1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MAURÍCIO UZÊDA DE FARIA O INDIVIDUALISMO EM ORTEGA Y GASSET Salvador – Bahia 2014
Text of O INDIVIDUALISMO EM ORTEGA Y GASSET - UFBA
(Microsoft Word - Disserta\347\343o de mestrado)CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOSOFIA
Salvador – Bahia 2014
graduação em Filosofia, da Universidade Federal da
Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Filosofia.
Salvador – Bahia
Faria, Maurício Uzêda de
F224 O individualismo em Ortega y Gasset / Maurício Uzêda de Faria
. - Salvador, 2014.
103 f.
Orientador: Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, 2014.
1. Ortega y Gasset, José, 1883-1955. 2. Individualismo. 3.
Liberalismo. 4. Sociedade de massa. 5. Democracia – Filosofia. I.
Moura, Mauro Castelo Branco de. II. Universidade Federal da Bahia.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas III. Título. CDD:
148
4
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
5
“Sei, de ciência certa, que uma obra de homem
outra coisa não é senão este longo caminhar para tornar a
achar as duas ou três imagens simples e grandes para as
quais o coração pela primeira vez se abriu.”
Albert Camus
Bruno, pelo incentivo, e à minha esposa, Luciene, pelo apoio
e estímulo sem os quais este trabalho não seria possível.
7
AGRADECIMENTOS
Ao professor e orientador Mauro Castelo Branco de Moura, pelo
estímulo e
confiança demonstrados desde o período de graduação, pelas críticas
e orientações
sempre equilibradas com uma saudável dose de liberdade concedida
aos meus interesses
filosóficos, e pelos exemplos de profissional e professor que
sempre serão pontos de
referência em minha caminhada.
À minha esposa, companheira e amiga, Luciene Fernandes, pela
paciência e
auxílio em todos os momentos difíceis, pelo apoio na minha decisão
de iniciar essa
difícil empresa de estudar Filosofia, e pelo amor e estímulo que
têm sido fundamentais
em todos os momentos da minha vida.
Aos meus pais, Armando e Marlene, e meu irmão, Bruno, que
sempre
incentivaram as minhas leituras, desde a adolescência, e o meu
interesse pela Filosofia.
Aos professores da UFBA, cujas aulas, tesouro de conhecimento e
ideias, sem
dúvida foram de fundamental importância para a realização desse
trabalho.
Ao colega Francisco de Assis Silva, pelas sugestões e contribuições
valiosas na
elaboração do projeto.
À Kleyson Assis, cuja aula sobre Ortega y Gasset me despertou o
interesse por
este pensador, e por ter aceito fazer parte da banca tanto da minha
monografia quanto
desta dissertação de mestrado.
À todos os colegas da UFBA que, direta ou indiretamente, me
estimularam
durante esse processo.
À CAPES, pelo apoio concedido, que foi de fundamental importância
para o
desenvolvimento deste trabalho.
8
RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto de estudo o individualismo no
pensamento
de José Ortega y Gasset (1883-1955). A crítica que tece Ortega, no
texto La rebelión de
las masas, a uma civilização que não permite o desenvolvimento de
um projeto de vida
individual e a maneira como alerta para o perigo de um retrocesso
em relação ao espaço
que se concede ao individuo personal, sugerem uma associação do
individualismo ao
homem da minoria, definido por Ortega como aquele que exige muito
de si, procurando
superar-se e, consequentemente, diferenciar-se dos demais. Por
outro lado, tem-se um
individualismo no homem-massa na medida em que ele não reconhece
qualquer limite à
expansão de seus impulsos vitais e acredita não dever nada à
sociedade que torna
possível a segurança e o conforto de sua existência; e, ao mesmo
tempo, a ausência nele
de uma individualidade autêntica na forma de um sujeito desprovido
da capacidade de
desejar a si mesmo e de trilhar um caminho pessoal. Portanto,
embora Ortega aponte
para o perigo de uma homogeneização na sociedade de massas,
clamando pela
possibilidade de se formar um “projeto de vida que tenha figura
individual” em meio
aos grandes aglomerados urbanos, ele deixa entrever a possibilidade
de uma articulação
da noção de homem-massa com uma espécie de hiperindividualismo, na
figura de um
sujeito hermético, que se fecha a toda e qualquer instância
exterior e não reconhece
nenhuma dívida para com a civilização.
PALAVRAS-CHAVE: individualismo, sociedade de massas, técnica,
democracia,
liberalismo, civilização.
9
ABSTRACT
The aim of this research was to study individualism in the thought
of José
Ortega y Gasset (1883-1955). The criticism Ortega weaves in the
text La rebelión de las
masas, of a civilization that does not allow the development of an
individual project for
life and the manner in which it warns of the danger of regression
as regards the space
granted to the personal individual, suggests an association of
individualism with the
man of the minority, defined by Ortega as the one who demands a
great deal of himself,
seeks to surpass himself, and consequently, differentiate himself
from the others. One
the other hand, one has an individualism in the mass man, to the
extent to which he does
not recognize any limit to the expansion of his vital impulses and
believes that he owes
society nothing, which makes the safety and comfort of his
existence possible; and at
the same time, the absence in him of an authentic individuality in
the shape of a subject
without the capacity to desire and to trace a personal pathway for
himself. Therefore,
although Ortega points out the danger of a homogenization in the
society of masses,
calling for the possibility of forming a "project for life that has
an individual figure" in
the midst of large urban agglomerations, he hints at the
possibility of an articulation of
the notion of mass man with a type of hyper-individualism, in the
form of a hermetic
subject, who closes all and any external instance, and does not
recognize any debt
whatever to civilization.
civilization.
10
SUMÁRIO
1.1 Ensimesmamento e solidão radical 20
1.2 Dois pontos de vista aristocráticos: Ortega y Gasset e
Friedrich Nietzsche
31
2.1 Que é a técnica
43
2.4 Democracia e liberalismo 65
2.5 Hiperdemocracia e sistema parlamentar 69
3 INDIVIDUALISMO E SOCIEDADE DE MASSAS 76
3.1. Modernidade e individualismo
80
90
11
INTRODUÇÃO
A variação observada entre as diversas culturas humanas na história
sugere que
o homem se encontra em uma condição singular no universo: ele
compartilha com as
outras espécies necessidades biológicas que o ligam inequivocamente
à natureza, mas
uma parte dele parece estar fora dela, transcendê-la; essa parte,
que torna os homens e
as culturas tão diferentes entre si, é em si mesma vazia,
desprovida de um conteúdo
determinado, cabendo ao próprio homem preenchê-la. Para usar uma
imagem
orteguiana, o homem parece ser mesmo um centauro ontológico, com
uma porção
imersa na natureza e outra porção fora dela, e o que há de humano
nesse estranho
animal é precisamente aquilo que cabe a ele mesmo inventar (ORTEGA
Y GASSET,
1957c, p.38).
É possível que uma maior quantidade de indivíduos, por assim dizer,
“originais”,
fosse benéfica à humanidade, pois isso significaria uma maior
riqueza de formas de
vida, culturas, ideias, pensamentos, que provavelmente se
refletiria na diminuição dos
preconceitos e da intolerância. Como escreveu Stuart Mill em 1859,
sendo a
humanidade imperfeita,
a unidade de opinião, a menos que resultante da mais completa e
mais livre
comparação de opiniões opostas, não é desejável, e a diversidade
não é um mal,
mas um bem, até que a humanidade seja muito mais capaz do que
atualmente de
reconhecer todos os lados da verdade (MILL, 2006, p.84).
Por outro lado, não se pode esquecer que ideias como as de que os
homens em
certo sentido são iguais, que todos compartilham o mesmo mundo, que
a resolução de
certos problemas que afligem um determinado estrato da sociedade
resultaria em um
benefício para a humanidade como um todo, etc., são fecundas na
medida em que
estimulam em cada um a sensação de pertencimento ao corpo social
e
consequentemente a solidariedade indispensável a uma sociedade
relativamente sadia. A
liberdade e a diversidade só podem existir no interior de uma
estrutura vital
compartilhada, e nesse sentido, como afirmou Marx em A ideologia
alemã, entre 1845 e
1846,
12
somente na comunidade com outros o indivíduo tem os meios de
desenvolver
suas faculdades em todos os sentidos. Somente na comunidade é
possível,
portanto, a liberdade pessoal. [...] Na comunidade real, os
indivíduos adquirem
sua liberdade simultaneamente com a sua associação, por e nessa
associação
(MARX, 1965, p.79).
