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O manuscrito Voynich 500 anos depois seu mistério persiste Marcelo dos Santos Especial pra revista Axxón #140 www.mcds.com.ar Nesse temível volume jaz o mistério dos mistérios Sir Walter Scott Dias passados, numa lista de correio, minha querida amiga e autora de saborosos relatos de ficção científica, fantasia e horror, Olga Appiani de Linares, comentou uma notícia acerca do manuscrito Voynich, um antigo conhecido dos ocultistas, nigromantes e crentes em pseudociência. Lhe agradeci o comentário, expressando que há muitos anos não tinha notícia sobre tal manuscrito, que jamais pôde ser decifrado. Se surpreendeu com eu o conhecer. O manuscrito Voynich Poucos dias mais tarde uma notícia no Scientific american chamou minha atenção: Um psicólogo ianque, que não é lingüista, e isso é o que mais me assombrou, estivera trabalhando sobre o livro, fazendo interessantes descobertas, sobre ele, que poderiam muito bem ser aplicadas noutros campos. Mas comecemos pelo princípio. O imperador estava contente: Seu filho nascera. Maximiliano II e sua esposa Maria, filha do imperador Carlos V, concebera e parira a um pequeno que, futuramente, estava destinado a ocupar o sereníssimo trono do Sacro Império Romano. Corria o mês de julho de 1552, em Viena. De caráter cultivado e curioso, o menino evidenciou, desde sempre, uma personalidade similar à de seu tio, Felipe II de Espanha. Naquele país peninsular o pequeno Rodolfo recebeu uma educação completa e profunda. Em 1572 Rodolfo foi coroado rei da Hungria. Mais tarde subiu ao trono da Boêmia e, em 1575, foi nomeado rei da Alemanha. Por último, em 1576, à morte de seu pai, foi coroado imperador romano com o nome de Rodolfo II. Detalhada foto que mostra a caligrafia do livro O reinado de Rodolfo II é importante na história e na ciência por vários motivos, tanto elogiosos como negativos. Se o recorda, por exemplo, como o soberano que não soube impedir as guerras religiosas e que perdeu as rédeas do conflito que seria conhecido como guerra dos Trinta Anos. Inversamente, a ciência o recorda com respeito e gratidão, já que foi esse soberano quem exerceu o mecenato sobre Tycho Brahe e Johannes Kepler, e todos os historiadores da ciência estão de acordo de que nenhum deles faria o que fez sem o apoio político e econômico de Rodolfo II.

O manuscrito Voynich, 500 anos depois seu mistério persiste

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O manuscrito Voynich 500 anos depois seu mistério persiste

Marcelo dos Santos Especial pra revista Axxón #140 www.mcds.com.ar

Nesse temível volume jaz o mistério dos mistérios Sir Walter Scott

Dias passados, numa lista de correio, minha querida amiga e autora de saborosos relatos de ficção científica, fantasia e horror, Olga Appiani de Linares, comentou uma notícia acerca do manuscrito Voynich, um antigo conhecido dos ocultistas, nigromantes e crentes em pseudociência. Lhe agradeci o comentário, expressando que há muitos anos não tinha notícia sobre tal manuscrito, que jamais pôde ser decifrado. Se surpreendeu com eu o conhecer.

O manuscrito Voynich

Poucos dias mais tarde uma notícia no Scientific american chamou minha atenção: Um psicólogo ianque, que não é lingüista, e isso é o que mais me assombrou, estivera trabalhando sobre o livro, fazendo interessantes descobertas, sobre ele, que poderiam muito bem ser aplicadas noutros campos.

Mas comecemos pelo princípio. O imperador estava contente: Seu filho nascera. Maximiliano II e sua esposa Maria, filha

do imperador Carlos V, concebera e parira a um pequeno que, futuramente, estava destinado a ocupar o sereníssimo trono do Sacro Império Romano. Corria o mês de julho de 1552, em Viena.

De caráter cultivado e curioso, o menino evidenciou, desde sempre, uma personalidade similar à de seu tio, Felipe II de Espanha. Naquele país peninsular o pequeno Rodolfo recebeu uma educação completa e profunda.

Em 1572 Rodolfo foi coroado rei da Hungria. Mais tarde subiu ao trono da Boêmia e, em 1575, foi nomeado rei da Alemanha. Por último, em 1576, à morte de seu pai, foi coroado imperador romano com o nome de Rodolfo II. Detalhada foto que mostra a caligrafia do livro

O reinado de Rodolfo II é importante na história e na ciência por vários motivos, tanto elogiosos como negativos. Se o recorda, por exemplo, como o soberano que não soube impedir as guerras religiosas e que perdeu as rédeas do conflito que seria conhecido como guerra dos Trinta Anos.

Inversamente, a ciência o recorda com respeito e gratidão, já que foi esse soberano quem exerceu o mecenato sobre Tycho Brahe e Johannes Kepler, e todos os historiadores da ciência estão de acordo de que nenhum deles faria o que fez sem o apoio político e econômico de Rodolfo II.

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Com larga história hereditária de demência e antecedente de depressão e tendência à excentricidade, a saúde do monarca foi decaindo sensivelmente até morrer, quase louco e totalmente recluso em seu palácio de Praga, em janeiro de 1612.

Durante toda sua vida, Rodolfo II se interessou por magia, alquimia, bruxaria e os objetos e livros estranhos. Sua mansão de Praga se converteu no centro de reunião não só de astrônomos e cientistas sérios como Tycho e Kepler, mas também de religiosos como Jordano Bruno (logo queimado como herege), magos negros como John Dee e mistificadores, aventureiros e falsários como Edward Kelley.

Rodolfo tinha um enorme aposento, a Kunstkammer, cheia de livros e manuscritos de magia e alquimia, e abraçou a astrologia como paixão e passatempo.

Se diz que a coleção de textos que reuniu sobre esses temas era soberba, e aqui entra o sacro imperador em nossa história do manuscrito Voynich. O mago e ocultista John Dee

O homem cujo sobrenome daria nome a todo este assunto à posteridade nasceu muito depois, em 31 de outubro de 1865 (alguns biógrafos dizem 1863), em Caunas, Lituânia, com o complicado nome de Wilfryd Michal Habdank-Wojnicz. Habdank é o nome dum clã heráldico polaco, ascendência que nosso herói compartilhava, mas, dada a dificuldade das pessoas pra o pronunciar, logo o abandonou.

