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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA UnB/IPOL O JUÍZO E A COMPREENSÃO NA RUPTURA POLÍTICA: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia Dissertação de Mestrado Mateus Braga Fernandes Brasília 2011

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UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIA POLTICA

UnB/IPOL

O JUZO E A COMPREENSO NA RUPTURA POLTICA: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

Dissertao de Mestrado

Mateus Braga Fernandes

Braslia2011

MATEUS BRAGA FERNANDESOrientador: Prof. Dr. Paulo Csar Nascimento

O JUZO E A COMPREENSO NA RUPTURA POLTICA: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

Dissertao para o Mestrado Acadmico em Cincia

Poltica da Universidade de Braslia, orientado pelo

Prof. Dr. Paulo Nascimento e apresentado Banca

de Defesa como exigncia parcial para a obteno de

ttulo de Mestre em Cincia Poltica.

Agncia de Fomento: Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq)

rea de Pesquisa: Cincia Poltica Teoria Poltica

Teoria Poltica Contempornea (7.09.01.04-0).

Linha de Pesquisa: Transformaes e impasses nas

democracias contemporneas.

Braslia2011

MATEUS BRAGA FERNANDES

O JUZO E A COMPREENSO NA RUPTURA POLTICA: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

Braslia, 31 de agosto de 2011.

Membros da Banca de Defesa:

__________________________________________Membro externo: Prof. Dr. Gerson Brea FIL/IH/UnB

__________________________________________Membro interno: Profa. Dra. Marilde Loiola de Menezes IPOL/UnB

__________________________________________Orientador: Prof. Dr. Paulo Nascimento IPOL/UnB

A poltica jamais atinge a mesma profundidade [que a filosofia]. A falta de profundidade de pensamento no revela outra coisa seno a prpria ausncia de profundidade, na qual a poltica est ancorada.

Hannah Arendt

O mais profundo a pele. Paul Valry

SUMRIO

0 Introduo ..................................................................................................................... 005

0.1 Apresentao resumida dos captulos .................................................................................010

1 Captulo 1: Poltica e Democracia em Hannah Arendt .............................................015

1.1 Situando o pensamento arendtiano .................................................................................... 016

1.2 O sentido da poltica ...................................................................................................... 027

1.3 O que fizeram os filsofos e o cristianismo com a poltica ..................................................... 031

1.4 A poltica dos antigos e a democracia dos modernos .............................................................036

1.5 A liberdade como sentido da poltica ................................................................................. 040

1.6 Questes finais: as ressignificaes de Hannah Arendt ..........................................................046

2 Captulo 2: O poltico e a plis ..................................................................................... 051

2.1 Antecedentes: poltica e violncia, pensamento e ao ...............................................................058

2.2 Primeiro esboo: uma viso homrica da plis? ....................................................................... 063

2.3 Introduo aos dois paradoxos ..........................................................................................070

2.4 Primeiro paradoxo: o heri entre a imprudncia da coragem e o exerccio da phrnesis ...................074

2.4.1 Sobre a phrnesis ......................................................................................................................... 074

2.4.2 A coragem como prtica da phrnesis ......................................................................................... 076

2.4.3 Sobre a coragem ........................................................................................................................... 080

2.4.4 Aspectos histricos e conceituais: entre a pica e a lrica ............................................................ 083

2.4.5 A performatividade do heri: uma vontade de poder-fazer ..........................................................089

2.4.6 A reconfigurao da plis exige a reconfigurao do heri ......................................................... 093

2.4.7 A coragem do heri trgico .......................................................................................................... 096

2.5 Segundo paradoxo: a plis entre a estabilidade da paz e o conflito da guerra .................................... 099

2.5.1 A dimenso ontolgica, elitista e utpica .....................................................................................102

2.5.2 A dimenso institucional, democrtica e concreta ....................................................................... 104

2.6 Questes finais: da theoria da distino prxis da relao ...............................................................108

3 Captulo 3: O Juzo e a Compreenso na poltica ......................................................119

3.1 Uma observao fenomenolgica das epgrafes de O Julgar .................................................. 122

3.2 Primeira brecha: os preconceitos e a poltica ....................................................................... 131

3.3 Buscando um tertius comparationis para a abordagem fenomenolgica do juzo ........................ 139

3.4 O Juzo como tema poltico ............................................................................................. 144

3.4.1 Juzo poltico: interseo no jogo de reflexo entre filosofia e poltica ................................148

3.4.2 Crtica ou Juzo? Por uma mediao entre teoria e prtica ................................................155

3.5 Juzo Esttico: a operao de reflexo-imaginao sobre a existncia e o mundo ........................167

3.5.1 A contradio na ao e no pensamento: o terceiro includo ............................................. 170

3.5.2 Sobre a imparcialidade: a importncia relativa do observador ...........................................172

3.5.3 Esttica da existncia: o juzo como mediador agonstico entre gosto e gnio ...................... 177

3.5.4 Sensus Communis: o terreno comum para o juzo poltico ................................................181

3.5.5 Imaginao: a faculdade comum para o juzo poltico ..................................................... 183

3.6 Formao do Juzo: uma techn para a prxis ......................................................................189

3.6.1 Questionando a tcnica: entre a poesia e a simulao ...................................................... 191

3.6.2 Os quatro componentes da CNV: explicitando a busca da compreenso ..............................195

3.7 Questes finais: sobre a Compreenso e a Responsabilidade .................................................. 204

3.7.1 Da Imaginao como Compreenso .............................................................................206

4 Concluso ...................................................................................................................... 211

4.1 Os desafios da democracia: liberdade, igualdade, verdade e autoridade .................................... 214

4.2 Topografia e Cartografia: o diagrama da democracia substantiva e expressiva ........................... 220

4.3 Em busca de uma democracia como reflexo cooperativa ...................................................... 227

5 Apndice: A imagem do deserto um deserto de imagens ....................................... 230

6 Referncias Bibliogrficas ........................................................................................... 235

RESUMO

Esta pesquisa pretende investigar alguns aspectos sobre o que acontece quando as pessoas fazem poltica. Por meio de reviso bibliogrfica, feita a partir de escritos de Hannah Arendt, estuda-se como e em que medida sua obra permite rever a conceituao da poltica frente aos desenvolvimentos contemporneos da democracia. Esta abordagem no deriva somente de sua teoria da ao, mas proposta a partir da faculdade do Julgar e da capacidade de Compreender. Assim, no que tange poltica, faculdade do Juzo e ao exerccio da Compreenso, admite-se que possvel estabelecer conexes entre ideias originais de Arendt e a apreenso de uma noo substantiva e expressiva de democracia, a qual chamamos pluriarquia. Portanto, luz dessa noo que so expostos alguns dos ganhos tericos ao se sustentar a manuteno da faculdade de Juzo e da capacidade de Compreenso como atividades, ao mesmo tempo, potencializadoras da atividade poltica, mediadoras de conflitos e promotoras dessa viso de democracia. Com isso, indica-se que um locus de emergncia da poltica no mundo contemporneo tambm se encontra na vida do esprito, partilhada entre os homens, e no somente na ao coletiva. Por fim, ressalta-se que esta pesquisa constata que o uso do Juzo e da Compreenso e no s a liberdade de agir e de falar so importantes para entender e articular os diversos aspectos da teoria poltica de Arendt diante dos desafios experimentados politicamente na democracia.

Palavras-chave: juzo, compreenso, teoria da ao, Hannah Arendt, democracia.

ABSTRACT

This research aims to investigate some aspects of what happens when people do politics. Through literature review, made from the writings of Hannah Arendt, we study how and to what extent her work allows us to review the concept of politics in the face of the contemporary development of democracy. This approach not only derives from her theory of action, but it is also a proposal made from the faculty to Judge and the ability to Comprehend. So in respect to politics, to the faculty of Judgement and to the exercise of Comprehension, we admit that it is possible to establish connections between Arendt's original ideas and the apprehension of an expressive and substantive notion of democracy, which we call pluriarchy. Therefore, with this notion in mind, we disclose some of the theoretical gains in sustaining the maintenance of the faculty of Judgement and the ability of Comprehension as activities that, at the same time, empower political activity, mediate conflicts and promote this vision of democracy. This indicates that a locus where politics emerges in the contemporary world is also in the life of the spirit, shared by men, and not only in collective action. Finally, we emphasize that this study finds that the use of Judgement and Comprehension and not only the freedom to act and speak are also important to understand and articulate the various aspects of Arendt's political theory in the face of the challenges politically experienced in democracy.

Keywords: judgement, comprehension, theory of action, Hannah Arendt, democracy.

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

INTRODUO

O excesso da Ideia o que explicaa deficincia do conceito.

Gilles Deleuze

preciso confrontar ideias vagas com imagens claras.

Jean-Luc Godard

De que modo uma leitura arendtiana da poltica pode nos ajudar a rever alguns dos desafios da democracia?

Esta pesquisa continua o trabalho desenvolvido na graduao, quando fiz uma

apresentao detalhada das ideias contidas na obra de Hannah Arendt intitulada Lies sobre

a filosofia poltica de Kant, chegando concluso de que: i) a faculdade do juzo importante

poltica e filosoficamente para a ressignificao do conceito de poltica e de espao pblico,

desenvolvida por Arendt, e; ii) o exerccio dessa faculdade tem estreita relao com a

capacidade de compreenso.

Naquele momento, o objetivo que orientou o estudo de Graduao em Filosofia e

que tambm permear esta pesquisa de Mestrado em Cincia Poltica era estudar o que

acontece quando as pessoas fazem poltica. Mais especificamente, com esta ideia procurava

compreender trs questes: i) se possvel recriar, revitalizar ou ressignificar a poltica como

um espao pblico-poltico-democrtico, a partir da teoria poltica de Hannah Arendt; ii) de

que maneira o Juzo e a Compreenso podem auxiliar na tarefa de recriar esta viso sobre a

poltica e; iii) como podemos descrever os acontecimentos desta poltica; ou, em outras

palavras, como abordar o que imaginamos que acontece quando se faz esta poltica.

