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O LIVRO DIDÁTICO NA LINGUAGEM DE MICHEL DE CERTEAU NO CONTEXTO DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA Claudine Assumpção Lima Mestrado em Educação Científica e Tecnológica Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO Este artigo pretende refletir sobre como a história da matemática por meio do livro didático em sala de aula pode servir como recurso pedagógico. Assim, pensar nos livros didáticos como objeto histórico que estabelecem um conjunto de práticas e discursos por meio das relações estabelecidas entre textos e imagem contidos nestes constituem formas de experiências. Neste sentido, o presente texto fundamenta-se nos estudos históricos de Michel de Certeau e Choppin acerca das pesquisas históricas sobre livros didáticos e produção historiográfica, pois será ampliada a reflexão com autores contemporâneos ao longo do artigo que tomam a história como produção do historiador e como objeto, as práticas culturais. APRESENTAÇÃO A história da matemática em sala de aula pode servir como recurso pedagógico, pois é de grande importância sua utilização por meio do livro didático. No Brasil, numerosos estudos demonstram que o livro didático na atividade escolar é muito significativo, pois a história da matemática ganha espaço a partir de 1999, com a criação da Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat), no III Seminário Nacional da Matemática, realizado em Vitória (ES). No entanto, ela começa a se destacar na década de 80, quando é realizado o Workshop em História na Educação Matemática, em Toronto (Canadá), no qual foi criado o International StudyGroup on the Relations between the History and Pedagogy of Mathematics (HPM), grupo filiado à Comissão Internacional de Ensino da Matemática (ICMI). O objetivo deste artigo é que ao empreendermos uma pesquisa histórica, pretendemos nos posicionar como historiadores, aquele que produz história. Assim, uma

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O LIVRO DIDÁTICO NA LINGUAGEM DE MICHEL DE CERTEAU NO

CONTEXTO DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Claudine Assumpção Lima

Mestrado em Educação Científica e Tecnológica

Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Este artigo pretende refletir sobre como a história da matemática por meio do

livro didático em sala de aula pode servir como recurso pedagógico. Assim, pensar nos

livros didáticos como objeto histórico que estabelecem um conjunto de práticas e

discursos por meio das relações estabelecidas entre textos e imagem contidos nestes

constituem formas de experiências. Neste sentido, o presente texto fundamenta-se nos

estudos históricos de Michel de Certeau e Choppin acerca das pesquisas históricas sobre

livros didáticos e produção historiográfica, pois será ampliada a reflexão com autores

contemporâneos ao longo do artigo que tomam a história como produção do historiador

e como objeto, as práticas culturais.

APRESENTAÇÃO

A história da matemática em sala de aula pode servir como recurso pedagógico,

pois é de grande importância sua utilização por meio do livro didático. No Brasil,

numerosos estudos demonstram que o livro didático na atividade escolar é muito

significativo, pois a história da matemática ganha espaço a partir de 1999, com a criação

da Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat), no III Seminário

Nacional da Matemática, realizado em Vitória (ES). No entanto, ela começa a se

destacar na década de 80, quando é realizado o Workshop em História na Educação

Matemática, em Toronto (Canadá), no qual foi criado o International StudyGroup on the

Relations between the History and Pedagogy of Mathematics (HPM), grupo filiado à

Comissão Internacional de Ensino da Matemática (ICMI).

O objetivo deste artigo é que ao empreendermos uma pesquisa histórica,

pretendemos nos posicionar como historiadores, aquele que produz história. Assim, uma

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pesquisa histórica baseada no livro didático na visão de Certeau se articula como um

lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. O historiador Certeau pontua a

importância que se reveste o lugar de onde falamos ao produzir história, pois “é em

função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de

interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam”

(CERTEAU, 2007, p. 66-67).

OS LIVROS DIDÁTICOS COMO FONTES HISTÓRICAS

Inicialmente, o papel dos livros didáticos é visto como fontes históricas que nos

revelam partes de processos de socialização, de aculturação e de doutrinação de

determinada circunstâncias históricas e culturais, mas pensá-lo como objeto histórico

estabelece um conjunto de práticas e discursos que constituem formas de experiências.

