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O LIVRO DAS VIRTUDES DE SEMPRE

O Livro das Virtudes de Sempre Índice e Introdução

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Page 1: O Livro das Virtudes de Sempre Índice e Introdução

O LIVRO DAS VIRTUDES DE SEMPRE

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Ramiro Marques

2000

Este livro está publicado em Portugal, nas Edições Asa (2000),

em Espanha, nas Edições Desclée (2002) e, no Brasil, na

Landy Editora (2002)

Ao meu avô, António Marques

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Nota Biográfica

Ramiro Marques nasceu em 1955. É licenciado em História pela

Universidade de Lisboa (1980), Mestre em Ciências da Educação pela

Universidade de Boston (1984) e Doutorado em Ciências da Educação

pela Universidade de Aveiro (1991). Possui, ainda, o título de

Agregado em Educação, obtido na Universidade de Aveiro, em 1999,

na sequência de provas públicas. Tem 31 livros publicados.

É professor coordenador com agregação do Instituto Politécnico

de Santarém e pertence ao quadro da respectiva Escola Superior de

Educação. É autor de dezassete livros e co-autor de mais três livros.

As suas áreas de investigação e estudo são a história das ideias

pedagógicas, a ética e a axiologia educacional. Lecciona, no Instituto

Politécnico de Santarém, Teorias e Modelos de Ensino, Educação e

Valores e Metodologias da Investigação em Educação.

É membro da direcção da AEPEC (Associação da Educação

Pluridimensional e da Escola Cultural). Foi Director da Escola Superior

de Educação do Instituto Politécnico de Santarém entre Junho de

1993 e Dezembro de 1996 e presidiu ao seu Conselho Científico entre

Setembro de 1997 e Setembro de 2001.

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ÍNDICE

Introdução

1. As éticas de Aristóteles

2. Educar em valores

3. A educação ética em Aristóteles

4. O bem e a felicidade

5. O prazer e a dor

6. A felicidade

7. A virtude

8. A Ética a Eudemo face aos outros tratados de ética

9. A felicidade na Ética a Eudemo

10. A virtude na Ética a Eudemo

11. O hábito e a intenção

12. A tolerância e o respeito

13. A justiça e o amor

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14. A continência e a temperança

15. A coragem

16. A generosidade e a magnificência

17. A gentileza e a magnanimidade

18. A gentileza e a polidez

19. O autodomínio

20. A prudência

21. A inteligência e o conhecimento científico

22. A compreensão e a sabedoria

23. As emoções

24. O carácter do jovem, do adulto e do idoso

Bibliografia Geral

Biografia de Aristóteles

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INTRODUÇÃO

Aristóteles constitui, ainda hoje, a referência mais importante

para quem queira estudar e escrever sobre ética. São-lhe atribuídas

três grandes obras sobre ética: a Ética a Nicómaco (EN), a Ética a

Eudemo (EE) e a Magna Moralia (MM). A estes três tratados veio

juntar-se um texto, intitulado Protréptico, que não está contido no

corpus aristotelicum, cuja edição de referência continua a ser a de

Bekker (Berlim, 1830). Em relação à Magna Moralia, os eruditos

divergem acerca da sua autoria. Há quem considere, como é o caso

de René-Antoine Gauthier, que a Magna Moralia, foi escrita depois da

morte do filósofo, provavelmente por um aluno do Liceu. Outros,

como por exemplo, Pierre Pellegrin, colocam a hipótese de ser uma

obra da juventude. Tudo indica que a Magna Moralia seja uma obra

de Aristóteles, quer tenha sido escrita ou ditada directamente por ele,

quer tenha sido fruto de apontamentos das suas aulas, reunidos por

alunos seus. Não é só a semelhança temática e de vocabulário com

as restantes éticas. Há, também, referências explícitas a outras obras

de Aristóteles, como é o caso da referência à obra Os Analíticos, que

surge no capítulo VI, do livro II da Magna Moralia, que trata da

solução das dificuldades colocadas pela ausência de autodomínio.

