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Capitulo II O julgamento da Justiça Humana Uma Analise sócio espiritual da Epístola aos Romanos O Autor dá ao 2° capítulo o título de “Menschengerechtigkeit” — Justiça Humana e, ao 3°, o título “Gottesgerechtigkeit” — Justiça de Deus. A tradução inglesa usa a palavra — Rightcousness para o título dos dois capítulos. Parece-me que, de acordo com o texto, seria mais próprio intitular o capítulo II com “RETIDÃO HUMANA” e o capítulo III com “JUSTIÇA DIVINA”. Este capítulo tem duas partes: •O Juiz - Vs. 1 a 13 •O Julgamento - Vs. 14 a 29 Na primeira parte o A. analisa as diferentes condições do homem em seu modo de proceder perante o único e eterno juiz, Jesus Cristo. Na segunda, ele estuda a condição humana em termos de julgamento divino e mostra quais os princípios que regem esse julgamento, para concluir que ele se processa segundo o que houver no íntimo mais reservado, mais secreto, de cada um. Deus vê em secreto e habita em secreto; responde em secreto às nossas orações secretas; e em secreto, e segundo os nossos corações, afasta de nós o seu rosto, deixando-nos na noite da ira, ou dá-nos a luz da sua graça. — “CRIA, Ó DEUS, EM MIM, UM CORAÇÃO PURO”. (Sal. 51, l0). O Juiz (2, 1-13) Quem está na situação de desencadear a ira de Deus? Quem tem por seu Deus o NÃO-DEUS, conhecido deste mundo? Quem é irreverente [ímpio] e rebelde [perverso] e foi, por isso, abandonado por Deus? Trata-se aqui dos homens, em geral, ou de cada um em particular? Acaso trazemos, todos, o estigma desse falso relacionamento com Deus, esquecendo-nos de nossa própria limitação, obnubilando e esvaziando nossa vida? Será que insistimos, todos, nesse falso relacionamento, prolongando, confirmando, reforçando e adensando as trevas da ira divina? Ou esta situação calamitosa diz respeito, somente, a algumas determinadas pessoas, ainda que estas constituam a maioria da humanidade? Seria a “Ira Divina” apenas uma possibilidade histórica [entendendo-se como “históricas” as realidades que se referem apenas a certa época, fase ou período da humanidade, quando se concretizam, agindo sobre a conduta humana, no seu procedimento e pensamento por algum tempo para, depois, deixarem de exercer tal influência e desaparecerem da conjuntura filosófica, social e econômica do mundo?]. Sim, seria a ira divina apenas uma possibilidade histórica e psicológica [ou espiritual] ao lado de outras muitas? 1. Não existem, dentro da noite da ira de Deus, batalhadores do exército da luz que, como tais, já não estão mais em trevas? 2. Não existirá, ao lado dos ímpios e insubmissos, também uma retidão humana? [Isto é, uma eqüidade, uma expressão das qualidades que o mundo considere como sublimes e elevadas, dignas de serem aceitas por Deus?] 3. Não se pode imaginar a existência de uma grande dose de humildade e temor, (qualidades que fossem tão desenvolvidas) que algumas pessoas pudessem atingir um degrau mais alto na escada da existência onde ficassem a salvo da condenação (1, 32)? [Acaso não existirão, entre aqueles que sabem que são passíveis de morte os que “tais coisas praticam” alguns, ainda que poucos, que batalhem com denodo no exército da luz e que estejam, aos olhos do mundo, acima dos demais homens pela vida de profundo temor e da mais submissa humildade perante Deus, e que por isso possam escapar das trevas da ira?] 4. Acaso não estará a própria fé na categoria das coisas “históricas” e das “psicológicas” [ao lado, e no mesmo nível das coisas sujeitas a essa ira divina?]. 5. [Ou então] não se achará o crente na situação de libertar-se, por força da fé, 1

O Julgamento Da Justiça Humana - Romanos II

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Page 1: O Julgamento Da Justiça Humana - Romanos II

Capitulo II O julgamento da Justiça Humana Uma Analise sócio espiritual da Epístola aos Romanos

O Autor dá ao 2° capítulo o título de “Menschengerechtigkeit” — Justiça Humana e, ao 3°, o título “Gottesgerechtigkeit” — Justiça de Deus. A tradução inglesa usa a palavra — Rightcousness para o título dos dois capítulos.

Parece-me que, de acordo com o texto, seria mais próprio intitular o capítulo II com “RETIDÃO HUMANA” e o capítulo III com “JUSTIÇA DIVINA”.

Este capítulo tem duas partes:

•O Juiz - Vs. 1 a 13•O Julgamento - Vs. 14 a 29

Na primeira parte o A. analisa as diferentes condições do homem em seu modo de proceder perante o único e eterno juiz, Jesus Cristo.

Na segunda, ele estuda a condição humana em termos de julgamento divino e mostra quais os princípios que regem esse julgamento, para concluir que ele se processa segundo o que houver no íntimo mais reservado, mais secreto, de cada um. Deus vê em secreto e habita em secreto; responde em secreto às nossas orações secretas; e em secreto, e segundo os nossos corações, afasta de nós o seu rosto, deixando-nos na noite da ira, ou dá-nos a luz da sua graça.

— “CRIA, Ó DEUS, EM MIM, UM CORAÇÃO PURO”. (Sal. 51, l0).

O Juiz (2, 1-13)Quem está na situação de desencadear a ira de Deus?Quem tem por seu Deus o NÃO-DEUS, conhecido deste mundo?Quem é irreverente [ímpio] e rebelde [perverso] e foi, por isso, abandonado por Deus?Trata-se aqui dos homens, em geral, ou de cada um em particular? Acaso trazemos, todos, o estigma desse falso relacionamento

com Deus, esquecendo-nos de nossa própria limitação, obnubilando e esvaziando nossa vida? Será que insistimos, todos, nesse falso relacionamento, prolongando, confirmando, reforçando e adensando as trevas da ira divina? Ou esta situação calamitosa diz respeito, somente, a algumas determinadas pessoas, ainda que estas constituam a maioria da humanidade?

Seria a “Ira Divina” apenas uma possibilidade histórica [entendendo-se como “históricas” as realidades que se referem apenas a certa época, fase ou período da humanidade, quando se concretizam, agindo sobre a conduta humana, no seu procedimento e pensamento por algum tempo para, depois, deixarem de exercer tal influência e desaparecerem da conjuntura filosófica, social e econômica do mundo?]. Sim, seria a ira divina apenas uma possibilidade histórica e psicológica [ou espiritual] ao lado de outras muitas?

1. Não existem, dentro da noite da ira de Deus, batalhadores do exército da luz que, como tais, já não estão mais em trevas?

2. Não existirá, ao lado dos ímpios e insubmissos, também uma retidão humana? [Isto é, uma eqüidade, uma expressão das qualidades que o mundo considere como sublimes e elevadas, dignas de serem aceitas por Deus?]

3. Não se pode imaginar a existência de uma grande dose de humildade e temor, (qualidades que fossem tão desenvolvidas) que algumas pessoas pudessem atingir um degrau mais alto na escada da existência onde ficassem a salvo da condenação (1, 32)? [Acaso não existirão, entre aqueles que sabem que são passíveis de morte os que “tais coisas praticam” alguns, ainda que poucos, que batalhem com denodo no exército da luz e que estejam, aos olhos do mundo, acima dos demais homens pela vida de profundo temor e da mais submissa humildade perante Deus, e que por isso possam escapar das trevas da ira?]

4. Acaso não estará a própria fé na categoria das coisas “históricas” e das “psicológicas” [ao lado, e no mesmo nível das coisas sujeitas a essa ira divina?].

5. [Ou então] não se achará o crente na situação de libertar-se, por força da fé, daquilo que nos ata a todos, e assim alijar a carga originada no alheamento a Deus e que [tão opressivamente] pesa sobre o mundo? E desvencilhando-se desse fardo, não poderá um crente fiel galgar uma base no areal movediço que o circunda donde possa, e lhe seja consentido, lançar um olhar sobre OS que ficaram para traz, aqueles que ainda não perceberam como poderão também, pela força da fé, [ganhar um ponto de apoio, seguro]? Seria, talvez, um olhar comovido e pesaroso, mas já não seria o relance de um companheiro, um coparticipante das trevas da ira!

6. [Não seria ilícito esperar que] pelo poder do evangelho já há tanto tempo anunciado e pregado, se houvesse reunido um grupo, ainda que minúsculo, que fosse qual ilha de bem-aventurados no meio de um mar de desdita?

7. Não existe a possibilidade plausível de alguém tributar honra ao Deus desconhecido de Abraão, Isac e Jacó, sendo, conseqüentemente, admissível que aquele [que assim proceder] seja forçosamente subtraído do jugo da ira de Deus?

8. Não se abriria uma exceção possível, para urna pessoa que se inserisse sinceramente na crise divina de nossa existência e de nosso modo de ser e que, dessa maneira, tomasse posição ao lado de Deus na crítica ao mundo e que, por isso, lhe fosse concedido o privilégio de sair das trevas para a luz?

Ou será que o círculo “causa-e-efeito” do afastamento [de Deus] e queda, distintivo característico do homem e do mundo, como tais, deverá permanecer fechado para sempre?

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Page 2: O Julgamento Da Justiça Humana - Romanos II

Vs. 1-2 Por isso não tens desculpa, ó homem, quem quer que sejas, quando julgas. Porquanto, enquanto julgas aos outros, julgas a ti mesmo, pois procedes de maneira idêntica aos que julgas naquilo que julgas. Sabemos, porém, que o juízo de Deus é verdadeiro, contra os que assim procedem.

[Ou, para usar a tradução de Almeida: “Porquanto és indesculpável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas; pois no que julgas a outro a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas.

Bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade contra os que praticam tais coisas”].

Não há desculpa; não há razão nem possibilidade de alguém isentar-se: Nem para os que não conhecem o Deus desconhecido, nem para os que o conhecem. (1, 18 e seguintes). Também os que o conhecem pertencem ao tempo [ao presente século, ao mundo]; eles também são criaturas humanas e não há retidão humana que afaste a ira de Deus.

Não há grandeza material nem preeminência local [ou qualquer outra] que justifique o homem perante Deus. Nenhuma Carta Magna [ou de alforria] ou [boa] disposição de espírito, nem a compreensão e o entendimento — [nada disso

tudo] em si, tornará o homem aceitável a Deus — [nada consegue desviar ou abrandar a ira de Deus]. O ser humano é humano, e está no mundo dos homens. O que nasceu da carne é carne e todas as coisas têm o seu tempo. Os

fatos e feitos gerados pela atividade humana [ainda que alcancem destacada notoriedade] em sua existência, posição e expansão, são sempre oriundos do homem e. como tais, estão eivados de irreverência [impiedade] e insubmissão [perversão].

O reino do mundo nunca é [ou será] o reino de Deus e ninguém se excetua; ninguém é dispensado e ninguém é desculpado: não existem “felizes aquinhoados”.

“Enquanto julgas aos outros julgas a ti mesmo”.

Quando tu te colocas em um ponto de vista, tu te pões, a ti mesmo, em erro. Enquanto dizes “eu”, ou “nós” ou “é isto”, estás trocando a glória do incorruptível pela imagem do corruptível (1, 23). [Quando o homem se encastela em seu próprio “eu” e afirma em seu nome e no de seus semelhantes, ser “isto” ou “aquilo” o certo ou o que Deus aprova, quando o homem se arvora, quer jactanciosamente, quer em estudada (quiçá obediente) humildade, a ser juiz de seus iguais para, distanciando-se deles, ser mais perfeito, mais puro, mais sábio perante Deus, do que os outros, coloca-se em erro e sob as trevas da ira e indignação de Deus, pois serve o NÃO-DEUS deste mundo erigindo a sua própria pessoa em imagem de Deus; tal homem não vai a Deus, mas o traz para junto de si, para seu nível, para sua perecibilidade, sua corruptibilidade, que trocou pela incorruptibilidade de Deus].

Enquanto tu te dispões a tributar honra ao Deus desconhecido, como se estivesses realizando algo possível, enclausuras novamente a verdade. Reivindicas temor e humildade como propriedades tuas [para teu benefício] e te tor- naste, por isso, — irreverente e insubmisso.

