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Ens. Tecnol. R., Londrina, v. 1, n. 2, p. 258-271, jul./dez. 2017. Página | 258 ISSN: 2594-3901 http://periodicos.utfpr.edu.br/etr O inglês na educação básica brasileira: sabemos sobre ontem; e quanto ao amanhã? 1 RESUMO Gladys Quevedo-Camargo [email protected] orcid.org/0000-0002-4802-5296 Universidade de Brasília (UNB), Brasília, Distrito Federal, Brasil Gutemberg Silva [email protected] Faculdade Anhanguera, Valparaíso de Goiás, Goiás, Brasil Este artigo apresenta um panorama do ensino de inglês na escola básica pública brasileira por meio da sua estrutura e do histórico do ensino de línguas estrangeiras no Brasil através dos documentos oficiais que incidiram – e ainda incidem – sobre o sistema educacional brasileiro, do contexto das escolas e do perfil dos professores de inglês. O olhar para a estrutura e o percurso histórico revelam a perda gradativa da importância do ensino de línguas estrangeiras na educação básica brasileira, bem como o estabelecimento de um sistema descentralizado, no qual há pouca regulamentação e consequente dificuldade para verificação e acompanhamento da qualidade do ensino. Com respeito às escolas públicas, destaca-se a vulnerabilidade social a que estão expostas, gerando um sentimento de irrelevância com relação à disciplina de inglês e de desvalorização do trabalho do professor. E quanto ao professor, salienta-se a necessidade de políticas permanentes de formação que atendam efetivamente as demandas dos professores das diferentes regiões brasileiras. Assim, tendo em mente a crescente demanda de internacionalização e inserção social, o ontem do ensino de inglês na educação básica pública brasileira tende a comprometer seriamente o amanhã dos jovens brasileiros caso os desafios suscitados por esse panorama não sejam enfrentados. PALAVRAS-CHAVE: Educação básica; Língua inglesa; Ensino de inglês; Escola pública; Professor de inglês.

O inglês na educação básica brasileira: sabemos sobre

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Ens. Tecnol. R., Londrina, v. 1, n. 2, p. 258-271, jul./dez. 2017.

Página | 258

ISSN: 2594-3901 http://periodicos.utfpr.edu.br/etr

O inglês na educação básica brasileira: sabemos sobre ontem; e quanto ao amanhã?1

RESUMO

Gladys Quevedo-Camargo [email protected] orcid.org/0000-0002-4802-5296 Universidade de Brasília (UNB), Brasília, Distrito Federal, Brasil

Gutemberg Silva [email protected] Faculdade Anhanguera, Valparaíso de Goiás, Goiás, Brasil

Este artigo apresenta um panorama do ensino de inglês na escola básica pública brasileira por meio da sua estrutura e do histórico do ensino de línguas estrangeiras no Brasil através dos documentos oficiais que incidiram – e ainda incidem – sobre o sistema educacional brasileiro, do contexto das escolas e do perfil dos professores de inglês. O olhar para a estrutura e o percurso histórico revelam a perda gradativa da importância do ensino de línguas estrangeiras na educação básica brasileira, bem como o estabelecimento de um sistema descentralizado, no qual há pouca regulamentação e consequente dificuldade para verificação e acompanhamento da qualidade do ensino. Com respeito às escolas públicas, destaca-se a vulnerabilidade social a que estão expostas, gerando um sentimento de irrelevância com relação à disciplina de inglês e de desvalorização do trabalho do professor. E quanto ao professor, salienta-se a necessidade de políticas permanentes de formação que atendam efetivamente as demandas dos professores das diferentes regiões brasileiras. Assim, tendo em mente a crescente demanda de internacionalização e inserção social, o ontem do ensino de inglês na educação básica pública brasileira tende a comprometer seriamente o amanhã dos jovens brasileiros caso os desafios suscitados por esse panorama não sejam enfrentados.

PALAVRAS-CHAVE: Educação básica; Língua inglesa; Ensino de inglês; Escola pública; Professor de inglês.

