neste ano foi realizado o 2
Congresso Operrio do Rio Grande do Sul, evento muito importante para o movimento
operrio do estado. Os Congressos Operrios marcavam o momento em que os
representantes das diversas associaes se reuniam para discutirem sua atuao e
deliberarem sobre os projetos futuros. Neste Congresso houve uma disputa acirrada entre
Friedrich Kniestedt e Ablio de Nequete, lder da Unio Maximalista, pois este tentara filiar
a FORGS Internacional de Moscou. O Congresso terminou com a vitria da posio
defendida pelos anarquistas e com a filiao da FORGS Internacional Apoltica de
Berlim.
Pela exposio at aqui realizada pode-se observar, mesmo que brevemente, alguns
dos impactos que a revoluo russa teve sobre o meio operrio nos anos imediatos sua
ecloso. Isto me permite agora enunciar o objetivo central da minha pesquisa: analisar que
transformaes ou conseqncias importantes o impacto e as interpretaes sobre a
revoluo russa teriam trazido para o movimento operrio do Rio Grande do Sul entre 1917
e 1920.
2 Seria a traduo portuguesa de Bolchevik 3 KNIESTEDT, Friedrich. Memrias de um Imigrante anarquista. Traduo, introduo, eplogo e notas de rodap: GERTZ, Ren E. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, 1989.
13
Neste perodo inicial (1917-1920) em que a Rssia dos Soviets estava se construindo
e sua estrutura de poder no estava cristalizada, a grande novidade da revoluo operria
mexeu com conceitos, despertou paixes e rancores e acabou se transformando em
referncia tanto para os seus entusiastas quanto para os seus crticos. Tendo em vista que a
revoluo mexeu com os referenciais do movimento, estudar seu impacto talvez possa
ajudar a esclarecer algumas questes atinentes ao desenvolvimento das lutas operrias.
Quanto ao Rio Grande do Sul, esta questo se reveste de importncia por algumas
caractersticas peculiares do nosso movimento operrio em relao aos demais estados,
como a existncia de rivalidades entre anarquistas e socialistas ou o papel dos governantes
do Partido Republicano Riograndense em relao aos trabalhadores, com o seu discurso
positivista de incorporao do proletariado sociedade, que ideologicamente diferia da
poltica das outras unidades da federao.
Embora se trate de um tema que se situa cronologicamente em um perodo muito
estudado (talvez o perodo mais estudado da histria operria do Brasil) e seja um tema
ligado histria das instituies e das idias polticas dentro do movimento operrio,
campo que foi durante muito tempo privilegiado na investigao histrica, a questo que
proponho investigar muito pouco trabalhada na historiografia. Portanto creio ser
importante este estudo porque, alm de pesquisar o impacto que a revoluo russa teve
entre nossos operrios, ele abre a possibilidade de esclarecer alguns aspectos quanto
reao dos diversos grupos a fatos e idias novas, capacidade de renovao ou
conservao das diversas tendncias que lutavam para liderar o movimento e at examinar
a competncia de seus discursos em promoverem ou no prticas polticas.
Quanto ao recorte espacial, foi delimitado o estado do Rio Grande do Sul como um
todo porque, pelas fontes que consultei, a revoluo russa provocou reaes no movimento
operrio de diversas cidades do estado, foi um fenmeno bastante generalizado, no se
restringindo somente aos principais centros de militncia como Porto Alegre, Pelotas e Rio
Grande. Alm disso, em perodos de grande mobilizao ativavam-se redes de
solidariedade e de troca de informaes que no poderia acompanhar, nos limites de uma
dissertao, se estendesse meu campo de estudo para alm das fronteiras estaduais e que,
por outro lado, seriam insuficientes como materiais de anlise caso me restringisse ao que
aconteceu somente em um municpio. Apesar desta delimitao, meu trabalho no
14
propriamente uma histria regional ou um estudo de caso, j que tem uma abertura para
processos histricos nacionais e mundiais, o que, alis, tpico da histria operria. Nas
palavras de Slvia Petersen.[...] em vrios aspectos parece no ser possvel conceber a
histria operria como uma histria regional, pois h processos e acontecimentos que,
circunscritos dimenso regional, no conseguem receber significado pelos
pesquisadores.4
Mesmo tendo esta perspectiva de uma histria regional que se abre para o mundo,
por razes materiais e de tempo a maior parte das fontes pesquisadas so oriundas da
capital, embora tambm tenha consultado fontes de outras cidades como Pelotas, Rio
Grande e Bag, alm de materiais do Rio de Janeiro e So Paulo. De qualquer modo no
creio que este predomnio de materiais da capital seja um limitador, porque eles do conta
no s do que ocorria em Porto Alegre, como informavam o que acontecia em outras
cidades e davam voz aos militantes do interior, o que se observa mais claramente nos
jornais e informes da Federao Operria estadual (FORGS). Alm do mais, deve-se levar
em conta que os operrios circulavam pelo estado e suas associaes tinham a Federao
estadual como referncia. O 2 Congresso Operrio, por exemplo, embora realizado em
Porto Alegre, contou com representantes de vrios municpios. Tambm no se deve
esquecer que, tratando do Rio Grande do Sul, pode-se tocar na questo da sua proximidade
com o Prata, que sempre foi uma porta de entrada para novas idias e influncias.
A dissertao que estou apresentando pode no parecer inovadora, pois trabalhos
similares a este j foram produzidos em outros contextos como: O ocidente diante da
revoluo russa de Marc Ferro5, La gran revolucin de octubre y Amrica Latina6 de Boris
Koval e para o Brasil temos o clssico O ano vermelho7 organizado por Moniz Bandeira,
em que o Rio Grande do Sul aparece de forma espordica e marginal. Alm dos livros que
tratam do impacto da revoluo como um tema especfico, a euforia pela revoluo russa
tem lugar de destaque em livros produzidos por militantes que participaram das
mobilizaes operrias ocorridas no final da dcada de 10. Everardo Dias, na sua Histria 4 PETERSEN, S. R. F. Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a histria operria brasileira. In: ARAJO, Angela Maria Carneiro. (Org.). Trabalho, cultura e cidadania. So Paulo: Scritta, 1997. p. 89. 5 FERRO, Marc. O ocidente diante da revoluo sovitica: a histria e seus mitos. So Paulo: Brasiliense, 1984. 6 KOVAL, Boris. La gran revolucion de octubre y Amrica latina. Moscou: Progresso,1978. 7 BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. O ano vermelho: a revoluo russa e seus reflexos no Brasil. So Paulo: Expresso Popular, 2004.
15
das lutas sociais no Brasil8, por exemplo, valoriza as insurreies operrias inspiradas no
exemplo em russo, tentadas em 1918 e 1919. Astrogildo Pereira, na sua Formao do PCB,
destaca a importncia da influncia da revoluo russa para uma inflexo ideolgica do
anarquismo ao comunismo no incio dos anos 20 que daria origem ao PCB, do qual foi um
dos fundadores, em 19229. J a formao de um primeiro Partido Comunista do Brasil10
pelos libertrios, em 1919, abordada em um captulo do livro de Edgar Rodrigues,
Nacionalismo e cultura social11. Para este, a formao de um partido e mesmo o apoio
dado revoluo no passou de um engano, de uma grande confuso poltica, no
influenciando o anarquismo, que se manteve posteriormente. Algumas obras de relevncia
para a histria do movimento operrio brasileiro, como Trabalho urbano e conflito social12,
de Boris Fausto, do grande importncia ao impacto da revoluo russa no contexto das
lutas dos trabalhadores. Neste livro especificamente, os acontecimentos na Europa so
considerados elementos fundamentais para alavancar o mpeto das mobilizaes operrias
no perodo das grandes greves.