Químico e farmacêutico, estudou nas universidades de Varsóvia e São Petersburgo, se doutorando em sua especialidade na universidade de Moscou. Acossado por problemas políticos foi encarcerado e, em 1885, foi deportado à Sibéria. Wilfryd suportou esse suplício durante cinco anos, até fugir de seu presídio em 1890. Wojnicz fugiu à Alemanha

e se escondeu em Hamburgo porque sabia que o largo braço da polícia política do czar era capaz de o alcançar também ali. Sujo, esfaimado e miserável, segundo suas próprias palavras, o cientista compreendeu que se ficasse em Hamburgo seria capturado novamente... ou algo pior. De modo que vendeu seu abrigo e seus óculos pra, com a mísera soma que lhe deram por eles, comprar uma passagem de terceira classe num barco de carga que transportava fruta a Londres, um arenque defumado e um pedaço de pão pra mitigar a fome.

Wylfrid Voynich

Em Londres Wojnicz se casou com uma correligionária irlandesa, que era nada menos que a quinta filha do matemático e filósofo Jorge Boole (todos os que trabalhamos em informática conhecemos e estudamos a álgebra buleana), Ethel, e ambos passaram seu tempo escrevendo e enviando à Rússia literatura revolucionária e traduzindo ao inglês as obras de Marx e Engels.

Wojnicz (que então anglicizara seu nome e já assinava Voynich), começou a se interessar por os livros, manuscritos e catálogos antigos. Em essa tarefa prosperou, e logo estabeleceu um importante comércio de livros raros em Soho Square # 1, Londres, aonde acudiam todos os colecionadores desejosos de adquirir um exemplar largamente sonhado.

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Em 1914 se mudou a Nova Iorque, onde continuou seu ofício de livreiro especializado em texto raro, e ali ficou até sua morte, em 1930 (ou em 1931, segundo alguns biógrafos).

Em 1912 viajou à Itália em segunda vez: Já estivera nesse país em 1898. Nessa segunda viagem, totalmente dedicada à aquisição de volumes antigos pra seu negócio, aportou na biblioteca do colégio jesuíta de Villa Mondragone, em Frascati, um povoado perto de Roma.

Revisando uma arca que continha os livros que os curas desejavam vender, lhe chamou a atenção um volume em quarto escrito nuns estranhos caracteres que não pôde identificar.

Passando as folhas do manuscrito, observou que a maioria delas estavam ilustradas com desenhos de diversas plantas, estrelas e figuras humanas, ninfas ou mulheres nuas.

Pra cúmulo da surpresa, entre as páginas do livro Voynich encontrou uma antiga carta em latim, datada em 1666.

Os sacerdotes se mostraram de acordo em vender a Voynich o manuscrito e sua carta, e ele os levou a seu negócio londrino. Confundido pelos estranhos símbolos que cobriam as páginas, fotografou cada uma delas pelo anverso e o reverso (são 246), e enviou as cópias

aos mais reputados lingüistas de seu tempo: Nenhum deles foi capaz de identificar a língua, muito menos o jogo de caracteres com o qual o livro está escrito. Era só o começo duma das histórias mais incríveis e um dos enigmas mais surpreendentes da história da ciência humana.

O manuscrito Voynich é bem pequeno: As páginas medem apenas 15cm por 22 cm e são de vitela, uma espécie de pergaminho feito de couro de cordeiro muito trabalhado e fino, e todo o livro foi escrito pela mesma mão. Contém mais de 40.000 palavras e a maioria das páginas inclui ilustração. Somente 33 das páginas são puro texto. Página 43

Não tem título, data nem indicação de autor. Tampouco está dividido em seções ou capítulos mas, baseado na natureza das ilustrações, os especialistas o dividiram tentativamente em cinco partes, denominadas herborística,

astronômica, biológica, farmacêutica e receituário. Insistimos em que essa divisão pode ser totalmente errônea, pelo fato de que, desde o momento em que não se compreendem os textos, está baseada exclusivamente nas ilustrações. A seção de astronomia poderia muito bem tratar sobre história da hidráulica e a de herborística contar uma novela burlesca. Uma página do manuscrito

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A seção herborística ocupa, mais ou menos, a metade do manuscrito (umas 130 páginas). Em cada página há, normalmente, o desenho duma planta, acompanhada de uma breve descrição? da mesma. Nalguns poucos casos se descrevem dois exemplares numa mesma página. As ilustrações, por suposto, estão há quase um século submetidas à análise dos botânicos e biólogos. A previsível, mas não menos surpreendente, conclusão é que a imensa maioria delas corresponde a plantas que não existem e nunca existiram, ou, dito noutras palavras, a espécies que não podem ser identificadas por algum botânico do mundo. Uma página de grande beleza

Essa norma, certamente, tem poucas exceções: Por exemplo, a folha desenhada na página 42 verso pertence a Rumex acetosa, uma hortaliça que se come como folha verde em salada. Se trata da conhecida azedinha, de sabor

ligeiramente amargo (dali seu nome latino). Junto ao desenho da azedinha se pode ver, na mesma página, uma imagem menor duma folha pertencente a uma espécie do gênero Oxalis Linneo. O único que ambas plantas têm em comum é o gosto amargo devido a que ambas contêm ácido oxálico, que em grandes doses é sumamente tóxico. Por que figuram no livro?

Mistério. Na página 100 há um desenho duma planta que, dada a semelhança, foi identificada pelo

botânico O´Neill como Botrychium lunaria Swartz. Seu nome comum é lunária menor, e desde antigamente é conhecida como adstringente e antidiarreica. Também é mencionada no Dioscórides, um célebre tratado de herborística, como boa prà fertilidade das vacas: Assim que a pastam, vão direto ao touro.

Na seção astronômica encontramos desenhos de sóis, de luas e de estrelas, e algumas páginas mostram, também, símbolos astrológicos.

