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1 O JUÍZ DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: GARANTE DA ORDEM PÚBLICA GENEALÓGICA OU APRENDIZ DE COZINHEIRO ? 1 Hélène Cazaux-Charles Tradução e adaptação : Marlene Iucksch 1 Trata-se aqui de uma adaptação resumida da conferência pronunciada pela Sra. Hélène Cazaux-Charles em outubro de 1994, em Chambéry, França. O título original é : « Le juge des enfants: gardien de l'ordre public généalogique ou marmiton du droit ». A autora concordou com a publicação apesar de não falar português e não poder assim verificar a tradução. Ao longo de sua carreira, a Sra. Hélène Cazaux-Charles exerceu as funções de Juíza da Infância e da Juventude, Juíza da Vara de Família, tendo participado também dos trabalhos do Labóratorio Europeu de Estudos da Filiação (Laboratoire Européen pour l’Etude de la Filiation).

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O JUÍZ DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: GARANTE DA ORDEM PÚBLICA GENEALÓGICA

OU

APRENDIZ DE COZINHEIRO ?1 Hélène Cazaux-Charles Tradução e adaptação : Marlene Iucksch

1 Trata-se aqui de uma adaptação resumida da conferência pronunciada pela Sra. Hélène Cazaux-Charles em outubro de 1994, em Chambéry, França. O título original é : « Le juge des enfants: gardien de l'ordre public généalogique ou marmiton du droit ». A autora concordou com a publicação apesar de não falar português e não poder assim verificar a tradução. Ao longo de sua carreira, a Sra. Hélène Cazaux-Charles exerceu as funções de Juíza da Infância e da Juventude, Juíza da Vara de Família, tendo participado também dos trabalhos do Labóratorio Europeu de Estudos da Filiação (Laboratoire Européen pour l’Etude de la Filiation).

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Introdução Por muito tempo, sustentei que o Direito era o produto de uma relação de força e mesmo uma técnica de regulação social. Entretanto, continuava guardado dentro de mim um velho encontro de minha adolescência - “Totem e Tabu” e “Mal Estar na Civilização”, de Freud. Escapando ao meu controle, essas obras fizeram seu caminho, não me permitindo nunca desistir completamente dessas teses: para mim, ainda continuava inteira e fundamental a questão da função simbólica do Direito, que não podia se reduzir à dimensão mecanicista ou estruturalista de Marx ou de Foucault. Nunca pude renunciar à idéia de que o judiciário podia ter uma outra função que a normatização de comportamentos, como a função de humanização do ser e de civilização da sociedade. Para tanto, eu também sempre defendi a importância de os juízes exercerem sem temor e sem megalomania o lugar que lhes estava reservado na ordem política e institucional de nossa sociedade, completamente e somente esse lugar, que qualifico de simbólico. Como definir então essa noção de “função simbólica” ? De que simbolismo se trata ? Como verificar a validade dessa hipótese? Desde o momento em que assumi minha função como juíza da Infância e da Juventude, sustentei que ocupava uma função parental. Mais precisamente, apoiando-me no texto “Mal Estar na Civilização”, eu pensava que o Direito devia significar a “não-completude” necessária à toda vida humana e que o juiz deveria representar junto aos pais e filhos - toda uma ordem familiar - o papel de uma instância paterna separadora e diferenciadora. Eu colocava assim, num mesmo nível de igualdade simbólica o “pater familias” e o juiz , sendo que, na presença das famílias que recebia, se afrontavam duas representações de paternidade: uma de legalidade que eu deveria encarnar e a outra carente ou mesmo insana. Mas em que consiste essa carência? Aqui também, à luz da Antropologia e da Psicanálise, essa carência parece advir da impossibilidade de os pais concretos exercerem o papel de limite, de princípio separador da criança em relação à mãe. Em uma palavra: poder servir de trampolim para outra coisa que, desta vez, à luz da leitura de Nietzsche, eu julgava bem mais importante que a socialização, a saber: a cultura, o “belo” e o humano, que significam muito mais que a adaptação a um sistema social, escolar ou profissional. Convinha que o juiz , a partir de uma análise da realidade familiar, definisse o momento e a maneira, sempre diferentes, segundo cada caso, onde ele deveria impor uma lei para forçar “o humano”, o Judiciário não podendo se inscrever no que chamei uma justiça negociada, contratual. Eu me debatia porém contra um outro obstáculo: como evitar a passagem de uma « forçagem simbólica » à repressão, ao preço do penal, à ditadura educativa no

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acompanhamento educativo2? Como me assegurar de que a expressão “em nome da lei”, que me permitia impor essa medida, poderia atingir sempre a sua finalidade, isto é, promover a civilização familiar? Comecei assim a me questionar sobre a minha legitimidade. Para chegar a ter “o gesto seguro” (termo emprestado de Pierre Legendre), quer dizer, para marcar uma família do cunho da lei, com todo o sofrimento que o acesso à humanidade exige, eu mesma deveria estar segura de minha própria humanidade, como também quanto à humanidade da instituição a qual eu pertencia. Enquanto juíza, que proteção eu poderia oferecer aos jurisdicionados para definir o justo preço que cada indivíduo deve pagar para entrar ou voltar à civilização? Como poderia avaliar, o mais exatamente possível, a dívida que cada um deve pagar para deixar a barbárie e entrar na ordem do humano? Encontrava-me diante de três possibilidades: — por um lado, uma busca de si mesmo, que nos importa pouco aqui, mas que garante ao jurisdicionado a possibilidade de libertar-se um mínimo que seja, da cilada do narcisismo e da ameaça de morte simbólica, — por outro lado, um engajamento coletivo solicitando de nossa instituição essas garantias, — enfim, e somente esse aspecto nos interessa aqui, a busca do fundamento do discurso jurídico. De maneira um tanto desesperada, eu mergulhava em Platão ou em outros autores, sem nunca encontrar resposta que me satisfizesse. Nada parecia definir uma idéia do “justo” sobre a qual eu pudesse apoiar minha legitimidade e a forçar um destino familiar. A ética, que vai de vento em popa, não me parecia e não me parece ainda, constituir uma resposta satisfatória. Responder pela ética à questão: “Em nome de que eu julgo?” parece ser de uma impostura intelectual e política, na medida em que, com frequência, os diversos discursos sobre a ética representam a marca de um cunho normatizador, destinado a legitimar, a posteriori, os fundamentos de uma instituição em deriva ???, seja de uma tautologia, se definirmos a ética como a busca do justo. Eu me contentava em trabalhar com o que eu era e com o que eu possuía: uma juíza, dotada de códigos e encarregada de casos. A leitura do Direito Civil e, em particular, do Direito das obrigações e da filiação me pareceu rica de respostas já que pude apreender, finalmente, a minha função e meus instrumentos de trabalho, numa perspectiva antropológica.

2 O artigo 375 do Código Civil francês declara : « se a saúde, a segurança ou a moralidade de um menor não-emancipado estão em perigo, ou se as condições de sua educação estão gravemente comprometidas, medidas de assistência educativa podem ser ordenadas pela justiça, a pedido de pai e mãe conjuntamente ou de um dos dois, da pessoa ou do serviço ao qual a criança foi confiada ou do tutor, do menor ou do Ministério Publico. (…)». Entre outras medidas de proteção, o Juiz pode solicitar uma medida de acompanhamento educativo in loco (AEMO – assistance educative en milieu ouvert) e nomear um serviço para exercê-lo junto à família. A urgência da situação obriga a Justiça a tomar medidas autoritárias, seja porque a criança é considerada como realmente vivendo uma situação de perigo, seja porque os pais se recusam a cooperar com uma medida de proteção administrativa, cujas ações são coordenadas pelo Conselho Geral de cada Departamento.

