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O labareda a5 corregido def

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2

POR FAVOR: SENTEM-SE… E OUÇAM

O «Ti Labareda» fez parte do meu imaginário de garoto.

É, pois, chegada a hora de o trazer à boca de cena.

Só que de repente, lembrei-me:

E se o fizesse perpassar por um filme em que o guião falasse dos dizeres da

nossa terra, juntando-lhe personagens (ficcionadas ou verdadeiras), aproveitando o

ensejo para contar um pouco daqueles tempos, em que a barca da passagem para a Costa

Nova era intervalo às agruras da vida, um momento único de galrear na galhofa, de um

modo descontraído?

3

E nele recordar a «Bruxa», ponto de começo ou fim de jorna suada, mas sempre

local acolhedor na figura da velhinha, a « ti Norta»?

E se no «guião» incluísse a Joana «Maluca», a matriarca deste povoado que mais

tarde se tornou a Gafanha da Encarnação, bonita urbe à beira ria prantada, e lhe

pintasse uns tiques que a relevaram no seu tempo, como uma mulher diferente, e, por

isso, alcunhada de «Maluca»?

Claro que para toda esta «aventura», teria de lá meter uns olhos de morrer. E

ressalvar numa só figurante, a «filha» extremosa, a irmã carinhosa, sublimes na ternura

e carinho pelos seus – afinal ! - Todos os que o destino, com particular incidência, o mar

- esse cão! - tinha feito recair sob seu encargo. Uma igual a tantas outras – mulheres

d’Ílhavo! - símbolo de sacrifício, denodo e perseverança, mulher de trabalho, à volta da

qual cirandava todo o agregado familiar, girando em torno dos seus desejos, das suas

aspirações e da sua indomável vontade.

«Mulher» que chegada a altura, sabia (ainda!), ser melhor do que todas na arte

de amar. Inigualáveis mulheres de então, de quem guardo memórias inesquecíveis que

me acompanharam vida fora.

4

Conheci muitas «Marias da Anunciação».

Como não as conhecer, se elas povoavam os becos da minha terra por onde me

fiz menino, e por onde, tantas vezes, me encontrei, mais tarde, a atirar-lhes dardos de

um cupido apaixonado?

Quereis que vos conte o «filme» a que corresponde o propósito, aqui anunciado?

Aos vossos lugares.

Era uma vez …

SENOS DA FONSECA

2007

5

6

O «LABAREDA»

Maria da Anunciação, a «Pederneira», estugou o passo para tentar fugir àquela

«zanga» da natureza. Chovia copiosamente. Parecia que no céu se tinham partido todas

as bilhas, despejando cá para baixo o conteúdo, guardado, havia meses. Ainda por cima,

a sulada enrolava-se nos bagos da chuva, transformando-os em cordas a fustigarem a

pobre Maria, que um atraso tinha feito perder a companhia das colegas pescadeiras1, na

viaje2 para a Costa Nova.

1 Mulheres da beira- mar 2 Viagem

7

Dobra que dobra, passo de gaivina estugado afugentando alguns cães que

saltavam ao caminho, únicos colegas de jorna que indiferentes ao temporal procuravam

sobejo que lhes matasse a fome, a Maria afoitara-se, maneando as ancas num passo

lépido e balanceado, com o que pretendeu recuperar o atraso.

O tempo prenunciara a trasmontana; mas prenúncio não é certeza, e a

necessidade de prover às bocas dos irmãozitos que lá tinham ficado em casa, levou-a a

meter-se ao caminho, apesar do desaforo entrevisto. No Juncal Ancho o vento açoitava

já as águas, que encaracolavam e levantavam farfalho, na proa das vagalhóças3. Os

enfezados pinheiros que logo adiante bordejavam o carreiro, pareciam guardar dentro de

si todo o rumor vivente. O céu estava mais tapado que gabão varino, de abotoadura de

cima a baixo, e de capuz alto. O «cão» do vento rodopiava esfrangalhando as

bichaneiras4, atirando a ramagem sobre os passantes, com o que lhes embaraçava as

3 Pequenas vagas, fortes e intensas 4 Flores das acácias,muito vulgares nos caminhos das Gafanhas

8

passadas. Não se ouvia pio de avezita grazina, e muito menos, choro de pato alapado,

incomodado pelo bufar do vento.

- Raios partam o ladrão do tempo – esconjurado5! - que me empata a vida - ia

dizendo de si para si, a Maria, encharcada até aos ossos, engaranhida6 pelo frio. Com

uma mão lá ia segurando o canastro, enquanto que com a outra se afadigava no

desbravar das contas da reza, invocando a Senhora dos Aflitos e a protectora, a Santa

Bárbara, para a livrarem dos raios medonhos que riscavam em zigue zagues o céu

chumbeiro, logo seguidos do ribombar assustador da trovoada que parecia capaz de

esfanicar7, tud’òmenos

8, o que tivesse forma ou expressão material na natureza.

5 Amaldiçoado 6 Tolhida 7 Fazer em bocadinhos 8 Tudo

9

10

Certo é que Maria não se preocupava demasiado com o estramboto9 do

temporal, que a rapariga não se enleava 10

com tão pouca coisa. Preocupava-a, isso sim,

ter deixado para trás o irmãozito mais novo, que uma tosse mais parecendo esgana dos

bofes, atacara. Tinha-o levado à botica do «ti Manuel Cunha», para que este lhe desse

um xarope melaço e um cáustico, capazes de afadigar o malzinho11

, ao garoto. Antes de

se pôr a caminho, a Maria agasalhou o Luisito que ficou bem aconchegado, e tratou,

ainda, de deixar um «caldito de conduto» na lareira, e a traganeira12

de milho, com que

os restantes irmãos, e a mãe, a Efigénea, a «Pederneira», pudessem aconchegar o

encostado13

do estômago.

9 Extravagância 10 Atrapalhava 11 Maleita 12 Pedaço de broa 13 Vazio

11

Tudo isto fora a causa de faltar à hora combinada, para, em grupo – o que

sempre era mais prazenteiro, e naquele dia, até aconselhável – demandar o caminho da

Maluca. Afadigou-se, por isso, a aligeirar o passo, mas o certo é que, nem ao longe,

olhar atirado lá para as funduras do caminho, divisou as colegas. E nem sequer outra

alma penada se divisava por aqueles endireitos14

, que naquele dia – pensava – mais

pareciam os caminhos do purgatório. Ninguém com canastra de venda à cabeça, ou

burricos carregados, ajoujados de lenha, sal ou outra mercancia, acartadas para a vila, se

avistava. Ninguém se afoitara ao caminho com aquela trabuzana15

medonha, que

parecia imprópria para seres vivos.

A Maria da Anunciação não era mulher de desistir. Era uma mulher de còrage16

.

E, mesmo só, não hesitou em atirar-se ao caminho, e atravessar aquele deserto de areias

maninhas, onde aqui e ali se distinguiam tufos raquíticos de vergônteas enfezadas,

14 Paragens 15 Temporal 16 Coragem

12

castras gafadas17

, povoadas por vezes (já) por uns enfezados milheirais. Os tinhosos

pinheiros com que se pensava fixar as areias, e desse modo proteger os aluviões, que se

acreditava poderiam vir a ser a terra prometida, separavam os prados arenosos para onde

o esfalfado colono cachiava18

carradas de pilados e outro escasso, e muito moliço, com

que ousava esfalfadamente cumprir o desígnio de «agarrar um povo», àquele deserto

nascido do mar.

Quando desembocou no prado da Maluca, terra já verdenta, e avistou ao longe a

torre da Capela da Srª da Encarnação. Maria «Pederneira» pensou com os seus botões

que não levaria mais de meia hora para que o sol descesse ao nível do mar. Tempo

suficiente que lhe seria necessário para chegar ao cais da passage19

. Parecia-lhe ter

ouvido o longínquo ressoar do búzio20

que assinalava a partida da carreira, o que sendo

17 Tifosas 18 Acarretava 19 Passagem para a outra banda ; carreira da barca 20 O sopro do búzio era o sinal de chamada para a largada da barca

13

improvável, dada a distância a que se encontrava, inté21

podia acontecer com o

escarampêto22

do tempo. Já não tinha ideias de apanhar a última barca. Com este

temporal desfeito, era até provável que não houvesse carreira. Se calhar, nem o Tóino

«Murtoseiro», o mais atrevido e esturto23

barqueiro da carreira do Ti Ambrósio, se

astreveria 24

a tal escaramuça.

Por pensar no Tóino …, acudiu à Maria, um sorriso maroto:

A passage25

para a outra banda servia para raparigas e rapazes daquele tempo

descontraírem do fardo que é a vida, e se entreterem ao jogo do beliscão, ousio que para

os tempos era a antecâmara de outros atrevimentos, a sós.

21 Até 22 Escarampanteado 23 Teso, valente 24 Atreveria 25 Vide 19)

14

Sola, sapato, rei rainha

Foi ao mar buscar sardinha

Põe o pé na pamplina

O rapaz que jogo faz?

Faz o jogo do capão

Diz à velha do condão

Que arrecade o seu pezinho

Que arrecade o seu pézão

Salta a pulga da balança

Os cavalos a correr

As meninas a aprender

Diz-me lá minha menina

Qual será a mais bonita

Que se há-de recolher?

15

Acudiu, pois, à Maria, que o rapaz pouco falante e até parecendo um pouco

macambúzio·, lhe deitava uns olhos gulosos, na altura em que o verso chegava à parte

de «qual será a mais bonita?»