Neste ponto, um texto histórico contido num livro é composto por fatos

históricos que são construídos a partir do trabalho do historiador e a partir de traços

deixados no presente pelo passado. Segundo Valente, “[...] o trabalho do historiador

consiste em efetuar um trabalho sobre esses traços para construir fatos. Desse modo,

um fato não é outra coisa que o resultado de uma elaboração, de um raciocínio, a

partir de marcas deixadas do passado, segundo as regras de uma crítica” (VALENTE,

2007, p. 31). Assim, o livro didático pode ser entendido como fonte de pesquisa e passa

a ter um maior valor nas investigações históricas da educação matemática. Para

Choppin (2004) em defesa da importância do livro didático, diz o autor que o livro não

é simplesmente um espelho, mas que modifica a realidade para educar novas gerações,

pois o livro didático expressa propostas de inovação, projetando-as para as alterações

das práticas.

A ideia de produção editorial e leitura como formas de apreensão das “práticas

sociais” através do produto consumido; neste caso o livro, baseado no texto de Certeau

“[...] costuma estar implícita na pretensão dos ‘produtores’ de informar uma

população, isto é, ‘dar forma’ às práticas sociais e levando a acreditar que seus

próprios modelos culturais são necessários para o povo em vista de uma educação dos

espíritos e de uma elevação dos corações [...] e o público é modelado pelos produtos

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que lhe são impostos” (CERTEAU, 1999, p. 260). Os manuais escolares e livros

didáticos no Brasil também, segundo Lajolo “são centrais na produção, circulação e

apropriação de conhecimentos por cuja difusão a escola é responsável” (LAJOLO,

1996, p. 03). Os manuais escolares e, mais especificamente, os livros didáticos, fazem

parte de toda nossa vida escolar, seja da cartilha às apostilas de cursinhos pré-

vestibulares. Os usos que a eles atribuímos são os mais variados: desde a obtenção de

conhecimentos e informações até a mera utilização de imagens para um trabalho

escolar.

As práticas de leituras de imagens impressas e sua popularização nos livros

como recursos didáticos assumem, na escola, a partir do século XIX, formas que

indicam leituras extensivas e intensivas do livro didático (CHARTIER, 1998, p. 15),

permitindo que o aluno leia em seu ritmo pessoal e que possa repetir a leitura ou rever

conceitos. As leituras iconográficas, na maioria das vezes, foram utilizadas como forma

comprobatória, isto é, para reafirmar e reforçar o texto escrito, ou como forma de atrair

o olhar do aluno. Assim, quando observamos os livros como produto material fabricado,

as imagens, além de se constituírem em um artifício pedagógico, estão relacionadas aos

aspectos mercadológicos e técnicos. Se o livro é um produto industrial, é preciso

repensar sobre as inúmeras funções que estão inseridas em sua construção e que se

refletirá em suas ilustrações. Afinal, a observação das gravuras, vinhetas e legendas

explicativas de um livro permite vislumbrar os limites eventualmente impostos ao autor

do texto (BITTENCOURT, 2001, p. 75-77).

Nos primórdios do surgimento do livro, a partir de sua autoria à edição final e,

enfim, à distribuição para o consumo, são estas as etapas, de forma simplificada, pelas

quais passa o livro antes de chegar ao seu leitor, que lhe atribuirá sua mais forte função:

‘da leitura’. Chartier nos alerta, entretanto que existem inúmeras formas de ler e

compreender um texto e faz-se necessário “reconhecer a pluralidade das leituras

possíveis do mesmo texto, em função das disposições individuais, culturais e sociais de

cada um dos leitores” (CHARTIER, 1996, p. 98). No entanto, sobre a questão da

modelagem do público através da produção livresca, Certeau, reforça o conceito de uma

ideologia de consumo receptáculo, onde:

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“no decorrer de toda essa evolução, a ideia de uma produção da

sociedade por um sistema ‘escriturístico’ não cessou de ter como

corolário a convicção de que, com mais ou menos resistência, o

público é moldado pelo escrito (verbal ou icônico), torna-se

semelhante ao que recebe, enfim, deixa-se imprimir pelo texto e como

o texto é imposto.” (CERTEAU, 1999, p. 261).

