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ISSN 1980-9824 | Volume VIII Ano 7 | Outubro de 2012 www.revistaancora.com.br O MAL NA BIBLIA: A Personificação do Mal nos Escritos do Período Helênico aos Escritos do Cristianismo Primitivo Prof. Me. Marcelo da Silva Carneiro 1 Resumo: A questão do mal apresentado no ambiente judaico-romano é resultado do diálogo cultural entre vários pensamentos e cosmovisões. Nesse artigo se pretende mapear a forma como o mal foi denominado e citado nos escritos judaicos pós-exílicos tardios, no período helenísticos, e desembocando na literatura cristã primitiva. É possível perceber mutações nos conceitos, influências e tentativas diversas de dar conta da experiência do mal na vida humana. Palavras-chave: Mal; Helenismo; Cristianismo Primitivo; Escritos Apócrifos; Escritos Canônicos. Abstract: The question of evil presented in the Judeo-Roman environment is the result of cultural dialogue between various thoughts and worldviews. This article intends to map how the evil was named and quoted in Jewish writings late postexilic in the Hellenistic period, and reaching the early Christian literature. We can see changes in the concepts, influences and various attempts to cope with the experience of evil in human life. Keywords: Evil; Helenism; Early Christianity; Apocryphal Writings; Canonical Writings. 1 Mestre em Teologia pela PUC-RJ, Doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Professor de Novo Testamento e Pastor Metodista. E-mail: [email protected]

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  • ISSN 1980-9824 | Volume VIII Ano 7 | Outubro de 2012

    www.revistaancora.com.br

    O MAL NA BIBLIA: A Personificao do Mal nos Escritos do Perodo

    Helnico aos Escritos do Cristianismo Primitivo

    Prof. Me. Marcelo da Silva Carneiro1

    Resumo:

    A questo do mal apresentado no ambiente judaico-romano resultado do dilogo cultural

    entre vrios pensamentos e cosmovises. Nesse artigo se pretende mapear a forma como o

    mal foi denominado e citado nos escritos judaicos ps-exlicos tardios, no perodo

    helensticos, e desembocando na literatura crist primitiva. possvel perceber mutaes nos

    conceitos, influncias e tentativas diversas de dar conta da experincia do mal na vida humana.

    Palavras-chave: Mal; Helenismo; Cristianismo Primitivo; Escritos Apcrifos; Escritos

    Cannicos.

    Abstract:

    The question of evil presented in the Judeo-Roman environment is the result of cultural

    dialogue between various thoughts and worldviews. This article intends to map how the evil

    was named and quoted in Jewish writings late postexilic in the Hellenistic period, and

    reaching the early Christian literature. We can see changes in the concepts, influences and

    various attempts to cope with the experience of evil in human life.

    Keywords: Evil; Helenism; Early Christianity; Apocryphal Writings; Canonical Writings.

    1 Mestre em Teologia pela PUC-RJ, Doutorando em Cincias da Religio pela UMESP. Professor de Novo

    Testamento e Pastor Metodista. E-mail: [email protected]

  • 2

    1. INTRODUO

    O mal uma realidade que figura no imaginrio humano desde tempos ancestrais, e

    que recebe diferentes designaes e explicaes, dependendo do contexto social e do lugar

    histrico dentro do qual ele for referido. No seria diferente, portanto, no ambiente semita que

    gerou os textos bblicos e, posteriormente, no ambiente cristo judaico-helenista. Essa

    profuso de culturas, que vo desde os antigos hebreus e seu contato com os cananeus,

    egpcios, babilnios, persas, gregos e romanos, define a forma como os textos bblicos

    explicam o fenmeno do mal, ora mostrando-o de maneira personalizada, ora indicando-o

    como um fato da vida, que est sob controle de Deus. Visto assim, no de surpreender que o

    mal tenha tido diferentes maneiras de ser visto e explicado.

    At o perodo da dominao grega, pode-se falar que a concepo do mal de uma

    fora vinculada a Jav, e que obedece s suas ordens. Por outro lado, como um fato vinculado

    ao pecado. Mas essa viso geral, que no cabe maior aprofundamento nesse trabalho, d lugar

    a uma nova viso, mais personalista e antagnica a Deus, a partir da dominao grega. Os

    gregos trouxeram para o oriente novas concepes cosmolgicas, dentre as quais a ideia de

    deuses malvados, que conspiravam contra os seres humanos. Os persas, em sua concepo

    dicotmica das divindades deuses antagnicos que lutavam entre si, no embate entre o bem

    e o mal j permitiram uma mudana importante nesse cenrio.

    Entretanto, h que se perceber que no fundo, a cosmogonia israelita e sua concepo

    de teodiceia desde cedo interpretaram o diferente como o antagnico, o ameaador, o inimigo.

    A princpio esse outro era um povo como em Abrao, Moiss e nos profetas mas depois o

    contato com a mitologia cananeia permitiu que os escritores projetassem nos monstros e

    divindades essa ideia do antagnico. Assim, pode-se falar num processo de viso binria do

    mundo, mesmo antes da influncia persa e grega. Vrios antroplogos observaram que a

    viso de mundo da maioria dos povos consiste basicamente de dois pares de opostos binrios:

    humano/no-humano e ns/eles. (Pagels, 1996, p. 63).

    A dominao grega sobre o mundo judaico, egpcio e persa reforou certos conceitos,

    dentre eles a personificao do mal, de um modo novo em relao aos escritos do perodo pr

    e mesmo ps-exlico. A anlise a seguir ser focada nos textos ps-exlicos tardios,

    precisamente o perodo de dominao grega, bem como nos pseudoepgrafos que surgiram

  • 3

    nesse perodo, resultado da fora da mentalidade apocalptica. Alm disso, ser avaliada a

    forma com os textos cannicos do Novo Testamento se referem a essa personificao.