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INTRODUÇÃO

Desde 1855, data do início oficial do ensino de línguas estrangeiras (LE) no Brasil, até 2017, tivemos uma série de documentos oficiais que incidiram sobre o sistema educacional brasileiro e, consequentemente, no ensino da língua inglesa das escolas regulares do país. Tendo como pano de fundo algumas reflexões suscitadas pelos desafios e pelas mudanças pelas quais tem passado o ensino da língua inglesa nas escolas brasileiras ao longo da história, neste artigo apresentamos um panorama do ensino de inglês na escola pública brasileira, incluindo os documentos oficiais. Baseando-nos em um relatório publicado pelo British Council em 2015, refletimos sobre possíveis impactos das prescrições (ou ausências delas) para o trabalho dos professores de inglês e para a sociedade em geral. Para cumprir tal objetivo, além desta introdução, apresentamos três partes. Na primeira, tratamos da estrutura do ensino de inglês na educação básica e fazemos um brevíssimo histórico do ensino de línguas estrangeiras no Brasil por meio dos documentos oficiais que incidiram – e ainda incidem – sobre o sistema educacional brasileiro. Na segunda, discorremos sobre o contexto das escolas, e na terceira, abordamos o perfil dos professores de inglês. Encerramos o texto discutindo alguns desafios e algumas reflexões decorrentes dos aspectos tratados.

CONHECENDO A ESTRUTURA E O PERCURSO DO ENSINO DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA DO BRASIL

No Brasil, as decisões relativas ao ensino do inglês são tomadas em duas instâncias. A primeira é a federal. Nessa instância há três documentos fundamentais: a Constituição Federal, que garante o acesso à educação e a universalização do Ensino Básico; a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (BRASIL, 1996), que regula a estrutura e define a oferta do ensino em nível nacional, estadual e municipal, e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1998; BRASIL, 2000), que orientam as secretarias estaduais e municipais quanto ao conteúdo a ser ensinado. A instância federal também é responsável por ofertar materiais didáticos gratuitamente através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Até o início de 2017, estava em vigor o Art. 26 – § 5º da LDB de 1996, que estabelecia que, na parte diversificada do currículo era obrigatório, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna. A escolha da língua ficava a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades que a instituição possuía. No entanto, a Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 alterou esse parágrafo e instituiu a obrigatoriedade do inglês no currículo do ensino fundamental a partir do sexto ano.

A segunda instância na qual as decisões relativas ao ensino do inglês são tomadas é a estadual/municipal, através das suas secretarias, que têm autonomia para definir como funcionam desde que sigam o que preconizam a LDB e os PCNs.

Essas instâncias podem ser visualizadas na figura a seguir.

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Figura 1 - Instâncias decisórias da educação básica do Brasil

Fonte: British Council (2015, p.8).

Embora nossas atenções se voltem para os documentos mais recentes que incidem sobre a educação básica, como a LDB, os PCNs e a Lei nº 13.415/2017, a história do ensino das línguas estrangeiras (LE) no nosso país mostra que houve muitos outros documentos que trouxeram mudanças à estruturação do ensino de línguas. No sítio eletrônico da Revista HELB - História do Ensino de Línguas no Brasil2 - há uma linha do tempo, onde verificamos que o início oficial do ensino de línguas estrangeiras no Brasil ocorreu em 1855 e organizava-se da seguinte forma:

Figura 2 – Organização do ensino de LE no Brasil em meados do século XIX

Fonte: Autoria própria (2017).

O foco era na gramática e tradução, metodologia de ensino comum à época, cujo objetivo era possibilitar aos alunos o acesso a textos literários escritos nas línguas estudadas. Essa forma de ensinar as línguas estrangeiras ficou conhecida como Método Clássico (RICHARDS; RODGERS, 1986; BROWN, 2007; DONNINI; PLATERO; WEIGEL, 2010), e consistia em exercícios de aplicação das regras de gramática, ditados, tradução e versão de textos. Consequentemente, as provas escritas, que configuravam o principal instrumento avaliativo, verificavam apenas a aquisição de regras gramaticais e vocabulário.

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Em 1915, o ensino do grego clássico foi retirado do currículo e o ensino de línguas obrigatórias foi reduzido para duas disciplinas: francês e inglês ou alemão. Em 1931, com a Reforma Francisco Campos, houve a diminuição da carga horária do latim e o incentivo ao ensino das línguas estrangeiras modernas (LEMs). Essa reforma, além de redefinir o segundo grau (atual ensino médio), foi responsável por trazer o Método Direto para o Brasil, não apenas priorizando o ensino de línguas vivas, mas também determinado como elas deveriam ser ensinadas (GOMES, 2016).