Assim, pode-se dizer que o livro didático se caracteriza pela interferência de

vários sujeitos em sua elaboração, produção, realização, circulação e consumo/uso.

Neste caso, o acompanhamento de suas múltiplas vertentes de abordagem identifica

diversas e distintas pesquisas históricas, impossíveis de reunir em um único conjunto.

Na medida em que o historiador busca questionar, interrogar as fontes, o olhar do

historiador tem de ser aquele que procura inconstâncias, discrepâncias. Neste sentido,

dependendo do que estiver buscando nos livros didáticos, ora pode ser tratado como um

“documento”, ora como um “objeto”. É necessário estar atento a períodos, momentos de

mudanças, alterações, situações de ruptura, pois há situações em que há variações dos

conteúdos, o que pode impactar a produção didática. E, como Chervel comenta:

“em cada época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso

modo, idêntico para a mesma disciplina e para o mesmo nível. Todos

os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso.

Os conceitos ensinados, a tecnologia adotada, a coleção de rubricas e

capítulos, a organização dos ‘corpus’ de conhecimentos, mesmo os

exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados são idênticos,

com variações aproximadas” (CHERVEL, 1990, p. 203).

Entretanto, para pesquisadores da educação e historiadores, entre outros

interessados, o manual e o livro didático são objetos altamente ricos de informações e

abordagens para a pesquisa científica. Ao discorrer sobre o livro didático, nos fala

Antônio Batista, de como ele é um objeto efêmero, “que se desatualiza com muita

velocidade. Raramente é relido; pouco se retorna a ele para buscar dados ou

informações e, por isso, poucas vezes é conservado nas prateleiras de bibliotecas

pessoais ou de instituições” (BATISTA, 1999, p. 529). O autor também comenta que

um texto didático não se apresenta uniforme muitas vezes pela forma que pode ser

tratado em sala de aula, podendo buscar preencher diferentes funções, mediante a forma

de articulação literária destinada ao trabalho de ensino e formação a que se propõe

auxiliar.

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Por fim, será ampliando as reflexões com Choppin (2004) que se apresenta como

referência nos estudos relacionados ao livro didático, pois o autor discursa sobre as

funções assumidas por esse objeto histórico de pesquisa que, segundo ele, pode variar

consideravelmente dependendo do ambiente sociocultural, da época, das disciplinas, dos

níveis de ensino, dos métodos e das formas de utilização. Afinal, que tipo de olhar

dirigir ao livro didático? Mas, quais as finalidades de ensino que estão inscritas nos

textos? Caberá ao historiador mergulhar no âmago da cultura que quer compreender

para produzir a sua história. Ao historiador caberá a tarefa de buscar o ‘sentido’ e o

‘significado’ onde de início existem apenas evidências, dados preliminares. Assim, que

tipo de livros didáticos deve compor uma amostra para uma pesquisa histórica?

BREVE HISTÓRICO DOS LIVROS DIDÁTICOS: O PNLEM E OS PCN

Desde 1991, o Ministério da Educação (Brasil, 1991b, p.3) por intermédio do

Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), constituiu-se no maior comprador

destes, sendo eles distribuídos a alunos e professores das escolas públicas do País.

Todavia, o Ensino Médio é considerado a última e complementar etapa da Educação

Básica pela LDB/96 (Lei de Diretrizes e Bases), pois somente em 2004 foi implantado

pelo governo federal o Programa Nacional do Livro do Ensino Médio (PNLEM), que

tem como objetivo analisar e distribuir livros didáticos para os alunos do Ensino Médio

público de todo o País. Este programa é mantido pelo FNDE (Fundo Nacional de

Desenvolvimento da Educação) com recursos financeiros provenientes do Orçamento

Geral da União e do Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio (PROMED).