A seção biológica mostra enorme quantidade de desenhos de mulheres nuas, quase todas se banhando em cisternas ou piscinas interconectadas pelo que parecem ser complexas instalações de encanamento, com canos, sifões, derivações, etc. Uma interpretação bastante lógica estima que esses condutos de água representam, em sentido figurado, os vasos sanguíneos, o sistema cardiocirculatório, o aparato digestivo e os órgãos reprodutores. A página 86 não contém ilustração

A parte farmacêutica continua com os desenhos de plantas e se vêem numerosos frascos com etiqueta.

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Por último, a seção chamada receituário consiste em breves parágrafos, cada um indicado com uma estrela na margem esquerda, tal como destacamos parágrafos com asteriscos (*) ou símbolos (♦ ,●,G, etc.).

Muito clara é a semelhança do manuscrito Voynich com um manual medieval de alquimia ou magia: Apesar de que o idioma e os caracteres são desconhecidos, muitas das ilustrações estão relacionadas com símbolos e encantamentos utilizados em textos

alquímicos perfeitamente estudados. Um manuscrito bizantino do século IX contém um desenho duma ninfa no interior dum círculo com signos do zodíaco que é praticamente idêntico a uma imagem do Voynich, incluindo a postura da figura feminina (apesar de que o outro texto foi realizado com uma técnica, ferramentas e materiais completamente diferentes do Voynich).

A data de composição do manuscrito é, também, bastante fácil de estabelecer. Certos aspectos dos caracteres definem a caligrafia utilizada como cursiva humanista, um estilo de escrita em voga na Europa durante um par de décadas do século XV. Por acréscimo, o estilo dos penteados das figuras femininas é exatamente o dos utilizados entre 1480 e 1520. Não há dúvida a respeito. Uma página do receituário do manuscrito

Mas ainda não falamos do significado dos textos. Quer dizer, sabendo muito acerca do manuscrito, ainda não entramos no campo mais transcendente de seu estudo: O que significa?

Como apontamos, quando foi redescoberto por Voynich, em 1912, o estranho livro guardava, entre suas páginas, uma carta. No entanto, não é a primeira que se escreveu sobre o manuscrito. Houve outras três, e, curiosamente, as quatro eram dirigidas ao mesmo homem: Atanásio Kircher. Conservamos três delas. Extraordinário círculo astrológico. O animal do centro parece um silodonte, o famoso tigre dente-de-sabre, desconhecido na época do manuscrito.

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O destinatário de tanta preocupação nasceu em Úlster, Alemanha, em 2 de maio de 1601 (ou 1602), e toda a bibliografia referida a ele o reputa como o homem mais ilustrado de seu tempo.

Era filho do filósofo João Kircher, que, ademais, recebeu um doutorado em teologia pela universidade de Mogúncia. João fez que seus seis filhos (três varões e três mulheres) ingressassem todos em diversas ordens religiosas, porque a família era demasiado pobre pra lhes costear o estudo.

Cientista, matemático e inventor, Kircher desenvolveu um instrumento pra medir o campo magnético terreno (consideremos a época em questão), um eficiente anemômetro, e diversos tipos de relógios solares. Foi astrônomo, geógrafo, sismólogo e vulcanólogo e lingüista especialista em idiomas orientais. Tanto, que foi o primeiro a traduzir o texto alquímico A tábua esmeralda do árabe ao latim. Foi especialista em antigüidade egípcia e reputado decifrador de hieroglifos, ambas disciplinas sobre as quais escreveu vários livros. Esfera celeste com um sol e constelações desconhecidas

Com 16 anos Atanásio ingressou ao seminário jesuíta e, em 1628, foi ordenado sacerdote da companhia de Jesus. Foi dentro de sua ordem que aprendeu grego e hebreu com perfeição. Estudou, logo, noutro colégio jesuíta, humanidade, ciência natural e matemática, complementando com filosofia em Colônia. Em 1623, em Koblenz, ensinou grego, enquanto alcançou o que hoje chamaríamos uma graduação em língua, em Heiligenstadt. Quando se ordenou sacerdote recebeu seu doutorado em teologia

Foi o primeiro lingüista a compreender que o copta era uma língua derivada do egípcio antigo e foi comissionado pelo papa pra traduzir os textos dum obelisco egípcio levado a Roma. Após o êxito nessa tarefa o pontífice o dotou de ricos presentes e atenções como prêmio. Encontrada a pedra de Rosetta vários séculos mais tarde, e traduzida a língua egípcia por Jean-Francois Champollion, sabemos que a tradução de Kircher estava completamente errada, mas em seu tempo, sua reputação de lingüista e orientalista chegava ao ponto de ser chamado universalmente O homem capaz de ler qualquer texto.1 Atanásio Kircher

Kircher morreu em 1680, em Paris, após ter passado a maior parte da vida convertido numa espécie de superestrela ou celebridade científica internacional em numerosos ramos da ciência, especialmente lingüística e filosofia.

1 Robert Temple, em O mistério de Sírius, afirma que a tradução de Champollion é uma farsa

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É por causa disso que um dos primeiros proprietários do manuscrito Voynich, Georg Baresch, pensou em Kircher como o único homem capaz de interpretar os estranhos caracteres. Assim, Baresch lhe escreveu uma carta, em 1637, na qual lhe pedia estudar o texto e encontrar uma solução ao problema. Essa primeira carta se perdeu e não parece que Kircher lhe tenha dado muita importância, porque tampouco respondeu.

Ainda esperançoso, Baresch voltou a escrever ao erudito dois anos mais tarde. Esta segunda carta, que se conservou, reiterou o pedido de que Kircher se ocupasse do manuscrito, aproveitando a viagem dalguns religiosos amigos de Baresch desde Praga (onde estava Baresch) até Roma (donde estava Kircher). A carta está nos arquivos da pontifícia universidade gregoriana de Roma, no armário APUG 557, fólio 353.

A carta foi primeiramente traduzida ao inglês por M. J. Gorman, do museu e instituto de história da ciência de Florência, Itália, assim como ao italiano pela professora R. Mugellesi do instituto de filologia clássica de Pisa. Segundo René Zandbergen e seu colaborador Mark Sullivan, a versão inglesa corresponde exatamente à italiana e à latina. A tradução castelhana que aqui se expõe me pertence, assim como os comentários entre parênteses.