    2. A PERSONIFICAO DO MAL NOS TEXTOS PS-EXLICOS TARDIOS

    J nos textos cannicos podem ser identificados elementos dessa personificao do

    mal em diversos trechos, indicando mudanas importantes na forma de apresenta-los, bem

    como de mostrar seu papel na teodiceia hebraica. Um bom exemplo disso Satans, cujo

    significado vem da hebraica palavra satan [adversrio, acusador]. Nos textos mais antigos era

    a designao para uma pessoa que se colocava como adversrio, como em 1Rs 11.14:

    Levantou o SENHOR contra Salomo um adversrio [satan], Hadade, o edomita; este era

    da linhagem real de Edom. (Verso Almeida Revista e Atualizada)2, ou mesmo um anjo de

    Jav, como em Nm 22.22: Acendeu-se a ira de Deus, porque ele se foi; e o Anjo do

    SENHOR ps-se-lhe no caminho por adversrio. Ora, Balao ia caminhando, montado na

    sua jumenta, e dois de seus servos, com ele.. Depois disso a narrativa parte para o confronto

    entre homem e animal; a jumenta empaca, por trs vezes, diante da presena do anjo satan,

    que ameaa com uma espada. Curiosamente, o comentrio da Midrash judaica o denomina

    como anjo misericordioso, ignorando a expresso satan, como se no fosse relevante3.

    Posteriormente que o personagem Satans ganha uma conotao personalista, como

    no livro de J, que ps-exlico. Nele, Satans [hasatan] um personagem que vai corte

    celestial se apresentar diante de Jav, numa condio de adversrio dos homens:

    6 E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o

    SENHOR, veio tambm Satans entre eles.

    7 Ento o SENHOR disse a Satans: Donde vens? E Satans

    respondeu ao SENHOR, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.

    8 E disse o SENHOR a Satans: Observaste tu a meu servo J? Porque

    ningum h na terra semelhante a ele, homem ntegro e reto, temente a

    Deus, e que se desvia do mal.

    2 Todas as citaes bblicas seguiro a traduo Almeida Revista e Atualizada, citada de Bibleworks 5.0. As

    citaes com fonte diferente sero identificadas. 3 Cf. http://www.pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/921256/jewish/Os-Estranhos-Acontecimentos-Durante-a-

    Viagem-de-Bilam.htm. Acesso em 31/01/2012.

  • 4

    9 Ento respondeu Satans ao SENHOR, e disse: Porventura teme J a

    Deus debalde? 10

    Porventura tu no cercaste de sebe, a ele, e a sua

    casa, e a tudo quanto tem? A obra de suas mos abenoaste e o seu

    gado se tem aumentado na terra. 11

    Mas estende a tua mo, e toca-lhe

    em tudo quanto tem, e vers se no blasfema contra ti na tua face.

    No caso do livro de J, no temos ainda um adversrio conclusivo contra Deus, mas

    uma espcie de desafiante, que jocosamente fala do homem J. Pelo contrrio, o relato indica

    que Deus permite que Satans leve a frente o desafio, tocando em seus bens, filhos e na sua

    sade. O curioso que ao final da histria, e mesmo durante todo o restante do livro, no se

    fala mais de Satans. Seria um recurso para tirar o escndalo da maldade perpetuada por Jav

    contra um inocente? Eis a uma das questes que as teodiceias hebraicas e posteriormente

    crists tentaram dar conta, mas tiveram dificuldades: o mal sobrevm sobre os inocentes por

    autorizao de Deus, ou por alguma limitao? Uma das sadas para o problema foi

    exatamente a personificao de Satans, colocando-o como um adversrio do prprio Deus,

    que odeia sua criao, em especial o ser humano.

    Outra referncia importante a Satans ocorre em Zc 3.1-3:

    1 E ELE mostrou-me o sumo sacerdote Josu, o qual estava diante do

    anjo do SENHOR, e Satans estava sua mo direita, para se lhe opor.

    2 Mas o SENHOR disse a Satans: O SENHOR te repreenda,

    Satans, sim, o SENHOR, que escolheu Jerusalm, te repreenda; no

    este um tio tirado do fogo?

    3 Josu, vestido de vestes sujas, estava diante do anjo.

    H um claro contexto de juzo, uma mudana na forma como satan representado:

    de agente e mensageiro de Deus, como no comeo, se transforma em adversrio de Deus. O

    adversrio humano vai se transformando em inimigo de Deus. O mal transcende o humano,

    para se propor como uma entidade autnoma, contraposta a Deus. (Schiavo, 2000, p. 72).

    Em Isaas 14.12ss apresentado um personagem de nome Helel ben Shhar,

    identificado por alguns como Lcifer. Vem de uma raiz que significa ser, luminoso,

    brilhante (TEB, 1994, p. 628):

  • 5

    12 Como caste do cu, estrela da manh, filho da alva! Como foste

    lanado por terra, tu que debilitavas as naes! 13

    Tu dizias no teu

    corao: Eu subirei ao cu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu

    trono e no monte da congregao me assentarei, nas extremidades do

    Norte; 14

    subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao

    Altssimo. 15

    Contudo, sers precipitado para o reino dos mortos, no

    mais profundo do abismo.

    Ezequiel cita a queda de um ser (Ez 28.2-12) semelhante: Tu eras o querubim, ungido

    para cobrir, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas

    andavas. (v. 14). Tanto Isaas quanto Ezequiel parecem aludir a uma tradio mitolgica:

    nos textos de Ugarit, o deus Attar, concorrente de Baal, sofreu uma queda semelhante de

    Helel. (TEB, 1994, p. 628).

