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O mensalão maculou a república

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Revista Politica Democratica

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O mensalão maculoua república

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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArmênio GuedesArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCesar BenjaminCharles PessanhaCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilson LeãoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroOsvaldo Evandro C. MartinsPaulo Afonso Francisco de CarvalhoPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSergio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

Fundação Astrojildo PereiraSEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected]

Presidente de Honra: Armênio GuedesPresidente: Caetano Pereira de Araujo

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. Coelho

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2012 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Obra da capa: Cavalhadas • Pirenópolis/GO • 1995

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2012.No 34, novembro/2012.200p.

CDU 32.008 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Novembro/2012

O mensalão maculoua república

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Sobre a capa

O autor das obras que embelezam nossas capa e contracapa é Pérsio Ribeiro Forzani, que possui quase 3 mil quadros dependurados nas paredes do mundo, decorando salas de

presidentes, ministros, embaixadores, governadores, empresários e gente simples. Filho de família humilde, menino raquítico, de pernas atrofiadas, ele vem pintando, como autodidata que é, desde os 8 anos de idade, o produto de sua garra e perseverança.

Natural de Pirenópolis, uma bela cidade colonial de Goiás, onde nasceu no dia 8 de fevereiro de 1935 e de onde pouquíssimas vezes saiu, ele em praticamente todas suas telas a óleo em alto relevo mostra com maestria as igrejas, ruas, becos e casarões da Cidade dos Pireneus, retrata temas religiosos e populares como as procissões, as cavalhadas, as festas de rua, fazendo a alegria disputada de colecionadores.

Pérsio Forzani, brasileiro e cidadão do mundo, vive solteiro em sua casa simples, no seu quartinho de sono onde no cavalete, no banquinho, com os pincéis e as tintas, no seu cotidiano, sonha e cria seus quadros, na cama onde repousa suas canseiras, tudo isso cons-titui uma rica lição de vida a todos nós pela pobreza franciscana, pela simplicidade e, sobretudo pelo bom humor com que encara e enfrenta as “passadas” dolorosas do dia a dia.

Para mostrar o quanto é admirável o amor que esse artista sem-pre cultivou pela sua cidade natal, basta dizer que, há uns anos atrás, a pedido do conterrâneo e saudoso escritor José Sizenando Jayme, ele pintou 444 casas da antiga cidade, desenhos que fazem parte do livro Casas de Pirenópolis, com prefácio de Oscar Niemeyer.

Esta figura simples e carismática compõe a Academia Pirenopoli-na de Letras, Artes e Música (Aplam), ao lado de historiadores, pin-tores, escultores, músicos, compositores e escritores. Trata-se de um justo reconhecimento a quem, com sua arte singular, contribuiu para o resgate de imagens belíssimas e já quase apagadas no incons-ciente popular do antigo lugarejo chamado Meia Ponte: becos tor-tuosos, procissões à luz de velas, cavalhadas no largo da Matriz, ca-sarões já demolidos, cenas de importância histórica, fazendo renascer da magia colorida um mundo fabuloso de damas e cavalheiros, de compositores e maestros inspirados, de coronéis valentes na política fervente, de escravos sofrendo pelo chicote dos feitores, personagens que um dia calcaram o chão goiano.

Nossa felicidade e alegria por homenageá-lo, aqui reproduzindo alguns dos seus belos e cativantes trabalhos.

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Sumário

APRESENTAÇÃOOs Editores ......................................................................................................... 07

I. TEMA DE CAPA: O MENSALÃO MACULOU A REPÚBLICAAmeaça à democracia e à repúblicaRoberto Freire ............................................................................................................ 13

Reafirmação do Judiciário como poder republicanoLuiza Vieira Sá de Figueiredo .................................................................................... 21

Ainda não é o fimWilson Figueiredo ...................................................................................................... 26

Sobre os antecedentes do atual momento políticoAugusto de Franco ..................................................................................................... 28

II. CONJUNTURAAs eleições municipais em questãoFernando Perlatto ...................................................................................................... 41

Eleições municipais e falência do poder localAnivaldo Miranda ...................................................................................................... 47

Um olhar cariocaGilvan Cavalcanti ...................................................................................................... 52

III. OBSERVATÓRIOFederalismo e política social em perspectiva transformadoraCarlos Sávio Teixeira ................................................................................................. 59

Práticas deformadas nas organizações ligadas aos movimentos sociaisAilton Benedito de Sousa ........................................................................................... 67

IV. BATALHA DAS IDEIASA arte como tese históricaJ. R. Guedes de Oliveira ............................................................................................ 79

A dialética na Esplanada dos MinistériosFlávio R. Kothe ........................................................................................................... 85

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V. O SOCIAL E O POLÍTICOCiência, democracia e mobilidade urbanaMaria Alice Rezende de Carvalho .............................................................................. 95

O sistema de saúde e o interesse do cidadãoWaldir Cardoso ........................................................................................................ 104

Os deserdados da terra: a fronteira como tragédiaLúcio Flávio Pinto ..................................................................................................... 110

VI. QUESTÕES DO ESTADO E DO CIDADÃOA tributação progressiva e a justiça fiscal no discurso das elitesMaurin Almeida Falcão ............................................................................................ 117

A transparência é para valer?Gil Castello Branco .................................................................................................. 125

VII. ENSAIOEm busca do espírito da épocaFabrício Maciel ......................................................................................................... 131

Gramsci e a questão da democraciaAlberto Aggio ............................................................................................................ 145

VIII. MUNDOEm torno de um nacionalismo europeuPaulo Delgado .......................................................................................................... 155

Desafios aos cientistas africanos. A transição socialistaPaulo Alves de Lima Filho ........................................................................................ 158

IX. MEMÓRIAA contribuição de Carlos Nelson Coutinho para a compreensão da literatura e da cultura no BrasilRafael Massuia ........................................................................................................ 169

Um historiador que viveu seu tempoMartin Cezar Feijó .................................................................................................... 178

De tocador de tuba a grande maestroEdmilson Caminha ................................................................................................... 182

X. RESENHADialética, cultura e históriaJosé Antonio Segatto ................................................................................................ 187

Governança democráticaWilame Jansen ........................................................................................................ 195

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Apresentação

O Brasil deu um novo e importante passo na afirmação da sua vida institucional, no momento em que o Judiciário exami-nou e decidiu pôr a nu, no mais expressivo julgamento da

nossa História, o mais escandaloso processo de corrupção da Repú-blica implantada em fins do século XIX. O chamado caso do mensa-lão levou à condenação algumas das mais expressivas lideranças do Partido dos Trabalhadores, a maior organização política de esquerda até hoje constituída no país, assim como de outros partidos e figu-ras da vida empresarial pública e privada. Durante cerca de quatro meses consecutivos, o Supremo Tribunal Federal, de forma aberta e transparente, por meio de canais de televisão e rádio, mostrou de que são capazes os que ascenderam ao poder em 2003 e nele pretendem se manter, a qualquer preço, pelo tempo que lhes for possível.

Não poderia ser outro nosso Tema de Capa. Nele mergulham, sob os mais diversos ângulos, o advogado e deputado federal Roberto Frei-re, que expõe aspectos reveladores e probatórios de que não apenas houve a inaceitável montagem e sustentação desse aparato de apoio ao então governo Lula, como disseca o quanto é pedagogicamente no-civo aos princípios e à prática democrática e republicana; a juíza esta-dual Luiza Vieira Sá de Figueiredo, que examina a Ação Penal nº 470, sob o olhar de uma pessoa que conhece a intimidade do ato de julgar e reconhece as fragilidades ainda existentes para que se faça justiça, sobretudo quando se trata de poderosos; o arguto jornalista Wilson Figueiredo, apesar de considerar avanço a decisão da chamada Supre-ma Corte, em julgar e condenar os mensaleiros, não revela otimismo sobre mudanças que possam daí advir; e o cientista político Augusto de Franco que, como ex-integrante da Executiva Nacional do PT e co-nhecedor profundo das entranhas dessa máquina partidária, faz um

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corajoso relato e ressalta o que é do conhecimento de muita gente – falta alguém no banco dos réus, o chefe do “banditismo de Estado”, como ele afirma, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Na seção Conjuntura, o doutorando em Sociologia, Fernando Per-latto, faz uma ampla análise dos resultados do pleito municipal de 2012, dissecando a manifestação do eleitorado em seus múltiplos aspectos, mas sem cair em nenhum dos extremos dos analistas, os que não veem nenhuma ligação entre uma eleição e outra, e os que veem a municipal tendo grande determinação na nacional. Já o jor-nalista e mestre em Meio Ambiente, Anivaldo Miranda, se preocupa muito mais com o descaso dos gestores do Poder Local para com a governança social do que a respeito das forças políticas que ganha-ram ou que perderam as eleições deste ano. Penetra ele numa avalia-ção profunda sobre a necessidade de se construir o cidadão partici-pante, de incorporá-lo em cada momento de se gerir a coisa pública, considerando-se que as políticas públicas são executadas no plano local. E por fim, o blogueiro Gilvan Cavalcante se concentra no pleito no município do Rio de Janeiro, segundo ele, um enorme e complexo laboratório de ações políticas e sociais.

O professor Carlos Sávio Teixeira nos apresenta, na seção Obser-vatório, uma curiosa provocação em torno dos problemas maiores do país, ao condenar, de um lado, o redistributivismo enganador, e, ao propor, de outro lado, uma urgente reforma política, capaz de mudar por completo o ambiente pernicioso em que se montam as represen-tações partidárias hoje dominantes. Uma de suas principais propos-tas se resume a se tentar construir uma instância transfederal, em que a União, o estado e o município atuem de forma a oferecer as políticas públicas (sobretudo educação e saúde) da melhor forma ao cidadão, sobretudo considerando-se o elevado nível de desigualdade ainda existente no país. Enquanto isso, o engenheiro Ailton Benedito faz um interessante levantamento crítico sobre como atuam as varia-das organizações que buscam representar os interesses e projetos dos movimentos sociais no Brasil.

Já na seção O Social e o Político, o dirigente da Federação Nacio-nal dos Médicos, Waldir Cardoso, desenvolve uma ampla abordagem sobre a questão da assistência de saúde ao cidadão brasileiro, a qual deveria ser política prioritária de qualquer governo, qualquer que seja a sua instância, sobretudo considerando-se que, em compara-ção com outros países, somos um dos que gastam menos em termos de percentual do PIB. Ele, com muita propriedade, aborda os proble-mas e apresenta suas propostas de solução. Já a socióloga Maria Alice Resende de Carvalho realiza empolgante análise sobre os pro-

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blemas sociais mais graves da cidade do Rio de Janeiro, que são típicas dos grandes municípios brasileiros, e aponta como a ciência pode ajudar a encontrar soluções para eles. O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto faz artigo-reportagem sobre questões transcen-dentais da Amazônia.

Na Batalha das Ideias, temos textos polêmicos do ensaísta pau-lista José Roberto Guedes de Oliveira a respeito da arte como tese histórica, e o do professor de Estética, Flávio Kothe, no qual ele aborda com muita sapiência e ironia o complexo e delicado tema da dialética na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Nessa mesma linha instigante, temos, na seção Questões do Estado de Direito, o profundo artigo do doutor em Direito Tributário Internacional, Maurín Almeida Falcão, em que ele se aprofunda na questão da tributação progressiva e propõe caminhos para sua implantação no Brasil, e o do economista Gil Castelo Branco em que, utilizando informações e dados recentes, exige que a legislação sobre a trans-parência das contas e coisas públicas não seja boicotada exatamen-te pelos poderes públicos.

Dois excelentes trabalhos enriquecem a nossa tradicional seção Ensaio, um do doutorando em Ciências Sociais, Fabrício Maciel, a respeito da busca do chamado espírito da época – como caracterizar a sociedade humana, hoje? –, e o do historiador Alberto Aggio, que envereda com muita propriedade no rico ambiente de Gramsci e a questão democrática, um tema sempre na ordem do dia para quem pensa em fazer a sociedade dar passos mais largos em direção à equidade. Da mesma forma, na seção Mundo, o sociólogo e ex-depu-tado federal Paulo Delgado analisa a crise vivida pelo planeta, nos planos financeiro e econômico, e defende a construção de um nacio-nalismo europeu, uma espécie de Estados Unidos da Europa, como forma de salvar o velho continente. E o economista Paulo Alves de Lima Filho examina os desafios vividos pelos africanos no seu cami-nho para construir uma nova sociedade naquele continente.

Nas seções seguintes, em que se envolvem a política e a cultura, temos na Memória, o pós-graduando em Ciências Sociais, Rafael Massuia, que, louvando o intelectual Carlos Nelson Coutinho, recen-temente falecido, apresenta a contribuição deste para a compreensão da literatura e da cultura no Brasil, e o sensível artigo do comunicó-logo Martin Cézar Feijó sobre o também fantástico pensador comu-nista Eric Hobsbawm, morto no último trimestre do ano, e o curto mas empolgante registro histórico do escritor Edmilson Caminha a respeito do maestro Eleazar de Carvalho. Na Resenha, o historiador José Antonio Segatto faz pertinente e crítica análise do trabalho de

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Roberto Schwarz sobre a figura imortal de Machado de Assis, e, por fim, o economista Wilame Jansen destaca os aspectos positivos do último trabalho do espanhol Josep Pascual Esteve, Governança De-mocrática: Construção coletiva do desenvolvimento das cidades, lan-çado pela Fundação Astrojildo Pereira.

O material é da melhor qualidade. Delicie-se, prezado leitor!

Os Editores

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I. Tema de capa: O mensalão maculou

a república

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Autor

Roberto FreireAdvogado, deputado federal por São Paulo e presidente nacional do Partido Popular Socialista.

Luiza Vieira Sá de FigueiredoJuíza do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

Wilson FigueiredoJornalista durante 65 anos, dono de uma das mais completas trajetórias da imprensa brasileira, tendo sido cronista, repórter, editor, editorialista e secretário de redação, parti-cipando de várias transformações da imprensa brasileira no século 20.

Augusto de FrancoCientista político, especialista em redes sociais, em desenvolvimento local e sustentável.

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Ameaça à democracia e à república

Roberto Freire

Grande parte dos brasileiros, particularmente os que se envol-vem, direta ou indiretamente, com a política, estão cada vez mais chocados com o comportamento de algumas das figuras

mais eminentes do Partido dos Trabalhadores assim como de inte-lectuais a ele vinculados. É que esta agremiação que tem marcado a vida nacional nos últimos trinta anos, nascera como um modelo de renovação e aceno de esperança para muita gente; um modelo que agora parece se liquefazer, se não no corpo de todo o partido, certa-mente em parcelas extensas do seu grupo dirigente.

Assim como milhões de cidadãos que participaram da batalha para derrotar o regime autoritário implantado em 1964, nós do PPS, uma vez mais, estamos estarrecidos diante do que ora se passa, à luz do dia e dos refletores, com atitudes e declarações de personalidades que, na essência, nada mais são que aspectos de um movimento contra a demo-cracia e a república. Na verdade, por mesquinho interesse partidário, querem desclassificar uma ação decisória do mais alto nível do Poder Judiciário, segundo os parâmetros do devido processo legal, tachando--a de “julgamento político” ou “julgamento de regime de exceção”.

Como é possível entender que “o partido da ética na política” – pelo menos era assim que o PT se apresentava, repetindo esse mote à exaustão – se transformou a tal nível e atingiu tal degradação, a ponto de sua cúpula estar envolvida num sofisticado e sistêmico caso de corrupção perpetrado por sua cúpula maior, e ser julgada e con-denada pela mais alta instância jurisdicional do país como uma “quadrilha de delinquentes”?

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Acreditamos que as respostas a tão delicada questão podem ser encontradas no exame da própria trajetória petista, vale dizer, na gênese e desenvolvimento desse partido. Permitam-me parodiar um velho revolucionário, sugerindo que se examinem as três fontes inte-grantes do PT: os remanescentes dos grupos armados, sempre dis-postos contra tudo e contra todos, em seu intolerante projeto de po-der a qualquer preço; as lideranças que ascenderam às direções sindicais em substituição aos que foram presos, perseguidos ou mor-tos nos anos de chumbo; e, finalmente, os militantes católicos com tintas políticas – no caso, as Comunidades Eclesiais de Base –, esti-mulados pela Teologia da Libertação, com sua “ética de convicção”. No centro desses grupos, havia, de um lado, líderes derrotados da luta armada, como José Dirceu e José Genoino, e, do outro, Lula, dirigente sindical carismático, inteligente e hábil, com acentuada ambição de poder.

Produto dessa parceria, e com altíssimo conceito de si próprio, o PT, desde o primeiro momento, padeceu dos males de sectarismo, estreiteza de visão política, aversão a alianças e vocação hegemonis-ta. Sem considerar a estratégia do regime de enfraquecer a oposição, dividindo-a, o PT no primeiro pleito de que participou, para o cargo de governador, em 1982, lançou candidato em todos os estados em que foi possível e usou um slogan divisionista de que “trabalhador vota em trabalhador”. Em 1985, recusou-se a participar do Colégio Eleitoral, por espúrio e ilegítimo, deixando de votar no candidato dos democratas, Tancredo Neves, contra o da ditadura, Paulo Salim Ma-luf, e expulsou três parlamentares (Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes), que com seus votos seguiram a única via para derrotar o regime, após a perda das Diretas Já. Menosprezou o Congresso Constituinte, em 1987/88, pois queria uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva. No decorrer dos trabalhos desta Assembleia, sob a invocação de sua soberania, procurou criar uma dualidade de poderes entre ela e o Executivo (governo Sarney), que quase a invia-biliza; e, como se fosse pouco, votou contra o texto final da mais de-mocrática das Constituições brasileiras, porque supostamente não tratava de questões dos que viviam do trabalho e de salário.

Nos primeiros momentos da reconstrução institucional do país, em 1989, no segundo turno da primeira eleição direta para presiden-te da República, a cúpula do PT não admitiu a presença, na campa-nha em apoio ao candidato Lula, da grande figura de Ulisses Guima-rães, o “senhor diretas”. Ao assumir, no ano seguinte, Fernando Collor a Presidência da República, os petistas criaram uma espécie de Governo Paralelo, como se estivéssemos em regime parlamenta-

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rista. Na verdade, tratava-se de uma iniciativa equivocada, pois des-considerava a existência de um governo legal e legítimo, produto da maioria dos votos dos brasileiros, podendo, inclusive, redundar em propostas golpistas. Em fins de 1992, após o impeachment, Itamar Franco assumiu a chefia da nação e organizou um governo de ampla coalizão, contando ainda com algumas das maiores personalidades do país. No curto espaço de dois anos e três meses, o governo Itamar deu início a um processo histórico de mudanças, porém o PT se re-cusou a dele participar.

Em abril de 1993, no plebiscito sobre forma e sistema de governo, o PT foi um dos raros partidos de esquerda a votar favorável ao pre-sidencialismo vitorioso (o que pensar dessa recusa à forma mais avançada de democracia, o parlamentarismo?). No final daquele ano, estava prevista a revisão constitucional, colocada no texto da Carta de 1988 por exigência particularmente dos petistas, a pretexto de que aquela não era a sonhada pelos brasileiros, daí porque, cinco anos depois, deveriam ser feitas pelo Congresso Nacional as mudan-ças necessárias. No entanto, chegado o momento dessa revisão, ape-nas o PPS se manteve a ela favorável. O PT e o PCdoB foram radical-mente contrários a ela, migrando de posição sem dar a menor satisfação à opinião pública.

Na segunda eleição presidencial após o fim da ditadura (1994), o PPS, em convenção nacional, decidiu apoiar a candidatura da Frente Brasil Popular, encabeçada por Lula, embora com divergências explí-citas quanto à estreiteza da frente e à condução da campanha, prin-cipalmente o grosseiro erro de subestimar e até ridicularizar o Plano Real e seu alcance para a economia e o povo. Fernando Henrique elegeu-se logo no primeiro turno com razoável diferença de votos, o que ocorreria também em 1998. Porém, já no início deste segundo mandato, o PT e entidades sindicais a ele vinculadas promoveram movimento de natureza golpista, com palavras de ordem como “Fora FHC” e “antecipação das eleições”, que culminou com manifestação liderada por Lula na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

E haveria muitos fatos mais, porém fiquemos nesta constatação básica: em instantes decisivos da transição democrática, prevaleceu sempre o mesquinho interesse partidário.

Constatando que por este caminho não iria atingir o objetivo maior do poder, com três derrotas consecutivas na disputa presiden-cial, e duas delas ainda no primeiro turno, a cúpula petista muda da água para o vinho. Para se apresentar em condições melhores no pleito de 2002, lança uma “Carta aos brasileiros”, com o compromis-

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so de manter a política macroeconômica anterior, e cria uma figura de ficção, o “Lulinha, paz e amor”. Temos de convir que tais “abertu-ras”, insistentemente promovidas por um marketing extremamente profissional e audacioso, ajudou, e muito, o PT a ganhar o comando do governo federal, em segundo turno.

Sem clareza a respeito das turbulências que iria enfrentar, já que a maioria dos partidos, sobretudo os maiores, não fazia parte da base governista, o PT, ainda no primeiro semestre de 2003, começou a atrair líderes de partidos, procurando conquistar legendas ou parla-mentares individuais, de forma a levá-los a se comprometer com as propostas a ser encaminhadas ao Congresso Nacional.

Exemplo disso aconteceu conosco. Numa noite de junho daquele ano, no hotel Aracoara, em Brasília, reunia-se a bancada do PPS para discutir o seu relacionamento com o governo. O encontro, que era acompanhado pelo ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, já estava bem avançado quando o deputado João Hermann propôs que seria bom aproveitar a oportunidade, em que se contava com a presença do ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, para que o Partido se declarasse aberto para a vinda de vinte e poucos parla-mentares, que trocariam suas legendas pela do PPS. Dirceu, como não tivesse articulado nada, declarou-se disposto a conversar a res-peito. Só que eu, como presidente do PPS, salientei que tão delicado assunto não era para ser discutido ali, pois não era tão simples como se imaginava e precisava ser avaliado do ponto de vista político pela direção nacional e as estaduais já que cada instância iria examinar e decidir caso a caso, se fosse considerado oportuno e conveniente. Naquele então não se tinha clareza alguma do que se arquitetava. Se tivesse aceito a proposta, o PPS, sem nenhuma dúvida, estaria hoje envolvido no processo do mensalão. Nos primeiros 15 meses da ges-tão Lula, 104 deputados haviam trocado de partido, reforçando a base governista.

Desde que chegou ao Planalto, o PT tornou-se partido da ordem, dividindo o poder com grupos econômico-sociais conservadores. O lulopetismo montou uma estrutura que envolve grupos de interes-ses antagônicos (corporações empresariais – sobretudo do sistema financeiro – e sindicalismo, elites e excluídos), num verdadeiro “Es-tado Novo” que tudo absorve e coopta. Poderia administrar o país a partir da centro-esquerda, como o fizera o presidente Itamar Franco, mas efetivamente não quis. Ao manter o modelo econômico-financei-ro do real, que condenara veementemente por ser neoliberal e anti-povo, teve a sorte de colher os frutos positivos possíveis dez anos depois da reforma da moeda, e isso, ademais, num período em que a

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economia mundial vivia sincronizadamente um dos seus melhores momentos desde o fim da II Guerra Mundial. Deste modo, conseguiu montar uma extensa base de poder, ao mesmo tempo em que monta-va uma artilharia retórica poucas vezes vista contra a suposta “he-rança maldita” deixada pelos antecessores.

Permitam-me relembrar fato pouco comum na história política brasileira: o PPS rompeu com o governo Lula em dezembro de 2004. No documento “Sem mudança não há esperança”, destacava-se que, em dois anos de gestão lulopetista, pouco havia sido feito para supe-rar as condições sociais e as dificuldades econômicas do passado, remoto ou recente. Na gestão pública, não se conseguira avançar na reforma democrática do Estado; no campo econômico, a ortodoxia continuava intocável e o velho receituário imperava soberanamente; na área social, o avanço era mínimo e, pior, perdera-se tempo ao se insistir em políticas compensatórias e assistencialistas (como, por exemplo, o Fome Zero, que seria substituído pelo Bolsa Família, cuja concepção foi herdada do período anterior), com impacto limitado na redução das imensas desigualdades sociais, quando não perpetua-doras destas. Na política, pouco se fizera para alterar padrões cultu-rais e comportamentais no ato de governar, resultando na manuten-ção de práticas fisiológicas e na partidarização do Estado em escala nunca vista anteriormente, afetando gravemente a própria capacida-de gerencial.

Passados dez anos, o que se conclui é que Lula, Dilma e o PT, lamentavelmente, nunca tiveram projeto de Brasil, mas apenas pro-jeto de poder, daí porque dificilmente poderiam implantar as bases para promover as mudanças exigidas pela situação do país, o que vem frustrando esperanças. Para se ter uma ideia do descalabro, podemos resumir a situação brasileira nos seguintes dados: somos hoje a sexta economia do mundo (em termos de PIB, Produto Interno Bruto) e ocupamos o 87º lugar (em termos do IDH, o Índice de Desen-volvimento Humano), com desigualdades sociais chocantes até mes-mo para os padrões sul e centro-americanos.

Além de perigosos sinais de omissão e falta de autoridade, a pró-pria questão ética – um patrimônio importante de qualquer governo para enfrentar os mais variados problemas, inclusive econômicos –, vem sendo abalada com permanentes denúncias, exemplificadas so-bretudo nos escândalos do mensalão, sanguessugas, aloprados, dó-lar na cueca etc., agravados por uso de esfera de influência e atos inaceitáveis quanto à postura pública por parte de alguns dos prin-cipais ministros de Lula e de Dilma (quase vinte deles foram obriga-dos a deixar o governo), sem falar no clima de confronto com instân-

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cias de controle (como o Tribunal de Contas da União). Desde o início do lulopetismo, o Planalto e seus agentes intervêm permanentemen-te, e de maneira grosseira, na vida do Parlamento em nome da gover-nabilidade. Insulto à República foi o fato de o Legislativo passar a ser tratado como extensão do Executivo, e escárnio não menos insul-tuoso o fato de o então presidente Lula lamentar publicamente ter de submeter-se às decisões do Poder Judiciário.

Curioso constatar que, todas às vezes em que os petistas são fla-grados e denunciados em atitudes pouco democráticas e republica-nas, ou se tornam alvo da reação popular, eles colocam a nu sua concepção e prática de democracia (a propósito, basta lembrar o que ocorreu em julho de 2007 na abertura dos Jogos Panamericanos, no Maracanã, quando milhares de pessoas vaiaram o presidente Lula por seis vezes consecutivas, repetindo o fato no encerramento daque-la competição). Começam com ameaças abertas, em declarações e discursos sucessivos, contra o que chamam de “golpismo das elites” e passam a arrancar do baú atrasados esquemas de divisão da socie-dade entre “bons” (eles) e “maus” (os que se opõem a seus absurdos); em seguida, pedem que as massas se decidam entre ficar com o “atraso” ou com o “progresso”, entre ficar com os “inimigos da pátria” ou com os “patriotas”; e terminam ameaçando levar a divergência para as “ruas”, se assim for necessário, até porque “nunca na histó-ria deste país” ninguém teria mobilizado mais gente do que eles.

Na verdade, tal reação petista demonstra que os diferentes seto-res da sociedade não deveriam ter o democrático direito de opinião e de protesto e, pior, de crítica ao governo. Ao tentar, com insistência, pôr a culpa na mídia, considerá-la “golpista” e “fazer o jogo das eli-tes”, pelo simples dever de divulgar fatos e declarações fora da “ver-dade oficial”, Lula e seu partido revelam gostar apenas de homena-gens e louvaminhas de jornalistas criados e nutridos à sombra do poder. Por isso, reveste-se de igual gravidade o fato de o governo lu-lopetista estimular e financiar a ação de grupos que pedem aberta-mente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos au-toritários de submissão de jornalistas e empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses. Repug-nante, também, é ver esse “departamento de imprensa e propagan-da” ser mobilizado para reescrever a História, procurando desmere-cer o trabalho de quantos construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a generalização do ensino fundamental, a expansão da tele-fonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.

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1919Ameaça à democracia e à república

A prática fisiológica e o aparelhamento do Estado, como formas de estabelecer “maioria”, têm causado, entre outras coisas, a crescente desmoralização da política e o desprezo do Parlamento como instância de representação. A prática de cooptação de parlamentares para a coa-lizão governista, a partir de ações não republicanas (o mensalão é apenas um exemplo), e o enorme número de Medidas Provisórias (MPs) para apreciação e deliberação do Congresso fazem com que o Executi-vo, na prática, determine a pauta do Legislativo, esvaziando este Poder da missão precípua de elaborar leis e fiscalizar os atos governamen-tais. Estaríamos tão distantes assim do conceito de hiperexecutivo ou de presidencialismo imperial, com o monopólio prático da política, em detrimento da própria autonomia da sociedade civil?

No caso concreto do mensalão, que expôs à execração pública as maiores figuras petistas, julgadas e condenadas pelo Supremo Tri-bunal Federal, era admissível que o PT e Lula usassem o tradicional jus sperniandi. Mas deveriam fazê-lo de forma correta e equilibrada, não tentando desmoralizar um dos três Poderes da República nem muito menos agindo sediciosamente. Aliás, é bom relembrar que al-gumas das mais influentes lideranças petistas (a começar de Lula, Dirceu e Genoino) declararam à saciedade, no inicio do processo, que o mensalão não existia, descaramento que insistiram em repetir du-rante o processo do julgamento, como se a nossa Suprema Corte estivesse julgando algo inexistente. Deveriam saber, eles e seus acó-litos, que não adianta fazer esse jogo de cena, pois a História brasi-leira já incorporou aos seus Anais esse sério atropelo da dignidade da função pública e essa ameaça à democracia e à República.

Esta nossa parcial avaliação de alguns momentos da trajetória do PT parece-nos importante para que se possa avaliar como pensaram e pensam, agiram e agem suas principais lideranças. Isto porque estamos vivendo um momento em que vozes petistas voltam, arro-gantemente, a reivindicar a posição de construtores da democracia brasileira, como se o fiat histórico ocorresse com a fundação do PT e o instante precedente nada mais fosse do que o “caos” anterior ao “Éden” petista. Por trás da aparência, há forte influência de ex-mili-tantes de setores ultraesquerdistas, agregada ao messianismo que alimenta parcelas do movimento sindical e popular, baseadas em certas concepções religiosas da política ou mesmo num marxismo atrasado, implicando, contra as boas intenções que possam ter, mé-todos autoritários de agir e visões com precária vocação democrática. Tudo isso se dá porque, em tais concepções, a democracia é vista apenas como meio de atingir o poder, e não como método fundamen-tal para a transformação do país e para a própria convivência civil.

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2020 Roberto Freire

Dada a extrema gravidade dos crimes atribuídos ao núcleo políti-co do chamado escândalo do mensalão, não basta só punir os auto-res: é preciso, também, apresentar soluções institucionais para as falhas do sistema político, por meio de uma ampla reforma que pre-vina novas ilicitudes. Da mesma forma, impõe-se fazer funcionar os sistemas de controle externo e interno dos gastos públicos, extinguir a diferença entre corrupção ativa e passiva, aumentar as penas a serem impostas a corruptos e corruptores, entre outras ações.

Não há outro caminho para solucionar os problemas nacionais fora da democracia, um valor permanente e universal. E, quando falamos em democracia, falamos em criar condições que possam romper com o sebastianismo e o messianismo, os quais, de alguma forma, estiveram presentes no amplo movimento que levou Lula ao poder e transparecem, claramente, no exercício do poder por parte do lulopetismo, roubando o protagonismo da sociedade e das suas inumeráveis formas de auto-organização.

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Reafirmação do Judiciário como poder republicano

Luiza Vieira Sá de Figueiredo

Nos últimos meses, o Brasil e, em especial, a classe jurídica vem acompanhando o que se tem nominado de “o julgamento do século”. As mais diversas opiniões e reflexões vem sendo

emitidas por toda a sociedade em torno do julgamento da Ação Penal nº 470, do Supremo Tribunal Federal, que apura a responsabilidade penal de políticos e empresários envolvidos em um suposto esquema de corrupção para a compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional em troca de aprovação a projetos de interesse do governo, conhecido como mensalão.

Nestas reflexões buscaremos destacar aspectos que tangenciam a análise jurídica, porquanto não se pode fazer um justo juízo sobre o acerto ou desacerto das decisões absolutórias e condenatórias, sem a análise dos autos da ação penal e conhecimento técnico acerca dos fatos postos para julgamento. Não é essa a pretensão ora externada, mas sim a de se fazer uma reflexão acerca do papel do Poder Judiciá-rio e dos novos rumos que se apresentam a ele e à sociedade.

Em artigos sucessivos anteriores,1 trouxemos à lume uma série de informações, fruto de pesquisas históricas acerca da implanta-ção das vias de comunicação ao interior do país e do desenvolvi-mento da infraestrutura nacional após a Proclamação da Repúbli-ca, destacando a preocupação das autoridades constituídas com o desenvolvimento das vias de intercâmbio, em sentido amplo, e construção de mecanismos que viabilizassem a interiorização das

1 História e direito: um ensaio interdisciplinar sobre o surgimento da norma jurídica. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano 31, n. 176, abr./jun. 2010. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/webfiles/producao/SPGE/revista/20100913170124.PDF>.

História e direito: a executoriedade da norma jurídica. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano 31, n. 178, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/webfiles/producao/SPGE/revista/20110325153042.PDF>. História e direito: da justiça sanitária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano 32, n. 180, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/webfiles/producao/SPGE/revista/20110808115835.PDF>.

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2222 Luiza Vieira Sá de Figueiredo

ações governamentais, processo este muito discutido atualmente em torno da logística.

O telégrafo; as ferrovias; as estradas; o ensino agronômico – esco-las, colônias agrícolas e fazendas modelo preparando o extenso ter-reno da instrução; investimento em educação e tecnologia que con-tribuíram para a explosão produtiva agrícola do Brasil e viabilizaram as altas produtividades dos dias atuais; o boom de investimentos no início do século XX, foram idealizados pelo governo federal, como tentativa de impulsionar a economia e o desenvolvimento da nascen-te República brasileira. Algo muito semelhante, guardadas as devi-das proporções temporais, ao programa Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal em 2007.

Em recentes e específicos trabalhos,2 abordamos novos paradig-mas que se apresentam inadiáveis especificamente ao Poder Judiciá-rio, para que ele consiga atender com eficiência e em tempo razoável as demandas que lhes são trazidas, em razão da necessidade de acompanhar o progresso social e a forma de administração da coisa pública, notadamente em decorrência das mudanças ocorridas no setor privado que repercutiram no setor público, reflexo por excelên-cia da evolução da sociedade e das relações sociais. Processo este direcionado pela emenda constitucional nº 45/2004, conhecida como A Reforma do Judiciário.

O julgamento da Ação Penal nº 470 pelo Supremo Tribunal Fede-ral e a repercussão desse julgamento na sociedade em geral também são sinalizadores de novos rumos. Os embates do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa, com o voto do revisor, ministro Ricardo Lewandowski, trazem à lembrança as reflexões hauridas de outras tantas leituras e rememoramos Carnellutti com a sua grandeza e simplicidade conjugadas ao dizer-nos acerca da ciência do processo, que a palavra discutir vem do latim discutio, que significa sacudir. O que essa ideia tem a ver com o processo? Indaga o renomado jus-filósofo, ao que ele mesmo responde: “Pensemos no ventilador para separar grãos, ou ainda apenas na peneira; trata-se de fazer passar

2 Gestão no Poder Judiciário e Novos Paradigmas, escrito em parceria com o juiz de Direito do TJPR Carlos Eduardo Mattioli Kockanny. Revista de Jurisprudência do Tri-bunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano 32, n. 182, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/webfiles/producao/SPGE/revista/20120208140307.pdf>. Gestão e Estatística no Poder Judiciário: Ferramentas para Excelência. Re-vista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, ano 33, n. 184, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/webfiles/producao/SPGE/revista/20120802171139.pdf>.

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as razões boas, retendo as más; se não se sacode a peneira não se separa a farinha”.3

Ao longo das últimas décadas, quando a bússola econômica pas-sou a nortear os destinos dos povos e o homo economicus depositou toda sua fé no Poder Executivo, sufocando o Legislativo e o Judiciá-rio, acabou por causar situações similares a estas, deturpando-se a essência da teoria de Montesquieu que se consagrou na maioria dos Estados modernos. Diante do que popularmente se chama de mensa-lão desabrocha a flor da perplexidade. Seu perfume é tão puro e sim-ples que os sentenciados que a sentiram divagam ventilando recur-sos inimagináveis a supostas cortes superiores; apelam aos corações magnânimos dos togados, rogando clemência na dosimetria da pena. Exercem, assim, na acepção usual do termo, o jus sperniandi.

A apoplexia geral logo se converteu em entusiasmo popular e a massa imediatamente elegeu o seu herói e o seu vilão. Como se na ingenuidade simbólica das duas velhas figuras não houvesse algo de novo. Por certo as reflexões que serão estimuladas por estes aconteci-mentos ainda produzirão muitos artigos, teses, dissertações que hão de construir um entendimento mais profundo em torno do eloquente momento pelo qual o nosso sistema administrativo-político passa.

Com efeito, o processo e julgamento da referida ação penal, que teve início em 2006, quando o então procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, denunciou 40 pessoas ao Supremo Tribu-nal Federal pelos crimes de quadrilha, corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro e peculato, demonstrou a higidez do Estado Democrático de Direito, no tocante ao funcionamento regular e efetivo de instituições predispostas à responsabilização penal, in-clusive de autoridades públicas, do alto escalão da representativida-de do poder político da nação.

Sobressai, nesse contexto, a função do Poder Judiciário na pre-servação da democracia. Muitos diziam que a ação penal ainda em trâmite no Supremo “não daria em nada” e, após as condenações de vários réus ainda se aguarda o desfecho da dosimetria das penas, em tom de provocação ao sistema de justiça ao se insinuar que essas condenações não teriam cumprimento no plano da execução penal. Sim, aguarda-se o desfecho. Desfecho que, mais uma vez, coloca à prova a higidez do Estado, na sua tripla feição executiva, legislativa e judiciária.

3 CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Campinas: Minelli, 2004.

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2424 Luiza Vieira Sá de Figueiredo

O sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos, diretor do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em re-cente visita ao Brasil, advertiu sobre a dimensão da responsabilida-de do sistema judicial em uma sociedade complexa e injusta, como a contemporânea:

(...) nós, integrantes do sistema de Justiça, não podemos resolver toda a injustiça, mas, se não fizermos a nossa cota-parte na redu-ção da injustiça, de duas, uma: ou seremos ostracizados pela po-pulação ou então nos tornaremos uma instituição irrelevante. (...) Os tribunais não têm de resolver a questão social, mas têm de dar a sua contrapartida para a democratização do país, para a preser-vação da democracia, para a aproximação dos cidadãos à Justiça. Na sociedade em que vivemos hoje, com grande concentração de terras, com grande violência extrajudicial, os tribunais têm de ser muito fortes – e isso não é fácil.

Em semelhante tom de responsabilidade, o ministro Ayres Britto, que presidiu a maior parte do julgamento da Ação Penal nº 470 no Supremo Tribunal Federal externou ser preciso coragem para o Ju-diciário se assumir como poder político independente, porquanto, na sua opinião, a cultura brasileira “é a cultura da submissão, de reve-rência ao poder político, e também ao econômico”. Destacou a impor-tância para a democracia o fato de o Poder Judiciário “se assumir como Poder da República, com independência e autonomia em rela-ção aos outros poderes, e se tornar a âncora da confiabilidade, com-batendo os desmandos”, pois, “como parte do Estado, o Judiciário é a personalização da Justiça com valores objetivos”.

Foi nessa mesma toada a recente aprovação de metas para com-bate à corrupção a serem cumpridas pelo Poder Judiciário ao longo do ano de 2013, realizada no VI Encontro Nacional do Poder Judiciário, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça em Aracaju/SE, nos dias 5 e 6 de novembro de 2012. Presidentes de tribunais da Justiça Federal e da Justiça Estadual assumiram o compromisso de, até 31 de dezembro de 2013, identificar e julgar as ações de improbidade administrativa e ações penais relacionadas a crimes contra a admi-nistração pública que foram distribuídas até 31 de dezembro de 2011. De acordo com o ministro Ayres Britto, presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal:

O Brasil padece desse mal crônico, de avanço no erário e no patri-mônio público. Temos o dever, no âmbito do Judiciário, de comba-ter a improbidade, sonhando com um Brasil que saberá rimar erá-rio com sacrário, e isso depende de um Judiciário de excelência

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Para o futuro presidente da Corte Suprema e do órgão de cúpu-la da Administração Judiciária, ministro Joaquim Barbosa, o Judi-ciário está no caminho certo ao definir meta de combate à improbi-dade administrativa, pois “a definição de um planejamento estratégico com objetivos e ações coordenadas e com a inclusão de metas de combate à corrupção e à improbidade administrativa re-vela o compromisso do Judiciário com a qualidade da prestação do serviço jurisdicional”.

É recorrente a fala do ministro Ayres Britto de que o Poder Judi-ciário está vivendo um processo de mudança; que novos tempos se apresentam para a magistratura nacional. Em recente manifestação pública, ele destacou a necessidade de os juízes, como um todo, in-dependentemente de especialização ou de instância, fazerem de suas pautas de audiências mecanismo de diálogo permanente com a so-ciedade, que anseia pelo banimento da corrupção. Se assim o fize-rem, de acordo com o ministro, o Judiciário estará cumprindo o seu compromisso profissional, que se legitima pelo cumprimento da Constituição. Afinal, ele é o Poder da República responsável por evi-tar o desgoverno dos demais Poderes. Para ele:

(...) o Judiciário está vivendo um novo tempo; de mudança e maior abertura. O Judiciário se assume como um Poder eminentemente republicano, democrático, ético, cívico e competente no planeja-mento de suas atividades (...) Por ser âncora definitiva da confiabi-lidade social, o magistrado precisa atuar de forma independente, ser atualizado, competente, corajoso, ético e democrático. Judiciá-rio subserviente, que decide de acordo com interesses da copa e da cozinha palaciana, trai a cidadania e corrompe a Constituição. Juiz covarde, receoso de retaliações, é um juiz que trai sua missão.

Nesse ponto, o julgamento da Ação Penal nº 470, mostra-se como um verdadeiro marco relacional entre os poderes constituídos na Re-publica. Em alto e bom tom, proclama o Judiciário a sua indepen-dência, e ao que tudo indica, apoiado pela opinião pública, ou seja, por aqueles para os quais se administra a res publica. Marco tanto para o Supremo Tribunal Federal e para o Poder Judiciário, quanto para a sociedade brasileira, pois consagra não apenas o princípio da isonomia na responsabilização penal, mas, sobretudo, o império da legalidade e a independência desse Poder da República, que certa-mente é outro no imaginário popular após o que se convencionou chamar de “julgamento do século”.

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Ainda não é o fim

Wilson Figueiredo

Em Minas, onde não é bem vista, a pressa não tem tratamento especial e continua considerada – sob reserva, claro – inimiga da perfeição. Entre mineiros, qualquer evidência instintiva e

imediata é admitida pela procedência grega, mas sem declinar sua condição real: nunca é citada como axioma, nem em conversa de poucos para poucos. As verdades intuitivas têm confiança insubsti-tuível entre a gente das montanhas. E ninguém dá a designação de axioma a uma verdade óbvia, seja num salão ou num botequim. Os mineiros adotaram o método de agregar, no velho e bom idioma que falamos, um reparo segundo o qual, se não deu certo, é porque ainda não é o fim. E estamos conversados.

A trapalhada que atende pelo nome de mensalão, depois de passar pelo crivo da justiça, tudo indica, ainda não se encaminha para o fim. Não se esgotou no julgamento do Supremo. Mas já se destaca o perfil do ex-presidente Lula, mais arredondado do que no tempo em que não era o grande empresário de postes em épocas eleitorais. Ele curtia o tédio de governar na maneira informal de falar, e de se comportar com displicência. A inversão da ordem natural de entrada dos personagens em cena, quando o mensalão estourou, não definiu a função de Lula nem sua cota óbvia de maior responsabilidade. Já ex-presidente, ainda não sabia e, ao ficar sabendo do que se passou debaixo de suas barbas, perdeu a oportunidade da mesma forma que era, e não sabia, o perso-nagem principal. Sem ele, o mensalão teria morrido no ventre materno. Sobrou para o chefe da Casa Civil, José Dirceu, que aguentou sozinho o papel e as consequências que batem à porta dos mensaleiros.

Lula ainda duvidava, ou fingia bem, quando despachou Dirceu, e foi até coerente, pois não o chamou de volta para chefiar, em desa-gravo, o gabinete, mesmo depois de se declarar convencido de que não tinha havido mensalão algum. Houvera apenas José Dirceu. Mas à distância da Casa Civil, com a incoerência que Lula pratica por princípio, meio e fim. Enquanto a questão se arrastou, Lula foi em frente como se não existisse mensalão nem, muito menos, José Dir-ceu. Apagou um e outro.

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2727Ainda não é o fim

A última fornada eleitoral oficializou por fora, com o jeito inconfun-dível de Lula, a falta de estilo na participação direta da presidente da República, pela mão do ex titular, na campanha eleitoral para prefei-tos. Em nome da democracia, claro. E no interesse do candidato Lula, também claro, de olho em 2014. Foi um desacato premeditado à me-lhor frase, no discurso de posse do primeiro presidente eleito (pelo voto direto) depois de derrubada do Estado Novo, quando o próprio Eurico Gaspar Dutra declarou seu compromisso político de tratar igualmente, no exercício das suas prerrogativas, todos os brasileiros. Mesmo que não tenha sido, a intromissão oficial nas campanhas elei-torais se fazia com luvas e elegância. O eleito na sucessão presidencial de Dutra em 1950 foi ninguém menos do que o ex-ditador Getúlio Vargas, que voltou pelo voto quando ainda não havia pesquisa eleito-ral e sobrava confiança, pois o direito de votar excluía analfabetos funcionais na margem de incerteza ou de qualquer outra natureza.

Afinal de contas, se não deu certo nem sob o manto do farisaísmo liberal, como se viu na repetição da preferência autoritária em 1964, só pode ser porque ainda não se completou a democracia ajustada para rodar em falso com mais facilidade do que parece. Se a soma de vícios, na prática dos costumes aparentemente democráticos, não chega à perfeição pretendida e os resultados são colhidos com mão de gato, não será, certamente, porque ainda não é o fim – que pode estar de tocaia no meio do caminho – do aperfeiçoamento eleitoral perseguido com perseverança, mas na direção oposta. Também não é o começo aproveitável de uma etapa produtiva de valores e costu-mes condizentes com pretensão democrática da boca para fora.