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O papel do juiz me pareceu então como sendo o de convencer, ou mesmo de forçar, cada indivíduo a ocupar o lugar que lhe é destinado pelo Direito Civil da filiação, permitindo assim a criação de um vínculo de direito entre dois seres investidos, um em relação ao outro : de dívidas (obrigações) e de créditos (direitos), dívidas e direitos concretos e, ao mesmo tempo, evidentemente, simbólicos. Dito de outra forma : caberia ao juiz garantir, por uma legalização das representações do laço de filiação, o que chamo neste trabalho de a ordem pública genealógica3. Enfim, para terminar a apresentação teórica, devo dizer que meus propósitos não devem ser assimilados a um discurso de tipo estruturalista, onde convém zelar por uma boa gestão dos corpos: cada corpo tem seu lugar. Insisto na idéia de que, para mim, nao se trata de uma questão de lugar, mas de representação do lugar concretamente ocupado por um indivíduo dentro de uma ordem familiar e daquele que ele deve ocupar, segundo os textos do Direito Civil da Filiação, ao mesmo tempo. Todos sabemos que de nada serve retirar uma criança de sua família, isto é, separar seu corpo dos corpos de seus pais se, ao mesmo tempo, não é realizado um trabalho sobre as representações. Sem isso, a história familiar se repete ao infinito. Aqui entra em discussão a questão da função simbólica do juiz. Se ele ocupa bem o seu lugar, deve, pela introdução da sua palavra, ajudar o sujeito humano a se desfazer de imagens destrutivas nas quais é devorado. Um juiz “que ocupa o seu lugar” é, na minha opinião, um juiz convicto de que a lei deve ser entendida como emanação contemporânea do interdito fundador de toda sociedade (interdito de morte e de incesto), cuja mediação e interpretação lhe cabem. Se não reconhecer sua própria submissão a esse princípio, não me parece possível que transmita, por sua vez, o sentido da interdição, isto é, a necessidade de cada ser humano de renunciar a ser a criança de seus pais e de ceder seu lugar. Como se pode notar, me posiciono em oposição aos que pregaram o desejo contra a lei, a liberdade contra o direito, a civilização pela morte do juiz . Para terminar, permitam-me uma citação: “ É possível que a formulação escrita do Texto marque uma relação mais fundamental ainda: a relação de todo indivíduo à dívida exigida de todos, que não conhece nenhuma exceção - a relação à dívida da espécie, a esta Lei maiúscula por todos que, em termos antropológicos, chamamos de Interdito. Personagem maior na estrutura, o juiz que julga é um sacrificador: julgando em nome do Texto, isto é, em representação simbólica da Lei, ele sacrifica, antes de tudo, seu julgamento subjetivo (sua própria consciência, dizem os escolásticos) para submeter-se às provas trazidas ao processo. A título dessa alienação na sua função, ele notifica ao jurisdicionado da obrigação de pagar o seu débito, sob a forma de inclinar-se ao Texto”. (Pierre Legendre – « Les Enfants du Texte - Etude sur la fonction parentale des Etats » - Leçon VI - Ed. Fayard.4

3 Itálico da tradutora. 4 Além de psicanalista, Pierre Legendre é professor de Direito Romano e Filosofia do Direito na Universidade Paris I e de Antropologia dogmática na Ecole Pratique de Hautes Etudes, Paris. Publicou mais de vinte livros, entre eles « O amor do censor », traduzido em português, « Le crime du caporal Lortie, traité sur le Père » e « Les enfants do texte – la fonction parentale des Etats ». Pierre Legendre é também o fundador do « Laboratório Europeu para Estudos da Filiação ».

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Assim acontece para o juiz dotado de código. Passemos agora aos exemplos, pois somente eles nos permitem demonstrar a eficiência da hipótese que sustento, a saber, que o direito exercido por um juiz fora de seu lugar concreto e simbólico, utilizado como técnica de regulação social ou ainda como insígnia a combater, nada pode fazer pelo sujeito. O dossiê que escolhi reflete 18 anos de trabalho social e judiciário. Peço que compreendam que não me foi possível, dentro do tempo que me foi legado, propor-lhes um trabalho exaustivo (não seria um amplo trabalho). Restringi-me a um resumo dos dados genealógicos, dos fatos brutos que deram origem às decisões judiciais, de algumas dessas decisões e das conclusões dos relatórios sociais e educativos. A partir deste caso, encontrei três linhas de reflexão que correspondem às minhas linhas de trabalho neste dossiê. A meu ver, para que a Justiça não seja uma sala de gravação das tragédias familiares e de fracassos, para que os juízes não assistam impotentes a reprodução - a recidiva - de incestos e mortes, perguntando-se o que podem fazer, pareceu-me essencial trabalhar a questão da articulação do sujeito e do direito, do campo clínico e/ou social com o judiciário. Para mim, isso significa questionar sobre a articulação da função simbólica, que é a minha, com a função das representações que cada sujeito faz de si mesmo, de seu passado e de seu futuro, ou seja: de sua própria humanidade. Para tanto, deveremos demonstrar que “o simbólico” é tão essencial à reprodução e a manutenção da vida humana quanto o “biológico”, pois essa idéia ainda não parece evidente para uma grande parte de nossos concidadãos e, mais grave ainda, para alguns profissionais. Aqui, penso que convém falar do ritual que dá nascimento e vida ao sujeito, isto é, do processo civil reposicionado na dimensão simbólica, através de um formalismo obrigatório que legitima uma autoridade externa para arrimar cada um a seu lugar, permitindo, por esse processo assim criado, o surgimento da palavra e a criação de um vínculo humano, do ponto de vista genealógico. Uma vez demonstrado esse postulado, deveremos definir como utilizar a dimensão simbólica do Direito para permitir ao sujeito humano desatar as amarras na tragédia familiar. A meu ver, aqui entra em discussão todo o trabalho judiciário sobre o nome patronímico, essa marca parental que cada indivíduo carrega consigo, pois cada um de nos leva o nome de seu pai ou de sua mãe. Como escapar ao destino do nome? Pela retirada da criança de seu meio familiar? Pela retirada do poder familiar? Pela adoção? Pelo casamento? Atualmente, como juíza de uma Vara de Família e encarregada de outras atribuições, como estudar os pedidos de adoção, de negação de paternidade etc.… pude perceber nesses processos judiciários a busca desesperada daqueles que querem escapar a seus destinos. Uma vez terminado esse trabalho sobre o nome e portanto sobre a herança de representações familiares, um outro instrumento de trabalho me parece dever ser utilizado: a representação do sujeito na justiça e, em particular, a representação da criança em justiça. Desconfio muito desses numerosos embaixadores dos direitos da criança, prometido sujeito autônomo, dotado de uma palavra, a nível jurídico, igualada e mesmo superior a dos pais, como se a criança fosse um electron livre, cortada de uma história familiar e pudesse impunemente se servir do juiz para dar força de lei a seu desejo. Enfatizo, se ainda for necessário, que a análise do caso que lhes proponho realiza-se à luz da obra de Pierre Legendre, ou mais exatamente, do que pude compreender (sobre a obra do

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Pierre Legendre ?). Esclareço, por fim, que devo o conceito de « permutação simbólica de lugares subjetivos », que ilustro na primeira parte, à Sra. Alexandra Papageorgiou-Legendre.

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O CASO Em 7 de junho de 1940 nasce Michel M., filho de Louis M., coxo em conseqüência de um acidente de trabalho, descrito como bom trabalhador, pouco inteligente e de Alice Papin, descendente, sem dúvida, da mesma linhagem das irmãs Papin, cujo crime horrorizou a opinião pública na época5. Esse casal teve nove filhos. Em 20 de janeiro de 1949 nasce Chantal B. do segundo casamento de seu pai, honesto operário, descrito como pouco inteligente, que faleceu em 1975 ou 1976 acometido por uma cirrose hepática após uma hospitalização psiquiátrica e de Juliette, coxa, descrita pelas pessoas próximas como “bruxa” ou “curandeira” e pelos trabalhadores sociais como “doente mental”, hospitalizada com freqüência devido a episódios delirantes. Em 25 de janeiro de 1964, Michel M. e Chantal B. casam-se na cidadezinha onde nasceram. Chantal tem 15 anos e sua mãe opõe-se a este casamento, que somente acontece porque a adolescente está grávida. Chantal M. continua a ver sua mãe às escondidas, contra a vontade de seu marido. Dessa união nascerão de 1964 a 1977 dez filhos, além de quatro abortos. Em 15 de setembro de 1964 nasce Michel, hospitalizado em 12 de março de 1965 após uma queda do carrinho. Ele retorna à família e falece no dia 29 de março de encefalite e complicações de otite. Não se pode imputar esse falecimento a maus tratos ou à falta de cuidados específicos, apesar de algumas esquimoses constatadas. Em 3 de outubro de 1965 nasce Patrice, prematuro, com 2.420 kg, severa icterícia e que necessita incubadora. Em 9 de outubro de 1965, a DDASS6 apela com urgência ao Juiz da Infância e da Juventude, pedindo que a guarda de Patrice seja confiada a seu serviço, pois Michel M. quer retirar seu filho do serviço de maternidade contra a opinião dos médicos. O juiz decide por uma OPP7. Em 23 de abril de 1966, a mãe escreve ao Juiz da Infância e da Juventude solicitando a restituição de seu filho e então uma investigação social 8 é ordenada em 18 de maio. Michel M. é descrito como um trabalhador honesto, filho de uma família honesta e de boa reputação. Chantal M. é descrita como sem experiência, débil mental, mas cheia de boa vontade. Assim, afasta-se a suspeita de maus tratos sobre o primeiro filho, considerando-se que a mãe aceitou sem problemas o controle social que ali começava. Para os médicos, Patrice é “capaz de viver” e “estará psicologicamente melhor no seio familiar ». Um acompanhamento médico-social é preconizado e a criança acaba sendo entregue aos pais no dia 6 de junho. No dia 18 de junho, Patrice é novamente hospitalizado. O médico o descreve como “um animal caçado”, apresenta marcas de agressão e três fraturas nas pernas. Uma OPP é decidida no dia 23 de agosto.