De qualquer forma estes estudos centram-se excessivamente nos fatos ocorridos no
Rio de Janeiro e So Paulo, aparecendo o Rio Grande do Sul sempre de forma ocasional.
Para o caso gacho no h nenhum trabalho aprofundado e sistemtico e, nesse sentido, a
contribuio da dissertao provavelmente original.
Para o Rio Grande do Sul um trabalho afim com o tema o de Adriano Belmudez
Antunes - A repercusso da revoluo russa nos jornais dirios da repblica velha13, em
que este descreve como o Correio do Sul de Bag, O Dirio Popular e O Rebate de Pelotas
narraram os acontecimentos relacionados revoluo russa no ano de 1917. Um trabalho
como este pode ajudar a observar como os jornais, que eram os principais canais de notcias
do que se passava no exterior, difundiam as informaes sobre a revoluo no nosso estado,
8 DIAS, Everardo. Histria das lutas sociais no Brasil. So Paulo: Alfa Omega. 1977. 9 PEREIRA, Astrogildo. Ensaios histricos e polticos. Alfa-mega: So Paulo, 1979. 10 O grupo comunista do Rio de Janeiro, capitaneado por Astrojildo Pereira e Jos Oiticica, fundou um Partido Comunista, mas tambm se definia como anarquista. Este um momento de transio no movimento operrio e por enquanto indico-os assim, pois seu jornal era o promotor do partido que esse grupo fundou. No abordo as discusses relacionadas sua definio de imediato porque elas esto na raz de um problema que ser desenvolvido mais adiante. 11 RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemert, 1972. 12 FAUSTO, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. So Paulo: DIFEL, 1977. 13 ANTUNES, Adriano B. A repercusso da revoluo russa nos jornais dirios da repblica velha. Histria em Revista : Pelotas. n.6, dez. 2000.
16
mas dificilmente serviria para ajudar a entrever como os militantes operrios tratavam a
questo. H tambm um brevssimo artigo, j mencionado, escrito por Joo Batista Maral
na revista O Sul, com o ttulo de 1917 Novembro. As conseqncias da Revoluo Russa no
Rio Grande do Sul14, em que o autor relata algumas reaes revoluo de 1917, abrindo
tambm o campo de anlise para as reaes revoluo de 1905 e avanando pela dcada
de 1920, com a atuao dos comunistas gachos. O problema aqui que se trata de um
texto de uma pgina, mais jornalstico que historiogrfico, trazendo poucas questes de
fundo para a discusso.
Autores que trabalham o movimento operrio no Rio Grande do Sul tambm as
vezes tratam do tema, mas de forma breve e tangencial aos temas centrais de suas obras.
Silvia Petersen e Maria Elizabeth Lucas na sua Antologia do movimento operrio gacho15
dedicam um subcaptulo ao Impacto da Revoluo Russa no movimento operrio gacho;
neste as autoras observam que no houve uma mudana de orientao no movimento
operrio, pois os anarquistas, que eram predominantes na poca, acreditaram em um
primeiro momento ser a revoluo uma vitria da anarquia. Isto tambm abordado no
estudo de Adhemar Loureno da Silva Jnior, Povo! Trabalhadores! Nessa dissertao, ao
analisar pormenorizadamente a greve de 1917, d exemplos da defesa da revoluo por
anarquistas, mas afirma que a revoluo no deve ser avaliada como um fenmeno que se
espraia pelo mundo, mas como uma imagem que condiciona a ao dos militantes
operrios16.
Para alm da defesa da revoluo pelos anarquistas, Slvia Petersen no livro Que a
unio operria seja nossa ptria aponta para o papel de Ablio de Nequete como um dos
primeiros operrios a se interessar pela revoluo comunista como caminho alternativo ao
anarquismo, sendo um dos pioneiros na propagao dos seus princpios:Assim, enquanto o
movimento operrio em Porto Alegre enfrentava as tendncias desagregadoras do ps-
14 MARAL, Joo Batista. Op. Cit. 15 PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. e LUCAS, Maria Elisabeth da Silva. Antologia do movimento operrio gacho (1870-1937). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992. 16 SILVA JR. Adhemar L. Povo!Trabalhadores!: tumultos e movimento operrio (estudo centrado em Porto Alegre, 1917). Porto Alegre: PPG em Histria da UFRGS, 1994. (dissertao de mestrado) p. 381.
17
greves [de 1919], os efeitos da revoluo russa iam chegando ao Rio Grande do Sul, sendo
Nequete o timoneiro destas idias17
Sobre Ablio de Nequete, que, pelo papel de fundador da Unio Maximalista de Porto
Alegre e do Partido Comunista do Brasil em 1922, sempre tem seu nome destacado quando
se escreve sobre a revoluo russa entre os operrios gachos, o principal trabalho existente
o texto indito de Irene Haas Rosito O pensamento poltico de Ablio de Nequete18. Neste
texto a adeso ao bolchevismo vista como parte da evoluo do seu pensamento. O texto
ajuda a compreender alguns passos iniciais da repercusso da revoluo em Porto Alegre,
como na fundao da Unio Maximalista e na ao desta nas greves de 1919; alm de relatar
algumas caractersticas peculiares das noes polticas de Nequete.
Desta forma, a anlise que me proponho fazer deve se centrar em algo que teve
grande importncia para o movimento operrio, mas que sempre foi tratado de forma lateral
nos estudos sobre a histria dos trabalhadores organizados de nosso estado. Muitas vezes
porque o papel dos comunistas havia sido supervalorizado em um perodo inicial da
produo historiogrfica sobre o movimento operrio ou porque esta influncia aparecia
como algo difcil de provar, no suscitando maiores discusses. No entanto, houve nos
ltimos anos a descoberta de novas fontes que podem contribuir para ratificar ou corrigir
interpretaes cristalizadas sobre o papel de militantes e associaes naqueles anos
conturbados.
Tendo em vista o que foi exposto at agora, meu estudo tem os seguintes objetivos:
contribuir para o avano da historiografia sobre o movimento operrio no que se refere ao
impacto da revoluo russa no Rio Grande do Sul; estudar as diversas interpretaes que se
fizeram da revoluo russa no movimento operrio, especialmente em relao s famlias
polticas que nele atuavam; observar a atuao das associaes operrias gachas que se
diziam comunistas ou maximalistas, tentando ligar suas aes s formas de pensar a
revoluo russa e analisar, por fim, que conseqncias as interpretaes e os usos da
revoluo russa teriam trazido para o movimento operrio do Rio Grande do Sul entre 1917
e 1920. 17 PETERSEN, Silvia R. F. Que a unio operria seja nossa ptria. Histrias das lutas dos operrios gachos para construir suas organizaes. Porto Alegre: Editora da UFRGS 2001 p.371. 18 ROSITO, Renata I. H. O pensamento poltico de Ablio de Nequete. Porto Alegre: PUCRS, 1972. (Monografia para a Cadeira de Poltica do Curso de Bacharelado em Cincias Sociais)
18
Quanto ao procedimento da anlise, o tema ser abordado considerando a
interseco de duas referncias principais, que se articulam de forma muito prxima:
Uma se refere circulao das idias vinculadas revoluo russa; a outra se
refere recepo dessas idias e suas relaes com as prticas do movimento operrio.
Articulando estes dois mbitos, esto as experincias associativas e de luta da classe, suas
tradies culturais e tnicas e as prprias relaes (ou tenses) que diferentes segmentos da
classe estabelecem entre si.