Os livros 4, 5 e 6 da Ética a Eudemo são comuns aos livros 5, 6

e 7 da Ética a Nicómaco. Para além disso, a Ética a Nicómaco é não

apenas um tratado de maior dimensão, mas também revela uma

maior maturidade filosófica e mais fineza na argumentação. De

qualquer forma, é impossível conhecer o pensamento ético de

Aristóteles sem uma leitura cuidada dos "três livros de ética".

Os títulos das obras éticas de Aristóteles não foram,

provavelmente, concebidos por Aristóteles, mas sim pelos seus

editores, posteriores à sua morte, o principal dos quais, Andrónicos

de Rhodes, viveu no século I a C.

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Quando escreveu o Protréptico, Aristóteles tinha,

provavelmente, um pouco mais de 30 anos. Seguiu-se-lhe a Ética a

Eudemo, escrito entre os 37 e os 42 anos de idade, quando se

encontrava a ensinar em Assos, na Ásia Menor e em Mitileno, na ilha

de Lesbos. A Ética a Nicómaco é, sem dúvida, um escrito de

maturidade. Aristóteles tê-la-á escrito, após o seu regresso a Atenas,

para fundar a nova escola, o Liceu, onde ensinou, entre muitas outras

matérias, ética. Em qualquer dos casos, estamos perante textos que

resultam de sucessivas lições sobre ética e que foram sendo

alterados e melhorados ao longo dos anos. Há bastante controvérsia

acerca do título Ética a Nicómaco. Terá sido em honra do pai de

Aristóteles ou em honra do seu filho, ambos com o nome de

Nicómaco? O mesmo se pode dizer em relação ao título Ética a

Eudemo. Terá sido em honra do discípulo de Aristóteles, chamado

Eudemo de Rhodes? Ou terá sido o próprio Eudemo de Rhodes que

lhe deu esse título? E qual a razão para o título de Magna Moralia,

quando essa obra é mais curta do que as outras duas? Pierre

Pellegrin coloca a hipótese de a Magna Moralia ser um título dado

pelos editores, após a morte do filósofo, pelo facto de o livro circular

em longos rolos de papiro. Quando terá a Magna Moralia sido escrita?

Antes ou depois das outras éticas? A maior parte dos críticos mais

recentes consideram que terá sido escrita numa altura próxima da

escrita da obra Ética a Eudemo, dada a semelhança do vocabulário e

do conteúdo. Há, contudo, alguns que afirmam ser um texto escrito

por alunos, após as aulas dadas por Aristóteles no Liceu. A edição

mais antiga que se conhece da Magna Moralia deve-se a Andrónicos

de Rhodes que viveu no século I a C., e a primeira vez que a obra é

citada deve-se a uma passagem num texto de Atticus, no final do

século II da nossa era.

A Magna Moralia, também conhecida pela Grande Moral ou pelo

Grandes Livros de Ética, embora pouco editada e pouco conhecida, é

uma obra de grande qualidade, que não se limita a repetir, de forma

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mais abreviada, o que Aristóteles escreveu nas outras éticas. Há

algumas novidades sobre ética que apenas aparecem na Magna

Moralia: em que medida o injusto pode ser prudente?; pode-se ser

injusto para com uma pessoa má?; como resolver o conflito entre

duas virtudes?; é possível cair-se num excesso de virtude?

Este livro tem como referências básicas três obras de

Aristóteles: a Ética a Nicómaco, a Ética a Eudemo e a Magna Moralia.

Todas elas, mas sobretudo as duas últimas, são desconhecidas de

quase todos os professores, dos estudantes de Filosofia, de Educação

e de Ética e dos restantes leitores em geral. Quando necessário,

recorreu-se, também, à Retórica, sobretudo nos capítulos sobre as

emoções. A obra A Política inspirou, também, o capítulo sobre a

educação ética em Aristóteles.