Diz em sua parte relevante: Quando da partida até a Itália e Roma de certo religioso, obteve permissão dele pra levar a ti esta carta, com a qual quero te recordar certo escrito que a ti enviei desde Praga através do reverendo Moretto, da companhia de Jesus. A razão de ter enviado esses escritos é a seguinte: Depois da publicação do Prodromus copti (um célebre livro de Kircher sobre a língua egípcia), Sua reverencia se fez famosa em todo o mundo, e nesse livro solicitaste ajuda pra encontrar material adicional pra outro livro que pensavas publicar, do que se desprende que Baresch parece crer que o livro está escrito em copta ou em hieroglifos egípcios.

Mais adiante põe: Por tanto decidi repetir este pedido. Moretto me disse que chegou, felizmente, a Roma, do que me comprazo, e mais comprazido estarei quando o conteúdo do livro mencionado nos for revelado graças a sua reverência, de modo que a boa gente possa compartilhar o bom conhecimento que há nele. Dos desenhos de ervas, de enorme número dentro do códex, de várias imagens e estrelas e doutras coisas que aparentam ser segredos da química, conjeturei que todo ele é de natureza médica.

Após rogar várias vezes mais a Kircher que libere os portentosos segredos científicos enterrados nas folhas do manuscrito, Baresch se despediu e firmou: Pragae A[nn]ou [Domini] 1639. 27 die Aprilis, quo olim Romam, in Universitate Sapientiae Romanae, Predicae Sapientiae operam daturus, apprili A[nn]ou [Domini] 1605. V[estr]ae R[everen]dae Paternit[ate], Ad obsequia, P[er]oratissimus, M. Georgius Baresch

Em Praga, em 27 de abril de 1639, no mesmo dia em que, em abril de 1605, comecei meu estudo na universidade da Sabedoria Romana.

A pertinácia de Baresch parece fracassada. Dissemos que dentro do livro Voynich encontrou uma carta. A mesma, certamente,

também está dirigida a Kircher e está datada em 1666 (ainda que alguns estudiosos leiam a data como 1665).

O autor da missiva é João Marcus Marci de Cronland, reitor da universidade de Praga. Sabemos (porque se conservou) que Marci também escreveu uma carta, anterior, a Kircher, sobre o mesmo assunto, cujo original pode ser encontrado nos arquivos gregorianos, armário APUG 557, fólio 127.

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Tantas cartas ao mesmo homem sobre o mesmo tema nos levam a conjeturar que Kircher estava perfeitamente consciente de que não podia nem poderia decifrar o manuscrito e que, sendo uma celebridade científica e lingüística mundialmente respeitada, tinha vergonha de responder a seus correspondentes dizendo que o assunto superava seu conhecimento. Conseqüentemente fez o único que poderia fazer sem sacrificar seu orgulho: Guardou silêncio e jamais respondeu.

Mas a segunda carta de Marci, a que Voynich encontrou dentro do manuscrito, é especial porque aporta, em primeira vez, elementos internos da história do livro e, inclusive, ensaia uma hipótese acerca do autor da extraordinária obra. O original se

encontra na biblioteca Beinecke, está escrito num latim muito culto e foi traduzido ao inglês por John Tiltman. Nessa versão baseei minha tradução castelhana. A carta (conhecida nos ambientes acadêmicos como Carta Marci) começa com as palavras: Reuerende et Eximie Domine in Christo Pater. Librum hunc ab amico singulari mihi testamento relictum, mox eundem tibi amicissime Athanisi ubi primum possidere coepi, animo destinaui: Siquidem persuasum habui a nullo nisi abs te legi posse. Reverendo e distinto mestre, pai em Cristo: Este livro, que herdei dum íntimo amigo, esteve destinado a ti desde que chegou a minhas mãos, meu mui querido Atanásio, porque estou convencido de que ninguém mais que tu será capaz de o ler. Johannes Marci de Cronland, autor da carta encontrada no livro

Vã esperança, a de Marci, a juzgar por os resultados. Marci continua dizendo: O proprietário anterior deste

livro (a quem, ainda que Marci não nomeie, já conhecemos: Se trata de Georg Baresch) pediu, uma vez, tua opinião por carta (Erro: a pediu duas vezes, sem obter resposta), copiando e a ti enviando um extrato do livro, do qual pensava que serias capaz de ler o resto, mas nesse momento não quis a ti enviar o livro em sí.

Dois parágrafos mais abaixo Marci revelou a Kircher alguns dados trascendentais. Disse textualmente: Retulit mihi D. Doctor Raphael Ferdinandi tertij Regis tum Boemiae in lingua boemica instructor dictum librum fuisse Rudolphi Imperatoris, pro quo ipse latori qui librum attulisset 600 ducatos praesentarit, authorem uero ipsum putabat esse Rogerium Bacconem Anglum. Traduzo: O professor de língua boêmia de Fernando III, então rei da Boêmia, o senhor doutor Rafael, me contou que o já citado livro pertenceu ao imperador Rodolfo (se refere a nosso já conhecido Rodolfo II da Boêmia), que pagou pelo livro a quantia de 600 ducados. Ele (não está muito claro se se refere a Rodolfo, ao desconhecido que o vendeu, ao tal Rafael ou a Baresch) acreditava que o autor era o inglês Rogério Bacon.

Conclui, se despedindo: Reuerentiae Vestrae. Ad Obsequia. Joannes Marcus Marci a Cronland. Pragae 19 Augusti AD 1666 (1665?). Às ordens de sua reverência, João Marcus Marci de Cronland. Em Praga, 19 de agosto do ano do Senhor de 1666 (ou 1665, segundo outros). Todos os comentários entre parênteses são meus.

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A carta Marci é a peça de informação que une o manuscrito Voynich a Rodolfo II, introduzindo, ademais, no já por si complicado assunto, o sacerdote franciscano do século XIII, monge, matemático, filósofo e alquimista inglês Rogério Bacon.

E tem sentido, porque foi Bacon quem permanentemente preconizava, em seu trabalho, que o conhecimento científico não estava destinado ao público em geral, e que os sábios fariam muito bem em publicar os livros em código cifrado. A carta de Baresch diz algo parecido, ainda que sem mencionar o nome de Bacon.

