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O IV canto no contexto das Geórgicas

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O IV canto no contexto das Geórgicas

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  • O IV canto no contexto das Gergicas: a cidade das abelhas e o mito de OrfeuProfa. Dra. Elaine Cristina Prado dos SantosUniversidade Presbiteriana Mackenzie

  • A obra Gergicas um poema didtico, arquitetonicamente harmnico, que expressa o momento em que a arte vergiliana alcana a perfeio. Em seus cinco primeiros versos (Geo. I, 1 - 5), o poeta anuncia um plano: o de seu poema em quatro livros. O tema de cada um deles elucidado nestes primeiros versos, com diviso muito clara a respeito da agricultura em quatro partes: 1. o trabalho dos cereais, 2. a arboricultura; 3. o gado e, por fim, 4. as abelhas. Pretende-se, nesta conferncia, apresentar o IV canto das Gergicas, marcado pelo mito de Orfeu e pelo reino das abelhas, demonstrando que a abelha, no poema, a personagem do trabalho que transforma a Natureza de tal forma que se pode vislumbrar sua sociedade como um modelo utpico daquela que Augusto almejava construir. Em suma, procurar-se- demonstrar que as abelhas e Orfeu esto profundamente ligados entre si pela simbologia de sobrevivncia aps a morte, pois segundo Verglio, as abelhas renascem da prpria morte, sua raa imortal, genus immortale manet (Geo. IV, 208). Em suma, poder-se- concluir que Orfeu, como poeta, morre, mas o seu canto e a sua voz so indestrutveis, permanecem imortais.

  • - Verglio levou pelo menos 8 anos na composio das Gergicas, iniciando sua obra, aps as Buclicas, em 37 a.C., e terminando em 29 a. C., quando o poema foi lido por Otvio.

    Nas Gergicas, o poeta Verglio dirige-se aos pequenos proprietrios

    O poema mostra o pequeno campons que cultiva a propriedade com suas prprias mos.

    A exaltao do trabalho e da prece, In primis uenerare deos, um dos pilares filosficos das Gergicas.

  • Em seus cinco primeiros versos, o poeta anuncia a ordenao de um plano, como pode ser ilustrado pelos versos, a seguir:

    (Agora vou cantar o que faz as colheitas frteis, com que astros convm arar a terra, Mecenas, e unir as videiras aos olmeiros; que cuidados exigem os bois, que conduta ( seguir ) para se manter um rebanho, que grande experincia para as parcas abelhas.)

  • Segundo a tradio, Mecenas foi quem sugeriu o poema das Gergicas, cujo ideal responderia a um dos pontos do programa poltico instaurado por Augusto, ou seja, o retorno agricultura. Por meio de diversos comentrios, observa-se muitos considerarem que Verglio obedeceu a uma ordem exemplificada pelas palavras haud mollia iussa, no verso 41 do terceiro canto.

    Grimal (1992, p. 121-122) diz que no importa o sentido preciso das trs palavras, entretanto questiona o sentido de obediente, analisando as trs palavras haud mollia iussa.

  • (Entretanto percorramos as matas das Drades e os bosques intactos,estas so as tuas ordens no fceis , Mecenas.) (Geo. III, 40-41)

    Verifica-se, por meio dos versos transcritos, que os arvoredos e as pastagens das montanhas so virgens, porque nenhum poeta antes de Verglio empreendera cant-los.

  • Dos 2188 versos, nas Gergicas, 700 so destinados tarefa cientfica, enquanto os demais tratam dos argumentos, das invocaes, das digresses, das reflexes filosficas, ou seja, Verglio apresenta muitas digresses, com a preocupao de envolv-las profundamente na obra, a fim de que elas dem uma expresso mais ampla e mais explcita dos motivos ideais.

    No canto I, Verglio apresenta a viso do trabalho, continuando uma tradio que remontava aos tempos longnquos de Roma. A imagem da vida rstica apresentada por ele recai no labor improbus, ou seja, somente o trabalho capaz de vencer todos os obstculos, por ser um estimulante luta obstinada com a terra: labor omnia uicit improbus (Geo.I, 145 - 146 ) (O trabalho obstinado vence todas as coisas).

  • No h terra mais fecunda e rica que a Itlia, nomeada de Saturnia tellus (Geo. II, 173),

    A terra, para Verglio, Iustissima tellus (Geo. II, 460),

    Nas Gergicas, h uma primitiva viso dos ideais morais e ticos da Idade de Ouro

  • (Outrora os velhos Sabinos cultivaram esta vida; Remo e seu irmo cultivaram esta; ....e Roma se tornou a maravilha do mundo, e somente para si cercou com um muro sete cidadelas). (Geo . II 532-535 )

    (Salve, grande me dos frutos, terra Satrnia, grande me dos homens.) (Geo. II, 173-174)

    Ao saudar a magna parens, que a terra Saturnia, Verglio revive a poca da idade de ouro

  • ( muito afortunados agricultores, se eles conhecessem os seus bens! Para eles, longe das armas discordantes, a justssima terra, dela mesma derrama uma alimentao fcil. (Geo. II, 458 - 460)

    A Iustissima tellus d frutos ao homem em troca do esforo que ele investe, revelando-se grandiosa e justa.