No que se referem aos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), os objetivos

do Ensino Médio em cada área do conhecimento devem envolver, de forma combinada,

o desenvolvimento de conhecimentos práticos, contextualizados, que respondam às

necessidades da vida contemporânea, e o desenvolvimento de conhecimentos mais

amplos e abstratos, que correspondam a uma cultura geral e a uma visão de mundo. Os

PCN surgem em decorrência da necessidade de se atualizar o ensino, buscando

acompanhar a evolução tecnológica e social ocorrida nas últimas décadas. “Exige-se

que a escola possibilite aos alunos integrar-se ao mundo contemporâneo nas dimensões

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fundamentais da cidadania e do trabalho” (PCN). De acordo com a LDB, foi junto aos

professores que o Ministério da Educação chega a um novo perfil para o currículo para

a inserção dos jovens na vida adulta, apoiado em competências básicas; assim surgindo

os PCN para o Ensino Médio que:

“são o resultado de meses de trabalho e de discussões realizados por

especialistas e educadores de todo o país. Eles foram feitos para

auxiliar o professor, na execução de seu trabalho. Servirão de

estímulo e apoio á reflexão sobre a sua prática diária, ao

planejamento de suas aulas e, sobretudo ao desenvolvimento do

currículo de sua escola, contribuindo ainda para a sua atualização

profissional” (Bases Legais dos PCN).

Em relação à abordagem da História da Matemática, quanto às habilidades e

competências, no que se referem à contextualização, os PCN estabelecem que os

estudantes devam: a) reconhecer o sentido histórico da ciência e da tecnologia,

percebendo seu papel na vida humana em diferentes épocas e na capacidade humana de

transformar o meio; b) compreender as ciências como construções humanas, entendendo

como elas se desenvolveram por acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas,

relacionando o desenvolvimento científico com a transformação da sociedade; e, c)

relacionar etapas da história da matemática com a evolução da humanidade.

De acordo com o PNLEM, a “História da Matemática oferece um âmbito de

contextualização importante para o conhecimento matemático. Um livro didático deve

fazer referência aos processos históricos de produção do conhecimento matemático e

utilizar esses processos como instrumento para auxiliar a aprendizagem da matemática”.

A presença da História da Matemática vem sendo inserida nos livro didáticos

tanto para acatar as indicações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) como para

satisfazer as avaliações realizadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),

como vemos neste breve histórico, que é o atual programa que distribui e avalia Livros

Didáticos no Brasil. Mostra-se este movimento em torno da importância da História da

Matemática como ferramenta pedagógica juntamente com o alvoroço que causa os PCN

que diretamente influencia os critérios do PNLD. Há mais de uma década, vários grupos

de pesquisa em História da Matemática foram instituídos, e; assim, como já mencionei,

foi fundada a SBHMat (1999). A partir da consolidação desta linha de pesquisa no

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Brasil, acarretou algumas influências deste movimento que se reflete na presença da

história de matemática nos livros didáticos.

A maioria dos matemáticos e educadores possuem dúvidas quando se analisa

qual a melhor forma de utilizar este recurso. Para muitos autores, utilizar-se da História

da Matemática é um fator motivador que despertaria o interesse dos alunos pela

matemática. Entretanto, os autores Miguel e Miorim não acreditam que exista

“uma única História da Matemática da qual se possa fazer uso e

abuso e que devesse ser recortada e inserida homeopaticamente no

ensino. Eles entendem que histórias podem e devem constituir pontos

de referência para a problematização pedagógica da cultura escolar

e, mais particularmente, da cultura da matemática e da educação

matemática escolar, desde que sejam devidamente constituídas com

fins explicitamente pedagógicos e organicamente articulados com as

demais variáveis que intervêm no processo de ensino-aprendizagem

escolar da matemática” (MIGUEL; MIORIM, 2005).