Nem se pode aceitar ler como novo começo o que está mais para a consolidação do que se disfarça sob aparência de novidade. Fala-se de reforma política para aproveitar a oportunidade, mas com uma intenção declarada e outra embutida para inviabilizá-la na primeira ocasião. Se eleições separadas por dois anos já fazem estragos na credibilidade das urnas, imagine-se o que será no dia em que a esco-lha de prefeito, vereador, deputado estadual, governador, senador, deputado federal e, last but not least, presidentes da República, se fizer, apertando apenas um botão eletrônico num país que cresce para dentro e para fora como se nada fosse.

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Sobre os antecedentes do atual momento político

(Um depoimento pessoal)

Augusto de Franco

Os que me conhecem sabem que me desvencilhei, há quase 20 anos, da velha política, que não acredito mais no sistema re-presentativo – que continua aí, mas já apodreceu – conquan-

to reconheça que sua vigência sob um Estado de Direito é a condição para que possamos experimentar novas formas de democracia, mais substantivas, mais diretas e mais interativas.

Os que me conhecem também sabem que não desisti do processo de democratização e que busco, por todos os meios ao meu alcance, tanto teóricos quanto práticos, ensaiar novas formas, mais democra-tizadas, de democracia, sobretudo na base da sociedade e no cotidia-no das pessoas. Essas novas formas, de democracia radicalizada em redes altamente distribuídas, apontam para processos pluriárqui-cos, mais interativos e mais colaborativos, em vez de se basearem na perversão da política como uma espécie de continuação da guerra por outros meios (como reza a formule inverse de Clausewitz-Lenin).

Quem quiser saber o que penso hoje sobre o assunto, por que não acredito mais em partidos e porque acho que uma nova política de-verá ser, necessariamente, uma política pública praticada pelos ci-dadãos, por favor, leia o texto “A nova política: a publicização da política nos novos mundos altamente conectados do terceiro milê-nio”, disponível no link <http://www.slideshare.net/augustodefran-co/srie-fluzz-volume-6-a-nova-poltica>.

Todavia, embora o meu tempo hoje esteja inteiramente dedicado às redes sociais e à investigação da nova fenomenologia da interação, não posso deixar de me manifestar neste momento que estamos vi-vendo, em que o Supremo Tribunal Federal está julgando – quase dez anos depois dos primeiros delitos terem sido praticados – os réus do chamado mensalão. Na verdade o que está sendo julgado não são apenas desvios de conduta de pessoas que cometeram crimes à épo-ca em que dirigiam o Partido dos Trabalhadores.

Quem está no banco dos réus é o “Partido Interno” de que falava George Orwell no romance 1984, organização que de fato dirige o PT e

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2929Sobre os antecedentes do atual momento político

organização que esses réus nunca deixaram de dirigir. Ainda falta sentar nesse banco, é óbvio, aquele que sempre foi o chefe supremo de tudo: Luiz Inácio Lula da Silva. Esta não é uma acusação “sem provas” (e porque não é uma acusação, não carece de provas): é apenas uma opinião formada a partir da observação atenta ao longo de 30 anos. O depoimento que transcrevo a seguir, escrito no final de 2006, escla-rece as razões pelas quais mantive e mantenho tal avaliação.

Sobre o banditismo de Estado no Brasil

“Desde o início do segundo semestre de 2003 venho alertando para os perigos do banditismo de Estado e propondo a resistência democrática dos cidadãos a um governo que se tornou ilegítimo. Es-crevi centenas de artigos sobre o tema na chamada grande imprensa (em especial na p. 3 da Folha de S. Paulo) e em sites e blogs (como o extinto Democracia). Invariavelmente os leitores perguntavam: – Mas você não foi do PT? Não conviveu com Lula? Não percebeu, durante aquele tempo, tais perigos?

Então é bom que eu compartilhe aqui o teor da minha resposta a essas perguntas, o que também pode contribuir para esclarecer a origem do que chamei de ‘banditismo de Estado’.

Sim, conheço Lula há muito tempo. Convivi com ele por longo período (quase uma década), na direção nacional do PT, da qual – fe-lizmente – me afastei ainda em 1993, ao final de uma infância parti-dária, digamos, mais ou menos inocente (pelo menos para mim).

Lula sempre me pareceu um bom sujeito, com seus defeitos, claro, como todos os temos. Mas nada capaz de caracterizá-lo como um cafajeste.

Minha primeira decepção com Lula foi o seu comportamento no chamado “caso Lubeca”, quando ele resolveu esconder algum malfei-to de Greenhalgh, o bode expiatório inaugural de uma sequência que hoje já reúne Delúbio, Silvinho e, agora, ao que parece, Lorenzetti e Lacerda (se não Berzoini). Greenhalgh viveu seu ostracismo e depois foi reabilitado pelo chefe, num processo bem semelhante ao que ocorre em certas organizações criminosas. Mas, naquela época, as coisas ainda estavam muito nebulosas para quem, como eu, não pri-vava do núcleo real de poder do partido (que nunca coincidiu inteira-mente com sua direção formal).

Envolvido em disputas teórico-ideológicas, que me colocaram, durante quase uma década, em posição oposta a de Dirceu, a quem

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3030 Augusto de Franco

eu repreendia – hoje se vê, não sem razão – por usar métodos contrá-rios à democracia, não percebi um movimento subterrâneo, prova-velmente já em curso, de organização de quadrilha dentro do PT. Isso não era mesmo visível no partido como um todo, pois sua origem era o núcleo duro da tendência Articulação e a entourage sindical de Lula (que, depois, organizou a chamada Articulação Sindical, de onde saíram, aliás, Delúbio, Bargas, Lorenzetti, Berzoini e muitos outros que ainda continuam estrategicamente “plantados” em fun-dos de pensão, estatais e para-estatais). Tratava-se, na verdade, de uma organização dentro da organização.

Quem ficou no PT – não é o meu caso, que lá estive na sua infân-cia – talvez consiga refazer, passo-a-passo, como a direção real (de fato) do partido se reestruturou como uma organização criminosa, a partir da derrota eleitoral de 1994, aproveitando-se das experiências anteriores, pontuais, de montagem de estruturas paralelas e ilegais de poder ensaiadas em algumas prefeituras sob o controle da ten-dência Articulação.

Por justiça é necessário dizer que a maioria dos filiados e militan-tes do PT nunca soube dessa história com suficientes detalhes, pelo menos até a eclosão do escândalo Waldomiro-Dirceu, no início de 2004 e a revelação dos escabrosos pormenores do caso Santo André durante o ano de 2005.

Com a eclosão dos últimos escândalos (mensalão e falso-dossiê ou aloprados) impôs-se a necessidade de investigar a quadrilha e desbaratá-la. Ora, isso talvez seja mais simples do que se pensa. Bastaria seguir os passos da tendência Articulação e dos assessores mais próximos de Lula. Uma “Operação Mãos Limpas” no Brasil de-veria começar por aí: traçando o cronograma e esboçando o organo-grama desses grupos políticos. Os que deles participaram jamais du-vidaram de que Lula é o chefe.

É necessário compreender as razões pelas quais tanta “gente boa” caiu no crime. Penso que foi uma avaliação política que levou a isso e não o ímpeto de delinquir para obter vantagens pessoais. A direção real do partido (quer dizer, os grupos mais próximos de Lula e Dir-ceu, no comando da tendência Articulação), deve ter chegado à con-clusão de que não seria possível desbancar as elites que secularmen-te controlam o poder de Estado no Brasil, sem usar (o que eles achavam que eram) os seus métodos. Para ganhar as eleições seria necessário, como vocalizou Paulo Betti, colocar a mão na merda; ou, como revelou Lula em certa ocasião, retrucando a um militante que se escandalizou com os novos métodos: “– Como você espera que a

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3131Sobre os antecedentes do atual momento político

gente ganhe as eleições?” Foi uma decisão estratégica. Era pegar ou largar. Pelo visto, eles pegaram.

O problema é que eles acabaram não reproduzindo o comporta-mento das tais “elites corruptas”. Como foi uma decisão política co-letiva, ao invés da corrupção por iniciativa individual, instauraram uma prática inédita: a corrupção por decisão coletiva. E ao invés do banditismo costumeiro dos velhos chefes políticos locais, instalaram o banditismo no centro mesmo do governo federal. Tudo, é claro, em nome da causa. Tanto é assim que, para a ética interna da quadrilha, todos os que foram pegos operando esquemas ilegais, são, no fundo, injustiçados. Quando mudar a correlação de forças – e, para isso, o passo decisivo é a reeleição de Lula – esses abnegados servidores da causa esperam ser reabilitados e recompensados.

O núcleo duro – dirigente de fato do PT – não inaugurou a corrup-ção no Brasil. Não, ele apenas tornou sistêmico o que era endêmico. Centralizou o que era disperso, transformando os desvios de conduta em método de governar. Foi isso que configurou o banditismo de Es-tado e não o fato de se ter introduzido o banditismo na esfera da política, que já era comum no Brasil.

Ora, parece claro que o banditismo de Estado é um fator extermi-nador de capital social, numa proporção incomparavelmente supe-rior àquela que poderia advir dos tradicionais desvios de conduta dos nossos chefes políticos ou de orientações programáticas erradas de nossos governos.

Ou seja, aqui já não estamos tratando do desenho de políticas, que podem favorecer mais ou menos o desenvolvimento. Não esta-mos tratando, também, dos riscos derivados da administração de políticas macroeconômicas mais ou menos acertadas, que podem fa-vorecer ou prejudicar o crescimento. Aqui chegamos ao limite: ban-ditismo de Estado, a partir de certo grau, inviabiliza a própria ideia de desenvolvimento. Quando os responsáveis pelo governo do seu país se transformam, eles próprios, em bandidos, não lhe cabe muita coisa a fazer a não ser resistir, até onde der, até onde for possível.

Quando saí do PT, ainda no dealbar da década de 1990, não ima-ginava que pudéssemos chegar a essa situação. Mas, como os fatos estão mostrando, eu estava enganado.

Durante a década de 1990, vivi num país que não mais se encon-tra em quase parte alguma. Na primeira metade dos anos 90, acom-panhei o Movimento pela Ética na Política e, em seguida ao impeach-ment de Collor de Mello, participei da Ação da Cidadania contra a

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3232 Augusto de Franco

Fome, a Miséria e pela Vida (que ficou mais conhecida como “Campa-nha do Betinho”), como uma espécie de secretário-executivo nacional daquela incrível movimentação dos cidadãos brasileiros, durante os anos de 1993-1995.

Bom, aí veio o Plano Real com Fernando Henrique e fui convida-do, juntamente com Dom Luciano Mendes de Almeida e os também falecidos Betinho e Ney Bittencourt de Araújo – por sermos, todos, da Ação da Cidadania – para integrar, na qualidade de participantes da sociedade civil, o Conselho da Comunidade Solidária. Fiquei oito anos nesse Conselho, inicialmente como conselheiro e depois tam-bém como membro do seu Comitê Executivo, juntamente com Ruth Cardoso (nossa presidente) e Miguel Darcy de Oliveira.

Durante oitos longos anos, de 1995 a 2002, jamais sofri qualquer tipo de restrição em meu trabalho voluntário. Tudo acontecia com a maior naturalidade, em um clima democrático onde tínhamos liber-dade para propor, para experimentar, para inovar. Ajudei a organizar quatorze rodadas de Interlocução Política sobre temas polêmicos – que iam desde a Reforma Agrária à Reforma do Marco Legal do Ter-ceiro Setor – envolvendo cerca de quinhentos especialistas e deciso-res, situados em todas as faixas do espectro político-ideológico nacional, de ministros de Estado, passando por pesquisadores, a di-rigentes de organizações da sociedade civil. Por incrível que pareça jamais vi alguém perguntar a que partido pertencia esse ou aquele convidado. Jamais fui advertido ou “aconselhado” a não chamar para o diálogo fulano ou beltrano, mesmo que se tratasse de João Pedro Stedile (que participou, aliás, da primeira rodada de negociações na Granja do Torto, em 5 de junho de 1996, obtendo alguns resultados muito concretos). Várias leis inovadoras foram propostas ou articu-ladas e aprovadas graças a esse trabalho (como as OSCIPs e a Lei do Voluntariado). Novos programas de indução ao desenvolvimento fo-ram implantados (foi aí que surgiu o DLIS – Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável). Novas organizações da sociedade civil, vol-tadas ao investimento em capital humano e em capital social foram criadas (e continuam atuando até hoje, apoiadas em parcerias com empresas e governos).

Tenho afirmado que esses avanços não têm nada a ver com o con-junto do governo anterior como tal, que não foi, como se diz, “essa Coca-Cola toda”, a não ser, talvez, pelo que não-fez: não cerceou, não excluiu, não aparelhou, não partidarizou, não quis ficar intervindo o tempo todo para direcionar, não perseguiu e não violou direitos cons-titucionais (o que, por si só – em comparação com o que ocorre hoje – já é o bastante para lhe conferir a glória e um lugar de honra no

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panteão da democracia). [Isso também nada teve a ver com o partido do governante, o PSDB, ao qual jamais pertenci e sempre critiquei, sobretudo depois que fez vistas grossas ao banditismo de Estado ins-taurado a partir de 2003 renunciando a cumprir suas obrigações com a democracia para apostar todas as fichas, tolamente, na loteria do calculismo eleitoreiro].

Mas tudo aquilo que fizemos, hoje seria simplesmente impensá-vel. Como? Como é possível abrir espaços sem controle de um parti-do ou de um grupo político, sem a preocupação (uma clara irrespon-sabilidade!) de ter maioria? Como deixar se expandir a esse ponto uma atmosfera democrática, onde o ar seja tão e igualmente disponí-vel para amigos e inimigos? Inaceitável, porque vai contra a ordem das coisas (das coisas deste mundo, regido pela lei inexorável da competição pelo poder). Isso seria pura subversão. Não exatamente subversão da ordem institucional e sim da cultura que diz que tal não é possível neste mundo real (da realpolitik).

Refletindo hoje sobre tudo isso, chego à surpreendente conclusão de que eu vivia em um país que não existe. Ou, pelo menos, que en-quanto eu habitava esse mundo imaginário, outros mundos – talvez não menos imaginários, mas cujos efeitos se fazem sentir muito con-cretamente nos dias que correm – coexistiam paralelamente.

Em meados do corrente ano [2006], por exemplo, fui fazer uma palestra e participar de um debate em uma Universidade Federal. Usei argumentos desenvolvidos ainda na década de 1990 para falar das mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade nos últimos 20 anos. Na medida em que falava, ia percebendo a surpresa dos meus interlocutores e da plateia. Parecia que eles estavam ou-vindo essas coisas pela primeira vez. Alguns anotavam sofregamente minhas palavras, dando a impressão de que não queriam perder nada do depoimento desse extraterrestre. Sim, para eles meu pensa-mento não era deste mundo, quer dizer, não era do seu mundo.

As universidades constituíram mundos à parte durante todo esse tempo em que vivi na “ilha da fantasia”. Dez anos depois, entrando nesse mundo universitário, sou obrigado a ouvir coisas como cidada-nia, exclusão social, neoliberalismo, participação, geração de empre-go e renda... Ou seja, conceitos e noções com os quais trabalháva-mos no final da década de 1980 e início dos anos 90. Nada ouvi sobre capital social, redes, empoderamento molecular, inteligência coleti-va, nova sociedade civil, emergência, concepção sistêmica de desen-volvimento... Essas, provavelmente, são ideias que ainda vão aconte-cer naquele mundo (ou que, talvez, nunca vão acontecer). Minha

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sensação foi a de alguém que tivesse sido subitamente transportado para algum remoto lugar do passado.

E, no entanto... esse passado é nosso contemporâneo, está aqui do nosso lado porque resistiu a entrar naquela corrente temporal em que fluíamos. Ou porque não pudesse mesmo fazê-lo, talvez porque fosse o passado de outra linha do tempo.

O que aconteceu com as universidades, aconteceu também com os partidos e com o mundo político em geral. Para nós, a sociedade mudou bastante nas últimas duas décadas. Para eles, continua a mesma, aquela mesma “massa” que cabe aos intelectuais orgânicos e aos agentes partidários organizar, mobilizar a partir de palavras de ordem e conscientizar por meio da transfusão de interpretações colo-nizadoras da mente, a serviço de algum destacamento privado ou de algum líder que sonha se eternizar no poder. Ainda é aquela mesma sociedade que se movimentou (ou foi movimentada) nos debates da Constituinte de 1988. Vá-se lá dizer-lhes – como brincávamos entre nós, os alienígenas – que ‘o povo desunido jamais será vencido’; ou, na versão literária do ficcionista Frank Herbert (em O Messias de Duna), que “não reunir é a derradeira ordenação”!

Às vezes chego a ficar em dúvida se não fomos nós que nos alie-namos do presente, escapando para um futuro imaginário, quer di-zer, para um mundo imaginário.

Sim, lendo o noticiário sobre a onda neopopulista na América Latina, sou forçado a concluir que o mundo não era o que pensáva-mos. Jamais me passaria pela cabeça que houvesse espaço, na con-temporaneidade, para que um militar golpista [Chávez], maluco e protoditador de uma republiqueta de bananas (e petróleo!) pudesse se afirmar como grande liderança continental, aconselhado pelo mais velho ditador do mundo (alocado em Cuba) e servindo de correia de transmissão para manipular o mais novo líder nativista do mundo (na Bolívia), cuja campanha presidencial foi feita, aliás, com o apoio do atual presidente do Brasil.

Mas ou todos estamos malucos, ou isso tudo existe mesmo. E existe num “grau de realidade”, se for possível falar assim, mais forte do que aquele que emprestávamos ao nosso (agora já velho) novo mundo.

Para usar conceitos teológicos (já que estamos falando do futuro do pretérito), nós, os habitantes daquele mundo perdido no futuro dos anos 90, fomos apenas e tão somente profetas menores, nunca chegamos a ser messias (no sentido evangélico do termo e não no do

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messianismo judaico) de coisa alguma. Quer dizer, não antecipamos futuro, apenas o anunciamos ao acreditar que aquela realidade vir-tual em que nos debatíamos pudesse existir de fato para outrem.

Pelo visto, não existia e não podia existir. Eles – os outros – pos-suíam suas próprias realidades. E agora vieram. E assomaram. E des-montaram, sem o menor sentimento de culpa, as inovações que ima-ginávamos ter instituído. E ocuparam, intrépidos, as velhas e as novas instituições que prezávamos, nem que fosse para corrompê-las e dege-nerá-las segundo sua própria lógica férrea – a lógica das coisas do (seu) mundo –, que, como podemos hoje constatar, está mais próxima do que a nossa, de qualquer coisa que se possa chamar de realidade.

Ou não, para falar “caetanamente” (e serei desmentido pelos fa-tos), se houver uma onda subterrânea formando uma corrente de opinião insurgente, fabricando outro mundo que vai emergir em al-gum lugar do futuro (e esse é o máximo de otimismo aceitável no momento). (Considere-se que, nas circunstâncias atuais, o pessimis-mo é uma obrigação moral enquanto que o otimismo frívolo – dos nefelibatas ou dos mercadores de esperanças, tanto faz – é uma for-ma de escapar da realidade e de enganar os outros).

Aqui, pois, me encontro, ao escrever... [este texto] um pouco des-viado das minhas funções atuais. É um tempo que roubo – e um tempo precioso – da minha investigação teórica sobre as redes so-ciais, quer dizer, das explorações imaginativas, que venho fazendo nos últimos seis anos, no universo de conexões ocultas que produ-zem o que chamamos de ‘social’. E um roubo de tempo também do meu trabalho prático – e profissional inclusive – de palestrante e consultor... de instituições que querem elaborar, aplicar ou avaliar programas de indução ao desenvolvimento local por meio do investi-mento em capital social, ou seja, por meio da articulação e animação de redes sociais (netweaving). Na medida do possível tento separar as coisas. Mas nem sempre consigo, pois que – além do tempo desviado, de afazeres tão mais criativos e construtivos, para travar na escuri-dão a luta política com o passado – nem sempre é possível evitar as consequências de ter adotado uma postura pública bastante crítica ao governo Lula. Só continuo porque sinto que algo deve ser feito. Não estou sozinho, conquanto avalio que sejam ainda poucos, muito poucos, os que optaram por trilhar esse caminho.

Espero sinceramente estar errado quanto a minha falta de otimis-mo. Anseio ser surpreendido por um súbito reflorescimento do vigor democrático e da responsabilidade política da sociedade brasileira. Mas se isso não ocorrer espontaneamente é sinal de que a chegada de

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uma nova esperança deve ser árdua e pacientemente preparada. Se for assim, que assim seja! Vamos começar tudo de novo, porém man-tendo agora, como princípio inegociável, a democracia – e a sua pro-gressiva democratização ou radicalização – como o valor mais impor-tante da vida política e como o eixo norteador de qualquer estratégia de promoção do desenvolvimento humano e social sustentável”.

O texto acima, repito, foi escrito há exatos 6 anos (em 22/11/2006). Relendo-o agora sinto um leve sopro de esperança. Alguma coisa pa-rece estar mudando e isso nada tem a ver com o comportamento do velho sistema político, nem com as chamadas oposições partidárias (que continuam irresponsáveis, como sempre foram, desde 2003). Devo dizer que aposto menos nessas mudanças do que nas novas iniciativas das pessoas em suas redes de vizinhança, de aprendiza-gem, de prática e de projeto. Mesmo assim, o que está ocorrendo no julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal pode ser sintoma de uma mudança molecular se processando subterranea-mente na chamada opinião pública. Vamos ver. A lição fundamental a retirar disso tudo é a compreensão da natureza da quadrilha. Adu-zo então algumas palavras sobre isso para resumir e concluir.

A natureza da quadrilha

Não havia uma quadrilha no governo composta por “maçãs po-dres” do PT. Foi a direção real do PT (um partido dentro do partido, o “Partido Interno”) que se organizou como quadrilha e instaurou, a partir do governo, o banditismo de Estado. A maioria dos militantes do PT, que pertence ao “partido externo”, foi sempre manipulada por seu líder máximo. Ideologicamente intoxicada, ela não tem culpa subjetiva pelo que aconteceu.

Dirceu não era o líder máximo nem o chefe da quadrilha. Era – e é – um chefe que tem um chefe. Lula, o líder, sempre foi o chefe, sempre soube de tudo e sempre teve o domínio dos fatos. Genoino, bom sujei-to, coitado, entrou de gaiato no navio. Mas no momento em que “ven-deu” sua tendência (a Democracia Radical) para os grupos de Lula e Dirceu (reunidos na Articulação), em troca de um lugar ao sol no Cam-po Majoritário, tornou-se corresponsável pelo que viria a acontecer.

O núcleo duro da Articulação, composto pelas entourages de Lula e Dirceu, formou então a quadrilha, não por um ímpeto de delinquir para obter vantagens pessoais, mas a partir da avaliação de que não seria possível desbancar as elites que controlavam o Estado sem usar os seus métodos.

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Esse núcleo duro – dirigente de fato do PT – não inaugurou a cor-rupção no Brasil, mas apenas tornou sistêmico o que era endêmico. Centralizou o que era disperso, transformando desvios de conduta em método de governar. Foi isso que configurou o banditismo de Es-tado e não a introdução do banditismo na política, já secular no país.

O mensalão não foi o único crime praticado pelo “Partido Inter-no”. Várias dezenas de delitos foram cometidos nos dois governos de Lula, começando com o caso Waldomiro-Dirceu (e Cachoeira), pas-sando pela quebra de sigilo do caseiro Francenildo, pela produção do falso dossiê contra Serra urdida pelos homens da cozinha do presi-dente e pelas caluniosas acusações de gastos irregulares contra Ruth e Fernando Henrique para chantagear as oposições, impedindo a in-vestigação do uso criminoso dos cartões corporativos da Presidência por familiares e auxiliares diretos de Lula.

O STF acaba de condenar alguns dos culpados pelo mensalão e no momento em que escrevo está determinando suas penas. Mas isso só foi possível graças a uma configuração particularíssima de fatores que dificilmente voltará a se constelar.

Não acontecerá uma refundação da República a partir do julga-mento. É possível que Zavascki seja o último dos “juízes de Berlim”. Se o governo permanecer aparelhado pelo “Partido Interno”, a ten-dência daqui para frente será corrigir o “erro” nomeando mais pes-soas como Toffoli.

Enquanto as eleições forem usadas contra a democracia (para sabotar o Estado de Direito) e as urnas forem transformadas em tri-bunais para absolver de seus crimes os agentes da hegemonia do partido, não haverá saída, sobretudo para um país sem oposição. A despeito de termos, neste fugaz momento, juízes convertidos à de-mocracia – como os Mello, Fux, Barbosa e vários outros – nosso or-denamento jurídico não tem proteção eficaz contra o parasitismo de-mocrático e a privatização partidária da esfera pública.

Uma nova esperança vai surgir, sim, mas por fora do sistema, com a emergência de movimentos moleculares (sem condutores de rebanhos) que estão reinventando a política para os novos mundos altamente conectados do terceiro milênio. A altíssima abstenção nas últimas eleições municipais pode ser um sinal.

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II. Conjuntura

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Autores

Fernando PerlattoDoutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e pes-quisador visitante do Institute for Public Knowledge, vinculado à New York University (IPK/NYU).

Anivaldo MirandaJornalista e mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Alagoas.

Gilvan CavalcantiCriador e editor do blog Democracia Política e Novo Reformismo, e membro do Diretório Nacional do PPS.

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As eleições municipais em questão

Fernando Perlatto

A tomar pelos números, a democracia brasileira é, de fato, um empreendimento vigoroso e admirável. Não é de pouca monta que menos de 25 anos depois de promulgada a Constituição de

1988, cerca de 140 milhões brasileiros tenham ido às urnas para ele-gerem prefeitos em mais de 5,5 mil municípios e quase 57 mil vereado-res, sem que tenha havido quaisquer ameaças e constrangimentos às instituições democráticas. Horas depois de fechadas as urnas, a po-pulação já tinha acesso aos resultados pelo site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelos diversos meios de comunicação. Não se trata de uma avaliação ingênua e ufanista, portanto, dizer que, não obstante o fato de que ainda padeça de muitos males, a nossa recente democracia vai bem das pernas, com o fortalecimento progressivo das instituições, dos ritos e das rotinas, cada vez mais aceitos e referendados pelos ato-res políticos e pela sociedade civil. Dito isso, vamos ao que interessa: qual o cenário político que sai das urnas?

Seria pretensioso tentar delinear um quadro geral dos resultados eleitorais, até mesmo pelo fato de que existem divergências impor-tantes dependendo do ponto de vista que se escolha para a análise dos mesmos. Alguns preferem somar os números de prefeituras ob-tidos por cada legenda; outros consideram mais fundamental inves-tigar a quantidade de habitantes que cada partido comandará a par-tir do próximo ano. O que é possível fazer a partir dos resultados é tentar traçar algumas tendências da configuração das forças políti-cas tomando como base principalmente as eleições realizadas nas capitais do país. Antes de arriscar qualquer análise mais acurada é importante reconhecer que, a despeito do esforço realizado por parti-

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dos políticos e analistas para conectarem as eleições municipais às disputas nacionais, aquelas possuem uma lógica própria. Na maior parte das vezes, as pessoas votam preocupadas com a capacidade dos políticos resolverem seus problemas mais concretos e comezi-nhos do dia a dia, sobretudo em cidades menores. Questões mais abstratas ou partidárias não entram muito na lógica do voto, o que explica o fato dos eleitores não terem constrangimento nenhum em votar em um político pertencente a um determinado partido para prefeito e em um candidato de legenda oposta para vereador.

Contudo, da mesma forma que seria errôneo reduzir as eleições municipais à lógica nacional, também seria equivocado concluir pelo outro extremo e dizer que elas nada têm a ver com as disputas nacio-nais. Os atores políticos observam atentamente os resultados das dis-putas, buscando compreender quais foram aqueles que mais se forta-leceram nos pleitos municipais, principalmente nas grandes cidades, e que poderão desempenhar papel relevante nas próximas eleições nacionais. O ano de 2014 já está ali, com toda a carga de tensão que envolve a disputa pela Presidência da República. Os prefeitos desem-penham papel fundamental nas campanhas políticas nos municípios não apenas para as eleições de presidente e governadores, mas de deputados e senadores, cujo impacto é evidente na composição e no bom andamento das agendas políticas do presidente eleito.

A despeito da enorme fragmentação e pulverização eleitoral pós--eleições – mais de 25 partidos elegeram prefeitos –, é inegável que a disputa principal permanece entre PT e PSDB. Ainda que seja equi-vocado dizer que o Brasil caminhe para um bipartidarismo, seria igualmente errôneo não perceber que estes dois partidos se mantêm como polos principais da polarização nacional, cuja disputa crucial se deu em São Paulo, no embate do segundo turno entre José Serra e Fernando Haddad. Mesmo quando não se enfrentam diretamente, a contraposição entre petistas e tucanos, sobretudo nas capitais, tende a orientar a lógica dos atores políticos, levando-os a apoiar um ou outro candidato. Em outras palavras, não obstante seja reducio-nista ler a política nacional pela lente do bipartidarismo paulista, a polarização PT x PSDB continua como elemento fundamental e orien-tará a disputa política no país nos próximos anos.

O PT sai mais forte dessa eleição do que previam muitos analis-tas, com vitórias importantes, com destaque para São Paulo. O par-tido cresceu em número de prefeituras em relação às eleições pas-sadas, além de ter sido a legenda que mais elegeu vereadores e mais obteve votos. O partido continua crescendo a cada nova eleição. O quadro pode ser considerado positivo, em um pleito que transcor-

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reu paralelo ao julgamento da Ação Penal 470, vulgo “mensalão”, que parece não ter impactado nenhuma das disputas de forma significa-tiva. A despeito disso, o partido colheu derrotas importantes, sobre-tudo em Belo Horizonte e Recife. Esta última, talvez, pese ainda mais, pois foi resultado direto da intervenção autoritária e equivocada da direção nacional, que causou uma fratura no partido, que possivel-mente demorará a ser superada.

Quer queira, quer não, Lula permanece como liderança inconteste do partido e, embora não seja decisivo para ganhar eleições, possui um poder de transferência de voto, que não pode ser desconsiderado por nenhum analista. Dilma buscou ter uma participação discreta no processo eleitoral, mas se viu impelida a assumir um papel mais ativo principalmente no segundo turno, visando consolidar sua posição como líder principal da coalizão governista. Há uma percepção correta por parte dos analistas segundo a qual o PT tem buscado um processo de renovação de lideranças, após a condenação de membros impor-tantes de sua cúpula pelo Supremo Tribunal Federal, e que foram as figuras principais do partido nas três décadas anteriores. O processo de renovação começou com a indicação de Dilma e teve continuidade nestas eleições municipais, com destaque para a indicação de Fernan-do Haddad e a candidatura de nomes como Marcio Pochmann em Campinas. Vale observar que este movimento que vem tendo curso no PT não deixa de ser contraditório e paradoxal, na medida em que a renovação dos quadros da legenda não parte de um movimento da base, mas sim do impulso dado por Lula, figura maior da “geração antiga” do partido. O novo nasce pelo velho.

Não obstante as dificuldades enfrentadas nacionalmente para fa-zer oposição ao bloco governista, o PSDB permanece como ator políti-co de grande relevância. Ainda que tenha reduzido o número de pre-feituras em relação às eleições passadas, o partido teve vitórias importantes, inclusive ampliando sua presença no Norte e Nordeste. Ainda que não seja uma vitória do partido e não obstante o fato de que não tenha sido um triunfo com números acachapantes como se espe-rava, a eleição de Marcio Lacerda, em Belo Horizonte, é significativa, pois consolida a figura de Aécio Neves como principal nome da oposi-ção para as eleições de 2014. Além de ter apostado seu capital político na eleição mineira, o senador do PSDB cruzou o país defendendo os projetos do partido e buscando se firmar como liderança nacional, o que, diga-se de passagem, ainda falta muito para acontecer, devido ao seu desconhecimento para além das fronteiras do Sudeste. Vale des-tacar, contudo, que a eleição de Belo Horizonte deve ser debitada me-nos na conta de Dilma Rousseff, como desejam muitos analistas, e

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mais na do PT mineiro, que ainda colhe os resultados do acordo desas-trado para eleger Marcio Lacerda, em 2008, responsável pelas divisões e enfraquecimento do partido no âmbito estadual.

O PSDB se vê diante do desafio de se reinventar sob o risco de perder sua relevância nacional. Em primeiro lugar, a legenda deve buscar encontrar sua identidade enquanto força partidária, na medi-da em que ora tenta se mostrar enquanto a organização representa-tiva da social-democracia no país – com todas as dificuldades daí advindas pela ausência de uma base que classicamente deu susten-tação aos partidos social-democratas na Europa, em especial os sin-dicatos –; ora se vê impelida a defender posições conservadoras, como a pauta do aborto e do kit-gay, impulsionadas por Serra, res-pectivamente, nas campanhas presidencial e municipal. Encontrar a identidade entre a sustentação de pautas progressistas ou conserva-doras é um repto ao qual o partido não pode se furtar de enfrentar. Em segundo lugar, os tucanos podem seguir o caminho que vem in-dicando Fernando Henrique Cardoso, que, se por um lado, aponta para a necessidade de renovação dos quadros partidários, por outro, enfatiza a necessidade de a legenda buscar dialogar com os segmen-tos da chamada “nova classe média”, que têm se expandido significa-tivamente nos últimos anos.

Mais uma vez o PMDB confirmou nestas eleições a sua vocação municipalista, consolidando-se como o partido que mais elegeu pre-feitos, apesar da redução em relação às eleições passadas. A legenda reforça seu cacife para manter-se como principal aliado do PT nas próximas eleições nacionais, além de robustecer seu calibre para rei-vindicar mais espaço na próxima reforma ministerial. Sua vitória mais significativa foi a de Eduardo Paes, no Rio de Janeiro. Tensões à frente com o PT se avizinham nas eleições para o governo do esta-do, em um movimento que pode conduzir a mudanças na conjuntura política do Rio de Janeiro. Importa destacar que a eleição da capital trouxe alguns elementos que merecem ser evidenciados. Em primei-ro lugar, a bela campanha de Marcelo Freixo, que indica um poten-cial ainda subaproveitado pela esquerda carioca, mas que pode ser potencializado para as eleições estaduais. Em segundo lugar, o pífio desempenho da aliança Rodrigo Maia e Clarissa Garotinho, que, não obstante possa ser creditado a erros de campanha, parece indicar um esgotamento de lideranças já desgastadas da política carioca.

Muitos analistas apontam corretamente para o fortalecimento do PSB nestas eleições municipais. As vitórias de Recife e Belo Horizon-te foram significativas e assinalam para a consolidação de Eduardo Campos como um ator político central para as próximas eleições na-

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4545As eleições municipais em questão

cionais, a ser cortejado tanto pelo PT, quanto pelo PSDB. Sua mar-gem de escolha para aliança entre os dois partidos amplia-se, embo-ra qualquer tentativa de rompimento com a base governista possa conduzir a uma disputa interna no partido com Ciro e Cid Gomes, que não veem razões para romper com Dilma nas eleições de 2014, conforme declarações recentes. De qualquer forma, pode-se prever que a permanência na coalizão governista implicará em uma pressão por maior espaço no governo e, quem sabe, a disputa pela vice-pre-sidência com o PMDB.

Além dos partidos acima destacados, convém ressaltar o desem-penho do PSD. Fundado em 2011, o partido ficou atrás apenas do PMDB, PSDB e PT no número de prefeituras conquistadas. Além de ter levado mais de 490 prefeituras, a legenda de Gilberto Kassab foi a quinta colocada em número de vereadores eleitos. Apesar de signi-ficar teoricamente o fortalecimento do campo governista, haja vista o deslocamento do partido para a base de sustentação de Dilma Rous-seff, tudo leva a crer que a “instabilidade” ideológica da legenda fará com que suas lideranças, em especial Kassab, sejam disputadas nas eleições de 2014. Outro partido que merece destaque, mas pelo lado negativo, é o DEM, que aparentemente caminha melancolicamente para o fim. Apesar de ter conquistado vitórias importantes, em espe-cial no pleito de Salvador, com Antonio Carlos Magalhães Neto, o partido teve uma redução significativa do número de prefeituras, além de derrotas simbolicamente importantes, como as de Rodrigo Maia, no Rio de Janeiro, e da quarta posição em Natal, capital do Rio Grande do Norte, único estado governado pelo partido.

Dessa forma, podemos dizer que o quadro que sai das eleições é paradoxal, na medida em que é marcado por dois fenômenos parale-los: ao mesmo tempo em que se percebe uma fragmentação partidá-ria, com a pulverização do poder municipal dividido entre mais de 25 legendas, ocorre um movimento de centralização da disputa nacional em torno de cinco partidos, quais sejam: PT, PSDB, PMDB, PSB e PSD. Não é arriscado dizer, portanto, que a próxima eleição presi-dencial se definirá a partir da configuração das forças e embates políticos entre estas cinco legendas, que buscarão atrair para o seu arco de influências os demais partidos, que conquistaram prefeitu-ras pelo país, mas que não possuem a mesma força e alcance das legendas de Dilma Rousseff, Aécio Neves, Michel Temer, Eduardo Campos e Gilberto Kassab.

Para além da análise dos desempenhos dos partidos, alguns ele-mentos merecem ser destacados brevemente à guisa de conclusão. Em primeiro lugar, vale chamar a atenção para o papel da chamada

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Lei da Ficha Limpa nestas eleições. Não obstante sua enorme impor-tância para a melhoria do sistema político brasileiro, é inegável que o atraso do julgamento definitivo dos recursos apresentados ao TSE gerou um quadro de incerteza em várias eleições pelo país. Muitos candidatos receberam votos suficientes para serem eleitos e ainda não se sabe se estarão ou não em condições de tomar posse. Essa insegurança, tanto para os candidatos, quanto para os eleitores, se configurou como um ponto negativo desta eleição. Espera-se que es-tes problemas sejam superados no próximo pleito, de modo a fazer com que a Lei da Ficha Limpa possa ser plenamente executada sem maiores contratempos e sem que sua legitimidade seja colocada à prova pela sociedade.

Outro aspecto que emerge destas eleições e que merece ser des-tacado tem a ver com o funcionamento do sistema político do país. Infelizmente, o quadro que se desenha após o pleito parece ser pouco alvissareiro para o debate em torno da reforma política. Por um lado, a enorme pulverização e fragmentação partidária põem em cheque quaisquer possibilidades de um enfrentamento da discussão em tor-no de possíveis caminhos para reduzir o elevado número de partidos no Brasil, que coloca enormes desafios para a composição dos gover-nos, sejam eles municipais, estaduais ou nacionais. Por outro lado, é desanimador pensar que embora o julgamento da Ação Penal 470 tenha transcorrido paralelamente às eleições municipais, não teste-munhamos qualquer debate mais substantivo sobre o financiamento público de campanhas, não obstante pareça haver uma direta cone-xão entre estes temas.

Como último ponto, vale chamar a atenção para outro aspecto que teve destaque nestas eleições e que diz respeito tanto ao alto ín-dice de abstenção em diferentes cidades pelo país, quanto ao discur-so pela renovação que pautou parte significativa dos pleitos munici-pais. Pensar estes dois fenômenos de forma articulada – abstenção e renovação – possibilita refletirmos sobre certo mal estar da popula-ção com o status quo político. Se nossa democracia tem se fortalecido institucionalmente, a partir do legado deixado pela Constituição de 1988, ela não pode deixar de ser regada por uma participação mais ativa da sociedade no processo político. Compreender este sentimen-to difuso de insatisfação e conectar-se com os desejos, interesses e anseios do cidadão comum é o desafio colocado para os partidos po-líticos nos próximos anos.

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Eleições municipais e falência do poder local

Anivaldo Miranda

As recentes eleições municipais passaram e não deixaram mui-tas saudades. Emergiram na mídia quase que exclusivamente pelo viés de sua possível repercussão na próxima corrida pre-

sidencial, nas sucessões estaduais e no tabuleiro de xadrez onde os partidos políticos movem suas peças. Naquilo que verdadeiramente deveria interessar, ou seja, nas questões que dizem respeito ao coti-diano dos munícipes, elas serviram para mudar boa parte dos gesto-res mas, salvo as individualidades nunca previsíveis, pouco deverão influir no que diz respeito ao estilo de governar e aos resultados que se esperam dos novos prefeitos e prefeitas e das novas câmaras de vereadores Brasil afora.

Graças às características de um modelo que transformou os par-tidos políticos em legendas de negócios e suas direções não raro em camarilhas nada democráticas; converteu os mandatos populares em reserva de mercado de políticos profissionais que agem tão so-mente em função dos seus próprios interesses de sobrevivência, sem qualquer ideologia ou compromisso institucional e eternizou a inter-ferência avassaladora do poder econômico e do voto comprado, mui-to pouco poderia se esperar do “espetáculo cívico” cuja finalidade seria, acima de tudo, renovar as bases da vida democrática.

O chamado “poder local” estava e vai continuar, como fruto desse processo, literalmente falido. E como, num círculo vicioso, uma de-formidade alimenta outra, a tendência é a inexorável deterioração da capacidade de gestão local, municipal, muito embora isso não queira dizer que, nas demais esferas de poder, as mazelas do modelo políti-co brasileiro não se façam sentir. O problema é que, no contexto municipal, essas mazelas incidem de forma bem mais avassaladora.

Herdadas do processo partidário-eleitoral viciado, as representa-ções políticas perdem cada vez mais qualidade técnica e padrão ético minimamente exigível e promovem a desagregação do rito democráti-co, começando, no imediato período pós-eleitoral, pela recorrente co-optação dos vereadores da oposição e consequente neutralização do papel das Câmaras Municipais, fenômeno que atinge o Legislativo

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municipal em gradação ascendente, conforme é maior a pobreza dos municípios ou das comunidades, seja na periferia das regiões metro-politanas ou nas zonas rurais mais afastadas. A partir dessa neutra-lização do Legislativo municipal começa (ou recomeça), então, a de-terioração da capacidade de gestão municipal em geral.

Essa degradação do poder local, quando assume uma escala na-cional graças ao somatório das realidades locais, não importa a di-versidade de amplitude ou intensidade de cada uma delas, transfor-ma-se então, em calamidade administrativa, contaminando, como é natural, o arcabouço político-técnico-burocrático como um todo, ali-mentando e alimentando-se de um sistema anacrônico de represen-tação que, inevitavelmente, produz corrupção, nepotismo, clientelis-mo, tráfico de influência e ineficiência, em níveis que inevitavelmente comprometem o desempenho do próprio país e a efetivação dos seus objetivos nacionais permanentes e potenciais.

Da forma como se apresenta hoje, o chamado poder local passou a configurar um verdadeiro cemitério de políticas públicas no Brasil, em que pese todo o esforço que os órgãos de controle, como fruto do avanço da consciência democrática, fazem para tornar mais amplos e efetivos seus mecanismos de monitoramento e fiscalização do uso do dinheiro público.

Políticas públicas são executadas localmente. Sofrem, portanto, porque são concebidas nos santuários de uma federação republicana fictícia, distante, onde a União centraliza recursos e repassa tarefas e, também, porque são executadas por municípios em certa medida inviabilizados, não só financeiramente, como politicamente. Faço-me explicar: inviabilizados porque contam com recursos insuficientes, mas também porque aplicam pessimamente esses recursos.

Na detecção da causa fundamental (são várias) dessa má aplica-ção dos recursos, pontifica a baixíssima ou quase inexistente parti-cipação popular no processo da gestão administrativa municipal, uma vez que essa participação (ou mais precisamente, arremedo de participação) esgota-se na oportunidade (mal aproveitada) do voto popular e morre na ausência de uma cultura de cidadania e de me-canismos político-institucionais que estimulem e viabilizem essa participação.

Vivemos atualmente, no que diz respeito ao grau de eficiência público-administrativa do país, momento de monumental divórcio entre a tendência, teoricamente correta, de descentralização das po-líticas públicas nacionais e estaduais e a capacidade real da ponta, ou seja, dos municípios, em absorver eficazmente essa descentraliza-

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ção, algo que, por sinal, também é verdadeiro para o nível estadual muito embora não seja o foco do nosso escrito. Em termos dessa proclamada eficiência, presenciamos, de certa forma, uma espécie de faz de conta, onde a União finge que municipaliza e os municípios fingem que executam as políticas públicas essenciais para a vida e o bem-estar das populações cada vez mais desesperadas com a quali-dade dos serviços de saúde, educação, transporte, moradia, sanea-mento básico, para ficar apenas nos essenciais.

É claro que não é apenas o atual modelo político-eleitoral-parti-dário que tem algo a ver com isso. O regime presidencialista, o mode-lo tributário, as matrizes que movem a economia e outros fatores mais, interagem nesse contexto. Mas sem dúvida sua digital está muito bem impressa nessa falência do poder local.

Por essa e por muitas outras razões a reforma política apresenta--se como urgência para o Brasil. Todavia é preciso tomar cuidado com essa bandeira, porque muitas naus políticas brasileiras dela querem se apossar, porém para continuar sem navegar para o futuro e apenas fundeadas em águas paradas. Há, sem dúvida, reformas e reformas! Desde aquelas propostas pelos que as querem, até aquelas propostas pelos que fingem querê-las.

Ademais será difícil a batalha para forçar a representação política atual a aprovar no Congresso Nacional uma reforma política consen-tânea com a complexidade do Brasil atual e as características da época de acelerada mudança que vive a humanidade. Esperar que essa reforma caia do céu, é demonstrar elementar ingenuidade. Daí que hoje, além de pugnar pela reforma política, talvez mais impor-tante ainda seja construí-la de fato, tijolo por tijolo, até que, sob os alicerces de um grande movimento, possa erguer-se a arquitetura e a construção do modelo político avançado e moderno que tanto pre-cisamos. Nesse sentido, nada mais natural do que começar essa construção no nível do poder local, exercitando a ousadia e a criati-vidade que o momento requer.

Há propostas que sinalizam para mudanças modestas como é o caso dos projetos de lei que pretendem extinguir remuneração sala-rial para vereadores de municípios com população pouco numerosa. Teoricamente serviriam para afastar da composição do Legislativo municipal a disputa movida por interesses e vantagens pessoais e econômicas subalternas, abrindo maior espaço para lideranças mais autênticas e representatividade mais plural. Tais propostas, porém, se não forem sucedidas por um conjunto maior de mudanças no mo-delo poderão se mostrar inócuas.

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A meu ver o sistema não precisa apenas abolir a remuneração de vereadores e todo o aparato burocrático que lhes cerca e que serve quase sempre e tão somente para que algumas Câmaras Municipais, principalmente as de municípios pouco povoados, reúnam-se uma vez por mês homologando tudo que o prefeito manda. Para fazer valer essa lógica deve-se ir bem mais adiante para conectá-la com a neces-sidade de mudança do conteúdo da representação política e suas regras de funcionamento e das formas de participação direta da po-pulação e dos contribuintes na gestão municipal.

Conquista da Constituição de 1988, a democracia participativa é a chave para abrir as portas de um novo modelo de organização po-lítica, institucional e administrativa no Brasil. É o instrumento atra-vés do qual, independentemente dos humores e interesses da cha-mada elite política brasileira, os cidadãos e cidadãs comuns poderão começar a instituir a representação política que a complexidade atual do país requer.