O Método Direto foi uma metodologia bastante ousada para sua época, pois enfatizava a linguagem oral e não mais a escrita. A proposta era desenvolver o processo de ensino-aprendizagem na própria língua-alvo, ensinando a gramática de forma indutiva, evitando a todo custo o uso da língua materna e o mecanismo de tradução (LEFFA, 1988).

Em 1942, a Reforma Capanema, por intermédio da sua Lei Orgânica do Ensino Secundário, instituiu o ginásio, com duração de 4 anos, e o colegial, com duração de 3 anos, este oferecido em duas modalidades: clássico e o científico. Essa reforma destinou 35 horas semanais ao ensino de idiomas, o que representava 19,6% em relação a todo currículo, ou seja, 9,6 % a mais que na Reforma Francisco Campos, considerando-se apenas as línguas modernas (MACHADO; CAMPOS; SAUNDERS, 2007). No ginásio, foram incluídas como disciplinas obrigatórias o latim, o francês e o inglês; no colegial, o francês, o inglês e o espanhol; e no curso clássico, o latim e o grego.

A Reforma Capanema tinha três objetivos: os instrumentais (escrever, ler, falar e compreender); os educativos (desenvolver hábitos de observação e reflexão); e os culturais. Na prática, entretanto, essa orientação do Ministério era pouco ou nada seguida nas escolas, que ainda empregavam o sistema “leia e traduza” e reduziam o Método Direto a isso, conforme apontado por Machado, Campos e Saunders (2007).

Em 1961, a publicação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (BRASIL, 1961) promoveu a descentralização do ensino. As línguas estrangeiras deixaram de ser obrigatórias e passaram a ser optativas/complementares. Essa decisão ocasionou uma gradativa diminuição do número de línguas estrangeiras nas escolas. Além de desobrigar o Estado a oferecer ensino de língua estrangeira, a LDB de 1961 deixou a responsabilidade do ensino de idiomas para os estados e não prescrevia qual método deveria ser privilegiado no ensino de LEMs. Na prática, o ensino de LEM nas escolas ficou à deriva. Nesse sentido,

[...] a falta de obrigatoriedade do ensino de línguas nas escolas, formalmente colocada na LDB de 1961, foi um retrocesso para o desenvolvimento do ensino de língua estrangeira no Brasil. Apesar de todos os setores da sociedade reconhecerem a importância do ensino de língua estrangeira, as políticas educacionais não asseguraram uma inserção de qualidade desse ensino em nossas escolas. Em busca dessa qualidade, as classes privilegiadas sempre procuraram garantir a aprendizagem de línguas nas escolas de idiomas ou com professores particulares, mas os menos favorecidos continuaram à margem desse conhecimento e habilidades de uso correspondentes (MACHADO; CAMPOS; SAUNDERS, 2007, s/p).

Em 1971, houve uma nova LDB (BRASIL, 1971), que fez a distinção entre 1º e 2º graus (que posteriormente passaram a se chamar fundamental e médio, respectivamente). Quanto ao ensino das LEMs, foram mantidas as recomendações da lei anterior. Em termos de legislação, as LEMs só voltaram a ser obrigatórias na LDB de 1996. Ainda assim, essa versão da lei determinou a obrigatoriedade de pelo menos uma língua, ou seja, grande parte dos estados interpretou essa orientação como “apenas uma língua”.

A LDB de 1996 incluía o ensino obrigatório de uma língua estrangeira a partir da 5a série (atual 6º ano) e de pelo menos uma língua estrangeira no ensino médio, ficando a critério da comunidade escolar escolher a língua. Nesse documento, o ensino deveria ser

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ministrado com base no princípio de “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (BRASIL, 1996, Art.3o Inciso III).