Tu te desembaraças do peso do mundo sob o anteparo [o biombo] de teus pontos de vista e dos teus modos de ver e, por isso mesmo, o mundo passa a pesar mais sobre ti que sobre os outros. [Quando o homem cria para si uma capa religiosa alardeando a sua religiosidade, sua espiritualidade, sua fé, longe de encontrar a paz de Deus, que é diferente daquela que o mundo oferece (João, 14, 27), detém-se semi-anestesiado com suas próprias esperanças, enquanto, em torno dele e sobre ele, se avolumam os desenganos, as incertezas, as atemorizações sem fim; e sobre tal homem o mundo pesa mais que sobre os que pecam sem lei.]

Tu te separas dos teus irmãos como conhecedor dos mistérios de Deus; talvez [até o faças] com a melhor das intenções de os ajudar depois de os haveres ultrapassado [ou de assim pensares]; por isso mesmo nada sabes dos mistérios de Deus [pois se soubesses não seguirias esse caminho] antes, és o menos indicado para auxiliar o teu próximo. Tu vês a alheia estultícia como estultícia alheia, enquanto a tua própria clama aos céus [sem que o percebas. (Mat. 7, 35)].

Também o dizer-se “NÃO” [às coisas do mundo]. à penetração no paradoxo da vida, à submissão ao juízo de Deus, tudo isto nada é enquanto for apenas conduta, ponto de vista, método, sistema ou objeto; enquanto o homem por meio dessas atitudes pretender destacar-se entre os demais. Mesmo a fé, enquanto de qualquer forma e em qualquer sentido, pretender ser mais que espaço vazio, não é fé: é descrença, pois nessas condições ela volta ao paradigma da rebelião do escravo que tenta abafar a aurora da verdade de Deus, o alvorecer por excelência. [O A. faz distinção entre o que habitualmente chamamos de “servo” do Senhor, com o sentido de seguidor fiel, e “escravo”, o que cumpre apenas. pela coação, o dever que lhe é imposto; que não tem outra alternativa se não a de executar a sua tarefa, “capinar o seu eito”; não tem outra motivação se não esquivar-se do látego que está ameaçadoramente suspenso no ar e, quiçá, alcançar efêmera recompensa que valerá, quando muito, por algumas horas: uma crosta de pão, um copo de água, um prato de lentilhas. É nas trevas da noite que o escravo se sente livre e essa alforria ilusória o leva a revoltar-se contra o sol que desponta no horizonte, pois vem tirá-lo da doce ilusão de segurança e enquadrá-lo em mais um dia de frustrações.

É similar à situação do homem que abrigando-se nas trevas criadas pelo obumbramento de seu coração e esvaziamento de sua mente, passa a raciocinar por sofismas, bloqueia os raios de luz que vêm do alto com a obstrução que criou em si e para si e, por isso, teme a luz e se revolta com a aurora da verdade.

É o desempenho do escravo do pecado, do servo do “NÃO-DEUS” que busca o esconderijo da enganosa paz].Aí manifesta-se, outra vez, a arrogância, a hibridez, que ignora a distância que existe entre Deus e o homem e que,

inevitavelmente, entroniza o “NÃO- DEUS”. Eis aí, novamente, a identificação do homem com Deus que acarreta seu próprio isolamento de Deus.

É o sonho [da materialização de Deus em símbolo], das coisas diretas, com o seu clamor: “Eis aqui o Templo do Senhor!” — (Jer. 7, 4). (É a imaginação “romântica” (por ser aí), no dizer do Autor, que pretende ver, sentir, a verdade espiritual consubstanciada materializada (e porque não a hóstia?) em símbolos concretos, palpáveis, visíveis, semelhantemente aos israelitas do tempo de Jeremias, esperando fazer jus à proteção de Jeová, pela exaltação e louvor do templo: Templo do Senhor! Templo do Senhor!].

Justamente agora, ó homem, praticas a resistência humana que suscita a ira de Deus; “enquanto julgas os outros, a ti mesmo julgas, pois praticas as próprias coisas que condenas”.

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Page 3: O Julgamento Da Justiça Humana - Romanos II

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Ora, o que se pode dizer dos homens em geral, pode-se dizer também dos “homens de Deus” em particular.

Como homens, são iguais a todos (1, 1). Não há partículas, porções especiais, da história divina na história geral. Todas as histórias eclesiásticas e das religiões transcorrem [isto é, têm seu começo e seu fim] neste mundo. A chamada “história da redenção” é, apenas, a contínua crise de toda a história e não uma história especial ao lado da História [ou paralela a ela].

Também não há santos entre os ímpios [não são santos, os homens de Deus], pois é exatamente quando alguém quer ser santo que o deixa de ser.

São exatamente os protestos, a crítica, a acusação que os pretensos santos lançam contra o mundo, em vez de se enquadrarem em suas próprias verberações, que os colocam, inevitavelmente, na mesma fila dos ímpios.

As acusações [que os pretensos homens de Deus fazem contra o mundo], vêm do próprio mundo; do perigo, e não do socorro. Estas falam da vida, mas não são a vida; elas são qual luz artificial nas trevas, mas não o amanhecer, o raiar do sol!

Essas considerações aplicam-se [a qualquer homem de Deus], também a Paulo, o profeta e apóstolo do reino de Deus; valem tanto para Jeremias, como para Lutero, Kierkegaard e Blumhardt [e por que não mencionar também Barth e seu “pretenso” interpretador?].

Vale para São Francisco [e por mais justa razão] que de longe ultrapassou a Jesus em “amor”, “infantilidade” [inocência] e “austeridade” e que portanto subsiste, essencialmente como acusador; e isto para nada dizer da aniquilante santidade de Tolstoi. [O A. quer destacar o fato extremamente sério que o homem que pretende elevar-se para ser santo, ainda que fosse um Paulo ou um Jeremias (que foi o profeta consagrado às nações desde o ventre de sua mãe (Jer. 1, 5), ou seja um vulto histórico como Lutero, ou contemporâneo do autor como Kierkegaard ou Blumhardt, tal homem deixará de ser santo e separado para Deus desde o momento quando em seu coração se aninhar a idéia de ser perfeito, santo, pois no mais profundo do ser, tal idéia viceja com intenção da preeminência entre os demais homens, seus próximos. E isto é tão mais vigoroso num santo da categoria de São Francisco que a tradição orna com qualidades sobremaneira excelentes, “superiores” às do próprio Senhor Jesus, realçando o “amor” todo peculiar e lendário que nimba o Santo, (amor que se estende até mesmo aos animais), a sua inocência que atinge as raias da ingenuidade pueril, e que é também descrito como senhor de uma austeridade que, no romantismo imaginativo, excederia à do próprio Salvador. Com tantos atributos será tanto maior juiz e, conseqüentemente, maior escravo do pecado!

Todavia, assim como essa imaginada santidade beata, fanática, pouco esclarecida, é seguida e adotada para quebrar, anular, ignorar a distância que separa o homem do verdadeiro Deus, assim também (e talvez mais ainda, segundo o Autor,) o é a santidade de elite a que se arrogam os intelectuais e teóricos do status de Tolstoi].

O que é humano é levado de roldão e, arrastado pela correnteza, resvala [numa descida louca para o precipício] ora flutuando sobre a torrente das águas ora dando até mesmo a impressão de querer opor-se [à imensa caudal].

Cristo de forma alguma habita entre os justos, pois justo só é Deus, e a tragédia de todos os homens de Deus é terem de assentar-se na injustiça para lutar pela justiça de Deus. [Têm que tomar posição de dianteira, de relevo, de destaque, para pregar, ensinar e entregar a mensagem que Deus lhes confiou].

E tem de ser assim, pois os homens de Deus não podem ocupar o lugar do próprio Deus, [posição que assumiriam se em justiça incorruptível ministrassem e se desincumbissem da missão para a qual foram vocacionados. Todavia, humanamente e no que concerne ao relacionamento do homem com Deus, o distanciamento do “homem de Deus”, dos seus semelhantes, é inevitável aos olhos do mundo, mesmo que não seja nos termos de um lendário São Francisco ou de um intelectual como Tolstoi; um Lutero, um Paulo, um Jeremias terá que fazê-lo inda que, ao olhar para si, veja somente e genuinamente sua pequenez. “Ai Senhor,... não passo de uma criança”. (Jer. 1,6)].

Sabemo-lo: o juízo de Deus é segundo o paradigma da verdade e os verdadeiros homens de Deus conhecem sua situação trágica e paradoxal. Sabem o que fazem quando se colocam cm determinado ponto de vista; sabem que não há desculpas e não se consideram desculpados por força de sua vocação. Eles sabem que a fé somente vale por fé enquanto e quando não reivindica qualquer realidade histórica, psicológica [ou mesmo espiritual] mas é [e pretende ser] somente a “expressão inexprimível” da realidade divina.

Eles sabem que a “observação sensata” (1, 20) não é um método, um achado [ou uma descoberta] mas a base eterna do conhecimento. Eles sabem que a fé, em si mesma, não faz mais jus à legitimidade que qualquer outra [atividade ou] propriedade humana. Eles não se esquivarão do paradoxo [o paradoxo que, para os homens de Deus, toma a forma de uma contradição humanamente evidente; põem-se sob o escuro manto da ira de Deus para anunciar o novo dia que desponta!] e não tentarão transformá-lo em nova realidade qualquer, em alguma coisa [que explique, suavize ou até transforme sua situação paradoxal].

Eles não enfraquecerão o NÃO divino trazendo-o para perto, [para junto] do NÃO humano. Eles não amolecerão a têmpera do gume do julgamento divino, encarando a flexão [a submissão] que ele produz [a crise e a problemática que ele origina] como sendo uma etapa (uma estação) no caminho da salvação (ORDO SALUTIS) que foi ultrapassada, que ficou para trás.

De maneira nenhuma tais homens, se verdadeiramente forem de Deus, farão da justiça de Deus que raia no evangelho, um esconderijo, um abrigo para si, e uma fortaleza contra os outros. [Estes homens não usarão o Evangelho para se justificarem, para nele e com ele se protegerem perante Deus, e também não se servirão dele para bombardear os outros com suas acusações].

Eles sabem que a Justiça de Deus é segundo a verdade e quem há que possa resistir quando aferido com a escala da verdade divina? Quando, como e onde seria possível que alguém. alguma [idéia] ou coisa permanecesse de pé, sob tal julgamento?

Page 4: O Julgamento Da Justiça Humana - Romanos II

Vs. 3-5 Acaso entendes, ó homem, que tu com o teu julgamento, praticando as mesmas coisas, fosses, logo tu, livrar-te do julgamento de Deus? Ou não entendes a riqueza de sua bondade, a sua contenção e a sua paciência? Não percebes que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento? Porém, com tua dureza e teu coração impenitente amontoas para ti uni tesouro de ira, para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.

“Julgas tu, justamente tu, que escaparás do julgamento de Deus?Semelhante suposição é um erro humano; é algo parecido com uma escrituração falsificada, inscrevendo no ativo próprio o que

deve ser registrado no “Haver” de Deus. É a transformação da dádiva divina em possibilidade e realidade humana. [Quando o homem julga toma para si, e como sua, uma atribuição que só a Deus pertence; transforma a graça da redenção em dispensação humana, pois o julgamento implica em condenação e em perdão: quem julga, ou condena ou justifica ou perdoa; e inda que o faça em nome de Deus está, na realidade, assentando-se sobre o trono divino e amesquinhando a dádiva que vem desde a cruz; ignora a pergunta que desde a cruz lhe é posta diante dos olhos, sobre a opção que há de fazer entre o paradoxo da fé e o escândalo; e ao ignorar a pergunta, ao não querer ouvi-la, senti-la, respondê-la, opta, implicitamente, pelo escândalo e erige a si mesmo e, consigo, o mundo em seu Deus. É um Deus visível, palpável, facilmente conhecido, que perdoa e que excomunga; que impõe penitências e aceita intenções; que promete bênçãos celestiais em permuta de dádivas materiais; que aceita sinais externos, efêmeros e perecíveis, como penhor e garantia das coisas eternas, incorruptíveis. É um Deus bem presente que não traz o paradoxo da fé; antes assegura a paz, sossego e ilusão; é um Deus lógico e, não raro, bastante vistoso — o NÃO- DEUS, conhecido e “velho amigo” dos homens].

