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nicolasneves
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Resenha do livro: “O Lustre”
Depois do primeiro romance, Clarice casou-se, viajou à Europa junto do marido
para o serviço diplomático e começou, ainda no Rio, o livro que só terminaria
em Nápoles, um ano depois: O Lustre – romance que encontraria grande
dificuldade para ser publicado – é considerado o romance mais estranho de
Clarice. É sua obra menos traduzida, e embora Clarice seja o escritor brasileiro
mais estudado de seu século no exterior, há notavelmente poucos trabalhos
críticos sobre O Lustre. No entanto, a dificuldade do livro é, de certo modo, o
que o faz permanecer na mente do leitor. Clarice dizia que seus livros
melhoravam ao serem relidos, e isso é verdade com relação a O lustre.
À diferença de seu primeiro romance, pulando a todo momento de uma cena
para outra, O Lustre é coerente, linear. Embora seus longos manifestos tenham
o intuito de descrever os elementos de determinada cena, eles consistem
quase inteiramente em longos monólogos interiores, interrompidos apenas pelo
ocasional e dissonante fragmento de diálogo ou ação. O livro avança em
pequenas ondas que quebram em momentos de revelação. As páginas entre
essas epifanias são o momento em que o livro é mais intolerável para o leitor,
que é obrigado a seguir o movimento interior de outra pessoa em detalhes tão
microscópicos. Assim, o leitor que se aproxima do livro pela primeira vez acaba
se frustrando rapidamente. O livro é denso demais para ser lido com a atenção
dividida, e a concentração que exige é exaustiva. Somente quando lido
devagar e de maneira reflexiva e sem dispersões, duas ou cinco páginas por
vez, O Lustre revela seu caráter penetrante.
Este romance presta-se ainda menos do que os demais livros de Clarice a uma
descrição de seu enredo e de seus personagens. Os nomes são todos vagos,
assim como a própria trama. O drama da vida de Virgínia, que é a história do
livro, é quase inteiramente interior, embora volta e meia seja abalado pelo
exterior; tais abalos são os fragmentos de diálogos, as pessoas e eventos
externos que perturbam sua existência espectral. Como em tantos livros de
Clarice, a verdadeira tensão vem da tentativa do indivíduo de proteger seu
mundo interior dos ataques de fora.
Virgínia é incapaz de participar da vida normal. Nada pode remediar seu
isolamento: nem a mudança do campo para a cidade, nem família, nem sexo,
nem amizade. Isso ocorre porque o mundo exterior não existe para Virgínia. A
liberdade da personagem vem de dentro de si.
As tentativas de Virgínia de fazer contato com o mundo exterior acabam, sem
exceção, em fracasso; nas últimas páginas do livro ela é atropelada por um
carro. O simbolismo, nada sutil, é recorrente na obra de Clarice (vide a resenha
do livro Perto do Coração Selvagem). As reverberações das histórias contadas
por Clarice à sua mãe são bastante claras. O tema atravessou sua vida toda.
Em seu ultimo romance A Hora da Estrela, a protagonista é atropelada por um
Mercedes.
Além de Virgínia, há outra presença que, volta e meia, vem à luz diante dos
fatos narrados ao longo do livro: Daniel, irmão mais velho de Virgínia e
representante-criador da Sociedade das Sombras, que marcou a infância da
personagem e de seus familiares. A Sociedade (na verdade Daniel) dá ordens
para que a jovem Virgínia se guarde em silêncio e solidão para que possa
conhecer-se melhor – e assim, pela presença insistente e marcante de Daniel
ao longo do livro, subintende-se que houvera um caso incestuoso entre os dois
irmãos na infância.
A exemplo de Joana de Perto do Coração Selvagem, Virgínia tem sua vida
contada desde a infância até a vida adulta; porém, enquanto Virgínia comete
“maldades” graças à influencia da Sociedade das Sombras e de Daniel, tais
“maldades” são cometidas quase inconscientemente por Joana: neste sentido,
Joana já é livre, e Virgínia, contrastando com isso, ainda precisa ir em busca de
sua liberdade. Virgínia, assim como Joana, existe fora do mundo convencional
de beleza e feiura, virtude e pecado. Mas, se os atos de Joana são
espontâneos e naturais, Virgínia, sob a influência de Daniel, requer instruções,
pois estes atos são contrários a sua natureza – delicada e reservada, e não
temperamental e explosiva como a natureza de Joana.
Quaisquer que sejam suas origens, causas ou resultados, todas as relações de
Virgínia com o mundo exterior requerem um grande esforço, e ela labuta para
alcançar a independência que vem naturalmente para Joana.
Com relação ao romance anterior, O Lustre perde o dinamismo da narrativa
com a alteração dos tempos que havia em Perto do Coração Selvagem, ao
adotar uma narração mais linear. Além disso, enquanto os diálogos do primeiro
livro eram fluídos, excitantes e brutais (violentos), O Lustre apresenta diálogos
difíceis, escassos, truncados e “fechados” a meros apontamentos que só
servem para que se interrompa o aparente interminável fluxo de pensamentos
de Virgínia. Todavia, ganha-se, na riqueza de descrições psicológicas de
Virgínia – o que também contrapõe a precariedade em descrições físicas das
personagens.
A infância passada junto da família na casa da avó na Granja Quieta, perto de
Brejo Alto, não é menos emocionante do que a vida que tem quando adulta na
cidade junto de Daniel, que posteriormente se casa. Após o casamento do
irmão, Virgínia passa a morar com as tias, indo depois para uma pensão até ir
morar num pequeno apartamento de um prédio “de respeito” da cidade. No
tempo em que viveu na cidade, Virgínia não satisfez suas ansiedades, embora
tenha passado por várias experiências amorosas durante este período.
De qualquer maneira, Virgínia torna-se o signo de seu estranhamento com
relação ao outro e ao mundo no seu difícil processo de um ser que, lenta e
dolorosamente, se forma, consciente de que, na verdade, trata-se de uma
mulher à procura de si mesma sem se encontrar.
Após mais um relacionamento que não deu frutos, Virgínia volta à casa da
família em Granja Quieta, onde encontra a avó morta e a família sem
estruturas. Assim, despede-se de todos e volta mais uma vez para a cidade –
todavia, já a caminho do apartamento, lembra-se de que não se despedira do
lustre que havia na sala de visitas do velho casarão em Granja Quieta: e este
lustre simboliza sua ligação ao passado e à família. Assim, livre da família e de
tudo, Virgínia prepara-se para dar o primeiro passo rumo à liberdade total, e
encontra a plenitude quando é acertada em cheio pelo carro que a mata,
encerrando sua história.
Neste livro, Clarice ainda está tateando à procura de sua linguagem, que ela
ainda não domina completamente, mas o êxtase da busca é o estado mais
elevado que Virgínia, Clarice e o próprio leitor atingem. E esta é a mensagem:
muitas vezes, o buscar algo, gera mais frutos do que encontrar algo.