Rogério Bacon nasceu em Ilchéster, Somersete, Inglaterra, em 1214, e morreu em Oxforde, em 1292. Seus pais, latifundiários empobrecidos, dever ter tido um afã de progresso inédito prà época, já que dois de seus filhos chegaram a ser acadêmicos e um, Rogério, conhecido universalmente até hoje.

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Rogério estudou matemática e latim com o pároco de sua aldeia antes de se trasladar a Oxforde pra se apresentar na universidade, porque sabia que ali todo o ensino se ministrava em latim. Bacon se converteu em estudante universitário na idade de treze anos, e se destacou em gramática, lógica, retórica, geometria, aritmética, música e astronomia. Logo foi convocado a ensinar em Oxforde, e seguiu como professor ali até 1241. O jovem Bacon chegou a ser a maior autoridade sobre Aristóteles, e, quando foi chamado pra ensinar na universidade de Paris, introduziu a aristotélica como ciência central dando incansáveis (e intermináveis) aulas que começavam às 6h da manhã e deixavam os estudantes extenuados. O franciscano Rogério Bacon

Tão versado em meteorologia, botânica, ciências naturais e medicina como em teologia e filosofia, alargaríamos desnecessariamente este artigo citando todas as obras e êxitos de

Bacon desde então até sua morte com 78 anos de idade. Frasco medicinal com uma raiz parecida com a mandrágora

Basta dizer que muito bem pode ter sido o autor do Voynich, mas que a opinião do antigo correspondente não condiz com nossas modernas teorias acerca da data do livro. Até onde sabemos, Bacon viveu mais de dois séculos antes da aparente composição do manuscrito Voynich.

A história posterior do manuscrito é, também, surpreendente.

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Desde que Rodolfo II o cedeu (vendeu?) a Baresch e desde que ele o herdou de Marci, perdemos seu rastro durante a batelada de 246 anos, até que Voynich o redescobriu no mosteiro jesuíta. Como chegou o manuscrito até ali? É provável que nunca saibamos.

Uma vez em Londres o manuscrito permaneceu em mãos de Voynich até a morte do livreiro.

Ethel Boole Voynich, sua viúva, aparentemente o vendeu. Isso é estranho porque a data em questão é 1961, poucos meses antes do falecimento da dama. Se o casal conservara zelosamente o documento durante quase meio século que sentido pode ter o vender pouco antes de morrer? Se trata doutro dos mistérios inexplicados na incompreensível história do livro. Detalhe dos nus femininos

Como seja, o manuscrito Voynich aparece, posteriormente, em mãos do especialista em livro antigo

H. P Kraus, de nacionalidade ianque. Kraus manifestou ter pago por ele, a Ethel Voynich, a soma de 24.500 dólares, com a intenção de o revender por uma quantia superior.

Taxou o volume em 160.000 dólares e o pôs, efetivamente, a venda, mas durante oito anos de esforço fracassou em seu empenho. Jamais conseguiu encontrar comprador interessado.

Descontando o fracassado e nem tentado esforço de Kircher e as fotos que Voynich enviou aos especialistas no início do século XX, é fácil imaginar que o esforço pra desvelar a incógnita do conteúdo do manuscrito não cessou.

A primeira tentativa séria de o decodificar aconteceu em 1921, com o professor Newbold, da universidade da Pensilvânia, que observou que em cada caractere havia uns traços misteriosos, tão pequenos que só podiam ser vistos com lupas muito potentes. Acreditou serem caracteres gregos, e concluiu que havia um subtexto grego oculto pelos caracteres desconhecidos. Por razão não muito bem esclarecida, afirmou que o texto grego microscópico era o verdadeiro conteúdo do manuscrito Voynich, que datava do século XIII e que seu autor era Rogério Bacon. Essas duas últimas afirmações seguem, obviamente, a carta de Marci, mas o das letrinhas gregas foi desmoralizado cientificamente menos de uma década mais tarde. O que o acadêmico acreditou que eram traços gregos não são mais, na realidade, que gretas microscópicas na capa de tinta dos caracteres, provocados pelo mero passar dos séculos.

Os fracassos continuaram. Em 1940 Joseph M. Feely e Leonell C. Strong, ambos criptógrafos aficionados, tentaram aplicar uma técnica chamada cifra de substituição, que nada mais é que atribuir a cada caractere do texto uma letra do alfabeto latino. É a simples técnica utilizada em O escaravelho de ouro, de Poe. Segundo eles, conseguiram traduzir todo o manuscrito, exceto que... o resultado não tinha sentido.

Ao terminar a segunda guerra Mundial, a equipe de criptógrafos que quebrou o código da armada imperial japonesa passou bastante tempo decifrando textos antigos criptografados. Tiveram êxito com todos, menos com o Voynich.

Em 1978 o filólogo aficionado John Stokjo assegurou que o texto estava escrito em ucraniano mas sem as vogais. Sua tradução, desafortunadamente, não correspondia às ilustrações nem tinha a ver com a história da Ucrânia. Continha frases tão claras como A vacuidade é aquilo pelo qual luta o olho dum deus bebê (?) [A tradução é minha].

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Um médico chamado Leo Levitov afirmou, em 1987, que o documento fora escrito pelos cátaros, seita herética que floresceu na França medieval, e que estava escrito numa mescla de palavras de vários idiomas. A tradução de Levitov, no entanto, entrava em franca contradição com a teologia cátara, que se encontra perfeitamente documentada.

Mais ainda: Todas as traduções mencionadas usavam mecanismos que permitiam, por exemplo, que uma mesma palavra fosse traduzida com um significado numa parte do manuscrito e com outro, diferente, noutra. Uma mostra: Um dos passos do raciocínio de Newbold lançava mão dos anagramas, método impreciso, se há. Assim, o anagrama de caso pode ser tanto coisa como osca, saco ou asco. A maioria dos acadêmicos está de acordo de que as tentativas de decodificação do manuscrito Voynich estão, irremediavelmente,

embebidas dum inaceitável grau de ambigüidade. Pior ainda, é impossível, usando qualquer desses métodos mas ao contrário, codificar um texto simples pra obter algo que se pareça, mesmo remotamente, ao manuscrito Voynich, e já se compreende que um sistema capaz de decodificar um texto em chave tem que ser capaz de funcionar ao contrário. Ilegíveis caracteres

A conclusão é que, após 90 anos de esforço da parte de vários dos melhores especialistas em código, ninguém foi capaz de decifrar o voinichês, como, às vezes, é chamado. É por isso que a natureza e origem do manuscrito permanecem em mistério.