É impossível falar-se, com fundamento e exactidão, de política,

de educação em valores e de educação ética sem conhecer estas

importantes obras da Cultura Ocidental. Com o LIVRO DAS VIRTUDES

DE SEMPRE, procurámos preencher essa lacuna, apresentando a ética

aristotélica de uma forma acessível aos leitores interessados em ética

e preocupados com o actual desconhecimento e ignorância face às

virtudes tradicionais.

A pertinência e actualidade de um livro sobre as virtudes de

sempre, escrito a escassos meses da passagem para o terceiro

milénio, explicam-se pelo facto de vivermos uma época de transição,

de mudança e de crise. Sabemos o que estamos a deixar para trás,

mas ainda não sabemos aquilo que vamos encontrar. Não temos

sequer a certeza de que aquilo para que nos dirigimos a toda a

pressa seja melhor do que aquilo que estamos a deixar. O que

sabemos, ao certo, é que uma parte significativa das novas gerações

do Mundo Ocidental está a ser criada sem ter acesso a fontes

culturais seguras. A televisão, a internet e os jogos de vídeo, apesar

do muito potencial educativo ainda por realizar, oferecem a essa

geração uma "cultura" de mosaico, fragmentada, quantas vezes

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ilusória e superficial. É certo que, muitas vezes, substituem o amparo

da mãe ausente, numa família que já não o é verdadeiramente, ou

porque andam todos, de uma lado para o outro, à procura do

fermento que há-de satisfazer as necessidades dos seus consumos

crescentes, ou porque se separaram de vez, trocando a segurança de

um lar e um compromisso que devia ser para sempre pela chama

momentânea e ilusória de novas experiências, que quase sempre se

revelam enganosas e amargas.

Numa época que corre atrás do fácil, do pronto-a-servir, do

descartável, do lúdico a qualquer preço e dos prazeres mais fáceis e

imediatos, não resta mais lugar nem sabedoria para esperar, para

adiar as gratificações, para acreditar, para ter fé, para o sacrifício

quando necessário, para as relações afectivas duradouras e para o

respeito fiel dos compromissos. E, no entanto, estamos a viver uma

época de progresso científico e tecnológico nunca antes visto. Os

enormes e extraordinários progressos registados na ciência médica,

na ciência farmacêutica, na engenharia biológica e nas

telecomunicações estão a trazer, a cada dia que passa, novos

tratamentos para antigas e novas doenças e novos processos de

comunicação, cada vez mais imediatos e interactivos. Nunca como

hoje, a Humanidade deteve tantos instrumentos, técnicas e

conhecimentos para poder ser feliz! Mas, também, nunca como

agora, a Humanidade desperdiçou tanto esse potencial de felicidade!

Contudo, esse extraordinário progresso tecnológico e científico

não está a ser acompanhado pelo progresso moral da Humanidade.

Em certas zonas do Mundo, em particular em algumas áreas da África

Sub-sahariana, e em certas áreas suburbunas das grandes cidades

europeias, estamos a assistir, sem dúvida, a uma regressão moral

sem precedentes, nos últimos 50 anos. Essa regressão moral surge

envolta num caldo de cultura constituído pelo comércio da morte,

quer através das intermináveis guerras de rapina, que minam a África

negra, quer através do abuso de substâncias tóxicas, que destroem a

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coesão social e cultural de milhões de famílias em muitas regiões

europeias.

A família e a escola são as instituições que maior erosão

sofreram, nas últimas décadas. Os falsos profetas do novo cepticismo

axiológico não cessam de dar as boas-vindas àquilo a que chamam

de "novos arranjos familiares" e, na escola, não se cansam de

advertir para a necessidade de substituir o estudo sério, o esforço, o

sacrifício e o amor pelos clássicos por um pseudo-currículo que, de

tanto se tornar flexível, corre o risco de deixar de ser substantivo.