Ao ser indicada pelos PCN e como item de avaliação do PNLD, a presença da

História de Matemática nos livros didáticos traz uma problemática: a sua forma de

inserção. Alguns autores de livros didáticos, na tentativa de acatar as diretrizes traçadas

pela Secretaria de Educação Fundamental, incluem retalhos históricos no

desenvolvimento de seus textos, de maneira imprópria. Muitas vezes esta inserção se

resume na apresentação de biografias de alguns matemáticos, de datas ou curiosidades

históricas, sem a devida compreensão ou adequação desta abordagem, isto é, uma

abordagem relacionada ao conceito a ser ministrado, utilização de anedotas históricas

para o entendimento do conteúdo ou o próprio conteúdo ser de cunho histórico.

Para citar o historiador Michel de Certeau (1999) que disse “em história, tudo

começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documento’ certos

objetos distribuídos de outra maneira. Essa nova distribuição cultural é o primeiro

trabalho. Na realidade, ela consiste em ‘produzir’ tais documentos, pelo simples fato de

recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar

e o seu estatuto”. Nesse sentido é que o livro didático tem despertado o interesse de

muitos pesquisadores nas últimas décadas, pois enquanto produto cultural provoca

debates no interior da escola, entre educadores, alunos e suas famílias; assim como, em

encontros acadêmicos, em artigos de jornais, entre outros, sendo um objeto cultural,

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pode ser analisado sob várias perspectivas, destacando-se os aspectos educativos e seu

papel na configuração da escola contemporânea.

OS LIVROS DIDÁTICOS COMO OBJETO HISTÓRICO

Os livros didáticos fazem parte do cotidiano escolar há alguns séculos. Por esta

razão, a familiaridade com seu uso faz com que seja fácil identificá-los e estabelecer

distinções entre eles e os demais livros (BITTENCOURT, 2004). Ou seja, o livro, ao

longo do ano escolar, transforma-se em fonte das informações, textos, exercícios e das

imagens utilizados em sala de aula. Entretanto, trata-se, ao mesmo tempo, de um objeto

bastante complexo, como diz Choppin (2004, p. 552-3) em um de seus artigos, podendo

assumir diferentes funções, dependendo das condições em que é produzido e utilizado,

além de ter um papel de controle do ensino pelos agentes do poder. Para Choppin, o

livro exerce quatro funções que variam conforme “o ambiente sociocultural, a época,

as disciplinas, os níveis de ensino, os métodos e as formas de utilização”; a função

referencial, a instrumental, a ideológica e cultural; e, a documental que são

definidas como:

“1.Função referencial, também chamada de curricular ou

programada, desde que existam programas de ensino: o livro didático

é então apenas a fiel tradução do programa ou, quando exerce o livre

jogo da concorrência, uma de suas possíveis interpretações. Mas, em

todo o caso, ele constitui o suporte privilegiado dos conteúdos

educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades

que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas

gerações.

2.Função instrumental: o livro didático põe em prática métodos de

aprendizagem, propõe exercícios ou atividades que, segundo o

contexto, visam a facilitar a memorização dos conhecimentos,

favorecer a aquisição de competências disciplinares ou transversais,

apropriação de habilidades, de métodos de análise ou de resolução de

problemas, etc.

3.Função ideológica e cultural: é a função mais antiga. A partir do

século XIX, com a constituição dos estados nacionais e com o

desenvolvimento, nesse contexto, dos principais sistemas educativos, o

livro didático se afirmou como um dos vetores essenciais da língua,

da cultura e dos valores das classes dirigentes. Instrumento

privilegiado de construção de identidade, geralmente ele é

reconhecido, assim como a moeda e a bandeira, como um símbolo da

soberania nacional e, nesse sentido, assume importante papel

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político. Essa função, que tende a aculturar – e, em certos casos, a

doutrinar – as novas gerações, pode se exercer de maneira explícita,

até mesmo sistemática e ostensiva, ou, ainda, de maneira dissimulada,

sub-reptícia, implícita, mas não menos eficaz.