A mais séria das tentativas recentes e, possivelmente a única que aplicou um raciocínio abrangente, inteligente e criativo, é a de doutor Gordon Rugg, que começou a se interessar pelo manuscrito Voynich ao redor do ano 2000. O interessante é, como se apontou no princípio, que Rugg não é filólogo, lingüista nem historiador, apenas médico e psicólogo, recebido na universidade de Reading, Inglaterra, em 1987. Hoje é professor da escola de

computação matemática na universidade. Keele é, ademais, diretor de Sistemas especialistas,

periódico internacional especializado em engenharia do conhecimento e redes neurais. O campo de investigação de Rugg é, precisamente, a natureza do conhecimento e os modelos de informação, conhecimento e crença. Ao fim chegara alguém capaz de atacar o enigma do manuscrito a partir dum ángulo novo e original. A flor superior se parece com a passionária (exceto sendo vermelha). As demais são desconhecidas.

No princípio Rugg se aproximou do problema o considerando só um quebra-cabeça interessante: Mais tarde compreendeu que poderia se converter num caso exemplar duma profunda investigação sobre as maneiras de reexaminar problemas complexos.

Rugg começou especulando acerca de que o fracasso das tentativas de decodificar o livro pode significar que,

talvez, não haja código a decifrar: Depois de tudo, o manuscrito pode, muito bem, não conter mensagem, sendo apenas o fruto duma elaborada brincadeira.

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Os críticos dessa hipótese argumentaram que o voinichês é demasiado complexo pra não ter sentido. Como poderia um gozador medieval produzir 230 páginas dum texto com tantas sutis regularidades na estrutura e na distribuição das palavras?

No entanto Gordon Rugg descobriu que qualquer um pode reproduzir a maior parte das extraordinárias características do manuscrito utilizando uma simples ferramenta criptográfica que já era bem conhecida no século XVI, como veremos mais adiante. Diz: O texto gerado por essa ferramenta parece voinichês mas, na realidade não é mais que uma geringonça que não transmite mensagem oculta. Essa descoberta não prova que o manuscrito seja uma brincadeira mas reforça o rumor de que um aventureiro inglês chamado Edward Kelley engendrou todo o assunto pra defraudar o crédulo Rodolfo II. Já se diz que o imperador pagou a soma de 600 ducados pelo livro. Algo assim como 50.000 dólares de hoje.

Mas suponhamos, um momento, que o manuscrito não é uma farsa nem está escrito em código. A terceira possibilidade seria: Poderia corresponder a um idioma desconhecido?

Rugg respondeu a esta pergunta da forma seguinte: Apesar de que não o podemos decifrar, sabemos que o texto mostra uma incomum alta taxa de regularidade. Por exemplo, as palavras mais comuns aparecem, a miúdo, duas ou mais vezes por linha. Pra representar as palavras, utilizo o alfabeto Voynich europeu (EVA), uma convenção pra transliterar os caracteres voinicheses ao alfabeto romano. Um exemplo do verso da página 78 do manuscrito diz: Qokedy qokedy dal qokedy qokedy. Esse grau de redundância não se encontra nalguma linguagem conhecida. Em sentido contrário, o voinichês contém muito poucas frases onde duas ou três palavras diferentes apareçam juntas. Essas características fazem muito improvável que o voinichês seja uma língua humana: Simplesmente, é muito diferente de todos os outros idiomas conhecidos.

A possibilidade de que o manuscrito seja só uma muito bem tramada farsa com intencionalidade econômica ou, simplesmente, os delírios dum alquimista louco volta a estar em discussão. A complexidade lingüística do texto parece argumentar contra essa teoria, afirmou Rugg. Além da repetição de palavra há numerosas regularidades na estrutura interna dos vocábulos. A sílaba qo, muito comum, só aparece no princípio das palavras. A sílaba chek pode aparecer no começo mas se a palavra também contém qo, então qo vem antes de chek. A sílaba dy, também comum, aparece normalmente no final das palavras e em ocasiões no princípio, mas nunca no meio. Um método simples de eleger e mesclar que combinasse as sílabas ao azar nunca poderia produzir um texto com tal grau de regularidade. O voinichês é, assim mesmo, muito mais complexo que o discurso patológico observado em pacientes com danos cerebrais ou desordens psicológicas. Inclusive se um alquimista louco elaborasse uma gramática pruma língua inventada por ele, e se passasse anos e anos escrevendo um manuscrito que empregasse essa gramática, o texto resultante não apresentaria as características estatísticas que encontramos no Voynich.

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Distribuição binomial das palavras do manuscrito, segundo Jorge Stolfi

É verdade: No manuscrito os tamanhos das palavras tomam a forma duma distribuição binomial, ou seja, as palavras mais comuns têm cinco ou seis caracteres, enquanto que a freqüência de aparição das palavras mais longas ou mais curtas cai bruscamente pra formar uma curva em forma de sino simétrico, conhecido como sino de Gauss. Disse o especialista: Essa classe de distribuição é extremamente incomum nas línguas humanas. Praticamente na totalidade dos idiomas conhecidos a distribuição longitudinal de palavras é muito mais larga que um sino de Gauss e também assimétrica, com uma clara preeminência das palavras relativamente longas. É altamente improvável que a distribuição binomial do voinichês tenha sido deliberadamente incluída como parte da farsa, simplesmente porque o conceito estatístico em que se baseia só foi inventado séculos depois do manuscrito ter sido escrito.

Em suma, o manuscrito Voynich parece ser um código extremamente incomum, uma língua estranha e desconhecida ou uma mentira altamente sofisticada, e não há maneira fácil de resolver esta disjuntiva, motivo pelo qual o mistério persiste durante quase cinco séculos.

Quando Rugg e seu colega Joanne Hyde começaram a buscar um problema como esse, porque estavam desenvolvendo um método pra avaliar criticamente o tipo de conhecimento e raciocínio utilizados na resolução de difíceis problemas de investigação, toparam com o manuscrito Voynich. Começaram a determinar quais tipos de conhecimento foram aplicados previamente ao problema.