    Verglio inicia o quarto canto das Gergicas com uma invocao a Mecenas, apresentando um propsito: tratar dos dons celestiais do areo mel (Geo. IV, 1 - 2),

  • o homem vivia antes na idade urea graas aos frutos espontneos da terra, sem fadiga; no entanto, nesse estgio as qualidades do homem so abafadas.

    O homem da era de Saturno, segundo La Penna (1988, p. 77), est submerso em um torpor, em uma espcie de pesado Veternus. Assim esta felicidade da idade urea no o bem supremo, mas um grave entorpecimento.

  • (O prprio pai no quis que fosse fcil o caminho de cultivar, e por primeiro moveu os campos pela arte, aguando os coraes mortais pelos cuidados, nem tolerou que seu reino se entorpecesse em pesado marasmo.) (Geo. I, 121-124 )

  • Para Verglio, nas Gergicas, o fogo foi retirado (abstrusum, I, 135) dos homens e escondido por Jpiter, para que o homem se esforasse, por meio do trabalho, e redescobrisse, por sua conquista, o fogo. Conseqentemente as artes nasceram e floresceram (Geo. I, 133). A imagem da vida rstica apresentada por Verglio recai sobre seus trabalhos e suas dores. Por meio do trabalho, o homem capaz de superar todas as causas de dificuldades impostas por Jpiter na natureza.

    O livro IV das Gergicas inteiramente dedicado s abelhas, adquirindo essa criao um valor excepcional no poema.

  • Por motivos de arte e de vida, as abelhas despertam admirao: Admiranda tibi leuium spectacula rerum (Geo. IV, 3), pois suas grandezas, costumes, inclinaes e lutas possuem o mais vivo interesse para a vida interior e para a histria do homem.

  • Para os ideais do poeta, neste estgio mais elevado e hierarquizado de vida, as abelhas representam a perfeio de uma sociedade to disciplinada que oferece um exemplo de monarquia que pode ter sido inspirado por Jpiter. H um perfeito senso de disciplina e de seriedade do trabalho, cada qual tem sua prpria funo:

    O repouso dos trabalhos o mesmo para todas. O trabalho o mesmo para todas. De manh se precipitam das portas; no h, em parte alguma demora; novamente, quando o entardecer as concita a sarem, enfim, do pasto para os campos; ento, retornam a casa e restauram as foras. ( Geo. IV, 184 - 187 )

  • No IV canto, as abelhas no conhecem as trgicas paixes e as sensuais melancolias dos homens, pois a fora devastadora do amor no existe em seu mundo. Elas servem o rei e os pequenos cidados de tal forma que a sociedade romana revelada pelo termo Quirites empregado por Verglio (Geo. IV, 200 - 201).

    Na Antigidade, havia na colmia um indivduo nico, maior que outros, a que chamavam rei, pois (Geo. IV , 212 - 214) quela poca no conheciam a abelha rainha. O rei imperava sobre todos os seus alados sditos ..............Rege incolumi mens omnibus una est (Geo. IV, 212).

  • Os gregos representaram a abelha por Melissa. Segundo Brando (1991, p.102), Melissa um derivado de ' ( mli ), mel, abelha. O vocbulo designa, igualmente, certas sacerdotisas e, em sentido figurado, poeta. Na religio grega, a abelha tambm foi, por vezes, identificada com Demter, podendo simbolizar a alma descida aos infernos.

    A abelha pode morrer, mas a raa permanece imortal, at genus immortale manet,

  • As virtudes exibidas pelas abelhas se referem provavelmente aos velhos costumes romanos, aos mores antiqui. Roma, ainda grande nos mores antiqui, segundo Griffin (1979, p. 65), no era uma casa de artes, na viso dos augustanos .

    O poeta relata, nesse momento, como a raa, mesmo tendo sua prole toda acabada, reproduzida em uma nova. Mostra as memorveis descobertas do mestre arcdico e a maneira pela qual do sangue putrefato de imolados touros podem-se produzir abelhas.

  • A reproduo prodigiosa das abelhas da carcaa de um boi introduz o longo eplogo da segunda metade do IV livro, demonstrando que h o renascimento da vida, pois as virtuosas abelhas voltam para sempre a fim de que possam praticar sua coletividade virtuosa. O artista e seu amor morrem, entretanto a cano sobrevive ao prprio cantor (Geo. IV, 523-527).