    Em Daniel 10.12s registra um episdio curioso:

    12 Ento, me disse: No temas, Daniel, porque, desde o primeiro dia

    em que aplicaste o corao a compreender e a humilhar-te perante o

    teu Deus, foram ouvidas as tuas palavras; e, por causa das tuas

    palavras, que eu vim. 13

    Mas o prncipe do reino da Prsia [shar

    malkut paras] me resistiu por vinte e um dias; porm Miguel, um dos

    primeiros prncipes, veio para ajudar-me, e eu obtive vitria sobre os

    reis da Prsia.

    No episdio, um anjo responsvel por trazer a resposta de orao foi impedido durante

    vinte e um dias por uma entidade shar malkut paras (capito, oficial, prncipe do reino da

    Persia) que s foi derrotada com a ajuda de Miguel o arcanjo que na tradio apocalptica

    tem muita fora e parece ser o maioral dos anjos celestes. Aqui j entram fortes elementos

    personalistas, com anjos nomeados e com atribuies definidas.

    A tradio de Daniel ser responsvel, por isso mesmo, pela ebulio das imagens

    angelicais e demonacas, tendo em vista que sua recepo foi rpida ( um escrito datado pelo

    menos do 2 sc a.C.; cf. Koester, 2005, p. 259) que tinha forte apelo popular no tempo de

    Jesus, e que foi admitido como cannico pelos judeus no sculo primeiro, no processo de

    formao da Tanak (coleo que depois tornou-se o Antigo Testamento cristo).

  • 6

    Assim, a ideia de Satans, como um ser inimigo de Deus algo crescente no perodo

    ps-exlico, nos textos cannicos. Esse conceito ser reforado nos escritos hebraicos

    apcrifos, difundidos tanto por meio dos escritos de Qumran, quanto por outros lugares, mas

    que tiveram forte influncia no imaginrio judaico e cristo posterior.

    3. A PERSONIFICAO DO MAL NOS ESCRITOS DO PERODO HELENSTICO

    Os textos judaico-helensticos ampliaram o tema que aparece velado nos textos

    cannicos, o dos seres celestiais decados. Os textos cannicos no narram ou citam com

    clareza a questo, visto que na tradio hebraica mais antiga os anjos sempre estavam a

    servio de Jav, e no processo intermedirio Satans um ser independente, mas no

    claramente antagnico a Deus. Essa mudana completa, em que passam a existir anjos

    decados, inimigos de Deus, pode ser explicada na situao da revolta dos Macabeus no sc. 2

    a.C., diante das inmeras aes negativas de Antoco IV Epfanes. A revolta trouxe uma

    fragmentao da sociedade judaica, onde disputas pelo poder parecem ter se acirrado,

    juntamente com a formao de grupos distintos, gerando tenses resultantes da competio

    com vrias tradies culturais mais antigas dentro do processo de helenizao (Koester, 2005,

    p. 229). Essa diversidade permitiu o desenvolvimento de uma nova linguagem apocalptica

    permeada por figuras anglicas e demonacas; nessa, o tema de anjos cados recorrente, bem

    como a hierarquizao anglica. Isso permitiu uma cristalizao na imagem personificada do

    mal, assim como tambm das foras do bem.

    No escrito O Primeiro Livro de Enoque, a partir do Livro VI descreve como os seres

    angelicais cados ou demnios enganam os seres humanos. Na parte chamada Livro dos

    Vigilantes influncia da mitologia grega, onde deuses e humanos se entrelaavam em

    brigas, competies, rivalidades, etc. e da astronomia persa na cultura e religio judaicas,

    interpretadas e condenadas pelos judeus tradicionais como obra de Satans. (Schiavo, 2000,

    p. 74). Segundo Elaine Pagels, pode ser resultado da reflexo macabaica aps sua vitria em

    160 a.C. [alguns autores apontam para 167], tendo como alvo os usurpadores do templo

    (Pagels, 1996, p. 81).

    A narrativa fala principalmente de Azazel, que aparece como um ser que seduz a raa

    humana com o domnio do fogo, para forjar os metais em armas e adornos. Alm disso, outros

    seres so descritos como incentivadores da maldade, como se pode ler no trecho do Livro VIII:

  • 7

    1 Azazel ensinou aos homens a confeco de espadas, facas, escudos e

    armaduras, abrindo seus olhos para os metais e para a maneira de

    trabalha-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos, o uso

    dos cosmticos, o embelezamento das plpebras, toda sorte de pedras

    preciosas e a arte das tintas.

    2 E assim grassava uma grande impiedade; eles promoviam a

    prostituio, conduziam aos excessos e eram corruptos em todos os

    sentidos. Semjaza ensinava os esconjuros e as poes de feitios,

    Armaros a dissipao dos esconjuros, Barakijal a astrologia, Kokabel

    a cincia das constelaes, Ezekeel a observao das nuvens, Arakiel

    os sinais da terra, Samsiel os sinais do sol e Sariel as fases da lua.

    (Rodrigues, 2004, p. 261s)4

    A narrativa ento passa a mostrar os arcanjos principais do cu - Miguel, Uriel,

    Raphael e Gabriel que se indignam pelo mal que sobreveio aos humanos pela interferncia

    angelical (Livro IX). Assim, Azazel condenado pelos seus atos, bem como a humanidade,

    no grande dilvio, do qual apenas o filho de Lamech [No] se salvaria. Para Azazel a

    condenao:

    3 E a Raphael disse o Senhor: Amarra Azazel de mos e ps e lana-o

    nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo!