Na visão de Abreu e Batista (2010, s/p), a publicação

[...] da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (BRASIL, 1996) foi um marco na educação brasileira ao programar mudanças significativas quanto aos direcionamentos institucionais; aos objetivos de cada nível de formação escolar; ao enfatizar a formação da cidadania, do indivíduo crítico e da autonomia; bem como ao formalizar um currículo de base comum em nível nacional para a educação básica. [...] uma dessas modificações [...] foi a retomada do status do ensino de língua estrangeira moderna (inglês, espanhol, francês, italiano, etc.), que até então era tido como atividade complementar e sem relevância na construção da identidade do aprendiz. Logo, a LDB tenta recuperar a importância da LE como disciplina de formação cidadã dos sujeitos. Além de galgar espaço referente à sua oferta no ensino fundamental e no ensino médio, pautados nos artigos 26 e 36 da lei, por exemplo. Mas, por se tratar de uma lei e ser concisa e objetiva nos seus propósitos, tornou-se necessário lançar documentos que complementassem ou orientassem melhor as ações educativas propostas (ABREU; BATISTA, 2011, s/p).

Para desempenhar esse papel complementar mencionado por Abreu e Batista, vieram os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (PCN-EF) (BRASIL, 1998), esboçando caminhos pelos quais o ensino de línguas estrangeiras poderia responder às demandas dos estudantes, descritas como centralidade na leitura e escrita, ênfase no letramento, e valorização dos conhecimentos de mundo. Como já dito, esse documento determinava que, na parte diversificada do currículo escolar, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna deveria ser obrigatoriamente incluída a partir da quinta série. A escolha de qual língua seria ensinada ficaria a cargo da comunidade escolar, respeitando-se as possibilidades da instituição (BRASIL, 1998, p. 57).

Segundo Abreu e Batista (2011), os PCN de 1998 apresentavam os primeiros encaminhamentos ao interacionismo social, visando o “engajamento discursivo”, no sentido de “autopercepção do aluno como ser humano e como cidadão” (BRASIL, 1998, p.15). Portanto, pelo menos em termos legais, o ensino de língua deveria estar caminhando para o emprego de atividades e avaliações que estimulassem o uso prático do idioma em diferentes situações comunicativas.

Dois anos após a publicação dos PCN-EF surgem os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCN-EM) (BRASIL, 2000) e as línguas estrangeiras passam a compor a Parte II - Linguagens, códigos e suas tecnologias. A Seção IV, Art. 36 Inciso III, embora mantendo a redação do documento anterior, sobre a inclusão de uma língua estrangeira como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, trazia a novidade de que uma segunda língua poderia ser ofertada, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição (BRASIL, 2000, p.33).

O quqdro a seguir resume o percurso de reformas e documentos acima descritos.

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Quadro 1 - Panorama histórico do ensino de LEM no Brasil

Ano Fato Consequências para o sistema educacional

Orientação metodológica

Objetivos de ensino e aprendizagem

1855 Início do ensino das LE no Brasil

Francês, inglês e alemão – 3 anos obrigatórios no ensino secundário; Latim e grego - 1 ano obrigatório; Alemão e italiano - 1 ano facultativo.

Método clássico ou gramática-tradução

Gramática e vocabulário; exercícios e tradução.

1915 Redução de disciplinas no currículo obrigatório

Extingue-se o grego; latim permanece; 2 disciplinas obrigatórias (francês + inglês ou alemão).

Idem Idem

1931 Reforma Francisco Campos

Diminuição da carga horária do Latim.

Método direto Desenvolvimento da oralidade; Ensino por meio da língua-alvo.

1941 Reforma Capanema

Ginásio (4 anos) e colegial (3 anos - clássico e científico); 35 horas/semana para o ensino de idiomas; Francês obrigatório nos 4 anos do ginásio e nos 2 primeiros anos do colegial; Inglês obrigatório a partir do segundo ano do ginásio e nos dois primeiros anos do colegial. Espanhol obrigatório no primeiro ano do colegial. Latim mantido no colegial clássico e científico; Grego mantido no colegial clássico.

Idem Ensino por meio da língua-alvo; desenvolvimento da oralidade; objetivos instrumentais, educativos e culturais.

1961 Lei de Diretrizes e Bases - LDB

Línguas estrangeiras passam a ser optativas ou complementares

Sem orientação explícita

Não determinados

1971 Lei de Diretrizes e Bases - LDB

A mudança de ensino primário para 1º grau e

Idem Idem

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ensino secundário para 2º graus. Sem alterações no ensino das LEMs.