5 Em 1932, duas irmãs (Christine e Léa Papin) empregadas domésticas, assassinaram a patroa. Esse crime hediondo que abalou a França, interessa ainda hoje a várias áreas, como a psiquiatria, sociologia, literatura etc. 6 DDASS – « Direction des Affaires Sanitaires et Sociales » , orgão do Ministério da Saúde, da Família e de Pessoas Deficientes. 7 « Ordonnance de placement provisoire » – mandato de delegação da guarda. 8 Uma das medidas que pode ser solicitada pelo Juiz da Infância e da Juventude ao exercer sua função de proteção à criança (« enquête sociale »).

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A mãe é julgada culpada por agressão e ferimentos voluntários contra menor de quinze anos e condenada, em 13 de março de 1968, a um mês de prisão, com sursis e 100 francos de multa. Ouvida pelo psiquiatra, a mãe atribui seu comportamento a ação maléfica de sua própria mãe. O perito conclui por uma debilidade leve, falta de maturidade e pobreza de julgamento. Nesse período (3 de dezembro de 1966) nasce Christian, retirado da família na saída da maternidade (OPP de 5/12/66). Em 17 de junho 1968 nasce Nathalie, retirada de sua família em 21 de julho de 1968, pela mesma razão: a situação precedente de Patrice. Os pais são ouvidos pela primeira vez pelo Juiz da Infância e da Juventude em 28 de maio de 1969, depois de solicitarem por duas vezes essa oitiva. Ao término dessa audiência, as três crianças são confiadas à DDASS e os pais são obrigados a contribuir com 60 francos por mês para o sustento dos filhos. Eles não reverão jamais essas crianças. A retirada é motivada pela ausência de garantia educativa por parte da mãe. Em 28 de julho do mesmo ano nasce Didier. Em 1° de agosto, ele é confiado à DDASS, ordem que não pôde ser executada devido à violência do pai. O MP consente. Em 14 de setembro, Chantal M. é vítima de violenta agressão pelo marido e, pela primeira vez, denuncia esses fatos enviando um atestado médico ao Juiz da Infância e da Juventude. Em 8 de julho de 1970 nasce Sylvie. Ao longo de sua infância, essa criança será descrita como hipotônica, chorona, negligenciada e rejeitada pela sua mãe, que lhe batia muito. Em 7 de julho de 1971, a DDASS denuncia a oposição dos pais a uma cirurgia para o filho Didier em virtude de uma má formação cardíaca grave e solicita ao Juiz da Infância e da Juventude que tome todas as medidas que julgar necessárias contra os maus tratamentos que a mãe acarreta aos filhos. Em 10 de agosto nasce Brigitte. Ao nascer, ela apresenta sinais da violência exercida pelo pai sobre sua mãe e permanece no serviço de prematuros. O pai encontra-se hospitalizado desde 16 de junho, em razão de um acidente de trabalho. A investigação social de 3 de julho de 1972 aponta que Michel M. parece instalar-se num estatuto de inválido enquanto sua mulher é descrita como magra, amedrontada e espancada com regularidade pelo marido. Diz-se que a casa é “limpa e bem cuidada” e que “as crianças não são maltratadas”. Estima-se também que o retorno das crianças à casa dos pais parece prematuro pois “mesmo se eles não vivem em situação de perigo9 imediato, o clima é pesado”. Mantém-se o direito de visita aos fins de semana, se se julgar bom para o equilíbrio das crianças. Em 19 de julho, o pedido de restituição definitiva dos três primeiros filhos retirados é rejeitado. Didier e Sylvie são acompanhados por uma AEMO e Brigitte é definitivamente retirada de casa, após uma audiência para a qual os pais não foram convocados.

9 Na França, as noções de « perigo » e « risco » são diferenciadas. Apesar das dificuldades para separar essas categorias, a primeira é tratada pelo sistema judiciário e a segunda pelos dispositivos de prevenção.

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Em 13 de maio de 1973 nasce Jacques. Em 5 de dezembro, a medida de AEMO é extensiva a este último filho, sem que os pais tenham sido ouvidos. No decorrer de 1973 e 1974, abre-se um período positivo, segundos os trabalhadores sociais, que notam a possibilidade de uma melhor evolução da família. O pai continua no seguro desemprego e em busca de trabalho, a mãe se afirma pouco a pouco diante de seu marido e parece mais “materna” com relação a seus filhos, com uma preferência bastante evidente por Jacques e marcante rejeição de Sylvie. Em 9 de janeiro de 1975 nasce Jérôme. Em 12 de março de 1977 nasce Mickaël. A AEMO revela que o Sr. M. não procura trabalho, que sua atitude é bastante reivindicativa com relação à sociedade e que quer aumento do valor da sua pensão por invalidez. Sua mulher é percebida como tendo dificuldades com os dois filhos mais velhos. Em 1978, no momento em que os trabalhadores sociais pensavam propor uma suspensão da medida judicial de proteção, Michel M. abandona sua mulher sem recursos e vai viver com uma amante, ameaçando levar todos os filhos. Ela teme pedir o divórcio com medo de represálias por parte do marido e de perder os filhos, levando em conta o seu passado. Em 19 de maio de 1978, depois de um aborto espontâneo, a senhora M. pede para ligar as trompas, por sua própria iniciativa. Deixa a clinica em 27 de maio e é espancada pelo marido com tanta violência, que o médico solicita nova hospitalização, alertado pelos vizinhos. A senhora M. decide viver sozinha com as crianças, sendo continuamente ameaçada pelo marido que transforma a visita aos filhos em espionagem da ex- mulher. Assim mesmo, ela não consegue pedir o divórcio, deixa o lugarejo onde vive e vai para uma cidade maior, dando, porém, a chave da nova casa ao marido. Em 20 de agosto de 1979, hospitalizada, a Sra. M. pede a seu ex-marido para vir buscar os filhos. Ele aproveita a situação para não devolver as crianças e para dar entrada num processo de divórcio, acusando a mulher de depravação. Para reforçar seu pedido, ele junta ao dossiê do Juiz da Infância e da Juventude algumas fotos mostrando-a em atitudes pornográficas diante do filho mais novo, bem como fotos dela com o cachorro, com o qual ela reconhecera manter relações sexuais. Ele afirma ter surpreendido sua mulher em tais circunstâncias e ter pedido a seu filho Didier para constatar os fatos. A investigação policial solicitada pelo juiz (na qual foram ouvidos Didier e Sylvie), coloca em evidência a sexualidade do casal, da qual as crianças seriam testemunhas. O pai acusa a mãe de depravação (homossexualismo, múltiplos parceiros, etc.) e a mãe não nega, mas explica que tudo o que fez foi submeter-se ao desejo do marido. Em 7 de novembro de 1979, em audiência preliminar de conciliação, o Juiz da Vara de Família confia a guarda das cinco crianças ao pai, em razão da depravação materna, apesar da violência provada deste mesmo pai, descrito como « perverso, paranóico e alcóolatra » pelo psiquiatra. A mãe obtém o direito de visita no primeiro e terceiro domingo de cada mês. O pai continua acusando a mãe de depravação mesmo durante seu direito de visita.