    Deposita pedras speras e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de

    escurido! Deixa-o permanecer l para sempre e veda-lhe o rosto, para

    que no veja a luz!

    4 No dia do grande Juzo ele dever ser arremessado ao tremedal de

    fogo! Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhe a

    Salvao, para que terminem os seus sofrimentos e no se percam

    todos os filhos dos homens, em virtude das coisas secretas que os

    Guardies revelaram e ensinaram aos seus filhos! Toda a terra est

    corrompida por causa das obras transmitidas por Azazel. A ele atribui

    todos os pecados! (Rodrigues, 2004, p. 263)

    4 Todas as citaes de textos apcrifos so de traduo de Claudio J. A. Rodrigues, na obra Apcrifos da Bblia e

    Pseudoepgrafos. Nas citaes ser indicado apenas o nome, ano e pgina, como em outras obras.

  • 8

    Pode-se estabelecer uma releitura da antiga tradio do dilvio, influenciada pelo mito

    sumrio de Gilgamesh, a partir do mito de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dar

    aos homens, e por isso castigado eternamente, tendo uma guia que lhe comia o fgado

    diariamente, o qual se regenerava, para ento sofrer de novo o castigo. Com isso, o relato de

    Azazel mostra como o progresso so contrrios aos desgnios divinos, e v com suspeita todo

    o desenvolvimento urbano, especialmente os aparatos da guerra e o luxo.

    Outro escrito Vida de Ado e Eva, cujo ttulo vem de uma verso latina (Vita Adae et

    Evae) do livro Apocalipse de Moiss, escrito em grego. Faz parte, na verdade, de uma srie de

    obras sobre Ado e Eva, que revelam interesse contnuo pelo significado teolgico da

    histria do primeiro casal que reaparece no somente em textos cristos como Rm 5,12-21,

    mas tambm em textos apocalpticos judaicos posteriores... (Koester, 2005, p. 257). Num

    dos trechos, o texto descreve outra maneira de falar sobre a queda angelical. Segundo ele,

    Deus teria chamado os anjos para adorar ao homem, aps t-lo criado, mas Satans recusou-se,

    afirmando: Por que tu me pressionas? No adorarei quem mais moo do que eu e inferior.

    Sou mais velho do que ele, ele que deve me adorar (14.3 apud. Schiavo, 2000, p. 76).

    Assim, o que seria uma inimizade entre criaturas coloca o Criador na situao de

    questionamento.

    Outra obra desse tema O Primeiro Livro de Ado e Eva, que tambm apresenta a

    personificao do mal em Sat. O Livro XVII,2 mostra que a serpente foi possuda por Sat

    na tentao: Mas ao aproximarem-se dele, defronte do porto oeste, do qual viera Sat

    quando enganou Ado e Eva, encontraram a serpente que se tornara Sat, e que tristemente

    lambia o p e se arrastava com seu peito no cho, por causa da maldio de Deus.

    (Rodrigues, 2004, p. 23). Em outro trecho (XXVII,1ss) o livro faz uma apresentao de Sat,

    com suas hostes, domnio sobre o fogo, e como ele tenta matar Ado e os humilhar uma

    segunda vez. Ali fica evidenciado mais uma vez esse clima de competio:

    1 Quando Sat, aquele que odeia tudo o que bom, viu como eles

    continuavam em orao, como Deus se comunicava com eles e os

    consolava, e como Ele aceitara sua oferenda, Sat criou uma viso.

    2 Ele iniciou transformando suas hostes; em suas prprias mos havia

    um fogo flamejante, e eles estavam envoltos em uma grande luz. ()

  • 9

    4 E Sat fez isto para que quando Ado visse a luz, pensasse consigo

    mesmo que era uma luz celeste, e que as hostes de Sat eram anjos; e

    que Deus os enviara para guardar a caverna e dar-lhes luz na escurido.

    5 Assim, quando Ado sasse da caverna e os visse, e Ado e Eva

    reverenciassem a Sat, ento ele dominaria Ado e humilh-lo-ia pela

    segunda vez diante de Deus. (Rodrigues, 2004, p. 29)

    Em outra obra apocalptica, O Testamento dos Doze Patriarcas, provavelmente escrito

    em grego entre os sculos 1 a.C. e 1 d.C., encontramos outra meno ao mal personificado.

    Trata-se de uma obra helenstica apoiada num gnero literrio mais antigo na tradio israelita,

    a chamada frmula de aliana, em que cada tribo individualizada, e se mostra as virtudes e

    vcios de cada um dos membros. Nos exames que cada Patriarca tenta passar para sua

    descendncia, sempre se trata de algum vcio, ou ento de uma virtude. Curioso o dualismo

    presente no trecho, indicando dois caminhos, da vida ou da morte, de Deus ou de Sat. Na

    parte VII, Testamento de Dan, citado o esprito de Belial, que teria tentado engan-lo para

    matar Jos (Captulo I,2): E um esprito de Belial sussurrou-me dizendo: 'Toma tua espada e

    mata Jos Estando ele morto, o teu pai te amar'. Era o esprito do rancor (...) (Rodrigues,

    2004, p. 371). Em outro trecho do testamento de Dan (Captulo VI,1) ele adverte contra Sat e

    seus espritos: Assim, meus filhos, temei o Senhor! E guardai-vos de Sat e dos seus

    espritos! E aproximai-vos de Deus e do seu Anjo intercessor! Ele o intermedirio entre

    Deus e os homens. E a bem da paz de Israel, ele enfrenta o reino do Inimigo. O Inimigo

    recorre a todas as foras para fazer com que caiam os que invocam o Senhor (Rodrigues,

    2004, p. 373). Esse texto influenciar tanto as produes judaicas quanto crists posteriores,

    incentivando interpolaes, reinterpretaes e at mesmo agindo no imaginrio geral desses

    grupos (Koester, 2005, p. 266).