Ora, como se pode criar resistentes sem o hábito da firmeza e

do esforço? E onde aprender a firmeza, a resistência e a

perseverança se a família e a escola deixaram de as ensinar e a

sociedade as passou a ignorar? Como é possível, num cenário desses,

alimentar a coragem das novas gerações, essa virtude, sem a qual as

outras virtudes não passam de meras possibilidades? Quando a

ausência de firmeza, de perseverança e de coragem anda associada à

incredulidade, à falta de fé, à recusa de toda a tradição e à ignorância

do que vale a pena, estamos, na melhor das hipóteses, no domínio do

imprevisível e da incerteza. Poderá a civilização ocidental, continuar a

aumentar o seu poderio tecnológico e científico e, simultaneamente,

superar a falta de firmeza, a ausência de coragem e a incredulidade

crescente? Ou será que, com o 3º milénio, assistiremos a um

progresso moral sem precedentes, conseguindo, por essa forma,

diminuir o fosso entre os avanços científicos e a actual estagnação

moral?

Está fora de questão um regresso ao passado. Tal é impossível

e indesejável. Não queremos reencontrar um passado que também

foi marcado pela opressão e pelo obscurantismo. Queremos manter e

alargar, tanto quanto possível a liberdade, mas, em simultâneo,

exigimos mais respeito e mais responsabilidade. Mas, também, não

podemos fazer tábua-rasa de um passado de luz e esplendor, sem

esquecermos as suas zonas de sombra.

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Ao invés, é preciso caminhar em frente, construindo sobre esse

passado, melhorando-o, recusando as suas partes-sombra e

acrescentando-lhe o que a verdadeira cultura, tecnologia e ciência do

nosso tempo têm para dar, com o fim de lhe proporcionar mais luz.

Aproveitar e utilizar bem os novos tesouros que as novíssimas

tecnologias da informação conseguem levar até à nossa casa, criando

conteúdos culturalmente sólidos que possam circular na internet e

agucem o apetite de todos pelo contacto duradouro e íntimo com os

livros. Por isso, faz todo o sentido falar das virtudes de sempre, e

dar, de novo, voz a alguns grandes mestres da Sabedoria Ocidental,

porque as suas palavras podem ajudar a iluminar a nossa caminhada

para um futuro mais humano, mais justo, mais luminoso e mais

fraterno.

Este retorno aos grandes mestres da Sabedoria Ocidental não

pode ser visto como uma preferência pelo etnocentrismo ou a recusa

do diálogo com outras culturas. Acontece apenas que nós somos fruto

de uma matriz cultural que teve o seu epicentro e deve os seus

fundamentos à antiguidade greco-latina e à civilização judaico-cristã.

Para compreendermos e respeitarmos os grandes mestres da

Sabedoria Oriental e para dialogarmos com as outras culturas temos,

em primeiro lugar, que conhecer, respeitar e amar as nossas

referências culturais.

Aristóteles foi um desses grandes mestres. Poderíamos ter

escrito um livro sobre as virtudes de sempre recorrendo a outros

grandes mestres, a Santo Agostinho, a Tomás de Aquino ou a

Espinoza. Mas já não seria um livro. Seriam vários livros. Talvez se

justifique, no futuro, fazê-lo, se a saúde, a vida e a inspiração o

permitirem. E também se justifica cruzar a sabedoria desses mestres

com a sabedoria de um Confúcio, de um Lao Tseu e de um Mencius.

Esse diálogo é uma empresa necessária e urgente!

A pertinência da ética aristotélica para a actualidade resulta do

facto de os valores serem intrínsecos à educação, não sendo possível

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falar de escola e de educação sem incluir os valores. Na verdade, não

há educação sem uma referência intrínseca aos valores, pois o

"compromisso educativo não é possível fora do compromisso com os

valores" (1).