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A investigação social descreve a vida de Michel M. com sua nova ? companheira como equilibrada. Dessa união nasce um filho, chamado Michel, em agosto de 1978. Em 4 de novembro de 1980, ela o abandona, evocando perversão, alcoolismo e violência, inclusive contra as crianças. Michel M. cai no alcoolismo e começa a pressionar sua mulher para que ela retorne ao domicílio conjugal. A polícia é obrigada a intervir, pois o pai ameaça matar todos os filhos e suicidar-se com um rifle, recusando, ao mesmo tempo, que lhe retirem seus filhos. Nessa época, Sylvie unha-se no rosto com tanta violência que guardará cicatrizes pelo resto da vida. Em dezembro de 1980, apesar da mãe ter retornado a viver com o pai - depois de ter pedido o divórcio - a polícia constata a existência de fortes indícios de que Sylvie esteja sendo vitima de abuso sexual por parte de seu pai. Em 19 de dezembro, o juiz ordena a retirada, com urgência, das cinco crianças, medida pela qual a polícia intervém, pois o pai encontra-se em total inconsciência, em razão de uma crise de etilismo. Em seu mandato, o juiz evidencia a violência e o exercício patológico da autoridade do pai, que mostra livros pornográficos aos dois filhos mais velhos e explicita a retirada das crianças como medida de advertência. Em 6 de janeiro de 1981, o juiz entrega as crianças, de maneira indiferenciada ao pai e a mãe (lembremos que na audiência preliminar de conciliação elas foram entregues ao pai). Em 23 de março, uma avaliação psiquiátrica é ordenada para Didier e Sylvie. Para o primeiro, os peritos envidenciam ausência de patologia, mas uma impossibilidade de conceituar a família, percebida por ele como um aglomerado de indivíduos sem título. Em Sylvie, detecta-se uma inibição patológica, rosto marcado de cicatrizes e ausência de diferenciação de classes de idade. Em 12 de maio, o divórcio do casal é pronunciado, com responsabilidade mútua e a guarda das cinco crianças é confiada ao pai (sabendo-se que o casal vive de novo junto). O relatório da AEMO de 28 de julho de 1981 mostra que o pai recusa todo acompanhamento, mas permite que sua mulher converse com os educadores. Observamos: violência contra a esposa, tentativa de estrangulação, acusação de exibicionismo em público, fazendo proposições a diferentes mulheres, além de incitar os dois filhos mais velhos a desobedecer a mãe. A senhora M. quer de novo partir com os três filhos mais novos e não quer mais os mais velhos. Para ela, Didier não é mais seu filho, pois ele é igual ao pai. Em 4 de junho de 1982, a mãe denuncia o incesto do pai com Sylvie (11 anos) ao Juiz da Infância e da Juventude. Ameaçada de morte pelo marido, ela foge para a casa de sua mãe. Michel M. se defende acusando sua mulher de ter incitado um amigo a violar sua filha. A menina é retirada de casa, sem retorno nos fins de semana. Em 6 de julho, os pais têm prisão preventiva decretada: o pai em detenção provisória e ambos serão acusados de estupro por ascendente legítimo cometido sobre menor de quinze anos.

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Em 16 de julho de 1982, o direito de visita da mãe é restabelecido e em 21 de agosto suspendido, em razão do inquérito policial. Finalmente, em 1° de setembro, é suspendido para todas as crianças. Em março de 1983, Sylvie escreve ao juiz pedindo autorização para ver seu pai na prisão. Em novembro, Mickaël, Jérôme e Jacques encontram-se em família de acolhimento. Didier vive em internato e Sylvie num instituto médico-psicológico, numa outra região. O perito psiquiatra do pai declara-o acessível à sanção penal, descreve-o como tendo vínculo muito forte com a sua mãe, que vem vê-lo todos os dias na prisão. Michel M. pretende que sua sogra seja a responsável por sua infelicidade, pois ela o teria enfeitiçado. Ele reconhece ter tido relações com sua filha, mas acusa a mulher de tê-la colocado na sua cama. Segundo ele, antes do casamento, a sogra entregava sua filha aos amigos. Nessa época, ele escreve numerosas cartas ao juiz , explicando seu sofrimento por não ver os filhos. Em 15 de outubro, Didier pede para passar alguns fins de semana com sua mãe. Sylvie foge para ir ver sua mãe e escreve ao juiz pedindo para ser acolhida na mesma cidade de seu irmão. Em 19 de dezembro, o juiz recusa ao pai a autorização para ver seus filhos. Sylvie se mutila e tenta o suicídio sob pressão da mãe e das cartas do pai. Em 13 de março de 1984, o Tribunal do Juri condena o pai a doze anos de reclusão criminal e o destitui do poder familiar e a DDASS suprime seu direito de correspondência com os filhos. As acusações contra a mãe foram julgadas infundadas e o juiz a aconselha a revê-los. A partir desta data, Sylvie vai ser rejeitada de internato em internato até 1° de julho de 1986, por razões de violência contra si mesma, contra os educadores e outros adolescentes. Ela é entregue a mãe, com um acompanhamento da AEMO. Didier continua no internato ao qual ele foi confiado, sem problemas de comportamento inquietantes. Todos se encontram na casa da mãe uma vez por mês e sempre é muito tumultuado. Os trabalhadores sociais descrevem o comportamento autoritário de Didier e Sylvie com os mais novos e com a mãe, a tal ponto que os encontros da senhora M. com seus três filhos mais novos ocorrem num lugar designado pelo juiz, protegendo-a da violência dos mais velhos. Ao mesmo tempo, diz-se que a mãe continua recebendo vários homens, em noitadas regadas a muito álcool, as quais Sylvie e Didier assistem quando estão em casa. Por outro lado, a violência de Didier e Sylvie não pára de aumentar. Desde a maioridade eles moram com a mãe. A violência familiar é tanta que Chantal B. tenta o suicídio várias vezes. Em novembro de 1990, data de sua maioridade, Nathalie volta para a casa da mãe, deixando para sempre a família de acolhimento que a criara desde o nascimento. (Casal Papin) No dia 2 de fevereiro de 1991, o Juiz da Vara Criminal condena Didier M. a cinco meses de prisão sem sursis por agressões e ferimentos voluntários à Nathalie e a 1.000 francos de multa por roubo. Nathalie retorna ao domicílio familiar após ter alta do hospital.

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No dia 8 de fevereiro, Nathalie morre com as vísceras esmagadas e o crânio fraturado, depois de ser agredida a socos e barra de ferro por Sylvie e Didier. A mãe não pôde intervir, aterrorizada pela violência dos filhos. Ela conseguiu apenas colocar a filha agonizante na cama e esperar o médico que Sylvie chamou horas depois, tarde demais. Como conseqüência, Mickaël é hospitalizado em psiquiatria por auto-mutilação e estado de pânico. Contra a opinião do psiquiatra que temia pela segurança do juiz (sic), o garoto foi convocado e declarou que tem “medo de ser Didier, como também da própria violência” ; tem “medo de fazer o mesmo que ele.” Por carta do mesmo psiquiatra, soube-se que a convocação de Mickaël tinha acalmado seu comportamento a tal ponto que ele veio a audiência sem tomar nenhum medicamento. Em 12 de março de 1993, o processo de Nathalie passou no Tribunal do Crime. Sua mãe que, nesse meio tempo, casou-se em segundas núpcias com um turco, foi condenada a 18 meses de prisão com sursis, com período de prova de três anos. Numa das audiências, Sylvie chora e explica seu gesto dizendo ter matado a irmã porque ela parecia com sua mãe, o que ela odiava : ela era mole e passiva. Ela foi condenada a cinco anos de prisão, com 2 anos de sursis. Didier foi condenado a sete anos de prisão. Seu advogado disse que este processo é uma chance para impedí-lo de se parecer com o pai. O Michel M. assiste a todos os debates ao lado dos dois filhos Jérôme e Jacques, que se aproximaram dele desde o primeiro dia de maioridade, depois de nove e onze anos de retirados da familia. A advogada de Sylvie contou que ao sair da prisão, ela foi viver com o pai, de quem se separou pouco depois de violenta discussão, para em seguida, ir viver com um amigo. O quê o Direito pode fazer pelo sujeito?

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O PROCESSO COMO RITUAL INDISPENSAVEL AO SURGIMENTO DE UMA VIDA HUMANA CIVILIZADA

A - A FASE DE INVESTIGAÇAO OU A ELABORAÇAO DA QUESTAO 1° - Quem solicita: o aprendiz de cozinheiro ou o guardião da ordem publica genealogica? 2° - Qual é a demanda do Juíz ? A Questão 3° - A prova B - A AUDIENCIA DE JULGAMENTO: o encontro de uma subjetividade com uma função simbólica 1° - A subjetividade também é uma responsabilidade do Juíz 2° - A função parental do Juíz

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O PROCESSO COMO RITUAL INDISPENSAVEL AO SURGIMENTO DA VIDA HUMANA CIVILIZADA