    Uma obra apocalptica apcrifa de grande repercusso entre os cristos o Livro da

    Ascenso de Isaas. Aparentemente uma obra crist do 1 sc. d.C. que pode ser um texto

    trabalhado em cima de uma tradio anterior. O principal indcio de sua autoria crist est no

    Captulo IV,16: E todos aqueles que tiverem execrado Belial, fieis a Jesus e a seu reino e a

    todos os seus santos, viro junto com o Senhor, trajados com os mesmos hbitos que iro usar

    no stimo cu (...) (Rodrigues, 2004, p. 135s). O livro fala de vrios anjos decados, dentre

    eles o j citado Belial, que foi o responsvel pela morte de Isaas, serrado pelo meio. Ele

  • 10

    domina o corao de Manasss, que perpetua a execuo: E essa a vingana conseguida

    por Belial sobre Isaas por meio de Belakira e Manasss devido ira de Samael contra o

    profeta. (Captulo V, 15. Rodrigues, 2004, p. 137).

    Samael parece ser um servo de Deus, que se tornou servo de Belial, bem como de

    Manasss, conforme o incio do livro (Captulo 1,8): E Samael Malkira servir a Manasss e

    executar todas as suas vontades, e se tornar o discpulo de Belial aps ter sido o meu [de

    Isaas] (Rodrigues, 2004, p. 131). Satans tambm citado, como causador de toda discrdia,

    em VII,9: E subimos, o anjo e eu, ao firmamento, e vi Samael e seus poderes; l estava o

    reino da carnificina e das obras de Satans, da disputa e das discrdia (Rodrigues, 2004, p.

    138).

    O quadro que se forma de Satans nesses textos de um inimigo que no estrangeiro,

    estranho ou distante, mas algum prximo, em quem se confia, e por algum motivo declarado

    como torpe, se volta contra a pessoa ou Deus. Em todo caso, como aponta Elaine Pagels, os

    vigilantes anjos cados do cu levantam toda sorte de inimigos contra Israel, normalmente

    representados como um rebanho de ovelhas. Por trs dessa ideia, no entanto, est o conflito

    interno entre grupos judaicos, mutuamente acusando-se de apostasia (Pagels, 1996, p. 80s).

    4. OS ESCRITOS DE QUMRAN E A PERSONIFICAO DO MAL

    Nos escritos de Qumran h registros que mostram a guerra escatolgica entre o

    Messias e Belial com suas hostes de demnios. Houve por parte do povo uma identificao

    com essa proposta, por isso h ecos dessa expectativa nos evangelhos: s tu aquele que h de

    vir ou devemos esperar outro? (Lc 7.19//Mt 11.2). Essa guerra se estende aos filhos das

    Trevas contra os filhos da Luz (Rolo da Guerra, 1QM I,9-11). Os espritos e anjos divinos e

    maus no so mediadores entre Deus e o mundo humano, mas poderes em ao nas esferas

    celestes e terrestre, cujas aes so anlogas aos eventos escatolgicos que acontecem no

    reino humano (Koester, 1995, p. 238).

    Segundo Elaine Pagels, se Satans j no existisse na tradio judaica, os essnios o

    teriam inventado. (1996, p. 88). Isso se deve pela maneira como esse grupo lidou com a

    opresso estrangeira, e especialmente com a atitude conformista de famlias sacerdotais, bem

    como das autoridades judaicas. Por isso a comunidade saiu da convivncia com o povo da

    Judia, e se isolou num conjunto de construes escavadas em pedra em Kirbet Qumran,

  • 11

    prximo ao Mar Morto; considera-se que essa comunidade de Qumran so os essnios, pela

    proximidade com as caractersticas destes ltimos so indicadas por Flavio Josefo5, alm de

    outros autores da Antiguidade.

    A comunidade essnia se considerava o verdadeiro povo de Deus, a

    aliana renovada dos ltimos dias. A fixao no mar Morto tinha por

    objetivo dar aos membros da comunidade condies de viver de

    acordo com esse conceito escatolgico. O esforo principal era

    dirigido preservao da pureza cultual, e para isso a autoridade

    procedia da interpretao da lei, feita pelo fundador da comunidade, o

    Mestre de Justia. Como sacerdote, ele possua autoridade legtima

    para interpretar a lei. (Koester, 2005, p. 237)

    Da forma como os escritos de Qumran so elaborados, h uma relao clara entre a

    atividade dos anjos malignos e o juzo iminente que cair sobre a terra. Na verdade, segundo a

    expectativa apocalptica que predominava entre os essnios, todo o processo de luta contra o

    imprio romano e os maus israelitas era a expresso de uma luta espiritual intensa entre Deus

    e Belial, que seria julgado no tempo devido. Josefo fala da resistncia dos essnios perante os

    romanos, especialmente nos anos de 66-70 d.C., durante a Guerra Judaico-Romana:

    A guerra contra os romanos tem demonstrado o valor de sua alma em

    todos os aspectos. Nela tinham sido torturados, retorcidos, queimados,

    tinham sofrido fraturas em seu corpo e tinham sido submetidos a todo

    tipo de tortura para que pronunciassem alguma blasfmia contra seu

    legislador e que comessem algum dos alimentos que lhe so proibidos.

    Mas eles no cederam em nenhuma das coisas, nem tampouco

    trataram de atrair a si o favor de seus torturadores mediante splicas,

    nem choraram diante deles.

    Com sorrisos em meio s torturas e com sarcasmo entregavam alegres

    suas almas a seus executores, como se fossem receb-las de novo.