Quanto primeira referncia de anlise, importante examinar como as idias e
informaes sobre a revoluo russa eram propagadas entre os militantes operrios do Rio
Grande do Sul. Acredito que a melhor forma de trabalhar com esta questo a partir da
noo de circulao de idias. Como bem coloca Eduardo Devs Valds:
Categorias como influncia ou difuso tem operado do interior do centro de difuso periferia, ainda que possam servir tambm para estudar o movimento das idias no mbito perifrico. Entretanto, a noo de influncia induz em grande medida passividade do receptor, ao passo que a noo de circulao tolera melhor questes como os modos de recepo e reelaborao. 19
Tratando-se, pois, da circulao das idias, necessrio considerar os canais pelos
quais as informaes sobre a revoluo chegavam at aqui, o que significa, sobretudo, falar
na imprensa peridica. Tanto os jornais de grande circulao quanto os jornais operrios
divulgavam notcias sobre a Rssia e na imprensa que se encontra uma das principais
fontes deste trabalho. Por isso importante levar em conta as diferentes perspectivas que
orientavam os jornais operrios e os da grande imprensa. A imprensa operria se colocava a
tarefa de educar e conscientizar o operariado, de combater a burguesia e de propagar as
doutrinas revolucionrias20. Por parte da grande imprensa h uma atitude crtica aos abalos
19 Categorias como influencia o difusin han operado al interior del centro hacia la periferia, aunque pueden servir tambin para estudiar el movimiento de las ideas en el ambito perifrico. Sin embargo, la nocin de influncia conlleva en gran medida a la pasividad del receptor en tanto que la nocin de circulacin tolera mejor cuestiones como los modos de recepcin e reelaboracin. VALDES, Eduardo Devs. El transpaso del pensamiento de Amrica latina frica a travs de los intelectuales caribeos. Histria UNISINOS: So Leopoldo. Vol. 4, n. 2, jul./dez. 2000. p. 190-191. 20 Sobre uma boa caracterizao da imprensa operria em relao outras imprensas ver CRUZ, Helosa de Faria. So Paulo em papel e tinta. Periodismo e vida urbana 1890-1915. So Paulo: EDUC/FAPESP, 2000. Cap 6 .
19
sociais, ligando-se aos interesses conservadores, interesses que muitas vezes no so
explicitados.
Cludio Pereira Elmir aponta para outras questes que tambm so relevantes no
trabalho com a fonte jornalstica em seu texto As armadilhas do jornal. Ele mostra como a
leitura que fazemos do jornal deve levar em conta as condies em que ele foi escrito e que
muitas vezes a mensagem transmitida no esteve de acordo com o desejo de quem a
transmitiu (ou produziu), sendo que os jornais podem mudar de opinio conforme as
circunstncias (e aqui, por exemplo, podemos pensar nas lutas pelo poder dentro do
movimento operrio). O autor tambm aponta dois perigos pertinentes: atribuir peso
poltico a opinies por vezes casuais e investigar algum fenmeno j tendo em mente o
resultado que se busca. O problema maior que eu vejo a atitude de quem se prope a
pesquisar determinada questo cuja soluo prescinde de investigao. Quer dizer, o
resultado da pesquisa est definido pelos preconceitos de quem a faz. 21 Particularmente
para o caso desta pesquisa, tal cuidado significa no ver em tudo a marca da revoluo.
Com referncia ao processo de recepo de idias, Carlos Fico, em sua obra
Reinventando o otimismo, ao se referir propaganda com fins polticos e sua recepo,
aponta que: Pode haver uma distncia considervel entre delineamentos tericos
aparentemente eficazes e sua realizao nas pesquisas concretas. muito difcil detectar
as recepes sociais da propaganda. As dificuldades so especialmente de ordem
heurstica. Que fontes poderiam indicar diferenas de recepo?22
Quem eram os leitores desses jornais? Onde circulavam? Tendo em conta a
reconhecida dificuldade para analisar processos de recepo, procurei fazer outras
aproximaes a esta questo.
Assim, seguindo a sugesto de Roger Chartier em A beira da falsia, textos e imagens
no so colocados de forma permanente quando produzidos, pois os leitores tambm criam
quando lem e reinterpretam a mensagem. A recepo da cultura e das idias no passiva
como tradicionalmente se pensava, mas uma outra produo, pois [...] ler, olhar , escutar
so, de fato, atitudes intelectuais que longe de submeter o consumidor onipotncia da 21 ELMIR, Cludio P. As armadilhas do jornal. Cadernos do PPG em Histria da UFRGS: Porto Alegre. n. 13, dez. 1985. 22 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginrio social no Brasil. Rio de Janeiro: ed da FGV, 1997. p. 29.
20
mensagem ideolgica e/ ou esttica que supostamente a modela, autorizam, na verdade,
reapropriao, desvio, desconfiana ou resistncia. 23 Isto faz pensar que as leituras que se
fizeram da revoluo no eram necessariamente erros, mas foram interpretaes prprias ao
nosso movimento operrio, merecendo ateno por representarem as possibilidades de um
determinado momento e de um particular leitor e no um desvio de um modelo original.
Esta observao de Chartier, como se pode concluir, muito difcil concretizar em
uma pesquisa com as caractersticas desta, pois uma pergunta que sempre se coloca como
estabelecer a recepo das idias por parte de leitores dos jornais operrios, no caso uma
fonte fundamental. Assim, a questo da recepo no-passiva ser tomada mais como uma
advertncia, um cuidado para a anlise do que como um objeto de pesquisa que,
antecipadamente, sabe-se da impossibilidade.
Tratando-se da recepo, tambm importante, para os objetivos desta dissertao,
recorrer ao conceito associado de representao. De fato, parte considervel deste trabalho
baseia-se no exame de como os nossos operrios representaram aquela distante revoluo,
entendendo por representao, tambm com Chartier, as classificaes, divises e
delimitaes que organizam a apreenso do mundo social como categorias fundamentais de
percepo e de apreciao do real 24.
Entretanto, devo deixar claro que no pretendo pesquisar somente as diversas
representaes que nossos operrios fizeram, como uma espcie de inventrio dos seus
enunciados sobre a revoluo russa, mas tambm sero referncias indispensveis da
pesquisa as tradies, experincias e prticas que consistiam diferentes filtros ou lentes para a
recepo e para as representaes. Assim, identificar as representaes no teria maior
significado sem que elas fossem colocadas em dilogo com as experincias e aes dos
militantes, e, no sentido inverso, tambm as representaes incidem no comportamento dos
indivduos e grupos.
Cito aqui o feliz entendimento que Rodrigo P. de S Motta tem desta questo em sua
obra Em guarda contra o perigo vermelho:
23 CHARTIER, Roger. A beira da falsia: a histria entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. p. 53 24 CHARTIER, Roger. Histria cultural. Entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1990. p. 17.
21
Representaes e aes no podem ser entendidas num vis dicotmico, ao contrrio, so interdependentes: representaes so construdas em um processo ativo que envolve militncia, divulgao e propaganda, e ademais, freqentemente, tem correspondncia com interesses sociais [...]; e as aes e prticas sofrem influncia (no passiva) das representaes, que muitas vezes moldam o comportamento dos grupos sociais.25
.
fundamental salientar, entretanto, que as representaes e a circulao das idias
sobre a revoluo no cairam em um vazio de tradies culturais, tnicas e experincias de
luta de classes. Pensar a possibilidade de uma nova sociedade estimulada pela revoluo,
acalentar esperanas, estender horizontes at o infinito, como muitos militantes fizeram,
no se deveu apenas fora de um exemplo grandioso, mas necessita tambm para ser
explicado, a dinmica da luta da classe operria contra a classe dominante; ela que d
sentido s interpretaes e aes dos que se inspiraram na revoluo russa.