Agora, pretendo expandir essas concluses para os domnios de um dos modos

contemporneos de se tratar da poltica: a democracia. Entretanto, a insero das discusses

polticas de Hannah Arendt no domnio das teorias da democracia no imediata e , at certo

ponto, permeada por contradies que parecem insolveis. Cito pelo menos trs problemas

com os quais se confronta qualquer tentativa de caracterizar Arendt como uma terica da

5

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

democracia contempornea e, veremos, esses trs problemas esto intimamente ligados aos

trs desafios que esta leitura arendtiana indica como intrnsecos prpria experincia poltica

de democracia, a saber: i) o desafio da liberdade e da igualdade democrtica como conciliar

as demandas dos indivduos e da coletividade assumindo o destino comum e a pluralidade

humana como condies da democracia?; ii) o desafio da verdade democrtica como a

democracia pode se sustentar na opinio e se defender contra a demagogia?; iii) o desafio da

autoridade democrtica como conciliar a livre expresso, os procedimentos para a tomada

de deciso legtima e o ganho epistmico, pressupostos pela democracia?.

Assim, diante da tentativa de se caracterizar a abordagem arendtiana da poltica como

democrtica, o primeiro problema que pode surgir, embora nem sempre seja o mais

enfatizado, diz respeito ao vis dado por esta autora a sua concepo de poltica como

aristocrtica ou elitista, embora republicana. A possibilidade de que a poltica seja obra de

uma aristocracia ainda que nem sempre se d o devido reconhecimento ao carter peculiar

com o qual Arendt revitaliza o termo aristoi1 e sob as condies de uma comunidade

desinteressada de observadores plurais e livres, sempre lembrada como a que est na

contramo do desenvolvimento atualmente existente das democracias tanto terica quanto

empiricamente, para tomar emprestada uma expresso de Andr Duarte2.

Alm disso, como segundo problema, persistente o antagonismo que procura

demonstrar que sua teoria da ao fundada numa concepo paradoxal (seno, argumenta-

se, invivel) de poder e liberdade de ao3 os quais, sob o conceito de natalidade, exprimem

valorizao radical da novidade e de tudo que surge como novo no campo poltico. A crtica

feita, por vezes, na tentativa de se estabelecerem limites para essa novidade, j que Arendt

tambm parece valorizar igualmente a estabilidade institucional4.

1 H algumas passagens em que Arendt se refere, especificamente, aos aristoi na poltica. Cf. ARENDT, 2001. p. 28. Contudo, h tambm trechos em que esse conceito permeado por outras ideias, como a do gnio e a da originalidade do artista (Cf. ARENDT, 1993. pp. 79-81); da igualdade [isonomie] e da liberdade (Cf. ARENDT, 2001. pp. 41-42 e nota 21); da excelncia [aret] ou mrito (Cf. ARENDT, 2001. p. 58 e nota 39). Essas questes so abordadas no captulo Poltica e democracia em Hannah Arendt e tambm no Primeiro paradoxo desta Dissertao.

2 cf. DUARTE, 2007a. pp. 107-109.3 Habermas foi o primeiro a evidenciar esse tipo de crtica, sobre a viabilidade do pensamento arendtiano

em alguma sociedade moderna. Marcelo Jasmin, por exemplo, cita Habermas em seu prefcio. Cf. ABREU, 2004. pp. 11-12. A referncia original HABERMAS, 1980. p. 110.

4 cf. ABREU, 2004. pp. 24; 147-152. Essas questes so tratadas no captulo O poltico e a plis, especialmente no Segundo paradoxo desta Dissertao.

6

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

Finalmente, a carncia no desenvolvimento de uma teoria da justia, que possa

sugerir algum equilbrio com sua afirmao da liberdade como o sentido da poltica, tambm

parece dificultar o trabalho daqueles que pretendem aproxim-la dos tericos da democracia5.

Embora esse tema seja de fato mencionado poucas vezes, e em paralelo a suas reflexes sobre

a responsabilidade, v-se que a justia, para Arendt, se assentaria nos domnios da moralidade

e da jurisprudncia, e s pode adentrar o espao poltico sob as vestes de uma

responsabilidade partilhada e, consequentemente, coletiva e poltica; deixando de ser, talvez,

uma questo de direito. A justia, que deve julgar as aes cometidas por um homem isto ,

seus crimes particulares estaria, assim, em oposio ao perdo, que dado sempre a uma

pessoa, e nunca a seus crimes. Mas, se o perdo uma das categorias polticas fundamentais

fora estabilizadora para os efeitos da ao como se poderia ento conciliar poltica e

justia? a essa pergunta que Arendt parece no deixar respostas claras6.

Ainda assim, a despeito desses problemas, suponho que o caminho trilhado por Arendt

a partir do estudo da coisa pblico-poltica em direo ao estudo da vida do esprito e, em

particular, entre o estudo da vida ativa e o estudo da faculdade de juzo como a faculdade

diretamente ligada a um modo de vida poltico pode nos permitir conceber algumas

aproximaes entre a criao do espao pblico particularmente poltico e a noo de

democracia que articula a ao e a observao e que vincula a cooperao reflexo.

Portanto, se vemos que Arendt iniciou sua obra tratando de temas polticos a partir da

pluralidade humana (e no dO homem) e terminou enfocando justamente a vida do esprito

dOs homens, ento esse caminho pode ser descrito da seguinte maneira: dado seu diagnstico

pessimista para a revitalizao dessa poltica pluralista no mundo contemporneo7 ilustrado

5 cf. QUEIROZ, 2007. pp. 321; 329. A autora trata, especificamente, da ideia de desobedincia civil e de sua relao com a concepo de liberdade sinnima poltica, em um possvel contraste ideia de justia (de inspirao rawlsiana). Como outro exemplo mais direto, Maria Aparecida Abreu afirma, sobre a obra de Hannah Arendt, que h uma quase ausncia do tema da justia em sua obra (ABREU, 2004. p. 23.).

6 Pode-se argumentar que Arendt estabelece o que poderamos chamar de uma teoria fenomenolgica da justia no ps-escrito de Eichmann em Jerusalm, e em no mais que alguns pargrafos (retomados em textos posteriores). Cf. ARENDT, 1999a. pp. 317-322; ARENDT, 2004. pp. 79-111; 112-212; 282-294. Sobre a relao entre a responsabilidade e o perdo, cf. Questes finais: sobre a Compreenso e a Responsabilidade nesta Dissertao. Agradeo os comentrios de Wanderson Flor do Nascimento sobre esta questo.

7 Este diagnstico descrito, de distintas maneiras, por diversos autores. P. ex., cf. DUARTE, 2007a. pp. 108-109; KELLOGG, 2007. p. 196; ABREU, 2004. p. 31; CHOUDHURY, 2007. pp. 78-79. Arendt o apresenta mais detalhadamente em ARENDT, 2001. pp. 333-338, na seo intitulada A vitria do Animal Laborans.

7

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

na imagem do homem que vive satisfeito no deserto, auxiliado pela psicologia8 restaria

ainda investigar a pluralidade poltica que vive em cada homem, em seu esprito9. Ao

estudar, finalmente, essa vida do esprito, e em particular as faculdades do Pensar e do Querer,

Arendt percebe pouca ou nenhuma atividade poltica (que seja realizada no plural), como

veremos. Contudo, ao abordar a faculdade do Julgar, encontra uma brecha para revitalizar a

poltica no homem e faz-lo caminhar pelo deserto, at encontrar outros homens como ele, no

osis, e recriar o espao pblico-poltico que ela descreveu ao longo de sua obra. Essa parece

ser, portanto, a alegoria10 para descrever e compreender a proposta arendtiana de criao e

formao do espao pblico-poltico, porque nela podemos ver vrias das caractersticas

apontadas por Arendt em sua descrio da coisa poltica, a saber, pelo menos: i) o lanar-se do

homem ao incio do novo; ii) a coragem de falar e de agir ou seja, de realizar grandes obras

como virtude poltica; iii) a necessidade de mover-se livremente, o risco da liberdade que

, tambm, o risco da poltica e a legitimidade de exigir segurana (por exemplo, por meio

de instituies civis); iv) a importncia do encontro com outros iguais que podero dar

continuidade ao; v) a distino entre a ao (realizada individualmente como incio e em

grupo como continuao) e a observao (realizada tanto solitariamente como no

envolvimento em comunidade); vi) articulao do duplo ator-observador para conceber a

atividade poltica; vii) os limites da inovao como os limites do osis, que libertam e

protegem, como na plis grega.

Este estudo se prope, assim, no tanto definio de democracia luz do pensamento

arendtiano, mas almeja, principalmente, fazer conexes entre as ideias originais de Arendt

no que tange poltica e faculdade do juzo, vislumbradas naquela alegoria. Com esta

investigao, procurei tambm levar em considerao a possvel apreenso dessa noo

8 Esta imagem apresentada no Fragmento 4 de O que Poltica? (cf. ARENDT, 1999b. pp. 177-183.), cuja leitura mais atenta farei no Apndice A imagem do deserto um deserto de imagens desta Dissertao.

9 Kant, citado por Arendt, quem nos indica que a razo no foi feita para 'isolar-se a si prpria, mas para entrar em comunho com os outros' (KANT apud ARENDT, 1993. p. 53.). Para saber como essa comunho pode acontecer que investigamos a faculdade do julgar, no captulo O Juzo e a Compreenso na poltica desta Dissertao.

10 Uso aqui o termo alegoria como uma definio de trabalho, e somente para diferenciar da ideia de metfora e analogia, que so o modo de funcionamento do pensamento especulativo, como veremos no ltimo captulo desta Dissertao. Sobre a questo da alegoria, cf. MACHADO, 2009. pp. 197-199; 261-264, respectivamente, sobre signos e pensamento e sobre imagem-afeco.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

substantiva e expressiva de democracia11, a qual chamei de pluriarquia12. O que pretendo

com a proposio desse conceito compreender a democracia como um substantivo e como

uma expresso, e no s como um adjetivo dado a um modo de constituio ou regulao da

poltica13.