A suposição que o homem possa ter de que, ao julgar, escapará ele próprio do julgamento de Deus, esquece que a história do mundo não é o seu próprio tribunal. [Não é a história do mundo que julgará os seus próprios atos pois o julgamento final é de Deus (Apoc. 20, 11 e seguintes)].

E enquanto o homem [que assim julga] procura agarrar estultamente o que é visível, efêmero, deixa passar o invisível, o eterno.Quando a fé se sobrepõe e sobressai como atividade humana, desaparece o seu conteúdo divino e fica sujeita à lei da

imprestabilidade, da perecibilidade, da corruptibilidade das coisas terrenas.— Quanto mais tentares fugir do julgamento verdadeiro de Deus, menos escaparás dele.“Não notas que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?”Como pode acontecer que nas hostes da luz existam, ainda, batalhadores com visão e percepção, homens quais eram os judeus

contemporâneos de Jesus que perceberam alguma coisa do final dos tempos, homens que estão afeitos a perseverarem Deus, e só nele? [Ante a inevitabilidade do julgamento divino, ante a posição trágica do homem de Deus no seu relacionamento com Deus, como se explica que pessoas com visão suficiente para compreender ou, ao menos, pressentir a inexorabilidade escatológica do juízo divino formem os inumeráveis exércitos da luz, deles participando?]

Tais homens por isso [por pertencerem às hostes da luz] não deixam de ser homens, e o mundo no qual vivem continua sendo mundo. Mas a respeito deles, sobre eles e por traz deles aconteceu a maravilha: receberam a graça! Ocorreu o inacreditável: Deus falou-lhes de um torvelinho, como a Jó! (Jó 40, 6).

Assustaram-se em sua impiedade e insubmissão; foram arrancados de seu sonho [acordando] para Deus (aquele a quem [com propriedade] assim designamos). O véu da nebulosidade religiosa e da ira divina rompeu-se e eles viram o inescrutável e ouviram o seu NÃO! Sentiram a limitação, o julgamento, o paradoxo da sua existência; pressentiram, entre ansiosos e esperançosos, do que se trata na vida humana e, com temor e tremor, chegaram à compreensão, ao respeito, à “observação sensata”.

Tiveram que parar perante Deus.[Parar no caminho pelo qual vinham para decidir ante a pergunta solene, e optar pela conversão; escolher a peregrinação pelo

novo rumo que leva à porta estreita da vereda apertada].Mas o que é tudo isso?Acaso é misticismo? Intuição, êxtase, milagre concedido a pessoas especiais (ou privilegiadas) dirigidas ou orientadas

especialmente [por agremiações religiosas, interpretação da bíblia, retiros, cursilhos, ou por determinados avivalistas e líderes?]Trata-se, acaso, de alguma experiência de almas puras, ou da descoberta feita por cérebros privilegiados, ou deve-se isto a

conquistas da “força de vontade”, ou quem sabe, seria a resposta a orações secretas?NÃO! Pois outros há mais puros, mais inteligentes, mais enérgicos e mais profundos em suas orações e Deus jamais lhes falou.Há místicos e outras pessoas que entram em êxtase, e que jamais souberam ver com sensatez.É que a dádiva não está no que o homem faz e traz, pois isto é como nada perante Deus.O despertar e o temor perante Deus, como tais, não pertencem ao homem. Onde se ouve e se reconhece a voz de Deus, não há

lugar para o “ser” ou o “ter” ou o “provar” do homem. Quem foi eleito por Deus nunca poderá dizer que ele escolheu a Deus. [Nenhuma coisa pode o homem fazer, pretender ou alegar para a sua salvação].

A realidade é que a reverência [o temor] e a humildade perante Deus, a possibilidade da fé, no âmbito humano, só podem ser consideradas como impossi- bilidades; como sendo incompreensíveis “riquezas de sua bondade”:

“Como mereci ver, eu que era cego?”. E uma inexplicável contenção de sua ira: “Por que sou, justamente eu, uma exceção entre milhares?” E uma incompreensível paciência de Deus para comigo: “Pois o que pode Deus esperar de mim ao dar-me tão inaudita oportunidade”?

NADA! Absolutamente nada justifica e esclarece este “eu” e “para mim”, que está totalmente no ar [sem aparente fundamento]; é puro e absoluto milagre, vindo de cima.

Toda palavra que a respeito desse milagre se pronunciar [ou escrever para explicá-lo ou relatá-lo] como se se tratasse de experiência humana, mesmo que seja a sua simples confirmação, é imprópria [por supérflua, desnecessária, imprecisa, excessiva e ao mesmo tempo insuficiente].

Estamos novamente na linha de interseção [do reino do mundo e do reino de Deus], que não pode ser esticada, distendida.Mas isto se pode dizer da dialética do milagre: “A bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento”.O que se torna verdade para o homem, vindo de Deus, jamais pode vir a ser outra coisa se não um novo chamamento a Deus.

Um apelo para o retorno; para a reverência (o temor) e para a humildade; é a renovação do convite para abandonar a segurança que o mundo dá; é um apelo para desprezar a honra e a glória do mundo e tributar glória e honra ao Deus desconhecido como se, de nossa parte, nunca houvesse existido a mínima contradição a esse louvor [pois com o novo nascimento em Cristo, volta o homem à posição que usufruiu no Éden, antes da queda; antes de, pela vez primeira, ter querido ser igual a Deus. Tudo se faz novo e o homem espiritual recupera a imagem e semelhança de Deus].

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Page 5: O Julgamento Da Justiça Humana - Romanos II

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Toda e qualquer pretensão a vantagens e honras, todo o direito que alguém queira ou possa querer derivar da revelação de Deus, é clara evidência da incompreensão dessa eleição, da vocação; revela a nossa incompreensão de Deus [e é, por isso, a anulação do próprio milagre da revelação].

Toda asserção a favor próprio que alguém, que tiver [pela graça] observado algo de Deus, fizer com fundamento nessa visão, torna-o, IPSO-FACTO, novamente igual ao que nada recebeu.

“Não notas que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?” Não sabes que esta é a única observação, realmente possível? Se não o percebes, “então com tua obstinação e teu coração impenitente amontoas para ti um tesouro de ira”.

A incompreensão [a não percepção do desideratum de Deus], quando ocorre, depressa se avoluma, se condensa, se compacta; solidifica-se em um aglomerado obtuso no qual esbarram todos os pensamentos, todas as palavras e todos os atos da pessoa; dessa obstrução nasce o religioso SUI-GENERIS típico, que se conduz e se caracteriza como pessoa melhor que as demais. É uma religiosidade fátua [presumida, petulante, e sem nada de sólido em que se apoiar], torna-se vulnerável à chacota dos que a menosprezam. [Tais religiosos criam a legião dos legalistas espirituais, dos fundamentalistas, dos adoradores da Bíblia, que retêm a verdade divina presa aos grilhões de sua intransigente defesa do terreno conquistado].

Da retidão divina dos profetas nasce a retidão humana dos fariseus que é a irreverência a Deus, a impiedade, a rebelião.A incompreensão da bondade de Deus esconde uma ameaçadora acumulação da ira de Deus, pela conduta muito objetiva,

presente, que ela impõe ao Profeta transmudado em Fariseu no seu relacionamento com Deus, [que deixa de ser o verdadeiro Deus para ser] na realidade, o NÃO-DEUS sob cujo domínio já está.

A escrituração falsificada [deste Profeta-Fariseu, deste religioso típico] esconde a sua situação real. Ele pode prosseguir na construção de sua Torre de Babel, cada vez mais para o alto, enchendo-a com reclamos e clamores divinos, segurança espiritual, usufruto de Deus; porém, por traz da fachada de seus dias, já está à espreita o eterno dia da ira e do tribunal imparcial. [Aparentando estar] em pé, sobre um píncaro, ele já está tombado, caído.

Ele, o “amigo de Deus” [o original está sem aspas] e o seu mais amargo e odiado inimigo. [A tradução inglesa diz “o amigo de Deus e seu declarado e mais amargo inimigo”. No meu entender, o A. quis dizer que o homem, não percebendo que a bondade de Deus quer levá-lo ao arrependimento, é incapaz de arrepender-se genuinamente; todavia, ansioso por criar para si um relacionamento pretensamente válido com Deus, assume um status de religiosidade que, por isso mesmo, é fingido, hipócrita e “farisaico” isto é. estribado em leis, preceitos, doutrinas e dogmas; orientado pelo que há de comer e beber, pela guarda de dias, por encaixes eclesiásticos, por uma série de “pode” e “não pode”.

Esta classe de gente é para o A., sempre no meu entender, a classe que mais retém a verdade com a injustiça e por isso, mais forte, maior, é a ira de Deus contra ela; portanto, mais extremado, mais odiado é este inimigo].

Ele é o justo [segundo o seu próprio critério], já condenado, e ele não se deve surpreender se subitamente for tornado público o que ele de fato é. [Luc. 12,2-31].

Vs. 6-11 Porque a medida com que os homens são medidos, não é deste mundo. É a medida eterna como eterno é Deus: a medida é o próprio Deus!

Deus reiteradamente procura sinceridade [fidelidade] no homem. Fidelidade a si, somente. Para nos edificar, ele nos anula primeiro; dá-nos a vida, nô-la tirando e nos redime, transformando-nos, ao som da última trombeta. [Parece-me que são dois os sentidos que o A. quer dar: para que o crente seja edificado em Deus, é necessário que lhe seja fiel e sinta pessoalmente a absoluta nulidade humana; para ser firmado em Cristo, é necessário que se negue a si mesmo; para ganhar a vida precisa perdê-la primeiro. É preciso que a pessoa se esvazie de todos os atributos que tenha ou que pense ter, mesmo os mais sublimes e apurados, aqueles que a sociedade, a igreja, a família mais enaltecem e admiram. E nesta aproximação a Deus, é preciso que o crente seja genuíno, sincero. E a sinceridade que Deus busca! O segundo sentido é escatológico. A redenção vem com o encontro paradoxal com Deus, mas a transformação vem no final dos tempos. Será quando soar a última trombeta. O homem destruído será restabelecido; o morto viverá; o remido transformar-se-á].

É disto que se trata.Perante este Deus comparecerá também o justo; o crente. Comparecerão perante o Deus que retribuirá a cada um segundo as

suas obras; com glória, honra, incorruptibilidade e vida eterna aos que com perseverança buscam a Deus conforme o testemunharem suas boas obras. Porém, com ira e indignação aos que com mente servil e desobedientes à verdade, seguem a rebeldia. [Há aqui urna consideração a fazer, e que está implícita em todo o contexto do que até aqui foi apresentado: a salvação — o que chamamos a “vida eterna”, é pela graça de Deus e somente pela graça. Nada pode o homem fazer para alcançá-la ou ganhá-la, se não crer. (Atos 16, 31).

No entanto, o Senhor, justo juiz recompensará (II Tim. 4. 8) a cada um segundo as suas obras com maior ou menor galardão. Está porém implícito que, para receber o galardão, terá o crente fiel recebido, primeiramente, a graça da vida eterna].

A opressão e a perplexidade estarão sobre toda a alma que pratica o mal: sobre o judeu primeiro, e também o grego; porém, a glória, a honra e a paz estarão sobre todo aquele que pratica o bem: sobre o judeu primeiro e também o grego pois, para Deus, não há acepção de pessoas.

“Ele retribuirá a cada um segundo as suas obras”.Ele quem?Ele, perante quem todos os homens são fúteis (nulos), mentirosos. Ele a quem o homem, no meio de suas riquezas ilicitamente

adquiridas, nunca deveria ter esquecido. Ele que, uma vez por todas, disse ser seu o Poder e a Misericórdia. (Sal. 62, 10-13). Ele, a quem o homem não conhece, porém, precisa reconhecer este fato, para saber, em seguida, que ele é conhecido de Deus. (Prov. 24, 12). [Reconhecer que de Deus é o poder e a misericórdia]. [Observar também a afirmação curiosa do A. de que “o homem, no meio de suas riquezas ilicitamente adquiridas, nunca deveria ter esquecido (a Deus). Que riquezas são essas? As do mundo? E são estas (ou outras quaisquer) sempre ilícitas, isto é, ilícitas A PRIORI por característica intrínseca? Tratar-se-ia, no caso, de um enunciado Marxista ou de um pensamento Marxistizante de Barth? Ou estaria Barth a referir-se a certos e determinados homens que pondo seus corações nas riquezas, por isso mesmo as adquiriram de formas inconfessáveis e portanto deveriam lembrar-se SIC TRANSIT GLORIA MUNDI?