As conhecidas palavras de Edward Palmer Thompson resumem este processo quando
afirma que as pessoas:
[...] experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida tratam essa experincia em sua conscincia e sua cultura [...] das mais complexas maneiras [...] e em seguida (muitas vezes, mais nem sempre, atravs das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situao determinada.26
Seria insuficiente analisar o impacto da revoluo russa sem levar em conta esta
experincia de classe. Os discursos embebidos de esperana revolucionria, o surgimento
de associaes que se identificavam com o maximalismo ou mesmo o sonho acalentado de
insurgncia no podem ser explicado somente por um desejo de imitao ou por uma
apropriao mecnica daquilo que circulava no mundo sobre a revoluo russa. Estes
militantes trataram estas questes a partir de seus referenciais de luta e muito de sua
identificao com o pas dos Soviets s vai ter sentido a partir de suas experincias nas
lutas dos trabalhadores.
25 S MOTTA, Rodrigo P. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). So Paulo: Perspectiva, 2002. Introduo p. XXV. 26 THOMPSON, Edward Palmer. A misria da teoria ou um planetrio de erros. Uma crtica ao pensamento de Althusser. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 187.
22
Mas ainda com relao experincia, ela refere-se no apenas luta entre classes; ela
tambm uma experincia interna classe operria. Para o caso especfico que estou
tratando, que a compreenso das representaes que os operrios do Rio Grande do Sul
fizeram da revoluo e das aes que levaram a cabo inspirados nela, isto muito
importante. Os laos intra-classe que ligam (ou tensionam) os operrios so complexos,
multifacetados, variados j que [...] as ligaes e oposies contidas no processo de
produo so a base da classe; mas a relao entre pessoas que ocupam posies
semelhantes nas relaes de produo no dada diretamente pelo processo de produo
e apropriao27. tambm nestas relaes, muitas vezes de amor, dio, indiferena ou
perplexidade que as interpretaes sobre a revoluo russa podero ser entendidas. Assim,
por exemplo, a revoluo podia ser interpretada no apenas como o momento luminoso da
luta entre as classes, mas tambm como uma via atravs da qual se construam alianas,
solidariedades, cises ou rivalidades dentro da classe.
Nesta Introduo, tambm preciso esclarecer preliminarmente o leitor que o perodo
a que se refere este estudo foi marcado por uma expanso da industrializao e pelo aumento
da presena operria nas principais cidades do Rio Grande do Sul, acelerando um processo
que vinha se desenvolvendo desde o segundo quartel do sculo XIX. Ao longo deste perodo,
a convivncia na fbrica, a necessidade de fortalecimento mtuo e a luta por melhores
condies de trabalho levaram estes operrios a criar associaes, sindicatos, partidos, que se
tornaram o ncleo do movimento operrio. No final dos anos 10, especialmente a partir de
1917, o movimento operrio tornou-se mais ativo, pois ocorre uma ascenso das lutas dos
trabalhadores organizados, com muitas greves e srios enfrentamentos. Aliado aguda
carestia de vida e crise econmica, eclodem uma srie de graves conflitos sociais no Brasil
e no mundo, entre os quais a revoluo russa, como ser visto adiante, acabou se destacando
e serviu de fermento para as agitaes operrias.
Esta caracterizao, embora brevssima, necessria para introduzir alguns
comentrios sobre a produo historiogrfica que em alguma medida serviu de referncia
para a dissertao.
27 WOOD, Ellen Meiksin .Democracia contra capitalismo. So Paulo: Boitempo, 2003.
23
Uma importante parcela desta produo associou esta poca especfica com o
amadurecimento da classe operria brasileira, como se fosse um ltimo suspiro das idias e
prticas ligadas ao trabalho artesanal e a tomada de uma conscincia realmente de classe; e a
revoluo russa seria uma das pedras angulares desta mudana. Moniz Bandeira, na obra
mais extensa que at hoje j estudou os reflexos da revoluo russa no nosso pas, sintetiza
bem esta posio: O surto industrial do Brasil e a revoluo russa, criando um fato novo,
superaram o movimento anarquista. O marxismo a expresso consciente de uma vontade
inconsciente ganhou as massas brasileiras.28
Muitas vezes o valor atribudo revoluo russa se deu pela perspectiva da
importncia da fundao do PCB comunista em 1922, o que se torna mais evidente nas
diversas Histrias do Partido Comunista. Esta perspectiva est presente em trabalhos como
a j citada A Formao do PCB, de Astrogildo Pereira, uma das obras inaugurais da
historiografia do movimento operrio brasileiro. Nestas anlises, a verdadeira conscincia de
classe s seria alcanada com a fundao do partido, o que inauguraria uma nova etapa da
luta de classes no Brasil29.
Um grande problema deste tipo de interpretao que, em alguns casos, o impacto da
revoluo russa no tem importncia pelo que possa ter trazido para lutas dos sujeitos
histricos, mas tem valor porque mostrou uma ideologia e um mtodo de ao mais
adequado para o proletariado brasileiro, em um processo que fatalmente resultaria na
fundao do partido em 1922. Ou seja, serviu para uma grande conscientizao da
militncia, pois o anarquismo havia fracassado nas lutas que propunha levar adiante.
Este tipo de interpretao adotada por Astrogildo Pereira acabou se tornando obsoleta,
entre outros motivos porque a pesquisa acadmica mostrou que no houve uma substituio
imediata do anarquismo pelo comunismo no incio dos anos 20. Mas exatamente porque no
houve esta conscientizao, alguns historiadores acabaram por minimizar a importncia da
revoluo russa para as aes do movimento operrio brasileiro, j que a aparente adeso ao
bolchevismo por parte dos anarquistas, nos primeiros anos da revoluo russa, seria na
28 BANDEIRA, Luis Alberto Moniz. Op. Cit. pp. 274-275. 29 Estas so algumas caractersticas de uma produo que Cludio Batalha chama de militante, ligando-se no mais das vezes s concepes do PCB. Ver BATALHA, Cludio. A historiografia da classe operria no Brasil: trajetrias e tendncias. In: FREITAS, Marcos C. Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998.
24
verdade fruto de um grande engano. o caso do livro de Carlos Augusto Addor, A
insurreio anarquista no Rio de Janeiro30, em que a influncia da revoluo de outubro
nesse levante acaba sendo pouco considerada, pois mesmo que o exemplo russo servisse de
incentivo para os libertrios, estes no tinham bem claro quais eram os reais princpios do
bolchevismo. Na verdade, a idia do engano anarquista pode ser encontrada tambm nas
produes de militantes, tanto anarquistas quanto comunistas, como se pode perceber pelo
tratamento dado por Astrogildo Pereira e por Edgar Rodrigues ao episdio da formao do
primeiro Partido Comunista em 1919. Os dois historiadores consideram a formao deste
partido um erro: para o primeiro, por ter sido influenciado por idias anarquistas; para o
segundo, por ter sido inspirado em um modelo comunista.
Tanto uma quanto a outra maneira de ver o impacto da revoluo russa apresentam
problemas, pois sua importncia para o movimento operrio brasileiro se encontra ou em
outro tempo, ou em outro lugar. No caso da anlise ter em vista a aquisio de uma nova
conscincia de classe, que necessariamente redundaria na formao do PCB, o valor desta
influncia estaria em outro tempo, em 1922, ou no perodo subseqente, quando o
anarquismo seria substitudo pelo comunismo como corrente ideolgica predominante. No
caso deste impacto ser avaliado pela no-correspondncia das crenas dos militantes
brasileiros em relao s dos reais protagonistas da revoluo sovitica, as aes inspiradas
neste exemplo no seriam vlidas porque, ao fim e ao cabo, no corresponderiam ao que
estava ocorrendo em outro lugar, ou seja, na Rssia dos Soviets, podendo ser tratada como
uma confuso que no deixaria marcas na trajetria dos militantes.