Por que não pensar em conectar às Câmaras Municipais e dar poderes de fato a uma estrutura de conselhos municipais temáticos, escolhidos com base no voluntariado em áreas geográficas e segmen-tos da população, com prerrogativas amplas para estabelecer metas orçamentárias, fazer proposições legislativas e acompanhar o uso dos recursos e qualidade das obras e investimentos públicos?

Por que não imaginar uma nova arquitetura para o poder local com ampliação efetiva e reforço de instrumentos do tipo ouvidor ge-ral, audiências públicas e realização de referendos e plebiscitos lo-cais, bem como portais da transparência, para enriquecer e tornar mais eficaz o controle do contribuinte sobre o dinheiro cada vez mais sacrificado que ele despende para ver funcionar os serviços públicos a que tem direito? E por que não tornar verdadeiramente efetivo o modelo de orçamento participativo que hoje, apesar da pompa do nome, é exercitado muito mais para efeito de marketing do que mes-mo controle real dos investimentos públicos?

É oportuno esclarecer que aqui não se propõe algo similar ao mo-delo de representação classista, populista e assembleísta que carac-terizou o ideário socialista do século passado. O que há em mente é a necessidade de enriquecer a representação política e a institucio-nalidade do poder público com novas formas e instrumentos plurais de ampla participação direta da população, aqui incluídas a socieda-de civil, a iniciativa privada e a comunidade dos servidores públicos, na conformação dos destinos de cada comunidade, contando, inclu-sive, com as possibilidades abertas pelas mudanças da base tecnoló-

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gica da sociedade, sobretudo quanto às novas fronteiras abertas pela comunicação social.

De alguma forma conselhos comunitários, conselhos tutelares, conselhos de meio ambiente, de saúde, de desenvolvimento econômi-co, das crianças e adolescentes, das mulheres, da segurança públi-ca, comitês de bacias hidrográficas e similares já cumprem algum papel pioneiro na formatação da nova democracia participativa. Mas estão ainda muito longe de haver conquistado as prerrogativas que esse novo conceito de democracia exige, até porque em larga medida existem apenas formalmente ou são olimpicamente ignorados ou manipulados pelo poder executivo.

Dar a verdadeira musculatura a essas formas onde a democracia representativa se encontra e complementa com a democracia mais direta é o desafio que se impõe para lidar com a complexidade que a sociedade adquiriu tanto pelo lado das conquistas tecnológicas que conseguiu, quanto pelo enriquecimento civilizatório que alcançou. De certa forma já se pode antever que a democracia no nível local, já em futuro próximo, só terá sentido com crescente exercício de mode-los de autogestão comunitária.

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Um olhar carioca

Gilvan Cavalcanti

Nas análises de balanço sobre a última eleição na cidade do Rio de Janeiro aparecem duas opiniões interpretativas. A primei-ra encaminha-se na direção de atribuir o fracasso ou êxito

de tal ou qual corrente política à ideia de que a cidade é “inorgânica politicamente”. Tenho dúvida sobre esse conceito. Seria verdadeiro se nosso olhar só tivesse voltado para a experiência das sociedades europeias, inclusive, do passado mais recente. Infelizmente é assim nossa cultura política.

Essa forma de abordar, esse prisma vem de longe. Lembro-me do abolicionista Joaquim Nabuco. No pequeno livro Minha formação, que pretendia ser apenas um autorretrato, – acabou sendo uma aná-lise do século XIX e abriu as portas para a interpretação do século XX –, ele já acentuava as diferenças da inorganicidade da sociedade americana, mais avançada à época em relação à organicidade da so-ciedade europeia também desenvolvida. Naquela época já dava sinais da percepção que o nosso ocidente seria americano. Portanto, penso que não seja correta essa argumentação. Parece-me um olhar com a vista embaçada

Seria interessante relembrar que o Rio foi uma das cidades que mais fez pela conquista da Constituição de 1988. Partiu daqui boa parte da disposição do agir cívico que se apoderou do país naquele período. A cidade se viu impregnada por um intenso e diversificado associativismo ao redor dos bairros e das favelas, da questão operá-ria, ambiental, da infância, das questões da mulher e racial.

À volta desses movimentos sociais se colaram os partidos de cen-tro-esquerda, além das universidades e dos intelectuais. Toda essa mobilização caminhou, ao mesmo tempo, com uma participação elei-toral de clara oposição ao regime militar e com a luta pela redemo-cratização, – alcançou o auge na memorável mobilização das Diretas – Já, em 1984 –, que conduziu mais de um milhão de pessoas no comício da Candelária.

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A notável importância na reconstrução de um projeto de país fez do Rio um dos principais, senão o principal, centro de animação e inspiração do núcleo progressista da Carta de 88, cujo espírito foi gravado no seu generoso preâmbulo, que introduziu os “direitos so-ciais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desen-volvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na har-monia social”.

O Rio não deixa de seguir o fenômeno das grandes mudanças que o país viveu, tanto no social, como no político. É um enorme labora-tório complexo, sem polarização, orgânico versus inorgânico. Está aberto às descobertas e inovações. É uma democracia de massas, em criação, rumo ao moderno, desde que seja livre a competição e não haja cerceamento dos atores: partidos políticos, sindicatos e as inú-meras organizações existentes na cidade no agir e realizar seus valo-res e interesses.

É realmente necessário, nesse momento, reconquistar a cidade “orgânica e inorgânica” para o espírito da Constituição que ela tanto ajudou a criar, através do fortalecimento daquilo que o sociólogo Luiz Werneck Vianna já definiu como as “duas democracias” que ela en-cerra: a da dimensão participativa e a da dimensão representativa.

Portanto, será necessário lutar para devolver à cidade o direito de acesso à política, da qual ela está provisoriamente privada. Para tan-to, será indispensável criar mecanismos e espaços de comunicação que permitam que os diferentes segmentos da população voltem a se encontrar e a conversar, incorporando, desta vez, os interesses e as opiniões dos novos seres procedentes dos segmentos emergentes das favelas e periferias.

Somente assim será possível formular uma nova política e cons-truir uma agenda pública que a reconcilie com os valores universais de que falam o preâmbulo da nossa Constituição.

Narrei em outro momento a frase: rumo ao moderno. Qual é mi-nha compreensão sobre o tema? O que é ser moderno? Esse conceito tem tradução e nome: chama-se autonomia! Manifesta-se no agir, – com liberdade –, da vontade da cidadania. Essa vontade passa a ter existência concreta com a vida associativa, dos partidos políticos que arranca vigor, energia, disposição de um mundo independente de agentes do poder administrativo e do poder da lógica econômica.

Há em circulação outra opinião que teria implicação no resultado eleitoral. Seria a “crise do nosso sistema político eleitoral”. É óbvio

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que a legislação sobre o assunto é falha, produz distorções. Parece que há uma opinião majoritária da necessidade de uma reforma do sistema. No entanto, quando se fala quais reformas as discordâncias são muitas. Não há acordo sobre os temas dessa reforma. Não há dúvida da sua importância, mas as regras eleitorais não podem ser pensadas como uma panaceia para todos os males.

Estou convencido que o nosso problema é político. Em pri-meiro lugar, vem logo a questão das alianças. É evidente que as alianças são absolutamente necessárias. Não faz sentido pensar que um partido sozinho ou uma só corrente de pensamento resolverá os problemas de uma cidade, de um estado ou do país. A questão é que essas alianças não são realizadas em cima de programas, de valores. Elas se concretizam por simples interesses eleitorais, pragmáticos. O tempo de televisão passou a ser uma spécie de demiurgo.

Outro problema é a estadolatria dos partidos. Parece-me que as nossas organizações partidárias adquiriram uma cultura de que fa-zer política significa se ligar na trama dos governos. Enredam-se nas redes do poder administrativo por conveniências eleitorais: conquis-tar, manter mandatos ou reproduzi-los. Em outras ocasiões aderem, sem nenhuma razão ou argumentos coerentes com sua orientação política de ação.

Foi com um conjunto de propostas que apresentei e foram acolhi-das pelo meu partido que ele se apresentou às últimas eleições. Eram ideias e valores sobre a política para a cidade. Posso destacar alguns pontos: o compromisso com a participação da população na elabora-ção e acompanhamento das políticas públicas municipais; a aposta na transparência, no controle social e no respeito às instituições demo-cráticas como forma de garantir o bom uso dos recursos públicos; a defesa da combinação da sensibilidade política e social com a profis-sionalização da gestão e da competência técnica; a radical busca de um ensino fundamental e de uma educação infantil de qualidade; a prioridade para o acesso ao sistema público de saúde eficiente; o es-forço para a melhoria do transporte público e a mobilidade urbana; a ação permanente em favor da geração de renda e emprego, como me-lhor alternativa para o combate às desigualdades visando a promoção da cidadania; o compromisso com práticas de desenvolvimento sus-tentável, cuidando com responsabilidade e competência da limpeza urbana, da destinação final de resíduos sólidos, do saneamento am-biental e da despoluição dos cursos d’água e do estímulo ao uso de energias limpas; a dedicação central às políticas de atenção aos ido-sos, às crianças em situação de risco social, às pessoas com deficiên-cias e à promoção da equidade de oportunidades entre cidadãos, inde-

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pendentemente de raça, gênero ou situação de renda; a adesão integral aos princípios da ética e da moralidade pública; o forte empenho para o redesenho do pacto federativo; a combinação das políticas compen-satórias de renda com ações de qualificação profissional e reinserção no mercado de trabalho; o combate ao populismo irresponsável e ao despreparo administrativo e ao amadorismo; o compromisso com a participação da juventude na administração municipal e de estimular a participação feminina em todos os espaços de poder. Estava convic-to que eram ideias reformistas fortes. Ficaram no papel e só ecoaram na sala da nossa convenção eleitoral.

Os tempos são outros e prevaleceram outras visões. Ficamos sem representação no parlamento municipal. Cabe-nos agora encerrar o compromisso com 2012. Manter nossa visão crítica e de forma inde-pendente – sem participação na administração –, lutar pelo conjunto de valores aprovados na convenção. Significa também valorizar e aplaudir as decisões acertadas.

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III. Observatório

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Autores

Carlos Sávio TeixeiraProfessor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense

Ailton Benedito de SousaEngenheiro, dirigente do Centro Brasileiro de Estudos LatinoAmericanos (Cebela), do Rio de Janeiro.

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Federalismo e política social em perspectiva transformadora

Carlos Sávio Teixeira

A história republicana brasileira tem dois grandes momentos: o da transformação e o da reação. De 1930 a 1964, o país ex-perimentou uma dinâmica marcada pelo esforço progressivo

– muitas vezes contraditório – de construção de instituições econô-micas e políticas que iniciou a democratização do acesso ao trabalho e ao capital e proporcionou as primeiras tentativas de capacitação dos brasileiros. O golpe militar de 1964 interrompeu esta dinâmica e criou um ciclo caracterizado por uma lógica perversa: crescimento econômico com elevada concentração de renda combinado ao auto-ritarismo político. O momento atual, chamado de Nova República, inaugurado em 1985, sempre esteve sob o domínio de uma lógica do mínimo: Primeiro esse mínimo era a democracia a ser conquistada. Em seguida as forças do país se mobilizaram para o combate à in-flação. E assim tudo o mais foi sacrificado. Foi neste contexto que o Brasil há 30 anos não experimenta crescimento econômico sequer razoável e, paralelamente, assiste, atônito, a influência do dinheiro na política – determinada pela forma de financiamento eleitoral pri-vada – corromper nossa democracia.

Para enfrentar os gigantescos desafios estruturais que possui – como sua singular e obscena desigualdade social – o Brasil precisa, de um lado, mudar a orientação programática pautada no redistribu-tivismo que ganhou ascendência a partir da drástica redução de ex-pectativas que tem caracterizado o consenso entre as nossas elites intelectuais e do poder e, de outro, fazer uma reforma política que tire os políticos do bolso dos endinheirados e ajude a criar institui-ções – como os partidos políticos – mais transparentes e organica-

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mente ligadas tanto aos setores organizados como principalmente aos anseios da maioria desorganizada de nossa sociedade. Ambas as iniciativas requerem reconstrução institucional.

Essa agenda abrangente parece fora do horizonte dos principais atores políticos do país na atual quadra da vida nacional. De toda sorte não parece uma má ideia observar a advertência de Montes-quieu para quem o vento não ajuda a quem não sabe a que porto veleja. Um projeto de transformação do Brasil requer, antes de tudo, ideias sobre o rumo que se quer tomar. Duas preocupações funda-mentais devem ser compartilhadas. Uma de caráter social e outra de natureza política. A primeira dedica-se ao enfrentamento, em seu fun-do causal, de nossa chocante desigualdade social. A segunda preocu-pa-se com a construção do agente institucional capaz de traduzir e desdobrar o projeto transformador em iniciativas concretas e práti-cas, através de seus múltiplos e complexos níveis políticos e admi-nistrativos, no âmbito de nosso aparato estatal e governamental. Esse texto discutirá quais as possíveis respostas estas temáticas, realçando o contexto teórico de onde elas podem ser extraídas, abor-dando inicialmente a ideia de reorganização do Estado brasileiro e em seguida a reorientação de nossa política social.1

Um federalismo funcional e brasileiro

Um dos maiores entraves à ação do Estado brasileiro está relacio-nado a um problema institucional pouco debatido entre nós, que é a inadequação do tipo de federalismo que copiamos dos EUA. A ideia básica que suscita esta questão resulta da observação de um proble-ma característico de países territorialmente extensos e com desigual-dades regionais significativas como o Brasil que adotaram o regime federativo: a necessidade, nestes casos, da compatibilização de pa-drões nacionais de investimento e de qualidade com a gestão local das políticas públicas, conforme estabelecido por nossa atual Cons-tituição. Nestas circunstâncias, é importante que o Estado tenha um bom sistema de monitoramento e de financiamento dessas políticas flexível o suficiente para ser capaz inclusive de reorientar tempora-riamente, de acordo com necessidades extraordinárias, recursos e quadros de um local para outro. Mas o problema maior é que mesmo depois desses ajustes uma determinada área da política pública pode

1 As discussões apresentadas neste texto se apoiam em torno das propostas progra-máticas de Roberto Mangabeira Unger, com quem o autor mantém colaboração. Seu livro onde essa temática emerge mais explicitamente é Democracia Realizada – A Alternativa Progressista.

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ostentar índices abaixo dos padrões mínimos aceitáveis estabeleci-dos, o que em nosso caso ocorre com frequência. Diante dessa cir-cunstância, qual é a solução? Na atual configuração a resposta é nenhuma, pois não dispomos de instrumento institucional e legal capaz de enfrentar este grave problema, do qual resulta uma situa-ção absurda: a qualidade da educação recebida por uma criança bra-sileira depende do acidente biográfico do local de seu nascimento.

A solução está na construção de uma instância transfederal que reúna os três níveis da federação e que tenha poder de intervenção nessa área da política pública que enfrenta dificuldades para saneá--la e devolvê-la consertada ao ente federado constitucionalmente res-ponsável. O espírito é fortalecer o experimentalismo através da coo-peração.2 Uma das premissas norteadoras desse federalismo cooperativo parte de uma constatação teórica acerca da necessidade de transformação do Estado face às mudanças nos paradigmas de organização da produção numa direção pós-fordista, que cada vez mais invade os espaços da vida social, tornando ainda mais inade-quados muitos dos meios com que o Estado, fundado numa lógica fordista de excessiva padronização e rigidez, ainda opera na realiza-ção de suas ações.

Um exemplo dessa circunstância pode ser observado na neces-sidade de reforma da relação da sociedade civil com o Estado no que diz respeito à provisão das políticas públicas. Vários especialistas definem os serviços públicos ofertados pelo Estado, em quase todos os países, como uma espécie de “fordismo administrativo”, pela sua característica padronização, ao que se associa em muitos casos a falta de qualidade – embora para os analistas mais objetivos isso pouca relação guarda com a questão do estilo de “gestão” como apre-

2 Celso Furtado também identificou o nosso federalismo como mais um obstáculo à superação das enormes desigualdades da sociedade brasileira e de maneira original refletiu sobre o que designou de “federalismo cooperativo”, que em sua perspectiva havia sido ensaiado durante a experiência democrática da República de 1945 a 64. Segundo um comentarista, “o federalismo cooperativo, nos termos propostos por Furtado, apontava para uma descentralização parcial na aplicação dos recursos públicos federais nos estados-membros, o que seria feito pelas instituições regionais federais, por estar apoiado nas influências teóricas de um planejamento não autori-tário. Entretanto, o desenvolvimento econômico equilibrado, para Furtado, dependia muito mais das iniciativas da União que das unidades subnacionais, ou mesmo da participação social. Era decisivo o papel do governo federal na construção da ordem ideal, o que significava um afastamento do modelo americano clássico” (ISMAEL, 2009, p. 236). Alguns especialistas chamaram a atenção para o fato de a Sudene ter sido pensada com o objetivo de realizar, entre outras atribuições, o enfrentamento do nosso grave problema federativo agravado pela cópia do modelo norte-americano com o seu arcabouço legal definindo de maneira rígida as competências entre os entes federados.

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goam os neoliberais. Para os liberais, a alternativa a este “fordismo administrativo” é a provisão privada desses serviços. Aqui a falta de imaginação institucional característica dessa tradição intelectual e política se junta aos limites do debate ideológico do século XX, domi-nado pelo embate entre estatismo e privatismo. A solução aos “pur-gatórios” público e privado na provisão de políticas públicas passa pela ampla reformulação da administração pública. A ideia é que a reforma do Estado não deve restringir-se à mera transposição das práticas mais características da gestão privada para o aparato esta-tal e nem desvincular o debate sobre o conteúdo dessa reforma do Estado da discussão sobre o modelo de desenvolvimento que o Esta-do uma vez reformado tornar-se-á instrumento. O verdadeiro choque de gestão no país significava realizar simultaneamente três agendas inacabadas em matéria de administração: a da profissionalização, a da eficiência e a do experimentalismo.

Mas a proposta institucional de reconstrução do federalismo traz, além da ideia de substituição da repartição rígida de competências entre os três níveis da federação por um “federalismo cooperativo”, que associe os entes federados em experimentos compartilhados, ou-tra questão ligada à ampliação do potencial de uma determinada lo-calidade ou setor divergir do modelo jurídico e institucional consti-tuído e construir uma espécie de contra modelo ou caminho alternativo que pode vir a ser o modelo do futuro.3 O que inibe essa possibilidade no federalismo clássico é que, ao dar liberdade para uma região ou um setor, imagina-se a necessidade de oferecer liber-dade igual para todos. Mas esta circunstância não é necessária. É possível imaginar que determinadas localidades ou setores te-nham poderes extraordinários de divergências. Isso implicaria a rea-lização da ideologia experimentalista que inspira o federalismo clás-sico, mas que, no entanto, não pode ser praticada dentro dos limites estreitos do constitucionalismo de cepa liberal em que ele tem se apoiado. Trata-se da percepção dos estados federados como labora-tórios de inovações.4

3 Este é o caso, por exemplo, da política industrial e agrícola voltadas para os peque-nos e médios empreendedores, em que um dos aspectos da relação entre o Estado e os produtores expressa o princípio da cooperação federativa. O mesmo raciocínio, ainda que com muito mais intensidade, vale para áreas como educação e saúde – sob este aspecto o SUS representa uma empreitada institucional que contempla a lógica em tela. Para uma apreciação do espírito da ideia de federalismo cooperativo aplicada ao caso das políticas públicas do Estado brasileiro, ver Chaves (2010).

4 A ideologia do federalismo clássico norte-americano apregoa a ideia de que os Es-tados federados atuem em alguma medida como laboratórios de experimentação de projetos e caminhos distintos daquele do governo central, embora a sua prática institucional fundada na repartição rígida de atribuições entre os entes federados

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A proposta de reconstrução do federalismo brasileiro desdobra-se rumo à questão da capacitação da enorme população desprovida de capital cultural, tendo em vista, sobretudo, duas prioridades: 1) as-segurar dentro de um país muito grande, muito desigual e de regime federativo o princípio da descentralização consagrado pela Carta de 1988: a reconciliação da gestão local dos sistemas escolares pelos estados e municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade definidos pela União. Sem a participação decisiva da União, entretanto, não se construirá a escola capaz de realizar o cho-que de ciência e tecnologia exigido como contrapartida das transfor-mações econômicas requeridas; 2) aproveitar o impulso dado pelo governo Lula ao ensino técnico para enfrentar simultaneamente dois desafios: a) usar a rede federal de escolas técnicas para soerguer o elo fraco do sistema escolar brasileiro que é o ensino médio, cuja responsabilidade de gestão recai sobre os estados e municípios; b) usar as escolas técnicas para construir uma fronteira aberta entre o ensino geral e o ensino técnico5.

Política Social é Política

O segundo eixo analítico do desdobramento programático de su-peração do redistributivismo dominante hoje no Brasil entre as elites políticas, intelectuais e burocráticas surge no contexto da discussão que se tornou conhecida no Brasil como a “porta de saída” dos pro-gramas de transferência de renda, comumente proposta pelos mem-bros da direita. A ideia básica é a que os programas de transferência como o Bolsa Família são resgates de cidadania, já que na miséria as pessoas ficam imobilizadas, inclusive pelo medo. Dessa forma, os programas de transferência devem ser entendidos como instrumen-tos que criam as condições para uma mobilização mínima (VANDER-BOUGHT; PARIJS, 2006). O que se pode dizer em resposta é que as transferências representam uma condição necessária, mas não uma

contradiga frontalmente o princípio manifesto da ideologia. Para uma apreciação dessa discussão face ao tema do federalismo cooperativo, ver Dorf; Sabel, 1998, p. 292-313, especialmente.

5 Essa junção, por sua vez, enseja a insistência em transformar o modo de ensinar: substituir o modelo pedagógico baseado na informação por um tipo de ensino que seja mais analítico. Novamente com o apoio das ideias de Unger, a proposta sig-nifica antecipar para as primeiras etapas da aprendizagem o trabalho cooperativo que caracteriza os estágios mais avançados da ciência. Um dos temas caros ao seu pensamento programático é aquele referente às ideias sobre uma forma de ensino que resgate a criança das limitações de seu meio – de sua família, de sua classe so-cial, de seu tempo histórico, de sua cultura nacional – e lhe dê os instrumentos da resistência moral e da antevisão intelectual (UNGER, 1999, p. 180-185).

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condição suficiente. E que, portanto, deveria haver uma versão pro-gressista – que não há – dessa discussão sobre as “portas de saída”, descritas por outra linguagem que enfatizasse a necessidade de agre-gar elementos de ampliação da oportunidade e de capacitação a es-ses programas.

A ideia se baseia num dado empírico sobre a estrutura de classes no Brasil contemporâneo e sobre o perfil dos beneficiários dos pro-gramas de transferência como o Bolsa Família. Quando se observa os dados recentes a respeito da evolução da renda e de seus componen-tes, verifica-se o seguinte: embaixo, entre aqueles descritos por Jessé Souza (2009) como a “ralé” brasileira, houve um crescimento da ren-da, sem que tenha havido um crescimento da renda do trabalho. Entende-se que a maior parte desse crescimento se deve aos progra-mas de transferência. Mais adiante, no gráfico de evolução da renda, houve um crescimento da renda menor, mas uma proporção muito maior desse crescimento devido à renda do trabalho. E a partir daí a curva continua a descender (PAES de BARROS, 2008).

Essa constatação empírica inspirou a seguinte conjectura causal: entre o núcleo duro da pobreza, de um lado, e a pequena burguesia empreendedora, de outro, haveria um grupo intermediário, que Un-ger (2010) chamou de “batalhadores”. Esse grupo social seria com-posto basicamente por pessoas que surgem no mesmo meio pobre do núcleo da pobreza, mas que por razões sociológicas e psicológicas especiais responderam às duríssimas circunstâncias coletivas e con-seguiram iniciar seu autorresgate. De acordo com essa ideia, esse tipo social existe aos milhões no Brasil. Esta hipótese a respeito da estrutura de classes inspirou uma sugestão programática: o desdo-bramento capacitador dos programas de transferência teria de ter em vista essa diferença entre a “ralé” e esse grupo chamado de “ba-talhadores”. O núcleo duro da pobreza é composto por pessoas que estão cercadas por um conjunto de inibições familiares e culturais que dificulta a eficácia dos programas de capacitação. A experiência mundial de programas de capacitação dirigidos a essa classe de mi-seráveis é desalentadora conforme estudos como o de Galasso (2006).

Portanto, o malogro se explicaria por causa desse conjunto de inibições sociais e culturais. Para a “ralé” não funcionaria uma ini-ciativa direta de capacitação. A primeira coisa a fazer é assegurar que o Estado consiga assumir algumas das funções das famílias de-sestruturadas e adensar o sistema de assistência social. Isso não objetiva substituir a família, mas complementá-la. Já os “batalhado-res” seriam os alvos naturais dos programas de capacitação, na me-dida em que já demonstraram que são capacitáveis, por uma razão

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simples: já iniciaram o seu próprio resgate. De acordo com essa pers-pectiva, o equívoco comum que se comete no mundo é dirigir os pro-gramas de capacitação aos mais pobres. Embora seja compreensível pensar que a capacitação deva começar pelos mais carentes, a lógica da política não deve ser a mesma da caridade. Então, paradoxalmen-te, os programas de capacitação deveriam começar não pelos mais carentes, mas pelos relativamente menos carentes, que funciona-riam como uma espécie de “vanguarda” do contingente mais pobre de pessoas que viria em seguida.

Uma orientação estratégica na direção dessas ideias choca-se com o leitmotiv da política brasileira contemporânea. O pacto domi-nante no Brasil hoje se expressa na ideia de redistributivismo como meio de humanizar as estruturas existentes, e encontra sua contra-parte política numa concepção de democracia que aceita as pessoas estarem ocupadas somente com os seus interesses privados e trata-rem a política como uma sequência de episódios desconectados do mundo prático onde vivem e atuam. Esse pacto se faz em nome do realismo, mas, na política contemporânea, realismo é identificado com a aceitação dos preconceitos e interesses da ordem estabelecida. Entretanto, realista deveria ser o agente que tanto se dispõe a com-preender e enfrentar a realidade sem desconsiderar nem superdi-mensionar os seus elementos refratários e constrangedores, como aquele que por atuar sobre ela acaba sendo capaz de enxergar tam-bém as possibilidades de transformação dessa realidade sempre am-bivalente e contraditória.

A alternativa esboçada neste texto propõe inovações institucio-nais que enfrentem o problema da incapacidade do Estado e da po-breza desmoralizadora presentes em nossa sociedade.

Referências

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6666 Carlos Sávio Teixeira

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6767

Práticas deformadas nas organizações ligadas aos movimentos sociais

Ailton Benedito de Sousa

Mostrar incongruências entre conteúdo, forma e função, apa-rência e essência, enfim mostrar a amplitude da distância entre o imaginado e o obtido relativamente a um dado, fato,

processo, fenômeno – aceitemos aqui ser este um dos objetivos da análise, termo que mais se reforça com a junção do adjetivo crítica, isto é, a fragmentação, segundo princípios ou método, das partes de um todo, geralmente num campo de debate, com vistas à sua com-preensão e transformação, o processo traduzindo-se em termos de reflexão referenciada a parâmetros de validação quanto a uma admi-tida noção de verdade, a prática em última instância.

Na atividade de análise crítica, também, a comunidade de seres pensantes testa ou põe em questão a possibilidade de, através da língua, um sistema aberto de signos, que não é “a coisa”, mas a re-presentação da “coisa”, poder-se atingir a verdade, ou seja, a cadeia de signos que, gerando conceitos e proposições a partir de “percep-ção-hipótese-crença”, pode vir a expressar, antecipar fatos, base para a ação individual e coletiva na admitida realidade. Nessa linha, aceitemos também que, por falta de análise crítica, a cada dia mais se consolidam, sedimentam, cristalizam práticas deformadas para a tomada de decisão no âmbito das formações políticas em geral e no dos movimentos sociais, em particular. As deformações, parece, não grassam só aqui, mas em todo o mundo, aspecto que torna surpre-endente o fato de ser tão escasso o número de textos introdutórios sobre o assunto.

Algumas das deformadas práticas

A falta de uso responde pelo olvido ou obsolescência de bens cul-turais cuja aquisição ou existência dependa da memória coletiva, da práxis repetida, do intercâmbio social diretamente ligado à função que esse bem ou prática desempenhe nos processos de produção e reprodução social. Não obstante a metade ou mesmo os três quartos da população dessa ou daquela formação social da Antiguidade se

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constituírem de escravos, certas práticas de democracia direta, é de se convir, tiveram que ter vigência de fato entre os cidadãos livres, sob pena de colapso da referida experiência social. Daí observa-se nessas sociedades a institucionalização de campos de estudo ligados à filosofia em geral, à retórica, à lógica e à argumentação. Hoje mais conhecemos personagens como Aristóteles, Sócrates ou Platão em razão do sistema de gestão da coisa pública na região em que nasce-ram, ou seja, a partir de consulta a iguais, do que de uma absurda primazia do genes (não do gênio) grego. Não querendo o fato dizer que nos reinos e impérios da África, da Ásia ou da Oceania o gênio huma-no, condicionado a circunstâncias sociais específicas, não produzis-se (ou pudesse produzir) filosofias em geral ou inovações técnicas em particular semelhantes ou mais sofisticadas, como de fato produzi-ram. A administração da memória dessas conquistas é que foi e ain-da é manipulada.

A cidade-estado que optava por forma de governo que consagras-se audiência aos iguais, precisava compartilhar certos conhecimen-tos. Ao tempo de Cícero, além da retórica, era estudada e praticada, senão institucionalmente, mas principalmente de indivíduo para in-divíduo, a mnemônica ou seja, as técnicas de memorização, de modo que não apenas Cícero sabia de cor suas “orationis”, como também deviam conhecê-las de cor todos aqueles que quisessem viver das li-des judiciais. Aliás, para um advogado romano, grego ou das medie-vais Florença e Lisboa, não só o corpo de leis desse ou daquele ramo do direito tinha que ser memorizado, mas também suas complicadas fórmulas processuais e a imensa jurisprudência.

Dado o fato de que a pós-modernidade tende a dispensar de modo definitivo e “acrítico” a memória humana natural, individual e coletiva, como base indispensável nos processos de produção e re-produção de suas sociedades, a que tipo de lastro de bens culturais poderão os indivíduos ter acesso diante de exigências sociais emi-nentemente humanas que a tecnologia não derroga, como os festejos de confirmação de pertinência religiosa, étnica, os festejos ligados à sociabilidade vicinal, ou mesmo de organização para fazer oposição ou prestar apoio a esse ou àquele poder?

Já pertenceu à memória coletiva dos brasileiros todo o instru-mental de conceitos e procedimentos inerentes à participação ativa numa reunião ou assembleia de uma típica organização sem fins lucrativos. Nesse sentido, ainda ao tempo da Constituição de 1946, derrogada com o golpe de 1964, no nível de sindicatos, associações culturais, carnavalescas e esportivas, o primeiro item a mobilizar os membros de uma simples reunião ou assembleia, era a eleição da

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“mesa”. Aquele a ser eleito pelo “plenário” presidente da mesa, sabia que ali todos estavam em função de uma “convocação”, de acordo com o estatuído no “estatuto” do órgão ou associação. A “convoca-ção” que, no caso das entidades legalmente reconhecidas, tinha que ter sido anteriormente publicada através de edital em jornal de gran-de circulação, fixava os pontos essenciais da reunião: sua regulari-dade normativa (os dispositivos estatutários que a legitimavam), sua natureza (ordinária ou extraordinária), a hora de início e o tempo máximo de espera para a formação do quorum mínimo, seus objeti-vos... que fixavam os limites da soberania do plenário... “O plenário é soberano... para cumprir os termos desta convocação... Mais ain-da, subentendido ficava que, para que o plenário exorbite de sua soberania e altere os objetivos da reunião, cumpre que antes regular-mente feche esta assembleia, convocando uma nova, publicando edi-tal observando os prazos e tudo, se o Estatuto assim o permitir...

O princípio sacrossanto era: “O plenário é soberano”. Logo é ele que elege a mesa. Por quê? Porque ela é centro de poder. À sua elei-ção, “suspendem-se” os poderes da diretoria eleita naquele período, porque numa reunião ou assembleia pode haver tudo, menos “truís-mo”, aquele absurdo da lógica pelo qual num momento a + b = c, noutro a + b = d, sendo c ≠ d. Isto é, o plenário é soberano.... e a di-retoria é soberana também!.. Daí a grande importância que o plená-rio, composto por diferentes linhas de interesse e visão das questões em debate, atribuía à eleição da mesa, seu presidente e secretários, que elaboravam a “ata” que geralmente era lida e assinada ao fim da reunião, eventualmente o início da seguinte.

A questão de ordem

Certa base filosófica coletivamente aceita convencia a todos que “se somos seres racionais, seres que agem não segundo o esquema binário Estímulo – Resposta, como grande parte do reino animal, mas a partir de um esquema no mínimo ternário Estímulo – Reflexão – Res-posta”, podemos confortavelmente criar organismos sociais para seres ao mesmo tempo livres e socialmente vinculados, já que: a) usando da capacidade simbólica, base para a reflexão, podemos criar o mundo virtual, ainda com dados simbólicos exercermos a reflexão, e então nos convencermos a nós mesmos de que estamos certos ou, na hipó-tese de nos vermos em erro, de nos corrigirmos. A partir desse pressu-posto, tinha-se por axioma, isto é, a verdade que não precisava ser provada nem demonstrada: seres racionais e conscientes não podiam estar reunidos para deliberarem, se não fosse aceita a existência entre

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eles de um “protocolo”, um “pacto”, um “regimento” que fixasse as normas mínimas do processo decisório: como decidir (maioria sim-ples, absoluta (2/3)?, quem vota (indivíduo, ordem, gênero)?, o direito à palavra, a organização do debate – propositura da questão, tempo fixado para os debatedores, sua inscrição e ordem de manifestação, encaminhamento da questão para votação, defensores dos diferentes encaminhamentos, encerramento das discussões para votação e...vo-tação. Então vinha o segundo princípio sacrossanto: “Matéria votada não volta para discussão”. “Questão de ordem”, grita o porta-voz da maioria, “o plenário por engano votou contra seus interesses! Caímos num impasse”. O presidente da mesa, se experto, explica: “Já que não se pode ferir o princípio sacrossanto, só há um meio de sairmos dessa: Abre-se o período de votação para que cada votante, nominalmente, confirme seu voto...Mas a mesa só considera essa decisão”, adverte, “se ela for votada por maioria absoluta.”

A atualmente tão repetida expressão “questão de ordem” exigiria o adjetivo “regimental”, que por tão óbvio os seres humanos até duas gerações atrás dispensaram. Os da geração atual repetem-na como papagaios, forçoso é concluir, já que não mais existe o “regimento” a que o adjetivo se refere. Referia-se ao regimento não escrito, gravado na consciência de todos a partir dos artifícios da memorização cole-tiva, ou seja, o quadro de normas que preside a uma reunião delibe-rativa entre seres racionais. Aliás, para os romanos bárbaro era quem não podia, pela língua, descobrir e fruir o logus.

Cunhou-se a expressão “questão de ordem” para que qualquer participante, a qualquer momento que perceba um desvio ou incoe-rência em relação ao que se julga estatuído no “regimento” subjacen-te, grite ao presidente da mesa: “Senhor presidente, questão de or-dem!”. Este imediatamente, interrompendo quem quer que esteja falando, pede que o manifestante rapidamente explique sua “questão de ordem”. Se justificada, a ele é concedida a palavra de pronto, para que todos se convençam do erro em que incorriam debatedores e mesa. Fato corriqueiro no transcorrer de uma assembleia era sua paralisação diante de um impasse. Sem sobressaltos ou traumas, o presidente pedia a palavra e afirmava convictamente que “seguindo prática aprovada em nosso regimento, estava suspendendo a sessão por 15 minutos ou meia hora, para que as forças vivas do plenário, através de seus porta-vozes chegassem a consenso relativamente à questão em debate”. Acrescente-se que a sessão pode ser suspensa por prazo indeterminado... é nesse ponto, também, que o plenário é soberano. Mas tudo isso hoje foi esquecido ou deformado...Não há mais processo decisório coletivo, reuniões e assembleias são práticas

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eminentemente formais, coonestadoras de algo que por medo da po-lícia os “dirigentes” não têm coragem de mostrar. Por exemplo, que reunião, que assembleia (senão de uma quadrilha) pode deliberar sobre a prática de venda de votos? Que ata pode abrigar o registro de tal discussão e deliberação?

Um pouco do que temos hoje

Dispensando qualquer comentário sobre a existência em nossos dias de entidades sem fins lucrativos, dispensando qualquer comen-tário sobre a origem coletiva da maioria de nossas ONGs, fixemo-nos apenas em certos aspectos de seu processo decisório.

Princípio sacrossanto: ter as casuísticas “representações sociais da democracia” como norte de toda e qualquer ação não só no âmbi-to do processo decisório, mas no de todas as ações da organização. Base filosófica: “Em política vale o parecer, não o ser.”

Seja numa ONG simples, num sindicato, num clube de futebol ou escola de samba, iniciada a reunião, cuja pauta, objetivos e demais pressupostos vão ser explicados “ou não” no decorrer da mesma, o presidente assume de forma agressiva, geralmente com palavras de baixo calão, a direção dos trabalhos... Eventualmente pode até gritar que na entidade que ele dirige “o plenário é soberano, porra!”.

Ninguém fala nada... Os chefes de claque batem palmas e têm seguidores. Não há entre os membros da plateia, antes plenário, li-nhas de divergência significativas. Há medo ou cumplicidade. A mili-tância política, partidária, do movimento social, é toda remunerada, militância cooptada a partir de emprego ou da promessa de emprego. Os cargos de direção de muitas entidades sem fins lucrativos remu-neram muito mais do que os equivalentes do serviço público ou das grandes empresas. Se se trata de uma reunião entre professores e pais de alunos, 70% dos “pais de alunos” estão ali como tarefa deter-minada pelo partido a que pertencem plenário e diretora da escola, por acaso a agremiação política a que coube, na partilha do poder em função da governabilidade, a secretaria estadual ou municipal, ou o Ministério da Educação.

Foco vivo de manifestação de um truísmo atroz, em toda sua ab-surdidade, o síndico, o presidente do sindicato, o presidente da ong, a diretora de escola, dá sequência à sessão, apresentando a solução dos problemas que num outro contexto caberia ao plenário discutir e vo-tar. Ao fim da apresentação, se calhar, pergunta: “Alguém aí tem algu-ma dúvida? Cúmplices, todos se mantêm calados. “Espero que todos

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estejam de acordo e considero votada essa questão”. “Agora, vamos ao que interessa...”. A ata é um conchavo entre seu redator e o presiden-te. Assim mesmo, se calhar fazê-la. Mas imaginemos que no decorrer da reunião alguém queira falar alguma coisa. É certo que gritará, as-sustando a todos: “Questão de ordem” (que entende como equivalente a: “quero falar, porra”) e em sequência despeja os termos de sua aren-ga. Já que a “bola” saiu da mesa e veio para o plenário, os gritos “ques-tão de ordem” se sucedem até o que o presidente resolva caçar (com cedilha mesmo) a palavra. Caso não cace (agora com c) a maldita pa-lavra, é comum matéria votada voltar à discussão e ter “outro encami-nhamento” para a alegria geral, ou melhor para a alegria “da geral”, da galera, lídimo exemplo de respeito à democracia, ao princípio de que o plenário é soberano, porra. Um clima de alegria sacode o plenário. Afinal de contas, o bom de uma assembleia “é quando a porrada come entre os caras do outro lado e o presidente”.

A que leva e tem levado essa situação, generalizada em algumas áreas, principalmente clubes de futebol, escolas de samba etc., pou-cos sabemos muito bem: tornam-se fortalezas do crime organizado. Não há queixa específica, condenação a essa ou àquela prática, por-que não mais há parâmetro. Não há a noção do certo, do modelo a que tem que se conformar um processo decisório numa organização não lucrativa. O que todos sentem, pressentem e sabem é que não há vinculação lógica entre as palavras e as coisas, é bagunça mesmo, esbórnia, mandonismo, roubalheira. “Está tudo dominado”. Num contexto real de tirano frente a uma claque de circo, a todo momento protesta-se aderência à democracia, ao sacrossanto princípio de que o plenário é soberano.

A partir desse tipo de processo decisório decorre o resto: os car-gos de qualquer diretoria são formais. Se a entidade “mexe” com muito dinheiro (leia-se projetos), o contador da mesma – amigo dire-to e de confiança do presidente, retém o poder de fato da entidade. Não se presta contas a ninguém... O presidente e seu contador man-dam sozinhos. O conselho fiscal, quando da formação dessa fictícia diretoria, teve seus membros “caçados” e “laçados” entre os amigos do “dono” do sindicato, do clube de futebol (principalmente da pri-meira divisão), ou de qualquer outro tipo de entidade, a partir do engodo: “Não se preocupe, não tem nada para fazer não, é só pró--forma.” Nesse sentido, agremiações carnavalescas bicentenárias, com imenso quadro de sócios e patrimônio incalculável, principal-mente imobiliário, desaparecem de um dia para o outro sem a menor manifestação dos Ministérios Públicos relacionados à esfera local, estadual ou federal. Pior ainda, o poder instituído de uma dessas

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esferas, para que “o povo soberano” não fique sem sua centenária agremiação, doa-lhes, aos falidos “diretores” (em que termos não se fala), uma nova sede... “Este também está dominado”, conclui o povo. Deprimente mesmo, para nós brasileiros, é ver que essa situação que aqui antecipa a barbárie é oposta, por membros de nossas ditas eli-tes, à de alguns países, obviamente não na África, onde “ainda se pratica e cultua a democracia direta, onde a segurança da população é tal que se dorme de portas abertas”... E a saída para isso, há saída?

Pressupostos da análise para uma saída, necessariamente abertos à contestação

1) O saber atual (ou discurso em sua mais lata significação) au-toproclama-se oriundo da chamada civilização grego-romana-judai-co-cristã, base ou fonte para a horizontalização “unilateral” da Histó-ria sob a liderança decisiva de povos europeus, a bem da verdade jamais à testa de qualquer processo civilizatório ecumênico, ou seja, geograficamente expressivo: sem tirar nem pôr, admitamos, povos europeus brancos e bárbaros. A história (qualquer) desconhece qual-quer tipo de vida civilizada no norte europeu, mesmo porque terreno de passagem de bárbaros invasores, vendedores de peixe e peles na rota comercial Egito – Mar Báltico, de mais de 5 mil anos.

2) A proposição do atual calendário, depois de Cristo, embora pre-nunciasse essa horizontalização, não a determinou no decorrer do pri-meiro milênio, dependente de fenômenos históricos a terem eclosão nos séculos seguintes, em períodos por essa história horizontalizada referenciáveis como Queda do Império Romano do Ocidente e do Oriente, Renascimento, Descobertas, Reforma e Contra Reforma, Ilu-minismo, Capitalismo comercial, Revolução Industrial, entre outros.

3) A horizontalização unilateral da História, quer em direção à Bacia Mediterrânea, à África, Médio Oriente, Extremo Oriente, Aus-trália e Oceania, por um lado, quer em direção ao Ocidente (maias, astecas, incas, chimus etc.) implicou o apagamento por completo das contribuições milenares relativas às precedentes experiências civili-zatórias da África, da China, Índia, Indonésia, da Oceania e das Amé-ricas, justificando no interior desses continentes que as respectivas elites agissem em relação a seus povos e legados culturais do mesmo modo como eram ou foram tratadas pelas nações hegemônicas. A África fica caso à parte porque a civilização egípcia, negra nigérri-ma, foi embranquecida, o vale do Nilo deslocado para perto do Orien-te Médio. Unilateralmente horizontalizada a história, faz-se tabula rasa das heranças culturais a partir de dentro de casa. Os mais ricos

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e poderosos vendedores de escravos na África eram negros, um por acaso negro e brasileiro.

4) Muito mais que implicar o apagamento ou contrafação, nos registros históricos horizontalizados, daquelas experiências civiliza-tórias ocorridas em nichos de história verticalizada – os egípcios, astecas ou maias, os incas, ou mesmo o Zimbábue, por exemplo, a ação unilateral implicou a destruição completa do patrimônio mate-rial e espiritual de um sem número de outras civilizações – a África e as Américas com destaque, a falsificação de autoria e/ou mutilação de peças do patrimônio cultural universal (a exemplo do monumento até hoje despudoradamente chamado de “a Esfinge de Gizé”), a “tro-feização museológica” (ressalve-se o neologismo de significação ime-diata) de peças desse patrimônio (assim tornado butim, até nossos dias símbolos da hegemonia absoluta do homem branco), ações pre-cedidas e concomitantes à escravização e ao genocídio puro e simples – até nossos dias – dos produtores dessas culturas, sua subclassifi-cação biológica (como sub-homens) e nos sistemas de hierarquização social, com sua eleição para o trabalho a partir dos mais baixos es-calões, verbi gratia a Diáspora Negra e escravidão no Novo Mundo.

5) Implicou também a inscrição, no repertório memorizável dos povos de história horizontalizada, então (e agora) genericamente re-feridos como “a humanidade”, apenas daqueles atributos que justifi-cassem os seres e culturas objetos desse apagamento e subclassifi-cação como bárbaros, nativos, selvagens, brutos, colonizados, escravos... Justificou o racismo sob todas as formas. Mais ainda, tendo em vista a cor atribuída aos então “ocasionais” (hoje eternos) hegemônicos, justificou o específico racismo contra os negros.

6) Nada impede que 2000 anos após o marco zero da História unilateralmente horizontalizada por meia dúzia de nações, a frater-nidade universal de seres humanos que conscientemente se as-sumem filhos de Lucy, a ancestral mãe negra do Homem, abram à discussão aquele processo de horizontalização da História com vistas à correção dos rumos e ações maléficas dessa humanidade que se apresenta sob os disfarces de uma punitiva, autoritária, arrogante e imperialista comunidade internacional.

A análise crítica às práticas deformadas dos processos de tomada de decisão nos organismos dos movimentos sociais, hoje, aqui e alhures, com vistas a uma saída, tem a ver com um decisivo posicio-namento, por parte do analista, relativamente à base de pressupos-tos acima referidos.