Algumas décadas depois, Nietzsche deixou também o registro de
sua
preocupação a respeito desse tênue equilíbrio entre a sensação de
pertencimento a uma
coletividade – ou a uma “cultura pública” – e o feliz
desenvolvimento de uma
personalidade individual – uma “cultura privada” –, ou entre
“melodia” e
“acompanhamento”; no aforismo 242 de Humano, demasiado humano,
texto de 1878,
pergunta ele:
...como adaptar o indivíduo às exigências extremamente variadas da
cultura, sem
que elas o incomodem e destruam sua singularidade? – em suma, como
integrar
o indivíduo ao contraponto de cultura privada e pública, como pode
ele ser
simultaneamente a melodia e seu acompanhamento? (NIETZSCHE, 2002,
p.168)
Infelizmente o pensador alemão não nos forneceu as respostas dessas
perguntas,
e a dúvida persiste. Em nosso tempo, o contraponto entre público e
privado está na
ordem do dia, e não faltam, na sociologia ou na filosofia política,
pensadores que se
debruçam sobre esse tema, seja para afirmar uma tendência de
preponderância da esfera
privada em relação à esfera pública, seja para denunciar a
colonização da esfera privada
pela esfera pública.1 De qualquer forma, o que salta aos olhos na
distinção entre público
e privado feita por Nietzsche no aforismo acima é que a esfera
privada é o lugar da
singularidade, do desenvolvimento de um percurso único – da
“melodia”, na sua
transposição para a linguagem musical –, enquanto o espaço público
é o lugar dos
interesses comuns, onde os interesses individuais são atenuados em
favor de um
movimento que se coordena e se adapta ao dos demais – o
“acompanhamento”, ou a
“harmonia”, no sentido de combinação de sons ou movimentos
simultâneos.
1Um autor contemporâneo, Zygmunt Bauman, afirma que “muitos
pensadores influentes (sendo Jürgen Habermas o mais importante
deles) advertem sobre a possibilidade de que a ‘esfera privada’
seja invadida, conquistada e colonizada pela ‘pública’. [...] De
fato, a tendência oposta à advertência é a que parece estar se
operando – a colonização da esfera pública por questões
anteriormente classificadas como privadas e inadequadas à exposição
pública” (BAUMAN, 2001, pp.82-83).
13
Essa imagem de coordenação de movimentos, de contraponto entre o
percurso
singular de um indivíduo e o movimento de um corpo complexo,
composto por
elementos diferentes que se combinam, encontra uma analogia em uma
passagem de
José Ortega y Gasset, onde ele afirma que
En una prisión donde se han amontonado muchos más presos de los que
caben,
ninguno puede mover un brazo ni una pierna por propia iniciativa,
porque
chocaría con los cuerpos de los demás. En tal circunstancia, los
movimientos
tienen que ejecutarse en común, y hasta los músculos respiratorios
tienen que
funcionar a ritmo de reglamento (ORTEGA Y GASSET, 1983,
p.35).
Nesse caso temos uma circunstância onde a singularidade é
obstaculizada pelo
excesso de elementos em um espaço inadequado, e se “choca” com o
comportamento da
coletividade: no caso, a Europa de seu tempo, ou seja, do período
de entre guerras.2 A
comparação entre a situação da Europa no que se refere ao “fato das
aglomerações” e
uma prisão onde não se pode executar um movimento por iniciativa
própria sem
esbarrar-se com os demais – deixando de lado o seu caráter
hiperbólico, peculiar a um
filósofo que se expressava com frequência através de imagens e
acreditava que só era
possível pensar exagerando3 – é compreensível se pensarmos que,
segundo as palavras
do autor, é aproximadamente na primeira metade do século XX que
começa a se tornar
patente o grande crescimento populacional ocorrido a partir do
século anterior:
Corresponde, pues, al siglo pasado la gloria y la responsabilidad
de haber
soltado sobre el haz de la historia las grandes muchedumbres. [...]
Aparece la
historia entera como un gigantesco laboratorio donde se han hecho
todos los
ensayos imaginables para obtener una fórmula de vida pública que
favoreciese
la planta ‘hombre’. Y rebosando toda posible sofisticación, nos
encontramos con
la experiencia de que al someter la simiente humana al tratamiento
de estos dos
principios, democracia liberal y técnica, en un solo siglo, se
triplica la especie
europea (ORTEGA Y GASSET, 1983, p.80).
A democracia liberal aparece, portanto, associada à técnica, como
fator
determinante para o surgimento das grandes massas humanas, fenômeno
característico
2O texto em questão, La rebelión de las masas, é de 1930.
3...“Pensar es, quiérase o no, exagerar. Quien prefiera no exagerar
tiene que callarse; más aún: tiene que paralizar su intelecto y ver
la manera de idiotizarse” (ORTEGA Y GASSET, 1983, p.149). Talvez a
graça dessas palavras se encontre precisamente no fato de serem,
elas mesmas, um exagero.
14
dos séculos XIX e XX. A preocupação de Ortega ao apontar para o que
chama de “fato
das aglomerações” (título do primeiro capítulo de La rebelión de
las masas) é, como se
pode imaginar, o perigo da homogeneização inerente a uma sociedade
de massas.
Ortega inicia a sua obra com a apresentação desse fato visual,
concreto, para dizer que a
própria manifestação exterior dessa sociedade, com as suas
aglomerações e multidões
que transbordam nos espaços públicos, deixa entrever o seu
significado essencial, a
saber, o mergulho do indivíduo no anonimato das grandes massas
indiferenciadas. Com
o acento existencialista que lhe é peculiar, Ortega expressa essa
preocupação no
“Prólogo para franceses” questionando a possibilidade da juventude
de seu tempo de
formar um projeto de vida que tenha figura individual:
...¿puede hoy un hombre de veinte años formarse un proyeto de vida
que tenga
figura individual y que, por tanto, necesitaría realizarse mediante
sus iniciativas
independientes, mediante sus esfuerzos particulares? Al intentar el
despliegue de
esta imagen en su fantasia, ¿no notará que es, si no imposible,
casi improbable,
porque no hay a su disposición espacio en que poder alojarla y en
que poder
moverse según su propio dictamen? Pronto advertirá que su proyecto
tropieza
con el prójimo, como la vida del prójimo aprieta la suya. El
desánimo le llevará,
con la facilidad de adaptación propia de su edad, a renunciar no
sólo a todo
acto, sino hasta a todo deseo personal, y buscará la solución
opuesta: imaginará
para si una vida standard, compuesta de desiderata comunes a todos
y verá que
para lograrla tiene que solicitarla o exigirla en colectividad con
los demás
(ORTEGA Y GASSET, 1983, pp.34-35).
Tem-se, portanto, uma oposição entre projeto de vida individual –
autêntico,
singular – e sociedade de massas – enquanto multidão de tipos
genéricos,
indiferenciados – aparentemente trivial, na medida em que a própria
formação de uma
multidão faz pressupor a coincidência de desejos, ideias, “modos de
ser”, etc.
(ORTEGA Y GASSET, 1983, p.48)
É preciso que se leve em conta, na leitura da obra orteguiana – da
qual se ocupa
o presente trabalho – e, sobretudo, de La rebelión de las masas, a
articulação de dois
fatores distintos no interior da sociedade: minorias e massas.
Ortega os define da
seguinte maneira: “Las minorias son individuos o grupos de
individuos especialmente
cualificados. La masa es el conjunto de personas no especialmente
cualificadas”
(ORTEGA Y GASSET, 1983, p.48). Ortega toma essa distinção como um
fato, um
elemento constitutivo de toda sociedade, daí o ponto de vista
aristocrático presente em
15
sua obra: para o filósofo, não se trata de desejar ou não uma
aristocracia, mas do fato de
que a sociedade, queira ou não, é aristocrática, na medida em que
se organiza a partir da
articulação entre grupos especialmente qualificados para uma
determinada função e
grupos não qualificados que, em um campo específico, acatam as
diretrizes daqueles.4 É
possível pensar, portanto, que mesmo no interior das minorias e das
massas, alguns
grupos se dividem novamente em minorias e massas, e assim
sucessivamente, a ponto
de, onde se reunirem cinco ou seis pessoas, um ou dois indivíduos,
em uma determinada
circunstância, representem, por alguma qualificação especial, o
papel de “minoria”,
enquanto os demais representem o papel de “massa”. Assim, os
conceitos de minoria e
massa em Ortega não estão ligados a classes econômicas específicas;
ele faz questão,
inclusive, de ressaltar que a expressão “massa” para ele não possui
a acepção de “massa
trabalhadora”, mas sim de “homem médio” (ORTEGA Y GASSET, 1983,
p.48). Uma
das características desse homem médio, como se verá em seguida, é a
de sentir-se
satisfeito, pleno, como se não necessitasse de nenhum tipo de
aperfeiçoamento: é o
señorito satisfecho. O conceito de aristocracia é um conceito
dinâmico: não se trata de
um cômodo usufruto do trabalho alheio, mas do esforço de uma
minoria que exige
muito de si e põe suas forças a serviço de algo que transcenda a si
mesma.
O conceito de “multidão” é quantitativo e visual, mas, ao
converter-se em
“massa”, torna-se qualitativo, pois “massa social” é, para Ortega,
“la cualidad común,
es lo mostrenco social, es el hombre en cuanto no se diferencia de
otros hombres, sino
que repite en sí un tipo genérico” (ORTEGA Y GASSET, 1983, p.48).
Portanto, faz
parte da massa todo indivíduo que não se preocupa em diferenciar-se
dos demais, que
não se esforça para desenvolver um projeto de vida singular e
específico, que repete
irrefletidamente as escolhas dos outros; em uma palavra, o
indivíduo que “se deixa
levar”.