Pelos motivos aqui expostos, no pretendo analisar os impactos da revoluo russa
como se fossem desvios, enganos ou sob a perspectiva de mudanas futuras; mas explic-las
a partir das tradies que estes militantes tinham e das lutas que travavam no momento.
Como esclarece E. P. Thompson ao estudar as primeiras formas de resistncia da classe
operria inglesa:
[...] seus ofcios e tradies podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrgrada. Seus ideais comunitrios podiam ser fantasiosos. Suas conspiraes insurrecionais podiam ser temerrias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda
30 ADDOR, Carlos Augusto. A insurreio anarquista no Rio de Janeiro. Achiame: Rio de Janeiro, 2002.
25
perturbao social e ns no. Suas afirmaes eram vlidas nos termos da sua prpria experincia; se foram vtimas acidentais da histria, continuam a ser, condenados em vida, vtimas acidentais. 31
Desta forma, tentando compreender as interpretaes da revoluo russa e as aes
inspiradas nela como vlidas nos termos das experincias dos militantes operrios que
pretendo conduzir este trabalho.
Referi-me ao longo da Introduo experincia de classe e aes do movimento
operrio, mas importante ressalvar que aqui no se est assimilando acriticamente classe
ao movimento operrio. Ressalva sempre importante de fazer, visto que a histria
operria tendeu [...] a identificar-se com a histria dos movimentos operrios, seno at com
a histria das ideologias destes movimentos 32. Se escolho as organizaes e instituies
que so o resultado da ao coletiva dos trabalhadores como objeto de meu estudo, porque
estas se tornaram o campo privilegiado e mais visvel da ao poltica da classe operria na
sociedade. Mesmo assim, isto no significa excluir a anlise do que a revoluo significou
para alguns sujeitos especficos. Embora um material mais difcil de obter, um captulo ser
dedicado a esta anlise, pois considero que focalizando a trajetria de alguns militantes, ser
possvel enriquecer o repertrio das vises sobre a revoluo.
Desta forma, no entendo o movimento operrio como sinnimo de associaes e
sindicatos, mas pelo tipo de documentao localizada, atravs deles pode-se obter maior
visibilidade deste movimento e de seus sujeitos.
Para uma contextualizao da problemtica do impacto da revoluo russa no
movimento operrio do Rio Grande do Sul e do prprio processo revolucionrio, realizei uma
ampla pesquisa bibliogrfica cujas fontes vo sendo mencionadas no desenvolvimento dos
captulos e que de um modo geral, j foi mencionada nas pginas e ps de pgina anteriores.
Mas alm das fontes bibliogrficas, o trabalho contou com muitas fontes primrias.
Estas no so fontes fceis de conseguir, pois muitas associaes no legaram material
nenhum para a posteridade e muitas vezes quando legaram, estes se perderam na euforia
das mobilizaes ou sob o peso da represso policial. Por este motivo deve-se ter em mente
31 THOMPSON, Edward Palmer. A formao da classe operria inglesa. A rvore da liberdade. V.1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 13. 32 HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 18.
26
que nunca haver um mapeamento completo das opinies e das prticas das organizaes
operrias. Outro agravante em relao as fontes que trabalhei so os 90 anos que separam
de hoje os fatos transcorridos, e quanto mais tempo passa, mais o material se desgasta.
Decorre disso que alguns anos esto menos representados que outros e algumas
cidades mais presentes que outras. Sobre 1917 h muito menos material que sobre 1919, e
em Porto Alegre h impressos em quantidade muito mais abundante que em Bag ou Santa
Maria. claro que isso acarreta alguns problemas. Por exemplo, a inexistncia de um jornal
como A poca33 entre o material pesquisado no permitiu fazer um estudo mais detalhado
da relao da revoluo russa com as prticas da Liga de Defesa Popular (LDP), associao
surgida para coordenar a greve de 1917, relao sobre a qual s pode-se fazer conjecturas.
Mesmo assim creio que foi possvel fazer um estudo do impacto da revoluo russa no
movimento operrio do Rio Grande do Sul; apenas fao estas ressalvas para mostrar que as
fontes trazem limitaes que se deve tentar contornar e impem a humildade de saber que
no so todos os recantos das prticas e discursos operrios que esto acessveis pesquisa.
Como do repertrio de fontes se destacam os jornais operrios, necessrio mais
alguns comentrios sobre a imprensa como fonte de pesquisa. O jornal, como, alis,
qualquer outra fonte histrica, emite uma imagem da realidade visvel sob um filtro dado
pela subjetividade, pelos interesses e pelos objetivos do articulista ou da associao que o
rgo representa. No caso do jornalismo operrio, esse filtro explicito, j que neste caso a
imprensa um veculo com o objetivo de esclarecer a classe atravs do conhecimento
crtico da realidade, abrindo caminho para sua emancipao.
Quando analisei as notcias, no estive somente preocupado com a informao
veiculada, mas tambm com o contexto especfico em que ela seria lida. A postura
agressiva do jornal A Luta, editado em 1918 pelos anarquistas da Unio Operria
Internacional (UOI), por exemplo, se coaduna muito bem com o objetivo desse grupo:
reconquistar a influncia dentro da Federao Operria do Rio Grande do Sul (FORGS).
Claro, no quero reduzir algumas apropriaes criativas apenas aos objetivos polticos
33 A poca foi um jornal que circulou em Porto Alegre durante trs meses depois da greve de agosto de 1917. Este jornal era o porta-voz oficial da Liga de Defesa Popular e seu redator era Ablio de Nequete, que, como veremos adiante ter detaque nessa dissertao.
27
imediatos. Entretanto necessrio estabelecer uma relao de duas mos entre a notcia ou
o artigo do jornal e o respectivo momento que vivia a classe operria e suas organizaes.
Alm destas observaes, h um ponto que se refere tanto ao jornal quanto ao
panfleto e que de fundamental importncia: estes no so apenas veculos de informao
ou mesmo de propaganda: so tambm oportunidades abertas aos militantes de tornar
pblicas suas elaboraes tericas, suas criaes intelectuais diante de um mundo que eles
desejam transformar, o que, alm de aproximar do momento imediato da vida dos
militantes, tambm permite vislumbrar seu olhar para o futuro.
Quanto aos panfletos, propriamente, a maior parte deles do ano de 1919 e foram
encontrados em um processo crime, movido pela polcia contra alguns operrios por
ocasio da greve geral daquele ano em Porto Alegre34. Estes panfletos tiveram uma dupla
utilidade na pesquisa: de um lado, estabelecer os objetivos e as posies das associaes em
relao revoluo russa e seus desdobramentos e de outro, oferecer uma amostra do tipo
de material circulava por aqui. Nem todos os materiais apreendidos so oriundos do estado
do Rio Grande do Sul e apesar de no poder analisar com eles a atuao dos grupos
maximalistas gachos, pude saber que documentos do recm organizado Partido Comunista
do Brasil (PCB) do Rio de Janeiro estiveram disposio dos operrios daqui. Desta forma
possvel observar um campo de circulao de idias sobre a revoluo que no se
restringe somente nossa regio e perceber que os grupos operrios da regio no estavam
desinformados sobre o que ocorria no restante do pas.
Seguindo essa mesma lgica pode-se apontar a utilizao de um material de fora do
estado para mostrar como um nascente grupo comunista entrava em contato com o
movimento operrio do Rio Grande do Sul. O jornal Spartacus, do grupo comunista do Rio
de Janeiro35, menciona militantes e associaes de nosso estado. possvel saber assim
quem daqui havia encomendado pacotes desta publicao, a propaganda de impressos
operrios do Rio Grande do Sul na Capital Federal e mesmo assinaturas de lderes operrios
gachos em apoio a um manifesto lanado pelos cariocas.