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O discurso que presidiu e preside ao processo de horizontalização da história há 2000 anos em curso, ao fechar qualquer saída àquele que identifica suas contradições e aberrações, torna lógico o que é iló-gico, virtude o que é vício. Que há de ilogicidade-maldade no fato de que as populações desfalcadas culturalmente em relação à cultura mi-litarmente dominante sejam massacradas e escravizadas? O mundo tem sido sempre assim, conclui-se, justificando e aplaudindo o darwi-nismo social. Jamais Fernão Cortez se terá feito essa pergunta porque não se faz pergunta cuja resposta já foi dada. Como enxergar as con-tradições, paradoxos e aberrações de atos justificados pelo discurso que explica a atual humanidade horizontalizada, – se não tenho meios de questionar a legitimidade do projeto levado acabo pelas nações (ra-ças, etnias, culturas) que unilateralmente horizontalizaram a História, no processo criando de chofre o racismo e etnocentrismo como pilares estruturantes da nova experiência civilizatória? O discurso da Antro-pologia dita clássica de que “não seria homem, mas bicho, o ser que não soubesse acender fogo ou não tivesse normas de organização de parentesco”, ainda tem vigência em certos círculos acadêmicos, pas-mem. Pois bem, um único exemplo de genocídio “justificado”: a partir desse princípio os europeus dizimaram a fuzil a imensa e quarenta vezes milenária população da Ilha da Tasmânia, no sul da Austrália, os mesmos europeus que hoje se arrogam juízes de crimes contra a hu-manidade... Ocorre que hoje se sabe que os povos da Tasmânia, por tabu religioso, não acendiam o fogo, cultuavam-no sem jamais deixar que se apagasse... Foram caçados e exterminados sob a justificativa, “ética e científica” (ou não?) de que eram animais.

Quando aceitamos sem crítica a história horizontalizada como aí está – um filme de bang-bang onde os eternos protagonistas do “bem” são de um lado, os brancos, e de outro, os bandidos são principal-mente os negros, por necessidade lógica temos que aceitar:

a) como “um absoluto” a humanidade resultante da História uni-lateralmente horizontalizada e não como uma contingência a ser superada, ou pior, temos que aceitar a “comunidade inter-nacional” eleita pela Otan como “a Humanidade” a ser defendi-da a ferro e fogo contra os povos do Islã, por exemplo;

b) temos que aceitar a ação malévola “do hegemônico” como a ação benéfica do Homem, representante de todos os Homens, eventualmente branco, nórdico, lembrado que a ética, apaná-gio da espécie, desaparece no momento em que se acaba a distinção (mesmo que provisória) entre Bem e Mal, por via de consequência, desaparecido o atributo, desaparece a espécie que o ostentava;

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c) temos que aceitar a exibição do patrimônio e monumentos cul-turais dos povos subjugados, por um lado como troféus de guerra, por outro como cauções, vauchers, garantes do merca-do de capitais do capitalismo destruidor, obra do hegemônico à frente do processo de horizontalização unilateral.

Dada a história de crimes, roubos e massacres que subjaz a qual-quer dos fenômenos, fica-se sem saber o que é mais humilhante e vergonhoso ao espírito do Homem: se um desses famosos jardins zoológicos feitos por homens e para homens que amam os safáris, ou um Louvre... Faço ponto final provisório aqui para que o leitor pense, reflita. Análise crítica é para isso.

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IV. Batalha das Ideias

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Autores

J. R. Guedes de OliveiraEnsaísta, biógrafo e historiador.

Flávio R. KotheProfessor titular de Estética da Universidade de Brasília.

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A arte como tese histórica

J. R. Guedes de Oliveira

A arte de nossa história

A vida humana não se prende somente ao trabalho desempenha-do todos os dias, todas as horas, sem aquelas características de prin-cípios cristãos que “não só de labor vive o homem”. Ela deve ter um sabor especial para a satisfação da espécie, completando-a com uma função a mais: a Arte.

Essa verdadeira arte, sem o brilho comercial, rasga o tempo e universaliza o homem e o seu trabalho como fonte inesgotável para a elucidação da época em que viveu. É muito fácil verificar. Tomemos, por exemplo, as obras de Antonio Francisco Lisboa (1738-1814), o Aleijadinho. Na sua arte podemos notar o meio ambiente em que ele fez parte, assim como as condições de sua pessoa num momento em que se serviu para erguer a sua própria estátua. Assim, também, notamos os trabalhos de Machado de Assis, autodidata, criador de uma escola literária, em função da época, recordando os fatos histó-ricos através dos seus escritos. As poesias de Thomaz Antonio Gon-zaga (1744-1810) e de Castro Alves (1847-1871) são trabalhos são pesquisas históricas, pois que são de época em que a liberdade da pátria e a abolição da escravatura eram exigidas com força ferrenha por todos os homens cônscios de sua missão na Terra. Tanto na arte de escrever, como na construção, avivam os fatos históricos de um momento crucial para os destinos da pátria. Através destas artes colhemos dados para as teses que se apresentam na sua variada for-ma, sempre pendente ao ponto de vista e interpretação de quem diz ou escreve algo assim.

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Um fato por demais interessante, citamos, para elucidação de conceitos e experiências relacionadas com a arte. Trata-se dos es-critos de Pero Vaz de Caminha (1450-1500). Sabemos que na vinda de Pedro Àlvares Cabral (1467-1520), também estava presente a fi-gura desse grande escriba (como era denominado nos tempos pas-sados). A sua missão era anotar tudo e a tudo observar atentamen-te. Dessas suas anotações colhemos a história do nosso Brasil e de que mistério era seguido as viagens marítimas na época. O muito que sabemos do ambiente aqui encontrado em 1500, devemos às figuras desses grandes e inesquecíveis lusitanos que nos encheram de elementos para a formação também do homem brasileiro. As imagens transportadas até aos nossos dias, representam uma larga pesquisa da arte na contribuição histórica do nosso patrimô-nio nacional, repousado nos braços de um conceito de labor perene no lema “Ordem e Progresso”.

Nos escritos deixados à posteridade, observamos todo o descorti-no do panorama evocado em nossos mais de 500 anos de país. As figuras, as datas, a vida aqui encontrada, as matas, o ambiente, en-fim tudo transportado às famosas cartas de Pero Vaz de Caminha, enviadas a D. Manuel (1469-1521), 14º rei de Portugal, denominado “O Venturoso”, em 1º de maio de 1500.

A arte dos escritos religiosos na história

É de grande utilidade para os pesquisadores as fontes dos livros sagrados, na busca do ambiente nas épocas desejadas. Lançando-se na procura dos tempos distantes de dados para teses históricas, os livros sagrados demonstram a eficiente narrativa dos momentos vivi-dos por determinados povos. Muito dos personagens que viveram na época de Cristo, ficamos conhecendo através da Bíblia. O próprio Messias Prometido nós o conhecemos porque os livros nos falaram e o tempo não apagou. Assim, as passagens vividas nas épocas em que Roma exercia domínio completo sobre o mundo nós o sabemos atra-vés dos escritos religiosos. Também muito devemos aos Protocolos dos Sábios de Sião, ao Alcorão, aos escritos inclusive de São Tomás de Aquino (1225-1274) e de Martinho Lutero (1483-1546). Ao consul-tar esses livros encontramos dados eficientes para um trabalho em que se aviva os fatos ocorridos na época em que os mesmos foram feitos, isto é, lançados ao mundo. Basta cientificar-se das 95 teses deixadas gravadas na porta da Igreja de Wittemberg por Lutero e po-deremos saber o que era o século XVI. Nós sabemos que as maiores fontes para a interpretação da história estão nos escritos religiosos.

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No Vaticano existe uma biblioteca, considerada a mais antiga e efi-ciente para os pesquisadores que procuram novos elementos para a formação do seu trabalho. Seu acervo compreende escritos antiguís-simos, muitos dos quais raríssimos de figuras geniais.

O que sabemos de São Paulo antigo, devemos aos escritos deixa-dos pelos padres Manuel da Nóbrega (1517-1570) e José de Anchieta (1534-1597), que foram, sem dúvida, os criadores dessa grande me-trópole. A magnitude das obras religiosas deixadas por esses ines-quecíveis sacerdotes serviram para a coleta e elaboração de inúme-ros trabalhos sobre o ambiente aqui encontrado em época distante, com figuras diferentes. Os poemas, as anotações, os diários são fon-tes mais brilhantes para se conhecer o que aqui era em1553. De um modo geral a contribuição religiosa para se conhecer uma determina-da época é fantástica. Basta pesquisar os livros sagrados (reforça-mos) e saberemos como se vivia em nosso país desde os tempos do seu descobrimento. Ao pensar de todos nós, verificamos que a mais completa e eficaz fonte de consulta que se possa conhecer, ainda é a Bíblia. Nela encontramos tudo que se deseja saber a respeito da an-tiguidade: nomes, datas, governantes, enfim a história da civilização. A sua contribuição para o esclarecimento de certos fatos ocorridos faz com que centenas de pesquisadores a procurem em busca de bons resultados na formação de suas teses.

A arte dos descobrimentos na história

Na viagem do veneziano Marco Pólo (1254-1324) ao continente chinês foi-lhe reservada uma experiência enorme. Conheceu ele uma das descobertas que revolucionaria a história. Tratava-se da pólvora. Esse produto viria ter fundamental importância para a defesa de to-dos os povos oprimidos por outros governos despóticos. A China co-nhecia mais que ninguém essa sua fenomenal descoberta. Partindo do poder das armas os povos começara a se atirar em constantes lutas. Vem daí a arte da guerra como consequência lógica e fruto de uma quase paixão em conquistas de terras. A pólvora, as velas lati-nas, a bússola foram, então, colocadas à disposição do homem em busca de maiores vantagens de uns sobre outros. Esses fatores fo-ram os causadores diretos das discórdias, aliás propaladas até aos nossos dias. Mas no que concerne a arte em si, em se tratando pura-mente dos aparelhos que consagraram o homem, vale-se dizer que desses tais inventos partidos de verdadeiros artistas, o ser humano conseguiu conquistar o mundo. Tudo foi um longo processo que per-mitiu a abertura de novos horizontes. A capacidade, o denodo, as

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grandes viagens (principalmente dos lusitanos), deixaram atônitos todos aqueles que não acreditavam ser o mundo como ele o é.

Com o aprimoramento de certos instrumentos de precisão, surgi-ram novos artistas que demonstraram real capacidade para inven-tos: Galileu Galilei (1564-1642), Leonardo da Vinci (1452-1519), Is-sac Newton (1643-1727), Robert Fulton (1765-1815), Alfred Nobel (1833-1896), Guglielmo Marconi (1874-1937) tiveram seus nomes deixados na história da arte, com seus trabalhos magníficos, propor-cionando reais descobertas para o mundo. Seus inventos, feitos com amor à arte, revelaram o vivo interesse pelo bem-estar da humanida-de. A história das épocas distantes gira em torno desses tais inventos que levaram o mundo a um plano superior. A base sustentada sobre os trabalhos de incrível qualidade para o seu tempo foi o êxito obtido na concepção da obra. Inventores significavam verdadeiros artistas que fizeram a história e deram condições primárias para o desenvol-vimento de pesquisas que se tornaram essenciais ao homem até aos nossos dias. Foram, por assim dizer, os pioneiros que descobriram todo o mundo para um viver mais audacioso, baseando no trabalho artístico, a consagração do seu nome na história. O telefone, o rádio, a televisão e o jornal apareceram como inventos fantásticos para tor-nar o homem mais consciente de sua missão humana, qual seja a de ser mais unido na sociedade, deixando para a sua posteridade algu-ma obra ou trabalho pela paz mundial. As descobertas, do ponto de vista artístico, revelaram a maravilha que o ser humano é, quando seu esforço é todo ele concentrado para o bem-estar.

A arte da oratória na história

A palavra falada ao público constitui um rico trabalho na história dos povos. Grandes nomes do passado conquistaram povos através da locução nas concentrações das praças. Dizem que apesar de Só-crates (469-399 a.C.) nada ter deixado escrito, foi, no entanto, um excelente orador, assim como o seu discípulo Platão (428-348 a.C.). Virgílio (70-19 a.C.), Horácio (65-8 a.C.), Júlio César (100-44 a.C.) tiveram grande influência em suas épocas através das suas sábias palavras e do seu talento no manejar o vernáculo. No antigo Senado Romano, havia uma enormidade de bons oradores que souberam dar a Roma o seu valor nas artes e na cultura em geral. Mais para o nos-so tempo, agigantam as figuras do Padre Antonio Vieira (1608-1697), com os seus sermões; François Voltaire (1694-1778), com suas ex-pressões; Rui Barbosa (1849-1923), com o seu poder de assombrar o mundo na cultura e no conhecimento político. Getúlio Vargas (1882-

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1954) tinha o poder de eletrizar o Brasil com suas palavras que até hoje são os relicários para a história do nosso povo. Na nossa época também temos excelentes oradores, pois que a necessidade de se falar em público é muito grande, nesta era das comunicações.

Para a formação de uma tese histórica muitos dos doutos pesqui-sadores procuram elementos comprobatórios para que o trabalho não tenha falha e seja perfeito. As fontes consultadas são, geralmen-te, escritos extraídos de prelações de figuras que tiveram grandes influências nas épocas. A cada qual é depositada a confiança na ela-boração da tese, sempre atentando para os dados pinçados dos livros de autores famosos. Muitas vezes são procurados os discursos deixa-dos por figuras de alto relevo para aumentar a perfeição do trabalho. Por exemplo, podemos saber como se encontrava o Brasil em 1944, na Segunda Guerra Mundial, através das locuções de Getúlio Var-gas, irradiadas a todos os brasileiros. Suas análises, sua habilidade para com o vernáculo, sua magnífica oratória, sua dicção, são fontes inesgotáveis à História do Brasil. Os grandes pesquisadores se preo-cupam muito com o ambiente reinante na época para elaborar o seu trabalho no modo mais simples e correto de se entender. Mas isso só se consegue mediante as consultas feitas à arquivos e bibliotecas onde se pode encontrar fragmentos ou íntegras de discursos que va-lem como peça preciosa à nossa gente. A arte de falar encerra uma fantástica noção da época, desde que o orador tenha na sua mente uma análise fria e realista do ambiente que o cerca. Sem a perfeição da oratória e sem o conhecimento de causa todo o orador poderá prejudicar substancialmente a elaboração futura de uma Tese Histó-rica, corroborando a verdade através dos tempos.

A arte na formação da tese histórica

É de uma perfeição imensa a contribuição da arte na formação da tese histórica. Ao defender seu ponto de vista puramente particular, diríamos, o pesquisador geralmente universaliza suas ideias. A ques-tão é que quando formado todo o seu trabalho, o mesmo desenvolve toda uma busca aos fenômenos, nos acontecimentos, nos fatos das épocas em que se prende ou se fala a tese. Essa busca nada mais é que a Arte de manejar a ideia, procurando a razão na formação e elu-cidação de conceito histórico. No artista está a semente geradora dos fatos históricos de real grandeza. A escultura de Miguel Ângelo (1475-1564), a pintura de Salvador Dalli (1904-1989), o Carlitos (de Charles Chaplin – 1889-1977), os inventos de Santos Dumont 91873-1932), o jornal de Johannes Gutemberg (1398-1468), as poesias de Luis de

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Camões (1524-1580), a música de Ludwig van Beethoven (1770-1827), a lâmpada de Thomas Edison (1847-1931) são, na verdade, obras de arte que enriquecem o mundo, uma de determinadas formas, outras de outras, mas que permitiram elementos demais para a formação da Tese Histórica. Na arte antiga, como na contemporânea, observamos a expressão do mundo revelado na forma realista. Observamos, assim, na pintura histórica de Pedro Américo (1843-1905) e no trabalho de-sempenhado por Cândido Portinari (1903-1962), nos painéis da ONU, um retrato vindo dos seus tempos, comprovando, dessa forma, condi-ções magníficas para a elaboração de uma pesquisa histórica. Assim o vemos, também, nas pinturas de Tarsila do Amaral (1886-1973), uma das dignas e mais conceituadas expressões brasileiras. Aliás, esses três grandes pintores estão muito bem postos na formação social do Brasil, através das obras que os imortalizaram.

No panorama brasileiro em que a arte toma uma cadeira relevan-te, há de se notar um grande trabalho pelas obras raríssimas e de difícil confecção pelos famosos artistas da nossa pátria. Basta exami-nar o maior movimento artístico do país, que foi a Semana de Arte Moderna, em 1922, que este ano completa o seu 90º aniversário. Foi, sem dúvida, o momento culminante da história brasileira, quando um grupo de artistas, entre eles Mário de Andrade (1893-1945), Tar-sila do Amaral (1886-1973), Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Manuel Bandeira (1886-1968) e outros mais romperam definitivamente com os conceitos tradicionais, ingressando numa era de trabalho mais comunicativo e mais aberto ao povo. Esse movimento teve, também, o cunho político, revelando a tendência de todos para um Brasil mais liberto. Como um grito de basta tão somente às arcaicas obras (as-sim definido na essência do evento), os novos se colocaram ao lado do modernismo com suas inovações, seus sentimentos patrióticos, sua liberdade de poder criar à vontade a arte verdadeiramente popu-lar. Nesse movimento, observamos a formação de uma história que serviu para mudar os caminhos que percorremos.

Apraz-nos dizer, de chofre, que a Arte em si, contribuiu e contri-bui para uma elucidação dos fatos históricos ocorridos em determi-nadas épocas. Através das obras de artistas consagrados em vida ou não, podemos sentir a sua contribuição na formação da Tese Histó-rica e no desenvolvimento dos povos da Terra. É uma simples ques-tão de pesquisa que descortina todo o panorama científico da Arte em favor do homem e da paz mundial. O artista não morre; vive eter-namente. Em cada trabalho seu está o relicário de sua vida embele-zando o mundo e os homens que amam os grandes valores e tudo aquilo que pode contribuir para uma Tese Histórica.

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Cabe perguntar se não apenas a arquitetura pode ser arte, mas também o urbanismo. Hegel sugeriu, na segunda parte da Estética, no sistema das artes, que a arquitetura foi se des-

cobrindo como arte, deixando de ser apenas espaço construído, à medida que se deixou inspirar pela escultura. A Esfinge do Egito ou um obelisco são esculturas que, por suas dimensões, têm caráter arquitetônico; a pirâmide é uma arquitetura que tem o caráter de escultura; uma série de esfinges colocadas na entrada de um palácio também tem caráter arquitetônico, podendo-se acrescentar que, com o ajardinamento ao redor, tinha um caráter urbanístico. Tem-se fala-do, na tradição filosófica, de arquitetura como arte, como também na arte da jardinagem. Até que ponto o urbanismo pode ser arte?

Façamos um rápido estudo de caso: a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, algo tombado e mundialmente conhecido. Em geral, as pessoas percorrem esse trecho, olham as construções sem olhar o todo. De tanto verem árvores, talvez não enxerguem a floresta de símbolos que aí está construída. A questão é saber se a Esplanada é a expressão de uma ideia, a representação sensível de uma ideia, e, assim, atende ao requisito do idealismo alemão, para se constituir numa obra de arte urbanística, formada por uma série de outras obras de arte, os espaços construídos.

Em geral se toma essa expressão como significando prédios. É preciso verificar, no entanto, que também se constroem espaços entre os prédios, constrói-se o espaço das relações entre eles. A no-ção de espaço deriva dos espaçamentos gerados pelas distâncias en-tre os prédios. Esses espaçamentos constituem uma sintaxe. É como se os prédios fossem palavras, as diferenças entre eles fossem sua morfologia, as distâncias formassem uma sintaxe, para que o todo fosse uma semântica. Qual é o recado disso?

A Esplanada é marcada, primeiro, pelos prédios dos ministérios, que formam o seu cerne, as costelas do seu corpo, que deve ter, en-tão, ainda suas pernas, seus braços e sua cabeça. A espinha dorsal está no vazio dos seus gramados centrais. As ruas, as luzes, as vias

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subterrâneas de comunicação são como um sistema nervoso. A cabe-ça vai estar nos Três Poderes; os braços nos prédios do Itamaraty, para as relações externas, e do Ministério da Justiça, para as rela-ções internas do país; as pernas podem ser imaginadas, por um lado, no conjunto da Catedral, Museu Nacional e Biblioteca Nacional, e, por outro, no conjunto do Teatro Nacional, seu Anexo e os museus que ainda terão de ser construídos no espaço ora ainda vazio. As pernas permitem o andar, permitem que se mantenham as ativida-des: o lazer serve para repor as forças de trabalho. O todo forma um corpo, realizando o modelo de Vitrúvio, de que o corpo humano é o modelo para as construções, só que, em vez de fazer isso, como ele havia pensado, em termos de um determinado prédio, tem-se essa analogia no conjunto dos prédios, na dimensão urbanística. Pela in-clinação do terreno, por isso se destacar já que não foram feitos os açudes propostos por Burle Marx para toda a Esplanada a partir de uma fonte natural que havia onde hoje fica a Rodoviária, é como se ele estivesse de cabeça para baixo. É um gigante adormecido, confor-me reza o Hino Nacional ao querer definir e exaltar o Brasil.

Os prédios dos ministérios com a exceção de dois marcam uma ordenação regular da Esplanada, dispostos simetricamente como se fossem grandes caixas de charutos retangulares. Representam a or-dem, a uniformidade. Essa igualdade total deles entre si é pobre e totalitária, não admite variações dentro de si, parecem um batalhão de soldados em parada militar. São como habitações populares, como as senzalas dos escravos. Os servos são chamados de servido-res, em vez de perucas usam gravatas e tailleurs. Estão aí para ser-vir, para desempenhar uma função, sendo substituíveis depois de gastos, como se fossem peças de reposição fácil. Eles passam, os prédios ficam; o funcionário se vai, a função fica. Nada revolucioná-rio, nada que valorize muito o trabalho.

Na parte abaixo dos caixotes dos ministérios, ficam, à direita, o belo prédio do Itamaraty, que é uma variação deitada de caixa, mas toda vazada, tornando-se o oposto das caixas (como são, ainda mais, a Catedral e o Museu Nacional, com suas formas arredondadas), e, à esquerda, o interessante prédio do Ministério da Justiça, que guarda uma recôndita semelhança, em forma simplificada, do seu vizinho de frente. A parte de baixo é completada e fechada pela cabeça pensante do país, os três prédios dos poderes: o Executivo no Palácio do Planal-to; o Congresso, no H de homem, um símbolo fálico que é completado por duas bolas incompletas, e o pequeno prédio da Justiça, como se fosse de somenos importância. Essas três construções são bem dife-rentes entre si, sendo central o Congresso, como representação do

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povo. É uma proposta democrática, em que à representação popular se dá mais grandeza e elevação do que ao Executivo e ao Judiciário, órgãos como que derivados daquele. O cérebro é o Congresso.

Na parte de cima da Esplanada, à direita está o surpreendente e belo prédio da Catedral, que é o oposto dos caixotões dos Ministérios, ficando mais bonito por causa da feiura deles. Num país em que há a separação entre Igreja e Estado, não deveria haver uma igreja no lugar onde estão os poderes do Estado civil. Menos ainda deveria ele ser tomado por uma religião determinada se a Constituição do país garante liberdade e igualdade de crenças (mas não de descrença, como se a liberdade não residisse nesta). Os tribunais também não deveriam ter símbolos religiosos em suas paredes: se os de uma reli-gião são postos, deveria haver espaço para todos os das demais reli-giões também. Tendo símbolos determinados, eles declaram que são parciais e não respeitam a lei maior. O que deveria ter sido feito no lugar da Catedral seria um observatório astronômico, para que o ci-dadão pudesse sempre ser lembrado da pequenez de seu planeta e de sua existência. A Catedral tem o formato de um tubo que se abre para o infinito; se ele é preenchido com a lente de uma religião deter-minada, a abertura se torna um fechamento. No lado direito de quem olha da Rodoviária, veem-se ainda os prédios do Museu Nacional, como se fosse um ovo meio enterrado no chão, fechando-se para a visão da Esplanada, e o discreto prédio da Biblioteca Nacional.

No lado esquerdo da parte de cima da Esplanada, está a pirâmide do Teatro Nacional, cuja forma é inadequada para as funções da construção. Em vez de uma forma, tem-se aí uma “fôrma”, algo im-posto de cima para baixo e de fora para dentro. Em vez de a obra ser planejada de dentro para fora, conforme as leis da acústica, como foi a Filarmônica de Berlim, conseguiram fazer algo em que o som é ruim por toda parte, e não tem jeito de corrigir, pois o problema é estrutural, desdobrando-se nos materiais internos empregados. Sen-do em forma de pirâmide, não consta, porém, que as múmias cantas-sem no Egito. A única sala boa é a que não foi planejada, a menor, feita num vão que sobrou. A imposição de uma “fôrma” tem algo de autoritário, prepotente, como se quisesse demonstrar o senhorio do homem sobre a matéria.

O que falta em toda a Esplanada é evidente: duas estações de metrô, para que os que nela trabalham ou tivessem questões a resol-ver pudessem se locomover. Essa questão não vai se resolver fazendo um estacionamento subterrâneo. O projeto inteiro do Plano Piloto e das cidades satélites está errado por três falhas primárias de concep-ção: a falta de metrô, tanto de superfície quanto, em alguns trechos,

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subterrâneo, a falta de ciclovias e de caminho exclusivo para motos. Tudo era possível de prever na década de 1950, já havia dezenas de anos de experiência em diversas metrópoles, mas esqueceram de fa-zer uns tracinhos, pois estavam preocupados em servir às montado-ras de automóveis.

A cidade funcional não funciona. Tudo fica longe de todos. Ela funciona cada vez menos. Quanto mais ela se desenvolve, maior é a regressão da qualidade de vida nela. Ela é hostil aos idosos e às crianças, ela gera a tirania do preço do metro quadrado exacerbado em função das distâncias que ela obriga a percorrer, gera o descon-forto de longas viagens em meios inadequados. O erro é, porém, ba-sicamente de concepção.

Na Esplanada dos Ministérios, como os prédios construídos na parte debaixo e de cima, do lado esquerdo e direito, são todos dife-rentes entre si, eles têm a mesmice da diferença, a uniformidade do desigual, sua diferenciação contrasta com a uniformidade dos caixo-tões ministeriais, o que faz com que eles se tornem diferentes do que é diferenciado. Os iguais se mobilizam, sua uniformidade se torna simetria, e o que parecia pura diferença adquire uma espécie de igualdade. Os prédios que são diferentes se igualam por serem dife-rentes entre si e em relação aos que são uniformes, o que faz com que o uniforme adquira um caráter de diferenciação. O uniforme passa a vibrar como simetria, como um cosmos em meio ao caos do desigual, como uma série de árvores do mesmo tipo em meio à floresta caótica.

Tem-se, portanto, na Esplanada, uma síntese dialética: a tese é proposta pelos prédios iguais dos ministérios; a antítese é formada pelos prédios diferenciados. Por outro lado, como o uniforme se mos-tra diferente em relação aos prédios diferenciados, como estes se tor-nam iguais por serem todos diferentes entre si e em relação aos que são uniformes, a tese se torna antítese e a antítese se torna tese. Como se espera que todos funcionem em conjunto, como os contrá-rios se superam pela sua mútua negação, as diferenças se superam em função de uma unidade global. A Esplanada dos Ministérios é uma síntese dialética de contrários. Hegel e Marx se tornaram cons-trução arquitetônica e urbanismo. É uma dinâmica em forma estáti-ca, um devir em estar, um vir a ser estando a ser.

O conjunto sugere, no entanto, algo bem menos subversivo. Nos prédios diferenciados estão os que mandam, os senhores, os gover-nantes; nos prédios uniformes, os que obedecem, os servos, chama-dos de servidores. É a dialética de senhor e servo, conforme ela está na Fenomenologia do Espírito, de Hegel, mas também a dialética dos

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donos dos meios de produção e daqueles que apenas têm as suas forças de trabalho para vender no mercado, como reconhecia Marx. O marxismo teria se tornado arquitetura e urbanismo.

A forma diz que os senhores, os governantes, estão nos prédios diferenciados, eles indicam quais os caminhos que devem ser percor-ridos, mandando, na parte de baixo da Esplanada (que seria o alto da cabeça do Gigante Adormecido), ficando a parte de cima, mais perto da rodoviária, para que eles se divirtam, se ilustrem e sejam abenço-ados no que fazem. Aos servos restam as oficinas uniformes do cen-tro, como se fossem senzalas. Em vez de usar perucas ou grilhões, usam gravatas e tailleurs.

Em suma, a história brasileira se recupera, na casa grande dos prédios diferenciados e de melhor qualidade arquitetônica, restando a senzala dos ministérios para os novos escravos, os servidores pú-blicos. Alguns destes, como os diplomatas, os funcionários do Legis-lativo e do Judiciário, bem como os artistas, os padres e os bibliote-cários podem servir na casa grande, ou seja, nos prédios diferenciados, tornando-se as “crias da fazenda”, que são mais bem tratados, como também era habitual nos latifúndios brasileiros. Os salários mais opulentos mostram que são assalariados que ascenderam à condição de participantes dos lucros. Trata-se, portanto, de uma construção digna da história do país.

Os prédios uniformes dos Ministérios representam o princípio da Ordem. Eles a proclamam de modo concreto. É uma ordem que não muda, está para sempre aí, como a ordem que imperava na caverna platônica. Os que têm a vestimenta desse concreto agem como lhes é mandado, não estão aí para pensar por conta própria. Sua cidadania é não ter cidadania nem opinião. Quem está aí para pensar é aquele que habita o prédio diferenciado, onde a qualidade foi tornada con-creta, concreto.

Nas construções diferenciadas, o senhorio manda, na parte dos prédios dos Três Poderes, e se diverte na parte dos museus, bibliote-cas e teatros. Se o povo pode acessar o espaço da diversão palaciana é por tolerância e boa vontade do governante. Os espaços culturais são púlpitos em que se prega a ideologia do poder ou, ao menos, o que não for antitético a ele. A casta governante diz para onde o país deve caminhar, em que direção ele deve avançar. Pelo diferente é que realmente se pensa, quando se consegue perceber as diferenças su-tis que existem onde parece imperar a igualdade e o que é o mesmo no fundo daquilo que se apresenta como diferenciado. É o que Pascal chamava de l’esprit de finesse e l’esprit de géometrie. Os prédios de

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qualidade, diferenciados, abrigam os senhores, as classes dominan-tes, que ditam qual deva ser o Progresso.

A Esplanada dos Ministérios representa e encena em sua constru-ção antitética o lema positivista posto na bandeira brasileira, Ordem e Progresso, que guarda sempre a sugestão de que somente a ordem é que garante o progresso, tanto é que essa palavra vem em primeiro lugar, como condição da segunda, mas mantém o alerta de que é preciso haver progresso para que a ordem possa ser mantida. Assim, direita e esquerda se veem representadas, podendo se dar as mãos na resultante de suas vontades. Há algo mais metafísico, no entanto, subjacente a essa divisão: o que está nas construções uniformes dos ministérios é o corpo administrativo, é a matéria, a corporeidade, o estado presente, enquanto que os prédios diferenciados represen-tam o espírito, a alma, o transcendental. A duplicação metafísica do mundo está aí presente. É uma construção que reafirma a duplica-ção metafísica do mundo: essa “vanguarda” reafirma a tradição. Ela não tem nada de ruptura com o platonismo. Pelo contrário, reafirma a ordem antiga das coisas. Ela só explicita isso ao colocar um templo onde não deveria haver nenhum.

Como um todo, a Esplanada expressa e concretiza as “ideias” de Ordem e Progresso, de união e cooperação entre servos e senhores, de unidade e diferenciação entre corpo e alma, de conjunção da ma-téria com o espírito. É um espaço urbano que se afirma como um templo da nacionalidade. A sacralização se dá em forma de tomba-mento histórico, patrimônio da humanidade. O sagrado se faz con-creto e habita aquele espaço, uma variante da “ideia” de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

Nenhuma dessas “ideias” é nova. Novo é fazer delas um projeto urbano tão rigoroso e consequente. A Esplanada é a representação sensível de ideias, de concepções de sentido da história e da relação entre homem e universo. Na visão que o idealismo alemão tinha da arte, é uma peça de urbanismo, constituída por várias peças arqui-tetônicas de caráter artístico, que no todo seria uma obra de arte global, um templo da brasilidade, o lugar sagrado de uma nação, como outros povos também já tiveram ou têm.

Se a “ideia” não é “nova”, se ela já foi expressa de modo mais am-plo e denso em forma de ensaios, hinos, obras literárias, discursos ou músicas, será que esse espaço urbanístico se eleva ao caráter de arte? Haveria algo novo a ser dito por ele, inacessível a qualquer ou-tra linguagem? Será que a sua linguagem é adequada, já que a maior parte das pessoas vê esse espaço a cada dia e parece não entender o

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que ele significa? Ou será a ideologia tanto mais eficaz quanto menos ela é reconhecida como ideologia? Não é melhor para ela disfarçar-se de arte ou espaço sagrado? Teria razão Hegel ao dizer que as pirâmi-des do Egito foram pobres como linguagem se para entender o que significavam foi preciso recorrer à literatura e à mitologia? Seria pos-sível inverter isso e sugerir que o seu discurso em pedra foi mais perene, simples, direto, evidente e claro do que qualquer outra lin-guagem, para dizer como os egípcios pensavam que era a hierarquia social e quem devia ser preservado como de maior valor?

O Brasil é o único país que colocou um lema, positivista, na ban-deira, como se os que o fizeram não tivessem entendido que a lingua-gem das bandeiras e dos brasões de armas tem seus códigos, mas não precisa de palavras. Horácio, o poeta romano, tem um poema em que ele compara a res publica com um barco, em que é preciso pro-curar manter o equilíbrio, não descambando de repente muito para um lado ou para o outro, mas que é preciso também movimentar os remos de tal maneira que no percurso a nave encontre o seu rumo e a sua estabilidade. Se a ordem é vista como condição para o progres-so, fica ainda a sugestão de que se não houver progresso também será cada vez mais difícil manter a ordem. Se a Esplanada dos Minis-térios sugere como construção a união dialética da ordem com o pro-gresso, a igualdade com a diversidade, então, mais que mera corpo-rificação do lema Ordem e Progresso, ela seria a concretização de um princípio milenar de sabedoria de governança.

A diferenciação qualitativa da grande arte não consegue ser defini-da, embora possa ser sentida, percebida e intuída. Por mais corretas que sejam as análises de obras de arte, esse a mais da qualidade não consegue, em última instância, ser posto em palavras, em imagens, em gráficos, muito menos ele pode ser expresso por uma fórmula matemática. Se fosse possível, ele poderia ser convertido num algorit-mo que alimentaria robôs. Os artistas seriam dispensáveis. As obras passariam a ser produzidas em série.

A arquitetura vem sendo ensinada como tecnologia, como fabri-cação de utensílios, não como arte. Ela está sendo concebida antes como um artesanato com técnicas avançadas de construção, como um design. A “venustas”, a beleza, aparece aí não como algo já ine-rente à estrutura da obra, à sua concepção basilar, e sim como um enfeite, algo que pode ser acrescentado ou retirado. O modernismo chegou a postular a eliminação de qualquer decoração e acabou ge-rando uma arquitetura de formas simplórias e cansativas.

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Karl Solger achava que a arquitetura por excelência é o templo. Em vez de cada um apenas rezar sozinho no seu canto, os cultos são feitos em templos, para grandes agrupamentos, em que o comporta-mento de uns induz os outros ao mesmo tipo de postura. Todos se induzem mutuamente, como se houvesse uma grande corrente ele-tromagnética que gera um sentimento de elevação e agrado, permi-tindo a todos sentirem uma obra de arte coletiva, que está em todos e em ninguém, que tanto mais existe quanto menos ela é um ente singular. Ou seja, é preciso reexaminar (não re-ver) quais são os li-mites das artes.

Nietzsche falava do sentimento que monarquistas sentiam numa cerimônia na corte, a sensação que uma formação em parada militar provocava ou o que um grupo de jesuítas poderiam sentir ou provo-car quando rezam juntos andando pelos corredores. Incluir ou ex-cluir tais eventos do âmbito da arte significa, se não a existência implícita de um sistema das artes em quem julga, ao menos uma compreensão bastante precisa do que possa ser considerado artísti-co, o que seja um evento com a participação de fatores estéticos e o que é apenas uma projeção virtual que não tem validade como arte. Fica então a sugestão de que a distribuição de um conjunto de pré-dios, num urbanismo que usa a jardinagem, mas não se reduz a ela, pode ser arte. Fica ainda a sugestão de que a Esplanada dos Minis-térios á a concretização dialética da noção de Ordem e Progresso, de união entre corpo e espírito, de identidade na diferença e de diferen-ça na identidade.

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V. O Social e o Político

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Autores

Maria Alice Rezende de CarvalhoProfessora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio e integrante da Coorde-nação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes)

Waldir CardosoMédico, diretor da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), membro do Conselho Fede-ral de Medicina (CFM).

Lúcio Flávio PintoEditor do Jornal Pessoal, de Belém.

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Ciência, democracia e mobilidade urbana

Maria Alice Rezende de Carvalho

Tornar-se a sexta economia do mundo, ostentar certo equilíbrio financeiro em meio à crise global, sediar eventos tidos como prestigiosos pela população planetária tem feito do Brasil uma

geografia refratária a problemas. Some-se a isso o fato de, localmente, as UPPs estarem sendo bem avaliadas pela população – até agora con-vencida de estar diante de uma política de segurança pública –, para que o mesmo efeito se instale no Rio de Janeiro, afastando, subita-mente, os temores quanto ao futuro da cidade e região metropolitana.

É verdade que a combinação de crescimento econômico com di-minuição da taxa de natalidade – o chamado “bônus demográfico” – costuma disparar o otimismo. Mas, no Rio, não há motivo para tanto, pois, como afirma o economista Mauro Osório, não só o crescimento econômico é pequeno, inferior à média nacional, como se observa um preocupante descompasso entre a retração populacional na última década e a expansão das favelas, sobretudo Mangueira, Rocinha e Maré, que juntas atraíram três vezes mais moradores. Isso significa que, embora o perfil demográfico do Rio aponte um recuo no número de nascidos, para os que nasceram as condições urbanas pioraram, quaisquer que sejam seus endereços. Portanto, nunca foi tão impor-tante discutir alternativas para a cidade e região metropolitana, pois não fazê-lo significa desperdiçar a chance de utilizar os fartos recur-sos de ocasião para construir um Rio de Janeiro mais próximo das nossas aspirações.

Debater sobre o futuro da cidade e região metropolitana, porém, não é empreendimento simples. Faltam os “indignados”, com a mídia

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local afogada em ufanismo, e faltam dispositivos institucionais que recolham as diferentes queixas da sociedade, operem sua tradução e as transformem em política. Faltam, nesse caso, agências de media-ção, a exemplo das associações de moradores ou da universidade, que ainda engatinha nesse papel. O associativismo, como se sabe, está vivo e vem ganhando musculatura em diferentes pontos da re-gião metropolitana, mas tem sua penetração no mundo popular limi-tada pelas redes governamentais e não governamentais de assistên-cia aos mais vulneráveis. Portanto, sua capacidade de organizar autonomamente os segmentos populares é, hoje, pequena e depende de aliados que possam furar o localismo e rejeitar compromissos por vezes espúrios que as associações de base territorial acabam força-das a assumir.

A universidade, em princípio, seria uma instituição compatível com essa atribuição, pois corta transversalmente diferentes públi-cos, com o concurso de uma “língua geral”: a ciência. Mas para isso, a universidade precisa satisfazer dois requisitos: terá, em primeiro lugar, que explicitar tal meta e torná-la reconhecida dentre as alter-nativas que se apresentam ao sistema de ciência e tecnologia. O que significa abraçar, consistentemente, um modelo de universidade no qual interesses de diferentes grupos – do empresariado aos movi-mentos sociais – disputam por maior ingerência no ambiente acadê-mico. Entre nós esse caminho já é trilhado, pois, como se sabe, as políticas públicas vêm sendo crescentemente desenhadas no âmbito dos departamentos universitários de pesquisa. Contudo, muito pou-co disso é objeto de reflexão e debate. E o resultado é que a universi-dade não emite sinais claros para a sociedade quanto ao que pode ou deve esperar dela.

A universidade terá também que satisfazer um segundo requisito: valorizar explicitamente o processo e não apenas os resultados da pesquisa científica, compreendendo ser ele um caminho para a apro-ximação de diferentes atores e de suas representações acerca do mundo. Financiadores, comitês avaliadores, gestores universitários, editores científicos, destinatários finais da pesquisa e mais a rede de assistentes organizada para aquele empreendimento acompanham, todo o tempo, o pesquisador e interferem no resultado final de seu trabalho, transformando a ciência em linguagem pública, resultado de muita disputa e de acordos contingentes quanto à noção de certo, de bem, de útil etc.

Pode-se dizer, então, que as pesquisas científicas inscrevem efei-tos no mundo antes mesmo de seus resultados começarem a circular – mais ainda as pesquisas sociais, cuja elaboração configura um pú-

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blico maior, pois dele participam os indivíduos ou grupos pesquisa-dos. Uma investigação pontual, por exemplo, em chave etnográfica, sobre o regime de uso de uma pracinha pode ajudar a população do entorno a conhecer as hierarquias locais, o contexto em que se ob-servam certas ações arbitrárias, e a se posicionar diante dessas e, eventualmente, outras manifestações de arbítrio. Ou seja, o papel da universidade, enquanto mediadora, é o de generalizar o acesso a in-formações e principalmente às operações críticas que constituem o fazer científico, alinhando, sob a mesma linguagem, desde os patro-cinadores até os seres investigados. Quando esse alinhamento é bem sucedido, é provável que se ponha em andamento a constituição de um problema público.

A noção de problema público circula entre autores contíguos ao pragmatismo filosófico norte-americano – como Joseph Gusfield, au-tor de The Culture of Public Problems – e à versão francesa dessa cor-rente, representada por Luc Boltanski, Isac Joseph e Bruno Latour. Embora consideradas as grandes distâncias que separam tais auto-res (e assumido o risco da simplificação que a exiguidade desse texto impõe), pode-se afirmar que o que há de comum entre eles é a ideia de que um problema público é sempre construído “em situação”, isto é, a partir da interação de atores que se sentem afetados por ele. As-sim, ao descartar atributos e motivações “inerentes” aos atores – seus valores, suas ideologias ou conhecimentos prévios à interação – o pragmatismo valoriza a linguagem que emerge, em meio a muita disputa, na construção do problema.

Tal linguagem não é apenas a melhor argumentação sobre um fato, mas inclui também uma dimensão performática, dramatúrgica e algumas vezes melodramática. Cenas de terríveis acidentes auto-mobilísticos agitaram a opinião pública norte-americana contra o ato de dirigir após o consumo de álcool (drinking-driving), fazendo con-vergir para o debate pesquisadores, familiares das vítimas, educado-res, entidades de assistência e previdência, operadores do sistema de saúde, de justiça, de informação e assim por diante.

Entre nós, a chamada Lei Seca é fruto de dramatização similar, mobilizando agências poderosas e convencidas da necessidade de conter os altos índices de mortes e mutilações, invalidez e desperdí-cios securitários. Mas não se pode dizer que no Rio de Janeiro os acidentes motivados por consumo de álcool tenham constituído um problema público.

O fato é que nem todos os grandes problemas sociais se tornam públicos. E no Ocidente, dado o grau de institucionalização das

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agências de produção de significado, é difícil conceber um problema público que não tenha passado por universidades, organizações não governamentais ou mesmo por agências de planejamento do Estado, isto é, por instâncias reflexivas. É que o problema público se define pela capacidade de levar diferentes atores afetados por um mesmo problema a construir uma unidade conceitual, um conceito guarda--chuva que cobre a diversidade de interesses nele contida. Exemplo importante disso é o fato de que, atualmente, com toda a ambiguida-de inscrita na sua decisão, parte significativa das lideranças de fave-las se recusa a abandonar esse conceito, pois sendo as favelas cario-cas um problema público, é por ele que seus interesses têm sido organizados, legitimados no âmbito do debate, e, em alguns casos, se tornado vitoriosos.

Outro exemplo relevante é a incapacidade de a região metropoli-tana do Rio de Janeiro se tornar um problema público. Embora par-cela considerável dessa população de 12 milhões de habitantes este-ja advertida para o fato de que suas condições de vida não melhorarão sem uma solução integrada dos problemas que afetam os diferentes municípios, os atores que se aliam na defesa desse conceito não têm sido eficazes na ampliação de seus interlocutores. Nem empresários, nem grupos universitários de pesquisa, para citar alguns deles, têm conseguido romper suas lógicas específicas e trazer outros interesses sociais para o debate. Nesse caso, quando se fala em problemas pú-blicos do Rio de Janeiro, é a cidade que é evocada, malgrado a certe-za de que as soluções desses problemas estarão, em grande medida, além da sua estrita jurisdição.

Na trajetória moderna do Rio de Janeiro, apenas duas grandes questões terão sido alçadas à condição de problema público. A mais recente – violência urbana – segue sendo um campo de disputas de significação, para onde convergem permanentemente novos interes-sados na construção do problema. Ao final dos anos de 1970, se mobilizaram primeiro os empresários e suas entidades representati-vas, construindo um debate em torno do esvaziamento econômico do Rio, que, segundo eles, era fruto da desordem urbana, sendo a vio-lência um de seus sintomas. Nessa perspectiva, a criminalidade vio-lenta, os pequenos delitos, as infrações de trânsito e mesmo a sujeira nas vias públicas eram aspectos de uma “cultura delituosa”, atribu-ída aos “outros”: os pobres, os negros, os moradores de favelas, os desempregados, que, por essa unificação conceitual, se viam enlea-dos a criminosos, assaltantes, assassinos etc.

Associaram-se, então, ao debate organizações não governamen-tais, grupos universitários de pesquisa, lideranças associativas e re-

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ligiosas, além de membros isolados de partidos políticos de extração democrática. E o efeito dessa associação foi a emergência quase si-multânea do Viva-Rio e do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, coletivos para onde convergiram os interessados na cons-trução do problema da violência. Distintos, menos na sua composi-ção do que nas estratégias adotadas, pode-se dizer que o Viva-Rio terá consagrado uma linha de intervenção performática, que associa-va informação e sensibilização social, enquanto o Plano Estratégico reproduzia, em escala micro, a cartilha pragmatista de constituição de acordos contingentes entre interesses diversos. Em ambos os am-bientes, contudo, o tema da violência tentará se constituir em oposi-ção ao campo semântico da desordem, sendo essa a tensão constitu-tiva dos debates do período.

A chegada da universidade àquela disputa foi decisiva para a sig-nificação da violência urbana, do que é prova o fato de seus pesquisa-dores mais destacados terem sido convocados para o desempenho de funções governamentais ou para a estruturação de agências de media-ção sociotecnica na área da segurança pública. Assim, ao tempo em que promoviam treinamento de policiais, cursos de extensão, desenho e avaliação de políticas públicas, tais pesquisadores puderam também consolidar a institucionalização de programas de pós-graduação e la-boratórios de pesquisa nos quais esses temas tinham acolhida. E o acordo entre Senasp e Anpocs para a realização de pesquisas consa-grou as ciências sociais como instância de tradução de interesses – inclusive os da própria comunidade acadêmica –, rotinizando disposi-tivos que têm mantido a violência como problema público há mais de duas décadas. Mais recentemente a emergência do tema dos direitos e, sobretudo, o dos direitos humanos, tem trazido novos interlocutores ao debate, colocando em perspectiva alterações no significado da vio-lência, bem como nas formas de combatê-la.