Dessa forma, se podemos ter muitas vises sobre a democracia, embora poucas delas

desenvolvam o conceito em seu sentido forte14, preciso observar a democracia como

processo descontnuo, que opera na brecha que volta e meia se abre entre sistemas

autocrticos e totalitrios para impedir seu avano, ou ainda, como modo de vida que se

virtualiza e se atualiza constantemente15, para que no se converta em uma noo geral ou

idealizada de democracia, que nunca se realiza por ser ela mesma, de todo, impossvel.

Novamente, a faculdade do juzo e o exerccio da compreenso, se os entendermos

como atividades de reflexo cooperativa, podem auxiliar nessa ressignificao, mostrando

que h outras possibilidades do agir poltico no espao pblico-poltico, para alm do que se

pode chamar de teoria da ao arendtiana o que, veremos, se encontra na compreenso.

Procurei explorar o argumento de que a faculdade do juzo cria uma comunidade de

observadores para alm da comunidade de atores (agentes polticos) e de que o exerccio

da compreenso fortalece os laos de cooperao e favorece o reconhecimento das narrativas,

11 Diante da confuso que pode ser gerada ao se mencionar essa noo substantiva, devo indicar que se trata, antes, de uma proposta em que a democracia no seja encarada como adjetivo poltico nem como substantivo metafsico. No estou propondo algum tipo de substancializao da democracia ou da poltica ideia que Arendt ir combater, pois para a ela a poltica no tem fundamentos nem finalidade e no deve ser confundida com alguma substncia do poder. Preferi, assim, me utilizar do termo pluriarquia para indicar que a poltica como democracia pode ser um substantivo para designar o fenmeno e tambm um verbo para expressar o sentido do acontecimento. Essa ideia ser discutida nas Questes finais do captulo Poltica e democracia em Hannah Arendt desta Dissertao.

12 Para a introduo do conceito de pluriarquia tal como estaremos utilizando nesta pesquisa, cf. o captulo Poltica e democracia em Hannah Arendt; para seu detalhamento, cf. a seo Aspectos histricos e conceituais: entre a pica e a lrica do captulo O poltico e a plis desta Dissertao.

13 Nesse sentido, cito como exemplo a discusso feita a partir dos termos polity, policy e politics tal como apresentada em BECK; GIDDENS; LASH, 1997. p. 34. Ela elucidativa para se compreender em que medida diferente conceber a poltica (e, em nosso caso, a democracia) como substantivo ou como adjetivo.

14 A expresso do sentido forte de democracia chegou a mim pelos escritos de Augusto de Franco que, por sua vez, a formulou a partir da proposta de John Dewey sobre a democracia como modo de vida (cf. DEWEY, 2008. pp. 135-142.). H que se ressaltar, contudo, que a condio para que a democracia em seu sentido 'forte' possa se realizar a existncia da democracia em seu sentido 'fraco' (FRANCO, 2007. p. 12.).

15 Sobre esse processo de atualizao, cf. MACHADO, 2009. pp. 152-155. O que se quer aqui evitar uma confuso entre o virtual, que se atualiza por criao, e o possvel, que se realiza por limitao (DELEUZE, 1988. p. 203.). Finalmente, sobre as relaes entre o atual e o virtual, cf. ALLIEZ, 1996. passim.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

a imaginao de aes e caminhos, e a corresponsabilizao poltica. Com isso, o diferencial

desta pesquisa constatar que o uso da faculdade do juzo e o exerccio da compreenso e

no s a liberdade de agir e de falar so importantes para que se entendam e se articulem os

diversos aspectos da teoria poltica de Arendt diante dos desafios experimentados

politicamente durante os momentos de democracia. E isso que tento exprimir a partir do

ttulo desta Dissertao.

Mas, se essas so as ideias iniciais que motivaram o interesse na pesquisa, resta saber

como procedi os estudos que me permitiram argumentar, a partir das premissas, sobre as

hipteses de cada captulo.

0.1 Apresentao resumida dos captulos

A proposta do Captulo 1, intitulado Poltica e Democracia em Hannah Arendt,

fazer uma introduo ao pensamento de Hannah Arendt, abordando especificamente as ideias

sobre poltica e liberdade, e j com as primeiras aproximaes entre essas definies e uma

noo de democracia. Nesse ponto, procurei descrever por que a obra de Arendt vista pelo

vis da Vita Activa, de modo que a poltica seja geralmente compreendida sob uma teoria da

ao. No entanto, como so recorrentes as crticas sobre a forma aristocrtica ou estetizante de

sua teoria da ao, pretendo abordar a poltica em Hannah Arendt pelo vis da vida do

esprito, mais especificamente pela faculdade do Juzo. Como argumento, somente analisando

a obra completa por estes dois aspectos Vita Activa e Vita Contemplativa que se pode ter

viso ampla e suficientemente satisfatria do que a autora afirma sobre poltica. E, mais ainda,

o argumento pretende afirmar tambm que, com o suplemento desse outro vis da Vita

Contemplativa, pode-se tentar outras aproximaes entre seu pensamento e uma proposta

poltica que tenha em vista a democracia, como abordarei nos captulos subsequentes. Em

ltima instncia, portanto, o que este captulo pretende introduzir a questo sobre se

possvel articular a concepo de poltica proposta por Hannah Arendt com uma ideia de

democracia.

Depois de haver apresentado o pensamento arendtiano em linhas gerais e de haver

situado os principais interesses desta dissertao, comeo o Captulo 2, intitulado O poltico

e a plis, aproximando-me de um movimento muito peculiar ao modo de proceder

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

arendtiano: pelas distines. Se o pensamento de Hannah Arendt feito muitas vezes sem

corrimo, como ela mesma afirma, numa sinuosa e rpida descida ou subida por degraus

nem sempre bem encaixados, uma coisa no entanto recorrente e bem precisada: o modo

como ela separa cada conceito de seu semelhante; a constante busca pela genealogia que nos

fez chegar at aqui e que nos permite sustentar atualmente tal ou qual ideia; a persistente

ateno aos acontecimentos que podem servir de reforo ou de contestao a cada uma das

tentativas de se aproximar dos fenmenos descrevendo-os pelas palavras.

O Captulo 2, a esse modo, portanto, relativo a um conceito o poltico e a um

acontecimento a plis, mas tambm a investigao dos desdobramentos que pode sofrer tal

conceito, quando olhado a partir de outros conceitos que: i) lhe so opostos como a

violncia; ii) o cercaram ao longo de sua histria para mold-lo como a ao e o

pensamento; e iii) se aproximaram dele por confuses lingusticas como o heri poltico. E,

claro, tambm a tentativa de perceber as sutilezas e nuances que podem ter passado ao largo

da interpretao e do uso que Hannah Arendt faz do contexto histrico-poltico em que surgiu

a plis grega. Essa tentativa para que possamos buscando evitar os vieses de olhos

meramente retroativos agregar possibilidades e reforar a compreenso do que podem

significar as rupturas e as continuidades apresentadas pela novidade que foi o surgimento das

pleis. Esse nosso modo de aproximao da plis, e do poltico que estava imbricado nela,

nos levou, no entanto, a notar o surgimento de dois paradoxos no pensamento arendtiano. Por

um lado, a ressignificao proposta por Arendt para a poltica parece exigir o excesso, que a

coragem para se realizar, isto , o poltico parece ter de configurar-se como heri para se

distinguir, o que nos levaria a crer que a plis teria emergido por diferena, mas tambm por

repetio, de um tempo-espao guerreiro e violento. Mas da constatamos, por outro lado, que

Arendt uma pensadora que preza a liberdade autolimitadora da ao, a igualdade artificial e

politicamente mantida na pluralidade entre os homens e a separao entre o poder poltico e a

violncia. Isso ocorre de tal maneira que, ou a situao paradoxal de suas ideias est fadada a

manter-se irresolvvel, ou precisaremos de uma nova operao para compreender o alcance de

seus conceitos.

Em outras palavras, ao comearmos o Captulo 2 a partir da theoria da distino,

iremos nos concentrando, cada vez mais, na prxis da relao para que possamos, ao final,

tendo aumentando ao mximo a tenso no fio que separa cada conceito de seu semelhante,

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

notarmos que esse mesmo fio aquele que os conecta, que os relaciona.

O mais longo, e talvez o mais rico captulo para os fins a que me propus, o que nos

permite constatar que o uso da faculdade de juzo e o exerccio da compreenso e no s a

liberdade de agir e de falar so importantes para o entendimento da teoria poltica de

Hannah Arendt e decisivos para fazer convergir suas propostas noo substantiva e

expressiva de democracia como pluriarquia. Assim, no Captulo 3, o terceiro e ltimo,

intitulado O Juzo e a Compreenso na poltica, o que fiz foi, em resumo: parti da hiptese

de que uma possvel perda do juzo isto , uma suposta perda da capacidade de julgar, de

formar juzos e de compartilh-los prejudicial e pode, at mesmo, degenerar a atividade

poltica. Continuando a proposta de dar ateno aos conceitos, precisava inter-relacionar o

gosto, o juzo e a compreenso para proceder ao resgate da importncia da faculdade de Julgar

para uma possvel e, talvez, necessria ressignificao da atividade poltica, luz,

principalmente, das propostas arendtianas. Ao que me pareceu, essas propostas j estavam

evidentes nas duas citaes deixadas por Arendt como epgrafes em seu ltimo volume de A

Vida do Esprito, que seria sobre O Julgar. Portanto, seria valioso empreender uma

observao fenomenolgica dessas epgrafes. Em sequncia, examinei: i) os preconceitos

que velam os olhos voltados ao passado e encobrem a experincia humana com o presente,

impedindo a real discusso acerca do futuro desejado; ii) um tertius comparationis que nos

serviu para ressaltar algumas qualidades comuns e limites insuperveis entre a viso

fenomenolgica da Formao Dinmica dos Juzos proposta por Lex Bos e a conceitualizao

arendtiana do problema; e iii) o Juzo como tema poltico que protesta contra a metfora

orgnica geradora das ideias de Humanidade (que poderamos compreender como Sujeito), do

Estado (como Organismo) e da Histria (como Significante), e contra as quais Arendt procura

empregar a novidade de seu argumento: fazer do juzo a interseo no jogo de reflexo entre

filosofia e poltica. Este ltimo ponto me levou a evidenciar duas implicaes advindas da

aproximao entre os juzos polticos e o pensamento crtico: i) o juzo poltico favorece a

autonomia do indivduo e, ao mesmo tempo; ii) estabelece a necessidade de cooperao para o

exerccio de reflexo.