34 Processo Crime n 1016, rolo 66. Encontra-se no Arquivo Pblico Estadual do Rio Grande do Sul. 35 Trata-se do Partido Comunista de 1919.
28
Outro tipo de fonte so os escritos particulares, memorialsticos ou no. Neste rol de
textos entram autobiografias como as Memrias de um Imigrante Anarquista de Friedrich
Kniestedt, as passagens dos cadernos de memrias de Ablio de Nequete que se encontram
dispersas nos trabalhos histricos de quem os consultou (Slvia Petersen e Renata Irene
Haas Rosito) ou os depoimentos contidos em processos crime em que estivessem
envolvidos operrios. Estes documentos so teis porque expe opinies ou fatos que no
momento em que ocorreram no se tornaram conhecidos, que jornais e panfletos no
tornaram explcitos. Eles expem rupturas, discordncias, disputas que era necessrio
esconder da arena pblica e so, por isso, um contraponto importante ao escrito jornalstico.
Mas no porque se trata de um documento em que o operrio escreve de si ou para si,
algumas vezes sem os objetivos da luta imediata, que ele estar isento de outras influencias.
Talvez a mesmo exista um outro filtro: o da memria e da reconstruo dos
acontecimentos aos olhos de quem escreve depois. Mesmo assim o imediatismo no
garantia de objetividade. Os depoimentos contidos nos processos, apesar de no sofrerem
defasagem temporal, no escapam de outros filtros. Nesse caso pode-se imaginar o quanto
no tinham de auto-censura j que foram obtidos perante a polcia.
Os processos crimes podem ser aproveitados de vrias formas para a pesquisa
histrica. O processo movido contra os operrios por ocasio da greve de 1919 til, pois a
polcia borgista, junto com o processo em si, anexou um generoso lote de documentos
produzidos pela militncia. Mas o inqurito, ou a maneira como ele tratado, uma
passagem para se chegar lgica da represso, fator muito presente naqueles anos. Isto me
faz lembrar e mencionar fontes no operrias, como A Federao, jornal do Partido
Republicano Riograndense ou o Correio do Povo, jornal de maior circulao no estado.
Estas publicaes expressam, por exemplo, a perplexidade dos dominantes com a difuso
do maximalismo, o que pode ser considerado um dos desencadeantes dos dispositivos
repressivos. No se coloca aqui, para o uso das fontes peridicas, o argumento de que a
grande imprensa no serviria por ser tendenciosa, e sim considera-se que a diversidade da
origem das informaes nos permite ter uma viso mais ampla da realidade. A imprensa
um lugar especial para a expresso dos conflitos polticos (o que vale tambm para a
imprensa operria), ou como, nas palavras de Francisco Alves, Nos jornais [...] estes
29
conflitos encontram seu espao de propagao, chegando o jornalismo a servir como elo
de ligao ou agente de combate entre diferentes tendncias poltico-ideolgicas.36
Para concluir esta Introduo, cabe explicar ao leitor como a dissertao est
estruturada e resumir o contedo dos seus captulos, com o que espero oferecer uma viso
preliminar do trabalho.
Esta dissertao est dividida em seis captulos. O primeiro deles O CRCULO
QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE: a revoluo russa e seus impactos
internacionais. Como indica o ttulo, neste captulo apresento um histrico do
desenvolvimento do processo revolucionrio na Rssia e a difuso de sua influncia pela
Europa, Amrica Latina e Brasil. um captulo propositadamente descritivo e detalhado,
que pareceu importante para que ficasse caracterizado para o leitor o processo da revoluo
russa e quando ela fosse tematizada nos seguintes captulos, no se transformasse em uma
abstrao com a qual o restante da dissertao iria dialogar. Este captulo no tratar dos
impactos da revoluo, o que ser objeto dos captulos seguintes.
O segundo captulo, HOSANNA, HOSANNA, FILHA DA JUSTIA QUE VENS
PARA NS EM NOME DA LIBERDADE: a experincia operria no Rio Grande do Sul e
as primeiras interpretaes da revoluo russa pelos trabalhadores organizados do
estado, descrevo a trajetria das principais correntes tericas do movimento operrio
gacho, a formao das associaes dos trabalhadores organizados nos principais centros
industriais do estado at os momentos iniciais em que as informaes sobre a revoluo
foram recebidas por estes trabalhadores. Partindo destas tradies e das condies nas quais
se encontrava a classe operria naquele momento, analisa-se como circularam as primeiras
idias relacionadas revoluo russa, seus usos e reelaboraes.
No terceiro captulo, A HUMANIDADE UM TURBILHO E UM MUNDO UM
CREPITAR DE CHAMAS: as transformaes nas formas de interpretar a revoluo russa
no ano das grandes greves; novas experincias, novas leituras examino como as idias
relacionadas revoluo passaram a circular em um ambiente de crescente radicalizao,
onde os jornais operrios tm um notvel florescer, havendo uma circulao muito mais
36 ALVES, Francisco N. Imprensa e Poltica: Algumas reflexes acerca da investigao histrica. Histria em Revista: Pelotas. n. 7, dez. 2001.
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rica de informaes e um comeo de elaborao crtica, pelos militantes, das novas idias
russas.
No quarto captulo, com o ttulo PARECER ABSURDO QUE UM LIBERTRIO
QUE TEM POR TEMA A PAZ EXCLAME: SALVE A REVOLUO!: a identificao dos
militantes com a revoluo e as aproximaes contraditrias com o sonho revolucionrio
pretendo, a partir das representaes e interpretaes que foram identificadas nos captulos
anteriores, analisar as aproximaes e identificaes dos militantes com a revoluo russa,
expressas tanto em atitudes de adeso apaixonada quanto de repulsa ou estranhamento.
Procura-se examinar este processo tanto no que respeita s matrizes do pensamento militante,
como s apropriaes individuais informadas e mediadas por tradies e experincias
polticas, identidades tnicas ou crenas religiosas. Como observei antes, as representaes e
interpretaes sobre a revoluo russa tambm esto filtradas pelas tradies, experincias e
prticas dos militantes. Nunca se trata, portanto, de uma repercusso mecnica ou de uma
apropriao voluntarista.
Percebendo que a revoluo russa atraiu ateno dos militantes, fazendo com que
estes interpretassem os acontecimentos de diversas formas e at se identificassem com ele,
tento analisar se isto tambm influiu nos processos organizativos e nas aes coletivas dos
militantes. Por isso, no quinto captulo, A VOSSA DIVISO A VOSSA FRAQUEZA-
UNI-VOS POIS!, E, NO HAVER FORA ALGUMA QUE POSSA VOS ENFRENTAR:
associaes comunistas do Rio Grande do Sul e suas relaes com grupos similares do
centro do pas, analiso a atuao dos grupos comunistas e maximalistas que se formaram
no Rio Grande do Sul, como se inseriram nas lutas operrias e suas relaes com outros
grupos de trabalhadores organizados. Alm disso, procurei estudar as diversas formas de
relao do movimento operrio gacho com as associaes comunistas do centro do pas
como a troca de materiais de informao, a tentativa de formao de um Partido Comunista
e a participao em uma insurreio nacional.
No sexto e ltimo captulo, NO SE CONSEGUE DESCREVER O QUE SE
PASSOU NA CABEA DE BOA PARTE DE NOSSOS VELHOS AMIGOS- NUM PISCAR
DE OLHOS TORNARAM-SE NOSSOS INIMIGOS: balanos e perspectivas do movimento
operrio gacho em relao ao futuro da revoluo russa, procuro explicar as precoces
divises e disputas em torno do maximalismo que surgiram no Rio Grande do Sul no incio
31
dos anos 20, considerando a mudana das condies em atuava o movimento operrio,
ento sob uma represso cada vez mais aguda e reverses de expectativas que produziram
um ambiente de ciznia e disputas internas.