« Então apareceu a raposa » — Bom dia, disse a raposa. — Bom dia, respondeu polidamente o Pequeno Principe, que voltou-se mas nada viu. — Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira. — Quem é você? disse o Pequeno Principe. Você é tão bonita. — Eu sou uma raposa, disse a raposa. — Vem brincar comigo, propõe o Pequeno Principe. Eu estou tão triste … — Eu não posso brincar com você, disse a raposa. Você ainda não me cativou. — Ah! Desculpe, disse o Pequeno Principe. Mas depois de pensar um pouco continuou: — O que significa “cativar” (…) — E uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa criar vinculos (…) Para mim você é so um menino igual a cem mil outros meninos. E eu não preciso de você. E você também não precisa de mim. Para você eu sou uma raposa igual a cem mil raposas. Mas se você me cativa, nos precisaremos um do outro. Você sera unico no mundo. Eu serei para ti a unica no mundo (…) A raposa calou-se e o olhou demoradamente o Pequeno Principe. — Por favor … me cative! disse ele (…) No dia seguinte, o Pequeno Principe voltou. — Seria melhor que você viesse na mesma hora disse a raposa (…) Se você vem a qualquer hora, eu não saberei nunca a que hora vestir meu coração … E preciso um ritual. — O que é um ritual? disse o Pequeno Principe. — E uma coisa quase esquecida, disse a raposa. E que faz que um dia seja diferente dos outros dias, uma hora das outras horas. Antoine de Saint-Exupéry. O Pequeno Principe10

10 Tradução em português de…

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Lembro aqui o resultado da pericia psiquiatrica de Didier para o qual a familia era nada mais que um aglomerado de individuos sem definição ; da pericia de Sylvie que nos mostra que ela não diferenciava as de idade de uns e de outros ; do advogado de Didier para o qual a questão central do processo era de não tornar-se (como) seu pai ; de Sylvie que nos diz ver em Nathalie, a mãe mole e passiva ; de Mickaël que veio me falar de seu medo de ser Didier depois do crime. Ao final de dezoito anos de trabalho social e judiciario, tinha-se a impressão que um dia não era diferente de outro dia, um ser humano de um outro ser humano. Essas crianças nunca puderam ser cativadas, isto é, eles nunca foram unicas para alguém e, em particular, para seus pais. Tudo por falta de ritual, se cremos ao que diz a raposa, por falta de respeito as regras do processo civil, como mostrei na introdução, resituando-as na sua dimensão simbólica. Tudo por falta de um formalismo necessario, legitimando uma autoridade exterior à questionar e designar cada um no lugar que lhe cabe pelo nosso direito civil de filiação, permitindo assim, pelo espaço criado entre cada sujeito, o surgimento do vinculo e da palavra. St. Exupéry nos coloca no centro de nosso problema, ao mostrar o quanto é essencial o respeito dos rituais na criação dos vinculos ; o respeito do processo que permite o surgimento de sujeitos do direito, portadores de obrigações e de dividas uns para com os outros. Os artigos 375 e seguintes do Codigo Civil, 1181 e seguintes do Novo Codigo de Processo Civil, autorizam um Juíz a intervir em uma familia, limitando o poder familiar, em nome do perigo para a criança. Duas etapas devem ser respeitadas, em primeiro lugar, uma fase de investigação, antes de passar a segunda, do julgamento. A - A investigação ou a elaboração da Questão Penso que esta etapa tem um papel essencial, bem mais decisiva, que a fase de julgamento. Neste tempo de investigação obrigatorio, o processo nos mostra a necessidade de nos distanciarmos do horror. Esta analise é indispensavel para não respondermos por um “acting out” institucional ineficaz. Nesse tempo obrigatorio, o processo nos protege dos efeitos de urgência e de passional que, juntamente com o intoleravel e com o incompreensivel11, cria um curto circuito na reflexão e uma total confusão de lugares. Quando eu estabeleço um mandato12 à uma equipe educativa, à um psiquiatra, um psicologo ou uma assistente social para avaliar a existência de um perigo grave, identificado e atual, come exige o Supremo Tribunal Federal ?? peço-lhes que se dêem o tempo necessario de elaborar a Questão. Trata-se de detectar, a partir da analise de um destino familiar, realizada com base no nosso direito civil da filiação, ou seja, dentro de uma perspectiva genealogica, onde se abre a brecha por onde se insere a barbarie. Peço-lhes que demonstrem de que maneira a loucura vem minar a humanização de uma familia. a) Quem solicita? O aprendiz de cozinheiro ou o guardião da ordem publica

11 Italicos da tradutora. 12 Apos a notificação que dá origem a abertura da intervenção do Juizado da Infância e da Juventude, a família é recebida em audiência e segundo a avaliação da situação de perigo, algumas decisões podem ser tomadas : retirada imediata da criança, investigação social, pericia da criança e dos pais, AEMO etc.

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genealogica? A meu ver, devemos insistir sobre a identidade de quem ordena uma medida de investigação social: trata-se bem de um Juíz e não de um inspetor da ASE 13, de uma entidade administrativa ou de uma assistente social. Qual a função de um Juíz na organização da proteção judiciaria da criança e do adolescente, na França? Podemos defini-lo como um aprendiz de cozinheiro do direito que, em função dos ingredientes psicologicos, sociologicos, filosoficos ou outros, vai se contentar de adicionar um pouco de direito as situações de crianças em perigo devoradas pela instituição judiciaira. Assim, no caso que nos interessa, adicionamos uma OPP quando lidamos com uma mãe desnaturada, ou com um mau pai e crianças infelizes (em termos pseudo-cientificos: uma mãe débil e imatura prisioneira em uma perversidade passiva, um pai perverso e paranoico e crianças psicologicamente desestruturadas.) Como em todo processo de digestão, a instituição judiciaria arrisca de comer a criança junto com o dossiê, sem integrar o problema de fundo. Quando se ocupa uma função de Juíz , é legitimo ter outra ambição que a estritamente culinaria : a função de guardião de uma ordem publica genealogica. Assim, quando encaminho um pedido de investigação aos trabalhadores sociais, enquanto Juíz da Vara da Infância e da Juventude, minha posição é de guardião des lugares legais e subjetivos atribuidos pelo direito civil da filiação a cada sujeito, dentro de uma ordem familiar, ao mesmo tempo que guardião do respeito dos direitos e obrigações que esses sujeitos devem manter entre eles. Retomando, uma antiga intervenção de Daniel Boulet, cito, a titulo de exemplo, algumas dessas obrigações: 1° - Zelar que a criança tenha uma filiação paterna e materna, legitima ou natural, pelo sangue ou ficticia, pela adoção; 2° - Zelar para que a criança tenha o nome de seus pais; 3° - Zelar que pai e mãe se encarreguem da proteção a criança, em termos de segurança, de saude e moralidade; 4° - Zelar quanto as relações pessoais da criança com seus avos; 5° - Zelar quanto ao respeito que a criança deve ter a pessoas idosas e a seus pais (art. 371); 6° - Obrigação pelos pais de não deserdar totalmente sua descendência, o que obrigaria cada um a permanecer na indivisão… Vocês ja entenderam que a minha questão não tem nada a ver com estudos, mesmo perfeitos, de sistema familiar analisado atras de espelho, para me dizer quem toma o lugar de quem e que cadeira deve-se retirar para modificar um pretenso disfuncionamento familiar, nessa grande dança da cadeira.

13 ASE – Aide sociale à l’enfance – departamento da DDASS, encarregado da proteção a criança e ao adolescente.

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Pouco me importa também, que me descrevam uma mãe carinhosa, a limpeza da casa, a boa alimentação das crianças ou ainda o horror dos atos cometidos por tal e tal pai e mãe. b) Qual é a demanda do Juíz ? A Questão. Para retornar ao caso exposto, convém observar que sempre agimos na urgência, provocando um curto circuito na fase de investigação, isto é, na fase de formulação da Questão. Quanto as investigações sociais que acompanharam as decisões de afastamento das crianças, elas nos relatam, uma a uma, a monstruosidade da mãe ou, ao contrario, de sua boa vontade, o carater bom trabalhador do pai, antes de coloca-lo no lote dos grandes perversos. Quando Chantal M. mata seu primeiro filho, maltrata os outros, não creio que o Juíz precise de educador ou de psicologo para saber que ali existe perigo real. A questão que surge no pedido de investigação, mais precisamente, a questão que parece encarnar essas crianças mortas ou sobreviventes não é, do ponto de vista do direito, a questão da monstruosidade da mãe ou do pai, mas a impossibilidade para esses pais de transmitirem suas proprias dividas de humanidade a seus filhos. Eis ai o perigo cuja prova deve-se buscar e não a prova dos maus tratos que concernem o Juíz da instrução. A verdadeira morte não é que a mãe mate seu primeiro filho, portador do nome do pai. Tampouco é a morte de Nathalie por Didier e Sylvie. O verdadeiro crime não é o estupro de Sylvie pelo pai, nem o verdadeiro horror que Chantal M. mantenha relações com seu cachorro. A verdadeira morte não tem nada a ver com o desaparecimento ou a violação da integridade do corpo. O crime contra a espécie se situa além do biologico. Pior que fazer desaparecer ou maltratar fisicamente seres humanos, é de jamais ter permitido aos filhos de tornar-se sujeitos, enquanto crianças, identificadas numa ordem genealogica e, pior ainda, de não encontrarem lugar enquanto seres humanos, marcados na ordem da espécie14. Na verdade, o casal M. vai além de eliminar fisicamente os filhos. Antes mesmo do nascimento, ja haviam matado a representação destes, tamanha a impossibilidade de permutarem os lugares subjetivos na ordem familiar, de tornarem-se pais de seus filhos, o que pressupõe renunciar à continuar crianças de seus proprios pais. Assim, a questão que me parece encarnar essas crianças mortas, violadas ou espancadas é da ordem da perversão e mesmo de ausência de toda representação parental. Nessa tragédia familiar, nenhum pai concreto, com tudo o que poderia tomar lugar de instância paterna, permitiu de separar a criança da mãe, isto é, de salvaguardar a ordem das gerações, fazendo surgir um filho no mundo humano. c) A prova

