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outraspalavras.net http://outraspalavras.net/brasil/o-judiciario-no-brasil-sugundo-comparato-1/ Fabio Konder Comparato O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (1) Em estudo especial, um grande jurista brasileiro traça história de um poder submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido secularmente com a Injustiça Por Fábio Konder Comparato | Imagem: Antonio Parreiras, Julgamento de Filipe dos Santos (1936) LER TAMBÉM: O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (2) “Em todo o Brasil a Justiça pode ser comprada”, escreveu, no início do século XIX, visitante estrangeiro. Regra marcou ação dos juízes, do Império à República O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (final) Há alternativas para evitar que poder permaneça submisso às elites. Mudança crucial: STF não pode manter condição de órgão impermeável à democracia e ao controle cidadão “A quem há de ser atribuída no Estado a função jurisdicional? Em razão do que, devem os titulares desse poder exercê-lo? É admissível que os órgãos judiciários atuem sem controles? A resposta a tais perguntas fundamentais não pode ser feita no plano puramente teórico, sem uma análise concreta da realidade social em que se insere a organização política. Este artigo busca definir, com base nesses elementos estruturantes, a característica própria da realidade social brasileira nos cinco séculos de sua formação histórica, para poder compreender, em seguida, a atuação dos órgãos judiciários dentro desse amplo contexto social, e concluir com uma proposta de mudança em função do bem comum.” Assim resume seu estudo sobre o poder judiciário brasileiro o professor Fábio Konder Comparato, professor titular de Filosofia do Direito e professor emérito da USP, doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. Autor de vários livros, entre eles Muda Brasil – um projeto de Constituição, de 1987, com uma das primeiras propostas de regulação da mídia no país, Konder Comparato é reconhecido pela defesa da democracia e dos direitos humanos. Atuou em causas importantes da vida do país: foi um dos advogados de acusação no processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor e autor de uma das ações populares contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce; criticou várias vezes a criminalização do MST e em 2009, ao lado da professora Maria Vitória Benevides, veio a público contra um editorial da Folha de S.Paulo que definiu como “ditabranda” a ditadura militar brasileira.

O Judiciário No Brasil Segundo Comparato 1

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Primeira parte da analisa histórica do judiciário brasileiro feita por Comparato

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    Fabio KonderComparato

    O Judicirio no Brasil, segundo Comparato (1)

    Em estudo especial, um grande jurista brasileiro traa histria de um poder submisso s elites, corrupto em suaessncia e comprometido secularmente com a Injustia

    Por Fbio Konder Comparato | Imagem: Antonio Parreiras, Julgamento de Filipe dos Santos (1936)

    LER TAMBM:O Judicirio no Brasil, segundo Comparato (2)Em todo o Brasil a Justia pode ser comprada, escreveu, no incio do sculo XIX, visitante estrangeiro. Regramarcou ao dos juzes, do Imprio Repblica

    O Judicirio no Brasil, segundo Comparato (final)H alternativas para evitar que poder permanea submisso s elites. Mudana crucial: STF no pode mantercondio de rgo impermevel democracia e ao controle cidado

    A quem h de ser atribuda no Estado a funo jurisdicional? Em razo do que, devem os titulares desse poderexerc-lo? admissvel que os rgos judicirios atuem sem controles? A resposta a tais perguntasfundamentais no pode ser feita no plano puramente terico, sem uma anlise concreta da realidade social emque se insere a organizao poltica. Este artigo busca definir, com base nesses elementos estruturantes, acaracterstica prpria da realidade social brasileira nos cinco sculos de sua formao histrica, para podercompreender, em seguida, a atuao dos rgos judicirios dentro desse amplo contexto social, e concluir comuma proposta de mudana em funo do bem comum.

    Assim resume seu estudo sobre o poder judicirio brasileiro o professor Fbio Konder Comparato, professortitular de Filosofia do Direito e professor emrito da USP, doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutorHonoris Causa pela Universidade de Coimbra. Autor de vrios livros, entre eles Muda Brasil um projeto deConstituio, de 1987, com uma das primeiras propostas de regulao da mdia no pas, Konder Comparato reconhecido pela defesa da democracia e dos direitos humanos. Atuou em causas importantes da vida do pas:foi um dos advogados de acusao no processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor e autor deuma das aes populares contra a privatizao da Companhia Vale do Rio Doce; criticou vrias vezes acriminalizao do MST e em 2009, ao lado da professora Maria Vitria Benevides, veio a pblico contra umeditorial da Folha de S.Paulo que definiu como ditabranda a ditadura militar brasileira.