E quem os não poria em coisa tão extravagante, tão exótica?! A Maria era de

uma beleza estonteante. Ainda por cima, coisa esquisita: o corpo – notava-se mal se lhe

pousava o olhar em cima – era longo e flexível, mas bem provido de enfeites. O avental

cingido na cintura revelava curvas esguias mas doces, empertigadas e desafiadoras,

sugerindo o alevantado26

da proa do xávega27

. O porte advindo das longas caminhadas

com a canastra encarrapitada na cabeça, era completado pela notória beleza de um rosto

tão escuro, que só em contraluz se poderia, melhor, admirar. Nele se incrustavam uns

olhos de amêndoa, cor de água verde safira, tão doces de fruir que dava gréu28

de neles

repousar. Olhos de um verde aquoso, sublinhados por longas e negras pestanas, olhos

26 Erguido 27 Barco da arte xávega (meia-lua) 28 Vontade, gozo

16

sedutores, de um fascínio duradouro que não deixava ninguém as sossegado29

, ao fixá-

los. Que se completavam por uns lábios carnudos, nus, secos pelo vento e pela longa

caminhada feita a pé, mas sempre desafiadores, tentadores para mordiscadelas fugidias

no desamoçar30

de cachopa, erguendo-a à condição de mulher. Só que a Maria jamais

consentira semelhantes interlúdios. Hóme31

que a mordesse teria de engolir o anzol,

embuchado 32

para sempre. Sabia fugir ao rapapé, e pôr em ordem os atrevidos. Ai do

caminé33

capaz de se astrigar34

, e ousasse passar a fronteira da intenção: o canivete bem

afiado com que Maria amanhava as enguias era capaz de pelar o mais atrevido. Pois que

a Maria não era rapariga de dar cúnfia 35

, ou creto, a qualquer mancatrefe 36

lancão37

.

29 Indiferente ; sossegado 30 Espevitar 31 Homem 32 Anzol engolido até ao bucho 33 Infeliz 34 Atrever 35 Confiança ; atenção

17

Aviso mais do que sério, de que o Manuel «Charrua» - um bardáu38

lá do Urjal - já

experimentara, quando astrevido39

, viu os seus ímpetos não correspondidos, asfixiados

pelo canivete que se encostara aos seus «baixios»40

, e que, de repente, aparecera frio,

afiado e decidido, nas mãos da moçoila.

- Que é lá isso ?! Astão crendas41

lá ver que queras 42

ser capado… p’rá

engorda… Hás-de chari-lo43

– advertiu a Maria com cara de que não hesitaria em

cumprir a ameaça, caso o rapaz insistisse no desinquietamento.

36 Magarefe ; biltre;patife 37 Pulha 38 Toleirão 39 Atrevido 40 Partes baixas 41 Então crês;acreditas 42 Queres 43 Estás livre disso

18

Era-lhe pois, habitual, sentir-se olhada. Nada que a impressionasse, nem a que

ligasse grande importância, pois tinha mais que fazer e em quem pensar. A Maria

«Pederneira», tinha a seu cargo a mãe prostrada na cama por uma maleita crescida44

,

desde que o seu hóme45

– o José Camarinha – desaparecera lá para os mares de

Inglaterra, no naufrágio do «Social», deixando-lhe toda a catrefa46

de filhos – a Maria e

mais três rapazes – a seu encargo. Pobre mulher desamparada; e não fora a contribuição

da filha, com o seu admirável espírito de sacrifício e a sua desmesurada abnegação aos

irmãos, o que haveria de ser daquela gente, posta perante infortúnio tão doloroso?

Voltando ao Tóino «Murtoseiro».

Está já dito que a Maria teria (já) notado que a criatura lhe dedicava particular

atenção. Quando chegada à barca da passagem com o canastro atafulhado da sardinha

prateada, o Tóino colocava-se à sua frente, quase a tocando, e com as possantes

44 Desenvolvida 45 Vide 33) 46 Caterva ;grande quantidade

19

mãozorras, retirava-lhe o peso da cabeça, pousando-o no quête 47

da proa. Naqueles

breves instantes de proximidade, o Tóino achegava-se tanto, que a Maria sentiu, por

mais de uma vez, que os seus seios quase roçavam naquele peito afiançado de rapagão

marinheiro. E toda ela, naqueles momentos, sentia a perturbação de uma sudação

interior, misturada com tremeliqueira48

que a percorria dos pés à cabeça. A Zefa

Tarrinca, olhuda 49

e talvez desvalida, já o notara, e até já lho insinuara. E esmorcegava-

se50

toda por não ser ela a eleita daqueles olhares:

- É chópa51

… a nós o Tóino dá uma mãozinha no descarrego, por fastio; a ti,

intèp’réce52

que te quer pegar ao colo… E olha que tu, tão esquisita nessas manobras de

47 Compartimento criado para depositar bacalhau e outros peixes, ou materiais 48 Tremura 49 Interessada 50 Amofinava-se ; aborrecia-se 51 Rapariga 52 Até parece chuva batida por vento forte do sul

20

atracação, p’réces53

não te amofinar com as lambidelas – dizia-lhe maldosa e

desquitada, a Zefa, inquisilando54

com a Maria.

- Catás55

tu p’rài56

a dizer, delambida57

?... Que da Murtosa bom é o vento, mas

mau o casamento – retorque a «Pederneira» com um sorriso ao de labaró58

, onde se

podia ler não querer…mas até querer.

A «TI NORTA»

53 Pareces 54 Pegando ; implicando 55 Que estás tu 56 Para aí 57 Mimada 58 Ao de levezinho

21

Truca… truca… bole que bole… enregelada e encharcada pela surriada59

que a

açoitava, a Maria resolve, como tantas vezes acontecera, bater à porta da «ti Norta da

Bruxa», habitual pousio dos grupos das companhas e viandantes, em cuja varanda60

da

taberna escorropichavam 61

um copo de três62

, último alento para a caminhada até à

vila.

Ela, a simpática «ti Norta», nem era lá, nada disso, de bruxedos. A rapaziada d’

ibalho63

– o Mano, o Sacramento, o Saguncho64

& companhia – é que vinham com as

59 Chuva atirada com o vento 60 Balcão 61 Bebiam até ao fim ; vazavam 62 Copo de três coroas 63 De Ílhavo 64 Alga lagunar , tomada como pseudónimo por João P.Teles com que assinava as muito interessantes

crónicas, e os «postais», da Costa Nova

22

fidalgotas 65

da Costa Nova, e com o intuito de as amolecer e tornar navegáveis66

, lhes

diziam para tomarem da sua jeropiga, que garantiam a pés juntos, tinha bruxedo de

amor67

.

- Era bruxedo era!... Era mas é para as chicharem68

ao colo, as boquilhas·, que

p’reciam69

umas augadas70

- ia pensando a «ti Norta» enquanto enchia os copitos

postos em fila, em cima do tampo. Era mas é p’rás engrominharem71

, assegurava.

Já noite, a barca partira. A «ti Norta» não esperava alma penada saída daquele

iroso72

tempo, pelo que a simpática velhinha fechara a porta da venda.

65 Raparigas da alta sociedade ; burguesas 66 Acessíveis aos jogos de sedução ; mais colaborantes 67 Mezinha, para curar males de sedução 68 Assentarem 69 Pareciam 70 Desejosas 71 Enrolarem com a conversa 72 Irado

23

Que logo se apressou a escancarar, quando sentiu o chamamento da Maria.

Aberta a porta, do escuro, recortou-se a «ti Norta» segurando o candeeiro a petróleo,

que esparralhava73

uma luz mortiça, bruxuleante e enfezada, mas suficiente, contudo,

para se ver na sua cara um sorriso acolhedor. Um andar ainda desembaraçado, embora

aqui e ali uma ou outra tropeçadela com os tamancos ferrados. Cabelos de um branco

intenso, prateado, aparecendo por debaixo de um lenço preto, de ramagens amareladas,

amarrado em volta de um rosto redondo, tisnado pelo sol e pela salsugem, onde

sobressaíam duas maçãs rosadas. Deixando aparecer duas covitas, quando sorria,

prazenteira e bem disposta. Era assim a boa mulher, sempre de serviço, para os

arrastados74

.

73 Espalhava 74 Atrasados

24

- Ah! criatura que inté p’réces - amode75

- vir lá dos infernos ! Entra alma

penada. C’a ta deu76

(?!), p’ra vires com esta trabuzana desarcada. P’réces fugida a

lobisome, c’um raio ! Aviste algum ?

- Cal-se aí, «ti Norta». Astrazei-me77

por mor do meu Miguelito benza-o Deus e

lhe acuda o S. Geraldo que nunca pensei que nosso Senhor me castigasse tanto, pelos

pecados que vou fazendo na vida – t’a renego, mafarrico78

! - disse a Maria enquanto se

benzia três vezes.

- Entra lá cachopa. Tira um púcaro de água quentinha do panelo79

, e vai-ta tomar

um banho. Leva este camisote de dormir e, óspois 80

, vem p’ró borralho prantar-te81

,

75 A modo 76 Que te deu ; que te aconteceu 77 Atrasei-me 78 Repudio-te diabo 79 Panela de ferro, de três pés ; panela da sopa 80 Depois 81 Colocar-te ; sentar-te

25

que tenho lá

26

um «caldo de conduto» com que te aqueço as entranhas, e engano a fome. Vá, maneia-

te 82

que eu estou esgalfa 83

, e vou andando c’uns jaquinzinhos84

de escabeche85

, que

óscreceram 86

d’onte87

.

Tomado o banhito na celha, a Maria atou uma corda ao camisote que lhe

assentava compridote88

, apressada a sentar-se no mocho, perto da lareira, onde uns

cavaquitos ardiam, fagulhosos89

, aquecendo a casinha90

, ao mesmo tempo que distraíam

82 Mexe-te ; apressa-te 83 Cheia de fome 84 Carapaus pequeninos da costa 85 Molho de vinagrete fervido, que servia para conservar o peixe por longos dias 86 Cresceram;sobejaram 87 De ontem 88 Comprido 89 Que faziam faúlhas, quando a lenha (pinheiro) estourava 90 Local do borralho e forno, servindo de cozinha e sala

27

o olhar. Enquanto isso, a «ti Norta» limpava com o sorrascadoiro91

a cinza do borralho,

juntando-a num montinho, para ao outro dia a despejar no quintal, na horta dos alhos.