O texto La rebelión de las masas começou a ser publicado em um
jornal
madrilenho em 1927, tendo sido posteriormente reunido em livro; sua
primeira edição
veio a público em 1930.5 O tipo humano que o pensador ibérico
procura apresentar
4Ortega sustenta, segundo suas próprias palavras, uma interpretação
da história radicalmente aristocrática: “Es radical, porque yo no
he dicho nunca que la sociedad humana deba ser aristocrática, sino
mucho más que eso. He dicho y sigo creyendo, cada día con más
enérgica convicción, que la sociedad humana es aristocrática
siempre, quiera o no, por su esencia misma, hasta el punto de que
es sociedad en la medida en que sea aristocrática, y deja de serlo
en la medida en que se desaristocratice” (ORTEGA Y GASSET, 1983,
pp.53-54). 5Segundo nota de rodapé de Paulino Garagorri na edição
de 1983 (Revista de Occidente en Alianza Editorial), “La primera
edición de La rebelión de las masas apareció en 1930, y su primer
capítulo se
16
nesse texto desponta no início do século XX – é, portanto, herdeiro
de um longo
passado – e, diferente do homem dos tempos mais antigos, que vivia
em um mundo
instável e inseguro, toscamente organizado, encontra-se em uma
época, em certo
sentido, privilegiada, ordenada de modo a minimizar os riscos e
tornar a vida o mais
segura possível. Este homem, denominado por Ortega de
“homem-massa”, tende a
acreditar que toda a estrutura que possibilita o seu bem-estar é
algo natural, que lhe é
dado sem mais, e não uma organização propriamente dita e que exige
um alto grau de
esforço e responsabilidade para ser mantida. Nas palavras do autor,
“así se explica y
define el absurdo estado de ánimo que esas masas revelan: no les
preocupa más que su
bienestar y al mismo tiempo son insolidarias de las causas de ese
bienestar” (ORTEGA
Y GASSET, 1983, p.86).
Além dessa ingratidão e ausência de reconhecimento em relação ao
trabalho que
tornou possível o bem-estar característico da civilização
contemporânea, o conceito de
homem-massa está ligado a um sentimento ilusório de plenitude, de
independência, que
tem como consequência um hermetismo e um encerramento em si mesmo,
como se não
fosse necessário ao tipo nenhum esforço de aperfeiçoamento. Como
está satisfeito tal e
como é, o homem-massa não reconhece a legitimidade de nenhuma
instância exterior a
ele e não se coloca a serviço de nada transcendente a si mesmo:
“Nada de fuera la incita
[a nova massa] a reconocerse límites y, por tanto, a contar en todo
momento con otras
instancias, sobre todo con instancias superiores” (ORTEGA Y GASSET,
1983, p.89).
Como que “mimado” por uma circunstância que lhe parece aberta e
infinita em
possibilidades, o homem-massa é levado ao mesmo tempo a fechar-se
em si mesmo –
no sentido em que se sente pleno e não tem necessidade de nenhum
aprimoramento – e,
paradoxalmente, a expandir ilimitadamente seus desejos vitais, como
se tivesse
disponibilidade para ter e ser qualquer coisa.
É possível imaginar em que atmosfera intelectual Ortega redigiu o
seu texto. Até
a Primeira Guerra Mundial o otimismo reinava na Europa, com a
crença no
desenvolvimento ilimitado do capitalismo e nos dogmas do pensamento
econômico
liberal. A Primeira Guerra deu início a um processo de declínio do
capitalismo europeu,
contrastado pela ascensão norte-americana, ao menos até a quebra da
Bolsa de Nova
York, na “Quinta-Feira Negra” de 24 de outubro de 1929, quando os
EUA entraram em
crise e arrastaram todos os países cuja economia estava atrelada à
norte-americana. A
había publicado en El Sol con fecha del 14, octubre, 1929, pero
estas páginas refundían otras de 1927” (in ORTEGA Y GASSET, 1983,
p.11).
17
amplitude da crise que se seguiu propiciou um terreno fértil para
movimentos que
contestavam a ordem vigente e o pensamento econômico liberal. Na
Alemanha e na
Itália, onde o liberalismo não se consolidara completamente, surgiu
o nazismo e o
fascismo, prometendo a manutenção da ordem estabelecida e dos
privilégios
capitalistas, contra o socialismo que se disseminava entre a classe
média empobrecida.
Mussolini é nomeado primeiro-ministro da Itália pelo rei Vitor
Emanuel III em 1922 e
Hitler já se tornara um personagem notório na Alemanha desde o
início da década de
20, até ser nomeado chanceler em 1933. Acrescente-se a esses
fatores o já mencionado
crescimento vertiginoso das massas urbanas, e tem-se de forma
aproximada uma ideia
do contexto histórico no qual aparece o livro de Ortega.
Podem ser encontrados no seu texto elementos de crítica ao fascismo
e até
alusões diretas a ele; no capítulo “El mayor peligro, el Estado”,
afirma Ortega:
...azora un poco oír que Mussolini pregona con ejemplar petulancia,
como un
prodigioso descubrimiento, hecho ahora en Italia, la fórmula: ‘Todo
por el
Estado; nada fuera del Estado; nada contra el Estado.’ Bastaria
esto para
descubrir en el fascismo un típico movimiento de hombres-masa.
Mussolini se
encontró con un Estado admirablemente construido – no por él,
sino
precisamente por las fuerzas e ideas que él combate: por la
democracia liberal.
El se limita a usarlo incontinentemente, y, sin que yo me permita
ahora juzgar el
detalle de su obra, es indiscutible que los resultados obtenidos
hasta el presente
no pueden compararse a los logrados en la función política y
administrativa por
el Estado liberal. Si algo ha conseguido, es tan menudo, poco
visible y nada
sustantivo, que difícilmente equilibra la acumulación de poderes
anormales que
le consienten emplear aquella máquina en forma extrema (ORTEGA
Y
GASSET, 1983, p.140).
Uma passagem como essa, em que o pensador ibérico identifica de
forma
contundente o fascismo com um movimento de homens-massa, seria
suficiente para
descartar possíveis alusões à existência de um germe fascista no
pensamento orteguiano,
não obstante tentativas como essa terem sido feitas.6 No fascismo
estão imbricados
elementos que Ortega não hesita em criticar, em La rebelión de las
masas e em outros
6 Como exemplo, poder-se-ia citar o livro de Rodolfo B. Rotman,
Ortega y el petardismo, que consiste em
uma sucessão de ataques ao pensamento de Ortega, com o objetivo de
aplicar a ele – “a la ideologia no al expositor” (ROTMAN, 1959,
p.16) – o qualificativo de fascista. O problema do livro é que o
autor procura fundamentar a sua tese em passagens retiradas dos
textos de Ortega, muitas vezes trechos de frases, totalmente
isolados do seu contexto original.
18
direta, o nacionalismo agressivo, etc.
Não se pode negar a importância das circunstâncias históricas que
envolvem a
origem de qualquer texto, filosófico ou não – ainda mais em se
tratando de Ortega y
Gasset, cuja obra traz em seu cerne os conceitos de circunstância e
de razão vital, que
estão ligados, por sua vez, à ideia de uma razão que funciona na
vida, na circunstância,
na história. Mas isso não consiste em um impedimento para buscar na
obra do autor
elementos que possam contribuir para uma reflexão acerca dos
problemas vividos pelo
homem de hoje, do século XXI. A história humana não se apresenta de
forma
fragmentária, com rupturas claras de um período a outro, e
certamente os traços
destacados por Ortega na sociedade de seu tempo ainda se encontram
presentes na
sociedade atual.
A crítica que tece Ortega a uma civilização que não permite o
desenvolvimento
de um projeto de vida individual e a maneira como alerta para o
perigo de um retrocesso
em relação ao espaço que se concede ao homem para que ele possa ser
um individuo
personal ressaltam o apreço do autor pelo individualismo entendido
como valorização
do indivíduo diante da sociedade e do Estado; poder-se-ia mesmo
associar ao homem da
minoria, como aquele que exige muito de si, procurando superar-se
e,
consequentemente, diferenciar-se dos demais, uma boa dose de
individualismo. Ortega
reforça essa impressão em passagens como a seguinte: “La masa
arrolla todo lo
diferente, egregio, individual, calificado e selecto. Quien no sea
como todo el mundo,
quien no piense como todo el mundo, corre el riesgo de ser
eliminado” (ORTEGA Y
GASSET, 1983, p.52). O homem-massa, portanto, mais do que um homem
sem ideias
próprias, formado por uma “carapaça” de lugares comuns adquiridos
irrefletidamente,
um homem “genérico”, que pode se adaptar a qualquer projeto de vida
standard,
precisamente porque não possui convicções, traços definidos,
história pessoal, mais do
que tudo isso, o homem-massa é um homem que, sabendo-se vulgar,
procura afirmar o
seu direito à vulgaridade e impor essa vulgaridade aos demais. É
nesse ponto que
entram em cena duas características fundamentais do homem-massa que
podem ser
articuladas com a noção de um individualismo exacerbado: “la libre
expansión de sus
deseos vitales, por tanto, de su persona, y la radical ingratitud
hacia cuanto ha hecho
posible la facilidad de su existência” (ORTEGA Y GASSET, 1983,
p.86). Assim, o
ponto que se procura esclarecer aqui é: em que medida a crítica
orteguiana à
homogeneidade característica da sociedade de massas pode ser
articulada com a ideia de
19
um individualismo presente na própria noção de homem-massa? Uma
leitura apressada
poderia deixar passar justamente o que torna esse tipo humano
apresentado por Ortega
tão interessante para um debate em torno da civilização
contemporânea: o paradoxo
formado pela ausência de uma individualidade autêntica e, ao mesmo
tempo, a expansão
potencialmente ilimitada do ego.