1996 Nova Lei de Diretrizes e Bases

Obrigatoriedade de pelo menos uma estrangeira a partir da 5 série (atual 6º ano) e de pelo menos uma língua estrangeira no Ensino Médio, ficando a critério da comunidade escolar escolher a língua.

Idem Idem

1998 Parâmetros curriculares nacionais – Ensino Fundamental

A inclusão de habilidades orais no currículo é condicionada à possibilidade de uso efetivo da língua pelo aprendiz

Idem Uso das LEM em situações comunicativas

2000 Parâmetros curriculares nacionais – Ensino Médio

Enfatiza-se a importância da aprendizagem da língua na função social.

Idem Incentivar o uso das LEM em práticas sociais

2017 Lei 13.415/17

Instaura a obrigatoriedade da oferta do inglês a partir do 6o ano.

Idem Idem

Fonte: Autoria própria (2017).

Ao longo desse percurso de 162 anos, o ensino de línguas na escola pública brasileira ficou mais pobre. Em termos de orientação metodológica, o método gramática-tradução parece nunca ter deixado de existir, posto que o método direto não surtiu o efeito desejado. A ênfase no uso da língua (estrangeira) para comunicação e no seu caráter social a partir do final da década de 1990, embora sinalize um avanço em termos de ensino, também não surtiu (ainda?) os efeitos desejados, talvez devido à falta de orientações explícitas em termos metodológicos.

Na sequência, voltamos nosso olhar para o ensino do inglês nas escolas públicas no Brasil e seus problemas.

O INGLÊS NAS ESCOLAS PÚBLICAS BRASILEIRAS

De acordo com um relatório publicado pelo British Council (2015), são três os principais problemas relativos ao ensino de inglês na educação básica pública brasileira. O primeiro é que, na sua grande maioria, as escolas públicas se constituem em ambientes de alta vulnerabilidade social no qual os alunos convivem com violência, furtos, degradação

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do espaço físico e, consequentemente, medo, insegurança, e sentimentos de desconforto e não pertencimento.

O segundo problema diz respeito ao fato de as turmas serem excessivamente numerosas e heterogêneas. Obviamente tal realidade impacta fortemente no trabalho do professor, pois dificulta muito, para não dizer que impossibilita, um ensino que esteja coerente com o que preconizam os PCNs - uso da língua inglesa para comunicação e práticas sociais, particularmente com relação ao trabalho com a oralidade.

O terceiro problema se refere às condições de trabalho dos professores de inglês, que podem ser analisadas sob três aspectos: em primeiro lugar, as condições de contratação desses profissionais. De acordo com os dados apresentados nesse relatório de 2015, 27% dos professores da rede pública em todo o país eram temporários, ou seja, tinham contratos instáveis, cobriam as lacunas dos professores concursados, lecionavam em várias escolas para preencher a carga horária e, não raramente, pegavam as turmas que eram consideradas piores. Tal situação desestimularia a criação de vínculos entre os professores e os alunos e não ofereceria continuidade ao aprendizado (BRITISH COUNCIL, 2015). Em segundo lugar, há a questão da extensa jornada de trabalho, indo muito além da sala de aula. O relatório traz o exemplo de um dos professores entrevistados, que "afirmou trabalhar semanalmente com 19 turmas de cerca de 45 alunos cada, totalizando mais de 800 alunos" (BRITISH COUNCIL, 2015, p. 9). O terceiro e último aspecto que compõe o problema das condições de trabalho dos professores de inglês da escola pública é a questão salarial. Em média, os professores do setor público ganham aproximadamente 58% do que ganha um professor no setor privado, e o valor recebido corresponde ao tempo em classe. Não há remuneração para planejamento das aulas, elaboração de provas, correção dos trabalhos dos alunos ou das provas aplicadas.

Os três problemas mencionados não são, obviamente, exclusivos do ensino do inglês. São situações postas pelo sistema público de ensino como um todo em todas as esferas - federal, estadual ou municipal. No entanto, no caso específico do ensino do inglês, eles impactam na visão tanto de alunos quanto de professores com relação à relevância da disciplina no currículo e causam desmotivação e desinteresse em ambas as partes. Na próxima seção, voltamos nossos olhos para o professor de inglês da escola pública.