Retirado da trempe e destapado o panelo de onde fluía um odor que pareceu à

Maria descido das alturas, com a cônchara, a «Velhinha», boa acolhedeira92

, retirou

um atafulhado caldo de sustância 93

. Uns feijões vermelhos serviam de lastro a um naco

de toucinho entremeado94

, escondido no meio de umas couves tronchudas, a que se

juntavam umas rodelas de linguiça95

que conferiam ao caldo, sabor divino.

Finda a vitualha - o caldo bem aviado - que teve o condão de retemperar forças,

a «Norta» retirou do lume uma cafeteira enegrecida onde bolhava um café misturado

com cevada. Que verteu para uma meia, para assim coar o trote, despejando-o em duas

91 Vassoura de limpar o borralho e ou o forno 92 Acolhedora ; que recebia bem ; boa anfitriã 93 Caldo forte, rico em carnes salgadas (chouriço e toucinho) 94 Toucinho com carne em camadas 95 Enchido de carne que esteve em vinha-d’alhos, e depois posta ao fumeiro.

28

malgas de «cavalinho»96

, botando-lhes 97

lá para dentro pedaços de pão de centeio, que

embebidos na mistura líquida, negra, tinham o dom de espevitar o bebericador, criando

disposição para um dedo de conversa, ao caso, entre duas falastroas98

, daquelas de,

morrendes s’a não falendes99

.

96 A louça de cavalinho da V.A., muito divulgada no Séc. XIX tinha como enfeite um cavaleiro montado,

empertigando o cavalo 97 Colocando-lhes; pondo-lhes 98 Falantes 99 Faladeiras inveteradas

29

30

- Atão nobedades100

lá da bila101

? Disqu’102

«Afecta» está outra vez pranhuda103

do Padre Jordão. Raios!... de cadela aciada104

… q’apréce uma simprinhas105

, a beata.

Sempre com o pé a puxar p’rá trízia106

. E o zarampilha107

sacripanta108

, invez109

de

100 Novas 101 Vila 102 Diz que 103 Prenha ; grávida 104 Que anda com cio 105 Simplória ; sem graça 106 Brincadeira ; rapola 107 Desajeitado 108 Miserável ; bandalho 109 Em vez

31

guardar respeito à nossa Senhora, com quem diz «casara», anda é a embarrigar 110

a

eito111

, tudo o que tenha saiote d’alevantar112

.

Por falar em embarrigar ; aqui òstrasado113

, a Rosa «Gueira», contou aqui na

venda que o Balacó esfanicou a cancela114

à Amélia «Cachina», e iu-se115

lá p’ró

sule116

, sem dar òstifação117

, deixando a pobrezinha esculhanvada118

, p’rali119

110 Emprenhar 111 De seguida 112 De alevantar ;de erguer facilmente 113 Há tempos 114 Sentido figurado de virgindade 115 Foi-se ; fugiu 116 Sul 117 Satisfação 118 (Esculhambada). Escangalhada 119 Para ali

32

inxerida120

, a oivir121

as marmurações 122

- sua esta sua aquela123

- à espera de um

esgalhudo124

que a queira naquele estado, fora dos conformes.

- É, pois astão125

…e não foi tómorólha126

nenhuma, «ti Norta». Estava mesmo a

ver-se que tal assucedia. Ele era um taralhão 127

; p’racia128

pião a dar rapóla129

.

- E por cá ? - deu de perguntar a Maria, sabe-se lá porquê. Ou já vai saber-se.

Esperem, que neste mundo tudo tem explicação.

120 Triste ; deprimida ; enrolada sobre si mesma 121 Ouvir 122 Murmúrios 123 Fraca ; mulher pouco séria 124 Cornudo ; chifrudo 125 Pois então 126 Espanto ; nova 127 Estouvado 128 Parecia 129 Movimento desordenado do pião

33

- P’orqui130

nada òsdenovo131

. O Tóino vindo lá do norte, inté p’réce que pensa

ficar. Mas inda 132

não arranjou testo para a panela133

.

- Ora vai daí. «Testos» é o que há mais p’rài134

- diz a Maria parecendo

desinteressada da novidade.

- Pois é …rapariga, e às vezes as que mais desdenham são as que mais querem

comprar - responde a velhota deitando um olhar malicioso e inquiridor ao sorriso bonito

que tinha surgido na carinha laroca135

da Maria - para logo acrescentar :

- Sabas o c’a te digo136

: o rapaz não é mancatufe137

nenhum, e inté p’réce 138

que

teve mãe fidalga. Poucos andam por aí da sua ogalha 139

, oiviste 140

?! Não é

130 Por aqui ; por cá 131 De novo;de novidades 132 Ainda 133 Há sempre uma mulher para casar com homem 134 Para 135 Bonita e fresca

34

despescado141

nenhum ! Bota142

olho p’ràs tainhas a fazer borlido 143

, à tona d’auga,

mas só p’réce que procura peixe lá do fundo, peixe branco, como virgem. E mofa c’uas

chaputas144

. Que não são p’ró seu tempero, como fez à Rosa «Delambida», doidinha

d’astrepar145

por ele acima, como se o rapaz fosse uma enxárcia p’ra todas

assuvirem146

ao mastaréu.

136 Sabes o que te digo 137 Maucatufe ; bandalho; tipo sem carácter 138 Até parece 139 Igualha 140 Tomaste nota ; ouviste 141 Teso ; pobretana 142 Põe 143 A abrir a boca à superfície 144 Tipo de peixe pouco apreciado 145 Subir ; trepar 146 Subirem

35

Os olhos de Maria faiscaram, desprendendo um fulgor de desejo vindo lá do

íntimo do seu ser, como que dizendo : «aqui estou !».

A JOANA «MALUCA»

36

- Mas, cachopa : nem queiras saber. Bai 147

p’raí uma restolhada148

na quinta da

Senhora Joana, «a Maluca». Aquela é que é mulher atrasfegada149

. O senhor Estêvão,

da cidade, tem trazido uns graúdos com ele. Dizem que dos maiores, e a Joana

«Maluca» tem-lhes dado jantaradas de assobio. Uma restomenga150

de encher o

galricho151

. Acabada a janta, é vê-la de charuto na boca. Inté p’réce152

chaminé de

lareira afanicada153

. Bem lastrados, às vezes com uma boa nassada 154

, os fidalgotes -

mais carregados que a chincha 155

do «ti Chambre - abusacam-se156

no pátio a ver o sol

147 Vai 148 Barulho ; banzé 149 Que anda de um lado para o outro ; mexida 150 Gozo 151 Arte fixa de pesca, em funil 152 Vide 54) 153 Fraca ; a apagar-se 154 Piela 155 Bateira da pesca à chincha

37

a esconder-se atrás dos palheiros, lá na outra banda. C’ óspois157

de uma boa carraspana,

inté deve ser, ainda, mais lindo dausservar158

.

Ferram ali cada galhoça159

; mulher dum raio, aquela!...

De barba rija, pois então. Tem mais barba na cara, a Joana, c’a pintelhos 160

tem

o macho do «Biqueirão». E o sr. José Estêvão c’à dias aqui beio antes de embarcar na

carreira, com uns grandes, que dizem, ser letrados esmerados161

, gentes que estão cá de

férias no seu Palheiro, na praia, a banhos - já prometeu estrada p’rá cidade.

- Isso é que vai ser, mulher !..., óspois inté162

podemos ir a pé à Senhora da

Alegria, aquela santa milagreira - remata a «Norta».

156 Sentam-se relaxadamente 157 Vide 81) 158 De observar 159 Fazem uma soneca 160 Cabelos em redor do sexo 161 Que se esmera 162 Depois até

38

Toca que toca… vira para ali… rapa… põe, o tempo ia passando e o candeeiro

esmorecendo por falta de pitrol163

. De repente, soam pesadas pancadas na porta da

casinha.

163 Petróleo

39

40

O TÓINO «LABAREDA»

- Quem será o pelingrino164

a estas horas ?… Crendas165

ver que temos

pedincheiro 166

à porta - foi dizendo a «ti Norta», enquanto pedia «ajuda» à trave da

lareira, estendendo-lhe uma mão, para se erguer. E agarrando no candeeiro dirigiu-se

para a porta que fez uma chinfrineira desbocada 167

a abrir-se, a correr nos gonzos.

164 Peregrino 165 Quereis 166 Pedinte 167 Muito barulhenta

41

A Maria não via, dada a obstrução da porta, quem era o inqu’ètado168

, nem este -

fosse quem fosse - a via a ela. Mas sentiu um estremeção quando lhe reconheceu a voz:

- Boa noite «avó Norta». Vim ver se m’ avia duas coroas de mata-bicho169

, p’rá

viaje ? - disse o arribado170

, sem contudo fazer tenção de entrar, como que indicando

que está com pressas, ansioso de começar viagem.

- É ! Tóino… que t’ assoçadeu171

alma desinq’uètada172

? Então porque não

fizeste poisio do lado de lá, e não foste escorropichar173

uns canecos com os camaradas

da companha, em vez de estares aí tão enxògalhado174

?!

168 Alma inquieta 169 Bebida forte (aguardente) 170 Chegado 171 Sucedeu 172 Inquietada 173 Beber até às últimas gotas 174 Agitado

42

43

44

- O tempo n’u175

me mete medo, «ti Norta», que o vento é menino p’rá minha

mão. Foi uma astrevessia176

dum carago177

- lá isso foi - pá178

metida na borda,

embarcando água até à draga,com a vagalhoça179

atrevida a desfazer-se contra o costado

da barca, misturando-se com a água que caía do céu. Ora isso num me inquetou180

,

c’redite181

. O que me tormenta182

é saber pela Efigénia do Arnal, que a Anunciação se

175 Não 176 Travessia da ria 177 Dificultosa 178 Pá da borda, que evita que a embarcação arrole 179 Vaga pequena e curta, mas intensa 180 Inquietou ; afligiu 181 Dê crédito ; acredite 182 Preocupa ; atormenta

45

atrasou e que, apesar da passada mais lenta das companheiras, ela não s’achegou 183

ao

grupo. Voltei para me pôr ao caminho, não vá a rapariga ter tido mau encontro.