    (JOSEFO, 2008, p.34s)

    5 Especialmente em (Guerras Judaicas, II, 119-161)

  • 12

    Essa entrega absoluta se explica pela forma como compreendiam a histria, tanto pela

    crena na imortalidade da alma crena influenciada pelos gregos quanto pela crena no

    juzo derradeiro, expresso em seus escritos, como no Rolo da Guerra:

    As torrentes de Belial alcanaro

    todos os cantos do mundo.

    Em todos os seus canais

    um fogo consumidor destruir.

    Cada rvore, verdejante ou seca, em suas margens.

    A terra gritar por causa da calamidade derramada sobre o mundo,

    e todas as profundezas gritaro.

    E todos os que estiverem sobre ela se encolerizaro

    e perecero em meio grande desgraa.

    A guerra dos guerreiros celestes castigar a terra;

    e no terminar antes da destruio determinada,

    A qual ser para sempre e incomparvel

    (1QH 3,29-30.32-34.35-36, apud. Otzen, 2003, p. 266)

    Esse cenrio de batalha tem seu lugar num cosmos escatolgico, que refora a viso

    dualista. Na verdade, os rolos de Qumran apontam para dois caminhos: um da verdade e outro

    da corrupo, em que de forma dual os filhos da justia andam segundo nos caminhos da luz,

    os filhos do engano andam nos caminhos da escurido (1QS 3:17 e segs.). Aqui, os poderes

    demonacos ameaam seduzir. (Ebel, 2000, p. 131).

    Belial um nome associado a Satans, muito usado nos escritos judaico-helnicos.

    Seu significado impreciso, mas h quem afirme ser uma modificao de Belior que vem

    do hebraico bel'r que significa sem luz, uma oposio ao ttulo Estrela da Manh de

    Isaas (Schiavo, 2000, p. 75).

  • 13

    So os escritos de Qumran, provenientes da comunidade essnia, que mais nos

    aproximam do contexto da literatura do cristianismo primitivo, indicando um ambiente

    imagtico similar na regio da Galileia, em relao Transjordnia. A partir do contexto

    poltico e social, marcado pela opresso e tirania, as comunidades respondem pensando todo o

    mundo, material e espiritual, a partir do embate entre foras opostas, de Deus e de Satans,

    que passa a ser um nmesis divino.

    5. A PERSONIFICAO DO MAL NOS ESCRITOS DO CRISTIANISMO

    PRIMITIVO

    O cristianismo primitivo tem na sua matriz cultural a expresso do encontro helnico-

    semita, e nele h uma verdade incontestvel: Jesus e Satans esto em guerra aberta. Jesus e

    os apstolos herdam essa maneira de enxergar o mundo, em contraposio ideia da Lei

    como explicao da Teodiceia; o mal personificado que destri a vida das pessoas, e por

    isso deve ser combatido. Esta a razo pela qual os escritos elaborados pelas comunidades

    crists primitivas retratam tantas vezes esse embate, sempre com vitria de Jesus sobre os

    demnios.

    Isso vai aparecer de forma muito clara nos escritos canonizados posteriormente, e que

    formam o Novo Testamento, como tambm aparecer nos escritos depois denominados

    apcrifos, expresso de outras vertentes do cristianismo primitivo.

    5.1. A Expresso do Mal Personificado Segundo os Escritos Cannicos

    No Novo Testamento, os evangelhos so os que mais tratam do assunto, colocando o

    ministrio de Jesus como um embate com as foras satnicas, tanto nos relatos de cura e

    libertao dos oprimidos, quanto nos de tentativas de impedir o seu avano rumo a Jerusalm.

    Dentre eles, Marcos o que tem mais registros desse embate, provavelmente influenciado

    pelos acontecimentos da Guerra Judaica (66-70 d.C.). A ao demonaca mostrada atravs

    da lei (Mc 1.21-28), das legies romanas que esto na Palestina (5.1-20, onde o demnio fala

    seu nome em latim), do preconceito e excluso social (7.24-30), da doena (9.14-29),

    mostrando que a chegada do reinado de Deus iminente. o primeiro dos sinais citados no

    fim do evangelho de Marcos.

    Os evangelhos de Mateus e Lucas apresentam suas verses prprias da histria, mas

    dependem de Marcos em relao aos relatos de demnios. Joo segue uma ideia prpria, no

  • 14

    explicita o nome do demnio, mas tem embutida a ideia de um mundo em oposio a Deus,

    bem como as autoridades judaicas, especialmente em Jo 12.31: Chegou o momento de ser

    julgado este mundo, e agora o seu prncipe ser expulso. (Cf. Schiavo, 2000, p. 78).

    Nas cartas paulinas, o mal menos personificado, posto que o apstolo fala do

    maligno como uma fora que envolve os crentes, mas o termo diabo, por exemplo, s aparece

    nos textos dutero-paulinos (Ef 4.27; 6.11; 1Tm 3.6-7; 2Tm 2.26). J o nome de Satans

    aparece em algumas cartas autnticas. Paulo cita bastante esse nome aos corntios, seja para

    falar de juzo na comunidade (1Co 5.5), advertir contra a tentao nos relacionamentos

    conjugais (1Co 7.5), para exortar ao perdo, como vantagem sobre o adversrio - que usa as

    armas do dio - (2Co 2.10), falando da capacidade de Satans se tornar em anjo de luz (2Co

    11.14), e mesmo como adversrio para impedir Paulo de se ensoberbecer (2Co12.7).