Para validar nossa hipotese e trazer a prova do perigo, lembremos que Chantal M. é filha da feiticeira do lugarejo, psicotica para os psiquiatras, e de um pai descrito como pouco inteligente, alcoolatra. Não podemos esquecer que a mãe de Michel M. é da familia Papin, que seu pai é alcoolatra e inexistente, tanto quanto o de sua mulher. Observem a violência e o alcoolismo de Michel M. e sua impossibilidade de trabalhar, como se não pudesse pagar por um trabalho assalariado, um lugar na sociedade, cujas exigências, aprendemos serem legitimas. Parece evidente que o casal M. nunca recebeu limites de um pai concreto, da mesma forma que nunca deixaram de serem as crianças de seus pais, particularmente de suas mães. A mãe do Sr. M. ia visita-lo na prisão todos os dias e este dizia ser muito ligado a

14 Italico da tradutora.

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ela. Chantal M. ia ver sua propria mãe durante muito tempo, as escondidas. E certo que nada permitiu a esses dois seres, em todo caso ao pai, de dar o grande salto no sentido da humanização e assim enfrentar a angustia, o odio ou a loucura de suas mães impossibilitadas de desgrudar dos filhos. Desde a notificação de 1965, essas crianças encarnam a questão da falência do pai. Não se trata apenas de imaturade materna, de debilidade mental ou de paranoia paterna, trata-se de identificar como, nas duas linhagens familiares, se transmite a loucura. Como os pais se veem livres da principal responsabilidade educativa: “dever a divida”, como diz de maneira clara Charles Malaboud, dever o limite e a humanidade. A partir dai nada mais nos espanta: que Chantal M. mate seus filhos, que Michel M. violente sua filha, que Chantal M. tenha relações com o cachorro e que Didier e Sylvie matem a irmã. Tudo isso é apenas a “mise en scène” do mesma questão que, por não ser resolvida, se reatualiza eternamente. Nesse “clã” M. (assim que se falava deles durante o processo no Tribunal do Juri) não havia lugar para um pai digno desse nome. A meu ver, o curto circuito na maneira de conduzir o questionamento impediu de evidenciar um crime mais grave que os crimes biologicos : o crime de tudo o que poderia representar a grande ausência paterna. A monstruosidade dos atos nos mostra a dimensão da pilhagem subjetiva. Por falta de formulação da questão, não pudemos dar nenhum estatuto ao perigo que se transmitiu tranquilamente dos avos aos pais e dos pais aos filhos, por um fenômeno de parentalização. Observe-se o que se diz de Didier e Sylvie no final desse dossiê: eles maltratam a mãe e a historia recomeça com eles. Eles se veem em posição de pais maltratando a mãe criança e débil mental, por um novo curto circuito assustador da trajetoria familiar e da perspectiva genealogica, selada, a meu ver, pelo veredito do Tribunal do Juri, que libera unicamente a mãe da prisão. Sem formulação da questão, a tragédia se repete, do mesmo modo que a autoridade judiciaria que gagueja separações e separações15, sem jamais se perguntar sobre o que não consegue surgir das decisões. Essa mesma autoridade pode entregar Michel e Patrice à mãe, cheia de boa vontade. Mais tarde, o Juíz da Vara de Familia pode confiar a guarda ao pai, ou avaliar que o risco de entregar-lhe os filhos é menor que executar as decisões do Juíz da Infância e da Juventude, ao qual ele se opõe. Numa sorte de “mutertum” (esta expressão é utilizada por Pierre Legendre), este pai é descrito como “uma boa mãe” (o que, alias, me parece proprio de todo pai paranoico). E entretanto … por tras dos discursos afetivos lenientes ou psicologisantes, o destino familiar continua a destruição, sem que a ligadura das trompas de Chantal M., demanda desesperada de limite dirigida ao médico, constitua uma resposta satisfatoria do ponto de vista da civilização. Aqui não se trata do corpo, e sim de representações insanas de si mesmo e da ascendência, que nenhum biologista podera esterilizar, mesmo que essa verdade desagrade a alguns. Que fazer então? Assim entramos na fase do julgamento. B - A audiência de julgamento : o encontro de uma subjetividade com uma função

15 OPP no original.

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simbólica. Pela sua ritualização, o processo, opera uma pontuação do tempo ; identificação dos lugares (o que cabe ao Juíz , ao trabalhador social, ao jurisdicionado), formalização das relações (o Juíz não pode entrar em relação com os membros de uma familia sem supor que haja uma prova quanto ao perigo e a familia so pode dirigir-se a ele dentro de ritos precisos). Talvez assim o processo teria facilitado o acesso de cada sujeito à simbolização, ou seja, à representação da ausência de representação paterna detectada durante a instrução. Nesta segunda etapa do processo, a do julgamento, caberia responder a essa questão, falar, dar-lhe sentido e quem sabe, então, restaurar uma representação paterna. Para tanto, o Juíz teria que reivindicar, por um lado, sua função de intérprete, por outro, uma função parental. 1° - A subjetividade também é uma questão do Juíz O casal M. foi ouvidos pela primeira vez pelo Juíz da Infância e da Juventude no dia 28 de maio de 1969, ou seja, quatro anos apos a denuncia sobre Patrice, em seguida, no dia 8 de dezembro de 1971 e 4 de dezembro de 1980. A mãe foi ouvida em 8 de junho de 1982 para denunciar o incesto du pai sobre Sylvie. Em 1992, Mickaël, Jérôme e o pai (destituido do poder familiar), foram ouvidos. A mãe não compareceu. Em 17 anos de processo, mais de vinte decisões foram tomadas e os jurisdicionados so encontraram o Juíz cinco vezes. Pois bem, poderiamos nos contentar de dizer “e então?…”. Afinal de contas, as decisões foram tomadas e notificadas às partes. Para que encontrar o Juíz ? Devo lembrar que fora os casos de urgência, o processo obriga o magistrado a proceder a oitiva das partes e de motivar suas decisões. Toda a questão é de defintir o fundamento e conteudo do discurso juridico. Em primeiro lugar, como sublinhei na introdução, trata-se, para o magistrado, de lembrar que os pais são devedores com relação ao filho, a quem devem a humanidade. Isso, se cremos ao que a antropologia e a psicanalise nos ensinam: o respeito do interdito de morte do pai, entendido como toda instância (ser humano, instituição, representação) podendo « penalizar » a civilização. Todavia, para o Juíz não se trata de se lançar num jargão psicologisante durante as audiências, que var acabar parecendo uma psicoterapia forçosamente de péssima qualidade. Não é em nome do complexo de Edipo que tomamos nossas decisões, mas em nome da lei. No caso da familia M., parece-me que todos os elementos estavam presentes para que um magistrado apreendesse a questão levantada: a falência do pai, numa linguagem simples e juridica. Para tanto, é preciso aceitar que os Juíz es se encarreguem da subjetividade dos seres, isto é, da representação que cada um tem de sua propria humanidade, do que eles são. A oitiva dos jurisdicionados pelo Juíz toma, assim, um sentido completamente diferente : o lugar de encontro de uma subjetividade com uma função simbólica, processualmente legitima. Uma palavra insana ou desesperada encontra uma palavra instituida. Compreendemos, dessa forma, todo o drama da ausência ou da perversão do fundamento do discurso juridico, se à uma palavra em busca daquilo que a sustenta e da limites ao sujeito, respondemos pelo silêncio ou por um discurso vagamente analitico. Volto ao caso que tratamos, onde entendo o pedido de Chantal M., para que lhe empeçam de subverter a sua função parental (impedindo-a de matar seus filhos). Compreendemos também que ela procure limites de outro lado, fazendo-se esterilizar por um médico.