    No entanto, o poeta ilustra a apicultura com o mito de Orfeu e Eurdice emoldurado pelo de Aristeu. Os acontecimentos de Aristeu so a parte mais extensa dos versos 315 - 558, porm o trecho sobre Orfeu , justamente, o mais famoso.

  • Mas Orfeu vence o mundo infernal pelo poder de seu canto (Geo. IV, 471 - 472) e consegue reaver sua Eurdice, porm ao olhar para trs, perde-a para todo o sempre, pois no cumprira a determinao dos deuses e os Manes no sabem perdoar (Geo. IV, 489 - 491). O destino to cruel para os amantes (Geo. IV, 495 - 496) que Orfeu ser o eco destes gestos e lamentaes.

  • O canto tem poder mgico e miraculoso, que consegue vencer a prpria morte, ele sempre eficaz; no entanto, a perda, pela segunda vez da amada, aconteceu no pela impotncia do canto e sim pela dementia causada pelo amor (Geo . IV , 488). E a dementia seria digna de perdo, se os Manes soubessem perdoar. Percebe-se, neste IV canto, a desventura do amor, a impotncia humana contra o cruel destino de tal forma que Verglio exprime sua piedade, a piedade que os deuses no tm: ignoscenda quidem, scirent si ignoscere Manes (IV, 489).

  • O destino foi cruel para os amantes de tal forma que Eurdice levada, rodeada por uma imensa noite e no mais de Orfeu : non tua. Fecha-se assim em um soluo: heu ! Um grito de mulher que no quer se separar do amado domina os versos 491 a 498. E assim abre-se um cenrio de breves interrogaes, soluos sufocados (Geo. IV, 494 - 495), pois o destino foi cruel: En iterum crudelia retro / fata uocant (Geo. IV, 495 - 496). Eurdice levada, rodeada por uma imensa noite e no mais de Orfeu: non tua (Geo. IV, 498). Orfeu a perde para todo o sempre. Ele, em vo, a procura nas sombras, querendo dizer-lhe muitas coisas. Porm o barqueiro no permitiu que ele atravessasse o rio infernal.

  • Orfeu se isola , levando o seu canto de dor para a floresta e maravilhando at os animais mais selvagens. Inconsolvel, passou a repelir todas as mulheres da Trcia, as Mnades, que se sentiram desprezadas por tal fidelidade esposa, mataram-no e esquartejaram-no e lanaram-lhe os restos e a cabea no rio Hebro. Ao rolar a cabea no rio, sua boca proferiu o nome de Eurdice (Geo. IV, 526-527).

    A prpria voz e a fria lngua chamava Eurdice. Ah! Triste Eurdice, enquanto sua alma chamava. As margens repercutiam Eurdice ao longo de todo rio.(Geo. IV, 525-527)

  • O episdio da descida de Orfeu ao mundo dos mortos revela, em um sentido clssico, uma reflexo sobre a morte e a continuidade da tradio multissecular, que atribua msica e ao canto poderes mgicos que transcendiam a vontade dos prprios deuses. Em sua histria trgica (Geo. IV, 453-527), ele o homem sem sorte e doente de amor. Reina, em sua tragdia, uma situao lrica, projetando o prprio inferno. Percebe-se, neste IV canto, a desventura do amor, a impotncia humana contra o cruel destino. Verglio exprime sua piedade, a piedade que os deuses no tm: ignoscenda quidem, scirent si ignoscere Manes ( IV, 489).

  • Nas Gergicas, Orfeu e as abelhas esto ligados pela simbologia de sobrevivncia aps a morte. Provavelmente Verglio inclui a apicultura em um quadro agrcola, para concluir a escalada hierrquica da vida e para ter acesso a uma forma de poesia mitolgica: o relato de Aristeu e de Orfeu. A abelha smbolo da ressurreio; o mel, da fora vital e da imortalidade. Melissa, para os gregos, era a representao de abelha que, em sentido figurado, significa poeta. Assim abelha smbolo da poesia. No entanto, no IV livro, com as abelhas aliadas a Orfeu, Verglio exprime alusivamente a celebrao da imortalidade da poesia. A poesia supera a prpria morte.

  • "Juntaram-se a mulher , a Morte e a Lua Para matar Orfeu , com tanta sorte Que mataram Orfeu , a alma da rua Orfeu , o generoso , Orfeu ,o forte . Porm as trs no sabem de uma coisa : Para matar Orfeu no basta a morte . Tudo morre que nasce e que viveu S no morre no mundo a voz de Orfeu ." ( Terceiro Ato )