Parece-me que, a esta altura, o assunto deve ficar em aberto para eventual consideração posterior].Ele é o Deus que “paga” aos homens as obras nas quais lhes permite participar; é ele quem estabelece o respectivo valor ou a

desvalia segundo o seu próprio critério de avaliação. É nele que se decide o que é bom e o que não o é; é nele que descobrimos a nossa sensatez ou a nossa loucura; nosso céu ou o nosso inferno!

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Nossas obras, procedimento e conduta, nossa atitude e nossa disposição mental, em seu aspecto histórico e psicológico, têm apenas a significação daquilo que são: História e Psicologia; por mais alta que seja essa significação, não podemos superestimá-las atribuindo-lhes qualidades eternas. O eterno adquirente — [o comprador, o tomador] o único que, eventualmente, as pode pagar em moeda eterna é Deus. Sempre e de novo Deus!

Pode, pois, ocorrer o milagre de ele pagar aos que buscam sua glória, honra e incorruptibilidade com a “vida eterna”; e assim, o que na limitação humana tem a forma de temor e humildade perante Deus e que se realiza na procura, na busca de Deus, e Deus somente, corresponda a um encontro com Deus.

Pode acontecer que o recipiente da fé, por menos que o aparente, contenha em seu bojo a vida eterna. Pode acontecer que a perseverança humana na paciência e na ansiedade seja característica das “boas obras” realizadas pela pessoa ou através dela. Pode ainda acontecer que aquilo que alguém esteja fazendo na total fraqueza da carne e em alto grau de incerteza seja o bom e traga, já em si, a glória, a honra e a paz do mundo do além.

Tais possibilidades, porém, não podem ser concretizadas humanamente nem seu acontecimento pode ser considerado como coisa pacífica, fato consumado; coisa de ocorrência normal.

Quando algo semelhante se dá, vem da parte de Deus.Na linha que vem ao encontro dessa possibilidade [aquém do lado do evento] agitam-se judeus e gregos; homens da igreja e do

mundo. Uns e outros são participantes da promessa, porém, somente da promessa.[Todavia, embora apenas uns poucos gozem do cumprimento da promessa] nunca essa concretização poderá ser considerada

como o resultado da retidão humana em destaque entre outras retidões (ou falta de retidão) humanas, [qual fora, por exemplo, a recompensa ou o resultado de vida reta, religião verdadeira, de fé “vigorosa”, segundo o juízo dos homens].

Jamais o crente, o praticante das boas obras, as exibirá como sendo mérito seu, em confronto com a falta de mérito ou o merecimento menor de outrem. Ele nunca dirá: “Eu faço” ou “Deus retribuiu”, mas “Deus faz” e “Deus retribuirá!” (2, 13; 3, 30 e 5, 17-19). Jamais o seu temor e sua humildade perante Deus pretenderão ser outra coisa que espaço vazio, vácuo; carência e esperança, pois a Deus pertence a glória que o homem, neste mundo busca e honra.

Todavia, também pode dar-se o oposto: que aconteça o milagre terrível; que aos seguidores da rebeldia esteja reservada a ira e a indignação.

Pode acontecer que algumas formas de temor e humildade, embora estejam acima de qualquer dúvida aos olhos humanos, não sejam consideradas como tais pelo Deus verdadeiro, porém sejam manifestações de humildade e temor perante o NÃO-DEUS (1, 23; 2, 1-2) e, portanto, são qual candidatura ao desagrado de Deus (2, 5).

Pode acontecer que Deus “pague” a obra humana com ira e indignação. Que aquilo que pretende ser revelação profética seja “conceituação servil”: a atitude de um assalariado diarista que visse no soldo da etapa toda a recompensa, e a única recompensa a receber, fazendo do salário o objetivo de seu trabalho (Zahn). [O A. citando Zahn compara certo tipo de religiosidade com a ausência de motivação mais elevada que caracterizaria um assalariado que trabalhasse sem outro objetivo que o soldo que houvesse de receber].

Abundante e retumbante obediência à verdade pode ser a mais alta expressão de desobediência; humildade desmedida pode não ser mais que rebeldia. O que o homem faz com “boa intenção” pode ser um ato profundamente reprovável perante Deus.

Esta segunda alternativa, (a do “milagre terrível”) [também] não é “diretamente” perceptível aos homens; ela vem de Deus, e só de Deus e ninguém está livre de incorrer nesse erro.

Novamente estão na mesma linha, judeus e gregos; homens do mundo e homens da igreja: estão todos sujeitos ao mesmo risco. Nunca, e de forma alguma, está a justiça humana segura do valor de seus feitos e empreendimentos, aos olhos elo “comprador” divino. [Deus vê os corações e julga segundo a verdade; as obras humanas, feitas “para o bem” podem, eventualmente, ter motivação maligna, egoísmo, ou qualquer outro objetivo pessoal; por isso está a retidão humana sempre sob a ameaça de ser invalidada pela justiça divina; ainda que ou, quiçá, especialmente quando o objetivo haja sido, justamente, a obtenção dessa aceitação].

A rebeldia e o destemor a Deus serão sempre exatamente o que são, mesmo que tomem formas altamente sofisticadas e refinadas ou se acobertem naquilo que, material e psicologicamente, chamamos “fé”.

O juiz [supremo] não abrirá mão de julgar também o “justo”: ele julga; ele próprio e só ele!“Porque Deus não faz acepção de pessoas”.As coisas que historicamente ou espiritualmente aparentam realçar ou favorecer uma pessoa com relação ao restante da

humanidade, são somente a atitude, a máscara, o papel assumido por essa pessoa no teatro da vida.É a máscara que faz alguém parecer importante entre seus semelhantes. Não há dúvida de que isso tem certo valor, em si, mas

não significa preeminên- cia eterna; não é nada que transponha a crise das coisas perecíveis (corruptíveis) e que alcance a incorruptibilidade.

A medida (a escala) com que Deus mede não é deste mundo; ele não atenta à máscara; para Ele o justo não está, [só por ser assim considerado], no rol dos justos, pois Deus o vê qual ele realmente é. Quiçá como abençoado [servo perdoado] em busca do imperecível ou, também pode acontecer, como amaldiçoado rebelde, examinado e exposto [à condenação].

Homem é homem; Deus é Deus!O que resta, pois, da atraente segurança do farisaísmo?

Vs. 12 e 13 Os que pecaram sem lei, também perecerão sem lei. E aqueles que pecaram à face da lei serão julgados segundo a lei. Porque perante Deus não são justos os ouvintes da lei mas os que a praticam.

Ainda uma vez a pergunta: (2, 4)— Como se efetiva, pois, a retidão humana? [Isto é, o arrependimento a que o homem é levado pela bondade de Deus.]— Pela revelação, pela proclamação e comunicação da lei divina — pela proximidade e eleição de Deus, que aqui, e

acolá, dispõe pessoas à fé, à obediência e ao temor de Deus. (2, 14).O que vem de Deus e é maravilha [é milagre] perante nossos olhos, não dá aos homens que perceberem este milagre [que se

apropriarem da graça que ele traz] qualquer preeminência, vantagem, ou segurança: pecador é pecador e queda é queda.Quem há que não peque? Quem não caiu?Ainda que o desnível entre aqueles que pecam longe da lei que lhes é desconhecida e os que pecam no ambiente da lei que

conhecem, seja superficialmente visível; ainda que possamos distinguir os degraus em que estão os incrédulos e aqueles dos crentes, e

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que possamos diferençar entre o que designamos por “alma” [espírito] e história [os fatos concretos do mundo] todavia, [ainda que tudo isso seja visível e que a diferença entre “uns” e “outros” seja até gritante aos nossos olhos] a decisão do destino de cada pessoa, se para a “salvação” e vida eterna ou se para a “danação”; se a pessoa permanecerá sob a ira de Deus ou se alcançará a graça da salvação, não é tomada pela medida de grandeza da eventual diferença entre as posições de cada um.

[Se deste e daquele lado há pessoas que se salvam], também daquele lado e deste há pessoas que se perdem.O que faz a diferença entre os que se perdem e os que se salvam é o cumprimento da lei, isto é, a realização da possibilidade

oferecida por Deus — [o arrependimento a que Deus quer levar o homem, pela sua bondade]. A diferença é o conteúdo, o significado, o sentido da conduta que o homem assume.

É o sentido desse conjunto que é aceito ou deixa de ser aceito favoravelmente por Deus.A conclusão de que o homem vive dentro ou fora da lei depende do critério divino e não do juízo humano; nem se obtém a

resposta favorável por “ouvir a lei”, por notá-la; entendê-la; em suma, ter experiência [pessoal] da revelação, ainda que seja a mais alta revelação.

O que vem do homem [o que é humano], não pode salvá-lo; as coisas humanas não são justas perante Deus!Cumpridores da lei são os ouvintes que “realmente a ouvem”. — “os judeus que o são em secreto” (2, 29): porém, a sua retidão

consiste no fato de que “serão declarados justos”; para ser bem entendido: eles não “são justos”; nem mesmo” são declarados” justos. Para que não fique o menor vestígio da idéia de que o homem tenha algum direito [algum mérito para a salvação] para que desapareça o último sinal [mesmo o mais remoto] de uma realidade humana, ou de uma contribuição material, “eles SERAO DECLARADOS justos” (2, 6).

Eles acolheram, neste mundo de injustiça, a candidatura da justiça do mundo vindouro; no tempo do entrechoque, do escândalo, optaram pela busca da eternidade.

A sua justiça consiste no fato de que sempre, e reiteradamente, entregam a sua retidão humana a Deus, a quem ela pertence: a retidão destes tais consiste, portanto, na renuncia fundamental [e total] da retidão própria.

Onde a lei encontra tais praticantes, onde a revelação encontra semelhante fé, aí está Cristo, “o fim da lei, para a justificação de todo aquele que crê” (10,4-5).

Então vem ao nosso conhecimento aquele que nos conheceu primeiro. O juiz, porém, permanece como juiz, até que venham o novo céu e a nova terra.

Comentários: 2, 1-13

1. O Autor revela na primeira parte deste capítulo um método expositivo que o caracteriza marcadamente na sua “Dogmática”; parece-me, por isso, que seria interessante comentá-lo mais demoradamente. Todavia, por se tratar de um traço de caráter geral e não unicamente do assunto tratado nesta primeira parte, voltaremos a essa análise nos comentários do fim do capítulo.

2. Barth não poupa argumentos para enfatizar a nulidade da retidão humana (ou sua justiça) que, quando ocorre, tem o condão de suscitar a ira e a indignação de Deus, pela tendência de nivelar o homem com Deus; por isso traz ela em seu bojo uma falsa religiosidade, uma afetada santidade, e o caminho para o obscurecimento do coração e o esvaziamento da mente.

3. E notável a extensão que o A. faz, do risco de auto-endeusamento, aos que ensinam e pregam o evangelho, mencionando mesmo apóstolos e profetas. Barth—ele próprio — deveria saber bem o que isto significa e, talvez, seja esta a explicação para seus comentários em um dos prefácios quando manifesta sua contrariedade pela aceitação que teve a sua primeira obra, a ponto de se fundarem “Escolas Barthianas” e o Barthianismo.

4. Depois da exaustiva exegese que o A. faz dos primeiros 13 versículos do capítulo segundo, o que resta a acrescentar senão que “justificados pela fé temos paz com Deus?” (5, 1).

O Julgamento (2, 14-29)

Vs. 14-16 Porém, se acontecer que gentios, que não têm a lei em seu estado natural, fizerem o que manda a lei, por não terem a lei, para si mesmos são lei. Estes tais apresentam as obras da lei inseridas em seus corações (do que as suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e de desculpa, são testemunhas) no dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho.