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  • Ao dar um panorama da histria brasileira da perspectiva do sistema judicirio, este estudo lana luz no podertalvez mais obscuro do trip que governa a Repblica. Aquele que, em sua mxima instncia o ConselhoNacional de Justia , no submetido a controle algum. (Ins Castilho)____

    A funo judiciria essencial a toda organizao poltica. Foi a partir da instituio dos juizados reais na BaixaIdade Mdia, garantindo paz e justia s populaes mais pobres, exploradas pelos bares feudais emenosprezadas pelas autoridades eclesisticas, que nasceu e pde desenvolver-se o Estado moderno.[1]

    Em assim sendo, no se pode deixar de indagar: A quem h de ser atribuda no Estado a funo jurisdicional?Em razo do que, devem os titulares desse poder exerc-lo? admissvel que os rgos judicirios atuem semcontroles?

    A resposta a tais perguntas fundamentais no pode ser feita no plano puramente terico, sem uma anliseconcreta da realidade social em que se insere a organizao poltica. Tal realidade define-se, essencialmente,por dois fatores intimamente relacionados: de um lado, a estrutura efetiva (e no apenas oficial) de poder dentroda sociedade; de outro lado, a mentalidade coletiva vigente, entendendo-se como tal o conjunto dos valoresticos predominantes no meio social. No Estado contemporneo, notadamente no quadro da civilizaocapitalista, a mentalidade coletiva passou a ser moldada decisivamente pelo grupo social detentor do podersupremo, em funo de seus prprios interesses.

    Comecemos, pois, por tentar definir, com base nesses elementos estruturantes, a caracterstica prpria darealidade social brasileira nos cinco sculos de sua formao histrica, para poder compreender, em seguida, aatuao dos rgos judicirios dentro desse amplo contexto social, e concluir com uma proposta de mudana emfuno do bem comum.

    O Dualismo Estrutural da Sociedade Brasileira

    Desde os primeiros decnios da colonizao portuguesa, a sociedade aqui organizada apresentou um carterdplice: por trs do mundo jurdico oficial, protocolarmente respeitado, sempre existiu uma realidade de fato bemdiversa, em geral oculta aos olhares externos, realidade essa em tudo conforme aos interesses prprios dostitulares do poder efetivo.

    Estes ltimos, ao longo de nossa evoluo histrica, formaram uma parelha, constituda pela aliana dospotentados econmicos privados com os grandes agentes estatais. Os componentes desse casal poltico, desdeo incio da empresa colonizadora pois a colonizao do Brasil, como bem salientou Caio Prado Jr.,[2] teve umcarter nitidamente mercantil buscaram, antes de tudo, realizar seus prprios interesses e nunca o bemcomum do povo. Frei Vicente do Salvador, em sua Histria do Brasil, publicada originalmente em 1627, assinalouesse fato com palavras candentes: Nem um homem nesta terra repblico, nem zela e trata do bem comum,seno cada um do bem particular.[3]

    Na verdade, esse conbio empresarial-estatal, bem ao contrrio do que sustenta a ideologia do liberalismoeconmico, da essncia do sistema capitalista. Como disse o grande historiador Fernand Braudel, que lecionouna Universidade de So Paulo logo aps a sua fundao, e estudou em profundidade a histria da civilizaocapitalista nos sculos XV a XVIII, [4] com particular ateno economia brasileira, o capitalismo s triunfaquando se identifica com o Estado, quando o Estado. [5] Ora, desde o incio da colonizao, o Brasil foidotado de uma estrutura de poder e de uma mentalidade coletiva marcadas pelo esprito capitalista de quefalou Max Weber.

    Em consequncia, nunca existiu, no seio de nossos grupos dominantes, uma clara conscincia do patrimniopblico: os recursos estatais, mesmo quando oriundos de tributos, sempre foram tidos como uma espcie deativo patrimonial da sociedade de fato, formada pelos empresrios privados e os agentes estatais. De ondedecorreu o fato de a corrupo s dar ensejo abertura de processo penal quando de pequeno montante. Para

  • os grandes corruptos pelo menos at bem pouco tempo, e fora da Administrao Central! sempre prevaleceuo velho costume da impunidade. Ou seja, suje-se gordo! como ilustrou Machado de Assis em conto famosode Relquias de Casa Velha.

