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O HUMOR EM AUTO DA BARCA DO INFERNO, DE GIL VICENTE. 1 Caline Fonseca de Andrade 2 RESUMO: Este trabalho visa estudar a obra de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, compreendendo os aspectos do gênero comédia no corpus supracitado bem como o contexto histórico de sua época. ―Seu teatro, essencialmente moral e social, é marcado pela intenção critica. O riso, a sátira e os gracejos tinham um endereço certo: O público que assistia as encenações e que acabava por rir de si mesmo, sem que, por cegueira ou vaidade, se reconhecesse, mas certamente vendo nos quadros o companheiro ao lado, o magistrado, o clérigo da aldeia, o bispo, os nobres da corte e dezenas de tipos com os quais convivia ou aos quais conhecia na sociedade da época‖ (MAIA, João Domingues, IN: Auto da barca do inferno, 4ª ed., editora objetiva, são paulo, 1996 P.5). PALAVRAS CHAVE: Humor, processos cômicos, Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente, sátira. 1 Artigo apresentado ao Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina Cânones e Contextos na Literatura Portuguesa, do Curso de Letras Vernáculas, da Universidade do Estado da Bahia campus XXI, como requisito para complementação de nota. 2 Discente do V semestre, vespertino.

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O HUMOR EM AUTO DA BARCA DO INFERNO, DE GIL VICENTE.1

Caline Fonseca de Andrade2

RESUMO: Este trabalho visa estudar a obra de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno,

compreendendo os aspectos do gênero comédia no corpus supracitado bem como o

contexto histórico de sua época.

―Seu teatro, essencialmente moral e social, é marcado pela intenção critica. O riso, a sátira e os gracejos tinham um endereço certo: O público que assistia as encenações e que acabava por rir de si mesmo, sem que, por cegueira ou vaidade, se reconhecesse, mas certamente vendo nos quadros o companheiro ao lado, o magistrado, o clérigo da aldeia, o bispo, os nobres da corte e dezenas de tipos com os quais convivia ou aos quais conhecia na sociedade da época‖ (MAIA, João Domingues, IN: Auto da barca do inferno, 4ª ed., editora objetiva, são paulo, 1996 P.5).

PALAVRAS – CHAVE: Humor, processos cômicos, Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente, sátira.

1 Artigo apresentado ao Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina Cânones e Contextos na

Literatura Portuguesa, do Curso de Letras Vernáculas, da Universidade do Estado da Bahia – campus XXI,

como requisito para complementação de nota. 2 Discente do V semestre, vespertino.

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INTRODUÇÃO

A vida de Gil Vicente, o grande teatrólogo do humanismo português, é pouco

conhecida. Supõe-se que seu nascimento tenha ocorrido em 1465 e o ano de sua

morte em 1536 onde foi encenada sua última peça Florestas de Enganos. Como não

se tem notícia de autores portugueses de teatro anteriores Gil Vicente é, portanto,

considerado o ―pai do teatro português‖.

A primeira peça da trilogia das barcas que se intitulam: O Auto da Barca do

Inferno, Barca do Purgatório e Barca da Glória ao qual estudaremos aqui de um

modo mais detalhado, explora de uma maneira lúdica, o espaço intermediário entre

a vida na Terra e a vida eterna. Representa o juízo final de forma satírica e cômica

com forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas

barcas: uma com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino

ao paraíso, comandada por um anjo.

O jogo de palavras que faz Gil e o estilo de apontar para vários tipos sociais e

profissionais da sociedade portuguesa de seu tempo corroborava para um teatro

marcado pela intenção crítica onde o riso e a sátira despertava no público o

reconhecimento de si próprios ou de conhecidos.

Objetiva-se no percurso deste trabalho OPORTUNIZAR a leitura e a análise do Auto

da Barca do Inferno, de Gil Vicente, COMPREENDER o gênero da comédia bem

como a sua origem e por fim, ELABORAR um artigo obedecendo às normas pela

Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Na perspectiva de elaborar um trabalho coerente, este artigo norteou-se nos

seguintes passos: escolha do livro, leitura, levantamento bibliográfico a respeito do

tema, leitura analítica, formulação de hipóteses, elaboração, redação, digitação,

revisão e digitação final.

Como fundamentação teórica utilizamos: MOISÈS, Massaud. A análise literária. 14ª

ed. São Paulo, Cultrix, 2009, p. 202-2008; MOISÈS, Massaud. O teatro de Gil

Vicente. IN: A Literatura Portuguesa. 28ª ed. São Paulo – Sp: Cultrix, 1995, p. 39-

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43; MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ªed. São Paulo – SP:

Cultrix, 2004, p. 79-82; OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Arte literárea: Portugal-Brasil.