Esta é uma comunicação altamente chocante, obscura e estranha, e mostra quais os pontos de vista que são válidos (ou serão válidos) quando Deus é (ou for) o Juiz.

Gente que não recebeu a revelação comparece perante Deus, como se a houvesse recebido. Os que dormem são vistos como se houvessem velado atentamente; incréus são julgados como crentes e os injustos, como justos.

Este é um fato surpreendente; é como se apresentássemos “aço feito de madeira”, e esta realidade precisa ser, agora, exposta aos olhos da justiça humana.

“Gentios [ou pagãos — ou homens de fora da Igreja] procedem segundo a lei.”A lei é a revelação que foi dada por Deus e logo retirada e definitivamente trancada. E a impressão remanescente da revelação

divina deixada no tempo, na história e na vida das gentes. E a “escória” sagrada do milagre havido; cratera extinta da fala divina; a recordação séria da atitude timorata e humilde que certas pessoas foram constrangidas a tomar. A lei é o canal vazio por onde, em outros tempos, em outras circunstâncias e para outros povos, fluía a água viva da fé e da observação sensata; canal todo feito de conceitos, pontos de vista e mandamentos que, em seu sentido geral, fazem lembrar de certa gente diferente que nos convida (nos intima) a guardar, a preservar esses conceitos.

Aqueles que têm a lei, moram na orla desse canal. Eles têm a impressão do Deus verdadeiro, do Deus desconhecido, quer seja na forma de religião herdada ou apropriada de outrem, ou segundo alguma experiência própria vivida no passado. Eles têm, de uma forma ou outra, referência a Deus e à crise de nossa existência, e têm noção do mundo do além, um mundo limítrofe ao nosso. [O reino dos céus é limítrofe ao reino deste mundo e não é, necessariamente. o reino de além túmulo].

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E porque tais pessoas têm essa referência [a Deus] e porque a lembrança da revelação havida os impressiona, esforçam-se por conservá-la indelével.

Aos “gentios que não têm a lei”, falta, de alguma maneira, a referência [a Deus] em sua vida pessoal e em sua experiência histórica; não têm a impressão da revelação e, por isso, não guardam memória dela e, [logicamente], não fazem qualquer esforço por conservá-la. Pode-se até considerá-los adormecidos pois não mostram qualquer inquietação ou intranqüilidade [com relação à sua situação] por força de algum cismar próprio, alguma recordação ou alguma observação de terceiros.

Poderíamos, [com propriedade], considerá-los como incrédulos porquanto não manifestam qualquer assombro, [qualquer interesse], qualquer respeito ou confrangimento para com o que está acima deles. Poderíamos, até, considerá- los injustos, pois aprovam e acompanham o procedimento normal do mundo.

De fato, de maneira alguma poderíamos dirigir-nos a eles como aos habitantes das margens do canal da revelação.Porém, pode acontecer que gentios, que não têm a lei, “pratiquem o que a lei ordena”.Ora, sendo Deus o juiz, “praticar a lei” é algo diferente de “ter” ou “ouvir” alei(2, 13).Praticar a lei, quer dizer “estar diante de Deus”.[Na prática da lei] tem lugar a revelação; Deus fala; e a conseqüência da revelação são o temor e a humildade, aliás, resultantes

naturais da posição em que o homem se encontra.Então, dá-se a justiça (ou a retidão) que vem de Deus.Todavia, a revelação vem de Deus.Ela não fluirá, necessariamente, no leito do canal [que pode estar] vazio. Ela pode correr por ele mas pode, também, buscar

outro traçado, rasgar novo caminho.A revelação não está atada, não está condicionada às impressões antigas que acaso tenham sido deixadas outrora; ela é livre;

portanto é erro supor que os gentios [que não tiveram acesso às bordas do canal ou que não o buscam] estejam adormecidos, ou são incrédulos e injustos. Também eles podem ser tementes a Deus e por ele escolhidos sem que os outros [os que habitam junto ao canal] o percebam. [Aliás], a fé, como tal, está sempre envolta em mistério. [Em discrição].

Os gentios sentem [ou podem sentir] desassossego, estremecimento, o temor que os habitantes do canal não vêm nem entendem. Porém, Deus vê, e os compreende. Ajustiça de Deus, há muito, abriu-lhes [o caminho] mas a retidão humana ainda os observa de soslaio, desconfiada.

Eles praticam a lei em “seu estado natural”. Na sua natural jovialidade e no seu risonho mundanismo, na singela e despretenciosa objetividade de seus afazeres. Deus os conhece, e eles, [os gentios, os homens afastados da igreja], por sua vez, também o reconhecem; e [conseqüentemente] não ficam sem a visão da corruptibilidade de tudo quanto é humano; e também não deixam de divisar o contorno argênteo [reflexo da luzi da redenção e do perdão que emoldura a nuvem negra de nossa existência; permanecem no respeito pelo NÃO que separa a criatura do Criador, e pelo SIM que os faz criaturas do Criador.

Também para os gentios a vida é apenas parábola, porém, talvez, uma parábola tão completa que, por isso, já tenha a justificação [de Deus].

[É a vida no contexto de um] mundo imperfeito, é claro; mundo tão despedaçado, já tão desfeito, solapado, que parece [mais necessitado] mais próximo da misericórdia de Deus, [do que o mundo daqueles] onde o “Reino de Deus” está em plena floração.

[Esse mundo dos gentios, assim destruído, minado, exibindo] o mais extremado ceticismo, é totalmente incapaz de penetrar no que seja mais elevado, mais puro, mais sublime. [Esse mundo está, de tal maneira] insensibilizado, a ponto de não mais empolgar-se por coisa alguma; todavia pode [justamente por estar em estado tão lastimável] ter um espírito realmente quebrantado [pronto] para receber a Deus.

Talvez seja um mundo cheio de murmurações amargas, sem paz, [saturado] de protestos, de críticas e de insatisfações íntimas, mas por isso mesmo, e dentro disso [talvez] ele aponte ao próprio Deus da Paz, que está acima de todo o entendimento.

O que oferece a lei?E o que quer a lei trazer à lembrança daqueles que a têm?Justamente isto, que nos parece tão notável nos filhos do mundo: [a lembrança do Deus verdadeiro, a referência a ele].Será que eles [os gentios] praticam a lei? Será que eles estão ao pé da fonte [donde brota o rio da vida]?E por que não estariam?Quem porá limites à riqueza da bondade de Deus? (2, 4)[Por acaso seria justamente] o homem que realmente conhece esta riqueza, que descobriu que a dádiva da revelação é

inteiramente gratuita, que é uma dádiva imerecida, totalmente inexplicável (do ponto de vista humano)? [Seria, acaso, o morador ribeirinho do canal quem pensaria na limitação da riqueza da graça de Deus?]

“Eles são lei para si mesmos”. Existem pessoas que praticam a lei sem a possuírem e, ao praticá-la, efetivamente a recebem, e passam a ser lei para si mesmos.

A água viva cavou para si um leito diferente e a vantagem aparente dos moradores da beira do canal, desapareceu.Surge um leito novo de um rio indômito; uma impressão diversa, incomum, da revelação; uma forma estranha da fé.Quem

poderá contestar essa manifestação?Quem poderia contestá-la, senão só Deus?A religião e a experiência dos personagens de Dostoiewski podem ser estendidas e aplicadas a muitas “religiões” e

“experiências religiosas” [que andam por aí Religiões de “elites” espirituais, religiões e experiências de pessoas superiores que olham aos de fora lá do alto de seus encastelamentos. Olham aos outros, lá embaixo, sem eira nem beira, para, por misericórdia ou porque “noblesse oblige”, apresentar-lhes o seu Deus].

[Dostoiewski imaginou um cristianismo “democrático” e estatal que salvaria o seu país do caos: suas idéias podem, talvez, ser resumidas na essência da pregação do Monge Zossima (Livro VI de “Os Irmãos Karamazov”). É uma religiosidade untuosa e chocante onde a ação nasce, permanece e acaba com o praticante que a desenvolve como se fora para compensar perante os menos aquinhoados da sorte, as vantagens que o destino lhe reservou ou lhe proporcionou por direito de nascimento, inteligência e pelos demais dons que acaso tenha. Nesta compensação até estende a sua retribuição à natureza em geral, para assim remir o seu pecado contra tudo e contra todos, diferindo, portanto, da religiosidade intelectual de Tolstoi citado mais atrás, que foi desenvolvida em forma de racionalização do ensinamento cristão. Tolstoi tomou como centro de sua doutrina a resistência passiva: “Não resistais ao mal” (Mat. 5,39) e eliminou dela todos os conceitos metafísicos ou que não fossem estritamente éticos. Assim, negou a divindade de Cristo, a ressurreição e a imortalidade da alma: ensinava que a felicidade somente poderia ser atingida pela prática do bem. Para Dostoiewski, porém, a felicidade consistia no reconhecimento da participação individual no pecado, no mal geral do mundo, e na humilhação pessoal perante

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todas as pessoas, animais e coisas para a diminuição, a atenuação do mal causado, involuntariamente ou não].Que motivo poderiam ter as pessoas “que possuem a lei” para dispensar aos que não a possuem, outra atenção que a de simples

“objetos” de seus esforços missionários? [A religião formal, o preconceito de “povo eleito e salvo”, a presunção de que conhecemos a Bíblia, podem levar-nos a posições paralelas às dos personagens piedosos de Dostoiewski].

[Por que haveriam de, aqueles que receberam a lei, tratar aos que não a receberam, se não como principiantes religiosos, neófitos que nada entendem das coisas transcendentais do espírito?]

No entanto, é possível que, de há muito, tenha essa gente recebido e percebido manifestações de Deus que nós [que conhecemos a leu talvez nunca recebemos nem receberemos.

“Eles são lei para si mesmos”. Se essa lei se expressa ou não em termos da religiosidade e experiências espirituais, não vem ao caso, pois Deus pode conceder e de fato concede, também isto aos gentios.

”Estes tais apresentam as obras exigidas pela lei gravadas em seus corações”. Eles comparecem ao tribunal divino; entram em julgamento; e o que justifica o homem perante Deus “encontra-se neles”.

De que forma?Toda resposta positiva: “Assim,” [desta ou daquela maneira] seria inadequada [para explicar] a obra que o gentio justificado

apresenta a Deus e com a qual encontra o beneplácito divino.Tivera a justiça humana que pronunciar-se, e o gentio seria, indubitavelmente, condenado.Aquilo que a justiça humana acaso encontrasse a favor dele não seria (nem foi) o que o justificou perante Deus.É no fim, na extremidade [desesperada] da justiça humana que se encontra, possivelmente, a justificação do homem perante

Deus; é quando o homem se sente completamente perdido; quando ruíram por terra todas as suas ilusões morais e religiosas; quando ele abandona todas as esperanças depositadas nesta terra e neste céu; [quando, para ele, sua retidão não tem qualquer mérito].

Além, para além de toda intuição, de toda objetividade; para além de tudo aquilo que os possuidores da lei acaso ainda lhe concedam (um “bom cerne” [bom nome, boa família] um “certo idealismo”, “bases religiosas”) além de tudo que o europeu médio preza (posição, maturidade, raça, personalidade, agudeza de espírito, caráter), (além de tudo isso) está o que o gentio tem para apresentar a Deus e que Deus pagará com a vida eterna (2, 6).

Na realidade, talvez não [haja no gentio assim justificado] mais do que resquício de religiosidade, (algo inconsciente, extra-eclesiástico). Quiçá exista nele o homem desnudo (Dostoiewski) no seu último estádio; pode ser que ele tenha apenas uma derradeira e grande carência, perplexidade, pobreza. Talvez na hora extrema [quando a morte se apresentar] ele manifeste apenas espanto ante o mistério, ou indignada revolta contra a condição de nossa existência, ou, ainda, o amargo silêncio do ator que, contra seu querer, é forçado a abandonar o palco.

Pode também acontecer que o gentio [em julgamento] tenha coisas mais agradáveis, mais bonitas: não vem ao caso. [O que importa] é que no céu há regozijo, há alegria por um pecador que se arrepende, — [que faz penitência, segundo o original]. É um regozijo maior do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento.