Alguns traços da filosofia de Ortega certamente dão ensejo a que se
tome o
pensador espanhol como um teórico elitista, como, por exemplo, a
sua distinção entre
minorias e massas, a sua interpretação “radicalmente aristocrática”
da história, etc. No
primeiro capítulo esse viés será abordado com o intuito de
demonstrar que a sua
concepção de aristocracia, não obstante soar incômoda aos ouvidos
de um homem do
século XXI – ciente de todos os tenebrosos eventos ocorridos no
século anterior em
nome de teorias de superioridade/inferioridade entre os homens –,
passa ao largo do
louvor ao egoísmo de uma suposta casta superior, à maneira
nietzscheana.
No segundo capítulo serão abordados a questão da técnica e o
posicionamento
político de Ortega, cujas obras de juventude são marcadas por um
“liberalismo
socialista”, posteriormente substituído por uma defesa da
democracia liberal que leva
em conta a tendência democrática de se degradar em
“hiperdemocracia”, ou ação direta.
Tanto a técnica quanto a democracia liberal estão estreitamente
ligadas, no pensamento
orteguiano, ao surgimento da sociedade de massas.
No caso do individualismo, o objeto do presente trabalho, é
possível afirmar que
a filosofia orteguiana é marcada, como toda filosofia que procura
ressaltar a
responsabilidade humana na realização de um projeto vital
autêntico, pela ênfase no
indivíduo. Mas, por outro lado, a noção de homem-massa pode ser
interpretada também
como uma crítica ao hiperindividualismo das sociedades
contemporâneas,
caracterizadas pelo constante apelo à satisfação imediata da
concupiscência e por uma
confiança no progresso ilimitado da técnica (consequentemente, nas
crescentes
possibilidades de satisfação dos desejos).
É possível extrair muitas interpretações da obra de um autor
fecundo, e não
acontece de outra forma com Ortega y Gasset. Um comentador afirma
que, segundo
contam, Ortega não podia conter um estremecimento ante a
possibilidade de ser
submetido à teoria: “¡Sobre todo que no me expliquen después de
muerto!”; a diretriz
adotada por esse comentador serviu de inspiração durante a redação
do presente
trabalho: “Ya que el deseo no ha podido cumplirse, lo menos que
cabe es estudiarlo con
20
imparcialidad y rigor, sin importar el puesto que a la postre venga
a ocupar en un
hipotético ranking de pensadores” (AGUILAR, 1998, pp.15-16).
1) ENSIMESMAMENTO E ARISTOCRACIA
1.1 Ensimesmamento e solidão radical
Não é tarefa fácil apontar a partir de que momento o homem torna-se
consciente
de que se encontra em um meio distinto dele, e seria penetrar em
terreno pantanoso
tentar defini-lo. Mas nos próprios mitos podem ser encontrados
indícios dessa cisão que
marca a condição humana, a sensação de um pertencimento incompleto
à natureza,
como se, de fato, o homem não estivesse inteiramente em harmonia
com ela. O mito
adâmico não seria, no fundo, uma representação dessa ruptura? Não
seria a expulsão de
Adão do paraíso o momento em que o homem desperta do sonho da
identificação com a
natureza e torna-se consciente da alteridade?7
Ortega y Gasset apresenta na Meditación de la técnica, texto de
1939, essa
relação problemática entre o homem e a natureza com uma alegoria,
definindo o homem
como um “centauro ontológico”, cuja metade equina se encontra
imersa na natureza e a
metade humana, fora dela:
Por lo visto, el ser del hombre tiene la extraña condición de que
en parte resulta
afín con la naturaleza, pero en outra parte no, que es a un tiempo
natural y
extranatural, una especie de centauro ontológico, que media porción
de él está
imersa, desde luego, en la naturaleza, pero la outra parte
trasciende de ella. [...]
Lo que tiene de natural se realiza por si mismo: no le es cuestión.
Mas, por lo
mismo, no lo siente como su auténtico ser. En cambio, su porción
extranatural
no es, desde luego, y sin más, realizada, sino que consiste, por lo
pronto, en una
7 Nesse sentido afirma Lino Casagrande que “Adão era tudo, isto é,
não se distinguia da pedra, dos demais animais e de tudo o mais que
o cercava. Mas, eis que de repente, acorda do estado de natureza,
passa a se sentir um estranho. O que antes constituía uma unidade,
agora, se instala a dilaceração” (CASAGRANDE, 2002, p.34). Por
outro lado, em Os mercadores, o templo e a filosofia: Marx e a
religiosidade, afirma Mauro Castelo Branco de Moura, a respeito da
epopéia de Gilgamesh, a mais antiga que se conhece, que “a
perplexidade e a revolta de Gilgamesh [diante da morte] inspiram
ações inócuas, do ponto de vista da eficácia, não fora a memória de
suas façanhas e a glória de havê-las tentado, embora sejam o
testemunho lancinante de uma individualidade nascente, que se
recusa à indiferenciação, a qual se lhe apresenta como o único
destino plausível.” A percepção da morte como descontinuidade seria
um atributo tardio, fruto da consciência de um indivíduo já
desgarrado em algum grau da vida na comunidade, “uma vez que a
descontinuidade não é um atributo do ser social, mas apenas da
consciência do indivíduo” (MOURA, 2004, pp.217-220). Em todo caso,
o que salta aos olhos é a sensação de estranhamento já presente nas
primeiras manifestações culturais, na forma de um sujeito que se
percebe distinto do meio e que portanto já dá indícios de uma
individualidade incipiente.
21
mera pretensión de ser, en un proyecto de vida. Esto es lo que
sentimos como
nuestro verdadero ser, lo que llamamos nuestra personalidade,
nuestro yo
(ORTEGA Y GASSET, 1957c, p.38).
Ao mover-se no interior do pensamento de Ortega y Gasset,
assume-se, portanto,
como ponto de partida, a ideia de que, ao afastar-se do reino
animal, a natureza aparece
para o homem não mais como um prolongamento de seu próprio Eu, mas
como algo
que pode, ora facilitar a sua existência, ora dificultá-la. A visão
de Ortega acerca da
relação entre homem e mundo é marcada por uma relação de tensão
entre dois entes
distintos: “un ente, el hombre, se ve obligado, si quiere existir,
a estar en otro ente, el
mundo o la naturaleza” (ORTEGA Y GASSET, 1957c, pp.35-36). Ortega
apresenta
esta relação como se pudesse ocorrer de três formas distintas: 1)
que o homem
encontrasse no mundo apenas facilidades – e então seria como se o
homem passeasse
pelo mundo como por dentro de si mesmo; 2) que o homem encontrasse
nele apenas
dificuldades – o que tornaria impossível a existência humana, o
instalar-se o homem no
mundo; e a terceira possibilidade, a que efetivamente ocorre: 3) o
homem encontra ao
redor de si uma intrincada rede de facilidades e dificuldades, que
se, por um lado, torna
possível a sua existência, por outro lado, faz dessa existência uma
luta constante contra
o meio, contra as resistências que o entorno oferece (ORTEGA Y
GASSET, 1957c,
pp.36-37).
Na célebre fórmula presente nas Meditaciones del Quijote – seu
primeiro livro,
de 1914 – “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no
me salvo yo”
(ORTEGA Y GASSET, 1914, pp.43-44), encontram-se os dois elementos,
o sujeito e o
mundo, ou seja, eu e as coisas, convivendo juntos, em uma relação
de co-pertencimento.
A intenção de Ortega ao elaborar o conceito de circunstância é
apresentar uma
concepção da vida humana que traz em si, como dado primordial, a
convivência entre o
eu e as coisas: o eu puro, isolado das coisas, é uma hipótese, uma
abstração, assim como
a existência das coisas em si e por si, independente da existência
do eu. A atividade
teórica, a ciência, a filosofia, com o passar do tempo separou
esses dois elementos, que
na atitude ingênua e primordial se encontram entrelaçados. Como
afirma Jean-Paul
Borel em Raison et vie chez Ortega y Gasset,
Le monde n’apparaît pas brusquement. Il est, à l’opposé de la
conscience mais
toujours en corrélation avec elle, l’un des pôles de l’unité dans
laquelle le donné
se réalise. Certes, la relation entre sujet et objet ne reste pas
longtemps intacte.
22
Si, en tant que mouvement, elle est infiniment variée, ses deux
termes présentent
une certaine permanence, et l’attention, qui préfère le stable,
délaissera la
relation au profit des termes eux-mêmes. Le moi et le monde seront
bientôt posés
comme réalités indépendantes (BOREL, 1959, p.37).
A relação entre o eu e a circunstância, expressa nas Meditaciones
del Quijote
através da fórmula “eu sou eu e minha circunstância, se não salvo a
ela, não salvo a
mim”, é um dos pontos centrais do pensamento orteguiano, e se
encontra em íntima
conexão com a concepção do homem como um centauro ontológico, cuja
relação com o
mundo é sempre problemática: a sua tarefa é adaptar a realidade a
seu redor – a
circunstância – a um projeto vital que é a sua própria vida. Em
certo sentido, os objetos
do mundo, enquanto a realidade se apresenta como problema, aparecem
para o sujeito
como algo distinto, que lhe resiste; mas, ao mesmo tempo, são os
limites impostos pelo
mundo que definem o sujeito. Afirma acertadamente Borel que “Ce que
je suis, ce que
je serai, je ne peux et ne pourrai l’être que dans les limites que
le monde laissera à ma
liberté” (BOREL, 1959, p.37). A relação entre o eu e a
circunstância, portanto, aparece
sempre como uma convivência, mas convivência aqui não significa
ausência de tensão,
conflito: trata-se de uma convivência problemática, dramática,
ainda que um elemento
dessa relação se defina sempre a partir do outro.