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Assim, e a condição sine qua non para que o Juíz não confunda os lugares (em particular dos psi), ele deve preencher essa função de intérprete de uma realidade familiar onde lhe cabe de designar os desertores de lugares legais (o lugar do direito civil da filiação) e de ordenar aos ocupantes ilicitos da subjetividade de retomar ao lugar que lhes cabe. Neste caso, tratava-se de notificar à Chantal e Michel M. que não podiam continuar sendo crianças, matando ou maltratando seus proprios filhos, ou tornando-se filhos dos proprios filhos, tendo relações sexuais com eles ou deixando-se maltratar por eles. A partir do momento em que o Juíz desempenha sua função de intérprete e somente a partir dai, o trabalho social e clinico pode operar sua obra de civilização das imagens, sob controle do Juíz , referenciadas ao direito civil, e não a uma pretensa ética, uma pretensa idéia do justo, ou do que pode ser psicologicamente equilibrante. Insisto nesse ponto : não se trata para o Juíz de normatizar os funcionamentos familiares. Trata-se (e ai se encontra a responsabilidade antropologica e politica do Juíz ) de legalizar esses funcionamentos pour uma ordenação das representações que cada sujeito faz do que deve ser sua ascendência, dele mesmo e de sua descendência. Ou seja, trata-se para o Juíz de garantir o que chamo a ordem publica genealogica 15, por uma ordenação dos lugares genealogicos e uma legalização das representações ligadas a esses lugares. Sem esse trabalho judiciario anterior necessario, que vem marcar uma familia do cunho do direito, significando-lhe a ilegalidade de uma trajetoria, de um destino familiar, não existe, a meu ver, um trabalho social possivel. Falta para essas pessoas ter encontrado um Juíz , um dia, que tenha desempanhado o papel de espelho, refletindo suas imagens: a que eles deveriam ser e o que são. Todo trabalho social desarticulado da referência ao direito civil me parece relavar do controle social, isto é, de uma empreitada de submissão do sujeito humano aos imperativos de gestão de uma sociedade. Deixo claro a importância que vejo na formação juridica de trabalhadores sociais, para que possam agir apoiando-se no trabalho judiciario, no sentido de uma reapropriação do direito por cada ser humano : uma reapropriação de uma imagem decente de si mesmo. Na verdade, quero sublinhar a importância que dou a formação de intérprete dos magistrados (infelizmente, em oposição ao que me parece a doutrina dominante de hoje). Sem isso, ele tem pouca chance de tornar-se o que os adolescentes, as familias chamam de : “meu Juíz ”, mostrando, por esse possessivo, ter encontrado, enfim, a sua função simbólica, o que so é possivel pela mediação da subjetividade de um Juíz que corre o risco de se expor, de interpretar. 2° - A função parental do Juíz e das Instituições Desde que o Juíz torna-se « meu Juíz » ou o « Juíz fulano de tal », um grande passo no sentido da humanização foi realizado, na medida em que o seu lugar é assim individualizado, ou seja, o jurisdicionado coloca um rosto onde se encontra a função de Juíz , reconhecendo no seu papel a diferenciação dos outros trabalhadores sociais e diferenciador de lugares na ordem familiar. Nos casos que encontramos, o « Juíz fulano de tal » vem encarnar a representação daquele que por definição, é ausente : o pai. Ao mesmo tempo que significar sua absoluta

15 Italico da tradutora.

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necessidade, ele vem, paradoxalmente, suprir a falta. No dossiê M. não estou certa que os membros dessa familia tenham entendido, apesar de quase vinte anos de intervenções judiciarias, o que era um Juíz , e em que ele se diferenciava da assistente social ou da DDASS. Na familia M., o fato do judiciario não ter ocupado o lugar e a função de guardião da filiação, a confusão de lugares institucionais acabou reproduzindo como um eco a confusão de lugares da ordem familiar. Neste caso, não é por excesso de interpretação (como é o caso dos Juíz es « psi », que usurpam a linguagem de ciências humanas) mas por ausência, que nenhuma articulação entre o campo juridico e o campo social pode ser construida, pois não puderam ser diferenciados. O dossiê M. me parece ilustrar perfeitamente a idéia que o direito não possui nenhuma dimensão clinica, isto é, a nada serve do ponto de vista da socialização ou da prevenção, desde que não seja pronunciado por uma pessoa instituida para fazê-lo, dentro de uma ordem politica bem definida (os trabalhadores sociais tentaram em vão realizar essa “chamada à lei”). Somente o Juíz que possui a convicção absoluta de ser guardião de um sistema de filiação, emanação secularizada e contemporânea do interdito fundador de toda sociedade, pode fazê-lo. Em uma palavra: um magistrado convencido da dimensão simbólica de sua função. II - O NOME PATRONĪMICO COMO MARCA DA TRAGĒDIA “Detesto a Espanha e portanto escolhi de assinar um nome que me designa, de maneira provocante, como espanhol. De nenhuma maneira se trata de um acaso nessa escolha (…). A essa escolha insensata, inventarei todo tipo de razões. Explicarei que, através desse nome, é a figura de meu pai que rejeitei. E verdade que não tinha muitos motivos para estima-lo. Todavia, o argumento não vale nada, pois não tinha maiores razões para aproximar-me de minha mãe, mesmo que fosse de maneira simbólica. A sabedoria teria sido de aceitar a opinião de meu conselheiro literario e de esquecer meus pais para adotar um pseudônimo que, de maneira explicita, marcasse minha pertinência a França. Esse gesto de emancipação, eu me recusei de fazê-lo. Com o tempo, eu gostaria de me convencer que o fato de ter-me enterrado numa identidade escolhida ao acaso, exprime minha fidelidade ao exilio de onde eu sai (…) Eu fiz mais que escolher um nome que me liga ao meu odio”. Michel Del Castillo « Le Crime des Pères » Edition du Seuil A meu ver, é isso que faz com que Sylvie M., apesar de casada, apresente-se na audiência do Tribunal do Juri com o sobrenome do pai, explicando que, com o divorcio em andamento, estava se desfazendo de seu nome de casada. Ela fazia mais que escolher um nome que a ligava ao seu odio, ela mostrava, contra a sua vontade, a impossibilidade de fazer prevalecer a lei do codigo civil contra a lei do incesto.

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O nome é, sem duvida, a marca do pai pois, como eu sublinhei na introdução, assinamos todos o nome de nossa mãe ou do pai de nossa mãe. Por tras do nome, se desenrola toda a representação de um destino familiar. A marca desse pai assina a entrada na civilização ou na loucura. A - O trabalho sobre o nome não é o trabalho sobre o corpo. Como fazer para escapar a tragédia e ao destino do nome? Varios campos de intervenção devem ser dissociados: 1 - a mudança de nome pela ruptura do laço da filiação (adoção, negação de paternidade ou anulação do registro da criança) 2 - a destituição do nome (retirada do poder familiar) 3 - o afastamento do nome (casamento, divorcio, delegação de poder familiar, acolhimento institutional , familiar e direito de visitação …) Aqui também, como tentei fazer anteriormente, convém de sublinhar a importância de dois niveis: o nivel das representações e o da vida concreta. Lembro que de nada serve mudar de nome (pela adoção) de destitui-lo (retirada do poder familiar) ou de coloca-lo a distância (retirada da criança ) se não foi trabalhada com a criança a ilegalidade da representação paterna, forjada durante meses ou anos de relações pervertidas entre pais e filhos. Se não houver uma tal dissociação, pude observar o quanto os Juíz es e trabalhadores sociais, vitimas de um mal entendido, confundem quase sempre o trabalho sobre o nome e o trabalho sobre o corpo. Por falta de melhor escolha, o jurisdicionado conserva uma marca e identidade insana em vez de nenhuma, podendo mesmo ser levados a interrogar o Tribunal do Juri, ou a Vara Criminal sobre a legalidade de sua representação de humanidade, pagando por isso o preço do sacrificio de uma vitima. Assim, para voltar ao caso exposto, Mickaël M. colocado desde cinco anos numa familia de acolhimento, me diz em 1991 que ter medo de contagio, de ser igual a Sylvie e Didier pois também assinava M. e pertence a mesma familia. Ele me fala do pânico que sente face a uma tal violência. Seu corpo havia saido do meio familiar, mas aparentemente, ele continuava na mesma representação familiar da qual não conseguia se desfazer. Sylvie e Didier foram separados da familia bastante tarde, aos doze e treze anos. Essa separação tardia não explica o assassinato, não mais que esse fracasso justifica a separação desde o nascimento. Aqui também, haviamos protegido os corpos, retirando-os da violência familiar, sem todavia trabalhar as representações. Se o incesto ou maus tratos fossem somente uma questão biologica e genética, ja se saberia, ha muito tempo. Infelizmente, não é suficiente de separar os corpos para separar um sujeito de representações insanas que tem dele mesmo e dos pais. Ele carrega consigo suas representações para seu novo lugar de vida, onde vai reproduzir o mesmo comportamento. Mais que violação dos corpos, o incesto é a impossibilidade de distanciação das imagens parentais, o impossivel de existir em seu nome e por sua propria conta. No momento do processo por incesto, Jacques e Jérôme (retirados da familia aos nove e sete