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1. O CRCULO QUE SE EXPANDE INDEFINIDAMENTE37: a revoluo russa e
seus impactos internacionais
Apesar desta dissertao tratar do impacto da revoluo russa no movimento operrio
do Rio Grande do Sul, neste primeiro captulo deixarei por enquanto o movimento operrio
de fora, tratando da revoluo na Rssia, na Europa e sua difuso pelas Amricas e pelo
Brasil.
A apresentao necessria no apenas para estabelecer um contexto, mas como um
prlogo onde se expem os fatos que deram origem a um movimento catalisador de desejos
de libertao e nsia por um novo mundo, cujos impactos no movimento operrio gacho
sero apresentados nos prximos captulos. Esta rpida exposio de fatos no tem como
objetivo mostrar a verso do que realmente aconteceu em face das verses ou
interpretaes criadas pelos militantes no extremo sul do Brasil, mas serve como um guia
para acompanhar uma srie de acontecimentos que sero constantemente referidos ao longo
deste trabalho.
1.1. A revoluo russa
A expanso imperialista europia promoveu alianas e acirrou conflitos entre os
pases que a promoveram, fazendo surgir dois grupos antagnicos de naes: de um lado
um bloco liderado pela Alemanha, ustria-Hungria e Imprio Otomano; do outro lado, um
bloco em que se destacavam Frana e Inglaterra, no qual a Rssia se inseria. Quando
irromperam as hostilidades em 1914, o Imprio Russo entrou na luta para retomar o
impulso expansionista que se esgotara com a guerra russo-japonesa de 1905. Este
engajamento tambm deveria funcionar como poderoso ingrediente de coeso social,
fazendo esquecer a vergonhosa derrota na guerra de 1905 e o levantamento revolucionrio
que esta incentivou.
O exrcito russo, apesar de seu enorme contingente, era mal preparado, sendo o que
mais sofreu perdas na Guerra Mundial. Os soldados eram basicamente camponeses
37 Ttulo de um artigo publicado de Affonso Frederico Schimidt, publicado no A Dor Humana de 11 de outubro de 1919.
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armados e a mo que empunhava o rifle fazia falta agricultura. A produo de gneros
diminuiu, provocando a alta dos preos. Este quadro foi piorado pela situao da indstria,
reconvertida para servir s necessidades do exrcito38. Em meados de 1917, a situao
poltica do Imprio Russo se degradava rapidamente. A Assemblia, ou a Duma Imperial,
onde atuavam os polticos ligados burguesia e aos nobres liberais, agrupados no Partido
Constitucional Democrata (Kadete), pressionava por medidas de liberalizao do regime,
mas o Czar Nicolau II aferrara-se ao absolutismo, se negando a ceder aos menores pedidos
dos deputados. Paralelamente a isto, o movimento grevista nas fbricas crescia desde 1915,
chegando a 575 mil operrios de braos cruzados no comeo de 1917. Os soldados
desertavam de seus postos, os aquartelados acompanhavam a agitao nas cidades e
levavam ao campo o germe da revolta. Os camponeses fardados faziam eco s exigncias
de seu grupo social e comearam a exigir tambm o direito s terras em que trabalhavam,
formando assim os pilares das reivindicaes que marcariam a revoluo: paz, po e terra.
A degradao econmica e social chegou a um ponto insuportvel nos primeiros
meses do ano de 1917. Em 23 de fevereiro, uma manifestao em comemorao ao dia das
mulheres na capital Petrogrado deu origem a uma conclamao de greve geral na cidade.
Os agentes da represso ficaram sem ao, j que o movimento se ampliava rapidamente,
passando de 90 mil grevistas a 240 mil em dois dias. Domingo, dia 26, os operrios foram
para o centro da capital imperial protestar39; na segunda-feira eles no foram trabalhar. A
polcia no podia contar com o apoio do exrcito para reprimir os manifestantes, pois uma a
um os regimentos aderiram rebelio, que se espalhava pelo pas. O czar no soube o que
fazer, abdicando no dia 1 de maro, exemplo seguido pelo seu irmo e sucessor no dia 340.
Neste ambiente revolucionrio os operrios retomaram uma experincia tentada na
revoluo de 1905, formando um Conselho (Soviet) de operrios e soldados, com
delegados de cada fbrica e de cada regimento41. Imediatamente tratou-se de estender a
organizao ao restante do exrcito, incitando cada regimento a eleger comits de soldados
38 REIS FILHO, Daniel Aaro. Rssia (1917-1921): anos vermelhos. So Paulo: Brasiliense, 1983, p. 39. 39 Nesta poca, Moscou ainda no havia se transformado em capital da Rssia, ainda estando esta sediada na cidade de Petrogrado, atual So Peterburgo. 40 TROTSKY, Leon. Histria da revoluo russa. 1 volume-a queda do tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977. pp. 102-129. 41 Sobre a revoluo de 1905 ver: TROTSKY, Leon. Balanos e perspectivas. Lisboa: Antdoto. 1979. Este livro foi originalmente escrito em 1906, tendo reflexes do lder revolucionrio sobre a experincia desta revoluo.
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e enviar representantes ao conselho, sendo o modelo repetido em outras cidades. O Soviet
era o local de representao popular, onde os trabalhadores das fbricas e os militares de
baixa patente teriam um rgo para defender seus interesses perante as classes dominantes.
O Conselho tambm era o lugar onde todos os partidos de orientao socialista estavam
representados: o Partido Socialista Revolucionrio, ou simplesmente SR, surgido dos
populistas russos, que defendiam um caminho prprio para o socialismo baseando-se nas
foras do campesinato; o Partido Operrio Social Democrata Russo (POSDR), marxista,
dividido entre os bolchevistas, que defendiam que o operariado deveria ter uma direo
poltica prpria, havendo a necessidade de esta classe assumir as tarefas da revoluo
burguesa na Rssia, j que a burguesia seria incompetente para faz-la, e no menchevistas,
que priorizavam a defesa de uma revoluo burguesa e o apoio burguesia, que chegaria ao
poder e faria as reformas necessrias para se chegar democracia. Tambm atuavam nos
Soviets os anarquistas, que no estavam organizados em partido, mas que faziam valer sua
representao entre os operrios industriais.
Em meio agitao popular a Duma Imperial elegeu um Governo Provisrio para
tomar as rdeas da situao, com um ministrio majoritariamente kadete, deixando o
governo a cargo do prncipe Lvov, um nobre liberal. O Governo Provisrio hesitou em
proclamar uma nova forma de governo, postergando a deciso pela repblica ou a
monarquia constitucional para uma assemblia constituinte. A hesitao, a propsito, seria
a marca deste governo pelos prximos nove meses.
Neste primeiro momento os principais nomes da revoluo do lado dos grupos
populares eram menchevistas como Martov, Tseretelli, Dan e Cheidze; ou socialistas
revolucionrios como Kerensky e Chernov. Os bolchevistas s vo ganhar fora com a
chegada de seu principal lder do exlio, Lnin, em abril. Com isto o grupo mudou sua
atitude de colaborao com os outros partidos e passou a lutar pela tomada do poder pelo
Soviet, o que menchevistas e socialistas revolucionrios eram contra pois temiam a
desestabilizao do Governo Provisrio.