Na segunda parte da frase, diz Ortega: “se não salvo a minha
circunstância, não
salvo a mim mesmo.” O que ele quer dizer com isso? A noção de
salvação se relaciona
com a idéia de encontrar para um determinado objeto ou
circunstância seu devido lugar
na imensa perspectiva que se abre em torno de cada um, ou a exata
medida em que este
objeto se conecta com o universo. Por exemplo, em relação à sua
forma de fazer
filosofia, salvar um determinado tema, por singelo que seja, é
colocá-lo “en relación
inmediata con las corrientes elementales del espírito, con los
motivos clásicos de la
humana preocupación” (ORTEGA Y GASSET, 1914, pp.15-16). Segundo
Rossi, em
“Lenguaje y filosofia en Ortega”, “el programa orteguiano implica
algo así como
destacar el universal que se ejemplifica en cada hecho, por nimio,
transitorio y local
que sea” (In: SALMERÓN, 1984, p.27). Em outras palavras, ver o
universal no
particular.
A frase de Ortega, se tomada inteiramente – “eu sou eu e minha
circunstância, e
se não salvo a ela não me salvo eu” – pode ser lida então da
seguinte forma: se eu não
me encontro isolado em relação ao meu contorno, à minha realidade
espaço-temporal,
23
ao meu corpo, à minha alma, devo, para salvar-me, salvar a ela,
levá-la à plenitude de
seu significado, encontrar seu devido lugar entre a hierarquia de
valores que compõe o
universo.
Uma conclusão que se pode extrair, a partir dessas primeiras
premissas, é a que
se segue: as coisas que encontro a meu redor sempre se referem a
mim. Se os objetos
são tomados, em uma atitude primária, sempre enquanto facilitadores
ou obstáculos à
implantação de um projeto vital, e se necessito, para salvar-me
diante da circunstância,
operar sobre ela, seja sob o aspecto intelectual ou sob o aspecto
pragmático, então eles
(os objetos) sempre se encontram referidos à vida que deseja
realizar-se: é a minha vida
como um acontecimento que registra essa fluência entre eu e minha
circunstância. A
minha vida é, por assim dizer, a “moldura” na qual todas as demais
realidades
aparecem. Isso significa que, para Ortega, a vida humana é a
realidade radical; não uma
vida humana abstrata, mas a vida humana de cada um, a vida do
indivíduo. Em El
hombre y la gente, texto da maturidade, publicado postumamente em
1957, a doutrina
da vida humana encontra uma formulação nas seguintes
palavras:
Esta realidad radical en cuya estricta contemplación tenemos que
fundar y
asegurar últimamente todo nuestro conocimiento de algo, es nuestra
vida, la
vida humana. Siempre que digo “vida humana”, sea la que fuere, a no
ser que
haga yo alguna especial salvedad, ha de evitarse pensar en la vida
de otro, y
cada cual debe referirse a la suya propia y tratar de hacerse ésta
presente. Vida
humana como realidad radical es sólo la de cada cual, es sólo mi
vida
(ORTEGA Y GASSET, 1957a, p.62).
Segundo Ferrater Mora, a doutrina da vida humana – que é, para
este
comentador, a questão central da filosofia de Ortega, o factum a
partir do qual Ortega
iniciou o seu próprio pensamento (MORA, 1958, p.52) – não é uma
doutrina idealista,
nem tampouco antropocentrista8; o que Ortega tenta mostrar é que a
vida de cada um é
uma realidade sem a qual as outras carecem de um “lugar” ou de um
“sentido
ontológico” (MORA, 1958, pp.94-95). Trata-se, no fundo, da
transposição filosófica de
8A “hostilidade” em relação ao idealismo já aparece na fórmula “eu
sou eu e minha circunstância”, que indica a impossibilidade de que
o eu possa ser reduzido a uma entidade ontologicamente independente
(MORA, 1958, p.51); a mesma “hostilidade” poderia ser estendida em
relação ao realismo metafísico que afirma a existência das coisas
independentemente da consciência ou do sujeito, segundo a definição
de realismo adotada pelo próprio Ferrater Mora em seu Dicionário de
Filosofia (MORA, 1978, p.346). Sendo assim, a fórmula orteguiana
pode ser lida como uma tentativa de superação de ambas as posições,
idealista e realista.
24
uma experiência comum e “quase trivial”: “la que consiste en
reconocer que sin nuestra
vida todo lo demás perdería la significación – poca o mucha – que
le atribuímos”
(MORA, 1958, p.95). De fato, Ortega procura afastar dessa doutrina,
não sem certo
arroubo poético, qualquer interpretação solipsista:
Al llamarla “realidad radical” no significo que sea la única ni
siquiera que sea
la más elevada, respetable o sublime o suprema, sino que es la raíz
– de aquí,
radical – de todas las demás en el sentido de que éstas, sean las
que fueren,
tienen, para sernos realidad, que hacerse de algún modo presentes
o, al menos,
anunciarse en los ámbitos estremecidos de nuestra propia vida. Es,
pues, esta
realidad radical – mi vida – tan poco egoísta, tan nada
‘solipsista’ que es por
esencia el área o escenario ofrecido y abierto para que toda otra
realidad en
ella se manifieste y celebre su Pentecostés (ORTEGA Y GASSET,
1957a,
p.63).
Se a minha vida é o cenário em que toda outra realidade se
manifesta e “celebra
seu Pentecostes”, então todos os eventos que ocorrem ao meu redor
são vistos por mim
a partir da minha perspectiva, e todos os problemas que me afetam,
sou eu que tenho
que resolver, de uma forma ou de outra. Para Ortega, “nadie puede
vivir mi vida; tengo
yo por mi propia y exclusiva cuenta que írmela viviendo, sorbiendo
sus alborozos,
apurando sus amarguras, aguantando sus dolores, hirviendo en sus
entusiasmos”
(ORTEGA Y GASSET, 1956a, pp.1-2). Os problemas que a minha vida
levanta para
mim, sou eu, em última instância, que tenho que resolver; se
renuncio a tomar uma
decisão diante de uma determinada circunstância e prefiro não fazer
nada, ou ainda
transfiro essa decisão para outra pessoa, estou, por assim dizer,
decidindo renunciar a
esta decisão, e portanto não deixo de ser o responsável pelo que
vier a ocorrer. Nesse
sentido, a vida é intransferível, e cada um tem de viver a
sua.9
Em relação ao conceito de circunstância, há algo mais que vale
ressaltar. Na
Meditación de la técnica, a própria natureza no homem é considerada
como um “meio”,
uma “circunstância” com a qual é preciso lidar, queira-se ou não,
assim como é preciso
lidar com o terreno em que ele se encontra ou as condições
climáticas que o afetam. Na
citação reproduzida no início deste capítulo, Ortega afirma que a
porção natural do
centauro ontológico lhe é dada espontaneamente, enquanto a sua
porção “extranatural” é
algo a ser realizado, é um projeto de vida. Mas é precisamente esse
projeto de vida que
9 Esse ponto, que se articula com o tema da liberdade, será
retomado mais adiante, no terceiro capítulo.
25
o homem sente como seu autêntico ser. Poder-se-ia ilustrar esse
fato da seguinte
maneira: ao tentar definir-se em uma palavra, o que qualquer homem
dirá de si mesmo?
“Sou um médico”, “Sou um industrial”, “Sou um filósofo”, etc. Homem
algum definirá
a si mesmo como “um homem que respira”, “um homem que bebe água” ou
algo do
gênero. Portanto, o homem se encontra, com relação à natureza, em
uma situação
distinta daquela em que se encontra o animal, que, segundo Ortega,
coincide
inteiramente com a natureza:
El animal no puede retirarse de su repertorio de actos naturales,
de la
naturaleza, porque no es sino ella y no tendría al distanciarse de
ella dónde
meterse. Pero el hombre, por lo visto, no es su circunstancia, sino
que está sólo
sumergido en ella y puede en algunos momentos salirse de ella y
meterse en sí,
recogerse, ensimismarse, y solo consigue ocuparse en cosas que no
son directa e
inmediatamente atender a los imperativos o necesidades de su
circunstancia
(ORTEGA Y GASSET, 1957c, p.13).
É a capacidade de desligar-se de seu contorno natural, de
ensimesmar-se, que
constitui a característica fundamental do homem para Ortega y
Gasset; por outro lado, é
próprio do animal o estar inteiramente voltado para o exterior,
ocupado com os eventos
que ocorrem à sua volta.
A noção de ensimesmamento revela a afinidade existente entre o
pensamento de
Ortega e o do filósofo alemão Max Scheler, cuja obra ele
conhecia.10 No texto
“Diferença essencial entre homem e animal”, afirma o pensador
alemão que a
especificidade humana é precisamente a sua dimensão espiritual, que
explica dessa
forma:
Mas que é este “espírito”, este princípio novo e tão decisivo?