Entrando especificamente nas Lies sobre a filosofia poltica de Kant, a partir da

pesquisa feita na graduao, percorri novamente as seis primeiras lies para investigar as

condies de possibilidade da faculdade do juzo e tambm para me aproximar da questo

12

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

sobre a necessidade de compreenso no esquema arendtiano. Na reviso dos ltimos sete

captulos das Lies, tratei sobre a distino entre os tipos de juzos kantianos e detalhei o

juzo esttico reflexionante para, enfim, apontar como se poderia revigorar aquela

aproximao entre filosofia e poltica: a partir da diminuio da tenso que

tradicionalmente separa essas atividades humanas. Com o interesse em descobrir, sob a ptica

da faculdade do Julgar, o que acontece quanto as pessoas fazem poltica?, tive de detalhar:

i) a faculdade da Imaginao e a operao de percepo-imaginao que cria e recria o

presente no qual vive o homem com suas criaes, apoiado no terreno comum do Sensus

Communis; ii) a operao de reflexo-imaginao que condiciona a imaginao a manter-se

no tempo e no espao presente, perante si mesma, e sujeita aos eventos, sempre particulares

porque contingentes, e, enfim; iii) o juzo poltico a partir do juzo esttico reflexionante que

apresenta o homem a seus pares, que o sociabiliza, que revela quem julga, o que julga e como

julga; em suma, como vive e como espera viver, neste mundo habitado por outros homens, a

partir de seu sentido comunitrio, e com vistas quela compreenso que , tambm,

compreenso de si e que, portanto, faz dele responsvel (politicamente, diremos) pelo que e

pelo que venha a ser este mundo.

Na tentativa de encontrar ferramentas que nos permitissem experimentar e simular

essas situaes, e tambm para expandirmos as noes desenvolvidas sobre o juzo, me

deparei com a questo da tcnica. Diante dos problemas em se instrumentalizar e reificar a

realidade, recorri a dois autores que, cada um a seu modo, endeream abordagens crticas

diante dessa questo: i) parto da crtica de Heidegger tcnica como representao e clculo

para resgatar seu sentido originrio como techn, que se vincula ao desvelamento [althia],

compreenso e linguagem; ii) me apoio na proposta de Haraway, que associa a tcnica ao

poder de simulao, o que nos permitiu visualizar a tcnica como dramatizao, como

experimentao que nos abre para outros sentidos do acontecimento. Portanto, encarando a

Comunicao No-Violenta, que foi a tcnica escolhida, como aquela oportunidade para se

vivenciar situaes sobre as quais se pode exercitar o juzo e para as quais se vai demandar

pensamento crtico, descrevi seus quatro componentes e tracei algumas semelhanas com o

vocabulrio heideggeriano. Finalmente, conclu o captulo retomando a questo da

compreenso como um necessrio imaginrio de reconciliao confiante no mundo, diante do

constante perigo de ultra-ser, do qual no se pode fugir e que nos torna, inapelavelmente,

13

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

responsveis pela e na poltica.

Isso nos leva Concluso, em que retomo os j mencionados trs desafios da

democracia e apresento um diagrama que pretende situar alguns dos conceitos abordados

nesta Dissertao entre as esferas da poltica, da democracia, da publicidade e da

tica. Em suma, a topografia (isto , a descrio de um lugar) ilustrada pelo diagrama ser

til para concluir a pesquisa com a localizao dos problemas e das convergncias feitas em

relao s ideias arendtianas sobre a revitalizao da poltica e sobre a constituio do espao

pblico como uma democracia substantiva e expressiva, ou melhor, como pluriarquia.

14

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

POLTICA E DEMOCRACIA EM HANNAH ARENDT

No o poteque faz a gua

potvelNo homem

que faz o homemHumano.

Jean-Yves Leloup

Hoje em dia no so mais os recursos que limitam as decises. So as decises que fazem os

recursos. Essa a mudana revolucionria fundamental talvez a mais fundamental que o

homem j conheceu.Maha Thray Sithu U Thant

possvel articular a concepo de poltica proposta por Hannah Arendt com uma ideia de democracia?

Hannah Arendt inscreve-se no conjunto de autores que abordam principalmente o

mbito do poltico e seus eventos, alm das consequncias e implicaes polticas dos

acontecimentos humanos. Ou seja, ela uma pensadora da poltica. Mesmo seus estudos

sobre temticas culturais, educacionais ou filosficas so, via de regra, permeados por

discusses que visam, ou a inserir estas temticas na esfera poltica ou, de modo

complementar, a ampliar as noes usuais sobre a poltica por meio dessa insero. Assim,

Arendt envolve-se, naturalmente, em muitas controvrsias que rondam as discusses polticas

e sobre a poltica. Nessas controvrsias, colocada em muitas posies que, por si mesmas, j

seriam suficientemente controversas. Arendt vista, por alguns crculos, como defensora de

uma poltica participativa, ou direta e ainda, algumas vezes, liberal16. Em outros momentos,

encarada como republicana e afirmadora de valores comunitaristas, embora nem sempre

haja conciliao desses princpios com as caractersticas agonsticas e marcadamente

16 Horowitz afirma que Arendt permaneceu fiel tradio do liberalismo alemo (HOROWITZ, 1979. p. 19.), ao passo que Abreu se posiciona contra a afirmao de que as ideias de Arendt especificamente sobre a liberdade sejam liberais. Cf. ABREU, 2004. p. 117.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

aristocrticas de algumas de suas passagens sobre a poltica17. Outras adjetivaes, talvez

menos comuns ou disseminadas, apresentam Arendt como fenomenloga e humanista, ou

como existencialista politizada, e ainda como anti-modernista e fundacionalista18. Nesse

sentido, apresentam-se vrias genealogias para seu pensamento. No raro lida dentro do

horizonte que inclui Aristteles e Kant como predecessores; Plato, Hegel e Marx como

opositores; e Agostinho, Kierkegaard, Nietzsche, Jaspers e Heidegger como referenciais

crticos. E, finalmente, poderamos considerar como disseminadores de seu pensamento, em

nvel nacional, Eduardo Jardim, Celso Lafer, Antnio Abranches, Andr Duarte, Odlio Aguiar

e Adriano Correia; e no plano internacional, Elizabeth Young-Bruehl, Margaret Canovan,

George Kateb e Dana Villa para citarmos somente alguns poucos.

1.1 Situando o pensamento arendtiano

O ponto de partida mais comumente aceito para abordar o pensamento poltico de

Hannah Arendt A Condio Humana, publicao de 1958, que, juntamente com Da

Revoluo, de 1963, so consideradas uma clssica apresentao do que se poderia chamar de

proposta de poltica participativa ou, em termos mais atuais, de democracia direta ou radical.

Os defensores dessa viso argumentam que, nessas obras, h uma inovadora tentativa de

resgatar e ressignificar o valor e o sentido da poltica, em contraposio disseminada

superioridade que as esferas do social e do econmico alcanaram na modernidade.

Assim afirmam comentadores do pensamento de Arendt, como George Kateb e Bhikhu

Parek19. Desse ponto de vista, o pensamento de Arendt sempre considerado a partir de sua

teoria da ao, a partir das ideias de que o poder emerge da ao concertada em um grupo

plural de pessoas e no somente das armas ou da posse de recursos materiais e de que a

ao o aspecto da condio humana que d sustentao poltica. Seus crticos opem a

17 Lisa Disch e Bonnie Honig so comentadoras de Arendt que argumentam nesse sentido. Cf. LANE, 1997. pp. 141-146. Dana Villa tambm poderia ser includo nesta lista, segundo Seyla Benhabib. Cf. BENHABIB, 1995. p. 691, nota 8. Sobre aspectos elitistas e democrticos do pensamento arendtiano, cf. CANOVAN, 1978. passim.

18 Nesse caso, remete-se ideia de fundao poltica (ou constitucional), e no de fundao metafsica (ou de fundamentao filosfica), diante da qual Arendt seria anti-fundacionalista. Sobre a ligao entre Arendt e a noo de fundao poltica, cf. ABREU, 2004. p. 66. Sobre o anti-fundacionalismo (filosfico) arendtiano, cf. TOLLE, 1994. passim.

19 cf. CANOVAN, 1992. p. 7.

16

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

esse suposto idealismo quando no mencionam o desnecessrio e impreciso exerccio

nostlgico de interpretao da poca grega clssica a necessidade de se discutir a poltica de

modo realista, com nfase na democracia comumente observada, na poltica institucionalizada

do tempo contemporneo e sem apelo direto ao voluntarismo.

Por outro lado, h tambm autores que preferem situar As Origens do Totalitarismo, de

1951, como o efetivo ponto de partida, estabelecendo como central para o pensamento

poltico de Hannah Arendt sua relao com (e a resposta a) o fenmeno do totalitarismo e, de

modo mais abrangente, suas reflexes sobre as catstrofes polticas do sculo XX20. Para

justificar tal abordagem21, afirmam que na esteira desse eixo principal que se consolidaria

seu conjunto de thought trains [rede de pensamentos]22, aparentemente dispersos, cujos

elementos seriam: i) discusses sobre o marxismo e suas consequncias para a modernidade;

ii) crticas s relaes estabelecidas entre a poltica e os marcos cannicos em que se baseia o

pensamento filosfico ocidental; iii) reflexes sobre a condio humana e seus predicados na

era moderna; iv) reflexes que reconsideram e reposicionam a pluralidade humana no centro

das conceituaes polticas; v) e, consequentemente, reflexes sobre a relao e uma

possvel reconciliao entre a poltica e a filosofia.