Referindo-se à importância da formação axiológico-educacional

de um professor, Manuel Patrício (2) refere que ela deve ser

organizada para: "a) promover a reflexão teórica sobre os valores a

cultivar na vida e no processo educativo escolar; b) promover a

transferência dessa reflexão teórica para as situações educativas

concretas e práticas em que o professor se encontra como educador

profissional; c) preparar para uma vida pessoal e profissional que

seja um processo de formação contínua; d) preparar para uma vida

pessoal e profissional que seja axiologicamente diversificada, rica e

valiosa; e) organizar situações didácticas rigorosamente

provocadoras e propiciadoras da experienciação das classes de

valores consideradas principais; f) conduzir a ancorar a reflexão e a

prática dos valores num solo cultural e civilizacional concreto, com o

universal por horizonte; g) conduzir a analisar com objectividade e

realismo as possibilidades de estruturação e funcionamento

pedagógicos da Escola, com vista à realização de uma educação

efectivamente indutora e promotora dos valores".

Para os professores, os estudantes e os leitores em geral que

se estão a iniciar no estudo da ética aristotélica, aconselhamos a

leitura da obra de Jean Brun (3), que contém um conjunto de

excelentes capítulos sobre a filosofia do estagirita. Para a leitura de

algumas obras de Aristóteles, traduzidas em português e com um

bom conjunto de notas explicativas, aconselhamos algumas edições

da colecção Estudos Gerais - Clássicos de Filosofia da Imprensa

Nacional (4).

Quer a Ética a Nicómaco quer a Ética a Eudemo procuram

definir e caracterizar o Bem. Em ambas surge a noção de que "o Bem

do homem consiste no bom exercício da actividade humana. E qual é

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então essa actividade? O que distingue o homem dos outros seres

vivos é a sua alma racional, será, portanto, numa certa forma de

actividade dessa razão que residirá o Bem; deste modo o Bem, para

o homem, consiste numa actividade da alma, e acordo com a virtude

e, no caso de pluralidade de virtudes, de acordo com a mais

excelente e a mais perfeita delas todas" (5).

Coloca-se, então, o problema de saber o que é a virtude. Será

uma paixão, uma faculdade ou uma disposição? Paixão não é, pois o

medo e o ódio nunca podem ser considerados virtudes. Faculdade,

também não, pois uma faculdade tanto pode ser posta ao serviço do

bem como do mal. É, então, uma disposição "resultante duma

deliberação voluntária, pois a inteligência humana pode ser uma

verdadeira causa ao lado daquelas que vemos actuar na natureza.

Para que possamos falar de virtude, é preciso então que aquele que

age se encontre numa certa disposição: em primeiro lugar deve saber

o que faz; depois, deve escolher livremente o acto em questão e

escolhê-lo com vista a esse mesmo acto; e, em terceiro lugar, deve

executá-lo numa disposição de espírito firme e inabalável" (6).

A virtude é um extremo na excelência, mas é uma posição

média entre dois vícios, um por excesso, outro por defeito. Para que

uma acção seja boa, é necessário "que não seja preciso retirar-lhe

nem acrescentar-lhe nada; assim, todo o homem prudente evita o

excesso e o defeito, procura o justo equilíbrio e prefere-o, um justo

equilíbrio que não seja relativo ao objecto mas relativo a nós" (7).