O PROFESSOR DE INGLÊS DA ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA

Em termos de perfil demográfico, de acordo com o Censo da Educação Básica de 2013 utilizado pelo British Council em seu relatório, 81% dos professores de inglês no Brasil são mulheres, e 55% de todos os profissionais brasileiros tem mais de 40 anos. É, portanto, um grupo predominantemente feminino e maduro.

Em termos de escolaridade, a Figura 3 mostra que a maioria tem ensino superior.

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Figura 3 - Formação dos professores de inglês

Fonte: British Council (2015, p. 12).

No entanto, apesar de a maioria dos professores de inglês ter ensino superior, apenas 39% possuem formação específica na língua inglesa. O fato de a maioria não ter formação específica em língua inglesa "pode ser um dos fatores que explicam a dificuldade que alguns professores têm com a própria disciplina" (BRITISH COUNCIL, 2015, p. 11). Outro fator seria o pouco contato com a língua inglesa, principalmente a falada, apontada por 55% dos quase 1300 professores pesquisados pelo British Council. Além disso,

[...] a maior exigência em torno das outras disciplinas (para as quais, diferentemente do que ocorre com a língua estrangeira, há avaliações oficiais, por exemplo) fazem com que o tempo para se dedicar à disciplina de inglês seja menor, comprometendo, assim, a qualidade das aulas e a formação dos alunos (BRITISH COUNCIL, 2015, p. 14).

PARA ENCERRAR, DESAFIOS E REFLEXÕES

Neste artigo, sem intencionar esgotar assunto tão amplo, expusemos a estrutura e o percurso do ensino de inglês na educação básica do Brasil de uma forma bastante breve. Evidenciamos as perdas sofridas pela língua estrangeira em termos de espaço e importância na educação brasileira. Tratando especificamente do inglês, há de se registrar alguns ganhos resultantes de documentos e legislação mais recentes. No entanto, a estrutura descentralizada do seu ensino pode ser apontada como uma das responsáveis pelos problemas que enfrentamos há décadas. Segundo o relatório do British Council (2015, p. 8), “[o ensino do inglês] é pouco regulamentado no Brasil e sua oferta apresenta pouca padronização. Esse cenário dificulta a implementação de processos de avaliação e

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mensuração do ensino do inglês em nível nacional". O relatório menciona ainda que o fato de não termos indicadores para o ensino do inglês, como temos o IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - e o SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica - para português e matemática, "reforça a baixa importância conferida à língua estrangeira dentro da grade curricular e torna mais difícil acompanhar a qualidade da oferta e gerar estratégias comuns para melhorar o seu aprendizado" (BRITISH COUNCIL, 2015, p. 8). Esse, portanto, poderia ser apontado como um dos grandes desafios do inglês na educação básica pública: tendo em mente o tamanho do nosso país e a diversidade de contextos em que a educação básica acontece, discutir como regulamentar, padronizar, avaliar, mensurar e melhorar a qualidade do ensino de inglês.

Com respeito às escolas, a vulnerabilidade social é, possivelmente, o desafio maior, pois influencia todos os demais aspectos relativos à comunidade escolar e ao processo de ensino e aprendizagem do inglês (e de todas as disciplinas!). Em um ambiente socialmente hostil e perigoso, que muitas vezes carece de itens básicos de sobrevivência, ler ou falar outra língua torna-se algo distante, irreal e desnecessário. Vivemos uma situação em que, de modo geral, professores e alunos simplesmente buscam atender ao que reza a lei; os primeiros, porque ministram suas aulas apesar dos poucos recursos, das salas lotadas e da consequente desmotivação e insatisfação por não conseguirem realizar um trabalho satisfatório; os segundos, porque se fazem minimamente presentes nas aulas. A função potencial da língua inglesa como meio de acesso a conhecimentos, culturas e outras formas de viver e pensar perde-se por completo, enquanto, a despeito do discurso predominante de que saber inglês é importante, a disciplina, o trabalho do professor e o próprio professor são desvalorizados por alunos, professores de outras disciplinas, autoridades escolares, autoridades educacionais, e pela sociedade em geral. É esse, portanto, um outro grande desafio: discutir o papel do ensino de inglês na formação dos jovens brasileiros (BRITISH COUNCIL, 2015).