Dessa forma, ao situar As Origens do Totalitarismo como ponto de partida, pode-se

estabelecer uma srie de conexes antes despercebidas entre os diversos aspectos do

pensamento no sistemtico de Arendt, alm de compreender diferentemente as possveis

motivaes que geraram cada uma dessas obras, quando percebidas como constitutivas de

uma rede de pensamentos.

Seus escritos dos anos 1940 enfatizam a responsabilidade de cada ser humano e dos

judeus em particular por seu mundo poltico tal como ele se faz e feito continuamente. No

20 cf. CANOVAN, 1992. p. 7.21 Essa nfase no tema do totalitarismo poderia ser explicada pelo fato ressaltado mais adiante de Arendt

ser judia, mas julgamos que pertinente olhar tambm para sua condio de filsofa (ainda que ela preferisse se considerar cientista poltica, e que, para nossos fins, seria igualmente apropriado observar que ambos os lugares de fala so acadmicos) e a tenso gerada por ela se encontrar mais nessa condio.

22 Diversos comentadores do pensamento arendtiano utilizam essa expresso. Thought trains, ou trains of thought, se refere ou rede de pensamentos que permite a interligao das ideias expressas durante um discurso que almeja a compreenso, ou sequncia em si de argumentos, especialmente na discusso em que essa sequncia conduz o prprio pensamento de uma ideia para outra. Tradicionalmente, a expresso associada a Thomas Hobbes, em cujo terceiro captulo da primeira parte de seu Leviat se l On the Consequence or Train of Imagination.

17

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

incio daquela dcada, visvel a transformao de seus estudos sobre o antissemitismo em

uma busca pelos antecedentes do nazismo e, consequentemente, pelo contraste entre o

potencial da ao humana e a impotncia dos homens diante do determinismo que, onipotente,

impede emergncia da ao espontnea. Tendo isso em vista, poderamos inicialmente

considerar que o interesse de Arendt pela poltica surge de sua condio e tambm de seu

contexto23. Ou seja, pelo fato de ter sido uma mulher alem e judia exilada e,

consequentemente, um pria e na condio de haver presenciando tanto a Segunda Guerra

Mundial e a Revoluo hngara de 1956, quanto os julgamentos de oficiais nazistas, o

movimento pelos Direitos Civis e contra a Guerra do Vietn, nos EUA e, finalmente, a

Guerra Fria e a capacidade sem precedentes de o mundo ps-totalitrio destruir a si prprio

com armas nucleares24; enfim, tudo isso soaria quase como um chamado ao qual no se

poderia recusar, de modo que vemos seu pensamento abrir-se lentamente para o mundo que a

ela se apresentava. Assim, nota-se que alguns aspectos de sua vida nos servem para

alcanarmos grau maior de compreenso sobre a centralidade que o tema do totalitarismo

pode ter tido para sua obra. Isso, obviamente, se supusermos que uma obra assim apresentada,

ou seja, quase cronologicamente, tem seu valor e sentido.

J neste ponto, porm, tentadora a possibilidade de vislumbrarmos como mais

fundamentais as tenses entre a poltica, centrada na ao, e a vida do esprito, centrada nas

faculdades do Pensamento, da Vontade e do Juzo. Essas seriam as questes que ocuparam

boa parte de seus ltimos e inconclusos esforos. E, por no se apresentar como uma

filosofia poltica sistemtica, alm de enfatizar a experimentao e a flexibilidade25, no

pareceria to imprudente realizar esse salto no pensamento de Arendt. Justifico, para tanto,

que as sementes de seus ulteriores escritos j haviam sido plantadas no incio cronolgico e

que, consequentemente, sua obra foi uma sequncia de tentativas de aproximao ao

23 No quero, contudo, indicar que haveria, por conta de sua trajetria particular, qualquer determinao do contexto sobre a obra intelectual de Arendt. A esse respeito, tomo como indicao a afirmao de Zygmunt Bauman sobre a influncia das trajetrias de vida dos pensadores em suas escolhas dos objetos de estudo: Elas [as trajetrias de vida de filsofos e pensadores] no poderiam deixar de influenciar (afinal, o que fazemos em cincias humanas , acima de tudo, a reciclagem de nossas experincias de vida e observaes, encontrando as descobertas e iluminaes que acompanham esse curso) mas influncia no significa determinao. A vida pessoal proporciona o material bruto, mas reciclar isso o trabalho e a tarefa dos pensadores (BAUMAN, s/d.).

24 KOHN, 2004. p. 10.25 cf. CANOVAN, 1992. p. 5.

18

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

problema inicial da possvel tenso entre a vida do esprito e o amor ao mundo.

Entretanto, vale ainda tentarmos explorar as conexes que poderiam ser estabelecidas

entre as diversas obras de Arendt tendo como ponto de partida As Origens do Totalitarismo

para contextualizar a apresentao de seu pensamento sobre a poltica. Nessa tentativa,

ainda que de forma sumarizada, pode-se notar que das implicaes entre os elementos

totalitrios do marxismo e os eventos catastrficos que aparecem no sculo XX e que

revelam alguns dos riscos da modernidade que Arendt parte para fazer sua reflexo sobre o

que, naquele momento, pode-se predicar ao ser humano; ou seja, qual condio humana na

era moderna. Mais ainda, na brecha aberta pela ausncia de explicao e pela necessidade de

compreenso que ela traz tona alguns elementos que h muito fazem parte do domnio do

poltico e que permaneceram esquecidos ou ocultados do campo das possibilidades humanas.

desta forma que A Condio Humana surge: no s como uma proposta para restaurar o

contedo esquecido da poltica, pela ao, mas tambm como uma lembrana de seus limites

e riscos diante da tentao totalitria que produziu um mundo que tudo podia, s custas da

espontaneidade e da pluralidade.

Durante aquilo que seria ento uma primeira aproximao dos temas suscitados pelos

estudos sobre o totalitarismo e por seu contingente acercamento da poltica em meados dos

anos 1950 explode outro evento que no deixa de chamar a ateno de uma autora que tanto

se maravilha com os exemplos fragmentados do passado quanto empreende esforo

fenomenolgico de se deparar com as particularidades da experincia e do evento atual. A

revoluo que tem incio na Hungria comunista, em 1956, a impulsiona em direo ao e

ao poder que emerge de movimentos revolucionrios e, em especial, dos conselhos de

trabalhadores dos mais diferentes tipos26. Sua agenda de pesquisas pode ter sido

atravessada, ento, por outro train of thought, que parece desvi-la da inteno mais profunda

de acercar-se da poltica pela via da filosofia. Assim, se o texto de A Condio Humana

publicado em 1958, seu outro livro da mesma poca, que seria intitulado Introduo

Poltica, permanece inconcludo sendo postumamente editado e publicado por Ursula Ludz

somente em 1993, sob o ttulo de O que Poltica?.

Finalmente, outro evento atrai seu pensamento e acarreta a no concluso da citada

obra introdutria sobre a poltica. Em 1961, Adolf Eichmann levado a julgamento em

26 ARENDT, 1990. p. 213.

19

O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

Jerusalm. E esse poderia ser mais um desvio que a levaria a pensar os acontecimentos do

mundo poltico, e a no ter tempo para voltar a considerar sua tenso com a vida do esprito

de cada homem e que molda o prprio mundo e a maneira como nos mantemos em

comunidade (i. e., em unidade comum). No entanto, justamente esse evento que lhe permite

integrar diversos temas que estavam por demais espalhados: i) sua relao com o movimento

sionista e sua identificao como judia; ii) suas opinies e estudos sobre os principais

conflitos do sculo XX; iii) sua desesperana no homem moderno que figura como Animal

Laborans; iv) sua desconfiana parcialmente otimista e parcialmente desesperada no poder de

renovao do homem e da comunidade plural dos homens; v) as conexes possveis e

necessrias entre ao e pensamento, entre filosofia e poltica, entre mundo e esprito.

Assim, vimos que a publicao de As Origens do Totalitarismo poderia ser o

trampolim que faz saltar aos olhos os primeiros interesses de Arendt sobre a poltica. Tambm

notamos que a obra Da Revoluo o local de encontro27 de muitos dos problemas ligados

ao e tambm a proposta mais bem acabada do que se poderia chamar de Novo

Republicanismo. E, com isso, presumimos que seu texto Eichmann em Jerusalm seria a

porta de entrada para retomar, em A Vida do Esprito ainda, e felizmente, pelo vis poltico

, suas primeiras reflexes sobre o mundo do pensamento e suas faculdades, e a relao delas

com a ao que surge, inexoravelmente, do fato de que os homens, e no O Homem, vivem

na Terra e habitam este mundo28. A centralidade da ideia de pluralidade humana no

pensamento poltico de Hannah Arendt merece rpida incurso naquilo que ele tem de, ao

mesmo tempo, inquestionvel, surpreendente e paradoxal.

inquestionvel por sabermos que sua tentativa de repensar os principais conceitos

polticos e de relacion-los aos acontecimentos e s instituies polticas de seu tempo foi

feita sempre luz daquela ideia. Essa singela observao, por bvia que seja, apontada por

Arendt como tendo desaparecido da tradio poltico-filosfica ocidental, que foi h muito

dominada pela viso singular dos pensadores profissionais. Por isso to surpreendente que

a autora assuma que seja essa, e no qualquer outra, a condio no apenas a conditio sine

qua non, mas a conditio per quam de toda a vida poltica29. Assim, dada a importncia

27 cf. CANOVAN, 1992. p. 16.28 ARENDT apud CANOVAN, 1992. p. 15; ARENDT, 2001. p. 15.29 ARENDT, 2001. p. 15.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

central dessa ideia para o pensamento poltico da autora e diante da surpresa de valer-se de um

conceito alheio tradio, o aspecto paradoxal surge quando notamos que justamente pela

brecha aberta na era moderna, quando ela rompe com a tradio, que reaparece a

possibilidade de que a pluralidade seja novamente colocada no centro de nossas experincias

polticas30.