Vossemecê sabe, «avó Norta» - só vossemecê o sabe porque é um cofre de segredos ! -

o que sinto pela cachopa.

A Maria lá dentro corou mais que as brasas que ardiam no lume. E como as

ditas, afogueada por fora e a arder por dentro. Então (?!) aquela atenção do Tóino

quando a ajudava a libertar-se do carrego, não era fingida. Nem ó vida… p’rercia184

;

aquilo era mesmo a sério.

- Deixa lá a inquetação e entra, rapaz. Leva auga185

p’rá celha e veste estas

manais do meu falecido, põe este camisote ós de cima186

. E toca a andar a matar a fome

183 Se aproximou 184 Longe de parecer 185 Água 186 Por cima

46

que deves estar esgalfo187

. Qu’ inda188

sobraram uns feijões e uns nacos de conduto. A

Anunciação não teve um mau encontro, descansa. Ela vai ter é um bom encontro. Anda,

despacha-te, rala-te189

, antes que o caldo arrefeça, não sejas um arrastado190

.

Franqueada a porta, o Tóino dá, estupefacto, com os belos olhos da Maria. Teria

atravessado o mar até aos confins do mundo, em procura daquele olhar doce e meigo,

que agora, notava, tinha brilho mais esquisito, parecendo aceitar a partilha de segredos

íntimos, escondidos, de repente arremessados e expostos, tocados por qualquer força

vinda lá de muito fundo.

- Maria ! Tu aqui …?! E eu que te julgava perdida.

- Eu mesma Tóino, e descansa. Para me perder, só se fosse por uma coisa boa. E

coisa boa não mereço, que a minha vida não é de andar à procura.

187 Cheio de fome 188 Que ainda 189 Apressa-te 190 Atrasado

47

Lesto, não desejando perder mais tempo, o Tóino «Murtoseiro» escapuliu-se,

levando o caneco de água a ferver, para voltar, minutos depois, manaias vestidas e

camisote cingido ao tronco. A Maria não deixou de repousar o olhar sobre tão garbosa

figura. Um estadão de homem, perfeito, pensou. Naquele dia, descobrindo-lhe toda a

harmonia das linhas do seu avantajado tronco, julgava, mesmo, não ser possível existir,

outro qualquer, que ombreasse com ele.

- Ele amercia191

uma boa mulher, n’ádúveda192

! - pensou a Maria.

Sentado ao borralho, o Tóino aceitou a malga e entrou, despachado, no

manjar.

191 Merecia 192 Não há dúvida

48

O NAMORO DO «LABAREDA» COM A «PEDERNEIRA»

Recomposto, escorropichando193

os restos dum copito de três de tinto bairradino - mas

do especial ! - daquele que a «ti Norta» guardava antes de proceder ao sacrossanto

baptismo para melhor renda na venda, o Tóino - especado com a visão da Maria a quem

193 Vide 176)

49

a luz desprendida da lareira tangia194

a bonita face, reflectindo-se no seu olhar - deu

consigo a dizer coisas à Maria de que nunca sonhara ousar. Da sua boca - por natureza

mais afeita a imprecações do que a rodriguinhos195

- borbotaram palavras doces que a

Maria, sôfrega, emborcou196

fascinada, olhos pendentes naquela bela figura de rapagão,

ouvidos atentos ao marulhar daquela voz, de repente virada meiga, de onde soavam

coisas que lhe pareciam serem as mais lindas que ouvira. Incluindo as do pregador Frei

Pachão «dos Jerónimos», em sermonário197

da Pascoela.

A Ti «Norta», saber de experiência vivida, conhecedora dos afectos e desafectos,

julgou chegada a hora de uma retirada estratégica para não emboitar 198

a cena.

194 Tingia 195 Coisas bonitas 196 Bebeu sofregamente 197 Sermão 198 Estragar

50

- Boa noite vos dê Cristo, nosso Senhor, que são horas de uma pobre velha ir

fazer uma reza para se encomendar, a Deus e aos Anjos, antes de cair na enxerga para

dar descanso ao cansado corpo, que já mal pode com os ossos, quanto mais com a alma,

bem pesada do carrego de pecados : - nosso Senhor mos perdoe e me leve, quando tiver

de ser, p’rà sua beira.199

- despediu-se a «Norta».

A Maria e o Tóino ficaram, sós, lado a lado em frente do borralho, conversando,

olhos nos olhos, desbravando caminho para chegar na emposta200

ao ancoradouro201

pretendido. Pareciam muito mais interessados em auscultar-se mutuamente, do que

chegar depressa aos «finalmentes»202

.

199 Para junto de si 200 Demanda de novo pesqueiro 201 Local para largar a âncora 202 Ao assunto importante

51

- Olha Maria ; se me tens afecto e me julgas merecedor, aceita esta perdição por

ti, e vamos ao Prior Bernardo para dar o nó. Não, nó de correr203

, mas um lais 204

p’rá

vida inteira, mulher dos meus olhos.

- Ah Tóino, se aí achegados, eles não t’a faltavam. Credita 205

meu home!...

Q’antas206

de vir a ser, já o és. Mas alembra-te207

que tenho lá os irmãozitos que ainda

precisam de mim. Embora o Beto já ande na chincha do Ti Carrancho. Mas é muita

trouxa208

, p’rá tua barca, home bô209

! E depois dizas210

que querias afectos, mas

203 Nó de laço 204 Nó lais de guia (que não corre) 205 Acredita ; dá crédito 206 Que antes 207 Lembra-te 208 Encargo 209 Homem bom 210 Dizes

52

chegada a maré, eras como os outros malinos211

. Ao fim duns tempos fartavas-te deles e

ias p’ró mar, p’ra longe, deixando-me só, na angústia de não voltares. Ou astão212

,

ap’racia-te 213

uma lambisgóia214

desavergonhada, e tu mudavas de aviamento dos ditos

- dizia a Maria, sagaz, no desejo de provocar uma resposta que a descansasse.

- Cal-te215

! raios. Fecha essa boca que me tenta, que eu não sou dos teus lá

d’íbalho216

, que andam sempre inquietos a olhar lá p’ró longes217

do mar. Eu gosto do

mar, mas do desafio à borda. Não gosto das lonjuras. Não sou home c’òguente218

com as

211 Maus 212 Então 213 Aparecia-te 214 Rapariga insinuante desavergonhada 215 Cala-te (já) 216 Não sou dos da tua terra 217 Fim 218 Homem que suporte

53

saudades, como os da tua Terra. Eu gosto do vento na ria a bater-me na vela, e eu a

trapaçeá-lo219

. Gosto de ser o senhor do meu barco, como quero ser senhor de ti, para

m’atracar a ti como o atraco ao moirão220

, e à noite, dormir sossegado, não aos baldões.

Esses alavantados221

parecem não ter coração nem alma. Só querem ir longe, mais

longe, como se o mundo não tivesse fim. Estipores222

dum raio, altieiros sem ògalho223

.

Valentes lá isso são ! Mas um home lá por não gostar, não é cobarde nenhum.

Oivistas224

, chopa?!… Medo do mar ? Eu!... quinté 225

lhe escupo - remata o Tóino

cuspindo p’ró lado, ao mesmo vagar que entesava226

um esgar de desprezo.

219 Fazer trapaça ; enganá-lo 220 Estaca onde se amarra o barco 221 Inquietos 222 Estupores 223 Sem igual 224 Ouviste 225 Que até 226 Assumia

54

- Ah rico, que me dizes coisas quinté227

me fazem astremecer228

e… enlear229

.

Bota que bota, juras que juras, convence que vences, e o lume quase esfalfado.

Maria levantou-se do mocho para lhe dar uma volta e o atiçar. Fê-lo contudo um pouco

desequilibrada, e ia a cair para cima dos cavaquitos esmorecidos, quando se sentiu

sustida por fortes mãozorras que lhe pegaram, e logo a puseram de pé. No estramboto230

do movimento, o Tóino acabou por a envolver em forte abraço e puxá-la para junto de

si. A outra mão, em concha, pousava sobre o túmido peito da moçoila, quase (?!) que

por acaso, exercendo aconchegado e tolerado aperto. Apenas a felpa do camisote

separava a mão tronchuda231

do Tóino do colo macio da Maria, separação incapaz de

227 Vide 225 228 Estremecer 229 Atrapalhar 230 Confusão 231 Gorda ; troncuda

55

tolher os

56

sentidos, já que daquele peito ressaía ponteira afiada que parecia querer furar a mão do

rapaz, como os cravos fizeram quando pregaram o Cristo na Cruz .

As bocas estavam ali à borda232

, «à mão» uma da outra. E colaram-se, numa

atracação233

que desta feita, por perturbação do arrais, não fora bem calculada, o que fez

com que as amuras234

abalroassem, forte, uma contra a outra. Tempo de respirar, e

oportunidade para o Tóino cravar os olhos no lençol de águas esverdeadas, límpidas até

lá ao fundo, que eram os olhos da Maria, e lhe segredar :

- Quero-te mais que ao vento, quero-te mais que à vida, quero-te mais do

c’amim235

.

232 Juntas ; chegadas 233 Encosto 234 Lateral da embarcação (BB ou EB) 235 Que a mim próprio

57

E não se tolheu, ao tempo236

em que isto dizia, do atrevimento de apertar suave,

mas firme, a ponta aguçada do peito da Maria «Pederneira».

Foi como se o vento desse a volta do cão237

. A «Pederneira» batida no jeito e

sítio certo, faiscara, incendiando o rastilho.

Como se tamanho revirar escancarasse as portas de par em par, para por elas se

escapar a natureza de uma mulher sensual, livre e solta, que endemoninhada voou ao

encontro do incêndio, não para o apagar, mas para o atiçar ainda mais.

A Maria envolveu o Tóino em tão grande abraço, boca com boca, olhos sôfregos

de desejo incendiados, mãos esgueirando-se por entre os grossos cabelos do rapaz,

alourados como pez, em tal sufoco que não lhe deixou espaço para «manobra»

ponderada.