O que é arrependimento? [“Penitência” escreve o Autor].Não é o ato final, mais elevado, mais sublime, mais fino, da justiça (re-tidão) humana, para Deus, porém é o primeiro ato da justiça divina, por parte do homem: é o ato básico! É a obra inserida em seus corações [corações dos gentios], por Deus. E por ser de Deus, e não dos homens, é vista com alegria nos céus: é o homem lançando seus olhos para Deus e para Deus somente: olhar que, também, somente Deus vê.

“Pelo que suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e de desculpa são testemunhas”.Quem há [entre os gentios] que ouça a voz da consciência? Como falaria ela aos que estão sem lei e sem Deus? Quem, [entre

eles] poderia perceber o significado da dialética que fala de Deus e da fatalidade, [da história da redenção e da escatologia,] da fatalidade e da culpa, de culpa e expiação, de expiação e Deus?

Mas Deus vê; ele ouve também a voz que foi silenciada [no instante extremo]; ele entende [avalia e aceita] aquilo que foi apenas vislumbrado; “ele considera o destino [o fado]. em seu conjunto” (Gellert). Para ele testemunham todos os fatos que não podem testemunhar, humanamente, para os juízes deste mundo. Ele sabe aquilo que não sabemos; daí a, [para nós], incrível e incompreensível possibilidade de aqueles que estão sem lei, comparecerem no tribunal, sem lei, e serem justificados.

Porque, “no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo” os gentios apresentarão suas obras e serão aceitos.

Donde vem a possibilidade de serem acolhidos por Deus aqueles que estão sem ele?Como desconsiderar o critério [aparentemente lógico e válido] de separar os homens entre religiosos e irreligiosos; morais e

imorais; como substituir essa classificação dos homens, feita segundo um corte transversal da lei, pela aplicação de um critério segundo uma seção longitudinal, descobrindo-se ao longo dela — e nas maiores profundezas [onde estão submersos os homens sem lei, afastados de Deus] possibilidades inúmeras [para o acesso ao rio da vida]?

Isto se dá “de acordo com o meu evangelho”.É a luz que raia no dia novo da raça humana, na hora da ressurreição; é o dia de Jesus Cristo que traz essa luz.É esse dia que traz a metamorfose do temporal [efêmero, passageiro] em eterno [incorruptível, imperecível], e o dia em que se

revela o que está escondido e se anuncia que somos vistos por Deus. Isto significa crise: confirmação e negação; morte e vida; um começo e um fim; um término e um início; consumação e renovação!

A confrontação entre essas oposições atinge a todos os homens, a todo o mundo, pois o Redentor que é Cristo Jesus é também o Criador de todas as coisas e nada há que ele deixe para traz.

Assim, os que estão em eminência e os pequeninos, os justos e os injustos têm, em Cristo, o mesmo acesso ao Pai, pois uns e outros receberam a mesma ordem de “parar” perante o Deus desconhecido.

Toda carne é como a erva e Deus quer que todos sejam socorridos. (1, 16; 3, 29; 10, 2), [O evangelho é “salvação” para todo aquele que crê pois Deus, é Deus de judeus — de religiosos que conhecem a lei, e de gentios — de pagãos que não conhecem a lei, pois entre uns e outros há zelo por Deus].

É por isto que Deus julga pelo que “os homens mantêm em segredo”. A condenação sob a qual estamos, e também a misericórdia e a força do perdão que nos retém e nos sustém, são regidos por aquilo que temos no âmbito mais secreto de nossos corações; não são intuitivas; [não são decididas sem real fundamento]: tanto a condenação como a graça são função das coisas ocultas dos homens. E isto diz respeito a nós todos.

Somente então (quando for revelado o que está em segredo) é que [a condenação e a misericórdia] se tornam reais. Esta resolução ainda não é realidade [não é fato público e notório] enquanto, aparentemente, uns se situam do lado da luz e outros na face da sombra, mas essa oposição [ou esse posicionamento] torna-se irrelevante quando soa a meia-noite, ou ao meio-dia quando ambos

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lados estão, ou envoltos de trevas ou imersos na luz.Cristo é “Meia-Noite” e “Meio-Dia”.Deus abrange [domina] tudo o que separa os homens. Ele formula a pergunta e ele mesmo a responde. Deus propõe a todos os

homens, qualquer que seja o degrau em que estejam ou o tempo em que vivam, a mesma advertência e a mesma promessa.Deus está acima de todas as posições humanas; Cristo revela as densas trevas da ira e indignação de Deus àqueles que detêm a

verdade com sua arrogância e justiça humana e é a luz do raiar de um novo dia àqueles que perseve- ram na fé; envolve nas mesmas trevas “judeus e gregos” quando, no mais íntimo de seus corações, não derem lugar a Deus, e banha na mesma luz abundante, também “judeus e gregos” que no intimo de seus corações, — com lei ou sem lei, acolherem e praticarem as obras da lei. A todos é posto o mesmo problema eterno: a opção entre o escândalo e a fé; entre a aceitação e a rejeição; entre a fácil glorificação segundo os padrões do mundo e a difícil renúncia de si mesmo. (Mar. 8, 34). Esta decisão entre os dois caminhos é a crise que toda pessoa tem de enfrentar; ela representa a linha de interseção que foi posta por Deus, e não pode ser fletida, deslocada, pelo homem; é uma reta que não pode ser substituída por segmentos descontínuos, sinuosidades e curvas. Ninguém se engane, pois. [(Gal. 6, 7-8)].

A linha traçada por Deus é inescrutável, inaproximável, eternamente intransponível e não ultrapassável; e permanentemente inquietante: Ela nos remete sempre de novo ao “secreto” onde Deus mesmo julga.

Mas justamente esta dureza do evangelho de Cristo é a sua bondade cordial e liberadora.O Deus, que é desconhecido de nós todos, pode e quer dar-se a conhecer, a todos nós.O Deus que ninguém entende, também a ninguém deixou sem testemunho.O Deus desconhecido não está longe do secreto dos homens, e é no secreto de Deus e dos homens que as diferenças

desaparecem; e tanto mais próximo estará Deus quanto mais compenetrado dessa verdade estiver o homem.[É pela revelação da noite — (do pecado e do afastamento de Deus), que se destaca, como por contraste, o inexaurível amor

divino e a grandeza da boa nova contida no objetivo da vinda do filho unigênito de Deus, ao mundo. (João 3, 16)O homem cavou o fosso profundo do abismo em que se encontra e onde se esforça para igualar-se a Deus. No entanto, Deus

em Cristo faz novas todas as coisas — e também ao homem, proporcionando-lhe a oportunidade de reassumir perante Deus a posição que teve antes da primeira queda, como se jamais caíra.

É na comunhão íntima, quando o homem expõe os escaninhos do seu coração à luz da verdade, que Cristo passa a habitar nele e este novo relacionamento é também um novo segredo do seu coração. Ninguém mais tem consciência dele. O fato é simplesmente confessado com temor e tremor; se for anunciado, propalado, alardeado, já não é um encontro real com Deus, mas um simulacro; é a entronização do NÃO DEUS através do ego. Porém se for um encontro real, se for resultante da crise, com opção pela fé, então este novo segredo supera e apaga os demais segredos, e por ele, Deus julgará].

Este Deus, o próprio Deus, que não se deixa levar e influenciar pelas impressões que dele tenhamos, é a esperança dos gentios no dia do juízo.

Toda retidão humana, porém, por ser Deus o juiz, deve ser, e está, sujeita à máxima reserva. A sua zelosa crítica aos que não têm Deus, poderá ser totalmente imprópria — [destituída de razão]; seu empenho para convertê-los pode ser fora de propósito. [Segundo a tradução inglesa tal empenho pode ser trivial].

Todavia, a mão de Deus está além [do nosso conceito] do que é bom e certo ou mau e errado por isso andaria bem, a retidão humana, se não ousasse ir longe demais.

Vs. 17 a 25 Se porém acontecer que tu que te intitulas judeu, e te fias na posse da lei, e te ufanas de Deus; conheces a sua vontade e tens compreensão do que se trata, como pessoa instruída pela lei, que és, e te atreves, também tu, a ser guia dos cegos, luz para os que estão tias trevas, educador de ignorantes, professor de crianças, porque tens, perante ti, na lei, a exposição completa do conhecimento e da verdade, — tu, que ensinas aos outros, não ensinas a ti mesmo? Proclamas que não se deve roubar; e furtas? Falas que não se deve quebrar os laços do matrimônio e adulteras? Abominas os ídolos mas despojas o santuário? Glorias-te na lei mas desonras a Deus, transgredindo-a?Pois, conto está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa causa.A circuncisão tem mérito se cumpri mios a lei; porém, se fores transgressor da lei, então tua circuncisão será como incircuncisão.

Esta é uma comunicação [uma exposição] chocante, inescrutável e estranha, feita aos que estão do outro lado [do lado oposto ao dos gentios].

Agora trata-se [não de adormecidos] mas, [aparentemente] de pessoas vigilantes, acordadas, porém que, segundo o juízo de Deus, estão adormecidas. São homens que, [segundo o testemunho do mundo] têm fé; no entanto Deus os considera incrédulos. São justos, tidos como injustos no conceito divino.

Aqui está o partido [o grupo] de homens que têm a revelação impressa em suas mentes e que, assim mesmo, em nada diferem do restante do mundo.

A retidão humana precisa, pois, tomar conhecimento também desta possibilidade, no julgamento divino.“Tu, que te intitulas judeu”! Não és o primeiro dos bons. Tens um passado atrás de ti e um correspondente futuro adiante de ti.

Tua vida faz parte de uma conjuntura que te leva a pensar que és uma exceção no mundo carnal. Tens o nome de que estás vivo, em contraposição aos muitos que, na realidade, não podem receber esse nome.

“Fias-te na lei”. Estás rodeado de sinais deixados pelo Deus vivo; esfor- ças-te por conservar tais sinais sempre bem claros para ti. Alegras-te pela autoridade que sobre ti tem, aquilo que sabes de Deus; [alegras-te porque tens aceito piedosamente a autoridade das coisas divinas, segundo as aprendeste na lei] e te comprazes pela autoridade que essa ciência [esse conhecimento] te confere [sobre os outros, sobre os teus semelhantes]. Comparas [a segurança e a disciplina] que te proporcionam as coisas que sabes e conheces, com o caos que reina entre as opiniões e os padrões, lá fora, no mundo.

“Ufanas-te [e te glorias] de Deus”. E como não te ufanarias tu. que tens, de fato, uma impressão, uma recordação dele, pois tens os olhos voltados constantemente, em oração, lá para onde Deus, realmente, deveria estar, enquanto os demais, os incrédulos, não só

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duvidam [que tenhas os olhos voltados para Deus] como afirmam que olhas para um lugar vazio [que Deus nem existe]?“Conheces a vontade de Deus”. Sabes também que a lembrança de Deus requer obediência. Sabes que de lá, para onde olhas,

deveria partir uma intervenção em tua vida e um ataque ao mundo e sabes ainda que direção essa intervenção e esse ataque deveriam tomar.

Estás intranqüilo porque estás convencido de que algo deve ser feito e por isto estás tomado de zelo para fazer tudo. [O A. põe a proposição em forma negativa, dizendo que o homem devoto — e que se intitula “judeu” não deixa de se sentir intranqüilo por algo a fazer nem deixa de ter zelo por (de fato) — fazer de tudo], enquanto os outros [os gentios], os irresponsáveis, [indiferentes, apáticos] deixam-se levar pela “força do destino”.

“Tens compreensão do que se trata”. — Herdaste e adquiriste [desen- volveste] um sentido [para a compreensão] daquilo que realmente conta, para as nuanças psicológicas e históricas que caracterizam o que é genuíno, verdadeiro; [tens uma percepção pronta] para detectar o que é significativo, importante, essencial e, mui especialmente, [tens o dom de perceber o que deve ser rejeitado], o que é suspeitoso e perigoso.

Tens sempre, quando opinas, uma observação pertinente, inteligente, fundada em considerações espirituais.Sabes delimitar [e fundamentar] tua posição entre os outros, com excelente argumentação.Em resumo: vês com profundidade porque és profundo, em contraposição aos milhares de superficiais, meros diletantes da

vida.Tens muito! O que mais querias? O que mais poderia alguém querer que tu já não tenhas?Grande é a oportunidade que se te oferece. Grande é o sentido da bondade de Deus, a teu respeito. Grande é a sua paciência.