Com relação aos professores, o principal desafio é, sem dúvida, repensar a formação, tanto inicial quanto continuada, principalmente no que diz respeito aos conhecimentos linguísticos e à proficiência na língua inglesa. Afinal, é essencial que o professor conheça bem seu objeto de trabalho! Além do mais, o fato de haver professores de outras áreas lecionando inglês por falta de professores especializados (BRITISH COUNCIL, 2015) reforça a necessidade de formar mais professores em regiões específicas e de desenvolver políticas permanentes de formação continuada que atendam às necessidades dos professores de inglês.

Todos os aspectos levantados exercem impacto na inevitável inserção do Brasil em um contexto globalizado, posto que a comunicação em inglês é elemento-chave dessa inserção. A internacionalização, uma das filhas mais novas da globalização, bateu à porta do sistema educacional brasileiro e começou a entrar pelo ensino superior. No entanto, é essencial que nossos olhos se voltem para a educação básica, pois é nela que se deve construir a base sólida para que nossos jovens possam participar de forma plena no chamado mundo globalizado por meio da interação em língua inglesa. Temos, assim, um retrato do ontem; o amanhã do ensino e aprendizagem de inglês na educação básica brasileira é, infelizmente, uma grande incógnita.

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English in the Brazilian public education: we know about yesterday; what about tomorrow?

ABSTRACT

This article presents an overview of the teaching of English in the Brazilian primary and secondary public school by means of its structure and history of the teaching of foreign languages in Brazil based on official documents that influenced - and still influence - the Brazilian educational system, of the schools' context and the teachers' profile. Both the structure and the history reveal a gradual loss of importance in the teaching of foreign languages in the Brazilian primary and secondary public education, as well as the establishment of a decentralized system in which there is little regulation and therefore difficulties to verify and follow teaching quality. As for the schools, the social vulnerability to which they are exposed to is highlighted, as it leads to feelings of irrelevance in relation to the English subject and of degradation of teachers' work. As for the teacher, the need for permanent teacher education policies that effectively meet teachers' demands in the different Brazilian regions is emphasized. Therefore, bearing in mind the growing demands posed by internalization and social insertion, the yesterday of the Brazilian primary and secondary public school English teaching is bound to seriously compromise young Brazilians' tomorrow in case the challenges stemming from yesterday are not met.

KEYWORDS: Primary and secondary education; English; Teaching English; Public school; Teacher of English.

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NOTAS

1.Este texto foi desenvolvido a partir de reflexões suscitadas na disciplina Conceitos de Gramática no Ensino de Línguas, ministrada em 2016 no Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada (PGLA) da Universidade de Brasília.

2 O endereço eletrônico do sítio da Revista HELB - História do Ensino de Línguas no Brasil é <www.helb.org.br>.

REFERÊNCIAS

ABREU, K. F.; BATISTA, L. M. T. R. Reflexões sobre a habilidade de leitura no ensino de língua estrangeira: o que dizem os documentos governamentais? Revista HELB - História do Ensino de Línguas no Brasil, v. 5, n. 5, 2011. Disponível em: <http://www.helb.org.br/index.php/revista-helb/ano-5-no-5-12011/193-reflexoes-sobre-a-habilidade-de-leitura-no-ensino-de-lingua-estrangeira-o-que-dizem-os-documentos-governamentais> Acesso em: 01 dez. 2017.

BRASIL. Lei Nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4024.htm>. Acesso em: 20 out. 2017.

BRASIL. Lei Nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm>. Acesso em: 20 out. 2017.

BRASIL. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm>. Acesso em: 20 out. 2017.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017.

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Recebido: 11 dez. 2017.

Aprovado: 22 dez. 2017.

DOI: http://dx.doi.org/10.3895/etr.v1n2.7500. Como citar:

QUEVEDO-CAMARGO, G.; SILVA, G. O inglês na educação básica brasileira: sabemos sobre ontem; e quanto ao amanhã?. Ens. Tecnol. R., Londrina, v. 1, n. 2, p. 258-271, jul./dez. 2017. Disponível em:<https://periodicos.utfpr.edu.br/etr/article/view/7500>. Acesso em: XXX.

Correspondência:

Gladys Quevedo-Camargo

Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução, Universidade de Brasília, ICC Sul, Sala B1-149/64, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília, Distrito Federal, Brasil

Direito autoral:

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