São Paulo, moderna, 1999.

A edição que utilizamos de Auto da Barca do Inferno neste artigo foi a 4ª ed, da

Editora Objetiva, São Paulo, 1996.

I – O QUE É COMÉDIA?

Antes de sintetizar comédia, vale ressaltar um pouco sobre o contexto histórico em

que foi escrito O Auto da Barca do Inferno. Essa obra foi escrita em um período da

historia que corresponde à transição a idade media para a idade Moderna. Seu

autor, Gil Vicente, se enquadra justamente nesse momento de transição, ou seja,

esta ligada tanto ao medievalismo quanto ao Renascimento.

O teocentrismo medieval começou a declinar em função de uma série de

acontecimentos que apontavam para as possibilidades das realizações humanas

neste mundo, a inflexível visão de mundo segundo a qual esta vida seria a ante-sala

do inferno ou do paraíso conforme os merecimentos humanos começaram a

modificar durante a história. Novas formas de pensar e agir foram estruturadas,

caracterizando-se, sobretudo pelo resgate da herança greco-latina, pela retomada

do homem como medida de todas as coisas.

Gil manteve-se bem preso às tradições medievais e fez, antes de tudo, um teatro de

tom didático-moralizante, enraizado no teocentrismo e na idéia da salvação da alma.

Se de um lado seu teatro ascendia às virtudes cristãs como objetivo a ser

alcançado, do outro lado focalizava a sociedade com humor e senso crítico.

Ao contrário do Renascimento, o Medievalismo caracterizava-se pelo não riso, a

comédia praticamente deixou de circular e o termo passou a designar toda narrativa

ou poema de epílogo feliz, como a divina comédia, de Dante. Com a Renascença

não só a palavra reassumiu a significação, como também o teatro cômico adquiriu

estrutura fixa destacando, portanto, Gil Vicente e o teatro popular, estabelecendo

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uma ligação entre as escassas representações medievais e o surgimento da nova

idade para a dramaturgia.

Etimologicamente, comédia devirá de come, aldeia, e odi, canto. Sua origem foram

os cantos licenciosos das procissões rústicas em honra a Dionísio. Este gênero

burlesco era chamado de comos. A origem da comédia é obscura, sabendo-se que

entre os gregos ela atribuída aos dóricos. Posteriormente, foi desenvolvida em

Atenas, quando, então, se desdobrou em três períodos: A comédia antiga que se

desenvolveu no século V, a comédia média que já tem por tema a crítica dos

costumes ou motivos da vida dos deuses e estabelece um período de transição. A

comédia nova por sua vez é satírica não poupando os tipos marcantes da

sociedade.

A comédia, o humor, o riso, o chiste são palavras derivadas de um estilo dramático

da modalidade comédia que em síntese é a representação de um fato inspirado na

vida e no sentimento comum, nas coisas prosaicas, de riso fácil, e que em geral

critica os costumes. Na peça teatral em que as notas predominantes são a graça e a

sátira, são percebidas a dissimulação, hipocrisia, ostentação de sentimentos

inexistentes no íntimo e fatos ridículos do dia-a-dia.

Segundo Massaud Moises no Dicionário de termos literários:

―Primeiro de tudo, a comédia procura aproximar-se da vida real, de modo a detectar-lhe certos aspectos, precisamente os que provocam o riso. Na rotina da vida diária, o riso desponta sempre que algo de inesperado acorre, quebrando as nossas expectativas consagradas, como uma pessoa que, escorregando e caindo, desfaz por momentos a normalidade da postura, da vestimenta, etc. O riso deflagra em razão da incongruência ou da ruptura, ainda que breve, das regras estabelecidas pelo uso. A comédia explora justamente esses instantes, em que o imprevisto da ação gera o ridículo ou a surpresa espontânea.‖ (p.21)

O humor é determinado essencialmente pela personalidade de quem ri. O que pode

ser engraçado pra alguém, pode não despertar nenhum senso de comicidade em

outra pessoa. Há também a comédia que não desperta o riso por ter essencialmente

uma forte ligação com a predominancia de alguns componentes que comparecem

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no ambito da tragédia, mas de forma secundária. Pode-se dizer que o humor é a

mais subjectiva categoria do cómico e a mais individual, pela coragem e elevação

que pressupõe.

