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O Lustre

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Page 1: O Lustre

Resenha do livro: “O Lustre”

Depois do primeiro romance, Clarice casou-se, viajou à Europa junto do marido

para o serviço diplomático e começou, ainda no Rio, o livro que só terminaria

em Nápoles, um ano depois: O Lustre – romance que encontraria grande

dificuldade para ser publicado – é considerado o romance mais estranho de

Clarice. É sua obra menos traduzida, e embora Clarice seja o escritor brasileiro

mais estudado de seu século no exterior, há notavelmente poucos trabalhos

críticos sobre O Lustre. No entanto, a dificuldade do livro é, de certo modo, o

que o faz permanecer na mente do leitor. Clarice dizia que seus livros

melhoravam ao serem relidos, e isso é verdade com relação a O lustre.

À diferença de seu primeiro romance, pulando a todo momento de uma cena

para outra, O Lustre é coerente, linear. Embora seus longos manifestos tenham

o intuito de descrever os elementos de determinada cena, eles consistem

quase inteiramente em longos monólogos interiores, interrompidos apenas pelo

ocasional e dissonante fragmento de diálogo ou ação. O livro avança em

pequenas ondas que quebram em momentos de revelação. As páginas entre

essas epifanias são o momento em que o livro é mais intolerável para o leitor,

que é obrigado a seguir o movimento interior de outra pessoa em detalhes tão

microscópicos. Assim, o leitor que se aproxima do livro pela primeira vez acaba

se frustrando rapidamente. O livro é denso demais para ser lido com a atenção

dividida, e a concentração que exige é exaustiva. Somente quando lido

devagar e de maneira reflexiva e sem dispersões, duas ou cinco páginas por

vez, O Lustre revela seu caráter penetrante.

Este romance presta-se ainda menos do que os demais livros de Clarice a uma

descrição de seu enredo e de seus personagens. Os nomes são todos vagos,

assim como a própria trama. O drama da vida de Virgínia, que é a história do

livro, é quase inteiramente interior, embora volta e meia seja abalado pelo

exterior; tais abalos são os fragmentos de diálogos, as pessoas e eventos

externos que perturbam sua existência espectral. Como em tantos livros de

Clarice, a verdadeira tensão vem da tentativa do indivíduo de proteger seu

mundo interior dos ataques de fora.

Virgínia é incapaz de participar da vida normal. Nada pode remediar seu

isolamento: nem a mudança do campo para a cidade, nem família, nem sexo,

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nem amizade. Isso ocorre porque o mundo exterior não existe para Virgínia. A

liberdade da personagem vem de dentro de si.

As tentativas de Virgínia de fazer contato com o mundo exterior acabam, sem

exceção, em fracasso; nas últimas páginas do livro ela é atropelada por um

carro. O simbolismo, nada sutil, é recorrente na obra de Clarice (vide a resenha

do livro Perto do Coração Selvagem). As reverberações das histórias contadas

por Clarice à sua mãe são bastante claras. O tema atravessou sua vida toda.

Em seu ultimo romance A Hora da Estrela, a protagonista é atropelada por um

Mercedes.

Além de Virgínia, há outra presença que, volta e meia, vem à luz diante dos

fatos narrados ao longo do livro: Daniel, irmão mais velho de Virgínia e

representante-criador da Sociedade das Sombras, que marcou a infância da

personagem e de seus familiares. A Sociedade (na verdade Daniel) dá ordens

para que a jovem Virgínia se guarde em silêncio e solidão para que possa

conhecer-se melhor – e assim, pela presença insistente e marcante de Daniel

ao longo do livro, subintende-se que houvera um caso incestuoso entre os dois

irmãos na infância.

A exemplo de Joana de Perto do Coração Selvagem, Virgínia tem sua vida

contada desde a infância até a vida adulta; porém, enquanto Virgínia comete

“maldades” graças à influencia da Sociedade das Sombras e de Daniel, tais

“maldades” são cometidas quase inconscientemente por Joana: neste sentido,

Joana já é livre, e Virgínia, contrastando com isso, ainda precisa ir em busca de

sua liberdade. Virgínia, assim como Joana, existe fora do mundo convencional

de beleza e feiura, virtude e pecado. Mas, se os atos de Joana são

espontâneos e naturais, Virgínia, sob a influência de Daniel, requer instruções,

pois estes atos são contrários a sua natureza – delicada e reservada, e não

temperamental e explosiva como a natureza de Joana.

Quaisquer que sejam suas origens, causas ou resultados, todas as relações de

Virgínia com o mundo exterior requerem um grande esforço, e ela labuta para

alcançar a independência que vem naturalmente para Joana.

Com relação ao romance anterior, O Lustre perde o dinamismo da narrativa

com a alteração dos tempos que havia em Perto do Coração Selvagem, ao

adotar uma narração mais linear. Além disso, enquanto os diálogos do primeiro

livro eram fluídos, excitantes e brutais (violentos), O Lustre apresenta diálogos

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difíceis, escassos, truncados e “fechados” a meros apontamentos que só

servem para que se interrompa o aparente interminável fluxo de pensamentos

de Virgínia. Todavia, ganha-se, na riqueza de descrições psicológicas de

Virgínia – o que também contrapõe a precariedade em descrições físicas das

personagens.

A infância passada junto da família na casa da avó na Granja Quieta, perto de

Brejo Alto, não é menos emocionante do que a vida que tem quando adulta na

cidade junto de Daniel, que posteriormente se casa. Após o casamento do

irmão, Virgínia passa a morar com as tias, indo depois para uma pensão até ir

morar num pequeno apartamento de um prédio “de respeito” da cidade. No

tempo em que viveu na cidade, Virgínia não satisfez suas ansiedades, embora

tenha passado por várias experiências amorosas durante este período.

De qualquer maneira, Virgínia torna-se o signo de seu estranhamento com

relação ao outro e ao mundo no seu difícil processo de um ser que, lenta e

dolorosamente, se forma, consciente de que, na verdade, trata-se de uma

mulher à procura de si mesma sem se encontrar.

Após mais um relacionamento que não deu frutos, Virgínia volta à casa da

família em Granja Quieta, onde encontra a avó morta e a família sem

estruturas. Assim, despede-se de todos e volta mais uma vez para a cidade –

todavia, já a caminho do apartamento, lembra-se de que não se despedira do

lustre que havia na sala de visitas do velho casarão em Granja Quieta: e este

lustre simboliza sua ligação ao passado e à família. Assim, livre da família e de

tudo, Virgínia prepara-se para dar o primeiro passo rumo à liberdade total, e

encontra a plenitude quando é acertada em cheio pelo carro que a mata,

encerrando sua história.

Neste livro, Clarice ainda está tateando à procura de sua linguagem, que ela

ainda não domina completamente, mas o êxtase da busca é o estado mais

elevado que Virgínia, Clarice e o próprio leitor atingem. E esta é a mensagem:

muitas vezes, o buscar algo, gera mais frutos do que encontrar algo.