    Escrevendo aos tessalonicenses, fala a respeito de Satans impedir seu retorno a Tessalnica

    (1Ts 2.18), e em 2Ts 2.9 ele fala do poder de Satans, que est sobre o Anticristo. Essa

    expresso anticristo, a quem Paulo chama de o inquo, usada, na verdade apenas pelo

    autor das epstolas de 1 e 2 Joo, referindo-se aos grupos que se afastaram da comunidade por

    ensinarem que Jesus no veio em carne: seriam em ltima anlise grupos gnsticos, ou pr-

    gnsticos (cf. 1Jo 2.22; 4.3; 2Jo 1.7). Joo usa uma terminologia radical para indicar a atitude

    de grupos antagnicos. O Apocalipse, associado ao mesmo Joo, encerra o Novo Testamento

    e na Bblia crist, todo o livro retomando os temas sobre o mal, por meio de imagens

    simblicas. Fala, por exemplo, que foi precipitado o grande drago, a antiga serpente,

    chamada o diabo e Satans, que engana todo o mundo; (Ap 12.9a). Assim, ele associa todas

    as imagens que vm do mundo hebraico, passando pelo persa e pela compreenso apocalptica

    do perodo helenstico, para demonstrar que o anticristo, o adversrio da Igreja a mesma

    entidade.

    Considerando as diferenas de terminologia nos escritos do Novo Testamento, deve-se

    pensar que o mal tem uma dimenso personificada a partir do prprio contexto cultural do

    grupo, pelos diversos elementos formadores da identidade crist. Isso fica mais evidenciado

    quando se percebe as diferentes designaes que o mal recebe de forma personalizada.

  • 15

    5.2. Terminologia do Novo Testamento para o Mal Personificado

    Sero apresentados agora alguns termos mais utilizados no Novo Testamento a

    respeito do mal, de forma personificada, os quais os autores dos textos cristos do primeiro

    sculo trabalham com mais nfase, e seu significado:6

    a) daimn: aparece 77 vezes. Sua raiz incerta podendo vir de da (atirar, distribuir,

    espalhar conhecimento). Neste caso aproxima-se de uma divindade menor persa, com carter

    divino. Pode ser tambm do hebraico shed, raiz verbal shud = fazer violncia, dominar,

    possuir. No grego clssico eram espritos dos mortos, que podiam ser aplacados ou

    controlados por magia, feitios e encantamentos. (Biethenhard; in: Coenen; Brown, 2009, p.

    514). No NT o termo usado por Mateus, e em maior nmero, na forma diminutiva

    daimonion, bem como particpio endemoninhado, para definir a influncia ou controle

    exercitado sobre uma pessoa por um demnio presente nela (Schiavo, 2000, p. 79).

    b) Diabo: O termo que vem do grego diaballo, significa jogar no meio, atravessar o

    caminho, ou ainda separar, dividir, fazer tropear e cair. Na LXX traduz o termo

    hebraico satan, o adversrio. Assim, apresentado no NT como aquele que quer dividir e

    destruir; aparece 35 vezes em todo o Novo Testamento.

    c) Beelzebu: um dos poucos nomes prprios de entidade maligna que aparece. O uso

    do nome desta entidade faz parte de uma mentalidade popular da poca com respeito aos

    demnios. Originalmente Baal [senhor] zebub [do esterco ou das moscas], era uma divindade

    filistia. citado em 2Rs 1.2, como divindade de Ekrom. Na poca de Jesus era considerado o

    prncipe dos demnios. Tudo indica que a divindade era ligada a sacrifcios considerados

    imundos (esterco), e por esse motivo se tornado o maioral dos demnios.

    possvel, ento, identificar Beelzebu com Satans, pois esse tambm mostrado no

    NT como maioral dos demnios, que tentou Jesus (4.1-11). As narraes no explicam

    claramente quem o diabo. Aparentemente, a audincia de Mateus conhece vrias tradies

    que identificam poderes e foras sobre-humanas (anjos e demnios de vrios nomes) que

    6

    Aqui a lista de nomes foi baseada na proposta de Luigi Schiavo, para ento se ampliar a anlise a partir de

    outros autores.

  • 16

    atingem instituies, estruturas, naes e indivduos e resistem aos propsitos de Deus.

    (Carter, 2002, p. 148).

    Essa apresentao de foras em combate mostra o clima de hostilidade e presso sobre

    Jesus e os discpulos em meio ao domnio romano na regio, identificada depois como a Besta

    (cf. Ap 13). O uso desse nome pelos fariseus em Mc 3.23 e paralelos tem um objetivo: A

    opinio dos fariseus tem um valor poltico-religioso muito grande, pois eles que se julgavam

    os que sabiam discernir o certo do errado, o bom do ruim. Os fariseus se outorgavam o direito

    de decidir pela opinio do povo, impedindo que o povo solidificasse sua admirao

    (Mazzarolo, 2005, p. 190). Os fariseus recorrem injria, na tentativa de desacreditar Jesus

    diante da multido. Provavelmente essa fala era corrente no perodo ps-70 d.C., quando o

    embate entre cristos e fariseus se tornou acirrado. Jesus nunca usa esse nome para os

    demnios.

    d) Esprito imundo (pneuma akatarton): termo que aparece somente nos sinticos,

    que fala de uma influncia espiritual contrria a Deus. Vem da juno do pneuma (vento,

    esprito) e akatarton (imundo), cuja raiz o verbo kathair (purificar). O termo arths, indica

    o po puro de trigo, que com a partcula privativa a na frente passa a indicar o contrrio.

    Sua impureza tem relao com a dominao que exerce sobre os seres humanos, os quais

    tornam-se animalescos.