Grande é a contenção de sua ira [no trato contigo] (2, 4; 3, 2: 4, 11:9., 4 - 5).Declaradamente grande é o que se espera de ti.“E agora te atreves a ser guia de cegos”. Sentes, e com razão, que tens uma missão. Comparas-te, dada a impressão [e noção 1

que tens da revelação, com os muitos que não a têm e, nessa confrontação, encontras a tua vocação. Adivinhas a existência de um plano divino, de uma “teologia” na qual tens um papel decisivo a desempenhar. Aceitas o papel (já o aceitaste, [aliás]) confiante e consciente de [estares cumprindo] um dever sagrado.

Gostarias de transmitir a impressão da revelação que tão séria e entusiasticamente recebeste (a verdade e o conhecimento plenamente estampados na lei), também aos outros: aos cegos que perambulam nas trevas, aos ignorantes e aos pequeninos. Gostarias de promover a lei; propagá-la, espalhá-la estendê- la para que muitos tivessem posse dela.

Por força do que és e tens, sentes-te pressionado para agir, instalado como cooperador de Deus.Mas “tu, que aos outros ensinas, não ensinas a ti mesmo?”Para que alguém tenha uma missão a cumprir é necessário haver alguém que lha tenha confiado. Quem quiser ensinar, precisa

estar preparado para isso. Para distribuir é preciso ter o que repartir.O que significa ter a lei, se ela não for posta em prática, e quando Deus não se revela a tais possuidores?O que significa a impressão [a noção] da revelação, se ela não prossegue, [se permanece apenas na forma remota de primeira

impressão]?O que significa ter o olhar voltado para onde Deus estaria, se ele já não mais está ali?Que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter morado à beira do leito do rio [onde fluiria a água da vida] se o canal

está seco? (Não se poderia ter dado o caso de as águas terem sido cortadas?)[Pessoas piedosas, crentes, devotas, podem atribuir-se prerrogativas de detentoras do conhecimento da lei divina, da graça de

Deus, do entendimento da revelação de Deus em Cristo Jesus, segundo seus próprios conceitos ou preconceitos, sem na realidade se abeberarem da água da vida; o rio da vida, para estes, já não flui no canal que eles elegeram; talvez um dia lá estivesse o rio de águas fulgentes, mas o seu leito foi assoreado com os detritos das presunções humanas; as águas estagnaram e o baixio do canal é leito árido ou várzea apenas úmida, quiçá umedecida pelos resquícios, pela lembrança, pela memória das águas que, um dia, ali fluíram.

O curso d’água foi bloqueado, não pelo Deus invisível, mas pelo homem que reteve a verdade divina com a sua presunção, pela qual ainda fala em conhecimento e revelação.]

Quem és tu? O que tens? Donde vens? O que espalhas e derramas, pois, em torno de ti e por todos os lados? O que é este “espírito novo” que queres implantar em todos?

A tua impressão da revelação, a invasão que sentiste [em tua alma], teu entusiasmo, tudo isto é carnal, é deste mundo.Acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de Deus do que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o

aprisionamento da verdade, a permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu caso [na qualidade de judeu] de maneira idêntica à do outro [do gentio]?O que és tu, se Deus não for por ti? O que és, se ele não encontrar em ti, no recôndito do teu coração, a [boa] obra? (A oração do Coletor de Impostos, a súplica do Filho Pródigo, o clamor da viúva perante o juiz iníquo?)

Então o teu “fazer” será o que ele é: tua legalidade, um furto (quem não furta?); tua pureza, um adultério (quando teria a sexualidade sido pura?), tua religiosidade, vã presunção (pois qual o religioso que não se aproxima [presunçosamente] de Deus?).

Adiantaria diferençar entre os degraus mais altos e mais baixos da vida, no tribunal de Deus?Se à tua vida faltar a justificação que só Deus mesmo pode dar, então falta-te toda e qualquer justificação.Se não tiveres mais que a tua impressão de revelação, para apresentar a Deus, então nada tens para apresentar-lhe.Se evocas para ti, apenas a tua fé, então nada tens a evocar. “Glorias-te da lei, e desonras a Deus, transgredindo-a”.Se Deus não for por ti, tudo será contra ti. Se Deus não for por ti, também não podes ser por ele; o mundo tem vista penetrante

e não deixará valer a tua pretensa superioridade; ele logo te reconhecerá como carne de sua carne e osso de seus ossos.Se tu mesmo fores reprovável não podes agir, trabalhar, instruir em nome de Deus. A tua posição se inverte e não podes achar

que isto seja uma injustiça: Querendo ser missionário, se não houveres sido enviado, fazes o contrário, pois onde se fala de lei, o mundo espera que a lei seja cumprida; onde houver menção de revelação o mundo a procura [e quer vê-la efetivada].

O mundo crê com longânima paciência em todas as exigências novas e mais altas que os “filhos de Deus” [o original não tem as aspas] em seu meio, levantarem e, de maneira nenhuma seria indiferente a realidades [que se lhe apresentassem] mas, será insensível a coisas ilusórias e vãs.

Se o mundo sentir-se ludibriado, iludido pelos “vocacionados” e “iluminados”, se lhe parecer que, ainda uma vez, apenas lhe exibiram aldeias e povoados de Potenquim, se nada houver [nessa pretensa revelação] que seja novo, diferente, convincente [real], então, após uma curta admiração, ele se afasta do estranho elenco teatral, pois não são [esses tais filhos de Deus] a verdadeira igreja do verdadeiro Deus; e então o mundo sente-se refortalecido e justificado.

[A expressão “Aldeia de Potenquim” refere-se à farsa praticada pelo príncipe russo Potenkin (1787) favorito de Catarina II;

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para impressionar uma comitiva de embaixadores austríacos, franceses e ingleses, com o pretenso grande progresso que o país estaria tendo naquele reinado, levou-os em excursão pelo sul havendo, porém, previamente, mandado embelezar as aldeias do percurso, enchendo-as com gente especialmente contratada para passear pelas ruas aparentando bem estar e satisfação. Mandou, também, montar painéis e armações pintadas, à distância, para fingir novas vilas e povoados que brotavam como cogumelos, por toda região. (Apud nota semelhante na tradução inglesa)].

O mundo sente a verdade por instinto natural, e não se deixa levar por engodos; é por isso que se recusa a seguir o Deus dos “religiosos”.

Deus é apenas uma ideologia quando os homens tomam emprestado os pontos de vista divinos, porém sem Deus, quando Deus deixa de ser, ele, a única fonte de todo bem e o homem passa a ser ou fazer algo com Deus [ser seu representante e cooperador] ainda que [esta co-participação] seja motivada pelas mais finas e mais nobres intenções.

A objeção [do mundo] a Deus, o seu protesto contra ele, é plenamente justificável quando todos canais estiverem vazios. — [Quando as fontes da vida, a pregação, a proclamação, o testemunho, forem formais ou pessoais, ainda que coerentes, eloqüentes, altissonantes, porém rasteiros em espiritualidade, destituídos da unção divina].

Onde estão, porém, os cooperadores de Deus?“Por causa de vós o nome de Deus é blasfemado entre os gentios”. (Isaías 52, 5)... “e o meu nome é blasfemado

incessantemente”.São, pois os eleitos, os “filhos de Deus”, [as aspas não estão no original] que retêm o reino de Deus [fazendo-se eles mesmos

cooperadores de Deus.Não deveria de essa possibilidade [de nos transformarmos em filhos da ira] deixar-nos profundamente preocupados, toda vez

que formos tentados a fazer da profecia [da redenção], destinada aos que esperam [no Senhor] e se apressam [a ir ao seu encontro], a quintessência da retidão humana?

“Se fores um transgressor da lei, a tua circuncisão será como incircuncisão”.Então, inapelavelmente, entrará o relativismo e a noção de revelação que têm os “filhos de Deus” [e transgressores da lei]

transforma-se em valor humano, mundano; um valor ao lado de outros valores. A pretensão a ter vantagem absoluta [pela sua condição de filhos de Deus] com relação às demais pessoas, desaparece. A religiosidade [a devoção], a sua moralidade e a sua posição com rela-ção ao mundo são grandezas que vão e que vêm. [São valores espirituais e morais que flutuam por falta de um seguro padrão de referência]. A sua história eclesiástica torna-se profana e cabe no refrão: “O genuíno anel provavelmente foi...perdido”. [Parece-me que o A. faz alusão à expressão folclórica ou lendária- épica alemã, onde um anel de grande valor foi, inexplicavelmente, perdido].

Pois, onde Deus que julga e “paga” (2, 6) não encontra valor real, os pretensos valores humanos não podem significar muita coisa.

A impureza e a falta de santidade que Deus achar no íntimo dos corações, desvalorizam a noção de revelação [de inspiração divina] que as pessoas julgam ter ou que os outros pensam ver nelas.

Os combatentes de Deus [os seus soldados], sem Deus, são quais um andarilho que estacionasse junto às setas da beira da estrada, indicadoras da direção a seguir e aí permanecesse sem tomar o sentido indicado. [E o pretenso servo de Deus que vê o que deve fazer mas não faz; é semelhante ao “moço rico” que se achegou a Cristo, percebeu o que deveria fazer, mas não trilhou o caminho indicado. (Marc. 10, 17-22)]

(Para esses tais [os soldados de Deus, sem Deus,] o sacramento da circuncisão entre os judeus e todos os demais sacramentos [entre os outros — entre os gentios] já não são mais comunhão com Deus, mas apenas se referem a essa comunhão; são memória dela. (Zwinglio e o liberalismo têm razão, sob a ira de Deus).

[Parece-me obscura a maneira de dizer do A. com respeito a Zwinglio. A versão inglesa diz: “O sacramento judeu da circuncisão — verdade que se estende aos demais sacramentos, já não é mais comunhão com Deus mas continua indicando essa comunhão e, aqui, sob a ira de Deus, Zwinglio e os liberais estão certos.”

Ora, um dos pontos de divergência entre Zwinglio e Lutero foi o da significação do sacramento particularmente no que diz respeito à eucaristia.

Para Zwinglio (e os chamados liberais que o acompanhavam) a eucaristia não é a repetição do sacrifício de Cristo mas a LEMBRANÇA fiel de que esse sacrifício foi feito uma só vez, para sempre.

Para os protestantes o sacramento é um sinal visível de uma graça invisível. A “Santa Ceia” é comunhão com Deus, porém não material, física, mediante a ingestão do corpo e do sangue de Jesus Cristo transmudados nos elementos eucarísticos (pão (ou hóstia) e vinho) mas é a verdadeira comunhão espiritual; não é mera lembrança; é participação.

O sacrifício foi feito uma vez por todas, e não se repete. Cristo não está morrendo constantemente mas morreu uma única vez; e os seus seguidores comungam em memória dele. (“Fazei isto em memória de mim”). Ao comungarem, lembrando do sacrifício, participam da graça quando, examinando-se a si mesmos, reconhecem a sua nulidade e, sem nada terem, se apresentam a Jesus: (“Senhor, eu creio”; “Eu sei que tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!”; “Toma-me como estou!”)

Ficarão também sob a ira de Deus se, ao se lembrarem do sacrifício de Cristo, participarem indignamente dessa comemoração. Se a considerarem um fato histórico, ocorrido uma vez, às portas de Jerusalém; ou se examinando-se a si mesmos, julgarem que têm condições para participar da mesa do Senhorpor terem vida limpa, conduta reta, serem piedosos, crentes professos, freqüentadores regulares da igreja, cooperadores do seu sustento e manutenção.

A eucaristia — a Santa Ceia — é pois um sacramento. Fonte de graça para quem, dela participando, discernir o alcance do sacrifício de Cristo; e fonte de condenação para quem transformar em efêmero o que é eterno, em humano o que é divino.

Se Zwinglio e os seus companheiros liberais viram, ou viam, no sacramento, apenas a lembrança material, embora fidelíssima, do sacrifício da cruz, então parece evidente à luz da exposição do Autor (e do ensino bíblico (1 Cor. II, 23-29) ) que eles a esse respeito, retêm ou retiveram a verdade com a sua justiça e estão ou estavam sob a ira de Deus].