Por outro lado, é de habito assentar as características da comédia em oposição a tragédia,

no tocante aos acontecimentos que movem a ação, nota-se que ―mortes, lutas, amores

infelizes, assassínios, etc. se encontram tanto na comédia como na tragédia, podendo haver

o gênero tragicomédia em que se misturam elementos trágicos e cômicos que

originalmente, significava a mistura do real com o imaginário.

Todavia, a comédia ―séria‖ traz implícita a crença ou a esperança numa sociedade sem ridículos, uma sociedade que se aprimoraria à medida que, pelo riso, tomasse consciência de suas falhas institucionais. (...) A sátira, entendida como a utilização deliberada e reformante do ridículo, visa precipuamente ao castigat ridendo mores (Corrige os costumes pelo riso), criado por Jean de Santeul, poeta dos fins do século XVII, para servir de lema à comédia dos italianos‖ (MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ªed. São Paulo – SP: Cultrix, 2004, p.81)

Pode-se aqui enfatizar a relação da comédia com a sátira, já que Gil Vicente fazia rir

a corte e o povo satirizando comportamentos e mentalidades de todas as classes

sociais. A sátira é uma técnica literária que criticar e ridiculariza um determinado

tema com o objetivo de provocar ou evitar uma mudança, o riso satírico em geral é

extremamente sarcástico, de caráter denunciador e moralizador e tenta, muitas

vezes, obter um efeito cómico pela justaposição da sátira com a realidade.

Para fazer o povo rir, além da utilização do exagero Gil Vicente valeu-se entre outros dos

principais processos cômicos, a saber: A comicidade de Caráter, que é aquela em que o

principal interesse é dado pelo desenvolvimento do caráter de uma classe social ou de uma

certa época ou conforme João Domingues Maia ―A comicidade de caráter é resultante das

características psicológicas das personagens-tipo, aos quais induzem a reação e

comportamentos inusitados em relação a determinada(s) pessoa(s), objeto(s), situações

etc.‖3 É a idealização/ridicularizarão psicológica das personagens, quando a ênfase recai

num tipo estabelecido; A comicidade de situação ―é provocada pelos atos das

3(MAIA, João Domingues, IN: Auto da barca do inferno, 4ª ed., editora objetiva, são paulo, 1996 p.10).

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personagens - tipos ou pelos acontecimentos em que se inserem‖4 as peças insitam

a expectativa do publico ao querer saber qual será a atitude das personagem em

relação a determinada situação bem como será o desfecho da história. São as

atitudes das personagens que valem nessa situação; A comicidade de linguagem

que em Gil se dá, sobretudo por meio da ironia da escolha dos nomes das

personagens, utilização irônicas das rimas e o conteúdo ambíguo, uso de lugares

comuns, utilização de rezas e provérbios, jogo de palavras, repetições, emprego do

latim macarrônico, gírias e utilização de palavras chistes e chulas.

II - O HUMOR EM AUTO DA BARCA DO INFERNO, DE GIL VICENTE.

Além de outros efeitos cômicos que não nos aprofundaremos aqui, devem-se

considerar as ações, atitudes, vestimentas, entonação da voz e interpretação de

cada personagem, pois para fazer uma análise de uma obra teatral teríamos antes

de tudo de avaliar o texto em sua representabilidade, sua teatralidade ou sua

probabilidade como espetáculo, já que, o texto é apenas um dos componentes do

espetáculo teatral.

Como afirma Massaud Moisés:

―É que, a rigor, o Teatro participa das expressões literárias na medida em que adota a palavra como veículo de comunicação, mas extrapola das suas fronteiras quando se cumpre sobre o palco. Ora, sabemos que uma peça somente alcança sua integral razão de ser ao transformar-se em espetáculo. Diante disso, a conclusão é imediata: o teatro caracteriza-se por sua ambigüidade, por um hibridismo que deve ser levado em conta sempre que analisamos uma peça.‖ (p.203).

Aqui, porém, nos guiaremos apenas por leituras de fragmentos da referida obra,

tentando perceber portando os processos cômicos no teatro vicentino.

A história se passa em uma espécie de porto, onde se encontram duas barcas: uma

com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino ao paraíso,

comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardam os mortos, que são as

almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno. A história gira em torno dos seguintes

4 Idem, ibdem.

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personagens: Anjo (arrais do céu), Diabo (arrais do inferno), Companheiro (do

Diabo), Fidalgo, Onzeneiro, Joane (Parvo), Sapateiro (João Antão), Frade,

Florença (uma moça), Alcoviteira (Brísida Vaz), Judeu, Corregador, Procurador,

Enforcado, Quatro Cavaleiros.