    Em todo caso, h sempre a oposio do reinado de Deus sobre o domnio dos

    demnios, sendo aquele sempre vencedor, na pessoa de Jesus ou em nome dele. Uma anlise

    global sobre a luta de Jesus e dos apstolos contra os demnios indica, segundo Manfred

    Htter, que o NT, relacionando os demnios com o reino de Deus, que pela atividade de

    Jesus chegou, deu ensejo para ir se combatendo as to espalhadas fantasias populares sobre

    demnios. (in: Bauer, 2000, p. 94). Com isso at mesmo as doenas foram interpretadas

    como fenmenos independentes da ao demonaca, ainda no primeiro sculo (cf. Jo 9.1-3; Gl

    4.13s). Mas de fato a ideia da ao demonaca no deixou de ser parte do imaginrio cristo e

    no cristo no Ocidente pelos sculos seguintes, como a histria deixa bem claro.

  • 17

    CONSIDERAES FINAIS

    Esse artigo tratou da anlise da forma como o mal descrito de forma personalizada

    na Bblia. Falou-se das etapas do pensamento hebraico desde o exlio at o perodo helnico,

    indo at o cristianismo primitivo no primeiro sculo, mostrando a mudana de concepo, de

    um mal que atua por ordem de Deus, passando por uma compreenso do mal como uma

    realidade no mundo independente de Deus, at chegar viso de que o mal antagnico a

    Deus. Talvez no se possa falar em desenvolvimento, mas transformao na forma de ver o

    mundo, pelo contato com outras culturas, e principalmente pelo impacto que certas

    experincias tiveram sobre a mentalidade semita mais arcaica. Tanto o contato com os

    babilnicos, durante o exlio, passando pelos persas no ps-exlio, e posteriormente os gregos,

    teve uma forte consequncia na maneira de entender a realidade intra e extramundana, que

    acarretou numa mudana na forma de responder teodiceia.

    Esse processo passou pela personificao do mal; o que significa uma maneira de

    entender o problema do mal no mundo objetivando-o, tornando-o mais concreto que o prprio

    Deus, para assim poder identificar um alvo, uma meta, de um inimigo a ser destrudo. Essa

    maneira de entender o problema do mal, por meio da personificao, acabou no poucas vezes

    por criar uma associao entre a entidade invisvel, conquanto personificada, e pessoas ou

    grupos concretos, enxergando-os como servos do mal, ou ainda como dominados por ele.

    Curioso o fato de que nos evangelhos, os possudos pelo demnio no so tratados

    como inimigos por Jesus, pelo contrrio, ele os v como vtimas, gente oprimida pelo sistema

    cruel e dominador perpetrado pelo imprio romano. E no imprio romano onde mais se v a

    atividade demonaca, havendo por parte dos cristos e mesmo por outros grupos uma

    identificao entre esse imprio e o demnio. No toa, Nero identificado com a Besta, a

    servio de Satans. Assim, fica evidenciado que houve por parte da comunidade crist

    primitiva uma associao entre foras espirituais e humanas, o que levou a mensagem ser

    tambm encarada como forma de transformao, no s das pessoas, mas de todo o mundo.

    A presena desse mal personificado no mundo teve como consequncia tambm uma

    viso negativa do mundo, posto que ele o prncipe, e o mundo jaz no maligno. Essa maneira

    de entender o mal e sua relao com o mundo teve consequncias srias para o cristianismo

    posterior, bem como a compreenso dos adversrios como servos do mal. Essa uma questo

    que deve e tem sido pesquisada, e que merece ateno nos crculos acadmicos, at para

  • 18

    compreender o fenmeno religioso contemporneo no Brasil e em vrias partes do mundo,

    onde o mgico e o extraordinrio so mais importantes que as questes bsicas da f.

    Por outro lado, o artigo no abordou os escritos gnsticos por questes metodolgicas.

    Pode-se pensar tambm ali uma mudana importante, onde passa a existir a presena de um

    demiurgo que cria o mundo mal, contra um Deus supremo, levando ao extremo a ideia de um

    mundo mergulhado no mal.

    O que fica evidente ao fim da presente pesquisa, o quanto o modo de ver e

    compreender a realidade do mal e suas questes concretas se altera com o tempo. O que se

    pensa hoje a respeito do assunto certamente algo diferente, ainda que ideias tradicionais e

    vinculadas a conceitos semitas ou gregos permeiem o discurso atual. Mas a presena de outras

    cincias na anlise desse campo, como a sociologia, a antropologia social e mesmo a

    psicologia, permitiram um avano e um incremento na compreenso do assunto, mesmo que

    uma resposta definitiva no seja ainda possvel. E, de fato, diante do fenmeno da morte e do

    mal, muitas vezes as respostas que temos no do conta do sentido daquilo para as vtimas ou

    suas famlias; o mal continuar a ser, ao lado da eternidade, um grande mistrio que paira

    sobre a realidade da existncia humana.

  • 19

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAUER, Johannes. Dicionrio Bblico-Teolgico. So Paulo: Edies Loyola, 2000.

    BROWN, Colin; COENEN, Lothar. Dicionrio Internacional de Teologia do Novo

    Testamento. Vol 1 e 2. 2 ed. So Paulo: Vida Nova, 2000 (9 reimpresso).

    CARTER, Warren. O Evangelho de So Mateus: comentrio sociopoltico e religioso a partir

    das margens. So Paulo: Paulus, 2002.

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    Curitiba: Juru Editora, 2008.

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    Alexandre Magno at o imperador Adriano. So Paulo: Paulinas, 2003.

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    exercem na sociedade moderna. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

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    Editora Novo Sculo, 2004.

    SCHIAVO, Luigi. O mal e suas representaes simblicas. O universo mtico e social das

    figuras de Satans na Bblia. In: Apocalptica e as Origens Crists. Estudos da Religio n. 19,

    ano XIV. So Bernardo do Campo: Editora Metodista, 2000.