O resgate das experincias polticas de pluralidade enfatiza, acima de tudo, o espao

que surge entre os homens e, portanto, a poltica como atividade extrnseca ao homem31 e

a partilha de seu destino comum, que sempre imprevisvel. Diante disso, seria necessrio a

Arendt reconfigurar muitos dos usuais conceitos polticos, de modo que poder, liberdade,

igualdade, autoridade e autonomia, para citar alguns, pudessem ser revistos luz dessas

experincias polticas de pluralidade e no mais a partir de qualquer modelo normativo

proposto por filsofos ou polticos profissionais. A nfase em uma ideia de poltica criada

pelos homens e entre os homens vai, efetivamente, de encontro suposta e arriscada

capacidade estimada em perodos autocrticos e totalitrios de poder realizar tudo por

meio da poltica32, ou mesmo s custas dela, o que faz do homem enquanto duram esses

perodos ao mesmo tempo onipotente e irresponsabilizvel.

Esse risco, apontado por ela em Origens do Totalitarismo, e cujo pice se deu no fim

da era moderna com o advento da busca pela onipotncia do Homem33 e a superao de todos

os limites naturais e principalmente humanos , aquilo mesmo que ainda ameaa eliminar

a pluralidade humana, pois torna suprfluos, diante da ousada empreitada, cada indivduo e

todos os homens juntos. Entretanto, esse mesmo risco, ainda uma realidade tangvel34,

30 cf. CANOVAN, 1992. p. 15.31 ARENDT, 1999b. p. 23. Isso significa que a poltica no nem uma atividade natural, que existe sempre

que os homens se encontram, nem tampouco alguma substncia original que pertena essncia do homem. Para Arendt, Hobbes quem primeiro compreende essa questo. Para mais detalhes sobre esse ponto, veja a nota 111 e a discusso entre as pginas 37 e 38, neste captulo.

32 No o caso de que, nos regimes totalitrios, tudo fosse permitido. Ao contrrio, independentemente de ser permitido ou no, a ideia era de que tudo fosse, realmente, possvel a depender somente da vontade do lder, da fora do Estado e da crena na ideologia. A esse respeito, cf. CANOVAN, 1992. p. 26, 27 e, em especial, sua nota 43.

33 cf. CANOVAN, 1992. p. 27.34 Embora o foco arendtiano se concentre nos eventos totalitrios, no se deve esquecer que o elemento

fundamental do totalitarismo, a expanso ilimitada do poder em abrangncia e profundidade, uma realidade ainda em curso, pois seu esgotamento completo s se realiza na extino dos homens enquanto espcie humana, uma vez que o poder de destruir e o poder de produzir no se equilibram a destruio irreversvel e no pode ser prevista somente pela racionalidade produtiva. A respeito dos elementos do totalitarismo e da discusso sobre a expanso ilimitada, cf. CANOVAN, 1992. pp. 28-31. A respeito do

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

apresenta a Arendt esta bifurcao35: ou bem ela mantinha a esperana de a Humanidade ter

juzo e, em vez de eliminar-se a si mesma, eliminar a poltica36, ou seguia com sua tentativa

deliberada de reafirmar o lugar da poltica, distinguindo o poder da fora e da violncia 37, e

reassegurando pluralidade humana sua centralidade, j que ela precisamente a qualidade

que faz dos homens humanos38.

Assim, para Arendt, os regimes totalitrios no deveriam ser vistos como eventos j

superados, uma vez que o extinguir-se da coisa poltica pertence a essas tendncias

[histricas] objetivamente demonstrveis dos tempos modernos39. Mais ainda, seu

diagnstico afirmava que nas democracias de massa, sem nenhum terror e de modo quase

espontneo, por um lado toma vulto uma impotncia do homem e por outro aparece um

processo similar de consumir e esquecer40. Portanto, a sombra do totalitarismo que

somente a forma mais extrema de uma ttica que pretensamente almeja maximizar o poder do

Homem e minimizar sua responsabilidade, fazendo os homens esquecerem-se de serem

humanos, isto , plurais e livres41 mantm-se por perto mesmo nos terrenos semeados pela

democracia. Finalmente, Arendt sentencia: vivemos, na modernidade, como se tivssemos

cado sob o encantamento de uma terra de fadas que nos permite fazer o 'impossvel', sob a

condio de que percamos a capacidade de fazer o possvel42.

Dessa forma, para maximizar seu poder, o homem mantm-se cada vez mais distante

da poltica (esse domnio se restringiu aos poucos que podem agir e falar, aos polticos

profissionais), reduzindo ao mnimo aquela potncia de dar incio a algo novo, prpria de

cada homem quando em reunio com outros e esse mnimo somente o estrito controle do

poder do Estado, para evitar que seu monoplio da fora seja usado irrestritamente contra sua

prpria sobrevivncia. Da mesma maneira, minimizar as responsabilidades isolar-se tanto

quanto possvel da comunidade humana que precisa, vez ou outra, decidir sobre seu futuro

comum, de modo que

poder de destruio, cf. ARENDT, 1999b. Fragmento 3c, A Guerra total. pp. 85-95.35 cf. CANOVAN, 1992. p. 62.36 ARENDT, 1999b. p. 26; 85.37 cf. ARENDT, 2001. pp. 35-36; ARENDT, 1999b. pp. 59-61.38 CANOVAN, 1992. p. 27.39 ARENDT, 1999b. p. 205, nota 25.40 ARENDT, 1999b. p. 27.41 cf. CANOVAN, 1992. p. 62.42 ARENDT, 2009. p. 107.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

o que prepara os homens para o domnio totalitrio no mundo no-totalitrio o fato de que a solido, que j foi uma experincia fronteiria, sofrida geralmente em certas condies sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso sculo, a experincia diria de massas cada vez maiores [] num mundo onde ningum merece confiana e onde no se pode contar com coisa alguma. [] Destruindo todo o espao entre os homens e pressionando-os uns contra os outros, destri-se at mesmo o potencial produtivo do isolamento. [] Tal como o medo e a impotncia que vem do medo so princpios antipolticos e levam os homens a uma situao contrria ao poltica, tambm a solido e a deduo do pior por meio da lgica ideolgica, que advm da solido, representam uma situao anti-social e contm um princpio que pode destruir toda forma de vida humana em comum.43

Diante dessa busca por entender as formas de dominao que se articulam na anulao

da pluralidade e pelo isolamento dos homens, e para localizar formas de se lidar com esse

desafio, Arendt vai empreender o estudo das faculdades autnomas do esprito. , portanto, A

Vida do Esprito que nos permite ter uma viso mais clara e ampla do empreendimento

arendtiano diante dos acontecimentos polticos de seu sculo, uma vez que tenhamos partido

de As Origens do Totalitarismo.

Poderamos justificar essa escolha pela razovel ideia de que preciso recorrer aos

escritos estritamente filosficos para que se tornem claros os pensamentos mais profundos de

um autor44. Todavia, sem precisar recorrer necessariamente a esse argumento, vemos

simplesmente que, em A Vida do Esprito, Arendt restabelece as bases da polaridade apenas

anunciada em A Condio Humana, isto , as relaes entre a vita activa e a vita

contemplativa. Ao passo que o Labor [Labor] e o Trabalho [Work] so atividades ligadas s

necessidades biossociais do homem, a Ao [Action] figura como a atividade ligada

liberdade , portanto, a condio por meio da qual vive a poltica. J as faculdades do

Pensamento, da Vontade e do Juzo ocupam outra esfera, ligada autonomia, na vida

contemplativa. Assim, recuperar o sentido da poltica pela liberdade, na reafirmao da ao

humana, um passo importante, mas conquanto essas atividades possam ser limitadas por

aspectos visveis da modernidade a fragmentao da vida civil e associativa; o crescimento

da sociedade de massa, da expropriao e da alienao; o surgimento, no Estado-nao, de

seres humanos suprfluos, prias, sem-estado ou sem-direitos; o determinismo que justifica e

faz alavancar o progresso , h tambm que se resgatar o potencial insupervel das atividades

filosficas em tornar a fazer perguntas, em assegurar a dignidade do homem por sua atividade

43 ARENDT, 1989. Parte III: Totalitarismo. pp. 530-531.44 E Arendt faz exatamente esse movimento ao tentar compreender as ideias de Plato e Aristteles, que

desde sua poca j tendem a inverter a relao entre trabalho e ao em favor do trabalho (ARENDT, 2001. p. 314.).

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

de questionar, de por em suspeita e, finalmente, de compreender. fundamental, entretanto,

no perder de vista que contemplao no o mesmo que introspeo45 enquanto mantenha

sua conexo com o senso comum; que ao no o mesmo que comportamento enquanto se

mantenha irreversvel e imprevisvel; e que comportamento no o mesmo que pensamento

uma vez que no se deve confundir pensamento e vontade46. Dirigir a ateno para a ao no

pode nos levar a reduzir o pensamento ao, de modo que o processo de pensar cesse ou

que seja por ele controlado ou contingenciado.

Destaca-se que no somente a inverso de posies entre a contemplao e a ao47

que tanto chama a ateno de Arendt quando escreve A Condio Humana. sobre a inverso

que ocorre dentro da vita activa, entre ao e fabricao48, que ela se detm especialmente.

Assim, abordar o pensamento poltico de Arendt pela articulao entre as faculdades do

esprito no entra em desacordo com a estima pela vita activa, porque o problema poltico a

ser abordado em A Vida do Esprito est no polo oposto no a relao entre a teoria e a

prtica que se tornou um desafio, seno que entre teoria e teoria49, entre contemplao e

theoria50. Assim, diante da pergunta sobre o que est fazendo algum quando no est

fazendo nada mais do que pensar, a tentao totalitria que pretende engajar todos em uma

45 cf. ARENDT, 2001. A introspeco e a perda do senso comum. pp. 293-297. Um breve resumo pode ser apresentado assim: A introspeco [] deve produzir a certeza, pois na introspeco s est envolvido aquilo que a prpria mente produziu; [] o homem v-se diante de nada e de ningum a no ser de si mesmo. [] A filosofia moderna procurara garantir, atravs da introspeco, que o homem no se preocupasse a no ser consigo mesmo. [] O senso comum [] passava a ser uma faculdade interior sem qualquer relao com o mundo. [] Destitudo do senso comum, mediante o qual os cincos sentidos animais do homem se ajustam a um mundo comum a todos os homens, os seres humanos no passam realmente de animais capazes de raciocinar, de 'prever as consequncias'.