Este Governo passou por diversas crises no perodo de sua curta existncia, pois no
podia responder aos anseios da populao, que exigia da revoluo uma resposta sobre a
falta de po, a diviso da terra e a assinatura da paz. Os kadetes, representantes da
burguesia, no podiam sair da guerra, pois esta estava envolvida demais com os interesses
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do capital internacional. Os socialistas revolucionrios e os menchevistas apegavam-se
idia de revoluo burguesa, temendo perder o apoio dos kadetes na organizao do novo
poder. Os bolchevistas, ao contrrio, pregavam a entrega do poder aos Soviets e foram
contra o apoio burguesia, alm do mais, estes apoiaram a assinatura de um tratado de paz
com a Alemanha e a distribuio da terra aos camponeses42.
A primeira destas crises, em abril, fez com que os menchevistas e os socialistas
revolucionrios entrassem no Governo Provisrio em coligao com os kadetes. Na
segunda grande crise, em julho, os bolchevistas foram postos na ilegalidade e o principal
nome dos socialistas revolucionrios, Alexandre Kerensky, assumiu o governo com plenos
poderes. Em agosto Kerensky quase foi derrubado por um golpe conservador, mas pelo
boicote das tropas e dos operrios, coordenado em parte pelos bolchevistas, este
empreendimento fracassou. Com esta crise a situao se torna mais grave; Kerensky se
proclamou Comandante-Supremo e o Soviet de Petrogrado deu uma guinada para a
esquerda, elegendo Leon Trotsky, militante do Partido Operrio Social Democrata Russo,
para sua presidncia, aderindo este logo aps sua eleio ao grupo dos bolchevistas. No
campo, os socialistas revolucionrios de esquerda se fortaleciam, desbancando seus
companheiros de partido mais conservadores.
Em outubro, o Soviet de Petrogrado formou o Comit Militar Revolucionrio para
coordenar as tropas aquarteladas na capital. Alexandre Kerensky, sentindo que lhe tiravam
o cho sob os ps, tomou ento medidas contra o poder sovitico, mas foi intil. O Soviet
ordenou no dia 24 de outubro a dissoluo do Governo Provisrio, que caiu quase sem
resistncia, deixando apenas quinze mortos nos confrontos que se seguiram. O II Congresso
dos Soviets, reunindo delegados de toda a Rssia, foi aberto no dia 25. De incio
menchevistas e socialistas revolucionrios de direita protestaram contra a deciso de acabar
com o governo provisrio e se retiraram, ficando na reunio os socialistas revolucionrios
de esquerda que tinham como expoente a militante Spiridonova, alm dos anarquistas. Na
segunda sesso do Congresso, dia 26, os bolchevistas conseguiram aprovar por
unanimidade um decreto sobre a paz, aprovando tambm um decreto pela qual a terra era
42 Para a caracterizao dos grupos polticos da Rssia e sua histria ver: REIS FILHO, Daniel Aaro. Op. Cit. Captulo Revolta contra o czarismo. p. 22-36.
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socializada sem indenizao, constituindo-se, por fim, como governo at a eleio da
Constituinte43.
O novo poder foi organizado no Congresso Pan-Russo dos Soviets, com a fuso dos
Soviets de Operrios e Soldados com os Soviets de Camponeses. A estrutura sovitica era
piramidal: na sua base estavam os Soviets distritais, eleitos por representao de atividades
produtivas, que iam enviando delegados aos Soviets superiores, at o Congresso Pan-
Russo, ltima instncia de poder. No intervalo dos congressos o poder seria exercido pelo
Comit Executivo Central (VTsiK) presidido a partir de outubro por Lnin. A forma de
governo sovitica, por conselhos, provocou grande atrao mesmo entre correntes polticas
no bolchevistas, como os anarquistas, que de modo geral eram avessos a qualquer coero
estatal. A maioria deles inclusive apoiou os bolchevistas e alguns at aderiram ao partido44.
Logo os bolchevistas alados ao poder tiveram problemas a resolver. A guerra civil
comeou e a assinatura da paz com os alemes tornou-se urgente. A proclamao de Lnin
aos povos do mundo por uma paz sem compensaes no foi atendida pelos alemes, que
avanaram fundo no territrio russo. Para responder aos ataques alemes, o governo
sovitico transformou as guardas vermelhas de operrios armados e as tropas que
continuavam fiis ao novo governo no exrcito vermelho, que teria Leon Trotsky como seu
organizador e comandante a partir da. A perda de territrio agravava a situao criada pela
dissoluo da Assemblia Constituinte, eleita em fins de 1917, que devido sua
composio, majoritariamente de socialistas revolucionrios de direita, entrou em conflito
com o poder do Soviet que a extinguiu em janeiro de 1918. Estas atitudes deixaram por um
fio a aliana com os socialistas revolucionrios de esquerda. Iniciou-se tambm o conflito
com os anarquistas, devido tentativa de desarmar a sua guarda negra em Petrogrado e pela
represso ao movimento guerrilheiro de Nestor Makhno na Ucrnia.
A guerra civil estava j se desenvolvendo em larga escala. Na frente externa os
alemes, uma vez dentro do territrio russo, apoiaram os generais fiis ao antigo regime,
incentivando-os a atacar o exrcito vermelho. Ao mesmo tempo Inglaterra e Frana, aliadas
de guerra, invadiram o territrio russo para apoiar governos constitucionais formados por
43 TROTSKY, Leon. Histria da revoluo russa. 3 volume-o triunfo dos Soviets. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977. pp. 947-989. 44 BROU, Pierre, Unio Sovitica. Da revoluo ao colapso. Porto Alegre: Sntese Universitria/Editora da UFRGS. 1996. Ver O estado dos Soviets pp. 22-27.
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menchevistas e socialistas revolucionrios de direita. Japoneses e americanos ocuparam a
Sibria. Em julho de 1918 a invaso se torna massiva, a ponto de, no incio de 1919, a
Rssia Sovitica estar reduzida a apenas 10% do territrio da Rssia Imperial. O exrcito
dos conservadores, o branco, s no obteve maior vantagem sobre o exrcito vermelho por
que usava de enorme violncia sobre a populao russa e porque os soldados estrangeiros
comearam a sentir uma perigosa simpatia pelos bolchevistas, tendo que ser rapidamente
evacuados.
Para tentar recuperar nveis de consumo anteriores guerra, o governo bolchevista
adotou uma srie de medidas, como a militarizao do trabalho, a nacionalizao das
empresas e a modificao do sistema de circulao, com a criao de cooperativas de
consumo para distribuio de rao alimentar. Neste sentido, um dos pontos vulnerveis da
revoluo era a produo agrcola. Depois de tentativas frustradas de formar fazendas
estatais e de recorrer aos camponeses pobres para ajudar nas requisies, o estado formou
milcias urbanas para trazer os gros que faltavam s cidades. Outro problema,
especialmente grave pelo carter do partido que controlava o poder sovitico, era a presso
sobre os operrios para que eles produzissem mais para servir guerra civil. Ocorreram
discusses acaloradas sobre a liberdade do trabalhador, se os sindicatos deveriam servir
para os operrios reivindicarem seus direitos ou se deveriam servir produo45.
Depois de imensos sacrifcios o exrcito vermelho venceu seus inimigos. As ltimas
tropas brancas foram batidas em 1920, no sul da Ucrnia. Depois disso, os russos ainda
tiveram que enfrentar os poloneses, que tentavam invadir a Ucrnia e a Bielo-Rssia. As
tropas vermelhas expulsaram-nos do seu territrio, tentando avanar sobre a Polnia, para
provocar uma revoluo que se espalharia pela Europa. O plano fracassou e os russos
tiveram de se voltar para dentro do seu pas. Apesar de frustrada, a esperana em uma
revoluo na Europa permaneceria viva at 1923.
O governo bolchevista tentou continuar com o comunismo de guerra, mas a
populao comeou a se revoltar. Lnin props ento um novo modelo ec