236 Ao mesmo tempo que; enquanto 237 Quando o vento ronda de Norte a Sul, por Leste

58

Lá fora pareceu que a ria se endemoninhou ainda mais, ciumenta da Maria, ao

pressentir que esta lhe roubara o seu arrais. Todos os peixitos nela adormecidos

acordaram, fugindo estremunhados, enxaguando as águas, inquietos ; as tramagueiras,

nas margens, baloiçaram numa coreografia tumultuosa, desenfreada, num bailado onde

escuros fantasmas batiam de encontro uns aos outros. Os caranguejos, atordoados,

tropeçavam no lodo, caminhando às arrecuas, em zig-zags, no pára arranca. Parecia que

S. Bartolomeu tinha chegado com antecedência, trazendo com ele o diabo à solta. Que

se fora postar no travessão do borralho, sentado, de perna traçada, agarrando com numa

das mãos a fisga de ir às enguias, esquecida ali a um canto da casinha, com que parecia

querer espicaçar o casal de namorados. Certo é que, a estes, já nem todos os Santos,

deste e do outro mundo, juntos, os faria voltar para trás na vertigem do enlace.

59

60

E foi ali ao canto da casinha, no bardal238

onde a «Norta» tinha posto uma

braçada de palha e sobre ela uma manta de farrapos, que o Tóino resolveu deitar

fateixa239

e pousar a Maria. A quem, força alguma do mundo se atreveria a retirar dos

seus braços de moçoila pescadeira 240

, o home241

que ia ser seu.

Os corpos fundiram-se num estendal de sofreguidão sufocante para total e

irreprimida entrega. Parecia o «meia-lua» entrando na vaga, ora empinando aos altos,

ora afundando na cava da vaga, numa luta a que reçoeiro242

algum conseguiria botar243

mão. A restolhada244

era tão grande que a «ti Norta» julgando ser a mesma provocada

pelos animais na abegoaria, medrosos da trovoada, veio dar uma espreitadela ; quando

238 Local plano, tipo eira 239 Tipo de ferro de embarcação de quatro (ou mais) unhas 240 Vide 1 241 Vide 33 242 Cabo da arte xávega, que fica em terra e liga ao calão da rede 243 Dar 244 Confusão

61

viu aqueles corpos envolvidos, colados, em azáfama que nem a sua aparição sofreou,

numa entrega voraz de pertença por inteiro, ficou pespegada no umbral, muda e

queda245

. Com um sorriso gaiato num rosto cheio de regadeiras246

, que não eram,

contudo, suficientes, para encobrir adivinhada beleza de outros tempos. Sorrindo com a

lembrança desses tempos em que não tinha deixado o «seu quinhão para o gato», pois o

Zé Bio, seu home, andava-a sempre a desquietar247

, gastando-lho todo.

Mas antes de regressar às palhas, ainda teve tempo para oivir248

:

- Ah Tóino ! : ou foi a minha desgraça, ou a minha felicidade. Escolhe hoje, a

que queres, pois nunca mais terás outra oportunidade de o fazer.

- Inté p’rèces estouvada Maria ; esta semana vamos tratar da papelada e aprontar

tudo para nos recebermos aos pés do altar, da Nª Srª da Saúde .

245 Sem falar e quieta 246 Sulcos na cara 247 Desinquietar ; desafiar 248 Ouvir

62

Estava a «Norta» a dar volta e aconchegar-se no folhelho249

do colchão, ouve-se

a vizinhança, num estendal desgrenhado :

- É «ti Norta», sai tanta fumarada pela chaminé que òspensámos250

que

vossemecê tivesse adormecido, e pegado fogo à palha da loja251

. Vossemecê está bem,

santa mulher ? Há para aí fogo?

- Não gente inquieta, aforçurada252

. O único fogo lá dentro é o do Tóino que

está envolto em «labaredas». Mas não vos amofinais253

, que o Tóino «Labareda» tem

quem lhe apague o fogo. Ide com Deus, à deita.

249 Colchão feito com folha de milho 250 Até pensámos 251 Loja ;venda 252 Que treme por tudo e por nada 253 Inquietais

63

E foi deste episódio que ficou a alcunha de «Labareda», pois que todo o arrais

tem uma alcunha que o distingue dos demais, e esta era bem adequada, tendo-o

acompanhado vida fora. E mais : - restado para a história. Era destes simples e

marcantes episódios que nasciam as alcunhas que baptizavam as diversas personagens

da vila : «Mazôrro», «Tróloró», «Gaivotinha», «Calatró», «Palão», «Tarrinca», «Furôa»

etc. etc.

- «ti Norta» ! : O Tóino quer que eu seja mulher dele ; nós vamos casar, e você

vai ser a madrinha ; e há-de ser a madrinha do nosso primeiro rebento, que vossemecê -

sua bisbilhoteira - viu fazer - estardalhava 254

a Maria, abalançando a boa velhota onde

um pingo de lágrima feliz corria na regadeira da sua face.

- Pois atão255

?! Com todo a chinca256

, rapariga.

254 Fazia estardalhaço ; falava com alegria em alta voz 255 Então 256 Honra ;toda a satisfação

64

OS FRALDOCOS

Ora na semana seguinte, enquanto os papéis não chegavam para os entregar ao

frei Pachão, prior na capelinha da Costa Nova, num belo dia, quando a barca ao fim da

venda trazia as pescadeiras257

para regresso à vila, o Tóino notou uma tristeza na Maria,

e até descobriu umas furtivas lágrimas que enevoavam o seu lindo olhar. E dá de

perguntar :

- Maria !, c’a tens tu, cachopa, que na te vejo rir ? O que te padece ?

Iam já em direcção à Maluca, andados que estavam uns bons cem metros.

- Nada Tóino, nada home, deixa lá… num te apoquentes que não é nada.

257 Vide 1)

65

Mas a Zefa «Tarrinca», companheira da Maria, não escondeu a razão da tristeza

da Maria, e dá de opinar :

- Olhe Vossemecê !, ela está assim porque o Manuel «Charrua», aquele

desavergonhado, aperguntou258

se ela não queria experimentar o fogo dele, que tem mais

labareda que o do Ti «Tóino». Mancatufe ! Pilado seco !

- Quê ?! - grita o Tóino «Labareda», pondo mão ao xarolo, puxando-o todo de

bombordo, obrigando a barca a uma viradela em cima do eixo259

. E assim dando a volta,

caçou a escota fortemente. A barca pareceu querer saltar e chegar mais depressa ao

ponto de partida.

- Esse porco vai ver. Coso-lhe as tripas e dou-as a comer à canzoada c’anda p’raí

esgalfa 260

.

258 Perguntou 259 Virar sobre si mesma ; volta apertada 260 Cheia de fome

66

E numa orça felina, apertada, para ganhar tempo, mal a barca encosta ao

moirões261

(desta feita um pouco mais bruscamente do que o habitual), lépido, o

«Labareda» salta para o trapiche enquanto grita :

- Passem aí uma laçada ao moirão262

, que eu vou ali e já venho.

- Ah hóme 263

da minha alma, não me aflijas. Pode ser a tua desgraça e a minha -

implora Maria que faz tenção de agarrar o Tóino .

Mas este não deu hipótese, e a correr entrou como um furacão pela taberna da Ti

«Moura», adentro, fechando de um sopetão264

a porta, dando-lhe uma volta à chave,

guardando-a no bolso. A passo mais repousado foi encostar-se à varanda265

da tasca e

pediu um copo de três. A «ti Moura» vendo o alvoroço que lhe ia na cara, interpelou-o:

261 Estacas onde se amarram as embarcações 262 Vide 264 263 Vide 33 264 Num gesto brusco, rápido 265 Vide 62

67

- Que foi isso «Labareda» ? O que te fez voltar para trás ? Vens com cara de

poucos amigos…

- Olhe «ti Moura» : andam p’ra aí uns fraldôcos266

a fazerem de homens, a olhar,

gulosos, p’ra aquilo que tem dono. Ora eu quero certificar-me o que valem os valentões.

Traga-me aí um alguidar para apanhar as tripas destes badólas267

moinantes268

. Maneie-

se 269

… que deixei o «animal» mal amarrado.

A um canto, numa mesa, em frente de três copos meio «entornados», estava o

«Charrua», acompanhado pelo Xico da «Engrásia», mai-lo Pinto «Canastrão».

266 Gente que não vale nada ; que ainda usam fraldas 267 Lorpas 268 Malandros 269 Mexa-se

68

Deveriam estar a falar dos dixotes270

, pois logo que viram o Tóino com cara furibunda,

calaram-se, e abotoaram no semblante a mais séria preocupação.

- Vá!... disse o Tóino, ao Xico e ao Pinto ; lá p’ra fora. E já!... Se não querem

que vos cape, também .

E sugigando-os 271

pelo camisete arrancou-os do chão, levando-os suspensos nas

mãozorras. E enquanto a «Moura» abria a porta, o Tóino atirou borda fora os

franganotes que foram mergulhar no areal em frente da tasca, para espanto dos

passantes. Voltando atrás, o Tóino agarrou na mesa avantajada, erguendo-a acima da

cabeça, lançando-a sobre o «Charrua» que ficou atrunchado272

contra a parede,

atordoado. O Tóino agarrou-o pelos gorgomilhos 273

arrastando-o para a porta :

270 Ditos maldosos 271 Agarrando-os ; subjugando-os 272 Apertado ; Entalado 273 Garganta

69

- Já que te andas a armar em olhudo, vou-te pôr como a tua mãe te trouxe ao

mundo, para todos verem o pilado tísico que és. E se tu, ou outro, voltarem a poisar os

olhos na minha Maria, faço-vos para morcelas.

E num repente puxou do navalhão e, num golpe fulminante e certeiro, cortou os

atilhos dos calções do «Charrua», que lhe caíram pernas abaixo, deixando à mostra as

suas partes íntimas, de facto, pouco invejáveis. Viu-se!