Mas, o maior problema público na trajetória moderna do Rio de Ja-neiro é, sem dúvida, a favela. Existentes há mais de um século e fre-quentando sistematicamente a opinião desde, pelo menos, os anos de 1910, as favelas condensam camadas de significação pelas quais pas-saram os diversos interesses presentes no processo de modernização das cidades brasileiras. Já na década de 1970, quando, em plena di-tadura, são criados os dois primeiros programas de pós-graduação em ciências sociais no Rio de Janeiro – o do Museu Nacional e o do Iuperj –, as favelas disputam o lugar de objeto preferencial das pesqui-sas acadêmicas, passando a ter projeção extramuros da universidade.

A análise minuciosa daquele contexto e dos textos que ele gerou vem sendo feita por muitos autores, principalmente Lícia Valladares,

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e, de qualquer forma, não caberia fazê-la aqui. Mas talvez seja rele-vante notar que aqueles foram tempos em que a academia precisou disputar a direção do tema, pois havia uma forte agitação intelectual, de que participavam artistas, jornalistas, músicos etc., que tomava a cidade a partir “de baixo”, e afirmava a riqueza dos valores popula-res, a especificidade cultural do samba e do carnaval, a estética da favela. Para apontar um só nome daquele movimento, tome-se o do arquiteto e artista Helio Oiticica, autor dos Parangolés e por isso apresentado, certa vez, por Chacrinha, como “costureiro”, segundo o próprio Oiticica, em entrevista concedida a Jorge Guinle Filho, em 1980. Oiticica talvez não tenha sido o ator mais “representativo” da-queles anos e não se tornará, como se sabe, o mais conhecido.

Porém, sua atual importância reside no fato de que não apenas dissolveu a favela na cidade – “a desordem aparente pode ser o resul-tado de uma ordem que muda rápido demais” –, como inscreveu aquele Rio popular no âmbito de um debate internacional sobre o urbanismo moderno, muito criticado, à época, pelos adeptos da cida-de “natural”, não projetada, labiríntica, como queria Oiticica, rizo-mática, como se diria hoje.

Na verdade, ampliar o espectro de aliados, extrapolando, inclusi-ve, os limites nacionais, é, ainda hoje, uma forma de garantir a lide-rança no processo de significação de qualquer artefato. Contudo, Oi-ticica era um livre-atirador, desarticulado em relação aos que, dentro e fora do país, se mostravam interessados numa concepção de cidade orgânica, de um Rio orgânico. Lembrar Oiticica significa, portanto, rememorar um caminho que poderia ter triunfado: o da compreensão do Rio de Janeiro como cidade de múltiplas formas. Não foi o que ocorreu; mas o que ocorreu não era inevitável.

O fato é que, progressivamente, artistas e universitários acaba-ram encontrando uma via comum de defesa do mundo popular – do que o CPC é um exemplo –, que, no que se referia à favela, consistiu em tomá-la como um dos itens das lutas sociais dos trabalhadores: o direito à moradia. Tal perspectiva se mostrará frágil um pouco mais à frente, quando a política de remoção das favelas passou a acenar exatamente com a ideia de casas substitutivas àqueles barracos mal dispostos na cidade. Contra o chamado remocionismo se uniram, então, parcela considerável da comunidade de cientistas, artistas, políticos, intelectuais, membros de associações de moradores, sindi-calistas, jornalistas, editores etc., que, em grande parte, viam nas favelas uma espécie de front da luta contra a ditadura, mais do que um elemento da guerra urbanística que definiria a cidade do Rio de Janeiro pelas próximas décadas. De qualquer modo, a favela se tor-

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nara uma “caixa-preta”, nos termos de Bruno Latour, lugar de pas-sagem obrigatório de todos quantos se refiram ao Rio.

A partir daí, tantos agenciamentos foram feitos, que qualquer tentativa de resenhá-los seria inglória. Há, contudo, que reter o fato de que, nos últimos 30 anos, a reprodução da favela como problema público consagrou o paradigma da integração, que, como se sabe, se assenta em dualidades como dentro-fora, morro-asfalto etc. Esse pa-radigma conheceu o ápice da sua formulação no programa Favela--Bairro, que, como o nome indica, representou uma aposta na con-versão da favela em cidade, levando ao limite as possibilidades desse paradigma. Com o Favela-Bairro ficava claro que as soluções engen-dradas por famílias pobres para os seus problemas de moradia se-riam respeitadas; e que, portanto, não se tratava de lhes conceder moradas alternativas em conjuntos habitacionais, mas, antes, como dirá Sérgio Magalhães, então Secretário de Habitação do Município do Rio de Janeiro, lhes conceder cidade – por isso entendido o acesso a direitos especificamente urbanos, tais como saneamento, ilumina-ção pública, áreas de lazer, fornecimento de água, coleta de lixo, ar-ruamento e assim por diante.

O programa Favela-Bairro, em suma, resumiu os 30 últimos anos de significação da favela: uma forma singular, enquistada na cidade, que pode ser integrada, mas não completamente assimilada à urbe. E, visto de agora, pretendeu reunir, na sua operação, dois princípios contraditórios: o local e o público. Do ponto de vista das obras, era localista: o limite físico da sua execução era cuidadosamente estabele-cido, ou melhor, restringido, de modo a que se tivesse certeza de que se urbanizava uma favela específica, com sua história, seus persona-gens, seus interesses, sua particularidade, enfim. Do ponto de vista de seu planejamento, contudo, as regras do programa previam alguma publicidade: houve concurso público de escritórios de arquitetura, aos quais se agregaram sociólogos ou assemelhados, incumbidos de pro-duzirem algum entendimento entre os moradores, entre estes e os arquitetos e entre os arquitetos e as diversas instâncias do poder pú-blico a que estavam subordinados. Engolfando tudo isso, uma mobili-zação da opinião pública bastante eficiente, que previu, inclusive, a cobertura jornalística do sucesso internacional do programa.

Assim, embora intuitivamente a favela fosse considerada um pro-blema público – intuição manifesta, por exemplo, no esforço de am-pliar o leque de aliados, atraindo a universidade, agências de fomen-to etc. – o próprio escopo do projeto, ao sublinhar o local, inviabilizava tal intenção. Afinal, não havia, em circunscrição tão diminuta e socialmente homogênea, como eram as favelas seleciona-

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das, comerciantes de monta ou empresários, dirigentes de escolas ou de clubes, produtores culturais, enfim, interesses verdadeiramente afetados por aquele empreendimento. Do ponto de vista da socieda-de, quem aprovava ou reprovava o Favela-Bairro o fazia por motivos ideológicos ou valorativos, prévios à consecução do projeto e, portan-to, ao debate. O que não permitiu a superação do paradigma da inte-gração e a formulação comum de um novo problema público.

O fato é que se observa, hoje, uma reedição da velha polaridade entre favela e conjunto habitacional, reposto tanto pelo mercado, no-meadamente as grandes empreiteiras, quanto pelos diferentes níveis de governo, já que o federal, pilotando os recursos do PAC, tem sub-sumido os demais. Sem debate, o que se revela é uma intervenção desatenta às dinâmicas preexistentes, cujo único objetivo parece ser a construção acelerada de moradias, o que não tem sido feito sem tratores e alguma truculência. Novamente se propõe a questão do morar descolado das condições urbanas.

É certo que habitar é um dos primeiros direitos da cesta de bens urbanos. E que a autonomia de um cidadão passa pela possibilidade de prover sozinho, sem depender de patrões, patronos, ou chefes lo-cais, um abrigo sustentável para si e sua família. Mas esse direito não pode ser contraposto ao da apropriação do espaço urbano como espaço de experiência, de aprendizado, de liberdade. Em outras pa-lavras, as famílias trabalhadoras não podem ser entocadas nos seus lugares de moradia – lugares esses muitas vezes escolhidos por an-tepassados, em obediência a lógicas conjunturais, que não servem mais ao presente. Ou seja, não podem ser prisioneiras, mesmo que dos seus próprios bens. Se isso persistir, não haverá sequer como pensar em controlar o tamanho das favelas, pois é certo que não ha-verá “fiscais” que possam inibir a procura de cidadãos por regiões mais próximas de seu trabalho, das escolas de seus filhos etc. Cida-de é movimento – e o fato é que, desse ponto de vista, a cidade do Rio de Janeiro encurtou muito, como disse, em debate recente no IAB, a jornalista Cora Ronai.

Portanto, está mais do que na hora de esticarmos a cidade, fazen-do com que ela assuma tamanho compatível com a diversidade de interesses que ela comporta. Para isso é preciso que o problema pú-blico da favela seja deslocado, que a cidade seja vincada por outra formulação – e não parece haver nada mais coerente com a ideia de uma cidade diversa, em que seus habitantes se aplicam a explorá-la, do que o tema da mobilidade.

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A mudança de um paradigma, porém, não se faz por decreto. A universidade terá nisso um papel a desempenhar, promovendo pesquisas, debates, pondo à disposição dos demais atores as infor-mações julgadas pertinentes. Porém, os grandes interessados terão que ser atraídos ao debate, sobretudo aqueles que não parecem con-vencidos da sua utilidade – os donos de empresas de transporte pú-blico, por exemplo, ou de montadoras de automóveis. Na construção de um problema público, a divergência, mesmo que violenta, não é nefasta, desde que os contendores se mantenham dentro da mesma moldura, que deverá ser a da mobilidade.

Em uma cidade realmente democrática, não importa o seu nível de renda, escolaridade, sua crença ou endereço – você deverá ter li-vre acesso aos bens e direitos especificamente urbanos. O transporte público de qualidade, contudo, é o pai de todos eles.

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O sistema de saúde e o interesse do cidadão

Waldir Cardoso

Para refletir sobre a saúde no Brasil, há que se definir o prisma a utilizar. Nesse artigo, desejo deter-me no caráter público do sistema de saúde existente e as políticas que dão consecução

às determinações constitucionais no interesse da cidadania. Pre-tendo também fazer um breve balanço do nosso Sistema Único de Saúde, criado no Congresso Constituinte, mas fruto de um amplo movimento nacional de profissionais da área, de organizações so-ciais e de cidadãos conscientes dos seus direitos, mas também dos seus deveres.

A Constituição Federal de 1988 determinou que a garantia da atenção à saúde é direito de todos e um dever do Estado brasileiro. A nossa Carta Magna estipula que saúde é resultante das políticas sociais e econômicas que agem sobre o indivíduo e a comunidade. Depende, portanto, de determinantes sociais.

A CF 88 avançou e definiu a mudança da lógica da atenção à saúde que deixou de perseguir a ausência de doença para estabele-cer a integralidade das ações como parâmetro principal do sistema de saúde. Determinou que o acesso deve ser igualitário, expressão da equidade, com seu caráter intrínseco de justiça social e discrimi-nação positiva. Garantiu a participação da comunidade na organi-zação do sistema para afirmar o caráter democrático e revolucioná-rio do sistema de saúde brasileiro.

Após 24 anos havemos de reconhecer que avançamos muito. Da quase absoluta centralização, hoje, o Sistema Único de Saúde (SUS) está estabelecido em todos os municípios. Ampliamos o acesso de milhões de brasileiros à atenção a saúde em que pese todas as deficiências ainda existentes. Mais de cem milhões de pessoas têm acesso à estratégia saúde da família. Desenvolvemos programas vitoriosos como o combate a epidemia de Aids, a políti-ca de incentivo aos medicamentos genéricos e a política de trans-plante de órgãos. Nossa cobertura de vacinação infantil é de mais de 95% num país de dimensões continentais. Conquistamos o fi-nanciamento estável embora muito longe da real necessidade do

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SUS. 3,6 bilhões de procedimentos foram realizados, pelo SUS, no ano de 2010. O resultado pode ser constatado nos indicadores de saúde como a mortalidade infantil que desabou de 69,5 por mil nascidos vivos em 1985 para 15,6 ‰ em 2011.

Apesar de todo o avanço e sucesso comemorado pelo setor, a saúde é a política mais mal avaliada pelos brasileiros. Marcou pre-sença de destaque nas recentes eleições municipais sempre do ponto de vista negativo. As emergências de todas as capitais abar-rotadas. Hospitais com macas nos corredores. Extrema dificulda-de para o cidadão comum conseguir uma consulta especializada ou realizar uma cirurgia eletiva. Centenas de municípios no país não contam com médicos residentes ou não tem um médico se-quer. O que está acontecendo?

Penso que ainda vivemos as dores do parto. Implantar e imple-mentar um sistema universal de saúde em um país de quase 200 milhões de habitantes é ousadia jamais tentada no mundo. Reali-zar este desafio numa nação de Terceiro Mundo requer que os agentes políticos e a cidadania estabeleçam que saúde é política prioritária. Prioridade significa recursos suficientes, financiamento adequado. Esta prioridade não foi estabelecida. Desta forma, te-mos um sistema de saúde universal absolutamente subfinanciado.

O Brasil gastou com saúde, em 2009, 270 bilhões de reais, cer-ca de U$ 700 per capita, 8,5% do Produto Interno Bruto (dados de Gilson Carvalho). Em 2011, segundo a Organização Mundial de Saúde, o gasto per capita em saúde no Brasil subiu para U$ 943 e 9% do PIB. Comparando com outros países que tem sistemas de saúde universais: Alemanha U$ 4.129 per capita, 11,4% do PIB; França U$ 3.931 per capita, 11,4% do PIB; Portugal, U$ 2.703 per capita e 11,0% do PIB; Cuba, U$ 480 per capita, 11,30% do PIB.

Outra comparação necessária são os gastos públicos e priva-dos também com países com sistemas de saúde universais. No Brasil, do total de gastos com saúde, 54% são gastos privados e apenas 46% públicos. Alemanha, 22,2% privado e 77,80% públi-co; França, 21,40% privado e 78,60% público; Portugal, 26,30% privado e 78,60% público; Cuba, 7,30% privado e 92,70% público (ver tabela).

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Como exposto, os gastos com saúde no Brasil são majoritaria-mente privados. Estamos na contramão dos países com sistemas de saúde semelhantes e equiparado àqueles onde a saúde não é um di-reito, como os EUA (ver tabela). A iniquidade fica patente se conside-rarmos que o setor público investe apenas 4% do PIB para atender 145.000.000 de brasileiros que não tem planos de saúde. E ainda oferta serviços e procedimentos não cobertos pelos planos de saúde aos seus 45 milhões de beneficiários.

Apesar dos números negativos devemos reconhecer que os gastos públicos com saúde têm crescido, sistematicamente, nos últimos anos. A despesa federal com saúde aumentou 53% no período de 2007 a 2011. Terá incremento indireto em 2012 por conta da regula-mentação da Emenda Constitucional 29. A regulamentação obrigará que sejam retiradas da conta da saúde várias despesas que eram indevidamente incluídas por gestores que interpretavam a sua ma-neira o que são gastos com saúde. Apesar disso, o percentual de destinação de recursos da união no bolo do investimento público em saúde tem decrescido ano a ano.

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Estou a defender que o Brasil precisa de mais recursos para a saúde, portanto, tenho que propor de onde virão. Não me ombreio àqueles que defendem a aprovação de uma contribuição específica para a saúde. Os assalariados, camadas médias e, principalmente, os pobres já arcam com um peso de impostos escorchante. Também não acredito que tenhamos força política para votar qualquer lei que obrigue os grandes empresários e detentores de grandes fortunas pagarem mais impostos.

O Orçamento Geral da União executado até 31/12/2011 foi de R$ 1,571 trilhão. Analisando este orçamento (figura 1) constatamos que 45,05% de todos os recursos do país no ano passado foram gas-tos para pagar a dívida pública. A Auditoria Cidadã da Dívida (http://www.auditoriacidada.org.br/) informa que em 2012, até 31/10, a dí-vida já consumiu R$ 709 bilhões de reais, 48% do gasto federal. Para dobrar o financiamento da saúde basta destinar 10% do valor pago aos banqueiros, anualmente. Para tanto, o país tem que continuar com a escalada descendente da taxa de juros e, mais importante, realizar auditoria desta dívida, o que, aliás, está previsto na Consti-tuição de 1988 e nunca foi realizada.

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Entretanto, não basta aumentar os recursos para a saúde. Temos que discutir como gastar. Isto nos remete de volta aos princípios do Sistema Único de Saúde. Todo o arcabouço institucional do SUS aponta para a opção por um modelo de atenção centrado na atenção primária. Com atenção primária de qualidade podemos resolver, nes-te primeiro nível, cerca de 80% dos agravos à saúde. Como acontece em Cuba e na Inglaterra. Um sistema de saúde assim organizado é muitíssimo mais barato que aquele baseado na medicina especializa-da e com lócus privilegiado no hospital. No Brasil, teimamos em manter o modelo de atenção à saúde dos Estados Unidos da América. Os esforços para a implementação da Estratégia Saúde da Família esbarram na baixa qualidade e falta de articulação com demais ní-veis de atenção. Sem alternativa, a população continua a acorrer às emergências e abarrotar os hospitais.

A expressão financeira desta opção, que contraria os ditames constitucionais, são os gastos com a atenção primária e a média e alta complexidade. Gastamos mais com média e alta complexidade – para atender número menor de pessoas – que com atenção primá-ria. O gráfico 1, elaborado por Gilson Carvalho, compara a evolução destes gastos, per capita, no período de 1995 (1) a 2012 (18).

Outro gargalo que temos que abordar é a gestão. A estratégia de descentralização, ora em curso, definida no art. 198, inciso I, da Constituição Federal impôs o desafio de prover o Sistema Único de Saúde com um exército de gestores nos 5.565 municípios brasileiros. É inegável que vivenciamos uma crise de gestão. Há que envidar es-

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forços e dispender recursos para qualificar os secretários municipais de saúde e suas equipes de trabalho. Desafio muito maior é garantir que os gestores do SUS tenham autonomia administrativa e financei-ra. E vedar o ralo da corrupção e desvio de recursos que, segundo especialistas em economia da saúde, drenam cerca de 30% do di-nheiro do SUS. A cultura patrimonialista da política brasileira é obs-táculo que só o pleno exercício da cidadania pode enfrentar.

Por fim, retornando às diretrizes administrativas do SUS, recorro à Lei 8.142 de dezembro de 1990 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS para defender elemento que considero fundamental para o desafio de termos saúde de qualidade no Brasil. Esta lei regulamenta o art. 198, inciso III, da CF 88, “participação da comunidade”. A interferência da cidadania na gestão do SUS não é medida populista ou elemento de retórica. Não há como fazer saúde na concepção que norteia o SUS sem a estreita e intensa participação do cidadão. Executar a atenção à saúde com integralidade, desenvol-ver iniciativas e ações de equidade só é possível auscultando a comu-nidade adstrita. Para além do pleno funcionamento dos Conselhos e das Conferências de Saúde é no quotidiano das unidades de saúde que poderemos buscar e construir mais eficiência e qualidade para o Sistema Único de Saúde. Dividindo com a sociedade esta responsa-bilidade e dando um choque de gestão na saúde.

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Os deserdados da terra: a fronteira como tragédia

Lúcio Flávio Pinto

Durante quatro meses, em 1976, fiz, sucessivamente, as duas mais longas viagens como repórter pela Amazônia. Um mês e meio descendo o rio Amazonas a partir de Vitória, o porto

de Altamira no rio Xingu, no Pará, até Manacapuru, no Estado do Amazonas, depois de Manaus.

Fui ver a segunda maior cheia no século XX do maior rio do mun-do. Circulei pelos mais antigos nucleamentos da colonização euro-peia na região, que ainda exibem a mais típica face do que seria a civilização fluvial amazônica.

Durante os dois meses seguintes percorri as novas áreas de ocu-pação humana, induzida pelo bordão geopolítico do governo militar, de que era preciso integrar a Amazônia para não entregá-la à amea-çadora cobiça internacional.

O “vazio demográfico” dessas paragens longínquas precisava ser preenchido por cidadãos brasileiros. A “terra sem homens” da defini-ção oficial colonialista, que datou da construção da Transamazônica, a partir de 1970, o ano zero da “nova Amazônia”, devia ter novo des-tino: abrigar os “homens sem terra” de outras paragens nacionais; em especial, do flagelado Nordeste (assolado nesse ano por mais uma seca centenária). Só assim o sinete da soberania do Brasil seria gra-vado – com tintas fortes – nas brenhas da fronteira selvagem.

Trilhei as frentes pioneiras em Roraima, Acre e Rondônia. Pude testemunhar a eliminação das últimas sobrevivências do mundo an-terior, subordinado à cultura do extrativismo vegetal, com ênfase na borracha. Derrubada a mata, surgiam as grandes fazendas e os pro-jetos de colonização do Incra. Na época o Instituto Nacional de Colo-nização e Reforma Agrária era o maior proprietário rural do mundo, com quase dois terços de todas as terras devolutas da Amazônia sob a sua jurisdição.

Um dos momentos mais inesquecíveis dessa jornada eu o vivi num fim de tarde em Xapuri, a terra do futuro líder Chico Mendes. Depois de um dia de trabalheira, sentei no cercado do curral de uma

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fazenda e ali fiquei a conversar, por horas, com um maranhense que chegara a esse lugar remoto depois de sucessivas migrações, desde a sua terra até o extremo oeste, por milhares de quilômetros.

Ele estava no último PIC (Projeto Integrado de Colonização) do roteiro. Se avançasse mais, passaria para o lado da Bolívia, como muitos brasileiros já haviam feito e fariam ainda mais nos anos se-guintes. Saíra da baixada maranhense apenas com a esperança de que, na vastidão sem porteiras da Amazônia, finalmente encontraria um pedaço de terra para chamar de seu.

Mal se instalava, porém, e alguma causa de expulsão também se estabelecia. Na maioria das vezes, na forma de um jagunço que che-gava para lhe dizer que aquelas terras já tinham dono. Legalista e submisso, deixava o lote e seguia em frente. Assim aconteceu uma, duas, três vezes.

Depois se cansou de ser enxotado só com cara feita. Passou a exigir a apresentação do papel que comprovasse a propriedade. O jagunço lhe mostrava como resposta um “três oitão” engatilhado. E ele, mais uma vez, se ia com mulher, filhos e o que podia carregar. Até que, passando de Rondônia para o Acre, conseguiu ser aceito no PIC do Incra.

A “colonização oficial dirigida”, que fizera ferver a chegada de mi-lhares de colonos às margens da Transamazônica e da BR-364 (Cuia-bá-Porto Velho-Rio Branco), já estava no seu declínio. Até 1973 o governo federal, mesmo que de forma incompetente, esteve compro-metido em transformar os hoje designados “sem-terra” em uma clas-se média rural na distante fronteira.

Os colonos eram recrutados em seus pontos de origem e trans-portados (às vezes de Boeing) até os locais de assentamento, onde recebiam um lote demarcado de 100 hectares, com um hectare já desmatado, uma estrada para escoar a produção, pontos de apoio às proximidades, um salário mínimo de subsídio por certo tempo e cré-dito de fomento.

Esse modelo de desenvolvimento podia chegar aos seus objetivos, com tempo mais demorado e alto custo inicial. Mas o que o governo mais queria da Amazônia era que gerasse dólar. Agricultura familiar coloca comida na mesa do mercado interno, mas não é exportadora. Com uma dívida externa fora de controle e sem poupança própria, o Brasil Grande da geopolítica dependia da nova fronteira.

Ao invés de colonos em pequenos lotes, a prioridade passou a ser a grande propriedade comercial, hoje mais conhecida por agronegó-

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cio. A fronteira “fechou por dentro”, diagnosticaram os pesquisado-res. O Éden fundiário passaria a exibir índices de concentração da propriedade da terra maiores do que a média nacional. O que devia ser solução se tornou um novo problema – e enorme, como se vê pe-los tantos conflitos com morte na disputa por terra.

Só quando o céu já estava escuro, José de Ribamar de Souza con-cluiu o relato dos seus sofrimentos, em anos de migração compulsó-ria Amazônia adentro. O Incra não cumprira o prometido. Sua roça começava a dar prejuízo. Ele pressentia que o fazendeiro vizinho iria logo abordá-lo. Não da forma violenta das expulsões anteriores. Des-ta vez provavelmente seria com um argumento mais suave e eficaz: uma oferta em dinheiro. Depois de aceitá-la, para onde o colono ma-ranhense iria?

A pretexto de fazer reforma agrária, o Incra fez colonização. Ou seja: transferiu os problemas agrários e fundiários do Brasil antigo para o Brasil que se incorporava à federação nacional, a Amazônia. Prometendo o Éden para meeiros, arrendatários, parceiros e outros sem-terra, levou-os a diversos dramas, que sempre resultaram, para a floresta, em derrubadas.

As do João da Silva sempre foram menos do que as das S/A, mas não deixaram de ser derrubadas desastradas. Elas sangravam tanto a vítima, a mata, quanto o suposto beneficiário, o colono.

Finalmente, depois de quatro décadas de equívocos, alguém man-dou o Incra parar. Foi esse o pedido do Ministério Público Federal, em ação civil pública acolhida provisoriamente pelo juiz Arthur Pi-nheiro Chaves, da 9ª vara federal de Belém no dia 5.

Na ação civil pública o Ministério Público Federal diz que os pro-jetos de assentamento instalados pelo Incra no território paraense têm promovido desmates de grande vulto, muitos dos quais no inte-rior de unidades de conservação, provocando “agressões de grande monta ao bioma da Amazônia paraense”.

Alega que os danos que vêm sendo perpetrados no interior dos assentamentos nas áreas destinadas à desapropriação para reforma agrária “têm experimentado, proporcionalmente, um crescimento contínuo nos últimos anos, havendo, portanto, fundado receio de que o Incra, antes do julgamento da lide, cause, por intermédio da criação, instalação e funcionamento dos projetos de assentamento, novas lesões graves e de difícil reparação ao meio ambiente, ou, ain-da, agravamento daquelas já iniciadas, decorrendo daí o periculum in mora [perigo iminente], aliado à irreversibilidade de que os danos

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ambientais ordinariamente se revestem, bem como do fato de que a reparação a posteriori não tem o condão de restabelecer o estado de origem do meio ambiente agredido”.

O Incra se defendeu. Apontou a crescente redução, percentual e quantitativa, dos desmatamentos nos seus projetos de assentamento. Garantiu que a implementação de planos de recuperação ambiental é feita desde 2008 e que sua gestão ambiental segue um novo plano. Todos os assentamentos são agora criados com a licença ambiental prévia e que a apresentação do Cadastro Ambiental Rural é exigida, embora não obrigatória por lei. E que outras normas serão modifica-das e “flexibilidades” com o novo Código Florestal. Mas o juiz Arthur Pinheiro Chaves se mostrou mais impressionado com outros dados. Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, com sede em São Paulo), 29,4% do desmatamento anual na Amazônia Legal ocorrem no interior dos assentamentos. O que significa que dos 742.779 quilômetros quadrados de área desmatada na região, 133.644 quilômetros quadrados se situam dentro dos 2.163 assentamentos.

Somente 14 dos assentamentos criados no Pará possuem área desmatada inferior a 80%. É considerável o número de assentamen-tos em que o grau de devastação supera os 50%, “em afronta” ao novo Código Florestal, “o qual prevê que todo imóvel rural deve man-ter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, com um percentual mínimo de 80%, em se tratando de imóvel de floresta na Amazônia Legal”. Dados fornecidos pelo Ibama revelam que, em alguns casos, a área degradada nos Projetos de Assenta-mento do Incra, o desmatamento chega a atingir 98% da área.

O Imazon (Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia) concluiu que de 1997 a 2010, de 1.440 assentamentos analisados, abrangendo uma área de 174.307 quilômetros quadrados, cerca de 30% da área de assentamentos, correspondentes a 53.150 quilôme-tros quadrados, foram desmatados. Destes 30%, 17% da área des-matada, correspondente a 30.472 quilômetros quadrados, teriam ocorrido em momento anterior ao assentamento, já os 13% restantes aconteceram após sua criação.

Em outro estudo, de 2006, o Imazon mostrou que aproximada-mente 106 mil quilômetros quadrados, correspondentes a 49% da área dos assentamentos mapeados, foram desmatados até 2004, o que, em relação à área total do desmatamento na Amazônia, aproxi-mava-se dos 15%.

Um exemplo da indução ao desmatamento foi constatado num projeto em Novo Repartimento, na Vila Cacimbão, no âmbito do Pro-

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grama Municípios Verdes. Um produtor declarou que “se não der-rubar o Incra faz a retomada da posse” e que ele mesmo foi “intima-do” para “fazer algo na terra senão seria feita a retomada da terra por não produzir”.

O juiz considerou também que mais de dez ações, tramitam pela 9ª vara federal propostas pela própria autarquia fundiária, visando a reintegração de posse em lotes de assentamento denominado “Abril Vermelho”, localizado no município de Santa Bárbara, próxima de Belém, “em que o Incra denota sério descontrole em relação aos as-sentados e aponta como um dos motivos ensejadores dos pedidos de reintegração, expressamente, a perpetração de infrações ambientais pelos invasores não cadastrados nos assentamentos”. O que não acontece em locais mais distantes?

Por todos os motivos que analisou, o juiz Arthur Chaves decidiu determinar ao Incra que adotasse seis providências:

• promover a cessação do desmatamento em todos os assenta-mentos, sob pena de multa, apresentando mensalmente as imagens de satélite ao juízo, que comprovem a obrigação de fazer;

• apresentar, no prazo de 90 dias, Plano de Recuperação de to-das as áreas degradadas, apontadas na ação do MPF;

• proibir a criação de novos assentamentos no Pará, sem o pré-vio Licenciamento Ambiental e Cadastro Ambiental Rural;

• fazer a averbação da reserva legal em todos os assentamentos;

• apresentar em juízo, no prazo de 90 dias, informação da exata localização de todos os assentamentos no Estado;

• apresentar, no prazo de 30 dias, plano de trabalho para a con-clusão dos cadastros ambientais rurais e licenciamentos am-bientais de todos os assentamentos no Pará.

O Incra anunciou que recorrerá da decisão. Para o bem de todos, seria melhor que a cumprisse. Passaria a parecer que a reforma agrá-ria é coisa séria, beneficiando o homem e respeitando a natureza.

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VI. Questões do Estado e do Cidadão

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Autor

Maurin Almeida FalcãoDoutor em Direito Tributário Internacional, European Label, pela Universidade de Paris XI-Sud. Professor do Mestrado em Direito da Univerisdade Catolica de Brasilia.

Gil Castello BrancoEconomista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas ([email protected]).

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A tributação progressiva e a justiça fiscal no discurso das elites

Maurin Almeida Falcão

Os cânones da justiça fiscal foram erigidos em torno da pro-gressividade sobre a renda, o qual se constituiu no suporte da mudança social registrada no transcurso do século XIX

para o século XX. Contudo, a evolução do conceito de justiça fiscal despertou reações junto às classes dominantes que, receosas de uma inversão de poder que levasse ao aniquilamento de suas riquezas, passaram a contestar os excessos da tributação progressiva. Com efeito, as elites como parte do estrato político dominante, demons-traram de pronto a sua rejeição ao discurso social que se impunha. A paisagem política do período que se seguiu à Revolução Industrial assistiria ao surgimento de duas teorias opostas e que refletiam os conflitos então vigentes. A teoria da mudança social e a teoria das elites explicavam, a sua maneira, os novos valores sociopolíticos que conduziriam a sociedade no século que se aproximava. Posterior-mente, a renovação do contrato social, nos estertores do segundo grande conflito mundial, não impediria a reafirmação do discurso das elites contra o avanço da progressividade. O respaldo teórico da Sociedade do Mont-Pélérin lhes permitiu comemorar, no ocaso dos Trinta Gloriosos, o limiar de uma nova era que seria marcada pelo domínio absoluto do ideário liberal e pelo amplo controle do sistema legal. De fato, o final do século XX seria marcado pela agonia do Estado-providência e pela mitigação do conceito de justiça fiscal em decorrência da mudança do perfil dos sistemas tributários.

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A estratégia política das elites

Toda sociedade dispõe de um grupo minoritário organizado que controla uma maioria organizada. Esse pressuposto se encontra na base da teoria das elites a qual teve como precursores Gaetano Mos-ca e Vilfredo Pareto e Robert Michels, no transcurso do século XIX para o século XX. Influenciados pelas novas estruturas econômicas e sociais, Mosca, Pareto e Michels evidenciaram a diferença das clas-ses ao evidenciarem em suas teorias, as contradições entre a massa de governados e a minoria de governantes, dando início a um impor-tante capitulo da sociologia política. O surgimento de novas classes sociais na esteira da Revolução Industrial trouxe em seu bojo confli-tos de interesses com vistas à obtenção de mais direitos e posições políticas privilegiadas. Esse foi o terreno propício ao desenvolvimento da teoria das elites.

Mosca (1858-1941), ao indagar os tipos de relações existentes entre as elites e as massas, estabeleceu uma questão central para fundamentar a sua teoria sobre as elites. A eterna distinção entre governantes e governados seria o fio condutor do seu método para estudar os fenômenos políticos. Por sua vez, Pareto (1848-1923) es-timou que em toda sociedade, em todas as épocas, pode-se observar uma estratificação econômica e social, havendo nesse caso, um es-trato superior (elite) e um estrato inferior. Michels (1876-1936), ao cunhar a sua lei de ferro da oligarquia e sob a influência da escola italiana das elites, retoma a tese de Mosca sobre a centralidade polí-tica das minorias dirigentes aplicando-a aos partidos políticos.

Consolidados os postulados de Mosca, Pareto e Michels, a teoria das elites conheceu um novo impulso ao ser recepcionada por inte-lectuais norte-americanos ainda na primeira metade do século XX. A aceitação da escola italiana na América daria início à segunda ge-ração da teoria das elites. Não obstante a cultura democrática e as ideias igualitárias em voga naquele país a teoria das elites conheceu um notável impulso em face, sobretudo, das clivagens colocadas por Mills e Dahl. Charles Wright Mills (1916-1962) em sua obra antoló-gica – A elite do poder – publicada em 1956, representaria um marco teórico importante para a compreensão do fenômeno. Mills observou que a elite é unida por interesses comuns e age sempre em segredo. Além disso, é quem toma ou comanda as grandes decisões de inte-resse geral. Entretanto, a tese da elite do poder assumida por Mills sofreria uma contestação vigorosa por parte da corrente pluralista que tinha como um dos expoentes, Robert Dahl (1915) que, ao publi-car Who Governs?, em 1961, refutou as teses de Mills, dando inicio a um polêmico embate intelectual. Dahl discorreu sobre o poder deci-

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sório compartilhado das elites de New Haven com o intuito de de-monstrar as incoerências de Mills.

Retornando aos fundamentos da teoria das elites, observa-se que o grupo minoritário que integra a paisagem social se constitui no centro de dominação sobre as questões econômicas, políticas e so-ciais comuns a todo Estado. O prestígio e o privilégio desse grupo decorrem de suas qualidades naturais ou adquiridas, fundamenta-das na meritocracia, na cultura e na riqueza e em outras vantagens valorizadas arbitrariamente e comuns àqueles que pertencem a de-terminado meio social. Essa definição tem como sucedâneo o darwi-nismo social onde a lei de seleção e de sobrevivência das espécies fortes indica que a sociedade deve ser governada por grupos compos-tos por minorias capazes de conduzir todos em direção a uma socie-dade democrática, justa e voltada para o desenvolvimento.

Na percepção das elites, a massa egoísta estaria sempre em bus-ca de ajuda e não estaria apta para conduzir o Estado. Nesse viés de entendimento, a ascensão das massas ou da maioria desorganizada traria para as elites uma sensação de decadência da sociedade oci-dental. O advento da sociedade solidária, acompanhada pela instau-ração do movimento sindical com expressivo poder político, culmi-nou no revigoramento da democracia e no incremento do bem-estar coletivo. Como resultado, passou a ocorrer uma maior participação das massas no processo político. Paralelamente a essa mudança so-cial, o sufrágio universal e a adoção do imposto progressivo sobre a renda comporiam de vez a nova paisagem social pós-Revolução In-dustrial. A emergência do Estado intervencionista constituiu-se na pedra angular da mudança social. Os efeitos econômicos, políticos e sociais transcenderam dois séculos, desencadeando um debate con-troverso por colocar em lados opostos liberais e sociais-democratas. Às fileiras liberais coube demonstrar as contradições das falsas pro-messas de liberdade do socialismo. Por seu turno, os sociais-demo-cratas recorreram ao market failure para justificar a intervenção es-tatal e assim estabelecer o equilíbrio social.

A classe organizada é minoritária e por isso é organizada. O seu maior grau de racionalidade, que lhe permite estabelecer o domínio da maioria, decorre justamente dessa condição. Para uma melhor compreensão desta démarche, é preciso observar que o surgimento de novas classes, aliado à mobilidade social, ocorreu paralelamente ao surgimento da teoria das elites. Mosca, Pareto e Michels definiram os contornos da estratificação social influenciados pelos fatos poste-riores à Revolução Industrial, a exemplo do que ocorreu com Durkheim ao firmar a sua teoria do fato social.

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Por sua vez, a massa de governados é definida como o oposto da classe política: é governada e por isso, dominada e não tem a posse dos meios de governo e porque é uma maioria desorganizada. Assim, a dominação de uma minoria sobre a maioria é um fato consubstan-cial à vida dos homens em sociedade e se constitui em um postulado importante da teoria das elites.

A contestação da justiça fiscal pelas elites

Os cânones da justiça fiscal, moldados na sua concepção moder-na, a partir da mudança social do século XIX, tem sustentação polí-tica no princípio do consentimento e da capacidade contributiva, próprios do Estado democrático. Ambos se encontram devidamente consignados na Declaração de 1789. O brocardo segundo o qual não haverá tributação sem representação refere-se ao consentimento pelo qual o povo, por meio do voto, autoriza os seus representantes a estabelecerem um sistema impositivo. Nesse caso, permitido pelas estruturas econômicas e sociais e nos contornos da justiça fiscal. Contudo, essa delegação de soberania aos representantes do povo faz com que deixem de ser livres, conforme expôs Michels em sua apreciação sobre as elites. A partir dessa afirmativa pode-se depre-ender então que o sistema tributário não decorreria da vontade do povo. O processo legislativo, marcado pelo embate de forças entre diferentes grupos de pressão, resulta em um sistema legal alheio à justiça fiscal. Em realidade, o perfil dos sistemas tributários contem-porâneos denota a primazia absoluta da tributação indireta, de na-tureza regressiva e injusta em detrimento da tributação progressiva. Merece ainda uma citação o sistema agressivo de privilégios fiscais.

O princípio da capacidade dispõe sobre o dever de todos em con-tribuir para a manutenção da força pública segundo a faculdade eco-nômica de cada um. Esse princípio estabelece uma relação vertical capaz de demonstrar as formas de obtenção do equilíbrio social, por intermédio da redistribuição. Assim, do ponto de vista teórico, o equilíbrio social seria alcançado pelo encontro, em um ponto médio da escala, dos indivíduos distribuídos entre o topo e a base. Que ins-trumento fiscal permitiria o manejo dessas variáveis com o intuito de se alcançar uma grande justiça fiscal por meio da redistribuição? Em consequência, surge, como resposta à necessidade de uma maior justiça social, na então recém-inaugurada sociedade solidária, a im-plementação do imposto progressivo sobre a renda como forma de redistribuição entre categorias sociais.

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Estabelecidos os pilares da justiça fiscal, o equilíbrio social esta-ria estabelecido. Contudo, o tempo e as crises econômicas e políticas se encarregariam de desestabilizar os valores e as possíveis virtudes do socialismo. O contraponto do discurso social veio da escola aus-tríaca, onde Mises e Hayek se encarregaram de apontar os excessos intervencionistas do Estado. Por isso, influenciaram, ao longo do sé-culo XX, a elaboração de um discurso que pregava a volta ao Estado mínimo. Tal empreitada se coadunava em muito com o pensamento das elites. Posteriormente, Hayek e seus discípulos, por mais de três décadas, até o fim dos Trinta Gloriosos, cristalizaram na Société du Mont-Pelérin as suas críticas aos excessos intervencionistas. A partir da publicação em 1944 da obra O caminho da servidão, Hayek expôs as incoerências das promessas de liberdade do socialismo. Por coin-cidência, a obra foi publicada logo depois da difusão do modelo uni-versalista beveridigiano, os quais ampliariam ainda mais a ação in-tervencionista do Estado. Apesar de continuar a pregar no deserto e ter sido relegado a um segundo plano por força do keynesianismo, Hayek assistiu ao triunfo das suas ideias logo no início da crise in-ternacional dos anos setenta do século passado. Nesse momento, a volta ao liberalismo se materializava enquanto o Estado-providência agonizava. É importante notar que Hayek trouxe uma contribuição de envergadura à evolução do pensamento econômico. Suas ideias, calcadas em vigoroso aporte teórico, não deixariam de lado a questão do imposto progressivo sobre a renda.

Sem dificuldades, é possível estabelecer uma conexão entre a vi-são do Estado mínimo de Hayek e os anseios das elites por um retor-no ao sistema proporcional, contrário à noção de justiça fiscal. Hayek considerava a tributação como uma espoliação ilegítima das rendas de um grupo que contribuiria de forma potencial ao crescimento eco-nômico e até mesmo ao progresso da civilização. Em sua argumenta-ção radical contra os excessos da progressividade, considerava-a um belo exemplo de violação da regra do direito, chegando até mesmo a evocar um retorno ao sistema proporcional, contrário à noção de jus-tiça fiscal. Entretanto, chegou a admitir um grau mínimo de progres-sividade no sentido de compensar o peso considerável dos impostos indiretos sobre as rendas baixas. O economista austríaco pregava que o nível de tributação deveria estar atrelado ao consumo indivi-dual de bens coletivos sem atentar, contudo, para a inexistência de critérios científicos para medir a utilidade retirada de um determina-do bem coletivo. Ao se referir à justiça social, Hayek observou que esta terminaria por ser reconhecida como um fantasma que leva os homens a abandonar seus inúmeros valores que, no passado, inspi-raram o desenvolvimento da sociedade. Breve, pode-se afirmar que o

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criador da Société du Mont-Pélérin forneceu o combustível neces-sário à manutenção do discurso de rejeição das elites à tributação progressiva sobre a renda.

Em realidade, a implantação do imposto progressivo, que seria a base de toda a justiça fiscal, despertou reações contrarias no seio das elites. Sendo assim é que o imposto passou a ser considerado como discriminatório por visar unicamente os ricos e seria, por isso, o cavalo de Troia que conduziria mecanicamente à destruição da so-ciedade liberal. O vírus da redistribuição iria de forma inevitável se desenvolver e minar os fundamentos de uma sociedade garantidora da inviolabilidade da propriedade e da igualdade de todos diante da lei. Há, entretanto, uma certa contradição no discurso das elites acerca da matéria. Em sentido inverso do que foi apontado acima, Girardin percebeu o imposto como um prêmio de seguro pago pelos detentores da riqueza para se assegurarem contra todos os riscos que poderiam incomodá-los no seu direito à propriedade ou no gozo de suas posses. Sormann, no mesmo tom, enfatizou que o imposto sobre a renda seria o preço pago pelas elites para serem toleradas pelos povos igualitários.

O temor persistente das elites de que o excesso de progressivi-dade, aliado ao sufrágio universal, pudesse permitir um sistema ca-paz de favorecer a mobilidade e o acesso ao poder das classes desfa-vorecidas, e levasse à apropriação de suas riquezas. Esse discurso foi reafirmado pelo fato de que as elites viam na ascensão das massas o aporte de um certo grau de irracionalidade para a política. A partir desse pressuposto, foi possível concluir que essa irracionalidade se deu, em parte, pela instauração da progressividade e da redistribui-ção, o que permitiu a mobilidade social ocorrida no final do século XIX. Dentro desse novo cenário social, vislumbrou-se a ascensão so-cial e uma maior circulação dentro das próprias elites. A resistência à intervenção do Estado se explica pelo receio das elites em se verem despojadas de seu poder político e de seus valores morais. Sem dúvi-da, essa perspectiva influenciou a adoção de posições ainda mais conservadoras por parte da minoria organizada.

O inconformismo latente das elites em face da tributação progres-siva da renda terminou por encontrar no processo de globalização outro aliado importante. Esse movimento teve um impacto não des-prezível nos sistemas tributários pois exigiu uma releitura do concei-to tradicional de justiça fiscal. Em um cenário de globalização finan-ceira, a mobilidade da riqueza foi responsável pelo nomadismo fiscal e pela concorrência fiscal desleal que se instalou na ordem tributária internacional. O novo perfil do sistema tributário é resultante do des-

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locamento do foco da tributação cujas bases clássicas – renda, patri-mônio e consumo – passaram por reformulações com vistas a aten-der os movimentos de inserção internacional.

Assim é que a tributação progressiva sobre a renda, símbolo da justiça fiscal, cedeu terreno para o que foi considerada a maior ino-vação tributária da metade do século passado: a tributação sobre o consumo. Antes, ícone da justiça fiscal e considerada a principal fonte de receitas das economias desenvolvidas, a tributação direta passou a sofrer a modulação dos agentes econômicos e das elites. Restou, portanto, como o grande manancial de receitas tributárias, a tributação indireta, considerada injusta e regressiva até mesmo por Hayek. A mudança do perfil dos sistemas tributários, onde a prima-zia da tributação indireta, considerada como nociva à justiça fiscal, ganhou terreno em detrimento da tributação sobre a renda e o patri-mônio, consideradas mais justas do ponto de vista da equidade. Sen-do esse fato notório e com consenso firmado, a discussão em torno do tributo ganhou contornos voltados mais expressivamente ao seu impacto econômico, tendo sido a questão da justiça fiscal negligen-ciada em presença de fatores globalizantes e políticos. Nessa hipóte-se, a presença de uma elite transnacional coloca por terra a accoun-tability do Estado em relação à justiça fiscal.

Os privilégios fiscais decorrentes do processo de globalização e de concorrência fiscal entre sistemas tributários permitiram que se ope-rasse uma inversão no processo redistribuidor de renda. O ônus tri-butário passou a ser suportado pelas classes menos favorecidas. Essa perspectiva remete à regressividade, fator de injustiça fiscal. que macula os cânones da justiça fiscal. Em face desse abandono da justiça fiscal, as elites têm respondido com o discurso do imposto negativo ou de outras formas de redistribuição. À guisa de conclu-são, pode-se afirmar que há muito a justiça fiscal não integra a agen-da política. Em consequência, o sistema tributário tornou-se um es-paço de conflitos políticos onde forças antagônicas passaram a disputar privilégios fiscais, buscando cada uma transferir para a ou-tra, o ônus do financiamento da ação intervencionista do Estado.

Referências

BUSINO, Giovanni. Elites et élitisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1992.

DOSTALER, Gilles. Le libéralisme de Hayek. Paris: La Découverte, 2001.

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FALCÃO, Maurin Almeida. A construção doutrinaria e ideologia do tributo: do pensamento liberal e social-democrata à pos-modernidade. Marilia: Unimar, 2009.

GENYEIS, William. Sociologie politique des élites. Paris: Armando Colin, 2011.

PERISSINOTTO, Renato. As elites políticas – questões de teoria e método. Curitiba: IBPEX, 2009.

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A transparência é para valer?