Aristóteles deu duas grandes contribuições para a teoria ética:

a primeira, é o seu teleologismo, que encara a procura da felicidade

como a principal finalidade do homem. O outro contributo é a sua

concepção de virtude, como meio termo entre dois extremos. Embora

a teoria ética aristotélica não possa ser considerada uma ruptura com

a teoria platónica, a verdade é que há alguns aspectos que as

separam. Desde logo, a tese aristotélica de que a educação ética não

se faz apenas por via intelectual, mas também, e sobretudo, através

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da habituação do educando na prática da virtude. Para Aristóteles, "a

prática do bem depende de: 1) umas virtudes que se conhecem e que

são puramente intelectuais (nous, epistéme, sophía), de modo que,

por conseguinte, são produto do ensino doutrinal; 2) outras virtudes

intelectuais já menos puras (phrónesis e téchne), que devem aplicar

verdades gerais a casos particulares, conhecidas pelos sentidos e

dado que estes se acham sujeitos a erro, o conhecimento nem

sempre as afecta e move devidamente; 3) por fim, umas virtudes

morais vinculadas à acção, as quais, movendo o indivíduo no mesmo

terreno em que o movem também os instintos e as paixões, podem

ser vencidas por estes, sem obedecer às directrizes da razão" (8).

Foi Aristóteles, e não Sócrates ou Platão, que melhor foi capaz

de explicar a aparente contradição, que São Paulo, alguns séculos

depois resumia dizendo "não quero o mal que faço e não faço o bem

que quero". Por que é que o homem, conhecendo o bem, não é capaz

de o realizar? Grande parte da Ética a Nicómaco procura explicar esta

contradição. Agostinho de Hipona (9) e, mais tarde, Tomás de

Aquino, dedicaram, também, longas e admiráveis páginas a este

drama humano fundamental.

A posição de Aristóteles, acerca do drama humano

fundamental, é realista e verdadeira: para a prática do bem exige-se

que as luzes da inteligência, nutrida com o ensino da ética, se juntem

a uma boa disposição natural e a bons hábitos. Desta forma,

Aristóteles explicita os seus dois grandes princípios da educação

ética: "1) as inclinações naturais negativas podem ser contrariadas

com a formação de hábitos positivos; 2) o indivíduo adquire, assim, a

sua segunda natureza, de ordem cultural e moral"(10). Com estes

princípios, Aristóteles ultrapassava o intelectualismo ingénuo de

Sócrates e Platão e incluía na sua teoria quer a importância dos bons

hábitos quer dos sentimentos, os quais tanta importância viriam a ter

23 séculos depois, na obra de Max Scheler e de outros importantes

axiólogos contemporâneos.

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A importância dada por Aristóteles à educação ética conduziu-o

à defesa de uma educação pública, capaz de complementar e de

substituir, quando necessário, as insuficiências da família, de modo

que as novas gerações pudessem beneficiar de uma boa formação do

carácter. Na obra A Política (11), Aristóteles dedica várias páginas à

organização da educação, como alicerce da formação do carácter, e

defende a ideia de que são necessárias leis e medidas correctivas que

acompanhem e ajudem a vida ética do homem, tanto na juventude,

como na maturidade e na velhice. Importa, no entanto, não exagerar

a importância concedida pelo estagirita à educação pública, já que ele

não cessa de referir que cabe aos pais a tarefa fundamental de

encaminhar os filhos no sentido da virtude, ajudando-os, com

firmeza, a formar um carácter virtuoso. No entanto, como reconhece

ser essa uma tarefa muito difícil, sobretudo quando os filhos nascem

com deficiências nas suas disposições naturais, obedecendo, por isso,

com mais facilidade aos instintos do que à razão, Aristóteles afirma

que o Estado tem o dever de ajudar e complementar o papel da

família na educação ética dos filhos e de se substituir à família

quando ela é incapaz de realizar tal tarefa.

A ética de Aristóteles é uma ética do bem e da finalidade. Parte

da ideia de que o bem do homem está em cumprir a sua finalidade,

que é a felicidade. É, por isso, uma moral teleológica. Como a

felicidade consiste na contemplação intelectual, no estudo teórico,

portanto, as virtude principais são as dianoéticas, ou virtudes

cognoscitivas, como a sabedoria e a prudência. Para Aristóteles, as

virtudes éticas, ao contrário das dianoéticas, são focadas na vida

activa e visam o domínio da parte sensitiva e a sua submissão ao

domínio da razão. Ora, o homem que dedica a sua vida ao estudo

teórico é o que se encontra mais perto de Deus, que é contemplativo,

tudo sabe e supera todos os humanos em felicidade. Tomás de

Aquino retomaria, séculos depois, esta tese, para defender que a

suprema felicidade é a contemplação de Deus.