- Vá !...- diz-lhe o «Labareda», vai à tenda da Henriqueta «Pardala» e traz-me

um copo de três, se não queres que eu te amanhe.

O Manel, a tremer, lá foi naquela triste figura para gáudio de graúdos e

chocarrice dos miúdos, que gritavam atrás : - Olha o «Pilado triste».

Alcunha de que o «Charrua» nunca mais se libertou. E que o obrigou a pôr os

pés, areia fora, na procura de paragens onde a novidade se não soubesse. Mas a mesma

correu na proa das enviadas com o vento, e o «Pilado triste» só parou, onde Portugal

findava. Em Olhão, nas artes do atum.

70 Encerrada a

71

questão, o Tóino voltou à barca da passage274

, agora crismada de Srª da Anunciação, e

metendo a proa à Maluca, ali chegou num ápice, que o vento era frescóte275

.

A lição iria servir para que todo o mundo das companhas olhasse para a Maria

com um respeito que levava alguns, mais medrosos, até - e à cautela - a baixarem os

olhos, só para os não cruzarem com os da Anunciação «Labareda».

274 Vide 19) 275 Fresco mas não muito

72

73

A BARCA DA “PASSAGE”

A barca da passage276

era o único meio de acesso àquele areal na beira-mar

desde os primeiros tempos em que as xávegas vindas da Costa Velha, em S. Jacinto,

aportaram à Costa Nova, ali na primeira década de oitocentos. Local para onde se

tinham vindo postar as companhas da pesca, atraindo, diariamente, os muitos

pescadores empregues nas mesmas, mais o mulherio que ajudava no desembaraço e na

276 Vide 19

74

escolha do peixe, bem como os mercantéis277

e os muitos almocreves que pela noitinha,

burricos carregados, se embrenhavam por esses caminhos perdidos da serra, ladeando

vales e barrancos, para ao outro dia, logo de manhã, não faltarem com a venda da

prateada sardinha, lá para as Beiras interiores e Bairrada.

No início, ainda as companhas usaram enviadas para facilitar o transporte ao seu

pessoal. Mas a confusão gerada, cedo indicou que o bom sentido era o da privatização

(?!) daquele meio de transporte, deixando-o nas mãos de barqueiro, que dono da sua

própria embarcação, estava sempre disponível para fazer várias vezes ao dia - e até de

noite - o transporte, de pessoal e material.

A largada da barca, sem hora marcada, rigorosa, era anunciada por um toque

singular, roufenho, de um búzio que se ouvia - nesses tempos isentos de outros

arruídos278

incómodos - a um bom quarto de légua de distância.

277 Negociantes de peixe 278 Barulhos

75

Antes de largar dos moirões279

, o arrais dava uma olhadela lá para o fundo do

caminho a ver se divisava alguma alma atrasada. E quando tal sucedia, se a distância a

percorrer não demorasse mais do que escassos cinco minutos - pelo cálculo do arrais,

entendido nesse assunto! - adiava-se a partida. Certo é que tal adiamento gerava, de

imediato, uma zanguizarra280

dos diabos, com os passantes já embarcados, escalabrados

pela demora:

- Eh «ti Norte». Astão281

vossomecê quer-nos fazer perder a maré?!... estipôr…

Por causa duma marafona atrasada, que esteve, foi, entre pernas mais tempo

còdebido282

, e agora nos faz esperar ?! Largue mas é… homem dum raio! Largue que

temos freima 283

de chegar à outrabanda284

.

279 Vide 264 280 Barulheira; algazarra 281 Vide 215 282 Do que o devido 283 Consumição 284 Outro lado

76

-Calende-vos285

ou ides a nado, que ides mais depressa - respondia o arrais, em

voz rouquenha de labrego, moído de tanta algarviada.

Chegada a Rosinha Escudeira, a conversa mudava de tom e forma, era

imediatamente outra. Aquela gente era muito sabida, e então no fingimento, umas

doitoras:286

-Ah Rosinha, q’uim fim q’ue sempre achegastas287

filha ! Se não fôssamos288

nós, o raio do «Labareda» não esp’rava289

por ti. Raios do home, c’anda sempre com o

fogo entre pernas. E não há quem lho acalme.

285 Calem-se 286 Doutoras 287 Até que enfim que chegaste 288 Fossemos 289 Esperava

77

- Credo!...fosse eu nova e, cachopas (!), o pavio do Tóino derreava - faiscava a

Alzira «Saltoa», mulheraça já cansada dos anos, lá dos Sete Carris, só para adiantar

conversa para a galhofa.

O «Labareda» ria-se com tal desfaçatez. Ele sabia que era tudo gente boa.

Aquilo era tudo facécias. Pois numa astrapalhação290

, num momento mais doloroso,

eram bem capazes de despir a roupa, para com ela agasalharem uma delas. Gente de

acudir, solidária e amiga, mas gente simultaneamente brincalhona, ladina, tarrinca,

naqueles momentos de descontracção em grupo.

Ordem de largar.

O ajudante à proa enterrava a vara no ombro para aproar a barca a oeste. O arrais

deixava-a descair um pouco, para logo dar ordem de meter a pá da borda. Leme a meio,

caçava a escota retesando a vela com a dupla laçada na draga, fixando a mareação numa

290 Atrapalhação ; num momento difícil

78

proa apontada ao trapiche291

da outra banda, ali ao lado do Salão do Arrais que, se o

noroeste ajudava, poderia ser alcançado em dois bordos.

Já por diversas vezes, o «Labareda» chamara a atenção, ao regedor de que a

mota devia ser deslocada para sul, aí uns cem passos, pois, se assim fosse, num só

bordo, fazia-se a travessia. Se o vento era frescote - e quase sempre o era, bufando lá do

noroeste - cinco a dez minutos eram mais que suficientes para laçar moirão na Costa

Nova.

Durante a travessia era uma algazarra ; a miudagem corria a sentar-se no bico da

proa, sonhando com o dia em que se sentasse ao leme, a retesar a escota, e rumar,

ponteiro, ao outro lado.

Os almocreves que tinham deixado os burricos a descansarem na estrebaria da

«ti Norta», a recomporem-se da jorna, com palha fresca - pois que para cá tinham vindo

carregados de azeite lá das serranias, o melhor ! - deitavam contas à vida na tentativa de

ler o tempo. Imaginando como seria a noite, em que serra acima, ladeando a ravina,

291 Cais de madeira para atracação das embarcações

79

atravessando o riacho, metendo à desbanda por um atalho conhecido… toque…

toque…, lá iam por entre pinheirais a zangalhar, assanhados com a ventania da noite a

facilitar que por ali surgisse algum marmanjo da rapina, percorrendo ligeiros os

caminhos lá para o interior, para que as gentes lá de longe, pudessem ter acesso ao peixe

da borda do mar. Por isso, e porque amanhecido o sol era tempo de entregar o carrego lá

para as bandas de Viseu, havia que dar ao pé. Burro e pimpão almocreve.

Por vezes aparecia para atravessar, na barca, o João «Ruço», exímio tocador da

concertina que fazia as delícias dos embarcadiços ; encostado à barra da escota, atirava-

se ao «vira que vira», esbofando a sanfona, enquanto com dedos ágeis percorria os

botões das notas. E logo duas pescadeiras saltavam lestas para o centro, saltitando e

rodopiando, pés descalços «sapateando» nos paneiros, enquanto a voz fina, mas

timbrada e maviosa da Joaninha «Cantadeira», se fazia ouvir :

Lá bem na viração

Meninas bamos ao bira,

Que lá no bira ‘tá tudo.

Ó real das canas !

80

Que lá no bira ‘tá tudo.

E a água do Bota Fora

É a cum’ò binho maduro

Enquanto isso, as cachopas, num falazar grazina, aproveitando o ripanço

daqueles breves momentos, lá iam em conversa onzeneira :

- Astão Rosinha? foste a última a vir lá da vila, deves saber novidades. Conta-

nos lá, chopa !...

- Novas, só que entrou na barra o iate do Ti Cachina, vindo lá da estranja. A

Ana «Fradoca» foi esperar o homem, o Armando Ramízio. Logo à noite, lá p’ró Arnal

vai ser uma zanguizarra dos diabos. Sete meses de fastio, gentes !..., nem as pulgas

incomodam. Chegada a hora, vai ser tempo de medrar menino. Idas ver 292

- ia dizendo

a Rosinha.

292 Ireis ver

81

- E olha c’os tempos não estão nada p’ra isso, rapariga. Só vejo fidalgotas a

cheirar o frescal, e a desdenharem. Que não presta - dizem ! O que essas delambidas

querem é «dado». Mas enganam-se. Que cá a Zefa, dado, só ó meu home. E num é

sempre ! C’às vezes lá lhe caço umas felpas, a troco do festim. Que não é para o gabar -

q’inté é p’rigoso293

com tanta serigaita a q’rer pastar - mas cá o meu Zé é danado p’rá

brincadeira.

- Ah!... Zefa, c’alte294

… Tu sabes q’ué bom, porque nunca comeste doutra

malga. Amorna-te aí… raios ! Tem relego295

nessa língua e não nos desinquetes296

, com

essas toleimas.

Outra figura que era habitual, de tempos a tempos, aparecer a tomar o seu lugar

na passagem, era o «amolador». Carrinho de roda com os apetrechos para colocar a

293 Que até é perigoso 294 Cala-te 295 Comedimento 296 Desinquietes

82

gataria297

nos barros esfanicados, ou esmeril aconchegado, pronto para afiar os

navalhões da trupe das campanhas, ferramental indispensável ao exercício diário

daquelas gentes, precisando do gume bem afiado, capaz de cortar papel em tiras de

enfeitar. O ti Francisco da «Gaita», assim chamado por anunciar a sua presença, de

porta em porta, por uma gaita de beiços, com sonoridade distinta e singular, o aviso para

se ajuntar todo o material a necessitar de reparo, à porta dos palheiros, onde exercia o

seu mister.