46 HOROWITZ, 1979. p. 16-17.47 Se o uso da expresso vita activa, tal como aqui o proponho, est em manifesto conflito com a tradio,

que duvido, no da validade da experincia que existe por trs dessa distino, mas da ordem hierrquica que a acompanha desde o incio. [] A inverso hierrquica na era moderna tem em comum com a tradicional hierarquia a premissa de que a mesma preocupao humana central deve prevalecer em todas as atividades dos homens []. O uso que dou expresso vita activa pressupe que a preocupao subjacente a todas as atividades no a mesma preocupao central da vita contemplativa, como no lhe superior nem inferior (ARENDT, 2001. pp. 25-26.).

48 cf. ARENDT, 2001. pp. 307-317.49 A esse respeito, Arendt sintetiza em sua obra Entre o passado e o futuro: Quando desapareceu a

confiana em que as coisas aparecem como realmente so, o conceito de verdade enquanto revelao tornou-se duvidoso []. A noo de 'teoria' mudou de significado. No mais significou um sistema de verdades razoavelmente conectadas que, enquanto verdades, no foram construdas mas dadas razo e aos sentidos. Tornou-se, o invs disso, a teoria cientfica moderna, que uma hiptese de trabalho que muda conforme os resultados que produz e que depende, para sua validade, no do que 'revela', mas do fato de 'funcionar' (ARENDT, 2005. pp. 67-68.).

50 cf. ARENDT, 2001. pp. 312-317; ARENDT, 2005, pp. 67-68.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

vontade geral de realizao do progresso responde simplesmente: nada51. V-se, com isso,

que o esforo de Arendt em direo ao recebe, com A Vida do Esprito, somente reforo,

ainda no mesmo sentido. Afinal, o interesse pelo pensamento pode ser encarado, sobretudo,

como o ltimo apelo ao; e como veremos, esse apelo se d por meio do exerccio da

faculdade de Julgar. O juzo, portanto, seria ainda o ltimo ato poltico que pode ser

realizado quando tudo o mais falhar52.

H ainda um vnculo mais direto do que se poderia supor at agora entre o juzo e a

democracia. Teremos oportunidade de explorar essa questo no decorrer desta pesquisa, mas

indico desde j dois pontos importantes que permitem esse vnculo.

O primeiro deles que a faculdade de julgar permitiria a superao da mera vontade

particular, que afirma eu quero ou eu devo, em detrimento da vontade-tornada-pblica

agora como eu posso fazer53. Essa faculdade, no entanto, no precisa descartar a razo, uma

vez que, embora no esteja mais submetida a um imperativo, ainda zela pelo exerccio do

mtuo-convencimento (ou persuaso pithein), para a afirmao de um poder coletivo. Com

isso, a possibilidade de dar incio a algo novo inerente a todo ser humano que seja livre para

agir cria no s uma comunidade de agentes (os quais poderamos compreender, em outros

termos, como gnios54), mas tambm uma comunidade de observadores, que podem emitir

seus juzos a partir de (e por meio de) um sentido que comum a todos eles em princpio, o

mero gosto ou, mais apropriadamente, o gemeinschaftlicher Sinn e que podem, portanto,

visualizar publicamente o surgimento de uma pluralidade de juzos e opinies.

O segundo ponto, que pode ser derivado do primeiro, seguindo os passos de Kant,

indica que essa partilha favorece o alargamento da mentalidade grosso modo, a ampliao

dos pontos de vista e permite julgar os particulares sem submet-los a regras gerais, ou seja,

permite avaliar aquilo que fabricado, as obras artificiais, como particulares que so; em

51 HOROWITZ, 1979. p. 16.52 Como menciona Irving Horowittz, em seu comentrio sobre A Vida do Esprito, publicado ainda em 1979,

em traduo livre feita por mim: Para Arendt, Kant quem nos d a conscincia como uma esfera de liberdade per si, Kant quem entende que o julgamento algo que pode ser praticado, mas no ensinado (HOROWITZ, 1979. p. 18.).

53 Esse ponto ser discutido na seo A performatividade do heri: uma vontade de poder-fazer, no captulo O poltico e a plis desta Dissertao.

54 Arendt faz a aproximao da obra do gnio justamente com os elementos de diferenciao e singularidade que encontram expresso imediata somente na ao e no discurso (ARENDT, 2001. p. 222.). Para outra referncia sobre a definio de gnio, cf. GADAMER, 2007. pp. 96-104.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

suma, permite julgar sem parmetros55. Essa ampliao tem importncia para Arendt, uma vez

que ningum pode compreender por si, de maneira adequada, tudo que objetivo em sua

plenitude, porque a coisa s se mostra e se manifesta numa perspectiva, adequada e inerente

sua posio no mundo56. Assim, para Arendt, a sobrevivncia da democracia estaria

localizada no centro desse pluralismo partilhado e dinmico57, que advm tanto do sentido

comunitrio expresso pela liberdade de externar opinies quanto do incremento na pluralidade

de vises inerente liberdade do falar um com o outro58.

Em resumo, desvinculando a possibilidade de julgar da necessidade da

congenialidade59 ou seja, afirmando que toda e qualquer pessoa pode emitir juzos sobre as

aes humanas (a partir de seu gosto, que formado tambm por um sentido extra, comum

a todos, para sua comunicabilidade) sem que precise sempre ser interpretada (por uma

autoridade externa), e que pode ser convencida de que seu gosto particular no

necessariamente o mesmo que o de outra pessoa ou o nico vlido , v-se que Arendt se

esfora por buscar superar as dificuldades da afirmao de um pluralismo diante do desafio de

convivncia democrtica. Ou em outras palavras, como as que utiliza Horowitz, what is so

terribly important about this populist vision of judgment as both autonomous from thinking

and willing is that it provides the solution to the problem of democracy and also the basis of

unity amongst the polis60. Como disse, teremos oportunidade de tornar a rever essas questes

nos prximos captulos.

O que pretendo nesta sesso introdutria somente expor o que poderia ser uma

sntese do pensamento de Arendt sobre a poltica. Para isso, vou me valer das notas que foram

organizadas por Ursula Ludz no livro O que Poltica?. Em que pese o fato de que vrias das

ideias que esto ali expostas so mais bem desenvolvidas em outras obras, para efeito de

sntese, e por julgar que o intervalo cronolgico em que tais anotaes foram feitas

55 ARENDT, 1999b. p. 32.56 ARENDT, 1999b. pp. 59-60.57 HOROWITZ, 1979. p. 17.58 Sobre a comparao entre a liberdade de externar opinio e a liberdade do falar um com o outro, cf.

ARENDT, 1999b. pp. 58-60. 59 Sobre a discusso da congenialidade, cf. GADAMER, 2007. pp. 406-411.60 HOROWITZ, 1979. p. 17. Em traduo livre feita por mim: O que to terrivelmente importante sobre

essa viso no-elitista do juzo, to autnomo do pensamento quanto da vontade, que ela oferece a soluo para o problema da democracia e tambm a base da unidade na plis.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

especialmente longo e permeado, justamente, pela publicao dessas obras61, considerei

conveniente utilizar somente essa referncia ainda que o texto contenha, tambm, algumas

passagens advindas de outros pontos da obra de Arendt.

1.2 O sentido da poltica

Pode ser que o sentido da poltica esteja justamente naquilo que acontece quando as

pessoas fazem aquilo que entendem por poltica, ou seja, quando se responsabilizam pela co-

criao daquilo que querem e podem, efetivamente, fazer; um sentido no normativo, mas

fenomenolgico, pois. Muitos autores j se perguntaram sobre as definies ou os sentidos da

poltica, mas ser que podemos dizer mais alguma coisa sobre o sentido do que acontece

quando as pessoas fazem poltica?

De todo modo, diante da pergunta sobre o sentido da poltica, Arendt alerta para o que

parece estar embutido nela: ser que a poltica tem ainda algum sentido? E essa pergunta

surge no porque queremos, de fato, compreender qual seja o sentido da poltica, mas porque

parece ter sumido da perspectiva humana qualquer possibilidade de dar, nas condies atuais

e em vista do desenvolvimento contemporneo da poltica, ainda algum sentido para essa

atividade. No porque carea de algum sentido que nos indagamos sobre o sentido da

poltica, mas porque parece no haver mais qualquer sentido para acreditarmos no sentido

original da poltica: a liberdade. Esse sentido original que Arendt afirma ser a liberdade se

perdeu, diante do desenvolvimento da poltica, por dois motivos diferentes e, at certo ponto,

diametralmente opostos.

Num extremo, nota-se que a poltica passa a abarcar todas as atividades humanas

quando exercida de forma radical e absoluta, como nas formas totalitrias de Estado. Nesses

casos, a poltica toma contornos de necessidade, de modo que toda a vida dos homens foi

politizada por completo62. Da a liberdade ter desaparecido nessas formas de governo; a

poltica se torna um todo completo do qual no se pode escapar (ou, como num sistema

lgico fechado, melhor seria dizer, que no se pode questionar). Ela se torna incompatvel

61 isso ao menos o que comenta a prpria editora Ursula Ludz. Cf. ARENDT, 1999b. pp. 137-142.62 ARENDT, 1999b. p. 38.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

com a liberdade, uma vez que no encontra seu fim e seu limite em parte alguma63. Pode

parecer difcil compreender que a identidade entre poltica e liberdade seja justamente o que

permite reafirmar que o sentido da poltica a liberdade, dado que, no caso de a poltica se

alastrar totalmente, ela interferir diretamente nos domnios da liberdade. A esse respeito, vale

lembrar que essa liberdade trata da participao e da interferncia no domnio pblico dos

assuntos comuns; assim, uma vez que no haja possibilidade de se ausentar desse domnio

porquanto a vida tenha sido politizada por completo ou mesmo com o fim do espao privado

, ento no haveria, de fato, qualquer possibilidade de interferncia nos assuntos comuns:

no h possibilidade para se decidir o que e o que no poltica. A forma totalizante de

Estado anuncia que tudo poltica e, portanto, no permite qualquer brecha para o

questionamento, para o dissenso (ou para o juzo que v diferentemente) e,

consequentemente, para a pluralidade. Mas a poltica cujo sentido seja a liberdade ou seja, a

poltica de que trata Arendt precisamente aquela que sempre deixa brechas para o

questionamento (inclusive de si) e que, na verdade, se sustenta na possibilidade de

pluralidade, isto , na possibilidade de pr em discusso os preconceitos, quando pretendem-

se opinies e no somente preconceitos, e os fundamentos, quando assumem carter de

necessidade enfim, de criticar os juzos preestabelecidos e no reflexionantes. A liberdade

de participar a liberdade de pr em xeque, de questionar, de falar contra o que foi dito, de

revelar o dissenso e no somente a liberdade de mover-se no espao pr-determinado do

necessrio a posteriori.