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anos) ficaram do lado do pai, reagindo ostensivamente a toda critica que lhe era feita durante os debates orais. Nove e onze anos de proteção dos corpos não puderam impedir que esses dois jovens adultos se juntem ao pai, ao preço da negação da realidade, a realidade do incesto e da culpa paterna e de diabolização da mãe. Mal ou bem, tentavam restaurar a representação de um pai de quem precisavam, apesar de tudo. Na falta desse trabalho sobre as representações, a condenação do pai e a retirada do poder familiar tornaram-se logicamente injustas, do ponto de vista das crianças (para todos, inclusive para Sylvie). A lei tornava-se perseguidora, pois vinha retirar-lhes a unica pessoa que, segundo eles, os amava e tinha feito tudo para tê-los junto a si, desafiando o Juíz e a policia. Ainda hoje não estou convencida que considerassem como sendo fora da lei o comportamento tirânico e violento do pai. Quanto a mãe, filha de uma doente mental hospitalizada regularmente e de um pai alcoolatra, dira ao perito psiquiatra que viveu uma infância bastante feliz e normal. Os ultimos anos deste dossiê, ilustram perfeitamente que o trabalho juridico e social operou um curto circuito no campo das representações. Mesmo sabendo que a mãe das crianças, depois de divorciada, recebe varios parceiros sexuais nos fins se semana, que, certamente as crianças assistem a essas relações, que Sylvie é agredida por um amigo da mãe, que esta é descrita como incapaz de proteger seus filhos, que sua inércia os torna mais violentos, a justiça se esforça apenas para regularizar um direito de visitação, sem se decidir, nunca, de sua supressão pura e simples. Num tal contexto, que significado pode ter de colocar as crianças em meio institucional, onde lhes são oferecidas representações das funções parentais mais civilizadas e pedir-lhes, por decisão de justica, de encontrar os pais, cujas representações de seus proprios papéis, vão ao encontro de tudo o que vivem os filhos nas suas familias de acolhimento? Penso que dessa forma, nos os colocamos no centro de injunções totalmente contraditorias, no nome de um pseudo trabalho, cuja veracidade cientifica numa foi demonstrada, qual seja, a necessidade da manutenção de relações familiares, sem levar em conta o preço do traumatismo psicologico grave que pode ser criado para a criança, desse afrontamento de dois sistemas de representações, um inscrito na legalidade, o outro insano. Retirar uma criança de casa e suprimir os direitos de visitação, não tem nada a ver com uma adoção disfarçada, desde que seja claramente explicado. Mesmo separada fisicamente, a criança continua inscrita numa filiação e continua a assinar o nome de seu pais, sendo todavia protegida das representações que cercam seu sistema de filiação, pelo trabalho feito sobre a legalidade e ilegalidade. Negar esse aspecto é negar a dimensão simbólica do nome, negando, ao mesmo tempo, a ausência de abandono juridico ou voluntario da criança. Podemos, apesar de tudo, valorizar no espirito dessas crianças, a idéia que seus pais lutaram para guarda-las, mesmo que seja no nome de razões contestaveis. Uma decisão de separação pode impor-se como uma necessidade para trabalhar a realidade das representações parentais da criança, preservando sua ligação a funções simbólicas, que seus pais concretos deveriam incarnar, e das quais a protegemos. Retirar uma criança dos pais e suspender provisoriamente toda relação com a familia, não tem nada a ver com eugenismo.

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CONCLUSÃO Para finalizar, eu gostaria de insistir sobre a importância e a profundidade das demandas hoje dirigidas aos Juíz es e Trabalhadores sociais, que considero como depositarios de um questionamento essencial da humanidade sobre a humanidade. Essas demandas se formulam através de representações subvertidas do vinculo de filiação : interrogação sobre as origens do ser humano, ou mais precisamente, da maneira como este se representa, fala e teatraliza a angustia insondavel que o invade quando corre o risco de questiona-las. E lamentavel que recusemos ou tenhamos simplesmente perdido de vista esta questão fundamental que obriga a analisar toda sociedade como uma figura da espécie (mais uma expressão de Pierre Legendre) e não como um dado bruto, objetivo, que as ciências ditas sociais e humanas reduzem à existência de terrenos interativos, nos quais evoluem atores portadores de signos de distinção, à meu ver, « desreferenciados », ou que a genética e a biologia interrogam de maneira totalitaria, pretendendo esconder a angustia das origens e, em todo cao, não trazendo nenhuma ajuda ao homem, embaraçado com a terrivel ignorância de sua gênese. Analisar a sociedade como uma figura da espécie, isto é, como uma representação do que a linguagem não pode dizer mas somente significar, é, ao mesmo tempo, reabilitar e promover a função de intérprete dos artistas, dos juristas, dos « psis », dos politicos ou ainda da midia, descolando a sociedade de uma realidade na qual ela aderiu, confundindo a representação que ela faz dela mesma com o mundo real. Os Juízes, juntamente com muitos outros atores institucionais, são portadores de uma responsabilidade fundamental : de dizer e repetir indefinidamente que não ha sociedade viavel, isto é, de civilização e de reprodução possivel da vida humana sem ritual de legalização das representações da origem das origens, esse vazio vertiginoso que ameaça o sujeito humano de falhar eternamente, sempre que aborde a questão das origens, sem as representações adequadas para fazê-lo. O que fazemos dessa responsabilidade ? Quando poderemos reintegrar enfim nossa função de intérprete, trazendo para o terreno da reflexão, acontecimentos apresentados de maneira dispersa pelas midias ou os especialistas em ciências humanas, politicas e sociais, como sendo meros teatros da mesma questão que se repete eternamente ? Tomemos como exemplo os toxicômanos, presos ao horror e a fascinação da descida no abismo das origens (shoot). Em que o questionamento deles é diferente da interrogação dos grandes sabios geneticistas que se esforçam com ardor para ocupar o lugar de criador do homem ou ainda dos astronautas que visitam o universo procurando desesperadamente quem o criou ? Que ninguém se engane : meu proposito não é de colocar o direito no centro de tudo. Entretanto, é importante afirmar que o fenômeno institutional, ele sim, é central e constitui um dado estrutural da vida humana. Na sociedade de hoje, é urgente que os juristas procurem os vetores de representações da filiação e da ordem da espécie, a fim de avaliar se essas representações são legais ou não, se garantem ou não ao sujeito humano o acesso à logica da espécie, isto é, à possibilidade de se submeter à tudo o que é legitimo para

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representar o interdito fundador. A meu ver, ja pagamos suficiente o tributo dessa crença cega e infantil segundo a qual podemos nos fundar à nos mesmos, esquecendo a unica questão que é fonte de progresso para a humanidade : a elaboração de representações do vazio original e da democratização dos procedimentos de legalização dessas mesmas representações (tornando-as mais acessiveis). Penso que assim evitamos de produzir uma sub-humanidade, definida menos pelas suas condições socio-economicas que pela sua impossibilidade de ter acesso a logica do interdito. A questão da representação do vazio original convoca imediatamente a questão da Moral, da qual o sistema capitalista não podera se subtrair eternamente, quaisquer que sejam suas capacidades extraordinarias de adaptação e seu cinismo. Penso que se o direito pode fazer alguma coisa pelo sujeito humano é à condição que os Juíz es, assumam hoje a função de espelho em nossa sociedade, obrigando-a a se questionar sobre ela mesma, do ponto de vista da logica do interdito, como se um outro lhe pedisse. Por esse mecanismo do “como se”, que Pierre Legendre desenvolve na sua obra ja citada, abre-se um imenso campo de reflexões sobre o que eu chamaria, de maneira, sem duvida, pouco habil, a função dogmatica das representações sociais. Somente os Juíz es tem por missão essencial de garanti-la, assumindo, juntamente com outros, o lugar e a função mitologicos de espelho, sendo que o Juíz deve, além disso, de correr o risco, para cada sujeito humano, de olhar-se com ele no mesmo espelho que o representa. Ai esta a especificade do Juíz : ser, ao mesmo tempo, um ser humano e uma função simbólica, o reflexo e o espelho. Tradução : Marlene Iucksch16

16 Psicologa, psicanalista no Service Social de l’Enfance – junto ao Tribunal pour enfants de Paris