4.Função documental: acredita-se que o livro didático pode fornecer,

sem que sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos,

textuais ou icônicos, cuja observação ou confrontação podem vir a

desenvolver o espírito crítico do aluno. Essa função surgiu muito

recentemente na literatura escolar e não é universal: só é encontrada

– afirmação que pode ser feita com muitas reservas – em ambientes

pedagógicos que privilegiam a iniciativa pessoal da criança e visam a

favorecer sua autonomia; supõe, também, um nível de formação

elevado dos professores” (CHOPPIN, 2004, p. 553).

Sem dúvida, o recurso pedagógico representado pelo livro didático tem muito a

contribuir na estruturação e desenvolvimento das atividades na escola. Ele pode

apresentar uma síntese escolhida lógica e adequadamente ordenada, dos conhecimentos

de determinada área, pois pode conter um conjunto de exercícios e atividades a ser

proposto aos alunos, além de possuir grande valor afetivo para quem os utiliza. Desta

forma, o livro didático deve ser considerado importante instrumento como fonte de

pesquisa para historiadores em educação matemática. A pesquisadora brasileira Circe

Bittencourt (2004) também nos fala das diversas interferências na elaboração e usos do

livro didático. De acordo com ela, o livro didático caracteriza-se por ser um suporte de

conhecimentos escolares, suporte de métodos pedagógicos, veículo de sistema de

valores e, também, uma mercadoria. A autora sintetiza:

“As pesquisas e reflexões sobre o livro didático permitem apreendê-lo

em sua complexidade. Apesar de ser um objeto bastante familiar e de

fácil identificação, é praticamente impossível defini-lo. Pode-se

constatar que o livro didático assume ou pode assumir funções

diferentes, dependendo das condições, do lugar e do momento em que

é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares. Por ser um

objeto de ‘múltiplas facetas’, o livro didático é pesquisado enquanto

produto cultural; como mercadoria ligada ao mundo editorial e

dentro da lógica de mercado capitalista; como suporte de

conhecimentos e de métodos de ensino das diversas disciplinas e

matérias escolares; e, ainda, como veículo de valores, ideológicos ou

culturais” (BITTENCOURT, 2004b, p. 471).

De igual forma, podemos dizer que a história da matemática deve estar presente

em sala de aula, mas não sem o conhecimento da dimensão histórica contida nas ações

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dos professores que usa do livro. Contudo, contar história não é apenas relatar um fato,

pois Prado (1990) afirma que “fatos isolados não fazem história”. Na realidade deve-se

mostrar aos estudantes a importância de cada conteúdo aprendido e que tais conteúdos

não surgiram à toa. Todavia, é necessário ter o cuidado de não exaltar ou desprezar

alguma figura histórica ou algum fato histórico, pois por trás de cada informação há o

trabalho de vários cientistas realizado por meio de sua coragem, aventuras e lágrimas;

portanto, que o objetivo não seja o de chamar a atenção dos estudantes.

Segundo Bittencourt (2004, p. 302), a autora diz que na função de suporte de

métodos pedagógicos, associando conteúdo e método, o livro didático caracteriza-se por

“[...] conter exercícios, atividades, sugestões de trabalhos individuais ou em grupo e de

formas de avaliação do conteúdo escolar”. Acrescenta ainda a autora: “[...] juntamente

com essas dimensões técnicas e pedagógicas, o livro didático precisa ser entendido

como veículo de sistemas de valores, de ideologias, de uma cultura de determinada

época e de determinada sociedade”.