Gil Castello Branco

Desde a Grécia Antiga, os administradores são obrigados a prestar contas. À época, a comunidade reunia-se na Ágora, a assembleia do povo, para examinar a contabilidade dos

arcontes, embaixadores, generais e de todos aqueles que geriam verba proveniente dos impostos arrecadados. No século XXI, a Ágo-ra é a web.

Nesse sentido, duas leis relativamente recentes merecem desta-que. A primeira, a Lei Complementar no 131/2009, obriga a União, estados e municípios a publicarem suas contas na internet. Em fun-ção dos prazos aprovados no Congresso Nacional, a aplicação da Lei é gradativa. Em 2010, as cidades com mais de 100 mil habitantes foram obrigadas a disponibilizar dados em sítios na internet. Em 2011, as prefeituras com mais de 50 mil habitantes tiveram que fazê--lo. Em maio de 2013, todas as 5.564 cidades do país estarão abran-gidas pela lei da transparência. Trata-se, a meu ver, de legislação tão importante quanto a iniciativa popular do Ficha Limpa. Enquanto esta evita que os corruptos sejam eleitos, aquela amplia o controle social. As duas regras contribuem, portanto, para afastar maus polí-ticos e gestores da vida pública.

A maior novidade legal, no entanto, é a chamada Lei de Acesso à Informação (LAI). Na teoria, basta um pedido de qualquer interes-sado para que os órgãos públicos informem, no máximo em trinta dias, tudo o que não estiver relacionado à segurança do Estado, ao segredo de Justiça ou à privacidade do cidadão. O que não puder ser divulgado deverá ser taxado de reservado, secreto ou ultrasecreto. As solicitações podem ser feitas pela internet, sem que haja necessidade de deslocamento a qualquer órgão público. Tudo muito simples, tal como acontece há tempos em mais de noventa países. A própria Con-troladoria-Geral da União (CGU) divulgou cartilha explicativa sobre a nova legislação.

No papel, tanto a Lei Complementar no 131 quanto a LAI são ins-trumentos quase perfeitos. Na última semana de setembro, inclusi-ve, a Lei de Acesso à Informação brasileira ficou na 14ª posição entre

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93 países avaliados pelas ONGs Centre for Law and Democracy, do Canadá, e Access Info Europe, com sede na Espanha. O Brasil alcan-çou 110 pontos de um máximo de 150 no estudo divulgado no dia 28 de setembro, data em que é comemorado o Dia Internacional do Di-reito de Saber.

A pontuação deixa o país à frente, por exemplo, do Chile e Nova Zelândia (ambos com 93 pontos), dos EUA (89 pontos) e da legisla-ção da Suécia, a mais antiga do mundo, datada de 1866 (95 pon-tos). A lei da Sérvia ocupa o primeiro lugar com 135 pontos. Índia e Eslovênia aparecem em segundo lugar com 130 pontos cada e a Libéria em terceiro com 126 pontos. O grau de implementação das leis não é avaliado.

Vale lembrar que nos primeiros seis meses de implementação, e de acordo com dados da CGU, cerca de 47 mil pedidos de informação foram feitos a órgãos federais. Desse total, aproximadamente 44.200 já teriam sido respondidos, o que representa início surpreendente – tanto do ponto de vista da participação da sociedade civil quanto do esforço das autoridades.

Entretanto, é oportuno destacar que a estatística da CGU refere--se exclusivamente ao Poder Executivo Federal, não englobando o Legislativo, o Judiciário e as instâncias estaduais e municipais. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o jornal Zero Hora contabilizou re-sultado menos animador. Dos 104 pedidos feitos pelo veículo de co-municação desde o dia 16 de maio, quando a LAI entrou em vigor, apenas 44% foram respondidos de forma completa. As dificuldades se repetem em todas as esferas de governo, mas um caso verificado na Assembleia Legislativa mostra nitidamente como a lei ainda não é plenamente respeitada.

Nos últimos três meses, o Zero Hora vem tentando, sem sucesso, obter junto à Assembleia Legislativa a lista dos funcionários com Cargos em Comissão (CCs) autorizados a trabalhar fora da sede do parlamento, bem como os locais onde cumprem suas funções. A ad-ministração da Assembleia, que gasta em torno de R$ 6,8 milhões mensais com CCs, inicialmente alegou desconhecer quem são as pessoas que podem atuar fora. Segundo o parlamento, a informação seria de conhecimento apenas dos gabinetes dos deputados e das bancadas. Dessa forma, o periódico encaminhou o pedido aos 55 gabinetes e às 11 bancadas, mas só um dos deputados atendeu prontamente à solicitação. Em resposta a mais uma tentativa do Zero Hora, o superintendente-geral da Casa, Fabiano Geremia, en-viou ao jornal um e-mail do qual não constavam as informações re-

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127127A transparência é para valer?

queridas. Apesar do Zero Hora ainda ter recorrido, a mesa diretora novamente deixou de prestar a informação.

Na Associação Contas Abertas, temos experiências semelhantes. Apesar do prazo de seis meses transcorrido entre a assinatura da Lei e a sua vigência efetiva – justamente para que os órgãos se preparas-sem – a Câmara dos Deputados não conseguiu disponibilizar as no-tas fiscais das despesas efetuadas em janeiro deste ano pelos depu-tados federais com a Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar. Em princípio, alegou que a informação já se encontrava no portal, o que não era verdade. Ali apareciam tão somente o nome dos estabe-lecimentos e os valores pagos, mas não os documentos fiscais. Após a renovação do pedido, surgiu a promessa de que o primeiro lote de notas fiscais digitalizadas estaria disponível a partir de 23 de julho, o que não aconteceu. Em resposta a novo pedido feito em setembro, a Câmara informou que não existe data ou previsão exata para tor-nar disponíveis as imagens das notas fiscais referentes à Cota, o que permitiria aos cidadãos conhecer em detalhes as despesas efetuadas pelos deputados.

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) não forneceu, no prazo de 30 dias, informações sobre as viagens internacionais dos seus ministros, detalhando nomes, destinos, diárias pagas e justificati-vas. Alegou a Corte no primeiro mês de vigência da LAI que o instru-mento legal estava sendo objeto de regulamentação pela Comissão de Regimento, composta pelos ministros Marco Aurélio, Joaquim Bar-bosa e Ricardo Lewandowski. Conforme informações da assessoria, já existe uma minuta pronta, mas tendo em vista o julgamento do mensalão, a Comissão ainda não aprovou a regulamentação. A ver-dade é que se o próprio STF não cumpre os prazos da Lei, quem o fará? “As leis existem, mas quem as aplica?”, dizia Dante Alighieri.

Paralelamente, algumas vitórias parciais têm sido alcançadas. Depois de enorme polêmica, há dois meses os nomes e os salários dos servidores do Poder Legislativo estão disponíveis para consulta na internet. Desde 31 de julho, Câmara e Senado vinham publicando as listas, mas sem nomes em razão de decisão judicial. Assim, é re-cente a divulgação nominal efetivada após a suspensão da liminar obtida pelo Sindicato dos Servidores do Legislativo (Sindilegis). Vale ressaltar que para realizar cada consulta o interessado deve preen-cher um cadastro, não sendo possível baixar integralmente o banco de dados. Esta facilidade permitiria as comparações de salários e gratificações em atividades semelhantes, tanto no próprio legislativo como em relação aos outros Poderes. Sem dúvida, a divulgação das remunerações tem sido o maior tabu da Lei de Acesso à Informação.

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O que os sindicatos ainda não perceberam é que ao defenderem a suposta privacidade individual, estão contribuindo para manter ocultos os ganhos astronômicos de alguns privilegiados e as distor-ções entre as remunerações existentes nos Três Poderes. A simples divulgação desses dados será o início da correção desses absurdos. Afinal, um ascensorista do Senado não deveria ganhar mais do que um professor ou um médico. Os argumentos dos sindicatos são de que a divulgação dos nomes sujeitaria os servidores a atos de violên-cia e também que a invasão de privacidade feriria até mesmo a Cons-tituição. A teoria relativa à violência não é comprovada. Afinal, desde 2009 a prefeitura de São Paulo divulga nominalmente informações salariais sem que tenha sido observada crescente incidência criminal que tenha afetado os servidores do órgão.

Apesar da resistência de algumas classes sindicais, muitos paí-ses publicam os salários dos servidores públicos, como Chile, Peru, México e Estados Unidos, além de diversos países europeus. A pró-pria Casa Branca, residência oficial e principal local de trabalho do presidente dos Estados Unidos, divulga em seu site o nome, o cargo e a remuneração anual de todos os funcionários. A tese internacional é que a divulgação salarial não invade a privacidade do indivíduo, o que só ocorreria se fossem divulgados os gastos pessoais do servidor público. Argumentam ainda os adeptos da transparência que em uma empresa privada os patrões conhecem os salários dos funcioná-rios e, no caso dos servidores públicos, os patrões somos todos nós.

O filósofo Charles de Montesquieu costumava dizer: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá exis-tem são executadas, pois boas leis há por toda a parte”. De fato, a questão, agora, é assegurar a efetiva implementação dessas leis. Devemos enfrentar desafios de natureza técnica, tecnológica e ad-ministrativa que incluem a necessidade de recursos financeiros e humanos. Além disso, teremos que vencer a cultura do sigilo que, de forma silenciosa e invisível, ainda representa um grande entrave para a abertura dos governos.

Apesar da boa intenção de alguns órgãos governamentais, nota-damente da CGU, vai demorar para que todos entendam que o Esta-do é somente o guardião da informação pública. Assim, teremos que continuar lutando para que o acesso seja a regra e o sigilo a exceção. Tal como dizia Montesquieu, o país deve ser valorizado pelas leis que pratica e não pelas que são editadas e ficam restritas às prateleiras dos advogados.

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VII. Ensaio

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Autores

Fabrício MacielDoutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e na H. S. Frei-burg (Alemanha).

Alberto AggioDoutor (1996) em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Franca.

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Em busca do espírito da época

Fabrício Maciel

A busca pelo “espírito da época” sempre foi uma das principais marcas das ciências sociais. Atualmente, não é diferente. Vá-rias são as perspectivas que hoje disputam a definição do

mundo. Parece que, como nunca antes, a disputa é maior do que jamais foi na história das ciências sociais. Durante o século XX, pre-dominou a definição do capitalismo como sinônimo de sociedade in-dustrial, do trabalho e da classe. Como sempre, a ciência vive da luta entre paradigmas. A ideia de sociedade industrial foi uma das princi-pais, senão a maior, a definir o capitalismo do século XX. Esta ideia faz parte de uma perspectiva etapista, desenvolvimentista e evolucio-nista, que dominou as ciências sociais no século XX. Nesta direção, teríamos vivido primeiro o capitalismo comercial, depois o industrial e, por fim, o capitalismo financeiro ou do conhecimento, conceitos estes que se encontram hoje dentre os principais concorrentes para a definição de nosso “espírito da época”.

Não conheço nenhum autor influente que tenha deixado de falar em capitalismo. O fim do socialismo real é o dado empírico que parece eternizar a forma de economia capitalista, o que não permite o assassinato de seu correspondente conceito. Apenas Peter Dru-cker, cânone da teoria das organizações e da administração, propôs a substituição do conceito de capitalismo pelo de “sociedade pós-ca-pitalista” (DRUCKER, 1994). Durante o século XX, capitalismo sem-pre foi sinônimo de sociedade do trabalho e de classes, associação esta realizada principalmente pela tradição marxista.

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Atualmente, o dado inegável da globalização da economia impõe o desafio que talvez seja o maior da história das ciências sociais: trata-se exatamente de se redefinir o espírito da época. Falamos em espírito, pois toda a vida econômica e social possui um significado, formas de reprodução simbólicas e morais que se articulam às rela-ções materiais da vida. Este é um traço universal da humanidade. Talvez, como nunca antes, as ciências sociais vivem hoje uma com-petição singular entre conceitos para o novo tempo. A própria ideia de globalização é uma delas, talvez a mais poderosa e, por isso mes-mo, a mais vaga. O conceito é utilizado principalmente, mas não apenas, para definir a transnacionalização do capital financeiro, bem como seus efeitos em termos de exclusão nos quatro cantos do mun-do. Por outro lado, fala-se também em globalização cultural, conceito este, em princípio, menos poderoso.

Outro traço histórico das ciências sociais é a demarcação de da-tas ou períodos de transição. É quase consenso que o início do sécu-lo XX é a data de nascimento da sociedade industrial. Agora, algu-mas datas também disputam a definição de seu atestado de óbito. Alguns se referem às crises do petróleo, durante a década de 70, como marco inaugurador de uma nova era. Outros se referem à in-venção da internet, nos fins dos anos 60, como marco inaugurador da nova sociedade do conhecimento ou da informação. Para uma determinada literatura, parece que os anos 70 são um consenso, en-quanto marco definidor do advento de um novo tempo. Autores como André Gorz, Ulrich Beck, Claus Offe e Robert Castel identificam nes-ta década um processo de decadência da então sociedade do traba-lho, numa narrativa europeia, cujos efeitos passam a ser vistos de forma empírica nos anos 80.

Outra tentativa de definição de um novo marco de transição na história do capitalismo é o fim do socialismo real, tendo a queda do muro de Berlim como principal fenômeno simbólico. Ele representa o fim de uma ordem mundial bipolar, marcada pela conhecida história da Guerra Fria. Com isso, a ciência social dominante, nos anos 90, procura imediatamente oferecer outro nome para a realidade social do mundo contemporâneo. Dentre eles, parece que o conceito, talvez mais midiático do que científico, de “nova ordem mundial”, é o mais poderoso. Estamos tratando aqui de literaturas paralelas, que procu-ram oferecer nomes diferentes a fenômenos semelhantes, o que em boa parte pode ser explicado pelo nacionalismo metodológico de na-ções influentes nas ciências sociais, como os Estados Unidos, a Ale-manha e a França. Definir o mundo significa poder, tanto para den-

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tro quanto para fora dos declarados extintos ou enfraquecidos Estados-nacionais.

Outro conceito, irmão não assumido do de nova ordem mundial, é o de “nova ordem multipolar”. A ideia central de ambos é que vive-mos agora em um mundo de poder descentrado, cuja hegemonia das então poderosas nações do Atlântico Norte é ameaçada pelas ditas economias emergentes, e na mídia oficial o grande inimigo é a China. Nos anos 90, a ideia do advento de um neoliberalismo com poderes sem precedentes, como efeito da década anterior, e cujo marco de transição simbólico são os governos de Ronald Reegan e Margareth Thatcher, também ganha força, principalmente em uma literatura marxista que procura mostrar a radicalização da desigualdade mun-dial na dita nova ordem “descentrada”.

Não por acaso, o conceito de “multiculturalismo”, tanto na acade-mia quanto na grande mídia, na esfera pública e no senso comum ganha força sem precedentes. Ele parece ser o outro lado da moeda teórica e política, no novo jogo de poder econômico e político interna-cional, dos conceitos irmãos de “nova ordem mundial” e “nova ordem multipolar”. Enquanto estes procuram dar conta do que Habermas chamaria de “sistema”, ou seja, as dimensões políticas e econômicas da vida, a ideia de multiculturalismo é, implícita ou explicitamente, o carro-chefe da compreensão do que Habermas chamaria de “mundo da vida”. Enquanto a nova ordem mundial seria uma reformulação no jogo de forças econômico e político mundial, o multiculturalismo seria o formulador da mesma perspectiva na dimensão da cultura.

A aparente confusão teórica, escondida no conceito mágico e elástico de globalização, no fundo apresenta uma coerência. O espí-rito da época, e com este termo gostaria de ressaltar que se trata, sobretudo, de “definição da época”, é marcado por conceitos concor-rentes a paradigmas dominantes, cuja razão talvez seja explicada pela luta de poder dentro do campo acadêmico mundial, fragmenta-do pelo nacionalismo metodológico. É claro que existe debate acadê-mico e alguns pesquisadores sérios já confrontaram os conceitos ci-tados aqui. Mas o que parece predominar é algo que Pierre Bourdieu (2001) já havia percebido em seu tempo: os grandes definidores da época se ignoram mais do que se enfrentam e o motivo disso é a bus-ca pelo poder.

A imposição de um conceito novo, enquanto paradigma dominan-te, significa mais financiamento para pesquisas internacionais e mais influência política, ou seja, significa o poder de definir o espírito da época. Em nossos tempos, parece que esta lógica se radicaliza, pois a

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guerra política e teórica agora é, dentre os grandes e influentes auto-res do Atlântico Norte, assumidamente ou não, a partir do paradigma da globalização. Os grandes autores não podem mais apenas definir a singularidade de suas histórias nacionais. Eles precisam definir o mundo. Aqui, a guerra conceitual reproduz a guerra política e econô-mica internacional. E mais: ela é decisiva na conquista e na manuten-ção de poderes políticos e econômicos nacionais, ainda que a dimen-são da política seja, para muitos autores, declarada morta pelo novo espírito da época. Defrontamo-nos aqui com uma dificuldade central, que uma literatura específica sobre o fim da sociedade do trabalho e seus pretendentes substitutos, sendo eles o da “sociedade do conheci-mento” um dos mais interessantes, procura enfrentar.

Em meio a várias confusões teóricas e grandes autores que muitas vezes se ignoram simplesmente por fidelidade ao nacionalis-mo metodológico, podemos arriscar dizer que existe uma linguagem dominante em nosso tempo, talvez desde os anos 80: trata-se da combinação “Fim-Pós”. Como nunca antes, a ciência social mundial dominante já declarou, de um lado, vários “fins” e, de outro, vários “pós”. No primeiro caso, trata-se de perspectivas como as do fim da história, fim da sociedade de classes, fim das sociedades do trabalho, fim das grandes narrativas, fim da capacidade de crítica da sociolo-gia, fim das sociedades nacionais, fim do socialismo real, fim do ca-pitalismo e até mesmo o fim do humano. Esta declaração sociológica do apocalipse é bem sintomática sobre o espírito de nossa época.

Por outro lado, muitas vezes dizendo a mesma coisa com outros nomes, temos também a onda “pós”: pós-nacional, pós-moderno, pós-tradicional, pós-industrial, pós-colonial, e por aí vai. Trata-se de uma época sem definição, na qual o conceito de globalização, ainda capenga, parece dar conta da lacuna de uma definição mais precisa e específica do espírito da época.

Quanto ao fim da história, é uma declaração apocalíptica que faz algum sentido, mas que também apresenta complicações. Uma ideo-logia, sua irmã, a do fim das sociedades do trabalho, deveria ser ar-ticulada com a falácia do fim das classes sociais. Quanto ao fim das grandes narrativas, temos uma meia-verdade. A fragmentação do co-nhecimento em estudos de caso, inclusive em “estudos de caso na-cionais”, outro nome que poderíamos oferecer para o nacionalismo metodológico, é algo que se confirma e deve ser superado. Quanto ao fim da capacidade de crítica da sociologia, como para Boltanski (2005), me soa como desistência da própria sociologia em relação à disposição crítica. A nebulosidade da nova sociedade mundial con-funde, não permite ver em que medida ainda existem Estados-nacio-

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nais, e então se “joga a toalha” e se diz que o capitalismo engoliu todas as críticas.

Concordo com o fim das sociedades nacionais, e em seu lugar gostaria de apresentar uma ideia de uma sociedade mundial e, além disso, uma sociedade mundial do trabalho e da classe. O fim do so-cialismo real é um dado parcial, se este termo se referir ao fim da Guerra Fria com a abertura da Rússia como economia capitalista. Em vários cantos do mundo existem pequenas formas de socialismo que a sociologia não tem tido fôlego ou vontade de investigar. Falar em fim do capitalismo é algo curioso. Peter Drucker acredita que a sociedade do conhecimento não é capitalismo. Curioso mesmo. Esta ainda é uma sociedade que reproduz a lógica marxista de explora-ção-distribuição-investimento, apenas com um papel do conheci-mento especializado ganhando força maior. Isso é muito pouco para declarar o fim do capitalismo. Uma das ondas das teorias da “socie-dade da informação” é a de que vivemos na era virtual, e de que as manipulações científicas podem transformar cientistas em deuses. Ainda estamos longe disso. Por mais que as máquinas substituam paulatinamente a mão de obra humana, por exemplo, basta cami-nhar alguns minutos em qualquer grande cidade do mundo para ver que o que move a vida ainda é a ação humana, através do trabalho. Aqui, a ficção científica dos filmes de Arnold Schwarzenegger já ga-nha espaço dentro da sociologia.

A perspectiva “pós” é a mesma patinação teórica em outros ter-mos, salvo algumas exceções, das declarações do fim do mundo teóri-co. A instauração sem precedentes do mercado autorregulado, atra-vés de atores transnacionais, torna cada vez mais difícil falar em sociedades ou em identidades nacionais. Quanto ao pós-moderno, este me parece uma aberração do mesmo nível da perspectiva pós--capitalista. Grandes autores, muitas vezes, por oportunidade midiá-tica, procuram inventar o novo, como se vivêssemos algo totalmente diferente do que nossos pais viveram. Me parece plausível pensar que ainda vivemos a moderna sociedade do trabalho, porém com al-gumas modificações fundamentais nas formas de reprodução mate-rial e nas formas de vida simbólicas.

O pós-moderno é uma das principais ondas intelectuais do mo-mento. Zygmunt Bauman é seu principal representante, mas a onda muitas vezes é reproduzida explicitamente, mesmo por teóricos mar-xistas, como David Harvey (2005), e outras vezes de forma implícita. A modernidade líquida de Bauman (2000) parece esquecer que as formas de reprodução da vida social são sólidas, ainda que modifica-das pelas mudanças sociais na lógica mundial do trabalho contem-

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porânea. Ainda que a ideia central do autor seja a fluidez das rela-ções contemporâneas, não há nada de “líquido” na nova dominação internacional do capital financeiro. Ademais, falar em pós-moderno exigiria provar que vivemos em uma sociedade totalmente diferente daquela percebida por Max Weber (1905), na qual a racionalização do mundo e a dominação da natureza sem limites, bem como o aban-dono das trajetórias individuais nas costas dos próprios indivíduos, seriam coisas do passado. Um esboço de uma teoria da nova socie-dade mundial do trabalho pode contribuir para mostrar que tais tra-ços da modernidade são hoje globalizados e radicalizados, porém, não superados. Logo, sem chance de se falar em uma era totalmente nova.

Quanto ao pós-tradicional, perspectiva de Habermas (1998), me parece também pouco produtiva sociologicamente, ainda que seja praticamente sinônimo de pós-nacional. O trabalho clássico do we-beriano Reinhard Bendix (1996 [1964]) já tematizara que a dicotomia tradicional-moderno nada mais é do que uma das principais inven-ções teóricas e políticas do moderno, assim como se tenta agora fazer a mesma coisa, se inventando o pós-moderno. Sem contar o tom so-fisticadamente evolucionista do pós-tradicional. Não por acaso, a teo-ria de Habermas como um todo, em sua busca da superação do ma-terialismo histórico, com sua teoria da ação comunicativa, se torna o pai desnaturado do alarde apocalíptico do fim das sociedades do tra-balho e de classe.

Quanto ao pós-industrial, declarado desde Daniel Bell (BELL apud BITTLINGMAYER, 2005), cânone da teoria da modernização americana, este sim nos interessa, pois seu teor evolucionista preci-sa ser criticado para vermos que não faz sentido falar nem em pós--industrial nem em qualquer outra era definida apenas por uma das formas de produção capitalista, pois elas sempre conviveram hierar-quizadas na história do capitalismo. As modificações e efeitos radica-lizados em termos de desigualdade social mundial desta hierarquia é outro dos pontos centrais que exigem atenção da sociologia.

Por fim, o pós-colonial tem algo a dizer, pois contribui para a compreensão na mudança de forças no jogo político-econômico inter-nacional. Sua contribuição crítica seria maior, não fosse o detalhe de resvalar para a teoria do multiculturalismo, cujo teor relativista é a face oculta das teorias da nova ordem mundial e da nova ordem mul-tipolar. Seria a teoria da mudança cultural, no mundo da vida, que confirmaria as mudanças econômicas e políticas, ignorando que toda mudança na verdade é antes de tudo social. Uma olhada na obra de Stuart Hall (1992) pode confirmar esta perspectiva.

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Olhando bem, o caos teórico dominante em nosso tempo nem sempre é tão incoerente assim. Semanticamente, se observarmos pe-quenas diferenças em certas teorias, veremos que elas compõem uma divisão do trabalho acadêmica, implícita e articulada ao novo tipo de dominação do capital financeiro criticado nesta tese. Um pe-queno exemplo: não estariam as teorias do multiculturalismo, da nova ordem multipolar e de outra velha conhecida de nossa acade-mia brasileira, a teoria das modernidades múltiplas (EISENSTADT, 2002) dizendo a mesma coisa? Assim, a onda “Multi” é outra das vi-seiras ideológicas e políticas que impedem a tematização da nova forma de dominação do capital financeiro que se impõe na nova so-ciedade do trabalho mundial.

Também acho complicado usar os conceitos de sistema, nova or-dem ou globalização, como centrais para a busca de definição do espírito da época. O conceito de sistema é um dos mais dominantes de nosso tempo. Falamos nele sem pensar. Falamos em sistema ca-pitalista como uma definição já eternizada. Niklas Luhmann (1995) é o principal autor do conceito, mas não tem uma teoria sobre a socie-dade mundial contemporânea. Por outro lado, Wallerstein (1976), uma espécie de Luhmann de esquerda, que considero mais crítico, pela vantagem de viver a sociedade mundial e de seu conceito de economia-mundo, também tem uma teoria dos sistemas, mas que ainda carece ser enfrentada “sistematicamente”.

Quanto ao conceito de globalização, utilizado por milhões de au-tores, de diversas formas, também não parece o mais preciso. Ulrich Beck (2007) é um dos principais autores a usar e tentar criticar o conceito. Quanto ao conceito de nova ordem, talvez mais midiático do que sociológico, também podemos dizer que apresenta um quê de vaguidade. Precisamos de uma nova ideia de sociedade, mundial, e o objetivo central deste texto é defender a necessidade de um esboço de uma nova sociedade mundial do trabalho, e não de qualquer ou-tra coisa. Por que falar simplesmente em sociedade, não mais nacio-nal, mas sim falar em uma sociedade mundial?

Para os clássicos da sociologia, a ideia de sociedade é a mais fun-damental e por isso mesmo a mais difícil de compreender e a que mais se transforma em senso comum. Pode-se chamar qualquer gru-po de relações humanas de sociedade. Entretanto, a ideia sociológica de sociedade pressupõe que todas as pessoas estão de alguma ma-neira interligadas em formas de vida objetivas. Para Marx, o conflito conectava as pessoas, as transformavam em uma sociedade. Para Durkheim (2008), a divisão do trabalho social conecta as pessoas objetivamente, para além de suas vontades pessoais. Para Max We-

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ber (1999), as formas de dominação, diferentes ao longo da história, sempre conectaram as pessoas. Assim, prefiro continuar com o con-ceito de sociedade.

Por que falar em uma sociedade mundial? A meia verdade das teses da sociedade da informação (CASTELLS, 2010) e da sociedade do conhecimento pode nos ajudar neste aspecto. Grande parte da população mundial está conectada online (Ibid.). Isto significa rela-ções sociais, ou seja, vida em sociedade. Além disso, vivemos uma economia global e uma divisão do trabalho internacional, o que atua-liza a ideia de sociedade dos clássicos da sociologia. Não existe ação humana, privada ou no trabalho, que não seja de alguma forma in-fluenciada pela ação do capital financeiro internacional. Todas as pessoas do mundo estão conectadas a um mercado mundial, ou so-frendo um processo de não pertencimento a ele. Logo, trata-se de uma sociedade mundial.

Por que falar em uma sociedade mundial do trabalho? Minha pro-posta teórica para a contribuição a um novo paradigma de uma nova sociedade mundial do trabalho se divide em seis aspectos, que gos-taria brevemente de expor aqui.

1 – A ideia de uma nova sociedade mundial do trabalho precisa de uma nova perspectiva epistemológica, que não se restrinja à tradicio-nal epistemologia das histórias nacionais, predominante no século XX. Esta tentativa pode ser enfrentada a partir da crítica ao naciona-lismo metodológico, realizada por Ulrich Beck (2008), e de uma adap-tação de seu conceito de “cosmopolitismo metodológico”. O próprio Ulrich Beck pode ser criticado por reproduzir, desde sua principal teoria, a da “Sociedade do risco” (1986), o mesmo nacionalismo me-todológico que tentou criticar, direcionado principalmente à sociolo-gia da desigualdade dominante no século XX.

2 – Se estamos falando em uma nova sociedade mundial, do traba-lho, precisaremos admitir e apresentar algumas mudanças sociais nas formas de produção e reprodução do trabalho contemporâneo. Os au-tores enfrentados para este objetivo podem ser: Claus Offe (1994), por seu conhecido questionamento sobre o fim da categoria trabalho como chave central para a sociologia contemporânea; André Gorz (2004), por sua análise sobre a transição do fordismo para o pós-fordismo e por sua proposta de substituição da ideia de sociedade do trabalho pela ideia de sociedade do conhecimento ou do “imaterial” (2005); e Ulrich Beck (1986; 2007), por seu enfrentamento direto ao tema do trabalho incluindo a periferia do capitalismo em seu raciocínio e a te-matização do advento global do trabalho precário e informal.

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3 – Se quisermos sustentar uma ideia de sociedade do trabalho, precisaremos enfrentar seus inimigos, ou seja, as propostas contem-porâneas que se apresentam como tentativas de novos paradigmas alternativos ao de sociedade do trabalho. Neste ponto, é preciso res-saltar como a teoria da sociedade do conhecimento é uma destas principais tentativas, talvez a mais poderosa, nesta busca de substi-tuição de paradigmas. Para tanto, vale uma leitura crítica a Claus Offe e principalmente a André Gorz, bem como a Nico Stehr (1994), atualizador de Daniel Bell, na Alemanha, nos anos 90. Por fim, pode ser produtivo refletir sobre a ideia de uma economia do conhecimen-to, a partir da recuperação deste conceito, na obra de Bourdieu, na tentativa de criticar a teoria da sociedade do conhecimento.

4 – Uma nova teoria mundial do trabalho precisa rever a relação centro-periferia, e considero este o ponto alto da busca do espírito de nossa época. Durante o século XX, a teoria dominante foi a de que o capitalismo estabeleceu uma hierarquia entre Estados-nacionais, cen-trais e periféricos, o que sempre se explicou pelas histórias nacionais, por diferenças culturais, e pela perspectiva do século XX enquanto efeito do colonialismo e imperialismo do século XIX. Hoje, duas meias--verdades, como faces da mesma moeda conceitual, política e midiáti-ca, se apresentam como dado empírico que nos obriga a uma atualiza-ção, para além do nacionalismo metodológico, da teoria da divisão internacional do trabalho. A primeira é o advento das economias emergentes, que para Wallerstein (1976) seriam os sistemas semi-pe-riféricos. A segunda é o fim do pleno emprego em países do Lado A da Europa, como Alemanha e França. Para tanto, a obra de Ulrich Beck é a mais emblemática, pois sua tese da “Brasilização do Ocidente” (1997), apresenta a ambiguidade de, ao mesmo tempo, tentar temati-zar uma nova sociedade mundial do trabalho, através do advento do trabalho informal na Europa como ponto de partida, ao mesmo tempo em que atualiza o culturalismo e nacionalismo metodológico que man-tém a hierarquia conceitual entre centro e periferia.

5 – Uma teoria mundial sobre o trabalho precisa enfrentar o pro-blema da desigualdade mundial, bem como apresentar uma possibi-lidade de análise de como esta desigualdade se reproduz por critérios transnacionais. Para tanto, um bom passo é recuperar a crítica de Robert Castel ao conceito de exclusão, geralmente articulado de for-ma imprecisa ao de globalização, bem como sua contra-proposta, com o conceito de desfiliação social. Esta busca pode abrir o cami-nho para articular uma meia-verdade fundamental hoje, que deve ser criticada: as economias emergentes não são motivo de celebra-ção, por um lado, e a crise europeia também não é tão grande quan-

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to a mídia e a ciência oficial nos apresentam. A importância deste ponto reside também no fato de que a relação centro-periferia precisa ser revista, mas não abandonada, uma vez que o desemprego e o trabalho precário são fenômenos conjunturais e novos no centro do capitalismo, enquanto que sempre foram estruturais em sua perife-ria. Nesta perspectiva, no geral, capitalismo e sociedade do trabalho e das classes voltam a ser sinônimos.

6 – A nova teoria mundial do trabalho precisa rearticular os temas do trabalho e da classe, fragmentados por questões de poder no cam-po acadêmico. Esta rearticulação significa que capitalismo, sociedade do trabalho e sociedade de classes são sinônimos. Para este objetivo, é preciso voltar ao tema das classes e buscar uma recuperação de sua centralidade, perdida tanto na teoria dominante do centro quanto da periferia. Em complemento, além de criticar assassinos explícitos e implícitos da teoria de classes, é preciso também refletir sobre o valor de uma nova teoria de classes transnacional como fundamental para a construção de uma nova teoria mundial do trabalho.

Uma última palavra: a busca pelo espírito da época exige uma decisão difícil: em alguma medida, é preciso “matar” os clássicos da sociologia. O que isso significa? Os clássicos definiram o espírito de sua época e naturalmente lançaram luzes sobre a modernidade, como uma nova era, e sobre o modo de produção capitalista, como o funcionamento desta era. Agora, os autores aqui mencionado, em maioria, estão vivos, presenciando as mudanças sociais da nova so-ciedade do trabalho e atualizando os clássicos. Em outros termos, seria impossível definir a mudança social global contemporânea ape-nas com Marx, Weber e Durkheim (ou Sombart e Simmel). Por outro lado, eles estão reencarnados nos autores vivos, do contrário, não se-riam os clássicos.

Em alguma medida, podemos dizer que André Gorz é um novo Marx. Ele é o grande autor que tentou atualizar a teoria do valor, mas não a partir do trabalho, e sim a partir do conhecimento. Além disso, ousou esboçar uma ontologia do imaterial em lugar da até en-tão imbatível ontologia do material, de Marx. Castel, reproduzindo claramente a tradição francesa, seria a reencarnação de Durkheim, preocupado com a coesão social, mas presenciando a precariedade que seu antepassado não viu. Também seria um avatar de Foucault, pela impressionante reconstrução histórica das formas de desfiliação social e de delinquência que variaram desde os tempos dos clássicos até agora. Ulrich Beck é um caso específico, seria a reencarnação de Max Weber, pois sua tese da sociedade do risco nada mais é do que a tematização da radicalização do racionalismo da dominação da na-

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tureza. Ele tematiza o limite que Weber previu. Claus Offe também pode ser considerado um neto de Weber, pois a preocupação com a racionalização do capitalismo, vista pelo avô, agora é atualizada diante da queda do Welfare State, não vivido por seu antepassado.

Esta pequena digressão serve a apenas um objetivo: mostrar como o nacionalismo metodológico existe, ou seja, como os autores de vanguarda contemporâneos reproduzem em grande parte, para pensar o presente, várias categorias analíticas de seus antepassados em seu pensamento social nacional. O que todos herdam dos mortos: a tentativa de definir o presente e prever o futuro. Com isso os mor-tos se eternizam, se reencarnam, só que, na perspectiva deste texto, esta reencarnação não deveria permitir nenhum nacionalismo meto-dológico.

Talvez Marx tenha sido o único clássico que escapou do naciona-lismo metodológico. Pelo contrário, em seu livro de juventude A ideo-logia alemã (2007, edição recente), ele faz talvez o mais belo acerto de contas da história, com sua própria tradição nacional. Em alguma medida, é preciso fazer o mesmo com a tradição sociológica do sécu-lo XX, ironicamente de predominância marxista, sobre a sociologia do trabalho. Este seria o primeiro passo para o esboço de uma tese sobre uma sociedade mundial do trabalho renovada, perspectiva esta que me parece a mais plausível para definir a realidade e o cor-respondente espírito de nossa época.

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Gramsci e a questão da democracia

Alberto Aggio

Elevado ao patamar de um clássico da política, Antonio Grams-ci (1891-1937) deve ser lido e relido “à luz de novas exigên-cias e de novos problemas”, conforme a arguta observação de

Valentino Gerratana, o coordenador da edição crítica dos Cadernos do Cárcere, publicados em 1975, na Itália. Sem discordar desta su-gestão, Giuseppe Vacca elaborou outro argumento para referendar Gramsci como um clássico. Para ele, Gramsci foi “um pensador com cujo pensamento não pode – ou pelo menos não deve – deixar de de-bater todo aquele que, depois dele, enfrentar os grandes problemas em torno dos quais se atormentou sua reflexão” (2010, p. 29). Ambos os tratamentos, especialmente o último, sugerem que se deva deixar para trás algumas visões que foram construídas a seu respeito e ex-pressam um movimento de superação na história das representações que foram criadas em torno de Antonio Gramsci tanto frente à sua participação no movimento comunista quanto no que se refere ao seu lugar no marxismo.

Gramsci foi efetivamente um dirigente político antes que um teó-rico, deslocado da prática política. Aprisionado pelo fascismo em 1926, seus escritos foram produzidos em condições absolutamente precárias e sua imagem é originalmente estabelecida no interior da cultura heroica do movimento comunista. Após a sua morte, essa imagem será adensada com a publicação das primeiras edições das Cartas e dos Cadernos do Cárcere, depois do fim da guerra. Particu-larmente na Itália, Gramsci passaria a ser visto e legitimado como um ícone que sucederia os pais do socialismo mundial, especialmen-te a linhagem estabelecida pelo marxismo soviético: Gramsci sucede-ria Marx, Engels, Lenin e Stalin, como a referência mais contempo-rânea a dar suporte teórico à estratégia da revolução proletária e do socialismo nos países mais avançados do Ocidente. Gramsci foi visto por muitos anos como o “teórico da revolução” nos países avançados. A cristalização deste lugar no interior da linhagem dos teóricos do marxismo acabaria por afetar sua recepção, tornando-a, no mais das vezes, esquemática, mesmo que se validasse nele a inovação a res-

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peito de alguns conceitos, notadamente aqueles que se referem tanto à temática do Estado ampliado quanto à chamada estratégia da re-volução processual.

Mas há um momento de inflexão importante. Trata-se dos estu-dos que emergiram após a edição crítica dos Cadernos do Cárcere. Esses estudos abriram novas perspectivas de compreensão do seu pensamento. A partir daí acentuou-se a convicção de que a originali-dade de Gramsci estava concentrada ou nucleada nos elementos que ele havia mobilizado para refletir sobre o fenômeno do “americanis-mo”. Ao lado dessa temática, reconhece-se que, principalmente a partir do conceito de “revolução passiva”, emergiam novos significa-dos a respeito da noção de “hegemonia”, o que jogava novas luzes em relação às temáticas da filosofia da práxis e dos intelectuais (INSTI-TUTO GRAMSCI, 1978).

O argumento era sólido e se sustentava numa releitura da histó-ria e das mudanças que haviam se processado na virada do século XX. Para diversos estudiosos, o que havia no texto gramsciano era o firme reconhecimento de que o século XX havia presenciado a mais inaudita emergência de massas na vida política em toda a história moderna. Gramsci teria sido o pensador marxista que melhor havia reconhecido e assimilado analiticamente essa grande mudança, tor-nando-a presente, de forma permanente, em sua reflexão. A visão de Gramsci nos Cadernos era ampla, persistente e profunda. Dela emer-giam diagnósticos dinâmicos e problemáticos a respeito dessa gran-de transformação. O que se depreendia do texto gramsciano era fun-damentalmente uma nova leitura do cenário mundial. Nesse quadro, a revolução bolchevique era revalorizada como uma revelação da até então desconhecida possibilidade de ação das massas.

Contudo, depois de um primeiro momento, Gramsci reconheceria que a questão da revolução se havia complicado em termos reais. Isto porque, entre outras coisas, as ações dos dominantes também sofreriam uma inflexão, nesse novo contexto histórico, em relação às massas, revelando que os métodos repressivos não eram mais intei-ramente seguros, sendo necessário acolher, responder e controlar suas demandas e reivindicações. É desse reconhecimento que se es-tabelecem nos escritos de Gramsci as anotações em torno do concei-to de “revolução passiva” que, por sua vez, iria estimulá-lo a pensar na necessidade de um novo tipo de direção política e intelectual para o movimento operário e comunista, que assumisse a política como elaboração consensual, positiva e de reconstrução da ação e da es-tratégia dos setores subalternos (ZANGHERI, 1999). Como afirma G. Vacca (2012, p. 129), “O conceito de ‘revolução passiva’, pois, desig-

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na uma mudança do processo histórico mundial, caracterizado por uma subjetividade das massas que se pode condicionar e dirigir num sentido ou noutro, mas não se pode suprimir”.1

O conceito de revolução passiva em Gramsci seria assim a aber-tura para uma nova concepção de política que deveria ser colocada em prática de forma produtiva e com capacidade de intervenção na-quele novo cenário por meio da inquirição e da exploração analítica e prática das suas contradições. A revolução passiva não seria assumi-da por Gramsci como um programa político, mas se configuraria como a referência analítica e o instrumento de conhecimento mais im-portante de toda a sua obra. Por meio dela se poderia compreender não apenas o movimento da transição para a ordem burguesa, mas também sua universalização, ultrapassando a interpretação de que esses processos históricos teriam como paradigma o caso clássico da revolução francesa. Por outro lado, após o impacto da revolução bol-chevique, tudo indicava que o avanço do socialismo em perspectiva mundial, ao contrário de toda perspectiva voluntarista, se apresen-taria obedecendo a uma “fortuna assemelhada às revoluções passi-vas da burguesia no século XIX, no contexto histórico contemporâ-neo em que a guerra de movimento cedia lugar à de posição” (VIANNA, 1997, p. 49). O deslocamento era claro: a “guerra de posição” seria “o complemento da ‘revolução passiva’” (VACCA, 2012, p. 129) e, nesse sentido, estaria descartada da perspectiva gramsciana a reversão de “uma revolução passiva em ‘ativa’”. O problema para o movimento comunista tornava-se, portanto, mais complicado: era preciso “mu-dar a chave da direção do transformismo” em curso. E, “nessa mu-dança de chave, a possibilidade de uma tradução do marxismo como uma teoria da transformação sem revolução ‘explosiva’ de tipo fran-cês” (VIANNA, 1997, p. 78-79).

Revolução passiva, guerra de posição e hegemonia passam então a compor o eixo central da reflexão gramsciana nos Cadernos e isso significaria, em termos teóricos, a ultrapassagem definitiva da estra-tégia de “guerra de movimento”. As implicações em relação à Revolu-ção Bolchevique tornavam-se evidentes. Para Gramsci, a Revolução Bolchevique havia sido o último caso de êxito da transformação de uma “revolução democrática” em “revolução proletária” por meio da “guerra de movimento”. Em função dos acontecimentos que indica-vam uma “mudança de época”, os próprios conceitos que norteavam o movimento comunista internacional deveriam ser revistos. E o pró-

1 Esse pequeno artigo é profundamente devedor de G. Vacca, Vita e pensieri di Antonio Gramsci, Roma: Einaudi, 2012, em organização pela Contraponto/FAP, com tradu-ção de Luiz Sérgio Henriques.

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prio Gramsci, de acordo com Vacca (2012), assume essa perspectiva ao procurar superar a visão de “hegemonia do proletariado”, que lhe era referência entre 1924 e 1926, passando a formular a noção de “hegemonia política” ou “hegemonia civil”, “introduzida para desta-car a necessidade de ser conquistada antes da ida ao governo”. O foco de atenção se desloca para a sociedade civil e não mais exclu-sivamente para o poder estatal. De acordo com a historicização que Vacca faz da questão, “o objeto da ‘guerra de posição’ é a obtenção da ‘hegemonia política’ antes da ida ao poder; seu teatro é a sociedade civil; e o epicentro, a luta política nacional” (...). “A luta política sofre uma mudança de paradigma: torna-se luta pela direção das massas e da economia” (2012, p. 131;133). Nas palavras de Gramsci: “A guerra de posição, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode nascer depois do advento de certas premissas, isto é: as gran-des organizações populares de tipo moderno, que representam as ‘trincheiras’ e as fortificações permanentes da guerra de posição” (apud VACCA, 2012, p. 132).

Revolução passiva, guerra de posição, hegemonia constituem as-sim categorias pelas quais a abordagem de Gramsci acabaria por in-duzir substanciais alterações tanto no marxismo quanto na prática política da esquerda derivada dos movimentos socialistas e comunis-tas do século XX. No interior do marxismo – por ele percebido como uma “filosofia da práxis” –, o pensamento de Gramsci é marcado então pela integral autonomia e o seu núcleo central não foi outro senão a inquirição das diversas modalidades de desenvolvimento do capitalis-mo, entendido como um fenômeno mundial. Aliando sua ênfase mor-fológica para tratar os fenômenos sociais à reflexão sobre as diversas subjetividades na sociedade moderna e sobre o trânsito para esta, Gramsci acabaria por fecundar e nutrir um pensamento voltado para a reflexão das conexões possíveis entre modernidade e democracia. Em Gramsci, a busca por espaços e estruturas para expressão das subjetividades emergentes advindas com o moderno sugere a necessi-dade do estabelecimento de uma vida política democrática, concebida a partir de uma perspectiva e de um horizonte cosmopolita.

Haveria que considerar, portanto, um novo lugar para Gramsci na cultura política do marxismo. Na trajetória reflexiva de alguns de seus estudiosos, Gramsci passa a ser visto como um pensador advindo do mundo comunista que, a partir da postura intelectual de “assimilador onívoro” e, por fim, de “grande eclético” (MANCINA, 1992), teria sido capaz de pensar os nexos e os termos nos quais uma nova época his-tórica havia se estabelecido. Gramsci seria assim um pensador origi-nal desta mudança epocal da qual o movimento a que ele havia se

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vinculado dava soberbas demonstrações de incompreensão, revelando uma notável incapacidade para dirigir os vetores dessa nova época e, por fim, conseguir se universalizar. Mesmo assumindo por algum tem-po uma visão mítica da revolução bolchevique, Gramsci tornou-se de-pois bastante pessimista em relação àquele movimento (PONS, 2010, p. 170-174). Hoje portanto é cada vez mais consensual a avaliação de que as ideias de Gramsci devem ser vistas a partir de uma posição de autonomia no interior do movimento comunista de sua época e espe-cialmente daquele que se seguiu a ela (AGGIO, 2008). É por essa razão que nos Cadernos se percebe claramente que vão ficando para trás diversas concepções antes presentes nos seus textos, como a já men-cionada “hegemonia do proletariado”, reformulada como “hegemonia civil”. É notável também, como demonstra Vacca (2012, p. 135), que outras categorias do bolchevismo passariam a ser explicitamente abandonadas, tais como a concepção de imperialismo (que está prati-camente ausente nos Cadernos, ao passo que se ressignifica positiva-mente a noção de cosmopolitismo), bem como a teoria da ‘guerra ine-vitável’ como cenário inevitável e favorável à revolução.