    Outro fator decisivo, na consolidao da estrutura de poder e na formao do carter nacional brasileiro, foi apersistncia legal do sistema de trabalho escravo durante quase quatro sculos. Importa salientar que a prticado escravismo no se limitou ao setor empresarial, poca fundamentalmente agrcola, mas abrangeu tambm,de modo amplo, o meio urbano, a vida domstica e a prpria Igreja Catlica. Como assinalou o Visconde deCairu em carta a um amigo, datada de 1781, prova de extrema mendicidade o no ter um escravo.

    Dentre os vrios efeitos sociopolticos engendrados pela escravido no Brasil, dois merecem destaque.

    Em primeiro lugar, a no-aceitao, na mentalidade coletiva e nos costumes sociais, do princpio de que todosos seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos, como proclama o Artigo Primeiro daDeclarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. A desigualdade social, com a qual nos defrontamos todosos dias, raramente nos escandaliza; ela aparece, ao contrrio, como algo inerente prpria natureza humana.Luciano Figueiredo, Casa da Palavra, 2013, pp. 254/255.

    No campo poltico, predomina a convico de que o poder s pode ser eficientemente exercido pela camadasuperior da populao, a mal chamada elite, e que a soberania popular, expressa logo no primeiro artigo denossa atual Constituio, mero ideal retrico. Ainda a, como se v, vigora a duplicidade de ordenamentosjurdicos, figurando o oficial como simples fachada do edifcio pblico, em cujo interior oculto aos olharesexternos a vida se organiza de forma bem diversa.

    O segundo efeito grave do escravismo na organizao da sociedade brasileira a tolerncia com o abuso depoder, pblico ou privado, velha herana da imunidade criminal de que sempre gozaram os grandes senhores deescravos. Os excessos ou abusos de poder so considerados fatos normais. Como bons exemplos dessaanomalia institucionalizada, basta lembrar a ausncia de punio dos agentes estatais, responsveis pelasinmeras atrocidades cometidas sistematicamente durante a ditadura getulista e o regime empresarial-militarinstaurado em 1964. Em ambos esses casos paradigmticos, com o objetivo de virar a pgina ao trmino doregime de exceo, os oligarcas lanaram mo do instituto da anistia, com o beneplcito do Judicirio.

    Posio do Judicirio no Contexto da Realidade Social Brasileira

    O corpo de magistrados, entre ns, sempre integrou de modo geral os quadros dos grupos sociais dominantes,partilhando integralmente sua mentalidade, vale dizer, suas preferncias valorativas, crenas e preconceitos; oque contribuiu decisivamente para consolidar a duplicidade funcional de nossos ordenamentos jurdicos nessamatria. Ou seja, nossos juzes sempre interpretaram o direito oficial luz dos interesses dos potentadosprivados, mancomunados com os agentes estatais, como se passa a expor.

    Brasil colniaDurante todo o perodo colonial, como as cidades no interior do territrio eram pouco numerosas e muitoafastadas umas das outras, as autoridades judicirias jamais puderam exercer, efetivamente, suas funes nasvastas reas onde se estendia sua jurisdio. A consequncia natural foi que a administrao da justia coube,inevitavelmente, aos poderosos do serto, os quais detinham os postos de coronis ou capites-mores damilcia. Unia-se, assim, a fora militar com o poderio econmico, o que fazia da administrao da justia umaverdadeira caricatura.