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Para Aristóteles, o Bem não é uma transcendência, mas o

conjunto dos bens. E ao contrário dos estóicos, afirma que o bem não

é só a virtude, mas também um desfrute moderado dos prazeres

materiais e humanos. É possível verificar que a ética aristotélica

possui uma base estética, visto que "a razão manda fazer o bem

porque isso está conforme com a ordem e com a conveniência" (12).

Aristóteles considera que o bem é uma coisa bela e que se deve ser

corajoso porque é belo sê-lo. A virtude é uma arte que se funda na

ideia do melhor e obedece à lei da harmonia e da proporção.

O eudemonismo da ética aristotélica é evidente quando o

filósofo escreve que a felicidade é o maior dos bens. Contudo, a

felicidade não é o mesmo que a "boa vida", mas sim a "vida boa".

Mas, o filósofo não opõe "boa vida" a "vida boa". Pelo contrário, uma

pessoa com uma vida digna está no caminho certo para ter uma vida

bem satisfeita. Assim sendo, a felicidade pode definir-se como um

"agir bem", isto é, de acordo com a virtude. Não é a sorte ou a

riqueza que asseguram a felicidade, mas sim os actos virtuosos. A

ideia de que a felicidade reside na vida virtuosa deixou marcas em

toda a ética ocidental. Coube a Tomás de Aquino (13) a actualização

da ética aristotélica à matriz cristã, acrescentando que a suma

felicidade consiste na contemplação das coisas divinas. Ou seja, tanto

num como noutro, é através do estudo teórico, da contemplação

intelectual, que o homem atinge a maior felicidade. Num caso e

noutro, estamos perante uma ética do bem e uma moral de

felicidade.

Numa época, como a nossa, profundamente marcada pela

relativismo ético radical e por uma certa anomia moral, não é

exagerado afirmar-se que a ética aristotélica pode constituir um

referencial seguro e realista para a procura da felicidade e de uma

vida digna. Ora, a escola e a educação em geral, embora não sendo

uma panaceia, podem contribuir para ajudar os jovens a encontrarem

os caminhos para a vida digna e para a felicidade. A demanda da

Page 17: O Livro das Virtudes de Sempre Índice e Introdução

felicidade exige perseverança, esforço e capacidade de sacrifício.

Precisamente aquilo que os "mass media" ocidentais mais

desvalorizam. Tanto a Ética a Nicómaco e a Ética a Eudemo como a

Magna Moralia (14) constituem três textos fundamentais da Cultural

Ocidental e é imperdoável continuar a permitir que as novas gerações

os ignorem. Este livro quer ser um modesto contributo para a

divulgação do conhecimento destas três obras que fixaram os

fundamentos das virtudes de sempre.

As éticas de Aristóteles, a par de outras grandes obras da

Sabedoria Ocidental, como a As Confissões de Santo Agostinho, a

Suma Teológica de Tomás de Aquino e a Ética de Espinoza, entre

muitas outras, podem ajudar as novas gerações a abandonar o

cepticismo axiológico reinante, substituindo o cepticismo pelo gosto

de procurar a Verdade e pelo amor à Sabedoria. Jean Guitton acentua

a importância dessa grande tradição da seguinte forma: "não se trata

de manter a todo o custo as partes carunchosas da tradição, mas

retomar a tradição pela razão, com o legado da moral natural; toda

esta fidelidade à tradição antiga greco-romana e judeo-cristã, que

deu, nesta civilização ocidental, uma parte do bem que é necessário

preservar: liberdade, generosidade, direitos do Homem, fraternidade,

sinceridade, justiça, honra, as raízes do respeito de si e dos outros, a

amizade. Recusar-se a admitir que o egoísmo e a mediocridade

possam vencer contra o amor e a inteligência"(15).