Poucas palavras
suscitaram, como esta, tantos abusos – uma palavra em que raramente
se pensa
algo de determinado. Se situarmos no topo do conceito de espírito a
sua função
particular de saber, o tipo de saber que só ele pode proporcionar,
então a
determinação fundamental de um ser “espiritual”, seja qual for a
sua constituição
10
A visão de Ortega a respeito de Scheler, um autor contemporâneo seu
(nascido em 1874, nove anos antes que o pensador ibérico) foi
expressa no texto “Max Scheler, un embriagado de esencias”: “Foi o
filósofo das questões mais próximas: os caracteres humanos, os
sentimentos, as valorações históricas. [...] É um caso curiosíssimo
de superprodução ideológica. Não escreveu uma só frase que não diga
de forma direta, lacônica e densa, algo essencial, claro, evidente
e, portanto, pleno de luminosa serenidade. Mas tinha que dizer
tantas serenidades que se atropelava, que andava aos tombos, ébrio
de claridades, aturdido de evidências, bêbado de serenidade” (in:
KUJAWSKI, 1994, p.136).
26
psicofísica, é o seu desprendimento existencial do orgânico, a sua
liberdade, a
possibilidade que ele – ou o centro da sua existência – tem de se
separar do
fascínio, da pressão, da dependência do orgânico, da “vida” e de
tudo o que
pertence à “vida” – por conseguinte, também da sua própria
“inteligência”
pulsional. Um ser “espiritual” já não se encontra, pois, sujeito ao
impulso e ao
meio, mas está “liberto do meio” e, como nos apraz dizer, “aberto
ao mundo”:
semelhante ser tem “mundo” (SCHELER, 2008, p.8).
O texto de Scheler acima citado é extraído de uma conferência
intitulada A
situação do homem no cosmos, realizada em 1927. Não obstante na
Meditación de la
técnica, de 1939, não existir qualquer referência a ele,
provavelmente Ortega conhecia o
texto de Scheler, uma vez que em Ideas y creencias, de 1940, afirma
que “Scheler, en El
puesto del hombre en el cosmos, entrevé esta diferente condición
del animal y el
hombre, pero no la entiende bien, no sabe su razón, su posibilidad”
(ORTEGA Y
GASSET, 1970, p.45), que é justamente, para o pensador ibérico, o
fato de que o animal
não tem mundo interior, intimidade, imaginação, por isso não tem
onde meter-se
quando pretende retirar-se da realidade exterior. Além disso, o
vocabulário orteguiano é
menos “místico” que o de Scheler. O conceito de “espírito” que este
último utiliza é
descartado por Ortega, após reconhecer os mesmos abusos feitos em
nome de uma
palavra tão vaga e indeterminada. A respeito do caráter bipolar do
homem, a um só
tempo “natural” e “extranatural”, afirma ele que “No ha de
interpretarse esa porción
extranatural y antinatural de nuestro ser en el sentido del viejo
espiritualismo. No me
interesan ahora los angelitos, ni siquiera eso que se ha llamado
espíritu, idea confusa
cargada de mágicos reflejos” (ORTEGA Y GASSET, 1957c,
pp.38-39).
Contornando, provisoriamente, um possível viés místico ou religioso
do
ensimesmamento – noção que aparece na Meditación de la técnica e
principalmente no
ensaio “Ensimismamiento y alteración”, primeiro capítulo do livro
inacabado e
publicado postumamente El hombre y la gente –, essa noção parece
oferecer duas
perspectivas de interpretação: como uma diferença específica do
homem, o que o
diferencia do animal (dos outros animais, poder-se-ia dizer), que
“vive siempre alterado,
enajenado”, ou seja, “su vida es constitutiva alteración” (ORTEGA Y
GASSET, 1957a,
p.37), e como uma espécie de “imperativo de serenidade”, ou seja,
como um apelo a que
o homem periodicamente interrompa a ocupação frenética com a
circunstância e se
retire para dentro de si mesmo, com o objetivo de retornar e operar
novamente sobre as
coisas com uma sabedoria renovada. Assim, por um lado, o homem,
centauro
27
ontológico, não pode deixar de sentir a circunstância como algo
diferente de si – pois
possuir uma porção “extranatural” é sua condição ontológica – e o
ensimesmamento é
um atributo humano essencial; por outro lado, o gozo desse
privilégio não é, também
ele, totalmente gratuito, mas algo exercitado constantemente, que
pode aumentar ou
diminuir com o tempo: ..“esas dos cosas, el poder que el hombre
tiene de sustraerse al
mundo y poder ensimismarse, no son dones hechos al hombre. [...]
Nada que sea
sustantivo ha sido regalado al hombre. Todo tiene que hacérselo él”
(ORTEGA Y
GASSET, 1957a, p.40). A técnica, por exemplo, é fruto e condição
do
ensimesmamento: ela surge como um resultado da capacidade do homem
de retirar-se
da ocupação frenética com a circunstância e, portanto, é criação
especificamente
humana; mas, ao mesmo tempo, o seu desenvolvimento no decorrer da
história pode, ao
menos em tese, permitir ao homem mais tempo para se ocupar com
coisas que não estão
diretamente ligadas à circunstância: “gracias a ella, y en la
medida de su progreso, el
hombre puede ensimismarse” (ORTEGA Y GASSET, 1957a, p.40).11
Partindo desse segundo sentido da noção de ensimesmamento – que
foi
designado aqui como “imperativo de serenidade” – é possível afirmar
que, para Ortega,
a ocupação frenética com a circunstância, o puro e simples
deixar-se levar pelo que
acontece no mundo exterior, aproxima o homem do animal, e que um
homem incapaz
de se recolher, de se retirar após a absorção dos acontecimentos a
seu redor e refletir
sobre eles, seria no mínimo, se não um animal, ao menos um
bárbaro.12 Em um artigo
intitulado “Bronca en la física”, publicado em La nación e datado
de 1937, Ortega
chama a atenção para o nervosismo e a ausência de serenidade no
meio científico, que
durante gerações teria sido o “lugar mais tranquilo da terra”. No
primeiro parágrafo,
afirma ele que
la serenidad es el atributo primario del hombre. Todos sus demás
dones o no son
específicamente humanos o son fruto nacido en la gleba de su
serenidad.
Cuando el hombre la pierde decimos que está ‘fuera de sí’. Y
entonces rebrota
en él el animal. Porque ‘estar fuera de sí’, esclavo de la
inquietud de su
contorno, en perpetuo azoramiento y nerviosismo, es la
característica del
animal. Conseguir liberarse de ese servilismo, dejar de ser un
autómata que el
11 A questão da técnica será abordada no segundo capítulo, “Técnica
e democracia liberal”. 12 Nesse sentido afirma Sérgio Caldas que “A
pura atenção à natureza é pura vida de ação, e, do ponto de vista
biológico, o natural e primário é que o homem se volte ao que lhe é
externo; a esta postura podemos chamar de atitude natural da
consciência. É de se supor que, nas idades primitivas, a vida
humana tenha consistido num confronto permantente com o exterior,
com as coisas que a cercavam, impedindo-a de entregar-se a outro
labor senão ao de resolver sua vida material” (CALDAS, 1994,
p.75).
28
contorno moviliza mecánicamente, desprenderse del alrededor y
meterse en si
mismo, ensimismarse, es el privilegio y el honor de nuestra especie
(ORTEGA Y
GASSET, 1957c, p.117).
Assim, é a ausência de serenidade, a escravidão em relação ao
contorno, que
aproxima o homem da animalidade; além disso, a capacidade de
ensimesmar-se não é
um fato irreversível, mas algo que pode modificar-se no tempo, nas
gerações, ou mesmo
de um lugar para o outro.
“Ensimesmamento”, “serenidade”, “meter-se em si”, “recolher-se”,
“subtrair-se
ao mundo”. Seguindo essa rota, pode-se chegar facilmente ao
elemento que faltava. Se é
a vida de cada um a realidade primária, pois tudo se refere ao
sujeito na medida em que
dificulta ou facilita a sua existência, então somente
recolhendo-se, ensimesmando-se, é
possível entrar em contato com essa realidade. Essa realidade
primária pode ser
traduzida com a expressão “solidão radical”; em El hombre y la
gente, afirma Ortega:
Se trata, pues, de la necesidad que el hombre tiene periódicamente
de poner bien
en claro las cuentas del negocio que es su vida y de que sólo él es
responsable,
recurriendo de la óptica en que vemos y vivimos las cosas en cuanto
somos
miembros de la sociedad, a la óptica en que ellas aparecen cuando
nos
retiramos a nuestra soledad. En la soledad el hombre es su verdad –
en la
sociedad tiende a ser su mera convencionalidad o falsificación. En
la realidad
auténtica del humano vivir va incluído el deber de la frecuente
retirada al fondo
solitario de sí mismo (ORTEGA Y GASSET, 1957a, p,128).
Esse parágrafo corrobora, portanto, a interpretação do
ensimesmamento como
um “imperativo de serenidade”, pois somente na solidão é possível
ao homem adquirir
uma visão clara do que é a sua vida; somente na solidão o homem “é
a sua verdade”.