O Humor surge ao longo do auto três tipos cómicos: o de carácter, o de situação e o

de linguagem. O cômico de carater como ja visto é aquele que é demonstrado pela

personalidade da personagem, de que é exemplo o Fidalgo, o primeiro interlocutor

que chega com um Pagem, sua personalidade é carregada de vaidade, pensava que

por representar a camada social nobre não seria portanto condenado ao inferno por

seus pecados, tirania e luxúria. Sua vaidade é representada pelo tamanho da calda,

que só caberia na barca do inferno.

Anjo — Que quereis? Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais. Anjo — Esta é; que demandais? Fildalgo — Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais. Anjo — Não se embarca tirania neste batel divinal. Fildalgo — Não sei por que haveis por mal que entre a minha senhoria... Anjo — Para vossa fantasia mui estreita é esta barca. Fildalgo — Para senhor de tal marca nom há aqui mais cortesia? Venha a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira! Anjo — Não vindes vós de maneira para entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio. Ireis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria, cuidando na tirania do pobre povo queixoso. E porque, de generoso, desprezastes os pequenos, achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso. ―(p.23-24)

Essa citação mostra evidente a personalidade do Fidalgo que se acha no direito de ir

à embarcação do anjo por ser ―Fidalgo de Solar‖, ou seja, de família tradicional, bem

como a ironia do anjo nestes versos , quando afirma que na barca do inferno todos

os pertences do fidalgo caberiam, assim como sua presunção.

O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Este, arrogante, julga-se merecedor do

paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-

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se, frustrado, para a barca do inferno; mas tenta convencer o diabo a deixá-lo a

rever sua amada, pois esta "sente muito" sua falta. O diabo destrói seu argumento,

afirmando que ela o estava enganando. O cômico de situação é percebido também

quando ele é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado.

Fildalgo — Esperar-me-ês vós aqui, tornarei à outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi. Diabo- Que se quer matar por ti? Fildalgo — Isto bem certo o sei eu. Diabo — Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi!... Fildalgo — Como pod'rá isso ser, que m'escrevia mil dias? Diabo — Quantas mentiras que lias, e tu... morto de prazer!... Fildalgo — Para que é escarnecer, quem nom havia mais no bem? Diabo — Assim vivas tu, amém, como te tinha querer! Fildalgo — Isto quanto ao que eu conheço... Diabo — Pois estando tu expirando, se estava ela requebrando com outro de menos preço. Fildalgo — Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher. Diabo — E ela, por não te ver, despenhar-se-á dum cabeço! (p.25)

Na citação acima a pergunta irônica que o diabo volta ao fidalgo ―Que se quer matar

por ti?‖ resulta em risos, mostrando quão ingênuo é, portanto o fidalgo, insinuando

ainda o diabo que sua mulher chora é de alegria. Muitos dos trechos que conduzem

ao riso são resultantes das sátiras encontradas na obra bem como muitos tons

irônicos na fala do Diabo misturando humor e cinismo.

Onzeneiro — Para onde caminhais? Diabo — Oh! que má hora venhais, Onzeneiro, meu parente! Como tardastes vós tanto? Onzeneiro — Mais quisera eu lá tardar. (p.27)

(...) Onzeneiro — Por quê? Anjo — Porque esse bolsão tomará todo o navio. Onzeneiro — Juro a Deus que vai vazio! Anjo — Não já no teu coração. Onzeneiro — Lá me ficam de roldão vinte e seis milhões nua arca.

Novamente aqui o Diabo satiriza o Onzeneiro dizendo-o ser o seu parente por sua

ganância e avareza, enquanto ‗mente‘ ao anjo dizendo que seu bolsão (o que

representava seu pecado) ia vazio, ‗jura a Deus que vai vazio‘.

Onzeneiro — Santa Joana de Valdês! Cá é vossa senhoria? Fildalgo — Dá ò demo a cortesia!

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Diabo — Ouvis? Falai vós cortês! Vós, fidalgo, cuidareis que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis!

O cômico nessa citação gira em torno da surpresa do Onzeneiro ao encontrar o

Fidalgo na barca do arrais do inferno que culpa o diabo a ―cortesia‖de ambos terem

ido parar no inferno. Do mesmo modo o Parvo, que devido à sua pobreza de

espírito não mede as suas palavras e digige uma série de insultos ao Diabo, muitos

deles obscuros e sem nexos, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros. É

útil mostrar que o parvo não leva nada da materialização simbólica dos seus

pecados. O proprio nome ―Parvo‖ merece ser notado como uma estenção das

caracteristicas psicologicas e cômicas desse personagem, que é tolo e ingênuo. A

critica se dilui e fica suavizada pelo humor enquanto o anjo agraciando-o por sua

humildade, permite-lhe entrar na barca do céu.