- Oh «ti Gaita» - dizia maldosa a Berta «Lamaroa» - vossemecê não é capaz de

me pôr três gatos numa racha, p’ra a aviar como nova ?

- Asponho 298

, pois então. Cuida-te, ósdepois299

, porque os gatos miam de noite,

se incomodados, e gostam de tripa miúda - respondia sisudo o «Gaita», homem de

297 Agrafos usados para juntar peças de barro 298 Ponho 299 Depois

83

pouca conversa fiada. Que fiado só os muitos calotes por trabalhos feitos àquela gente, a

aguardar paga, à espera de melhor maré.

Tempo de chegar. O arrais media a distância, e, chegado o momento, orçava,

apontando a proa ao vento. Folgada a escota, recolhida a pá da borda para cima do

traste300

, o vento e a corrente levavam a borda da embarcação a beijar, suave, o

trapiche301

a que acostavam, para descarrego das gentes.

Era um desaforo. Uma restolhada dos demónios. Todas queriam ser a primeira a

colocar o pé descalço no tabuado da mota, lestas para chegarem à escolha e venda do

peixe. Se o não havia fresco, porque o mar não tinha permitido lanço ao meia-lua,

carregava-se do escorchado302

, que à falta de melhor, também tinha clientela.

À volta, no regresso, ao fim da jorna, era um queixumar303

de arrenega.

300 Travessão onde passa o mastro 301 Cais de madeira para atracação de barcos 302 Peixe salgado em dornas depois de estripado 303 Fazer queixa

84

- Danado do mar ! Aquele cão anda mais «seco» que trimbaldes de porco

capado; o peixe branco está pela hora de morte, não se lha304

pode achegar. Mais caro

c’ós pozinhos de Maio milagreiros, da botica do «ti Cunha» - queixava-se a Ana

«Espadela» maneando a cabeça num esgar de nojo, ascupindo305

para a borda..

Mal, acomparado,306

- que comparações só se podem fazer com os santos - era

assim :

À ida :

- Maria, para onde vais tão pimpona ?!

- Para a «festa!!!»

À vinda :

- Maria ? : - de onde vens, cachopa triste?

- Da… «festa…»

304 Lhe 305 Cuspindo 306 Comparado

85

86

A MURTOSEIRA

Ora, numa maré favorável, o Tóino levou a Maria à Murtosa, para mostrar a sua

prometida à Mãe, que lá ficara a fazer umas leiras. A Anunciação aperaltara-se. Chinelo

no pé, agasalhado por meia branca rendada, avental florido debruado sobre saia de

serguilha (fraldilha) de roda grande, blusa garrida de cabeção, sobre o qual amarrava

bonito lenço azul, de barras amarelas. Não lhe faltavam as arrecadas e dois cordões que

pedira emprestados a Amélia «Cachina», sempre disponível para um empréstimo, como

era hábito nestas gentes da borda. Um capote azul fazendo contraste intenso com o

verde dos seus olhos amendoados, protegeu-a do vento durante a viagem, vindo lá do

norte. Uma relíquia de mulher, um pedação de lindeza, que o Tóino, cheio de chança307

,

307 Importância

87

mostrou às suas gentes, que, sabedoras da beleza ímpar da mulher d’Ílhavo, não sabiam,

contudo, pudesse ser tanta.

A «Murtoseira» abençoou-os e na hora de partida lá foi ao arcaz308

onde

guardava as roupas de domingo, e, bem lá do fundo, de um lenço tabaqueiro com as

quatro pontas atadas em nó cego, retirou umas moedas de prata, entregando-as ao filho,

enquanto dizia :

- Tomai meus filhos ; que Deus vos ajude e me dê muitos netinhos. Levem estas

minhas enconomias309

e comprai uma leirita, onde possais construir o vosso ninho. É

pouco, mas é tudo o que eu e o falecido Pai do Tóino tínhamos ajuntado, para comprar

uma barca nova para andar no moliço. O danado do malezinho de peito levou-o, e eu

agora, velhinha, já não preciso da prata p’ranada310

. Tinha-o guardado p’ró Tóino, mas

308 Baú 309 Economias ; pé-de-meia 310 Para nada

88

só lho dava se ele arranjasse cachopa capaz para a vida. E vejo que o rapaz teve olho.

Sai ao pai… num é p’ra me gabar!

Regressados, contado o arrecadado à Ti «Norta», foi pedida, a esta, que

intercedesse junto da Srª Joana «Maluca» a ver se ela lhes vendia um quinhão, lá mais

p’ra baixo no caminho d’Ílhavo.

Ora a Joana «Maluca» tinha a sua origem em Espinheiro, conhecendo bem a

família da «Pederneira». E folgou com a união ao Tóino, rapaz desembaraçado que lhe

acarretava, lá do Norte, moliço para as suas terras, antes de ir para a passage311

. Não só

cedeu a leira como uma madeirita para construírem um palheiro aconchegado. A Maria

rejubilou, e, de pronto, trouxe com ela os irmãos e a mãe, que se agasalharam nos três

compartimentos do palheiro, num ápice construído.

E a vida da família «Labareda», assentou, assim, nestas paragens, em local a

nascente da Laguna.

311 Vide 19 )

89

O «Labareda» depressa foi convidado para a Companha do Arrais «Parracho»,

onde começou como reçoeiro312

. Não foi preciso muito tempo para substituir, nas faltas,

o arrais. Mais tarde, e para estar mais próximo da Maria, o «Labareda» comprou a sua

barca, na qual se tornou o mais afamado homem a vogar sobre o Canal.

312 Pescador que na ré do xávega vai largando o reçoeiro

90

OS PAINÉIS

E curioso ; a sua barca foi a primeira que deixou de ser preta, cor de breu, como

era usual, serem-no as barcas dos «ílhavos».

Inspirados no que lá para o norte era costume, na lavra, aquelas gentes da borda

d’água, lá da Murtosa, algumas vindas lá do Minho atraídas pelas boas condições destes

terrenos da borda da laguna, para a produção de milho, pintavam garridamente os

painéis, da proa e popa, dos moliceiros, com que iam ao moliço para fertilizar as suas

terras. Tal como o faziam nos cabeções entalhados, que uniam a parelha de bois, em que

faziam uso de uma paleta de cores peculiares na feitura de desenhos naifs, cheios de

sugestões atrevidas, realçados com dizeres espirituosos e ao mesmo tempo

provocatórios, apondo-os em rodapé.

91

Na primeira metade do Séc. XIX, a ria viu-se povoada de moliceiros, de cor de

mel, do pez louro, decorados a preceito, no bico da proa e da ré. E até no interior,

especialmente no painel que dava acesso à proa - e no cagarete313

- por pinturas que

eram cobiça dos olhares dos mirones, quando, nas festas ribeirinhas, no S. Paio ou na

Srª da Saúde, com propósito, se mostravam em despique. Apenas aqui para as Gafanhas

se continuou a usar o barco pintado todo de negro, viúva. Por isso foi apodado de

«matola314

».

O Tóino, na sua barca mercantel315

, fê-lo mais discretamente, sem a exuberância

usada, habitualmente nos moliceiros. Uma pequena Cruz de Cristo, branca, sobre o «Srª

da Anunciação - Balei-me», apostada num azul que quebrava a monotonia do negro do

313 Zona onde se senta o arrais 314 Matolas ; assim se designavam os bairradinos que após as vindimas, em Outubro, vinham para a praia 315 Tipo de embarcação para transporte de mercadorias especialmente Sal, peixe, torrão para marinhas,

caulino, adobes, etc.

92

casco. Na bica de proa lá aparecia o ramo florido, por norma oferecido ao arrais, por

uma ou outra galante e simpática pescadeira.

No tempo delas, um ramo de bichaninhas316

, uma cachoeira de redondinhas

flores de um amarelo muito vivo, enfeitava a proa da embarcação.

E porque um murtoseiro nunca esquece o amanho da terra, nos intervalos da

passage, o «Labareda» atirou-se ao amanho de umas leiras, indiferente ao esboroar da

terra arenosa. Que bem aviadas de escasso317

, acartado pela Maria com o restolho vindo

das companhas, depressa botou produção que chegava para sustento das bocas da

família (num ápice aumentada com o nascimento de quatro Labaredazinhos).

Era um trabalho penoso, mas que prometia.

Lá para os fins das tardes, quando o Sol era mais clemente e não esturricava com

tanta intensidade os costados do murtoseiro, era vê-lo no intervalo das viages318

, com o

316 Vide 4 . 317 Restos de cabeça e tripas do peixe junto com caranguejo pilado 318 Passagens

93

enxadão cavar fundo no solo arenoso, revolvendo-o até lhe suster a forma do rêgo, para

onde atirava o escaço misturado com a terra alevantada, e por onde «escondia» as

sementes, que germinadas, haveriam de transformar aqueles areais inóspito, em terra de

pão. Ao princípio o milho não medrava e nem uma raquítica bandeirola exibia ; sempre

era uma palhita para a bezerrita, criada no estábulo improvisado. Mas o Tóino voltava,

uma…, duas…, quantas vezes as necessárias, a afundar, a revolver as entranhas e a

encharcar a terra de húmus, a surribá-la, com vontade e paciência, obstinado - como

tantos outros a seu lado - até que o verde intenso dos milheirais transformou aquelas

envergonhadas dunas, em prado de regalar a vista. Por entre eles iam surgindo as casitas

de telha (de canudo) avermelhada, transformadas em colmeias coalhadas de gentes

decididas a ficar, e a fazer uma terra e um povo. Os foreiros vindos lá das Gândaras, que

em fins do Séc. XVII, ali chegaram, juntamente com outras gentes da borda-d’água,

para arrotear as dunas, vieram fazer as Galefenhas319

. Foi um trabalho porfiado, pago

com o suor da sua fronte e a força dos seus braços, numa exemplar humanização do

319 Gafanhas (ver Ílhavo - Ensaio Monográfico pp.214)

94

escalavro inicial da paisagem, ajudados por muitos que da borda d’água se achegaram

para participar nesse trabalho épico de mudança da paisagem geográfica, tornando-a

acolhedora.