Gramsci reconhecia que o “americanismo” se apresentava como a modalidade de revolução passiva típica do capitalismo maduro, uma expressão de racionalidade integral com enorme capacidade de uni-versalização; portanto, no processo mundial que o americanismo passa a dirigir com a sua expansão, “o comunismo internacional é uma força subalterna” (VACCA, 2012, p. 137). Não é outra a razão para, na Europa, a política passar a buscar a realização da interme-diação entre as classes do mundo produtivo em direção a uma eco-nomia programática, seguindo o exemplo americano. Há, contudo, um problema na Europa: é o Estado, dominado pelas classes tradi-cionais, o condutor desse processo. Nos países retardatários – não apenas europeus –, avançava-se em direção ao moderno por meio de uma superestrutura que se colocava à frente dos movimentos da in-fraestrutura, compensando a defasagem que os caracterizava frente aos países de capitalismo maduro. Em ambos os cenários, contudo, haveria saltos e processos moleculares. Seriam modalidades especi-ficas de revolução passiva que teriam vigência histórica, condiciona-riam e determinariam fortemente os processos de generalização do capitalismo e da ordem burguesa.

Essa nova leitura das transformações históricas que estavam em curso acabariam por tornar cada vez mais evidente a discrepância de Gramsci em relação ao campo bolchevique, que envolvia a Interna-cional Comunista (IC) e o próprio o PCI. Ao que parece, esse momen-to talvez tenha se dado por volta dos primeiros anos da década de

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1930, em relação à temática da Constituinte, que na visão de Grams-ci deveria ser adotada pelo PCI na luta contra o fascismo. Concebida por ele a partir de uma estratégia de luta democrática para derrotar o fascismo, a questão da Constituinte se contrapunha flagrantemen-te à linha política da IC que buscava fomentar a revolução proletária na Itália como processo simultâneo e sucessivo à derrubada do fas-cismo (ROSSI; VACCA, 2007).

É relevante esse aspecto uma vez que explica o isolamento de Gramsci não apenas motivado por sua prisão pelo fascismo mas por uma “condenação” da IC em relação à sua proposta de uma Consti-tuinte para a Itália, elaborada e redesenhada por ele desde 1929. Vale mencionar que depois da sua morte haveria o reconhecimento de que a sugestão gramsciana da Constituinte teria sido efetivamen-te “uma antecipação da política de Frente Popular” (VACCA, 1996, p. 93). Hoje já se poderia dizer que a proposição da Constituinte feita por Gramsci tinha um sentido muito mais profundo: ela anularia a ideia de uma “fase intermediária” ou de “transição” na qual a demo-cracia era pensada de maneira instrumental ou nem isso; a Consti-tuinte em Gramsci seria uma proposta concreta que evidenciaria toda a sua complexa reflexão a respeito da “política como luta pela hegemonia”, ultrapassando integralmente os limites do modelo bol-chevique de revolução e adotando efetivamente um programa refor-mista de combate ao fascismo (VACCA, 2012).

Há efetivamente ingredientes inovadores nessa proposição. Cha-ma a atenção de Gramsci tanto a mudança promovida pela influên-cia do americanismo na Europa, particularmente na Itália, quanto as formas de adaptação do fascismo à expansão do americanismo. Dai derivam duas observações muito profundas de Gramsci. Uma delas é a respeito do “corporativismo estatal” do fascismo como re-organizador da sociedade italiana para dar impulso à moderniza-ção. A ele Gramsci passará a opor uma perspectiva de “corporativis-mo societário” no sentido de procurar influenciar e reverter as orientações dos sindicatos controlados pelo fascismo. Não haveria em Gramsci assim uma perspectiva de “sindicalismo paralelo” no sentido de se buscar construir uma suposta “contra-hegemonia” diante do fascismo. A outra observação relevante a propósito da inovação gramsciana é que a proposição da Constituinte estava di-retamente vinculada à leitura de hegemonia mundial do america-nismo e de perda de energia universalizadora da revolução bolche-vique e, com ela, do próprio socialismo. A Constituinte não era uma proposição para depois da derrubada do fascismo, muito ao contrá-rio, se configurava na perspectiva gramsciana de luta pela democra-

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cia. E também não seria homóloga à política de Frente Popular que, adotada em 1935 pelo VII Congresso da IC, consagrava-se como uma proposição de luta antifascista a ser adotada onde o fascismo não havia conquistado o poder.

Em termos gerais, não cabe dúvida de que os Cadernos revelam uma visão de Gramsci que pensa a noção de democracia a partir da superação da divisão entre governantes e governados, mas em ter-mos políticos fica claro que o tema da Constituinte inaugurava uma nova orientação que passa a ter a democracia como dimensão cen-tral. Nas palavras de Vacca, retomando uma citação do Gramsci de 1917 (2012, p. 154), “a Constituinte correspondia ao objetivo de re-fundar as bases da vida nacional de modo reformista: ‘Tratar-se-ia de chegar à Constituinte e à exata discriminação das forças sociais sem passar pela revolução’”. Ultrapassar o fascismo como regime seria anular “a ‘pulverização’ e a inércia política que impôs às massas”. Vacca enfatiza esse aspecto da sua leitura a respeito do pensamento político de Gramsci, sintetizando sua argumentação nos seguintes termos: “O terreno da luta é reformista, não revolucionário, democrá-tico, não ‘proletário’. Se o proletariado quer reativar as condições de luta pelo socialismo, deve se bater para anular a ocupação político--militar do território nacional perpetrada pelo fascismo” (VACCA, 2012, p. 155-156). De acordo com G. Vacca, a Constituinte é assim concebida por Gramsci como “a certidão de nascimento da nação de-mocrática e, na agitação das forças antifascistas, constitui a semea-dura que a prepara”. Uma proposição como essa acabaria por esta-belecer uma orientação não apenas nova, mas de “largo fôlego” para o comunismo italiano:

[A Constituinte] não é o caminho da revolução proletária não só porque esta não está na ordem do dia, mas porque “revolução pas-siva” e “guerra de posição” registram uma mudança morfológica da política: a luta política é luta pela “hegemonia”; a luta contra o fascismo conduz-se com os dispositivos da “guerra de posição”; o terreno no qual esta pode se explicitar como luta pela hegemonia é o terreno de um Estado democrático que não preanuncia finalisti-camente o advento da “ditadura do proletariado” (2012, p. 156).

Não há como deixar de reconhecer que a ultrapassagem do modelo bolchevique é integral, já que a luta pela democracia passa a ser eman-cipada dos constrangimentos que a instrumentalizavam na chamada “fase intermediária” entre a revolução democrática e a revolução so-cialista, na expectativa da construção da “ditadura do proletariado”.

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Com Gramsci, a política deveria se estabelecer como luta pela hegemonia, sem que esta fosse projetada para dentro de uma estra-tégia de transição ao socialismo. Como já havia alertado anterior-mente G. Vacca (1996, p. 127), “a posição de Gramsci diante da de-mocracia representativa é a da reforma e não da sua destruição”. Na luta pela hegemonia estariam, portanto, descartados os termos e a proposição de uma estratégia de “contra-hegemonia” já que, para Gramsci, a extensão da democracia a todo âmbito da vida social visa e deve buscar “dissolver a estrutura hierárquica autoritária do Esta-do”. Como já afirmara Vacca (1996), a sua posição, portanto, é a de “crítica aos limites da democracia, aos vínculos que ela estabelece bem como às deformações às quais é submetida em condições histó-ricas determinadas”.

Não sem razão os herdeiros mais criativos de Gramsci no interior do PCI, desde Palmiro Togliatti, passaram a esboçar as características de uma “democracia de novo tipo” para a Itália. Quarenta anos após a morte de Gramsci, na celebração do 60º aniversário da Revolução Russa, Enrico Berlinguer, em plena Moscou, assombraria o mundo comunista com o discurso no qual afirmava a estratégia da “democra-cia como valor universal”. A fórmula não era da lavra de Gramsci, mas não será justo ceifar-lhe a paternidade da concepção. Mesmo assim, demoraria mais de uma década para que aquele mundo entrasse defi-nitivamente em colapso, recolocando em bases inteiramente novas a luta pela construção de sociedades mais livres e iguais.

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VIII. Mundo

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Autor

Paulo DelgadoSociólogo mineiro e ex-deputado federal ([email protected]).

Paulo Alves de Lima FilhoDoutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) e pós-doutor na área de Geopolítica da Energia na Unesp-Marília.

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Em torno de um nacionalismo europeu

Paulo Delgado

“Melhor um zero do que um Nero” parece boa frase de efeito para definir governos medíocres. Era assim que alemães, ingleses e franceses se referiam à vacilante administração do marechal Paul

von Hindenburg, que acabou servindo de escada ao pesadelo nazista.

Todos, na época, andavam traumatizados com o horror que foi a 1ª Guerra Mundial, um massacre de povos. No dizer de Winston Churchill, “a meta de pôr termo aos mil anos de conflito entre a Fran-ça e a Alemanha afigurava-se um objetivo supremo... Pois a Europa voltaria a crescer se fosse possível impedir novas oportunidades de brigas e fazer com que velhos antagonismos perecessem na realiza-ção da prosperidade mútua e da interdependência”.

“O interesse supremo do povo inglês estava em aplacar a rixa franco-alemã”, sintetizava o político. Churchill, político e pintor, havia se imposto um autoexílio em Cannes, depois de ter sido “tão decididamente descartado” da política do seu país. Só que naquele momento crescia a tensão que perturbou a vida econômica do mun-do, levou junto a democracia e a paz e refez de Churchill um líder essencial.

Diante dessa nova crise econômica, provocada pela gestão frau-dulenta da abundância, a Europa vacila mais uma vez no caminho desenhado para levar à união total. E se vê confrontada com a neces-sidade de escolher entre acelerar o passo e queimar etapas na dire-ção traçada ou recuar e abrir mão de muito do que se construiu até então. Costuma-se dizer que a União Europeia nunca deixa de apro-veitar uma boa crise para aprofundar seus contornos institucionais.

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156156 Paulo Delgado

Essa lógica está estampada na inócua cimeira extraordinária do Conselho Europeu, que deveria deliberar, na última semana de no-vembro, sobre o orçamento do bloco. No topo da cadeia do nonsense, Frau Angela Merkel, diante do fracasso da reunião, avisava que não decidir nada “não seria o fim do mundo”. O problema é que a crise atual talvez não aguarde até que os governos se arranjem. De um lado porque não há nenhuma grande liderança pró-Europa unida e com capacidade de convencimento, e de outro porque muitos senti-mentos separatistas e extremistas de toda sorte ganham voz e voto nos últimos dias.

O maior desafio da Europa é criar um nacionalismo europeu. Coi-sa difícil quando na verdade o movimento que há é de fragmentação mesmo dentro dos estados atuais, como a renovada vontade escoce-sa de sair do Reino Unido e da Catalunha dizer adéu para a Espa-nha. Na falta maior de lideranças apaixonadas pela Europa, o debate descambou para os detalhes e é bloqueado pelos próprios credos pa-trióticos dos maiores países.

As diferenças fundamentais seguem difíceis de equacionar e a crise econômica não tem uma única explicação. A imprensa inglesa ultrapassa o sinal da boa vontade e denuncia o caráter altamente artificial da prosperidade continental apontando o dedo para a França. Com irônica capa onde se vê uma saborosa baguete embru-lhada com dinamite, a Economist detona: “A bomba relógio no cora-ção da Europa”.

O revide também vem na capa, dias depois, do parisiense Le Mon-de: “A Europa refém dos britânicos”. As analogias com o terror, em que os terroristas econômicos são sempre os outros, revela a irrita-ção diante da opinião divergente. O clima de enfrentamento não é comum, já que os dois jornais (a Economist, idiossincraticamente, se diz um jornal e não uma revista) são liberais politicamente, com ligei-ra diferença de opinião econômica que não é originária de debate esquerda-direita, mas apenas de estilo.

O Le Monde é menos ortodoxo economicamente; enquanto o Eco-nomist tem o ar de mais “responsável” pelo que escreve. Sentindo-se porta-voz do establishment mundial, parece ver o Le Monde como um jornal de província, ainda que essa província seja Paris. Mas a dife-rença fundamental é mesmo a de que há, outra vez, um ponto de vista francês e um britânico para a Europa. Enquanto o Reino Unido sente-se mais à vontade com o mundo atual como um todo — que é, aliás, sua criação intelectual —, a França, completamente concen-trada em Paris, tem uma estrutura institucional muito reticente em

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157157Em torno de um nacionalismo europeu

ver-se diluída na Europa, especialmente onde a Alemanha, com o poder já desconcentrado entre várias regiões, é, sem dúvida, maior à primeira vista. E quem está disposto a corrigir assimetrias partilhan-do poder com outros países?

O maior problema para a Europa hoje é a França. Não por ques-tões meramente econômicas, mas porque o país não trabalha pela união política do continente. Não por medo do ostracismo político de Paris no longo prazo, mas, talvez, por ser uma questão de honra não abalar a bem estabelecida estrutura burocrática francesa, congelada e hierarquizada. Já o Reino Unido insiste na sua vocação global. Em Londres, ser excluído ou estar de costas para o continente é só uma questão de ponto de vista.

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Desafios aos cientistas africanos. A transição socialista

Paulo Alves de Lima Filho

O fundo da noite e nossos mortos

Quando em 2009, em sua translação pelo mundo, após 26 anos, Yussuf Adam voltou a encontrar-me em São Paulo, ofereceu-me o livro feito de sua tese de doutorado Escapar aos dentes do crocodilo e cair na boca do leopardo, desafiou-me, em sua dedicatória, a prepararmos a próxima revolução. Afinal, ela é a pátria de não poucos de nossa geração e desde há muito nos esforçamos para decifrá-la.

Aceito o desafio com leve prazer, pois estarei escrevendo a nós e a mim próprio quando éramos jovens e a revolução socialista nos parecia ser uma criança em rápido crescimento. Escreverei, é certo, desde agora, desde o visto e revisto nestes anos mais recentes, cheios de tudo o que supomos ter aprendido sob os escombros de uma re-volução que se deixou cair como um balão e despedaçou-se irreme-diavelmente. Foi assim que, então, fechou-se um ciclo histórico em-pós do qual a contrarevolução circulou lépida e fagueira com sua grande capa preta, dedicada a perorar regras e conselhos sua arcaica melopeia pelas esquinas, às escâncaras. Falamos, pois, desde uma noite profunda, tão mais escura que todas as que a antecederam, pois falta-nos ainda afirmar a teoria universalmente reconhecida, ex-plicativa dessa catástrofe. Mais, por nos faltar a teoria, falta-nos o essencial e, assim, o projeto de futuro que nos permita prosseguir a marcha contra o capital.

Presenciamos o último ato das revoluções socialistas do século XX, ainda em processo, ainda em moagem nessas alturas do século XXI. Mas os grãos para fazer a farinha do bolo do entendimento já foram desde há muito lançados. Foram os fortes ventos da intolerância e da ignorância estatalmente organizada que desmantelaram as frágeis cidadelas da teoria, os responsáveis por esta situação de desamparo e fim da história nas hostes do materialismo crítico, por esta fanada gloríola de um capital simultaneamente vitorioso e já entrado em falência terminal. Coisas da história, tema universal, ainda mais para aqueles que a vivenciaram. Na realidade, um complexo de temas, an-tes de tudo aqueles a entrelaçar indissoluvelmente a teoria, o partido

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da revolução e as formas particulares do desenvolvimento histórico dos territórios coloniais do capital. Mais especificamente o objeto des-te trabalho é o limite histórico da transformação social ou o caráter truncado do processo histórico da transformação social.

Escrevemos, então, desde o nosso território comum, a pátria da liberdade e da revolução, desde a pátria da emancipação dos traba-lhadores. Ainda mais porque nascemos na longa noite da invenção colonial, geradora de vastos territórios nos quatro continentes, pos-tos de vanguarda para a exclusiva acumulação do capital, espaços hipermodernos recriadores da escravidão para a exclusiva acumula-ção de valores.

As revoluções socialistas do século XX

As revoluções socialistas do século XX colocaram com a máxima dramaticidade a tragédia do discorrer da transição comunista, a abarcar todos os seus momentos nodais, a questão da teoria, sua relação com o partido prático da revolução, do sentido histórico des-ta e seus limites nos universos particulares dos quais vingaram.

Antes de tudo, diga-se que o que está posto não é a revolução, mas a transição comunista esquecida de seu sentido. De pronto, a primeira questão teórica, as etapas socialista e comunista são uma invenção alheia e não contemporânea a Marx. Invenção que obscure-ce a vital segunda fase e, ao fixar-se exclusivamente na primeira, condena o comunismo a um horizonte utópico, negando o sentido do comunismo concebido pelo seu fundador alemão. Faz-se passar como interpretação da sua Crítica do Programa de Gotha, escrito en-tre abril e maio de 1875 e somente publicado em 1891, mas ali se fala é da “primeira fase da sociedade comunista”.

Por sua vez, a própria Crítica transformou-se em centro revelador do sentido do que viria a ser o partido do comunismo e das relações que este estabeleceria com a teoria e, por último, com a revolução logo mais renomeada de socialista. A trama da Crítica do Programa de Gotha, da véspera do congresso do futuro partido operário que unificaria as duas organizações maiores do socialismo alemão, eise-nachianos e lassaleanos, até a sua edição truncada e extremamente dificultosa em 1891 pelo partido alemão e primeira edição completa na URSS, em 1932, revelaria o processo da ascensão e afirmação duradoura da ditadura dos práticos nos partidos formais do socialis-mo e comunismo e a consequente subordinação, subalternização, repressão e exílio da teoria aos ditames destes déspotas socialistas.

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Processo esse que está na base do fracasso do autoproclamado so-cialismo real e suas emanações ideológicas, até a decadência termi-nal do comunismo político atual.

É evidente que essa evolução proclama uma fase histórica da mi-séria da teoria, de finais do século XIX até os nossos dias, entendida esta como momento e resultado da produção livre e desimpedida da interpretação a mais totalizante possível da história por parte de uma camada especial de intelectuais, os intelectuais revolucionários do materialismo crítico. Momento vital para esses novos revolucionários e seu movimento, cujo sentido na história se põe como projeto radical da emancipação humana, vinculada natural e necessariamente à emancipação dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores.

Todas as revoluções populares, democráticas, proletárias e cam-ponesas, autoproclamadas socialistas, foram tragadas por suas pró-prias contradições, definindo um ciclo histórico que se encerra. To-das foram incapazes de se colocar como revoluções comunistas e, portanto, portadoras do projeto radical da emancipação. Permane-ceram encalacradas no campo da produção de mercadorias e, por-tanto, do capital, sem saberem estar ali ancoradas fatal e definitiva-mente. Além do mais, por não se saberem portadoras do projeto radical da emancipação, não souberam se sentir obrigadas a manter e ampliar de modo radical o poder direto e reto das maiorias traba-lhadoras. Os partidos, regidos por sábios socialistas, sabiamente regem suas revoluções, ou seja, os seus respectivos estados e, além disso, por obra imanente de sua sabedoria, as instituições deste e, por conseguinte, os cidadãos desse estado. Os déspotas socialistas, que ousaram censurar em vida os fundadores da teoria do materia-lismo crítico, negando-se a publicar a Crítica do Programa de Gotha em 1891 e, ao serem então ameaçados de denúncia pública por par-te de Engels, foram obrigados a publicá-la a contragosto e truncada, naturalmente viriam a se tornar déspotas sociais. Foram e ainda são incapazes de entender o caráter imanente das relações entre o pro-jeto da emancipação e suas necessárias formas sociais, políticas e econômicas, as quais deveriam determinar não somente o processo da revolução comunista, mas também e essencialmente, o partido da revolução. Muito menos a necessária relação entre a realização da teoria e a própria, tal como os jovens Carlos e Frederico sempre a entenderam, qual seja, a necessária plena liberdade da teoria, a qual não pode estar submetida a nenhum estado, instituição ou partido, ou seja, a teoria é instância autônoma do partido formal e deve produzir ideias capazes de influenciá-lo no sentido da luta a mais acertada em prol da emancipação dos trabalhadores. Dizia o

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161161Desafios aos cientistas africanos. A transição socialista

vetusto revolucionário alemão, quando seu amigo Marx já se fora, em 1891, na briga com os sábios dirigentes do partido operário uni-ficado, que o pior que poderia acontecer com este seria um seu di-vórcio com a teoria.

“Ainda mais isto: desde que vocês tentaram impedir à força a pu-blicação dos artigos e enviaram ao Neue Zeit o aviso de que no caso de repetição de algo semelhante ela teria, possivelmente, de ser leva-da ao conhecimento do poder máximo partidário e submetida à cen-sura, – desde então as medidas de conquista de toda a sua imprensa pelo partido a contragosto se apresenta a mim sob uma luz peculiar. Qual a diferença entre vocês e Putkamer, se vocês, em suas próprias fileiras, decretam uma lei contra os socialistas? Isso a mim, pessoal-mente, pouco me afeta: nenhum partido deste ou de outro país não pode obrigar-me a calar se eu decidi-me a falar. Mas a mim me gos-taria poder levá-los a pensar se não seria por acaso melhor vocês não serem tão suscetíveis e em seus atos um pouco menos prussianos. Para vocês, ao partido, é necessária a ciência socialista, mas ela não poder existir sem liberdade de desenvolvimento. É necessário então conformar-se com todos os aborrecimentos, e o melhor é fazer isso com dignidade, sem nervosismo. Mesmo uma pequena desavença, sem falar em uma cisão, entre o partido alemão e a ciência socialista alemã seria uma incomparável desgraça e vergonha.

Que a Direção e você pessoalmente conservem e devam conservar uma considerável influência moral na Neue Zeit e em tudo o que se imprime isso subentende-se. Mas com isso vocês devem e podem se satisfazer. No Vorvärts sempre se alardeou a inviolabilidade da liber-dade de discussão, mas esta não é lá muito evidente. Você em abso-luto não imagina a estranha sensação que causa esta inclinação a medidas violentas aqui no estrangeiro, onde as pessoas estão acos-tumadas a ver como sem qualquer constrangimento os mais velhos líderes partidários são convocados a depor ante o próprio partido (por exemplo, o partido Tory¸ do lorde Randolph Churchill). Além do mais, vocês não devem se esquecer de que em um grande partido a disciplina não pode ser tão severa quanto em uma pequena seita e que a lei contra os socialistas, que congregou em um único todo las-salleanos e eisenachianos (é verdade que de acordo com Liebknecht isso resultou em um programa excelente!) e obrigou a uma tal estrei-ta união agora já não mais existe..”

Dito e feito. Foi exatamente o que ocorreu na Alemanha e alhures por toda a parte, irradiado logo mais a partir da revolução russa, muito embora, do ponto de vista teórico, a concepção de organização do partido em Lênin concedesse à relação entre teoria e práticos a

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autonomia necessária e vital, tal como em sua Carta a um camarada, de 1902. Entretanto, dado que expressamente a situação da teoria não tenha sido proclamada como absolutamente independente vis-à--vis os práticos, sábios ou não, passou a vigorar, ao contrário do que se poderia imaginar, o império da sapiência destes, o que, de fato, transformou os partidos supostamente da emancipação em veras seitas comunistas pré-Marx. Este, ainda jovem, em 1842, já dizia, contrariamente ao sentido posterior do comunismo oficial:

Estamos firmemente convencidos de que não é no intento prático mas, sim, no desenvolvimento teórico das ideias comunistas onde está o verdadeiro perigo, pois aos intentos práticos mesmo sendo intentos em massa, quando se reputem perigosos poderão ser con-testados com canhões, mas as ideias que se apoderam de nossa mente, que conquistam nossa convicção e nas quais o intelecto forja a nossa consciência são cadeias às quais não é possível sub-trair-se sem desgarrar o nosso coração, são demônios que os ho-mens só podem triunfar entregando-se a eles.

Por último resta a questão da particularidade histórica dos espa-ços nos quais ocorreram as revoluções, das mais espinhosas para partidos fortemente controlados por sapientes práticos. Cumpre lem-brar a extrema complexidade dessas sociedades crescidas sob revo-luções burguesas conservadoras em todos os continentes, além do fato de que boa parte dessas revoluções autodesignadas socialistas ocorrerá nos campos nacionais ex-coloniais da África, Ásia e América Latina, situação bem notada já na revolução mexicana. Complexida-de tamanha a ponto de determinar parte essencial dos esforços teó-ricos dos materialistas críticos da América Latina ao longo do século XX e, também – pois estamos diante de sociedades capitalistas dis-tintas daquelas emergidas das poucas revoluções burguesas radicais na Europa e EUA –, álibi para as estratégias de infinito adiamento da centralidade da luta contra o capital e, por conseguinte, de adiamen-to da emancipação dos trabalhadores, exclusivamente convocados a desenvolver o capitalismo, mesmo ele sendo capitalismo da miséria, forma histórica dessas sociedades na órbita ex-colonial. Ocorre que no mundo colonial o trabalhador nasce escravo para e através do capital e evolui aos céus da liberdade vestido de miséria e desta não consegue se emancipar, pois, ali, a emancipação da miséria coincide imanentemente com a revolução comunista. Como esta, no marxis-mo vulgar, situa-se nas névoas de um futuro indeterminado, nada mais resta aos sábios práticos que tanger o rebanho operário para a sempiterna glória do capital. As suas revoluções socialistas tornam--se, portanto, reféns voluntárias do capital, transformado em rela-

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ção a ser mantida e mesmo reforçada, como no surpreendente caso da China, na qual o seu partido dirigente promove um cruel capita-lismo selvagem.

Yussuf Adam vai à guerra

Yussuf Adam busca a paralaxe e investiga a translação da revo-lução moçambicana e seu mergulhar na lama do passado recriado em novas condições históricas. Busca o complexo, abarcar ao máxi-mo os processos que confluem para tornar-se história, afirma con-vincentemente que a teoria oficial foi até o momento incapaz de apre-ender a realidade do colonialismo português, por desconhecimento ou conhecimento insuficiente, e, assim, pode a Frelimo sobrevalori-zar as suas conquistas e seu significado. Por último, a tese central versa sobre os elementos determinantes da economia política da transição (socialista), quais sejam as políticas de desenvolvimento, a ajuda e a desestabilização, cada uma delas realizada por um ator determinado – estado moçambicano, nações interessadas nesse de-senvolvimento, e forças contrárias a este desenvolvimento – as quais confluem contraditoriamente “de modo a criar uma espiral viciosa no sentido descendente”. Tal processo, portanto, diz ele, não é propria-mente uma revolução socialista, mas, sim, uma revolução social. As políticas de desenvolvimento criaram novas classes e camadas pro-prietárias e exploradoras, o capital internacional operou seus inte-resses através da ajuda, e as classes e setores das classes proprietá-rias pretéritas se organizaram contra as políticas de desenvolvimento contrárias aos seus interesses. De modo que:

(...) a revolução socialista era muito limitada no seu âmbito. Foi um processo de radicalização que proporcionou espaço de manobra para as elites nacionais que tinham poder político mas não econô-mico. Estabeleceu também como agenda, que era utilizada pelos membros da elite moderna, angariar apoio dos camponeses mo-çambicanos e dos que lutavam por uma sociedade alternativa, principalmente a juventude moçambicana oriunda de diversas eli-tes. O processo em Moçambique foi muito mais uma revolução so-cial do que uma revolução socialista.

Torna-se evidente que no Estado se organizam os intelectuais da nova ordem a ser promovida, guiados pelas emanações ideológicas dos práticos, dirigentes do partido da revolução, ambos os grupos chefiando as políticas de desenvolvimento, cujo resultado não é e não foi necessariamente o mais amplo e profundo conhecimento da his-tória que se pretendia conduzir ao socialismo.

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Conclui Yussuf com cinco postulados do que se deve propriamente fazer para as mais eficazes políticas de desenvolvimento. O primeiro deles assim reza: “Quanto melhor formuladas estiverem as políticas de desenvolvimento, tanto menos estarão sujeitas à desestabilização por parte das forças externas ou a desvios provocados pela ajuda externa.” A bem da verdade notemos que a questão do socialismo não foi aqui sequer posta.

A verdade é que permanecemos sob o império do capital, da pro-dução de mercadorias e da ausência histórica do sujeito determinan-te da emancipação dos trabalhadores, o povo sob a forma de classe trabalhadora, portanto, da ausência de consciência de classe por parte dos trabalhadores moçambicanos. Afinal, a emancipação dos trabalhadores somente pode ser obra dos próprios trabalhadores, momento central na obra de Marx. Somente os portadores da merca-doria força de trabalho, produtores de valor, poderão negar-se à pro-dução de mercadorias ao conceberem um novo sentido à produção e distribuição dos produtos de seu trabalho. Impossível a transição comunista sob o comando estatal, ainda mais através da produção de mercadorias. Dizia o velho amigo de Engels, em seu Rendimento e suas fontes:

Se a mercadoria e dinheiro não podem mais transformar-se em capital e, por conseguinte, não podem ser emprestados virtual-mente (in posse) como capital, não podem confrontar-se com o tra-balho assalariado. E, se não devem confrontar-se com ele na qua-lidade de mercadoria e dinheiro, de sorte que o trabalho não seria mais uma mercadoria, isto nada mais significaria do que retroce-der a um modo de produção anterior à produção capitalista, onde o trabalho se transforma em mercadoria e a massa do trabalho ainda aparece como trabalho servil e escravo. Tendo o trabalho li-vre como base, isso só é possível se [os trabalhadores]forem pro-prietários de suas condições de produção. O trabalho livre se de-senvolve dentro da produção capitalista como trabalho social. Serem proprietários das condições de produção significa que essas pertencem aos trabalhadores socializados produzindo como tais e subsumindo entre si sua própria produção como socializada. Que-rer o trabalho assalariado e com isso o fundamento do capital, como Proudhon, e ao mesmo tempo querer a eliminação de seus ‘males’ pela negação de uma forma derivada do capital é [procede como] principiante”.

Na ausência da teoria da transformação da qualidade na transi-ção comunista, o máximo que conseguimos é exigir a maior qualida-de possível das políticas de desenvolvimento, quando a questão exa-

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tamente está em qual desenvolvimento, para que e para quem. Yussuf nos brindou com um belo trabalho historiográfico e sua tese é verda-deira. A teoria desencaminhada, expressa nas políticas de desenvol-vimento, não poderia guiar a revolução ao socialismo e muito menos colocá-la nos marcos da transição comunista, já esquecida. A recria-ção da sociedade de classes e a manutenção e recriação da miséria ancestral são resultado inevitável, também ocorrido em todos os paí-ses coloniais da órbita lusitana. A literatura bem assinala esse pro-cesso com linhas forte e decididas. Pepetela, Mia Couto e Ascêncio de Freitas, com ênfase e suas formas particulares, nos brindam com a análise e descrição desse processo. É necessário incluirmos essas estupendas contribuições ao rol dos objetos da historiografia. Espe-ramos que os jovens historiadores assim procedam.

Falta-nos tempo para nos estender. Ainda voltaremos a dar pros-seguimento a esta pesquisa, trazendo a literatura à baila, dialogando com ela. Por ora, contudo, melhor ficarmos por aqui, pois o prazo de entrega deste trabalho expira.

Creio que o excelente trabalho do professor e meu amigo Yussuf Adam, que muito tive prazer de ler e reler é excelente marco para as novas investigações, ponto de partida para o futuro e para a revolução da emancipação das maiorias trabalhadoras com a qual sonhamos e sonhávamos naquele Moçambique de 1979 a 1983 e posta no mundo pelos fundadores do materialismo crítico desde a primeira metade do século XIX. Poderá, então, a teoria, escapar à sina de ver-se obrigada a vagar pelo purgatório, tal como ocorreu no século passado.

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IX. Memória

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Autores

Rafael MassuiaPós-graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) – FCL/Araraquara.

Martin Cezar FeijóDoutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Professor-pesquisador no programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura na EAHC-UPM e professor na FACOM-FAAP.

Edmilson CaminhaEscritor, jornalista. Presidente do Conselho Editorial da Câmara dos Deputados.

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A contribuição de Carlos Nelson Coutinho para a compreensão da literatura e da cultura no Brasil

Rafael Massuia

O complexo de questões teóricas e analíticas que o pensamento marxista abarca está presente na obra de Carlos Nelson Cou-tinho. No início dos anos 1960, então estudante de filosofia

pela UFBA, começa a produzir, apesar da tenra idade, textos de fi-losofia e de crítica literária; sua obra, como se sabe, passaria ainda por uma diversidade surpreendente de campos teóricos, indo do pen-samento social à teoria política, sempre embasado em pensadores cujas obras sinalizam uma renovação dialética – negando sempre no sentido de buscar a superação – da teoria marxista, casos de György Lukács e Antonio Gramsci, pensadores tão caros ao autor.

Nos seus estudos sobre a literatura, no caso específico do Brasil, Coutinho busca sempre assentar suas análises numa concepção própria do desenvolvimento sócio-histórico da sociedade brasileira. Essa questão, que vincula-se intimamente com a problemática do desenvolvimento da cultura e das artes no Brasil, ocupa posição de destaque na obra de Carlos Nelson Coutinho. Segundo o filósofo baiano, somente com a compreensão sobre a formação da sociedade brasileira, em todas as suas nuances e particularidades, é que se pode chegar a um entendimento mais profundo dos movimentos ar-tísticos e culturais que dela se originam.

O caminho específico através do qual o Brasil buscou alcançar um desenvolvimento social, como se sabe, foi aquele em que atraso e progresso caminharam juntos. O referido caminho, portanto, guarda semelhanças com aquele do desenvolvimento de países como a Ale-manha, cujo desenvolvimento socioeconômico Marx e Engels deno-

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minariam de “miséria alemã”, e também “via prussiana”, termo de que Lenin, seguido por Lukács, também se valeriam para designar os caminhos russo e húngaro, respectivamente, de desenvolvimento ca-pitalista, e que, segundo Coutinho, muito se assemelha ao conceito de “revolução passiva”, formulado por Antonio Gramsci.

Quando era necessário, produzia-se entre nós uma “moderniza-ção conversadora”. Esse caminho foi chamado por Lenin de “cami-nho prussiano” (ou “via prussiana”, como se prefere dizer agora); a partir do exame da evolução da economia agrária alemã, Lenin des-cobriu a universalidade dessa “via”, sua função como meio de evitar a revolução. Lukács analisou os efeitos da “via prussiana” sobre a supraestrutura política e cultural da Alemanha e da Hungria. Nestes últimos anos, diversos pesquisadores vêm observando as formas as-sumidas pela “via prussiana” no Brasil (KONDER, 1980, p. 18-19).

Com essa designação os autores referidos querem reafirmar o ca-ráter reformista “pelo alto” desses movimentos, em oposição a um processo de participação popular intensa e ativa, como ocorrido na França (cujo processo revolucionário serve de modelo máximo para tal designação). A lógica é de fazer-se as reformas necessárias antes que elas tornem-se uma demanda efetiva das camadas populares, visando com isso o desfavorecimento de qualquer possibilidade de organização popular, que consigo traria uma participação mais ativa e vigilante; como resultado, o que ocorre é uma evidente ruptura en-tre povo e nação, e a falsa impressão de um fatalismo imobilista en-tre os dois polos.

A via prussiana e a dimensão da cultura

As camadas intelectuais não passariam impunes a essas caracte-rísticas gerais do desenvolvimento da sociedade brasileira; desconec-tada do povo, grande parte dos intelectuais não via outra alternativa a não ser aquela de unir-se aos membros das classes dirigentes. O resultado não podia ser mais catastrófico: convertidos agora em me-ros apologetas, os intelectuais eram forçados a conviver diariamente com uma intensa miséria, tanto material quanto espiritual, que aco-metia amplos setores da sociedade brasileira, sem nada poderem fa-zer ou dizer em seu favor.

A única alternativa viável para essa intelectualidade, portanto, passou a ser a adoção das referidas alternativas “intimistas”. Aque-las correntes artísticas que propunham uma escamoteação da reali-dade, uma fuga idílica e o culto da arte pela arte, seduziriam pronta-

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mente esses indivíduos, que logo passariam a perceber a ocupação da condição de intelectual como um caminho privilegiado para a as-censão social.

Diferentemente do que ocorrera na Europa, o desenvolvimento do capitalismo no país vivenciou uma inesperada e contraditória conci-liação com as relações sociais pré-capitalistas, o que se refletia tam-bém na predominância de certos elementos de caráter arcaico numa sociedade já relativamente desenvolvida. No plano prático, o que se via era uma acentuação e distanciamento do citoyen do burgeois, uma ordem burguesa abortada desde o seu início, sem mesmo um vivenciamento do período heroico (como ocorrera no caso dos países europeus). A aliança entre burguesia e aristocracia rural selariam de vez o casamento entre o velho e o novo em nossa sociedade.

O romantismo indígena é uma das expressões mais claras dessa cultura “intimista”. Na tentativa de figurar uma realidade harmônica e, em alguns casos mesmo idílica, a figura do índio foi o meio privile-giado encontrado por tais autores para alcançarem essa finalidade. Note-se que não se trata de uma atitude deliberadamente conserva-dora, salvo possíveis exceções, os artistas nem sempre tinham cons-ciência que suas obras acabavam por adquirir objetivamente esse resultado; essa é a essência da ideologia, um conjunto de ideias que servem objetivamente para uma finalidade sociomaterial objetiva, sem que a vinculação entre pensador e obra se dê de forma imediata, mas antes mediada pela ilusão da justeza de sua práxis.

Especificamente no campo artístico os efeitos da “via prussiana” se mostraram bastante intensos e perversos. Num contexto históri-co-social acidentado e carente de conteúdos humanistas e democrá-ticos, a criação de grandes obras de arte ficou comprometida em função da carência conteudística não artística, mas da própria reali-dade social. Nesse sentido, romantismo e naturalismo surgem como duas faces da mesma moeda.

A particularidade da evolução da literatura brasileira também produziu outra característica singular: cada gênero literário especí-fico adquire um tipo de desenvolvimento próprio, uns mais favorá-veis ao florescimento de fecundas tradições literárias, outros me-nos. No primeiro caso, Coutinho cita a lírica, e no segundo os gêneros épico e dramático. O prosaísmo, o vácuo conteudístico da realidade social, parece influir mais negativamente sobre os gêne-ros literários “objetivos” – na caracterização de Coutinho –, de modo que a lírica contorna esse problema ao se constituir da síntese de uma subjetividade (ainda que concreta, não abstrata). Que se pen-

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se, no plano da lírica, em Castro Alves, e no plano narrativo em Manuel Antônio de Almeida.

O caso de Machado de Assis, por outro lado, adquire maior com-plexidade. Ao contrário de Almeida, que resgatou de um passado próximo a matéria de seu romance, Machado vale-se de sua situação presente, o período do Segundo Reinado (retratado de forma profun-da em suas obras). Situando suas obras, portanto, num período bas-tante negativo, onde o acúmulo das contradições havia alcançado uma situação limite, Machado pôde denunciar, através de suas obras marcadas por um tom de profunda ironia, as situações desumanas a que os indivíduos eram submetidos, em nome de um sistema social que garantia a perpetuação incessante da miséria humana.

Contudo, afirma Coutinho, Machado tornou-se um caso excep-cional por conseguir, mesmo estando situado num ambiente social tão desfavorável, captar o núcleo de resistência autenticamente hu-mano, conseguindo através de sua arte separar a aparência e a es-sência dos homens, fazendo baixar o véu da falsidade privatista, e fazendo-os perceber a real dimensão das coisas. Sobretudo em suas três principais obras – Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro – Machado atingiria um nível de excelência artística, sem nenhum paralelo entre os seus contemporâneo, de-nunciando a crueza e falsidade das manifestações do “intimismo”, que tinham por substrato o privatismo vazio como solução para to-dos os problemas. Por certo, uma falsa solução, que servia para es-camotear a realidade, pintando-a em cores amenas – o que Machado, como nenhum outro, nos revelou através de suas obras.

Nesse caso, Coutinho formula a relação entre Almeida e Machado como emblemática para a compreensão da evolução ulterior da lite-ratura brasileira. A inexistência de uma relação mais orgânica entre os dois autores indica não somente uma característica singular da literatura brasileira, mas antes uma característica mais geral da evo-lução social, cujos efeitos negativos também fazem-se sentidos nos campos cultural e artístico. Dessa forma, ao contrário do que ocorrera nos países europeus, onde um grande escritor geralmente abria as portas para evoluções posteriores da literatura, no Brasil cada escritor precisava encontrar um caminho próprio, visando com isso apanhar a sempre complexa e acidentada evolução da sociedade brasileira (con-sequência, como já vimos, do modo peculiar de desenvolvimento do capitalismo em solo nacional).

Em contraponto, portanto, aos países europeus, que vivenciaram um desenvolvimento histórico mais ou menos característico – talvez

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com exceção do caso da Rússia –, e onde se observou o florescimento de verdadeiras tradições realistas, que se pense no realismo inglês do século XVIII, do realismo francês do XIX e do realismo russo da vira-da do século XIX para o XX. Já no caso dos países que não vivencia-ram uma via de desenvolvimento clássico ao capitalismo, aponta Coutinho, esse curso “natural” não se observa.

O caso de Lima Barreto

Ainda em decorrência desse fenômeno, curiosamente, os diver-sos ataques proferidos por Lima Barreto contra Machado de Assis, mesmo que objetivamente equivocados, possuem uma validade rela-tiva. Dirigindo seus ataques a um suposto “anti-humanismo” em Machado, uma frieza em captar os elementos humano-sociais, Bar-reto identifica, erroneamente, a obra machadiana como uma mani-festação superior daquele “intimismo à sombra do poder”. Ao con-trário daqueles que buscavam imitar Machado, Lima Barreto propõe um rompimento e uma refundação do realismo brasileiro. Se foi pos-sível, durante a época imperial, ainda que forçosamente, proclamar--se a existência de uma estabilidade social, no período que a suce-deu não foi mais possível a sustentação dessa ilusão. O ingresso definitivo do país na ordem econômica mundial marcaria, de uma vez por todas, o fim de qualquer possibilidade de uma apologética imperial de cunho conservador.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma Lima Barreto deixa aflorar a sua veia crítica em relação à miséria humana imposta pela “via prus-siana”, e alcança nessa empreitada um nível de contundência avas-salador. Quando um indivíduo dedica-se de corpo e alma ao seu país, e o resultado que obtém em troca é a ridicularização e a marginaliza-ção, algo está muito errado. Suas esperanças e anseios, que culmi-nam no seu triste fim, simbolizam a possibilidade de uma ação hu-mana efetiva, não tanto por culpa do indivíduo Policarpo, mas sim da realidade social na qual se insere.

Quanto à sua estrutura, o romance Policarpo Quaresma consti-tui-se a partir do modelo clássico. Visando a composição de uma “totalidade intensiva”, dos elementos mais essenciais que constituem a realidade brasileira, Lima Barreto resgata alguns dos aspectos que melhor expressam o nosso tipo singular de sociedade, tais quais: a burocracia e o militarismo. Essas duas concepções e práticas car-regam em si o que há de mais negativo na sociedade do início do sé-culo XX; a burocracia, em suas múltiplas manifestações, atuando para sufocar os indivíduos em favor das classes dominantes, e o mi-

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litarismo, que tinha por objetivo último a exclusão definitiva do povo dos processos sociais.

Contrastando-o com o modernismo, Coutinho sublinha o que identifica como uma supervalorização do movimento artístico parale-lamente a uma sobrevalorização da obra do escritor carioca. O inega-velmente importante movimento teria deixado escapar a importante obra de Lima Barreto, não conferindo a ela a sua real importância no cenário da literatura nacional, que poderia, inclusive, ser identifica-da como a percursora definitiva da literatura moderna brasileira. O que geralmente ocorre, no entanto, é uma identificação idealista da Semana de 1922 como um divisor de águas na cultura brasileira, o que, como Coutinho procurou demonstrar ao longo do seu texto, é no mínimo uma injustiça em relação à obra de Barreto que, sobretu-do com o seu Policarpo Quaresma, fundamentaria as bases para o início de um novo e fértil período em nossa literatura.

Graciliano Ramos e o romance nordestino

Outra importante região do Brasil, o Nordeste brasileiro, que se apresentava então como a região mais típica (exemplar) das contra-dições do processo social brasileiro, aparece em toda a sua força e poder evocativo na obra do escritor alagoano Graciliano Ramos. A inquietação que começava a se alastrar, ainda que em movimentos mais ou menos superficiais, como ressalva Coutinho – daquilo que desembocaria na Revolução de 1930 – mostravam-se de forma mais contraditoriamente acentuada também na região nordestina.

A ausência da possibilidade de qualquer protagonismo político re-legava os indivíduos a uma solidão sem esperanças, frustrando as suas expectativas de melhorias. Somente com a Revolução de 1930, e com o sepultamento da República Velha, que viriam algumas mudan-ças, ainda que não tão profundas como de fato eram demandadas. O novo que o romance nordestino procura captar são justamente es-sas novas dinâmicas colocadas em movimento, rompendo relativa-mente com o grande sono sem sonhos da sociedade brasileira.

As lutas cotidianas pela busca por um sentido na vida, algo apa-rentemente ingênuo, ganham em Graciliano Ramos uma universa-lização sem precedentes na literatura nacional. A indignação aberta contra o velho regime brasileiro, sobretudo na região nordestina, ganha uma forte dimensão de sinceridade e humanismo nos relatos de Graciliano. Através da figuração de personagens típicos, que re-únem em si a máxima dimensão possível de universalidade presen-

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te em sua classe, o escritor alagoano atingiu um nível bastante ele-vado de realismo.

A primeira obra de nosso escritor, Caetés, escrita entre 1925 e 1928, segundo Coutinho, permanece ainda no campo do naturalismo. Superando o descritivismo de Caetés, em São Bernardo, Graciliano, de 1934, demonstra todo o seu realismo na figuração do conflito entre homem e mundo – eixo central do romance moderno. Colocando-se à favor da verdade artística, Graciliano adota uma posição abertamente humanista, que está constantemente compromissada com a denúncia das misérias a que o homem é submetido em nome da lógica capitalis-ta. A luta entre indivíduo e sociedade, com a superação do amesqui-nhamento da vida privada e solitária, constitui-se, portanto, como a pedra de toque da práxis artística de Graciliano.

São Bernardo tem como temática, portanto, a moderna luta emancipatória contra a alienação humana; ou, nas palavras do au-tor, “[...] trata-se do conflito entre as forças da alienação e do huma-nismo, encarnada nas classes sociais brasileiras” (COUTINHO, 2011, p. 155). Através das personagens Paulo Honório e Madalena, os con-flitos da sociedade brasileira ganham viva concretude.

Ao contrário do que ocorreria em suas obras anteriores, em Vidas Secas a vida no campo seria retratada de um diferente ângulo: se em São Bernardo as relações sociais do campo apareceriam como resul-tado da penetração do capitalismo, na obra de 1938 a realidade figu-rada apresentaria características pré-capitalistas, em função do iso-lamento geográfico e, sobretudo, social do sertão nordestino (trata-se de um caso exemplar das deformações produzidas pela aliança entre velho e novo, onde o novo não pôde emergir, calcificando e intensifi-cando a miséria do velho). Coutinho nota em Vidas Secas uma estru-tura formal singular: visando adequar a figuração da realidade agro-pastoril nordestina à estrutura romanesca, Graciliano se vê forçado a elaborar o seu relato numa realidade relativamente monótona.