Ao chegar o Frade com sua amante cantarolando, ele sente-se ofendido quando o

diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê

que teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso.

Frade — Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã; ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã: tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá! Diabo — Que é isso, padre?Que vai lá? Frade — Deo gratias! Som cortesão. Diabo — Sabês também o tordião? Frade — Porque não? Como ora sei! Diabo — Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão. Essa dama é ela vossa? Frade — Por minha lá tenho eu, e sempre a tive de meu, Diabo — Fizestes bem, que é formosa! E não vos punham lá grosa no vosso convento santo? Frade — E eles fazem outro tanto! Diabo — Que cousa tão preciosa... Entrai, padre reverendo! (p. 34-35)

A comicidade de linguagem é um fator bem marcante na obra principalmente nas

falas do diabo, na citação acima as perguntas que ele faz, satirizando os demais

personagens é indiscutível, enquanto o padre entra cantanto e dançando ele volta-

se e pergunta: ―O que é isso, padre?‖, ridicularizando a atitude do padre.

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Brízida — Nom quero eu entrar lá. Diabo — Que saboroso arrecear! Brízida — No é essa barca que eu cato. Diabo — E trazes vós muito fato? Brízida — O que me convém levar. Díabo. Que é o que haves d'embarcar? Brízida — Seiscentos virgos postiços e três arcas de feitiços que nom podem mais levar. Três almários de mentir, e cinco cofres de enlheos, e alguns furtos alheos, assim em jóias de vestir, guarda-roupa d'encobrir, enfim - casa movediça; um estrado de cortiça com dous coxins d'encobrir. A mor carrega que é: essas moças que vendia. Daquestra mercadoria trago eu muita, à bofé! Diabo — Ora ponde aqui o pé... Brízida — Hui! E eu vou para o Paraíso! Diabo — E quem te disse a ti isso?

Aqui uma nova personagem é condenada ao inferno por mentiras, prostituições e

feitiçarias. Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreendemos que essa

mulher prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar que enganara

seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta

convencer o anjo a levá-la na barca do céu inutilmente. A característica psicológica

da personagem nos leva a rir, pois apesar de todos os pecados confessados ainda

pretende ir para o paraíso.

Parvo — Hou, homens dos breviários, rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanários! Corregedor — Oh! não nos sejais contrários, pois nom temos outra ponte! Parvo — Belequinis ubi sunt? Ego latinus macarios. Anjo — A justiça divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal.

Nesta citação o latim macarrônico falado pelo Parvo dá o tom humorístico, pois se

trata de um latim incorreto. O nome Macário, de macarrônico, era dado aos latinistas

de pouco conhecimento, que se expressavam mal em latim, desse modo

subentende-se uma crítica sobrecarregada com humor.

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Essas e outras passagens mostram quão era o teatro vicentino humorístico e

satírico, condenando o ambiente em que vivia, mas abrandando seu ataque em

virtude de domesticar os personagens pela caricatura e de utilizar elementos

cômicos que provocavam excesso de hilaridade. Ao proceder a invasão

carnavalesca, o artista sublinha, pelo grotesco, as situações indesejáveis e

discutíveis, que poderiam ser reformadas sem, no entanto, repudiar a religiosidade,

a moral vigente. Gil Vicente é, portanto considerado por muitos críticos e estudiosos

um Cânone da literatura portuguesa, por se tratar de denuncias que conservam uma

extraordinária atualidade na criação de tipos humanos que se elevam à

universalidade enquanto se torna útil a inúmeras reflexões.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Efetivar um estudo da obra de Gil Vicente possibilitou-nos perceber a temática

humorística na obra que aliada à sátira criticava e ridicularizava a sociedade

portuguesa de seu tempo. A obra vicentina segue como uma forma de desalienar e

conscientizar o homem enquanto leitura de seus próprios atos. Esperamos ter

proporcionado deste modo um acréscimo analítico a todos que se debruçaram nesta

temática.

REFERENCIAL TEÓRICO

MOISÈS, Massaud. A análise literária. 14ª ed. São Paulo, Cultrix, 2009, p. 202-

2008.

MOISÈS, Massaud. O teatro de Gil Vicente. IN: A Literatura Portuguesa. 28ª ed.

São Paulo – Sp: Cultrix, 1995, p. 39-43;

MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ªed. São Paulo – SP:

Cultrix, 2004, p. 79-82;

OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Arte literárea: Portugal-Brasil. São Paulo, moderna,

1999.