Em um texto de 1927 chamado Corazón y cabeza já aparece essa ideia
de retirada a um
fundo solitário de si mesmo, uma solidão radical na qual o homem
entra em contato
com a sua verdade mais autêntica. Nele afirma Ortega que em toda
operação do
conhecimento somos dirigidos por um sistema anterior de
preferências, interesses,
afeições, que nos faz dirigir nossa atenção para algumas coisas em
detrimento de outras,
e a partir daí conclui que
sólo coincidimos en lo más externo y trivial; conforme se trata de
más finas
materias, de las más nuestras, que más nos importan, la
incomprensión crece, de
29
suerte que las zonas más delicadas y más últimas de nuestro ser
permanecen
fatalmente herméticas para el prójimo. A veces, como la fiera
prisionera, damos
saltos en nuestra prisión – que es nuestro ser mismo, con ansia de
evadirnos y
transmigrar al alma amiga o al alma amada –; pero un destino, tal
vez
inquebrantable, nos lo impide. Las almas, como astros mudos, ruedan
las unas
sobre las otras, pero siempre las unas fuera de las otras,
condenadas a perpetua
soledad radical. Al menos, poco puede estimarse a la persona que no
ha
descendido alguna vez a ese fondo último de sí misma, donde se
encuentra
irremediablemente sola (ORTEGA Y GASSET, 1944, pp.78-79).
Nesse parágrafo não somente Ortega afirma que o homem de alguma
maneira
possui um fundo último que não compartilha – não pode compartilhar
– com os demais
sobre a base comum da espécie, raça ou época, mas que não é digno
de estima aquele
que nunca se recolheu até esse fundo último e se deparou com a
solidão radical à qual se
encontra condenado. A capacidade de se manifestar plenamente e se
comunicar com os
outros homens é aqui posta em questão por Ortega, não sem a alusão
a uma espécie de
desespero similar ao de uma fera atrás das grades, ansiosa por
rompê-las, alcançar a
liberdade e assim comunicar-se com o outro. A linguagem seria
insuficiente para
estabelecer uma comunicação plena, e no máximo consegue manifestar,
com alguma
aproximação, o que se passa dentro de cada um.13
É grande a tentação de qualificar o pensamento de Ortega como
místico ou
religioso, “uma voz que brada no deserto”, o que pode ser reforçado
pela valoração
positiva que o autor confere ao “homem que desceu ao menos uma vez
ao fundo de si
mesmo” em detrimento daquele que jamais contemplou o seu deserto
existencial. De
fato, não se pode evitar a constatação de que Ortega pouco estima o
homem voltado
inteiramente para os assuntos mundanos – esse “inteiramente” aqui
tem importância
crucial – e tem em alta conta o cultivo da porção “extranatural” da
vida humana, para
ele associada ao desenvolvimento da cultura. Mas não se trata de um
recolhimento pura
13Em La rebelión de las masas Ortega faz alusão também a essa
impossibilidade de entendimento entre os homens. Com o exagero que
lhe é peculiar, Ortega afirma no prólogo que, “dóciles al prejuicio
inveterado de que hablando nos entendemos, decimos e escuchamos tan
de buena fe que acabamos muchas veces por malentendernos mucho más
que si, mudos, procurásemos adivinarnos” (ORTEGA Y GASSET, 1983,
p.13). Por outro lado, é interessante notar que, logo em seguida,
na mesma página, Ortega manifesta seu repúdio a todo livro que não
traga um diálogo latente e que se dirija a um público abstrato, “a
todos e a ninguém”, ou à “humanidade” pura e simplesmente: “Yo
detesto esta manera de hablar y sufro cuando no sé muy
concretamente a quién hablo” (ORTEGA Y GASSET, 1983, p.13). Decerto
Ortega, não obstante a sua reserva em relação ao entendimento mútuo
através da linguagem, não pode ser classificado como um pensador
que escreve para si mesmo, como pode ser percebido pelo seu estilo
claro e eloquente; não por acaso seu primeiro livro, as Meditações
do Quixote, começa com um chamado ao diálogo, logo em seguida à
dedicatória: “Leitor...” (ORTEGA Y GASSET, 1967, p.33).
30
e simplesmente, uma fuga do mundo concreto e um refúgio nas “coisas
do espírito”. O
equilíbrio entre uma vida de pura ação e uma vida contemplativa já
é esboçado desde os
seus escritos de juventude. Por exemplo, em Vieja y nueva política,
conferência
realizada em 1914, ano da formação da “Liga de Educação Política
Espanhola”, grupo
cujo objetivo era fomentar a vitalidade da sociedade espanhola e
combater a estagnação
reinante em sua pátria, Ortega afirma que o trabalho intelectual
consiste em partir das
orientações gerais para chegar com acerto ao concreto, que é o seu
fim; a cultura seria
“esa premeditada, astuta vuelta que se toma con el pensamiento –
que es generalizador
– para echar bien la cadena al cuello de lo concreto” (ORTEGA Y
GASSET, 1973,
p.214). Isso não impede que ele associe, em La rebelion de las
masas, o comportamento
das massas à pura alteração; no prólogo, afirma ele que
La masa en rebeldía ha perdido toda capacidade de religión y de
conocimiento.
No puede tener dentro más que política, una política exorbitada,
frenética, fuera
de sí, puesto que pretende suplantar al conocimiento, a la
religión, a la sagesse
– en fin, a las únicas cosas que por su sustancia son aptas para
ocupar el centro
de la mente humana. La política vacía al hombre de soledad e
intimidad, y por
eso es la predicación del politicismo integral una de las técnicas
que se usan
para socializarlo (ORTEGA Y GASSET, 1983, pp.32-33).
A palavra “religião” aqui não significa necessariamente a
instituição religiosa, a
Igreja Católica, etc., uma vez que Ortega era um homem sem fé –
muito embora,
segundo um comentador, tenha lamentado essa perda da fé, por
acreditar que somente
os homens religiosos são realmente produtivos (KUJAWSKI, 1994,
p.22). O projeto de
construir uma Espanha laica, fundada sobre uma moral laica, já é
perceptível desde os
seus primeiros escritos, e em maior ou menor medida, se manteve
durante toda a sua
obra (em grande parte inspirada pelo ideal de “europeizar” a
Espanha, ou seja, fomentar
o desenvolvimento da educação, da cultura e principalmente da
ciência, raiz profunda
da civilização europeia).14
O que o filósofo quer indicar com a palavra “religião” é a
reflexão, a serenidade,
em uma palavra, o ensimesmamento de que tanto fala. A figura do
homem-massa está
14Cf. MORA, 1958, pp.36-37. Conferir também os artigos de Ortega
“La cuestión moral”, de 1908 – em que ele afirma que o poder
educador das religiões já teria cumprido o seu papel, e deveria ser
substituído pelas virtudes e deveres públicos e sociais trazidos
pela idade moderna: “hay que hacer laica la virtud y hay que
inyectar en nuestra raza la moralidad social” (ORTEGA Y GASSET,
1973, p.55) – e “Catecismo para la lectura de una carta”, de 1910,
em que defende a escola laica (ORTEGA Y GASSET, 1973,
pp.73-81).
31
ligada a um tipo de politicismo irrefletido, expressão de uma mente
totalmente voltada
para o exterior e, portanto, incapaz de ensimesmar-se, retirar-se,
recolher-se, e operar
sobre o mundo com uma atitude consciente e fundamentada em um
conjunto coerente
de ideias. A ação política, como qualquer outro tipo de ação
humana, necessita de uma
elaboração prévia, e o seu exercício é fundamentado em normas,
procedimentos,
trâmites, que legitimam os seus resultados. O perfil do homem-massa
delineado por
Ortega na Rebelión se aproxima do de uma espécie de “cidadão
total”, no qual a esfera
privada encolheu a ponto de não restar quase nada em seu interior a
não ser a política
enquanto tentativa de intervenção irrefletida em todas as áreas
possíveis da vida pública,
da manhã à noite. Deixando de lado a questão da possibilidade ou
não de existência
desse “cidadão total”, o que está em jogo aqui é se é desejável ou
não, para Ortega, um
tipo de homem como esse, levando-se em conta o desenvolvimento
ético e espiritual da
humanidade.15
Em vez de atribuir aos elementos mencionados acima
(ensimesmamento,
serenidade, solidão radical) um viés místico ou religioso, parece
mais fecundo
estabelecer um vínculo entre essa retórica orteguiana e o ponto de
vista aristocrático
abertamente assumido pelo autor desde seus escritos de juventude
até as obras da
maturidade. Esse ponto de vista aristocrático aparece em La
rebelión de las masas na
forma de um tipo humano – o homem-massa – incapaz de fundar
adequadamente a sua
individualidade. Esses aspectos do pensamento orteguiano
justificariam, no entanto,
uma apologia do encerramento do homem em si mesmo e do culto
exacerbado da
própria personalidade em detrimento da tentativa de estabelecer
laços com os demais?
Ou ainda, pode-se associar o pensamento orteguiano a um tipo de
elogio ao
individualismo radical ou mesmo ao egoísmo?
1.2 Dois pontos de vista aristocráticos: Ortega y Gasset e
Friedrich
Nietzsche
15Nesse ponto a posição de Ortega é semelhante à de um autor
contemporâneo, Norberto Bobbio, que chama a atenção, em seu livro O
futuro da democracia, para o fato de que o “cidadão total”
preconizado por alguns defensores contemporâneos da democracia
direta, o ideal de que “todos decidam sobre tudo em sociedades
sempre mais complexas como são as modernas sociedades industriais”,
não seria a meta do “homem total” tal como foi indicada por Marx em
seus escritos de juventude, mas apenas a outra face do Estado
total, “a redução de todos os interesses humanos aos interesses da
pólis, a politização integral do homem, a resolução do homem no
cidadão, a completa eliminação da esfera privada na esfera pública,
e assim por diante” (BOBBIO, 2000, pp.54-55).