O “nomadismo” de Fabiano e família, como sugere Coutinho, não ocorre em função de determinações predominantemente naturais. É claro que a escassez de chuvas é um fenômeno natural, mas a sub-missão do homem ao ambiente é um fenômeno essencialmente so-cial, e que decorre do tipo específico de desenvolvimento que aqui se estabeleceu. A inexistência de qualquer condição digna atesta o ca-ráter profundamente excludente de nossa sociedade.

O monopólio da terra, portanto, aparece como a principal causa dessa modalidade de miséria social. As grandes propriedades rurais, comuns desde a época da colonização, garantiriam a sua transmis-

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são por via hereditária, solidificando a tradição coronelista de grande parte dos estados das regiões Norte e Nordeste. A luta de Fabiano – ainda que este não o saiba –, assim, não é uma luta travada contra a terra, mas antes contra uma entidade social profundamente enraiza-da, mas que possui causa e solução bastante concretas, ainda que constantemente ignoradas.

Em meio a esse ambiente inóspito e miserável (tanto econômica quanto humanamente), Fabiano vê-se passivo e incapaz de uma rea-ção efetiva. O lavrador, em consequência de sua condição de extrema simplicidade, torna-se alvo fácil de exploração, o que ocorre tanto por parte do seu patrão, quanto do autoritarismo gratuito ao qual se vê submetido por parte do “soldado amarelo”, que simboliza a prote-ção – com contornos repressivos – despendida pelo braço armado do governo aos latifundiários.

Nessa perspectiva, a própria integração de Fabiano à lógica capi-talista parece ser o seu objetivo. Trata-se, aqui, de buscar inserir-se na lógica de um sistema que explora os indivíduos, mas que, tendo--se em vista a situação de miséria quase absoluta a qual os lavrado-res se veem submetidos – que tem como ponto emblemático máximo a inversão humanizadora da cachorra Baleia que, em contraste com a bestialização da família de Fabiano, destaca-se por características propriamente humanas –, significa um avanço substantivo. Por certo que, como consequência do ingresso almejado, novos problemas sur-giriam, mas o realismo da obra de Graciliano mostra-se particular-mente forte aqui: a única possibilidade que se apresenta concreta-mente a Fabiano é essa, e suas escolhas se limitam às suas possibilidades concretas.

Prelúdio de uma nova interpretação literária

A obra de Carlos Nelson Coutinho, portanto, possui um elevado valor imanente, ainda que sua influência, infelizmente, tenha ficado restrita ao período histórico na qual foi concebida. Seus estudos sobre a literatura brasileira – mas também aqueles, igualmente im-portantes, sobre a literatura universal, com destaque para a reava-liação de pensadores modernistas como Kafka e Proust, e para a análise da incipiente literatura estadunidense –, apesar de escassos e restritos a um período de sua atividade intelectual, compõe uma unidade fundamental. Na tentativa de compreender autores como Lima Barreto e Graciliano Ramos, Coutinho colocou-se a árdua ta-refa de estabelecer bases para uma compreensão totalizante da lite-ratura brasileira.

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Será tarefa vindoura a operação de um reexame do pensamento histórico-crítico literário de C. N. Coutinho, no intuito de colocar as suas formulações à prova, sugerindo tantas outras, que podem ou não vir a ser mais acertadas e precisas. No entanto – e isso nos pare-ce bastante claro –, somente na medida em que nos valermos da sua obra, de sua hipótese para o intricado e complexo desenvolvimento literário no Brasil, é que estaremos em condição de alçar novas com-preensões e sentidos de nossa história cultural.

Referências

COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideais e formas. 4 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

______. Lukács, Proust, Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

KONDER, L. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980b. (Biblioteca de Ciências Sociais)

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Um historiador que viveu seu tempo

Martin Cezar Feijó

O historiador inglês Eric J. Hobsbawm, morto aos 95 anos no primeiro dia do mês de outubro de 2012, escreveu em sua autobiografia intitulada Tempos interessantes (São Paulo,

Companhia das Letras, 2002), que a autobiografia de um intelectual deve tratar necessariamente de suas ideias, atitudes e ações, mas não deve ser uma peça de advocacia. O que, é claro, também deve valer para uma biografia. Hobsbawm chama a atenção para o fato de que a imprensa de modo geral sempre estranhou sua fidelidade ao comunismo mesmo depois da queda do muro de Berlim. Ele também nunca escondeu aceitar a denominação que acompanhava sempre seu nome, a de um “historiador marxista”. Ou o “último comunis-ta vivo”, não sem uma dose de ironia, apresentando-se sem medo em sua integridade, e honestidade intelectual, como se fosse tratado como um dinossauro.

Ninguém precisava lembrar a ele uma perspectiva crítica e auto-crítica que o acompanhou em sua trajetória intelectual a vida toda. Seja na análise histórica, em que se considerava com razão um his-toriador profissional, ou na crítica de jazz, sobre a qual se considera-va, talvez com excesso de autocrítica, um crítico amador, pois era um gênero musical que conhecia profundamente, ao ponto de ter escrito uma excelente História social do jazz (no Brasil publicado pela Paz e Terra). Mas seja como historiador ou como estudioso do jazz, sempre soube de que lado estava.

Uma história do anticomunismo escrita por débeis mentais

Mesmo quando publicou seu livro mais famoso, Era dos extre-mos, que trata exatamente do século XX, no qual ele viveu intensa e dramaticamente, como comunista declarado, membro do Partido Co-munista Inglês, e que considerava este livro como não apenas como a obra de um intelectual, mas como de um “observador participante”, no sentido que os antropólogos dão ao conceito. Aspecto que não foi levado em conta pelo obituário publicado pela revista Veja, mais pa-

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recido com um relatório policial do Dops em tempo de ditadura do que um ensaio de jornalismo cultural isento e informativo, como de-veria ser da revista semanal que se apresenta como a mais importan-te do Brasil. Um tanto diferente, por exemplo, do obituário da revista The Economist (06/10/2012), em que o tom crítico não substituiu o respeito. A “mais importante” revista semanal do país tem uma ob-sessão pelo comunismo desde seu primeiro número, e ainda não se acostumou viver no mundo em que a Guerra Fria deve ser vista como assunto para historiadores.

Aliás, o texto da Veja merecia um título parodiando o excelente dramaturgo romeno radicado na França, Matéi Visniec, que escreveu A História do Comunismo contada aos doentes mentais (em tradução recente, de Roberto Mallet, lançado pela É Realizações): A história do anticomunismo escrita por débeis mentais... Pelo menos, no drama-turgo romeno, que não deixa de fazer uma crítica feroz, e verdadeira, ao estalinismo, o que não falta é humor, diferente do panfleto direi-tista da Veja.

E Hobsbawm pertence a uma geração que soube distinguir com muita dor a diferença entre a utopia do comunismo e a experiência histórica do estalinismo...

Mas não é desta hegemonia de direita que marca o contexto cul-tural atual no Brasil que se trata aqui, mas sim de registrar a impor-tância intelectual de Eric J. Hobsbawm no contexto em que viveu. Nascido em Alexandria, Egito, em junho de 1917, filho de Leopold Percy Hobsbawm, com Nelly Grun, austríaca da época do império austro-húngaro, bem mais jovem que o marido, ambos judeus. No momento em que se casaram, os respectivos países estavam em guerra, o que os obrigou a viverem em Alexandria, onde Eric nasceu. Quando a guerra terminou, mudaram-se para Viena quando ele já contava com dois anos de idade, o que o fez afirmar que o Egito, ape-sar de ter nascido lá, não pertencer à sua vida, diferente de Viena, onde aí sim, onde “começou minha consciente”, como diz em sua autobiografia.

O encontro com a História

Em uma Viena empobrecida, e família idem, em que as bases do nazismo estavam sendo criadas, apesar da existência de socialistas marxistas revolucionários atuantes, ele passou sua infância, e teve sua formação básica. Viena era “uma sociedade multinacional, mas não multicultural”, o que permitiu a facilidade com que Hitler ane-

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xou a Áustria. A “entrada triunfal de Hitler em Viena, sob aplausos”, mesmo que sua família tenha saído anos antes, em 1931, o que os salvou da fúria nazista. Por isto que Hobsbawm preferia a definição, com orgulho, de ser membro de “um povo em diáspora”, o que o au-xiliou a compreender um período de grandes migrações.

Hobsbawm aprendeu também a ver criticamente ao que mais tar-de chamou de “invenção das tradições” ao estudar como os naciona-lismos de qualquer forma foram criados – melhor dizendo, inventa-dos –, para justificar a cidadania de alguns em detrimento de muitos. Perdeu o pai em 1929, aos 12 anos de idade, e a mãe no mesmo ano que deixou Viena, quando não tinha 15 anos. Vivendo entre paren-tes, sua ida para Londres marca, na Universidade de Londres, sua descoberta do marxismo, e sua adesão ao Partido Comunista Inglês, em 1932, que se não foi perdoado pelos anticomunistas até hoje, permitiu ao jovem alto magro e feio descobrir, como afirmou com seu humor britânico, as vantagens de se tornar “inteligente”. E a História foi sua maior realização intelectual. Estudou o que chamou a era das revoluções, até concluir com seu estudo magistral sobre o breve sé-culo XX. Também soube identificar o que inicialmente chamou de “rebeldes primitivos” (formas pré-políticas de rebeldia) até desenvol-ver um estudo pioneiro sobre o banditismo social, onde compara Pancho Villa do México com Lampião do Brasil, não sem antes tratar do mito de Robin Hood na Inglaterra medieval.

No Partido Comunista Inglês, ao qual se manteve fiel até o fim, mesmo quando companheiros queridos o abandonaram sob protes-tos após a invasão de tanques soviéticos ter abortado uma revolta na Hungria e Krushov ter denunciado os crimes de Stálin. Mas isto não quer dizer, como afirmaram seus detratores, que tenha perdido sua capacidade crítica. Pelo contrário, Hobsbawm viu com bons olhos a trajetória que o Partido Comunista Italiano obteve após Gramsci. Um partido que soube defender o socialismo sem perder o senso crítico com os desmandos estalinistas. Trajetória que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) adotou após 1958, embora isto tenha sido abortado com o golpe militar de 1964.

Hobsbawm e o Brasil

Hobsbawm era poliglota, lia em várias línguas, e sua relação com o Brasil sempre foi muito intensa. Esteve aqui na primeira FLIP, em Paraty, onde se sentiu um pop star, um Mick Jagger, como ironizou. Chegou a dividir um gabinete com o historiador brasileiro Nicolau Sevcenko na Universidade de Londres, nos anos 1990. Era o fã, como

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muitos de nossa geração, compartilhando com o ídolo, a referência nos estudos historiográficos. Aliás, foi o próprio Nicolau, meu amigo desde o ensino médio, que me apresentou o historiador quando de seu lançamento em São Paulo de Era dos Extremos, referência histó-rica fundamental em meu doutorado na ECA-USP sobre Astrojildo Pereira, sob orientação de Celso Frederico.

Nos primeiros anos do século XXI, Hobsbawm não abandonou sua aguda percepção sobre as mudanças em curso. Refletiu em arti-gos e entrevistas sobre as perspectivas de um mundo novo, sem nun-ca abandonar uma esperança em um mundo melhor, inclusive com otimismo sobre os rumos do Brasil, o que não se coaduna com as perspectivas rançosas da nova elite de direita que ocupa os princi-pais espaços da imprensa nativa. Tipos que condenam soluções afir-mativas, ironizam sobre o “politicamente correto”, tripudiam sobre as mulheres e os gays, e brilham em cursos-livres para uma classe média antiga que não aceita conviver nos aeroportos com a emergên-cia de uma nova classe média. E, principalmente, afirmam que a distinção entre esquerda e direita não tem sentido. Como lembra Leandro Konder, quem diz isso, é sempre uma pessoa de direita.

Hobsbawm vai fazer falta. Vai fazer falta com sua perspicácia crí-tica e autocrítica. Com sua lucidez de um velho comunista que não tornou sua ideologia uma religião. Como o jornalista Noé Gertel, que como ele aderiu a um partido comunista em 1932; como o historia-dor Nelson Werneck Sodré, um historiador sempre combatido pela academia, mas muito lido por estudantes que querem entender a História do Brasil em seus meandros mais profundos; como Carlos Nelson Coutinho, que soube renovar, a partir de Lukács e Gramsci, o marxismo no Brasil.

Eric J. Hobsbawm, que sempre manteve, sem perder a profundi-dade, uma visão crítica e profunda, sem perder a esperança em um mundo melhor e sem abrir mão da importância de Marx na compre-ensão da História como devir, um historiador que viveu seu tempo.

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De tocador de tuba a grande maestro

Edmilson Caminha

Entre as grandes expressões da música erudita brasileira – Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, Villa-Lobos –, inclui-se Eleazar de Carvalho, cujo centenário do nascimento se co-

memora neste ano. Nascido na cidade cearense de Iguatu, em 1912, viria a brilhar como regente das maiores e mais importantes orques-tras do mundo, para surpresa de quem se lembrava do menino em incursões pelos quintais da vizinhança, sem muito gosto por livros ou por deveres que lhe ocupassem as horas.

Capitão do Exército e pastor protestante, o pai decidira que já era tempo de o moleque “aprender a ser homem”, e matriculou-o na Es-cola de Aprendizes Marinheiros do Ceará, em Fortaleza. À hora do almoço, Eleazar logo percebeu que aos músicos do quartel se desti-nava uma alimentação melhor. Na primeira oportunidade, procurou o maestro, com o olho na comida e o pensamento na barriga:

– Meu grande sonho, Mestre Lisboa, é fazer parte da banda. Sinto que nasci para a música, passar a vida tocando!

– Lamentavelmente não posso fazer nada, meu filho. A banda está completa, não falta ninguém...

– Veja aí, Mestre. Não há nem um lugarzinho? Pode ser qualquer instrumento...

– Não, infelizmente não tenho nada para lhe oferecer... Ah, espe-re: há uma vaga para tuba. Não sei se lhe interessa...

– Claro que me interessa! Sempre desejei tocar tuba, desde meni-no. Para mim, é o instrumento mais bonito!

E assim foi: a banda ganhou um tocador de tuba; o rancho, mais uma boca faminta para a boia especial; e a música, um maestro que brilharia pelo mundo afora, com a grandeza do seu talento e o valor do seu trabalho.

Logo deixa a capital cearense pelo Rio: entra para a Banda dos Fuzileiros Navais e, com apenas 17 anos, é aprovado em concurso

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para a Orquestra do Teatro Municipal. A partir de 1936, dirigirá por nove anos a Orquestra do Cassino da Urca. Em 1946, sem bolsa do governo nem a ajuda de ninguém, parte para os Estados Unidos com a ambição própria do bom cearense, talvez loucura para outros: re-ger nada menos do que as orquestras de Nova York, Boston e Filadél-fia. Eugene Ormandy, titular da última, foi cruel na avaliação: “Você precisará de 15 ou 20 anos para chegar aqui...”

Ao inacessível russo Sergei Koussevitzky, regente da Orquestra de Boston, fez saber que lhe trazia uma mensagem do governo brasi-leiro. Aberta a exceção para um encontro, diz-lhe o cearense, com a cara mais limpa do mundo:

– A mensagem é verbal, de saudação do Presidente do Brasil ao grande músico que é Vossa Excelência...

E pede, pelo amor de Deus, apenas cinco minutos para que lhe mostre o que sabe de música:

– Se julgar que não tenho nenhum talento, voltarei para o meu país e viverei da caça e da pesca.

Semanas depois, torna-se assistente de Koussevitzky, com um outro jovem de nome Leonard Bernstein... Recebe convites para reger em Chicago e New York. Meses depois, substitui o titular da Sinfôni-ca da Filadélfia, sucessor de Ormandy, a quem dá, apenas um ano depois, o troco pelo que ouvira do maestro. Manda-lhe cópia do con-trato e dois ingressos para uma apresentação, com a mensagem: “Veja onde já estou...”

Torna-se professor de música das universidades de Yale e de Wa-shington e da Juilliard School, em Nova York, respeitada pela exce-lência de mestres e alunos. Por 40 anos – com suas charmosas cãs de prata e a pele cor de cobre, herança indígena da mãe –, rege as principais orquestras da Europa e dos Estados Unidos, sem embargo da condição de diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfô-nica Brasileira, entre 1952 e 1968, e da regência da Orquestra Sinfô-nica do Estado de São Paulo, de 1973 até à morte, em 1996, aos 84 anos. À frente da OSB apresentou, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, os famosos “Concertos para a Juventude”, aos quais se de-vem a qualificação de instrumentistas e o interesse de milhares de jovens pela música erudita – principalmente a composta por brasilei-ros, Villa-Lobos em especial.

Hoje, no Ceará, o Governo do Estado mantém a Orquestra de Câ-mara Eleazar de Carvalho; a Universidade de Fortaleza promove, anualmente, o Festival Eleazar de Carvalho; e, em Iguatu, a Escola

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Maestro Eleazar de Carvalho transmite o legado grandioso do patro-no a estudantes que podem ter na música não apenas uma profissão, mas a arte que lhes salvou a vida. Neste ano, o Festival de Inverno de Campos do Jordão foi dedicado a ele, um dos entusiastas do evento a que dava relevo e prestígio.

Homenagens que até surpreendem, pela tradição brasileira da amnésia histórica, do mau gosto artístico e da ignorância cultural. Bom que assim seja com Eleazar de Carvalho, o maestro cearense que engrandeceu o Brasil e encantou o mundo. E pensar que tudo começou com uma tuba...

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X. Resenha

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Autores

José Antonio SegattoHistoriador, professor da Unesp de Araraquara.

Wilame JansenEconomista, presidente da Âncora Consultoria, e integrante da União Brasileira de Escri-tores/PE.

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Dialética, cultura e história

José Antonio Segatto

Uma quantidade excepcional e talvez incomensurável de livros, coletâneas, artigos, dissertações, teses etc. têm sido elabora-dos e publicados nas últimas décadas sobre os mais diversos

temas e problemas, esferas e aspectos da sociedade brasileira e entre eles há um número expressivo na área da cultura em geral e da lite-ratura em particular. Não obstante a vultosa quantidade, a imensa maioria desses trabalhos está entre aqueles que poderiam ser classi-ficados como prescindíveis e/ou colocados na vala comum da irrele-vância. O percentual dos que fornecem contribuição significativa e substancial para a compreensão do processo histórico brasileiro, como as investigações de Roberto Schwarz sobre a obra de Machado de Assis, é muito exíguo.

O resultado de alguns desses e de outros estudos do autor sobre literatura, cultura e relações sociais na formação histórica do país, são apresentados e/ou reapresentados na coletânea de ensaios e en-trevistas Martinha versus Lucrecia deste ano. Reunindo textos publi-cados originalmente em revistas e jornais, capítulos de livros, prefá-cio e posfácio, além de entrevistas, a antologia em pauta constitui um conjunto bem heterogêneo, enfocando temas e problemas os mais diversos: romance, poesia, teatro, arquitetura, música, teoria estética, filosofia, sociologia, política, história etc.

Do conjunto de ensaios constantes na compilação, podem-se des-tacar aqueles que tratam mais especificamente de literatura, dois dos quais – os mais relevantes – sobre a obra de Machado de Assis. O primeiro, “Leituras em competição”, compara análises de críticos

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nacionais e internacionais, produzidas nas últimas quatro ou cinco décadas sobre o escritor.

Desde meados do século XX – diz o ensaísta – o romance macha-diano entrou para a galeria de obras clássicas e universais. Sua obra passou a ser traduzida e estudada no exterior, em particular nos Estados Unidos. Consagrada como universal, a obra do escritor rece-beu o “selo de qualidade” (p. 20). Essa crítica embasada em teorias em voga como o new criticism, a desconstrução, os estudos culturais, a pós-modernidade etc. – porém, ao mesmo tempo em que valorizava seu caráter universal, questionava seu realismo ou a forma de repre-sentação, “concebida como estrangeira à história” (p. 12).

Para essa crítica, não seria, portanto, necessária a compreensão do processo histórico brasileiro para o reconhecimento da “qualidade superior de Machado” (p. 21). Ou seja, seria “um escritor pautado na tradição do Ocidente e não em seu país” (p. 21). Nesse sentido “[...] a ênfase na particularidade histórica seria um desserviço prestado à universalidade do autor” (p. 22).

Exemplar dessa corrente crítica é o importante estudo elaborado por Helen Caldwell em 1960, que, utilizando-se de Shakespeare como referência virou do “avesso a leitura corrente de Dom Casmurro” (p. 23), obtendo “resultados de tipo universal” (p. 26). Isso num am-biente “[...] como que atemporal e homogêneo das obras-primas do Ocidente, por meio da comparação abstrata de caracteres ou situa-ções, e de análises também elas universalistas” (p. 26).

Questionando esse enfoque interpretativo, Schwarz assevera que a obra não pode ser dissociada da experiência histórica ou da vida extraliterária. Dessa forma, a postura do narrador (de Dom Casmur-ro) não pode ser compreendida se não relacionada “[...] às particula-ridades do patriarcalismo brasileiro do tempo, vinculado à escravi-dão e clientelismo, empapado de autocomplacência oligárquica, além de vexado pela sombra do progresso europeu” (p. 27).

Paralelamente, no mesmo período, uma nova vertente crítica teria surgido no país, bem diversa daquela que, até então, julgavam Macha-do de Assis como um “clássico anódino” (p. 12). O romancista passa a ser reavaliado e o “[...] centro da atenção desloca-se para o processo literário da realidade imediata, pouco notado até então” (p. 13).

Em lugar do pesquisador das constantes da alma humana, aci-ma e fora da história, indiferente às particularidades e aos conflitos do país, entrava um dramatizador malicioso da experiência brasilei-ra. Este não se filiava apenas aos luminares da literatura universal,

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a Sterne, Swift, Pascal, Erasmo etc., como queriam os admiradores cosmopolitas. Com discernimento memorável, ele estudara igual-mente a obra de seus predecessores locais, menores e menos do que menores, para aprofundá-la. Mal ou bem, os cronistas e romancis-tas cariocas haviam formado uma tradição, cuja trivialidade pitores-ca ele soube redimensionar, descobrindo-lhe o nervo moderno e er-guendo uma experiência provinciana à altura da grande arte do tempo (p. 13-4).

As avaliações estéticas e/ou formais dessa vertente crítica – da qual o autor, Schwarz, sem “falsa modéstia” representaria o zênite – tornavam-se então “[...] inseparáveis do seu lastro histórico específi-co, obrigando à reflexão sobre o viés próprio da formação social ela mesma” (p. 15).

Da análise comparativa das duas linhas de interpretação da obra de Machado de Assis, Schwarz busca, a partir das diferenças, discu-tir a problemática do local e do universal. E o faz, tomando como exemplo uma interessante crônica de Machado, intitulada “O punhal de Martinha” de 5 de agosto de 1894.

No ensaio, estão colocadas indagações como: É possível ler um romance como o de Machado de Assis, tratando de problemas uni-versais, sem o conhecimento da realidade histórica em que o enredo é construído? A narrativa por si mesma já não oferece elementos e subsídios para a compreensão da realidade histórica particular? O conhecimento do processo histórico em que a obra está inserida e/ou foi produzida seria condição sine qua non para o perfeito entendi-mento da obra? Ou ainda, somente por meio do exercício analítico da dialética do singular, do particular e do universal seria possível apa-nhar a plena complexidade da obra? São essas e outras questões, cremos, que estão por trás desse debate.

O segundo texto da coletânea que trata da obra de Machado de Assis, “A viravolta machadiana”, é, de fato, uma síntese dos dois li-vros de Schwarz sobre o romancista: Ao vencedor as batatas, de 1977, e Um mestre na periferia do capitalismo, de 1990. Publicado originalmente em italiano no quinto volume (editado pela Einaudi em 2003) da coleção Il romanzo, organizada por Franco Moretti e outros, nele o crítico discute como nos anos 1880/1908 o escritor, em alguns romances e dezenas de contos com valor excepcional, superou em muito o que havia sido produzido na literatura brasilei-ra até aquele momento. Superação, no entanto, que não era uma ruptura, pura e simplesmente, mas – o crítico aqui incorpora teses de Antonio Candido – resgate dos românticos, seus predecessores,

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em outros termos, “[...] o mesmo complexo temático, ideológico e estético, agora sem a névoa protetora da cor local e da autocongra-tulação patriótica” (p. 276). Explicitando a proposição, afirma que Machado rearranjaria:

(...) a parafernália da ficção romântica de modo a sintonizá-la com uma questão histórica real, embutida nas linhas características da sociedade brasileira, que lhe imprimiam a nota específica. Burguês e escravocrata ao mesmo tempo, o Brasil dava forma mercantil aos bens materiais, mas não desenvolvia o trabalho assalariado, donde uma problemática especial, de classe, à qual aludem esses roman-ces. Assentado na agricultura escravista, cuja influência se esten-dia à vida urbana, o país fazia que os homens livres e pobres – nem proprietários, nem proletários – vivessem um tipo particular de pri-vação ou de semiexclusão. Não tinham como dispensar o guarda--chuva da patronagem [...] na falta da propriedade só a proteção salva alguém de ser ninguém, mas sem torná-lo um igual. Assim, as relações de favor, incompatíveis com a impessoalidade da lei, ou, pelo outro lado, inseparáveis de muito personalismo, intermedia-vam a reprodução material de uma das grandes classes da socieda-de, bem como o seu acesso aos circuitos da civilização moderna [...]. A marca discrepante que resultou daí sobreviveria à abolição da escravatura e veio até os nossos dias, funcionando ora como infe-rioridade, ora como originalidade, segundo o momento (p. 259).

Embasado em formulações de G. Lukács – presentes sobretudo em A teoria do romance, de 1916 –, segundo as quais o romance é a conversão de relações sociais em forma literária e no conceito de re-fração de T. Adorno, Schwarz elaborou, nas obras referidas e con-densadas neste texto, uma das mais importantes e polêmicas análi-ses da ficção machadiana.

Sua tese fulcral é a de que Machado de Assis realizou, nos ro-mances posteriores a 1880 uma das mais significativas interpreta-ções do Brasil no século XIX e mais, antecipou e/ou apanhou ten-dências e linhas da história do país, que viriam a ganhar configurações mais nítidas ou mesmo plenas no decorrer do século XX. Paralela-mente, tendo como ponto de partida a “interpretação” machadiana e agregando análises de Fernando Henrique Cardoso – presentes em seus estudos sobre capitalismo e escravidão, empresários industriais e dependência e desenvolvimento – Schwarz tem a pretensão, isso fica implícito e pressuposto, mesmo de construir uma nova teoria da história do Brasil, intentando caracterizar, em forma de síntese, as especificidades da nossa formação social periférica, inserida no cir-

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cuito de produção e reprodução global do capital em condições de subalternidade.

Parte, dessa forma, da proposição – sintetizada por um afiliado às suas teses – “segundo a qual Machado teria desenvolvido em seus romances a mais consumada interpretação do Brasil de seu tempo – e para além dele” (WAIZBORT, 2009, p. 408)1:

(...) a totalização contraditória mas funcional de capitalismo e es-cravidão concretizar-se-ia como forma estética em Machado, abrin-do inclusive perspectiva ampla o suficiente para focalizar o proces-so de formação nacional restropectiva e prospectivamente em seus períodos colonial e republicano (inclusive os períodos de ditadura).

Expondo em linhas muito gerais a interpretação de Schwarz da obra de Machado de Assis, entendemos não ser possível, no espaço de uma simples resenha, discutir mais minuciosamente a validade ou não dessa presunçosa operação analítica do romance machadia-no e suas implicações teóricas e históricas.

Outros dois ensaios sobre literatura retomam preocupações e problemas congêneres aos abordados nos anteriores sobre Machado de Assis. No primeiro, sobre a poesia de Francisco Alvim, denomina-do “Um minimalismo enorme”, Schwarz afirma:

Na grande tradição de Machado de Assis, o poeta conhece a ligação interna entre os opostos da sociedade brasileira e recusa as fixa-ções estereotipadas. Os sem-direito são capazes de civilidade pecu-liar, e também de truculência aprendida com os de cima. Ao passo que os esclarecidos aspiram à malandragem desculpável dos pe-quenos delinquentes, sem prejuízo dos momentos de altura amoro-sa ou reflexiva, ou de barbárie (p. 119).

Já no segundo sobre o último romance de Chico Buarque, Leite derramado, de 2009, “Cetim laranja sobre fundo escuro”, além de vários paralelos estabelecidos com Dom Casmurro, ao analisar a postura da personagem narradora, diz o ensaísta que temos aí “[...] uma situação literária machadiana, em que a crítica social não se faz diretamente, mas pela autoexposição ‘involuntária’ de um figurão” (p. 146). Enfim, temos nos dois textos os mesmos recursos teórico--históricos utilizados nos estudos sobre Machado de Assis, sendo mobilizados na análise.

1 WAIZBORT, L. Roberto Schwarz: entre forma literária e processo social. In: BO-TELHO, A.; SCHWARCZ, L. (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2009, p. 406 a 417.

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Há também um longo ensaio sobre a autobiografia de Caetano Veloso, Verdade tropical, de 1997, tratada como literatura. Segundo o autor, partes da autobiografia podem ser lidas “como um excelente romance de ideias” (p. 52), podendo, inclusive, serem colocadas “ao lado de congêneres literários ilustres” (p. 53), como Manuel Bandei-ra, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade. Feitos os elogios, passa a criticar a afetação do músico e sua dubie-dade política por manifestar opiniões condescendentes em relação ao golpe de 1964, por compartilhar “os pontos de vista e o discurso dos vencedores da Guerra Fria” (p. 109) ou por apresentar vacilações diante das posições da esquerda etc. O exame crítico da autobiogra-fia permite a Schwarz retomar e desenvolver antigas teses sobre o significado do tropicalismo já presentes em seu texto “Cultura e po-lítica”, produzido no início dos anos 1970. O ensaio, além da indevi-da caracterização da autobiografia como “boa literatura”, passa a impressão de um acerto de contas com as posições e postura política do músico. Ou seja, o artista é julgado por aquilo que foi e cobrado por aquilo que deveria ter sido e que não foi, e nem pretendeu ser, consoante os desejos do crítico.

Cabem ainda alguns comentários sobre um pequeno texto, inse-rido na coletânea, que, apesar de não tratar diretamente da literatu-ra, envolve um problema que é um dos pressupostos fundamentais de suas teses sobre Machado de Assis em particular e da formação social brasileira em geral. Trata-se de escrito que procura esclarecer, segundo o autor, mal-entendidos e incompreensões sobre seu en-saio, “Ideias fora do lugar”, publicado nos anos 1970, e que gerou muitas polêmicas. Nele, Schwarz procurava, tomando como referen-cial as teses de Marx a respeito da ideologia alemã, explicar o capita-lismo brasileiro e suas vicissitudes, no século XIX e posteriormente, na ótica da adequação/inadequação do ideário liberal numa socieda-de escravocrata. Agora, mais de três décadas após vir a público, o crítico – além de retomar o debate com seus críticos, como Alfredo Bosi e Maria Sylvia de Carvalho Franco, refutando seus juízos – rei-tera que seu objetivo jamais foi o de assegurar “que as instituições e ideias progressistas do Ocidente são estrangeiras e postiças em nos-sos países, mas sim de discutir as razões pelas quais parece que seja assim” (p. 167). Dito de outro modo pelo autor, “tratava-se de escla-recer as razões históricas pelas quais as ideias e as formas novas” provocavam uma “sensação de estranheza e artificialidade, mesmo entre seus admiradores e adeptos” (p. 167). Feitas as ressalvas e as devidas justificativas, confirma a tese de que o liberalismo no Brasil do século XIX foi “uma comédia ideológica original, distinta da euro-peia” (p. 169).

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Ao invés de simplesmente refutar as críticas, entendemos que seria muito mais profícuo ou procedente de sua parte debater com interlocutores que fizeram reparos e ponderações muito pertinentes às suas teses, como é o caso de Carlos Nelson Coutinho (Cultura e Sociedade no Brasil, 1990) e Luiz Werneck Vianna (Travessia: da abertura à Constituinte, 1986) ou com aqueles que elaboraram análi-ses com compreensões antagônicas às suas, como são os casos de Florestan Fernandes (A revolução burguesa no Brasil, 1974) e Emília Viotti da Costa (Da Monarquia à República, 1977). Não o fez, prova-velmente, porque poderia engendrar elementos que suscitassem fis-suras nos pilares de sua engenhosa e bem arquitetada (mas não tão sólida) teoria da história brasileira.

Os demais textos que compõem a coletânea, por tratarem de te-mas ou assuntos os mais diversos e por destoarem, até certo ponto, dos propósitos centrais desta resenha, pois têm como objetivo desde afiançar e homenagear até apresentar saudações e panegíricos a Gilda de Mello e Souza, Bento Prado Jr., Michael Löwy, Sérgio Ferro, J. A. Giannotti, Francisco de Oliveira (prefácio) e Pedro Fiori Arantes (ar-guição de trabalho de conclusão de curso de Arquitetura). Além des-ses, completam a antologia três entrevistas que abordam outros inú-meros assuntos, entre eles o do marxismo brasileiro. E aqui é necessária uma pequena digressão. Para Schwarz o marxismo exis-tente no Brasil até o início dos anos sessenta reduzia-se quase que somente àquele propugnado pelo PCB – “pobre”, “medonho”, “vulgar” etc. O “verdadeiro”, o “autêntico” surgiria, de fato e de direito, na USP com a constituição de um grupo composto por jovens professores e alunos (F. H. Cardoso, J. A. Giannotti, R. Schwarz e outros) para estudar O Capital, de Marx. Não cabe aqui avaliar os méritos da pro-dução teórico-histórica dos intelectuais marxistas uspianos – que a nosso ver é altamente relevante –, mas carece lembrar que: a) naque-les anos o PCB experimentava um processo de renovação que resul-taria num marxismo de intervenção política com formulações alta-mente inovadoras para a época e que foram vistas com desconfiança por alguns e como heresia por outros – inclusive pela corrente políti-ca com a qual o autor tinha identidade e/ou simpatia; b) havia um grupo de intelectuais, ligados ao PCB (C. N. Coutinho, L. Konder e vários outros), que desempenhariam importante papel na renovação do pensamento dialético, responsáveis, inclusive, pela introdução no país da obra de importantes intelectuais marxistas como Antonio Gramsci, George Lukács, entre outros. Se essas nossas observações são realmente plausíveis, não é menos lícito asseverar que: a) não se pode simplesmente ignorar ou apagar da história aqueles agentes e/ou pensadores, a não ser por desconhecimento ou má-fé; b) a tese do

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monopólio de um marxismo legítimo e certificado, decantado das im-purezas da política, pode estar a exigir retificações.

Se, de fato, o livro é uma miscelânea ou um pot-pourri que de tudo tem um pouco, é também e essencialmente expressão de uma ex-pressiva corrente de pensamento dialético e uma síntese de toda a obra anterior de Roberto Schwarz.

Sobre a obra: Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas, de Roberto Schwarz. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. 320p.

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Governança democrática

Wilame Jansen

No início do século XX, as cidades eram administradas pelo modo de governar tipo Governo Legal. Julgava-se que bastava ao operador (o burocrata) obedecer à lei para conseguir o re-

sultado esperado. A intensificação do processo industrial na metade do século provocou a mudança para o modo Governo Gestor. Era o setor público aderindo à eficácia e à eficiência apregoadas pelas em-presas privadas.

Entretanto, no século XXI, o Governo Gestor não dá mais conta sequer de entender as rápidas transformações das sociedades-redes, ou sociedades do conhecimento, e tende a ceder lugar à Governança Democrática, novo modelo de governar cidades.

As sociedades do conhecimento exigem hoje um governante que seja, mais do que gestor, o facilitador da capacidade de organização e ação da cidade. Na outra face da moeda, o governo necessita da participação cidadã na construção de uma cidade voltada para o de-senvolvimento humano. Na conjugação desses interesses é que se dá a Governança Democrática. Esse modo de governo já se insere como opção nas pequenas cidades do mundo ocidental onde reinam as democracias consolidadas.

Esse é o tema do livro Governança Democrática: construção cole-tiva do desenvolvimento das cidades, do renomado escritor espa-nhol Josep Pascual Esteve (com tradução do mineiro João Carlos Victor Garcia e recém-publicada pela Fundação Astrojildo Pereira, 216p., 2012).

O autor adverte que mudança na forma de governar as cidades ou municípios, exposta em seu livro, não é apenas um desejo ideológico de aprofundar a democracia, e sim a constatação de que o mundo está vivendo uma transição da sociedade industrial para a socieda-de-rede ou sociedade do conhecimento. E isto significa, diz Pascual: “(...) uma mudança social tão importante como foi a passagem da sociedade agrícola e artesanal à sociedade industrial”.

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Por outro lado, Josep Pascual considera que nenhum governo local dispõe da totalidade dos recursos necessários para fazer frente ao tamanho dos desafios impostos ao seu território por esse mundo em transição. Tampouco esse governo local possui a visão abrangen-te de todas as aspirações do conjunto da sociedade para o seu muni-cípio, cidade ou bairro.

Portanto, será preciso fortalecer a capacidade de organização e ação (Coesão Social) do município, apoiando a intensificação do seu capital social (relacionamento das redes) e garantindo a participação cidadã na construção do bem-estar social.

Nas 216 páginas do livro, o autor disseca, numa linguagem clara e objetiva, o modelo teórico da Governança Democrática, descreve as técnicas necessárias para implantá-lo, e discute exaustivamente os conceitos, nem sempre bem entendidos, do que seja bem-estar so-cial, Coesão Social, participação cidadã, capital social, sociedades--redes ou sociedades do conhecimento.

Com essa nova visão, Josep Pascual deixa claro que na Gover-nança Democrática é a função relacional da área social “(...) quem assume a relevância e o papel estruturante de todas as ações de go-verno”. Mas o autor destaca ser indispensável e de suma importância o apoio das funções legal e gestora na execução. Dessa forma, tem-se a garantia de que aquilo que foi decidido pela área social em parceria com a sociedade será executado com eficácia e eficiência, e dentro da legalidade obrigatória.

Reconhece que todo modelo de governar desenvolve simultanea-mente as três funções de governo, mas “(...) em cada tipologia ou modelo de governo existe uma função principal ou prioritária distin-ta, que desempenha um papel estruturante em relação às outras duas”. Na Governança Democrática é a função relacional que preva-lece sobre as funções legal e servidora/gestora.

Dessa forma, o governo relacional permitirá ao líder político o papel de organizador coletivo das redes e demais interações sociais do território, consciente de ser este o papel mais influente de um prefeito no desenvolvimento econômico, social e humano do municí-pio. Pascual enfatiza que o relacional não é apenas um enfoque. Como vimos, abrange um conjunto de técnicas e instrumentos efica-zes para o desenvolvimento humano. Técnicas essas que se renovam à medida que a gestão avança, permitindo, a cada momento, novo fortalecimento da Coesão Social – entendida como capacidade de or-ganização e ação.

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O autor, com disciplina e paciente determinação, não só enumera vários desses instrumentos, como descreve e comenta cada um de-les, tais como: metodologias de planos estratégicos; negociação rela-cional; técnicas de negociação, participação cidadã e apoio social às políticas públicas; métodos e técnicas de gestão de projetos em rede; gestão cultural empreendedora e cívica da cidadania; construção de consensos e direção sistêmica por objetivos.

Pascual insiste em reafirmar, de várias maneiras, o novo conceito de Coesão Social – básico para o entendimento da Governança De-mocrática. É interessante registrar a citação que o autor faz da ob-servação do escritório de coordenação do Programa Eurosocial:

De uma perspectiva individual, a Coesão Social supõe a existência de pessoas que se sentem parte de uma comunidade, participam ativamente em diversos âmbitos de decisão e são capazes de exer-cer uma cidadania ativa.

Levanta ainda uma série de argumentos para concluir que, agora, a Coesão Social deixa de ser consequência do desenvolvimento eco-nômico (entendido como crescimento da renda), “(...) e começa a ser entendida como um fator prévio ao desenvolvimento econômico e so-cial sustentado e sustentável”. Daí porque o líder eleito deve iniciar sua gestão estimulando a área encarregada da função relacional a buscar fortalecer a Coesão Social de sua cidade ou município. É um trabalho de mão dupla. A tarefa de dar impulso aos fatores que ge-ram coesão ocorre em paralelo ao trabalho de prevenção e canaliza-ção de situações conflituosas – naturalmente mais intensivas na so-ciedade infoglobal.

Dentre as rápidas transformações sociais decorrentes da passa-gem da sociedade industrial para a sociedade-rede, as mudanças no cotidiano das pessoas são as que mais se destacam. Nesse aspecto, a emancipação das mulheres e os avanços na qualidade de gênero contribuirão sem dúvidas para o fato de que tanto homens como mu-lheres assumam um projeto de cidade mais equilibrada, acessível, sustentável e equitativa, isto é, um projeto da cidade de todos.

Tudo é repensado a partir do ponto de vista da mulher. “A visão da mulher perpassa a cidade em sua totalidade”: a pedagogia ativa; acessibilidade aos equipamentos urbanos pelos portadores de neces-sidades especiais; gestão e maternidade de pessoas com problemas físicos, bem estar e autonomia dos idosos. “Questões que a divisão social do trabalho lhe impôs”.

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O autor advoga que a sociedade-rede ou sociedade do conheci-mento, a partir da entrada massiva da mulher no mercado de traba-lho, pode encerrar o período patriarcal, “(...) mas o certo é que hoje as mulheres já estão estruturando as relações sociais e os modos de conceber a vida cotidiana”.

O cotidiano da cidade da informação rompe também com os mo-delos referenciais de espaço e tempo da cidade industrial. Como se-parar hoje tempo de aprender, tempo de trabalhar e tempo de apo-sentar? Com o tempo real da internet, como fica o tempo/distância? Qual a restrição do fuso horário no trabalho? Daí porque os governos urbanos devem priorizar, sim, a organização interna do desenvolvi-mento de suas cidades, mas sempre antenados no processo de forta-lecimento da Coesão Social de outros centros urbanos do país e do mundo. “Os governos das cidades devem articular a ação local com a global”. Sobre a globalização, o autor não deixa de alertar que ela significa também novas formas de exclusão e pobreza para muitos países, notadamente os da África Subsaariana.

Os últimos capítulos do livro de Josep Pascual tratam do perfil do político eleito, necessário para liderar o processo Governança Demo-crática de uma cidade-rede, os valores e os atributos para a prática da governança.

As habilidades ou aptidões do perfil político para a prática da Governança são descritas e analisadas em detalhes pelo autor. Ele adverte não se tratar de habilidades pessoais de uma personalidade ou formação, porém “(...) habilidades e aptidões coletivas”. Isto é, aptidões construídas pelo eleito e equipe ou equipes técnicas que o assessoraram na sua atividade política na prefeitura. Transcrevem--se a seguir, sem os comentários pormenorizados do texto, as princi-pais habilidades:

• Visão de futuro para o território;• Iniciativa para a gestão da mudança: definição de objetivos;• Desenho de processos e organizações: capacidade de adaptação;• Comunicação e motivação: convencer e comover; e, • Construção de alianças: domínio das interdependências.

Os valores exigidos para a Governança são a liberdade de informa-ção, a circulação e o debate de ideias, a tolerância e o respeito às opi-niões e crenças dos outros e a humildade frente às suas próprias ideias.

A comparação do avanço da Governança Democrática nas peque-nas cidades europeias e o ganho democrático ocorrido nas cidades brasileiras, talvez reflitam os próprios estágios da democracia lá e cá.

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A partir da Constituição Federal de 1988, o Governo Central esti-mulou a criação dos conselhos municipais, com paridade definida entre representantes dos governos federal, estadual e municipal (50%) e membros da sociedade civil (50%) Esse espaço institucional foi muito bem recebido pela sociedade civil brasileira, organizada ou não. Acreditou-se, desde o primeiro momento, que os conselhos mu-nicipais repassariam à sociedade a corresponsabilidade de controlar os mecanismos e critérios do uso dos recursos públicos, e, como consequência, tornaria mais democrática a distribuição do bem-es-tar social oriunda das políticas públicas, conforme previsto na for-matação legal.

Assim, conselhos municipais foram criados nessas últimas déca-das para as diversas atividades econômicas, sociais, culturais e am-bientais, conforme as edições das políticas públicas federais e as voca-ções de cada município, tais como: Desenvolvimento Rural; Saúde; Educação; Cultura, Meio Ambiente, Juventude, Bem-Estar Social etc.

Teoricamente, como se vê, os conselhos seriam instituições que se prestariam como instrumentos de um modelo de Governança De-mocrática. Na verdade, entretanto, o funcionamento dos conselhos tende a repetir as práticas oligarcas, clientelistas e burocráticas da política brasileira.

O governo federal desenha as políticas públicas e define os recur-sos; os governos estaduais geralmente alocam contrapartidas de re-cursos materiais e funcionários conselheiros; os governos munici-pais fornecem os presidentes ou coordenadores dos conselhos; e os prestadores de serviços disponibilizam funcionários para a participa-ção nas reuniões periódicas.

As instituições da sociedade civil (associações comunitárias, reli-giosas, de moradores e das várias categorias dos trabalhadores – ru-rais e urbanos), na maioria das vezes, apenas arcam com a responsa-bilidade de comparecer às reuniões dos conselhos para cumprir formalidades de aprovar prestações de contas e outros procedimentos burocráticos. De resto, não dispõem do menor poder de barganha para fazer prevalecer as suas análises e recomendações, e quase sempre não têm sequer o respaldo da sociedade a que pertencem para protes-tar publicamente. De uma forma geral, esta é a avaliação que especia-listas e acadêmicos têm feito sobre os conselhos municipais:

“O maior risco decorrente desses limites, alertam os autores, ‘é a transformação dos conselhos municipais em estruturas burocráticas formais, subordinadas às rotinas administrativas das secretarias municipais, no sentido de responder aos procedimentos de aprova-

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ção de contratos e prestação de contas exigidas nos convênios esta-belecidos pelos programas estaduais e federais’”. (PEREIRA, Márcio Florentino, citando trabalho de Santos Jr., Ribeiro e Azevedo).

Apesar dessas constatações de que os conselhos, na maioria das vezes, se transformam em meras formalidades burocráticas, há um ganho significativo que corresponde ao aprendizado dos conselheiros sobre a legislação, os procedimentos burocráticos, e o fato de serem informados sobre as políticas públicas e os respectivos recursos des-tinados ao município.

Por último, volto ao livro de Josep Pascual Esteve, recomendando sua leitura aos verdadeiros líderes democráticos recém-eleitos das nossas pequenas e médias cidades, na certeza de que sua leitura po-derá ajudá-los a mudar o perfil de nossos políticos, e iniciar a implan-tação da Governança Democrática nas pequenas cidades brasileiras.

Sobre a obra: Governança Democrática: construção coletiva do desenvolvimento das cidades, de Josep Pascual Esteve. Tradução: João Carlos Victor Garcia. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2012. 216p.