O poeta Ferreira Gullar nos mostrou bem como impossvel traduzir a pluralidade

advinda dessa noo de liberdade e, portanto, compreend-la em seus mltiplos sentidos

se no se sabe sobre a impermanncia que a novidade da liberdade revela, se no se abre

indeterminao mesma de toda experincia humana: Uma parte de mim

permanente: outra parte

se sabe de repente.64

A continuidade, ou a permanncia, do homem no tempo e no espao, em sua

memria e em suas obras fala de sua existncia e sobre suas necessidades. Sua condio

63 ARENDT, 1999b. p. 39.64 GULLAR, 2006. p. 335. versos 17-20.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

como ser de ao e de imaginao, entretanto, revela o novo comeo que surge de repente em

cada nascimento, em cada criao, em cada concertao. Assegurar espao para a

espontaneidade da novidade assegurar lugar para o homem enquanto homem livre e plural65.

E, como vimos, a pluralidade precisamente a qualidade que faz dos homens humanos66.

Arendt observa que, diante das condies modernas, apresentadas explicitamente na

querela entre antigos e modernos67, seramos tentados a assumir a ideia de que a liberdade

comea apenas onde cessa a poltica ou seja, que uma vez cumpridos os deveres para com

os assuntos pblicos, ento se poderia exercitar a liberdade (entendida como livre-arbtrio)

de escolher entre as coisas dadas grosso modo, entre o bem e o mal68. Esse, porm, no

o caso se identificarmos a poltica liberdade. Seria, na verdade, exatamente o oposto: na

poltica que se encontra a liberdade (como liberdade de simplesmente querer que isso ou

aquilo seja assim ou de outra maneira69); e fora da poltica reina o domnio da necessidade

mesmo que seja a necessidade de participar do governo.

No entanto, a recusa de Arendt em considerar a Histria ou o processo histrico

como fundamental para compreender os caminhos ainda que contingentes pelos quais

passou a espcie humana sobre a superfcie da Terra motivo de diversas controvrsias.

Embora tal recusa seja reconhecidamente uma postura crtica com relao ao estado de

natureza hobbesiano, ao hegelianismo e, consequentemente, ao marxismo quando se

concretiza a ideia de Histria como processo, pelo cientificismo , v-se que a leitura de

Arendt presume que o processo histrico, enquanto processo necessrio, seja determinante.

Portanto, figura como um impeditivo para a espontaneidade e para a novidade, alm de um

contrassenso afirmao de que a ao imprevisvel. Ademais, ao empreender completa

recusa da Histria, Arendt parece tambm perder de vista a possibilidade de que ela seja,

efetiva e meramente, um condicionante da vida humana e da criao de suas instituies. A

65 cf. CANOVAN, 1992. p. 62.66 ARENDT apud CANOVAN, 1992. p. 27. Canovan cita uma carta de Hannah Arendt para Karl Jaspers,

datada de 4 de maro de 1951.67 A polmica entre antigos e modernos comea ainda no sculo XVII, com a publicao, em 1688, do

Parallle des anciens et des modernes, no qual Charles Perrault explicita sua atitude comparativa entre a Antiguidade e o perodo de reinado de Lus XIV (de 1643 a 1715). No que tange liberdade, no entanto, a referncia mais especfica a famosa conferncia De la Libert des Anciens compare celle des Modernes, proferida no Athne Royal de Paris, em 1819, por Benjamin Constant.

68 ARENDT, 1999b. p. 44.69 ARENDT, 1999b. p. 44.

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O Juzo e a Compreenso na ruptura poltica: uma leitura arendtiana sobre desafios da democracia

Histria, dessa forma, poderia ser vista mais como uma condio sine qua non de realizao

da vida humana70, e no como uma condio per quam71 tal como ocorre com a pluralidade

em relao poltica72. Assim, embora julguemos vlida a crtica, no avanaremos mais na

questo.

Para resumir este primeiro ponto e a despeito da validade desta crtica, reafirmo ento

que, se a poltica se alastra de forma totalizante por todos os domnios humanos, ela se torna a

prpria Histria, que no se pode contestar ou evitar e da qual no se pode fugir (ou tentar

modificar). Essa poltica se separa da liberdade no instante em que no assegura a

possibilidade de ser modificada, em que no suscita mais aquele saudvel espanto diante do

imprevisto, mesmo que bem-vindo:Uma parte de mim

almoa e janta: outra parte se espanta.73

A liberdade, por sua vez, seria encontrada fora da poltica, nos assuntos de interesse

privado, quando a poltica se torna necessria e quando seus assuntos so decididos

exteriormente (ou seja, pelo prprio processo histrico). Para assegurar essa liberdade do

cotidiano, daquela parte que almoa e janta, os modernos viram nas liberdades individuais

uma forma de garantir aquele mnimo possvel sem o qual o indivduo se sufoca; seguiram

aquele caminho da bifurcao em que, sob o risco de verem-se cada vez mais sufocados,

decidiram sufocar a poltica74.

H, ainda, o segundo aspecto ressaltado por Arendt para afirmar a legitimidade da

pergunta, no sobre o sentido da poltica, mas sobre a possibilidade de haver, ainda, algum

sentido para a poltica. Nesse outro extremo, agora diametralmente oposto ao aspecto

totalizante que se configurou em alguns Estados, por algum tempo, est a prpria formao do

Estado de todos os Estados, se tomarmos a clssica definio de Max Weber75 (a quem

Arendt no cita literalmente) , que diz respeito monopolizao do uso legtimo da fora em

70 Uma condio sine qua non uma condio necessria, embora no suficiente; aplicada como uma razo atual, que fundamenta a concretude dos fatos.

71 Uma condio per quam uma condio suficiente; utiliza-se como uma razo essencial, que confere validade aos fatos.

72 Sobre a pluralidade como conditio per quam da poltica, cf. ARENDT, 2001. p. 15.73 GULLAR, 2006. p. 335. versos 13-16.74 ARENDT, 1999b. p. 26; 85.75 cf. WEBER, 1999. pp. 34; 525-526, e tambm WEBER, 2003. p. 9.

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determinado territrio. Nesse extremo, aponta Arendt, a pergunta formulada forosamente

em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruio76. A

questo, portanto, que a poltica do Estado, diante desse poder de fazer sumir a vida e, com

isso, acabar com a existncia da Humanidade e no s com a liberdade dos homens passa

a se confrontar com o risco de destruio da prpria poltica. Uma vez que a poltica se torna

necessria para proteger o sustento da vida da sociedade e a produtividade do

desenvolvimento social livre77, ela precisa abdicar desse mesmo poder que a faz existir sob a

forma de Estado, qual seja, sua capacidade de usar, de maneira extrema e legitimada, a fora.

por esse motivo que Arendt afirma que a poltica comeou a se riscar do mapa, ou seja, seu

sentido transformou-se em falta de sentido78.

1.3 O que fizeram os filsofos e o cristianismo com a poltica

Se Arendt tem clareza sobre o contedo e o sentido da poltica e este seria a

liberdade, tanto de movimento e ao quanto de se relacionar e de se comunicar com o outro

, o mesmo no se pode dizer sobre a condies e os meios que fazem surgir a coisa poltica.

Sabemos, somente, que a poltica no natural nem evidente, no contnua nem inabalvel.

Isso porque, para ela, os meios com os quais se pode fundar esse espao poltico e proteger

sua existncia no so, de modo algum, sempre e necessariamente meios polticos79. O que

ser que Arendt tenta nos dizer nessa passagem? Ser que ela quer somente relembrar que os

gregos admitiam a fundao da plis por ato legislativo, embora no admitissem o

legislador como cidado da plis, a menos que ele estivesse disposto a restaurar sua posio

original de igualdade para com os demais cidados?

certo que um espao pblico-poltico que permita o surgimento de uma poltica cujo

sentido seja a liberdade pode surgir em diferentes contextos: do caos massificado do mercado

pblico ao deserto montono das cidades autocrticas. Poderamos, inclusive, dizer que,

historicamente, a represso de grupos pode ser vista como uma das causas para o surgimento

de agrupamentos polticos, como fontes de contra-poder. Ou, de outra maneira, que em

76 ARENDT, 1999b. p. 39.77 ARENDT, 1999b. p. 40.78 ARENDT, 1999b. p. 40.79 ARENDT, 1999b. p. 60.

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sistemas fortemente hierarquizados ou mesmo sob a ausncia de democracia plena se

fundaram vrios espaos polticos de resistncia e experimentao. Deve-se, entretanto, evitar

confundir as condies para o surgimento da coisa poltica com sua atividade propriamente

dita.

Foi contra a atividade poltica que se levantaram os filsofos que, como diz Arendt,

conferiam preferncia ao trato com poucos e no ao trato com muitos e estavam convictos

de que o livre-conversar-sobre-alguma-coisa-com-outros no produz realidade, mas, sim, o

engano; no a verdade, mas a mentira80. O importante aqui, novamente, notar que os

critrios para a coisa poltica devem ser criados a partir da prpria poltica e no

externamente ao espao pblico-poltico a partir daqueles que dela participam; e estes

devem ser muitos e plurais. Exigir que os critrios para o agir livre e publicame