Percebemos ainda que como suporte de conhecimentos escolares, o livro

didático se torna uma ‘cartilha’ das propostas curriculares do Estado e nas palavras de

Bittencourt vemos que:

“essa característica faz que o Estado esteja sempre presente na

existência do livro didático: interfere indiretamente na elaboração

dos conteúdos escolares veiculados por ele e posteriormente

estabelecem critérios para avaliá-los, seguindo, na maior parte das

vezes, os pressupostos dos currículos escolares institucionais. Como

os conteúdos propostos pelos currículos são expressos pelos textos

didáticos, o livro torna-se um instrumento fundamental na própria

constituição dos saberes escolares” (BITTENCOURT, 2004, p. 301-

2).

Atribuindo-se ao livro didático o caráter de objeto histórico, que deve ser

entendido e compreendido com um todo nas relações que apresenta entre texto e

imagem e são inúmeros os sujeitos inseridos em sua composição e produção, pois vai

desde o escritor, o ilustrador, o editor. Não esquecendo que o editor, por exemplo, atua

na produção, elaboração e comercialização de um livro (CHOPPIN, 2004, p. 553-554).

Não perdendo de vista também o que alerta Roger Chartier quando diz que o livro

didático está carregado de representações sociais que, segundo ele:

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“não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e

práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma

autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um

projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as

suas escolhas e condutas” (CHARTIER, 1999, p. 17).

Enfim, independentemente da questão relacionada à definição de sua autoria,

não se pode conceber o livro didático como um simples objeto e documento histórico,

mas deve-se concebê-lo também, “como um produto fabricado, comercializado,

distribuído ou, ainda, como um utensílio concebido em função de certos usos,

consumido – e avaliado – em um determinado contexto” (CHOPPIN, 2004, p. 554),

sem neutralidade diante das representações sociais apresentadas em sua própria

materialidade, nos seus usos e nas práticas de leituras plurais que o caracterizam como

tal. Assim, podemos dizer que o livro didático é um instrumento multifacetado e por

isso é compreendido como objeto cultural, cujas possibilidades são plurais.

CONCLUSÃO

Nesta proposta do artigo, foram apresentadas algumas fundamentações teóricas

como de Certeau e Choppin acerca das pesquisas históricas sobre livros didáticos e

produção historiográfica; assim como, pude discutir sobre a utilização dos livros

didáticos como fontes privilegiadas para a escrita histórica onde o livro não é mais um

instrumento neutro, mas sim um produto humano que foi afetado pelas condições

sociais, econômicas, políticas e culturais. Deste modo, é preciso uma análise mais que

somente conteudista porque é um objeto multifacetado e complexo de representação

social e cultural.

Salientou-se um breve histórico sobre algumas orientações dos PCN (Parâmetros

Curriculares Nacionais) e PNLEM (Programa Nacional do Livro no Ensino Médio) para

os livros didáticos; assim como, a utilização da História da Matemática como recurso

pedagógico apontando o caminho para que o professor conheça profundamente o tópico

histórico que deseja apresentar aos alunos, para que possa segurar as discussões

provadas por eles, no ato da realização das atividades. Ampliou-se a reflexão com

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diversificados autores como Chartier, Chervel e Bittencourt sobre o papel dos livros

como fontes históricas que revelam parte de um processo de socialização, de

aculturação e de doutrinação por meio da análise das relações existentes entre gêneros

textuais, imagens e formas editoriais/autoria.

E, houve destaque para a história da matemática que pode e deve ser abordada

de diferentes formas pelos educadores, perpassando pelo livro didático. Não há regra,

pois caberá a cada professor utilizar-se deste recurso pedagógico da maneira mais

coerente e consciente que lhe convier nos momentos oportunos. Talvez para introduzir

um novo conceito, ou no decorrer da aula mencionar fatos da vida de um matemático.

Ou, outra sugestão seria de acordo com os conteúdos buscar aprofundar por meio de

contextualizações interdisciplinares um acontecimento histórico matemático que venha

contribuir de forma cultural para os conhecimentos dos estudantes em outras áreas.

REFERÊNCIAS

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In: ABREU, Márcia. Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado das

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________, C. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

________, C. O saber Histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2001.

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