    Os conselheiros do Rei, em Lisboa, procuraram corrigir essa distoro no final do sculo XVII, editando vriasmedidas, entre as quais a limitao do tempo de exerccio da funo militar de capito-mor e a nomeao dejuzes ordinrios, em princpio no sujeitos ao poder dos grandes proprietrios rurais. Evidentemente, taismedidas no produziram efeito algum, quando mais no fosse porque era impossvel encontrar no sertopessoas alfabetizadas em nmero suficiente para exercer as funes de magistrados. Levada essa questo aoconhecimento dos conselheiros da Coroa, responderam estes que pouco importava fossem os magistradosanalfabetos, contanto que seus auxiliares imediatos soubessem ler e escrever[6]

  • Na verdade, foi o forte vnculo de parentesco ou compadrio dos magistrados locais com as famlias de morqualidade, que levou criao dos juzes de fora. Como esclareceu em 1715 o Marqus de Angeja, Vice-Rei doBrasil, com essa nova espcie de magistrados procurava-se impedir que os juzes locais permitissem aosculpados de prosseguir em seus crimes, em razo de parentesco ou deferncia.[7] Isto, sem falar no fatocostumeiro de vrios juzes tornarem-se fazendeiros ou comerciantes, apesar da incompatibilidade legal dodesempenho de funes oficiais com o exerccio de uma atividade econmica privada, quer em seu prprionome, quer por intermdio de parentes ou amigos.

    Como instncias de recurso judicirio, mas exercendo tambm funes administrativas, tivemos inicialmente osdonatrios, em seguida os capites-mores e os capites-generais, e finalmente o Governador-Geral, depoisdenominado Vice-Rei. Em seguida, foram criados, com competncia recursal e de corregedoria sobre os juzesde primeira instncia, os ouvidores de comarca, e acima destes os ouvidores gerais, todos nomeados pelo Rei. Nos sculos XVII e XVIII, fundaram-se, respectivamente na Bahia e no Rio de Janeiro, dois Tribunais daRelao, com competncia revisional em ltima instncia, tribunais esses cujo presidente nato era o GovernadorGeral, depois Vice-Rei.

    Nenhum desses rgos judicirios superiores, porm, pde exercer o necessrio controle dos atos dasautoridades administrativas. Era mesmo costume que os Governadores, na qualidade de presidentes dosTribunais da Relao, procurassem se conciliar as boas graas dos desembargadores, acrescentandoaos ordenados destes, gratificaes extraordinrias denominadas propinas.[8] E quanto fiscalizao que deviaser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o conjunto dos altos funcionrios aqui em exerccio, ela sempredeixou muito a desejar, pois at o sculo XVIII havia uma s viagem martima oficial por ano entre Lisboa e oBrasil.

    de se lembrar, alis, que o primeiro Ouvidor-Geral a exercer suas funes no Brasil, o Desembargador PeroBorges, aqui chegado com Tom de Souza em 1549, tinha um passado funcional pouco limpo. Em 1547, ele foicondenado a devolver Fazenda Rgia o dinheiro que desviara das obras de construo de um aqueduto, decuja superviso fora encarregado, em sua qualidade de Corregedor de Justia em Elvas, no Alentejo. A mesmasentena suspendeu-o por trs anos do exerccio de cargos pblicos. No entanto, em 17 de dezembro de 1548 oRei o nomeou Ouvidor-Geral no Brasil, ou seja, a maior autoridade judiciria abaixo do Governador-Geral. Valedizer: para o exerccio de cargos pblicos nesta terra as condenaes penais anteriores de nada contavam.[9]

    Para nos darmos conta da generalidade dos casos de prevaricao de magistrados no perodo colonial, basta leralguns ofcios de presidentes dos Tribunais da Relao da Bahia e do Rio de Janeiro no sculo XVIII.

    Em 22 de janeiro de 1725, por exemplo, Vasco Fernandes Csar de Menezes escreveu da Bahia ao Rei dePortugal nos seguintes termos:

    Senhor Pelo Conselho Ultramarino dou conta a V. Majestade do mal que procedem os Ouvidores do Cear,Paraba, Alagoas, Sergipe del Rei, Rio de Janeiro e So Paulo, e das desordens e excessos que se veem todosestes povos to consternados e oprimidos, que justamente se fazem dignos de que a grandeza e piedade de V.Majestade lhes no dilate o remdio para que, com a dilatao dele no padeam a ltima runa ou precipcio aque continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharis, que nenhum faz caso deste governo emuito menos desta Relao. [10]

    Por sua vez, em 21 de junho de 1768 o Marqus do Lavradio, na qualidade de Governador e Capito-General daCapitania da Bahia de Todos os Santos, enviou ofcio ao Vice-Rei Conde de Azambuja no Rio de Janeiro, noqual, entre outros fatos relata:

    O Corpo da Relao achei-o no estado que V. Excia. sabe a grande liberdade que eles se tinham tomado unscom os outros o interesse pblico, que eles costumavam tomar nos negcios particulares, em que eles estavamsendo juzes, finalmente a falta de gravidade com que estavam em um lugar to respeitoso, tudo me temobrigado a no faltar um s dia em ir presidir a Relao, donde me tem sido por vrias vezes necessrio mostrar-lhes ou dizer-lhes o modo com que devem conduzir-se, e a resoluo em que estou de o no consertardiferentemente. Tenho o gosto de que j hoje h menos disputas naquele lugar, no embaraam uns os votosdos outros, e procuram favorecer os seus afilhados com mais modstia, ao menos com um tal rebuo, que

  • necessrio bastante cuidado para se descobrir os seus afilhados particulares; porm, certo que ainda os h,no considero que estes se acabem enquanto persistirem alguns dos Ministros que aqui se conservam. [11]

    Da mesma forma, em ofcio enviado em 1767 ao Secretrio de Estado Francisco Xavier de Mendona Furtado,irmo do Marqus de Pombal, o Vice-Rei do Brasil, Conde da Cunha, assim se referiu ao Tribunal da Relao doRio de Janeiro:

    Os ministros desta Relao, que deviam concorrer para a boa harmonia do mesmo tribunal e para a boaarrecadao da Real Fazenda, uniram-se ao chanceler Joo Alberto Castelo Branco, para protegerem homensindignos, e outros devedores de quantias graves Real Fazenda; estes procedimentos foram to excessivosque at na mesma Relao e fora dela fizeram algumas desatenes ao procurador da Coroa. [12]

    Nenhuma surpresa, por conseguinte, se desde cedo entre ns, na maior parte dos casos, o servio judicirioexistiu no para fazer justia, mas para extorquir dinheiro. No famoso Sermo de Santo Antnio Pregando aosPeixes, [13] o Padre Vieira denuncia o fato em palavras candentes:

    Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos, ou acusados de crimes, e olhai quantos o estocomendo. Come-o o Meirinho, come-o o Carcereiro, come-o o Escrivo, come-o o Solicitador, come-o oAdvogado, come-o o Inquiridor, come-o a Testemunha, come-o o Julgador, e ainda no est sentenciado e jest comido. So piores os homens que os corvos. O triste que foi forca, no o comem os corvos senodepois de executado e morto; e o que anda em juzo, ainda no est executado nem sentenciado, e j estcomido.

    Notas[1]Veja-se, a propsito, o estudo de Joseph R. Strayer, On the Origins of the Modern State, Princeton UniversityPress, 1970, pp. 38 e ss.[2]Formao do Brasil Contemporneo, primeira edio em 1942.[3]Captulo segundo do Livro Primeiro.[4]Cf. a obra em trs volumes Civilisation matrielle, conomie et Capitalisme , Paris, Armand Colin, 1979.[5]La dynamique du capitalisme, Flammarion, Paris, 2008, pg. 68.[6]Sobre todo esse assunto, cf. C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil 1695/1750 , University of CaliforniaPress, 1962, pp. 209, 306 e ss.[7] Cf. Stuart B. Schwartz, SoveReignty and Society in Colonial Brazil The High Court of Bahia and its Judges,1609-1751, University of California Press, 1973, pp. 257/258 ; 275 e ss.[8]Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 272.[9]Cf. Eduardo Bueno, Ficha Suja, in Histria do Brasil para Ocupados , organizao de Luciano Figueiredo, Casada Palavra, 2013, pp. 254/255.[10]Citado por Braz do Amaral, em notas e comentrios s cartas de Lus dos Santos Vilhena, editadas sob ottulo A Bahia no Sculo XVIII, vol. II, Editora Itapu Bahia, 1969, pp. 358/359.[11]Marqus do Lavradio, Cartas da Bahia 1768-1769, Ministrio da Justia, Arquivo Nacional, 1972, pg. 20.[12]Apud Arno Wehling e Maria Jos Wehling, Direito e Justia no Brasil Colonial O Tribunal da Relao do Riode Janeiro (1751-1808), Renovar (Rio de Janeiro, So Paulo e Recife), 2004, pg. 310

    [13] Pregado em So Lus do Maranho em 1654.

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    Publicado a partir dos Cadernos IHU ideias

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