Numa época caracterizada pelo esfumar dos vínculos e das

referências, é necessário regressar ao contacto com as Grandes

Obras e buscar nelas a inspiração e a iluminação para a Vida Feliz.

Neste sentido, o contacto com as Grandes Obras é como o regresso

ao colo da mãe e assemelha-se ao deitar a cabeça no ombro do pai.

Jean Guitton chama a atenção, da seguinte forma, para os malefícios

da perda dos vínculos: "na nossa época, o que está mais em perigo

são os vínculos que outrora ligavam o espírito à coisa, o homem à

natureza, o filho à mãe, o cidadão à Pátria, os exercícios do espírito à

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existência ordenada, cinzenta e esplêndida; o país, a terra, a religião

vivida no tempo, a encarnação, em resumo, sob todas as suas

espécies e as suas formas. E as virtudes. Não a virtude, termo vago,

muitas vezes hipócrita, mas todos estes esforços em que o belo, o

bem, o verdadeiro encarnam numa vida humana, criando harmonia

entre os seres e as coisas. O que é refúgio, seio, socorro, retiro,

floresta, bosque, terra, tudo isso tende a desaparecer. Já não temos

paz, mas excessos que se sucedem e se compensam. O respeito, o

pudor, a medida e a simplicidade desapareceram. E as mães" (16).

É isso. O homem é o animal que mais tempo precisa para

chegar à vida adulta. Nasce indefeso e fraco. Sem a protecção da

mãe, sem o acompanhamento dos pais e da família, durante cerca de

um quarto da sua existência média, o homem definha e morre

prematuramente. E mesmo que sobreviva, nunca chega a ser

Homem. Para vir a ser Homem, precisa de colo, de vínculos e de

referências seguras, isto é, dos exemplos, da tradição e dos

testemunhos. As Grandes Obras da Sabedoria Ocidental são o colo,

os vínculos e as referências seguras para que os homens de hoje

possam aspirar a ser o Homem do 3º milénio. Pudesse este livro

contribuir um nadinha para que tal aconteça!

Notas

1) Patrício, M. (1993). Lições de Axiologia Educacional. Lisboa:

Universidade Aberta, p. 20

2) idem, p.29

3) Brun, J. (1994). Sócrates, Platão e Aristóteles. Lisboa:

Publicações Dom Quixote

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4) Aristóteles (1998). Retórica. Lisboa: INCM e Poética. Lisboa:

INCM

5) Brun, J. (1994). Sócrates, Platão e Aristóteles. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, p. 281

6) idem, p. 282

7) ibidem, p. 282

8) Quintana Cabanas, J. M. (1995). Pedagogia Moral: El

Desarrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 290

9) Ver Santo Agostinho (1997). Diálogo sobre a Felicidade. Lisboa:

Edições 70 e, também, As Confissões. S.Paulo: Quadrante

10) Quintana Cabanas, J. M. (1995). Pedagogia Moral: El

Desarrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 291

11) Aristóteles (1991). A Política. S. Paulo: Livraria Martins Fontes

12) Quintana Cabanas, J. M. (1995). A Pedagogia Moral : El

Desrrollo Moral Integral. Madrid: Dykinson, p. 98

13) Tomás de Aquino (1953). Summa Contra los Gentiles.

Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos

14) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna

Moralia). Traduzido do grego por Catherine Dalimier e com

introdução de Pierre Pellegrin. Évreux.Arléa

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15) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das

Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 24

16) Guitton, J. e Antier, J-J. (1999). O Livro da Sabedoria e das

Virtudes Reencontradas. Lisboa: Editorial Notícias, p. 13

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