A Maria não faltava com o seu contributo, neste trabalho de arrancar da terra

sustento para a família. Mal pousava a canastra da venda, aviados os seus, acorria a

acarretar uns baldes de água, ou de sachola na mão, empenhava-se em mondar as

plantas bravias, para que não roubassem o alimento às que haveriam de produzir

sustento.

95

96

AO LEME COM O «LABAREDA»

- Eh arrais ; vossomecê não me leva e me ensina a lemar320

, na sua barca ?

- E tu para que o queres saber, rapazelho ; p’rèces321

afidalgado, não queres vir

p’ra moço, pois astão ?!

E foi assim que começou a lenga-lenga. Eu apostado a aprender a manobra. O

arrais «Labareda», desconfiado comigo, ou da minha validade para aprender, negócio

tão difícil, o da mareação. Ind’òmenos 322

se me conhecesse…

320 Fazer leme 321 Vide 55 322 Ainda ao menos

97

- Astão 323

quem és lá tu? - pergunta-me…

- Olhe sou da Ti Eduardinha da botica ; sou dos Roncas, lá do Curtido, e dos

Arrombas, lá do Cimo da Vila, respondi.

E acertei na mouche.

- Dos Ronca, do arrais ?! - pergunta o «Labareda», logo acrescentando - um dos

mais famosos e valentes arrais do nosso mar, aquele que dizia : - Um barco é todo feito

de tábuas ; as tábuas não vão ao fundo : abóiam ! Logo um barco nunca vai ao fundo,

seus medricas ! Oh rapaz tu és mesmo da famelga desse peitudo ? E dos «Arrombas»,

desses desboqueiros324

incorrigíveis ?! Sabes o que é que estes respondiam, quando os

companheiros diziam que o mar estava danado? : - Caguem-lhe…

Os «parentes» «Ronca e Arromba» - Deus os tenha em boa memória, que bem

me moldaram o jeito, forma e o carácter - abriram-me as portas do «Labareda», que

logo deu de si.

323 Vide 215 324 Que não controlam a «boca», a palavra

98

99

- Vá,

100

despacha-te, salta lá, não quero que fiques aí especado a remorder, a arrombar-me325

.

- Vá, senta-te aqui no cagarete326

, e abota-me327

as mãos a este cordame - ao

tempo em que me indicava as driças do charolo. .

E a lição começou : eu ao leme, e o arrais na borda, pronto a corrigir a

azelhice328

.

- Aponta à «bruxa» : folga vela que o vento está mareiro329

. Isso!... assim…

Quando sentires pouca força na escota, acaça-a330

um pouco.

E lá arrancámos. Eu, impante de orgulho. O arrais, desconfiado.

- Olha : ao largo folga-se o calcador331

e o bolinão 332

, p’rá vela encher melhor.

A vela é como a sardinha ; só é boa quando bem cheiinha.

325 A dizer mal 326 Onde se senta o arrais, ao leme 327 Põe 328 Que não faz nada direito 329 Sopra do Oeste, da banda do mar 330 Puxa-a

101

E há oitros trucas333

; mas isso é para professor não é para pixotes334

. A

valuma335

quer-se solta e a esteira336

folgada p’ra fazer saco. Já com bolina devem-se

tender, apertar, p’ra fazer da vela, uma lâmina.

E, continua o arrais, bom mestre :

- Olha! vou meter a pá à borda, mas só um chinquilho337

p’ra não se arrolar.

Quer-se a descair um pouco para trás e pouco aguada, p’ra não travar o barco.

Entendas?!338

, moço ? Aguenta aí o leme ó direito339

. Não lhe metas a porta que

331 Estralho que puxa a vela pela testa, esticando-a 332 Cabo que puxa a vela pelo cimo da testa , exercendo acção sobre o envergue 333 Outros truques 334 Fraquitos 335 Lado posterior da vela. 336 Parte inferior da Vela 337 Um bocadinho ; pouco 338 Percebes 339 Na direcção a

102

astrava340

o correr da embarcação. Isso!..., deixa-a correr solta e leve. Aí vai ela ó de

laró341

.

Já tínhamos passado o desertas342

, quando o arrais me faz notar :

- Olha lá tu! que vais ao leme : tens na proa um saltadouro343

. Orça344

, p’ra lhe

passares por barlavento345

diz o arrais.

- É mestre o que é lá isso, de barlavento ? - inquiri eu, que nunca tinha ouvido tal

palavrão.

- Astão346

tu queres ser arrais e não sabes que barlavento é pelo lado que ele

assopra. A outra amura, é Sotavento - remata professoral o arrais.

340 Trava 341 A deslizar leve 342 O canal feito para passar o «Desertas» 343 Rede colocada em caracol para as tainhas 344 Vira ao vento 345 Amura de onde sopra o vento 346 Vide

103

E estávamos quase chegados, eis que estremeço com o «ronco» do Ti

«Labareda» :

- Ó!.. zarro347

! : onde é que vais, que perdeste o rumo, astipôr348

. Deixa a

rapariga em paz, que não é p’ró teu pé, fioco349

.

E era verdade. Eu bem ia de rumo fixo ; mas os meus olhos deram de bater numa

raparigota, sentada a sotavento, e logo fiquei babado de perder o norte. A moçoila era

linda de morrer. Cabelo puxado e apanhado, atrás, que fazia surgir, caídos sobre a testa

alta e desafogada, uns caracóis doirados pelo sol e peito bujarrão a espigar na camiseta

aberta que deixava divisar um colo de garça, gracioso e tentador. Mas, suprema fixação

de endemoninhar : uns olhos verdes, marotos e bailarinos, ternurentos, encalhados numa

face onde duas covitas surgiam no sorriso maroto de quem se sente olhada, e

requestada.

347 Fraco 348 Estupor; danado 349 Que não presta

104

- Desculpe lá mestre Tóino ; eu já voltei… Já aqui vou… respondi atrapalhado, a

lembrar-me da história do «Charrua», que me fora contada.

- Ah voltaste… voltaste. Senão fazia-te eu voltar com duas lambadas. Que a

Amélia «Labareda» não é prós teus beiços de bácoro bem criado - avisou o arrais, meio

a sério meio a brincar, descansando-me do meu atrevimento.

- Eh arrais ; guarde-a que coisa como ela, bem merece uma redoma. Mas a ti

Maria não tinha cabelo negro de azeviche? Não me diga que (?!)… atirei eu,…

desafiador

- Q’ué lá isso pindérico, galicóte350

miúdo. N’a sabes q’eu sou descendente lá

dos «armandos», ou é lá isso…

- Dos normandos, quer vossemecê dizer. Gente loura… Ah! entendo agora,

porque vossemecê é único - corrigi eu o Ti Tóino, que se sorriu face ao meu

entendimento de tal ascendência daqueles povos lá do norte.

350 Gálico

105

- Atenção rapaz!... quando estiveres a uma barca do trapiche, orça… orça já,

ladrão!... que me astiporas351

o barco.

Até gelei. O «Labareda», salta, engolfa o punho na driça de bombordo,

enquanto com a outra liberta a escota. A barca trava como se anjo lhe deitasse mão, mas

não a tempo de evitar uma batidela forte no trapiche.

Desta vez, por culpa minha, não tinha sido exactamente uma atracação à

«Labareda».

351 Rebentas

106

AMÉLIA DOS OLHOS DOCES

Com o estremeção, acordo estremunhado :

Zangalho a cabeça e pouso-a, cansado mas feliz, na almofada.

E dou por mim, esfalfado de tanto viver sonhado…

O filme acabara.

«Labaredas», Marias, «Nortas» e «Zefas», faladeiras, pareciam ainda brincar,

saltitando aos pés da minha cama.

Que emposta esta, navegada com a minha gente que me baila continuadamente

no espírito, que me aconchega, me embala e adormece.

Figuras reais, umas ; inventadas no sonho, outras.

E tu Amélia dos olhos doces, onde paras ?

Terás sido sonho, ou exististes mesmo de verdade ?

107

Inventei-te, ou vi-te noutro dia, Amélia Maria ?Ou,

Fugiste pr’a longe c’os ventos

Só ficou a calmaria

Mas olha que o meu coração

Ainda, bate por Ti, Maria…

A ATRACAÇÃO À «LABAREDA»

As atracações à«LABAREDA», que todos pretenderam - mesmo depois da sua

morte - imitar, ficaram na história da Laguna. Ninguém as conseguiu igualar. Tornaram-

se lenda na história da Costa Nova no dealbar do Séc. XX, e ainda hoje perdura na

108

rapaziada, o hábito de gabar uma ousada manobra de embarcação, pronunciando : essa

foi «à Labareda».

Tentei-as diversas vezes. Muitas vezes o costado do barco foi quem pagou o

meu atrevimento. Mas falhada uma, logo repetia outra :

- Eh «Labareda»… o que um homem sofre p’ra ser ogalho352

a Ti.

Senos da Fonseca

Setembro 2007

352 Igual

109

110

INDICE :

POR FAVOR :SENTEM-SE... E OUÇAM

O «LABAREDA»

A TI «NORTA»

A JOANA «MALUCA»

O TÓINO «LABAREDA»

O NAMORO DO «LABAREDA» COM A «PEDERNEIRA»

OS FRALDOCOS

A BARCA DA «PASSAGE»

A MURTOSEIRA

OS PAINÉIS

AO LEME COM O «LABAREDA»

AMÉLIA DOS OLHOS DOCES

A ATRACAÇÃO À «LABAREDA»

111

OUTROS TITULOS DO AUTOR:

NAS ROTAS DOS BACALHAUS

ÍLHAVO ENSAIO MONOGRAFICO SÈC.X-SÈC XX

ALEXANDRE DA CONCEIÇÂO –POETA DA TERRA ABSURDA

GUILHERMINO RAMALHEIRA –DISCURSO DA PAIXÂO

TERRA DA LAMPADA –«BLOG» VOL I,II,III,IV e V

112