A afirmação de que as características do voinichês são inconsistentes com qualquer idioma conhecido se baseiam em conhecimentos lingüísticos substanciais. Essa conclusão parecia correta, por isso continuei com a hipótese da farsa. A maior parte da gente que estudara o manuscrito estava consciente de que o voinichês era demasiado complexo pra ser uma piada. No entanto, essa afirmação se baseava mais em opiniões que em evidências firmes. Não há corpo de conhecimento que trate acerca de como reproduzir um texto cifrado medieval muito longo, pela simples razão de que, deixando de lado as farsas, dificilmente se encontre exemplo dum texto tal, escreveu Rugg.

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Comparação, de Stolfi, da distribuição longitudinal de palavras. Em azul o manuscrito Voynich. As outras curvas representan o Antigo testamento em latim, o Novo testamento em grego, o Dom Quixote em

castelhano e um texto etíope.

Vários investigadores, como Jorge Stolfi da universidade de Campinas, Brasil, duvidaram sobre de se o manuscrito Voynich foi feito utilizando tabelas de geração de texto ao azar. Essas tabelas têm células que contém caracteres ou sílabas. O usuário seleciona uma seqüência de célula, por exemplo, tirando os dados, e as combina pra formar uma palavra. Essa técnica pode gerar algumas das regularidades internas das palavras voinichesas. Sobre o método de Stolfi, a primeira coluna da tabela contém os prefixos, como qo, que só se apresenta ao começo das palavras; a segunda contém as sílabas que aparecem no meio das palavras (como chek) e a última as sílabas que só aparecem no final, como, por exemplo, y. Escolhendo sílabas das três colunas em seqüência, o investigador produzirá palavras com a estrutura característica do voinichês. Algumas das casas podem ficar vazias pra que possam existir palavras sem prefixo, meio ou sufixo.

Mas isso não é suficiente: Há muitas outras características estatísticas do voinichês que não podem ser produzidas com tanta facilidade. Por exemplo, alguns caracteres são comuns considerados individualmente, mas raramente, ou nunca, aparecem um junto ao outro. Os caracteres transcritos como a, e e l são comuns, como sua combinação al, mas el é quase inexistente. Esse efeito não pode ser feito combinando caracteres duma tabela ao azar, por isso Stolfi e outros rechaçam essa explicação. A questão capital aqui é a alocução ao azar. Pros investigadores modernos a aleatoriedade é um conceito muito útil e comum. Também é um conceito desenvolvido muito tempo depois da criação do manuscrito.

Rugg contesta a teoria do azar: Um gozador medieval usaria, provavelmente, uma maneira diferente de combinar as sílabas, que não fosse aleatória no estrito sentido estatístico moderno. Rugg começou a suspeitar que algumas das propriedades do voinichês seriam efeitos dalgum método largamente olvidado e obsoleto.

Voltou, então, à hipótese da farsa prà investigar em profundidade. O passo seguinte foi tentar produzir um documento falso pra ver quais efeitos colaterais apareciam. A primeira pergunta era, então: Qual técnica utilizar? A resposta dependia de quando o manuscrito foi produzido. Tendo trabalhado em arqueologia, um campo onde a datação de artefato é uma preocupação fundamental, Rugg conhecia o consenso geral de que o Voynich foi criado antes de 1500. As ilustrações eram do estilo do fim de 1400 mas esse atributo não demonstrava, necessariamente, a antigüidade do material: Os trabalhos artísticos, a miúdo,

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apresentam o estilo de períodos anteriores, tanto inocentemente como pra um documento aparentar ser anterior ao que realmente é.

Busquei, então, uma técnica de criptografia que fosse usual durante o mais larga faixa possível de datas de origem do manuscrito Voynich: De 1470 a 1608. Uma possibilidade muito boa era o crivo de Cardano, desenvolvida pelo

matemático italiano Girolamo Cardano em 1550. Consiste num cartão com ranhuras recortadas. Quando se apóia o crivo sobre um texto aparentemente inócuo (mas escrito através dum cartão igual), as ranhuras permitem ler o texto oculto na mensagem. Rugg compreendeu que um crivo desse tipo permitia selecionar permutações de prefixos, meios e sufixos duma tabela, a efeitos de gerar palavras similares às voinichesas.

Desenho duma flor inexistente, ainda que pareça um girassol (detalhe)

Uma página típica do manuscrito Voynich contém entre 10 a 40 linhas, cada uma composta entre 8 a 12 palavras. Usando o modelo de três sílabas do voinichês, uma tabela de 36 colunas e 40 linhas conteria suficientes sílabas pra produzir uma página completa do manuscrito com um só cartão ranhurado. A primeira coluna conteria os prefixos, a segunda as partes centrais e a terceira os sufixos das palavras. As colunas seguintes repetiriam o mesmo padrão.

O psicólogo nos explica o procedimento: Qualquer um pode alinhar o crivo contra o ângulo superior esquerdo do crivo pra gerar a primeira palavra e logo a mover três colunas à direita pra fazer o mesmo com a seguinte, ou a mover mais até a direita ou a uma linha inferior. Dispondo o cartão em distintas posições da tabela o investigador pode criar centenas e centenas de palavras em voinichês. E a mesma tabela poderia ser usada com outro cartão pra gerar as palavras da página seguinte.

Faltava demonstrar o tempo necessário pra escrever um livro como o manuscrito Voynich. Um dos argumentos utilizados e socorridos pelos ocultistas pra desmoralizar a teoria da fraude sempre foi, precisamente, que um falsificador medieval levaria anos ou décadas pra completar um manuscrito tão complexo e elaborado. Nunca alguém cronometrou uma tentativa séria.

Mulheres nuas, animais, canos, cisternas...

Quanto demoraria utilizando o método de Cardano? Rugg desenhou três tabelas a mão, o que lhe tomou duas ou três horas por tabela.