32
Seria interessante tentar um cruzamento entre a filosofia de Ortega
y Gasset e a
de um autor que muito escreveu a respeito do silêncio e da solidão,
Nietzsche, cuja obra
o pensador ibérico não só conhecia como, sem dúvida, o influenciou
em determinado
momento. Nos prefácios elaborados por Nietzsche para suas obras,
alguns
retroativamente, podem ser encontrados inúmeros exemplos de como o
pensador
alemão compreendia a singularidade de suas vivências interiores
como um impedimento
para a comunicação com os demais em um contexto, por assim dizer,
comum e
gregário. Estão presentes ali as imagens do homem habituado a
percorrer um caminho
singular, a viver a aventura do pensamento livre de preconceitos
morais, a viver “nos
montes” e ver tudo o mais abaixo de si, etc.16 Além disso, é
possível extrair dos textos
de Nietzsche diversos elementos que se aproximam dos temas tratados
por Ortega,
como a contraposição entre minorias e massas, a aristocracia, o
perspectivismo, o
vitalismo, etc.
A comparação entre os dois autores não é gratuita: ambos guardam
certa reserva
em relação ao ideal democrático de igualdade entre os homens, e
vêem nas diversas
gradações entre indivíduos uma característica natural de todo
agrupamento humano.
Ortega vê na capacidade de assumir a solidão radical na qual todos
estamos encerrados
um sinal do homem da minoria e no puro deixar-se levar pelas
circunstâncias, na pura
alteração, um comportamento primitivo e contrário à cultura;
Nietzsche vê na
necessidade imperiosa de isolamento o sinal de um homem de “gosto
superior”, e
afirma que “o homem pertencente à elite procura instintivamente sua
torre de marfim,
um baluarte que o libere da massa, do vulgo, da multidão”
(NIETZSCHE, 1977, p.45).
Mas em Nietzsche esse isolamento é o isolamento do espírito livre –
livre da
moralidade, da distinção entre o bem e o mal – que não consegue
comunicar-se com os
demais pelo grau extremo de dissonância de suas próprias valorações
em relação
àquelas do homem comum, a ponto do filósofo alemão, em tom
confessional, afirmar
no §30 de Além do bem e do mal, texto de 1886, ser difícil “evitar
que nossas visões
mais elevadas pareçam loucuras e até crimes, quando chegam a
ouvidos que não são
capazes de compreendê-las” (NIETZSCHE, 1977, p.49).17 O pathos da
distância
16Cf., por exemplo, o prefácio a Ecce homo (NIETZSCHE, 1995, p.18)
e os prólogos de O anticristo (NIETZSCHE, 2007, p.9) e Aurora
(NIETZSCHE, 2004, pp.9-10). 17É possível lembrar aqui do personagem
Raskólhnikov, de Dostoiévski, cuja obra era conhecida e admirada
por Nietzsche. Na brilhante passagem do diálogo com o juiz de
instrução Porfíri Pietróvitch, em Crime e castigo, afirma o
estudante que os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza,
em “vulgares” e “extraordinários”, e que “todos os indivíduos, não
só os grandes, como também aqueles que se afastam um pouco da
vulgaridade, isto é, aqueles que são capazes de dizer qualquer
coisa de novo,
33
nietzscheano se configura em uma perspectiva na qual a altitude em
que o observador se
encontra faz com que todos os males humanos percam o seu caráter de
tragédia: “No
cimo de certos cumes mesmo a própria tragédia deixa de parecer
trágica”
(NIETZSCHE, p.1977, p.50).
Sabe-se o quanto alguns pontos da obra nietzscheana são
controversos. Se por
um lado é discutível a sua contribuição ideológica para o
desenvolvimento do
nazismo,18 não podem ser simplesmente ignoradas passagens em que
ele apresenta uma
noção de aristocracia na qual as diferenças entre os homens servem
como justificativa
para a exploração de uma camada da sociedade sobre outra, em alguns
momentos
extrapolando para uma apologia da escravidão. Domenico Losurdo, em
Nietzsche: o
rebelde aristocrata: biografia intelectual e balanço crítico, um
trabalho de fôlego no
qual passa em revista toda a obra nietzscheana, na contramão de
outras interpretações
que procuram ver no filósofo um pensamento assistemático,
apolítico, individualista e
quiça libertário, sustenta a existência de uma plataforma política
subjacente desde os
seus primeiros escritos. Assim, aponta como pano de fundo, por
exemplo, de uma obra
como O nascimento da tragédia pelo espírito da música (1872), a
reação aos
movimentos operários e um apelo à unidade primordial que justifica
a escravidão de
inúmeros seres em benefício de uma casta de gênios, cuja criação
seria o objetivo de
toda a civilização. Ao apontar para as forças dionisíacas
borbulhantes sob o manto
apolíneo de serenidade e equilíbrio e destacar a visão grega da
tragédia inerente à
existência, Nietzsche reforça um pessimismo viril que se manifesta
na recusa à
possibilidade de felicidade neste mundo. Assim,
o alvo da polêmica de Nietzsche é este: a seus olhos, uma visão que
ignore a
‘horrenda profundeza’ como fundamento da beleza e serenidade
grega,
permanece presa não só à ‘pura superfície’, mas também ao
‘presente’: quer
dizer que ela própria está contagiada pela subversão moderna que se
deve, ao
contrário, represar e bloquear (LOSURDO, 2009, p.63).
teriam a obrigação, pela sua própria natureza, de serem
infalivelmente criminosos...em maior ou menor grau, naturalmente”
(DOSTOIÉVSKI, 2011, p.286). Vale ressaltar, no entanto, que, para o
personagem, esse “direito ao crime” é válido somente com o objetivo
de destruir o presente em nome de alguma coisa melhor, ou seja,
para a execução de um desígnio possivelmente “salvador” para a
humanidade; portanto, ainda assim não por motivos egoísticos, mas
com um propósito transcendente. 18Se entendemos o nazismo como
essencialmente pan-germanismo e anti-semitismo, podem ser
destacados diversos trechos da obra do pensador alemão onde ele
critica a Alemanha, os nacionalismos e o anti-semitismo. Veja-se,
por exemplo, quanto à Alemanha, o §11 de Além do bem e do mal e o
§23 de Crepúsculo dos ídolos; quanto ao nacionalismo, o §377 de A
gaia ciência; e, quanto ao problema dos judeus, o §475 de Humano,
demasiado humano.
34
Sob esse ponto de vista é possível compreender como a tragédia pode
deixar de
parecer trágica: é a unidade primordial de tudo o que existe,
oculto sob o manto da
multiplicidade e pluralidade dos indivíduos, que recobre de beleza
e equilíbrio apolíneos
o sacrifício de uma massa de trabalhadores – os escravos modernos –
em benefício da
produção de indivíduos “superiores”: “Esta transfiguração e esta
identificação empática
com o todo torna tolerável aquele sacrifício de inumeráveis
indivíduos sem o qual a
civilização não é pensável” (LOSURDO, 2009, p.66). A
individualidade apregoada por
Nietzsche, portanto, é a individualidade do homem superior,
pertencente à elite: quando
critica o cristianismo e o socialismo e vincula-os ao instinto de
rebanho, Nietzsche está
preocupado em manter livre o caminho para o desenvolvimento do
indivíduo superior
por meio da despersonalização (leia-se ausência de individualidade)
do homem
pertencente ao rebanho: “Nietzsche o condena [o socialismo] porque,
com a sua
‘agitação individualista’ ele visa ‘tornar possíveis muitos
indivíduos’. Podemos
observar uma ambivalência análoga no julgamento relativo ao
cristianismo”
(LOSURDO, 2009, p.976). Assim, para Losurdo, “pode-se ler Nietzsche
em perspectiva
individualista só sob a condição de lê-lo pela metade” (LOSURDO,
2009, p.978).19
A ideia de que existe uma plataforma política subjacente à
filosofia
nietzscheana pode ser questionada, se se entende “plataforma
política” como a adoção
de uma agenda política determinada ou uma filiação a alguma
corrente de pensamento
político específica.20 Mas o fato é que, no período em que
Nietzsche viveu, a escravidão
era ainda uma prática legítima em muitos países, e assim, palavras
como as que se
seguem, de A gaia ciência (1882), não podem ser tomadas de forma
leviana:
...nós simplesmente não consideramos desejável que o reino da
justiça e da
concórdia seja estabelecido na Terra [...], refletimos sobre a
necessidade de
novas disposições, também de uma nova escravatura – pois cada
fortalecimento
e elevação do tipo “homem” implica também uma nova espécie de
escravidão –;
não é verdade que com tudo isso não podemos nos sentir em casa numa
época
19Mais adiante afirma ele que “Se por individualismo se entende o
reconhecimento de cada indivíduo, independentemente da renda, do
sexo ou da raça, como sujeito provido, no plano moral, de igual
dignidade humana e titular, no plano político, de direitos
inalienáveis, não há autor mais hostil ao individualismo do que
Nietzsche” (LOSURDO, 2009, p.984). 20Conferir, por exemplo, o §377
de Gay