A cratera em torno da qual estão assentados os santos [segundo seu próprio juízo], está extinta. A forma sagrada, de sagrado, só guarda a formalidade e nenhum esforço de espiritualização poderá impedir o progressivo esvaziamento dessa santidade. A circuncisão fica, de fato, igual à incircuncisão; a fé se iguala à descrença; bem-aventurança se iguala à impiedade.

Desta maneira, a retidão humana é atacada em sua própria casa, [pois são os legalistas, os defensores da lei e promotores de sua própria justificação, que são recusados, como transgressores da lei, no tribunal de Cristo, que julga segundo o que está oculto nos corações]; esta justiça (retidão) está sujeita a enganar-se [corre esse risco], não somente em relação aos gentios que estão de fora (2, 14-16) mas também em relação a eles próprios [os que conhecem a lei, os crentes, os de dentro da casa dos justos].

Semelhante retidão humana entra trôpega (cambaleante) no tribunal divino, pois não há reivindicação ou direito humano por

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cuja força aquilo que seja humano deixe de ser deste mundo. [E o que é humano não subsiste perante Deus].

Vs. 26-29 Quando, porém, um incircunciso cumpre a lei, a sua incircuncisão não passa a vale de fato, como circuncisão? Então, aquele que em seu estado natural é considerado incircunciso, mas é obediente à lei, não julgará a ti que, a despeito da letra e da circuncisão, a transgrides? Judeu não é aquele que o é naturalmente, nem é circuncisão a que se pratica na carne, porém, “judeu ” é aquele que o é em seu íntimo e a sua circuncisão é a que acontece no seu coração: em Espírito, e não segundo a letra, e cuja recompensa não procede dos homens, mas de Deus!

Surge, portanto, uma derradeira possibilidade: embora o círculo “causa- e-efeito”, inerente ao afastamento e queda, seja inescapavelmente fechado [fatal]

ele poderá ser rompido, o seu efeito inexorável poderá ser suspenso, anulado, junto com a própria causa, pela incompreensível comiseração divina. E claro que a justiça humana, em si mesma, é presunção e não produz qualquer justificação no mundo; porém, poderá haver uma justiça de Deus, para Deus.

Não há círculos [agremiações, grupos, associações, irmandades visíveis de Santos, de privilegiados, de heróis, super-homens, favorecidos e justos, criados e estabelecidos em conseqüência da posse da lei ou de impressão ou noção da revelação; nem como resultado de boas intenções, conduta moral e participação de sacramento.

Todavia, (embora não existam privilegiados) dentro do ambiente materialista [do mundo poderá existir um “homem novo” criado por Deus e na conformidade da sua vontade. [Diremos então que a incircuncisão conta como circuncisão? Concluiremos que a impiedade é [na realidade “paga” por Deus com a vida eterna como sendo piedade? A irreverência e a rebeldia são escrituradas nos livros divinos como sendo reverência e humildade? O mundo perdido é declarado livre e salvo no tribunal divino? Dar-se-á o caso de que a fé seja reconhecida por Deus como a verdadeira fé, mas seja por ele enfeixada junto com a incredulidade para que ele possa ter misericórdia de todos? (11, 32).

Trata-se de uma incompreensível irrupção do próprio Deus, do Deus desconhecido, no conjunto das coisas do mundo nosso conhecido.

É a impossível possibilidade do mundo novo que vem, sem que qualquer mérito a justifique, sem qualquer base aparente, sem que, do lado humano, possa ser feita a mínima coisa a favor ou contra o seu advento.

É a hipótese impossível para os homens, porém possível para Deus.Deus ajusta as contas pela sua própria escala. Ele conduz os que, aqui, são incrédulos, à meta da lei [à justifição]; fá-lo à luz da

sua comunidade, e deixa no mundo [sem justificação], os crentes desleixados.Deus passa por sobre as coisas conhecidas, visíveis e materiais, para julgar em secreto, de acordo com a sua justiça.Deus é o espírito que habita ou deixa de habitar nos corações, independentemente do que se haveria (ou se haverá) de esperar

pelo que estiver ou não estiver soletrado nas lousas humanas. [Nas tábuas das leis humanas.Deus recompensa o que quer. Ele próprio, e só ele.O que diremos a favor ou contra isso? Acaso Deus, não tem razão? Acaso conhecemos algum juízo melhor que pudéssemos

contrapor ao dele?Não é Deus a verdade eterna de nossa vida, trazendo-a à crise da decisão?O que queremos, com as “nossas” verdades?A honra de Deus luzirá [e iluminará os corações e a justiça de Deus revelar-se-á; por isso é que a pragmática de sua ação é tão

inescrutável e inaudita. [Porque Deus julga segundo os corações; a mente dos que verdadeiramente honram a Deus será aclarada e Deus os julgará pelo que guardarem no mais íntimo de seu ser].

Deus não subsiste, [não depende] da razão que lhe atribuímos; ele é Deus em seu próprio direito. Deus não é uma base ao lado de outras, nem é a resposta que nós mesmos seríamos capazes de dar; daí o seu irrompimento inesperado e sem razão aparente, e o seu julgamento segundo seus próprios juízos.

Há uma possibilidade [uma ocasião] para o homem salvar-se da ira de Deus: é quando toda pretensão humana é anulada, abatida, por Deus; quando Deus dá o seu NÃO, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna inevitável; [isto é:] quando Deus é reconhecido [e aceito] como Deus! E lá, onde e quando começa a história entre Deus e o ser humano. É lá, onde e quando o homem se atreve a erguer-se do pó, [unicamente] para amar esse Deus imperscrutável. (Isto não é uma receita para a bem-aventurança, mas é a eterna base para sua constatação).

E por isto — [por estar a possibilidade de escapar o homem da ira de Deus, lá onde e quando o mortal se levanta para amar a Deus], que se trata de Jesus Cristo, [que foi Emanuel, Deus conosco].

Comentários: 2, 14-29

1. Neste capítulo, ao tratar dos atributos de São Francisco, o A. ensaia um método expositivo que é uma sua característica notável na “Dogmática” e que me parece ser uma das causas (ou origem) das acerbas críticas que lhe são feitas por homens cultos e estudiosos do ambiente evangélico brasileiro. Trata-se de uma certa dose de humor, mediante afirmações absurdas que o A. faz na expectativa evidente de que o leitor perceba o sentido real das afirmações. (E claro que somente imaginação doentia poderia criar para alguém qualidades morais e espirituais que parecessem superiores às de Cristo).

Na “Dogmática”, não raro, Barth registra conceitos, interpretações e pontos de vista de terceiros como se os aceitasse, AD INITIUM; todavia os toma como válidos apenas para discuti-los, analisá-los, disseca-los e, de dedução em dedução destrói e rejeita o que julgar inadequado ou absurdo e, no processo, leva o leitor a antecipar-se à sua conclusão; não são poucos os casos que, na “Dogmática”, são analisados dessa forma, alguns deles ocupando parágrafos e páginas seguidas.Ora, sendo a “Dogmática” uma obra muito extensa, e sendo o A. prolixo, por índole e estilo, muitos são os leitores que consultam a obra; a manuseiam, mas não a lêem detidamente, e passam a atribuir a Barth interpretações e afirmações que foram registradas em sua obra, apenas para serem refutadas de forma cabal.

E quando o absurdo dos conceitos ou preconceitos é, no critério de Barth, por demais evidente ou grotesco, ele apenas os menciona e deixa o leitor tirar suas próprias conclusões. E se algum leitor apressado viesse a concluir que Barth foi de opinião que São Francisco superou a Cristo? Parece que o A. não considera ser importante responder ou esclarecer tal tipo de leitores. Afinal, ele não disse que é um teólogo escrevendo para colegas?

2. Parece-me curiosa a interpretação que o A. dá a certo tipo de esforço missionário, evangelístico ou de catequese: é o mensageiro, o

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pregador, a testemunha de Cristo que vê no ateu, no pagão, no incrédulo, no adepto de outra religião, não o irmão, o companheiro, o conservo, mas o objeto de seu zelo, e procura cumprir para com ele, a sua parte no plano de redenção; procura desincumbir-se de seu papel. Barth afirma categoricamente que ninguém tem o direito de arvorar-se em missionário se não houver sido incumbido por Deus para isso.

Na “Dogmática” Barth é, ainda mais veemente, afirmando que, quem não houver sido vocacionado para pregar, que se abstenha totalmente de fazê-lo, pois não será pequeno o mal que causará se subir ao púlpito sem haver sido escolhido para isso por Deus.

Parece-me difícil chegar à conclusão pronta e segura: quem deve ir e pregar o evangelho a toda criatura? (Mat. 28, 19 e referências). A ordem foi dada por Jesus aos onze apóstolos remanescentes. Seria só para eles? Temos a inclinação de generalizar a ordem para até os nossos dias pois Cristo prometeu que estaria com seus enviados até a consumação dos séculos.

Será o caso que somente os especialmente chamados, alguns até separados desde antes do berço, devem e podem anunciar o evangelho, ensinar e profetizar, como o próprio Paulo, Isaías, Jeremias, Moisés, Abraão para citar alguns só?

A Bíblia ensina-nos à saciedade que Deus não confia a propagação do evangelho e a apresentação da sua mensagem a homens melhores que os outros, a homens perfeitos, pois nesta hipótese teria que confiar a mensagem aos anjos ou suscitar mensageiros das pedras.Também é igualmente certo que o poder da mensagem independe do mensageiro pois, de outra forma, como se explicaria o

arrependimento de toda a cidade de Nínive, ante um pregador tão destituído de predicados nobres, qual foi Jonas? E como haveremos de saber se somos, ou quem é, verdadeiramente vocacionado? Não foi Paulo que escreveu que o importante é que o evangelho seja anunciado, mesmo que seja por fingimento, inveja ou porfia? (Filip. 1, 15-18).

Será, então, que aqueles que se esforçam por ajuntar, pensando que receberam uma mensagem a entregar, estejam, na realidade, es-palhando e não ajuntando, com Cristo? (Mat. 12, 30). Este versículo parece ser o ponto central do pensamento do A. sobre o assunto. Todos os argumentos desenvolvidos até aqui mostram o sentido mais profundo do julgamento de Deus, segundo o que está oculto no recôndito da mente, ou, para usar a expressão usual, de acordo como que está escondido em segredo no coração; segredo que o seu guardador, muitas vezes, sequer ousa confessar a si mesmo. Nem todos pregadores, sacerdotes, ministros, missionários, pastores, foram separados desde antes de nascerem, ou de outra forma miraculosa, como alguns dos grandes vultos bíblicos.

Nem todos, também, terão por objeto de sua missão levar as migalhas que caem da mesa para alimentar os cachorrinhos. Nem sem-pre podemos perceber claramente quais os motivos humanos — ou se existe vocação divina, entre os obreiros da seara santa; e a nós não compete o juízo. Mas examine-se cada um a si mesmo e veja o que faz: está, acaso, aproveitando o pretexto para acomodar-se ao “dolce fare niente”? Ou será o caso que se esforça e agita para ter maiores recompensas, como diz aquele hino americano:

“I’m thinking, today...Those bright stars might be mineIn my crown they may shineIf I work like a winner of souls”...Ou então, será para pagar uma suposta dívida de gratidão, retribuindo a graça divina com a dedicação pessoal?E não existirão outros motivos, menos sofisticados e menos nobres, alguns até sórdidos? (Prestígio eclesiástico, carreirismo e até

bolsas de estudo!).Sim. Há de haver um motivo em cada coração. Este motivo é julgado pelo juiz que vê o que há de mais secreto em nós. Ele sabe se

fugimos e recalcitramos contra o aguilhão ou se, totalmente, nos auto- sugestionamos para o cumprimento de pretensa missão ou ainda se simulamos a vocação para realizarmos nossos intentos. Verá também a sinceridade.

Os homens julgarão segundo os critérios perecíveis da justiça humana. Deus julgará em definitivo segundo seus pesos, sua medida e sua escala, dispensando sua graça ou sua ira segundo a retidão de seus juízos. “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco.

Sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor”.(Luc. 25,21 e 23)

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