Recortar cada cartão ou crivo levou de dois a três minutos, e se fabricou dez delas. Escreveu satisfeito: Feito isso, pude gerar de 1000 a 2000 palavras, comprovando que meu método me permitia reproduzir facilmente a maior parte das características do voinichês. Por exemplo, qualquer um pode se certificar de que

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certos caracteres nunca apareçam juntos dispondo cuidadosamente crivos e tabelas. Se os crivos sucessivos estão sempre sobre distintas linhas, as sílabas das células adjacentes em sentido horizontal nunca aparecerão juntas, ainda que

sejam muito comuns individualmente. A distribuição binomial em sino de Gauss pode ser feita mesclando sílabas curtas, médias e longas na tabela. Outra característica do voinichês, que é o fato de que as palavras iniciais das linhas tendem a ser mais longas que o resto, pode ser reproduzida simplesmente colocando mais sílabas um pouco mais longas no lado esquerdo da tabela. Parece ser, então, que o manuscrito Voynich pôde ser escrito utilizando o método do crivo de Cardano. A reconstrução realizada por mim e meus colegas sugere, portanto, que uma só pessoa pode ter composto o manuscrito completo, incluindo as ilustrações, em apenas três ou quatro meses.

Mas subsiste a questão crucial: É o livro só geringonça incompreensível ou contém uma verdadeira mensagem codificada? Verso da página 36

Rugg encontrou duas maneiras ou métodos de empregar o sistema de crivos e tabelas pra codificar e decodificar texto plano. O primeiro

consiste num cifrado de substituição que converte as letras do texto normal em sílabas medianas que ficam acavaladas entre um prefixo e um sufixo sem significado, utilizando o método indicado mais acima.

O segundo designa um número a cada caractere do texto original e logo usa esses números pra especificar a localização do crivo sobre a tabela. Ambas as técnicas, no entanto, produzem textos com nível muito menor de repetição que a que apresenta o manuscrito.

Esta descoberta indica que se na realidade se usou o crivo de Cardano pra redatar o manuscrito Voynich, o autor, provavelmente, criou um grande volume de texto sem significado, ainda que soberba e inteligentemente planejado, em vez dum texto verdadeiro cifrado.

Rugg não encontrou evidência de que o texto contenha, na realidade, uma mensagem.

Surpreendente diagrama astrológico

Essa ausência de evidência não prova, por suposto, que o manuscrito seja uma brincadeira, mas meu trabalho demonstra que a elaboração duma farsa tão complexa como essa é muito fácil de realizar. Essa explicação se encaixa com certos intrigantes fatos históricos: O acadêmico isabelino John Dee e seu sócio Edward Kelley visitaram a corte de Rodolfo II, na década de 1580. Kelley foi um notório falsificador, místico e alquimista, que, provadamente, conhecia bem o

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método de Cardano. Durante muito tempo os especialistas suspeitaram que Kelley foi o autor do manuscrito.

Uma aluna de Rugg, Laura Aylward, está investigando hoje se as peculiaridades estatísticas mais complexas do Voynich podem ser, também, reproduzidas com a técnica de Cardano. Pra responder a essas perguntas será necessário gerar enorme quantidade de texto usando tabelas e crivos de distinto desenho, pelo que Rugg está elaborando o softuer necessário pra automatizar o processo.

É fácil entender que, sendo Rugg um psicólogo, a tradução do manuscrito lhe importa muito pouco. Seus interesses são outros: Este estudo mostra valiosas aprendizagens,

entretanto, acerca do processo de reexaminar problemas difíceis pra determinar se uma possível solução foi passada por alto. Um bom exemplo desse tipo de problema é buscar a causa do mal de Alzáimer. Rugg planeja examinar se o mesmo critério de aproximação ao manuscrito Voynich pode ser usado pra reavaliar a investigação prévia sobre essa desordem neurológica. As perguntas a formular devem incluir, por exemplo, as seguintes: Os investigadores esqueceram algum campo ou grupo de conhecimento relevante? Há sutis mal-entendidos entre as diferentes disciplinas envolvidas no estudo da doença em questão? As coisas que se admitem como certas, foram suficientemente provadas? Os girassóis do Voynich

Se o processo pode ser usado pra ajudar aos investigadores do Alzáimer a encontrar novos rumos de investigação, então um manuscrito medieval que parece um

manual de alquimia pode provar, eventualmente, ter se convertido num presente prà medicina moderna.

De fato, é possível que os métodos utilizados pra analisar o mistério de Voynich poderiam ser aplicados pra resolver importantes questões doutras áreas. Armar o complexo quebra-cabeça do manuscrito requer grande conhecimento em vários campos, incluindo

criptografia, lingüística e história medieval. Como investigador no campo do raciocínio especializado Rugg vê seu trabalho sobre o manuscrito Voynich como um teste de aproximação informal que poderia ser aproveitado pra identificar novas formas de esclarecer questões científicas não resolvidas há muito tempo. O passo-chave é a identificação das seguranças e debilidades dos conhecimentos sobre os campos relevantes à questão. Detalhe dum fólio do manuscrito

Se o método de Rugg se mostra eficiente noutros campos o desconhecido autor do manuscrito Voynich teria presenteado a ciência com uma ferramenta fabulosa e valiosa, sem querer nem suspeitar.

Enquanto isso, o volume causador de toda esta investigação e tantos desvelos dorme numa vitrina. Passaram pelo mistério, ao largo de 500 anos, as figuras de Rodolfo II,

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Rogério Bacon, Voynich, John Dee, Kircher, Kraus, Marci, Kelley, Baresch, e os investigadores modernos Stolfi, Cardano, Joanne Hyde, Aylward e o próprio Rugg. Todos estiveram presentes, mas, como o faremos tu e eu, passaram e desapareceram no pó dos séculos, ou o farão (e faremos) quando chegar o momento. Mas o mistério persistirá, porque, agora, os especialistas guardam muito pouca esperança de que o manuscrito Voynich possa ser decifrado alguma vez.

Em 1969, farto de o tentar vender, H. P Kraus doou o manuscrito Voynich à universidade de Iale, que o arquivou, junto à carta Marci, em sua biblioteca Beinecke de livro raro.

Ali está, rotulado com o número de catálogo MS 408, junto à carta de Marci (MS 408A).

Dizem, os que viram, que parece sorrir e guardar silêncio, como se soubesse um segredo que não somos nem seremos capazes de desvelar. Uma galáxia espiral num manuscrito do século XV?