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O MERCADOR DE VENEZA, DE SHAKESPEARE, E A COMPLEXIDADE HUMANA 1 Valéria Moura Venturella 2 A peça O mercador de Veneza foi escrita entre 1596 e 1598 e publicada pela primeira vez na Quarto em 1600 (BOYCE, 1990). Esta obra é classificada entre as comédias de Shakespeare – uma vez que culmina em um casamento triplo – mas seu tom equilibra doses semelhantes de comicidade, romantismo, melancolia e amargura. A peça inicia com o personagem que dá nome à história – Antonio, um rico mercador de Veneza – falando a seus amigos Bassanio, Graziano, Lorenzo, Salerio e Solano da depressão sem razão aparente que lhe assombra. Bassanio, por sua vez, revela a Antonio um problema de outra ordem: um nobre falido, ele necessita de dinheiro para poder fazer a corte a uma rica herdeira de Belmont chamada Portia. Antonio, cuja fortuna está investida em sua frota mercante, não tem no momento dinheiro em mãos para emprestar a seu amigo, mas se propõe a pedir um empréstimo a Shylock, um agiota judeu a quem Antonio despreza aberta e ruidosamente, oferecendo seus navios como garantia. Shylock aceita emprestar 3.000 ducados a Antonio mesmo que este se recuse a pedir desculpas pelas ofensas que costuma dirigir ao judeu. Os termos do empréstimo, no entanto, são bastante peculiares: Shylock não cobrará juros e também não aceitará os navios como garantia, mas exigirá que Antonio lhe entregue uma libra de sua própria carne caso não consiga honrar sua dívida. De posse do dinheiro, Bassanio parte com seu amigo Graziano para Belmont para tentar desposar Portia, que já havia sido cortejada por diversos outros pretendentes de diferentes nacionalidades, entre eles um príncipe marroquino e um príncipe aragonês. O pai de Portia, antes de morrer, havia determinado que qualquer pretendente à mão e à fortuna de sua filha deveria se submeter a uma prova: escolher dentre três arcas – uma de ouro, um de prata e outra de chumbo, cada uma com uma inscrição – aquela que contivesse um retrato de sua filha. O príncipe marroquino havia escolhido a arca de ouro, em cuja tampa estava inscrito: o que todo homem deseja” (SHAKESPEARE, 1990, II, vii, 5). Ao abri-la encontrou um crânio. O príncipe aragonês havia escolhido a arca de prata cuja inscrição prometia: “quem me escolher obterá tudo o que merece” (II, vii, 7). Ao abri-la, encontra a figura de um idiota. Portia revela a sua amiga Nessida ter ficado aliviada com o fracasso dos pretendentes 1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Narrativa, ministrada pela Profa. Dra. Regina Zilbermann no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2005. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

O Mercador de Veneza e a Complexidade Humana

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O ensaio faz uma leitura de O Mercador de Veneza, de Shakespeare, à luz da teoria da complexidade de Edgar Morin

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Page 1: O Mercador de Veneza e a Complexidade Humana

O MERCADOR DE VENEZA, DE SHAKESPEARE, E A COMPLEXIDADE HUMANA1

Valéria Moura Venturella2

A peça O mercador de Veneza foi escrita entre 1596 e 1598 e publicada pela

primeira vez na Quarto em 1600 (BOYCE, 1990). Esta obra é classificada entre as comédias

de Shakespeare – uma vez que culmina em um casamento triplo – mas seu tom equilibra

doses semelhantes de comicidade, romantismo, melancolia e amargura.

A peça inicia com o personagem que dá nome à história – Antonio, um rico mercador

de Veneza – falando a seus amigos Bassanio, Graziano, Lorenzo, Salerio e Solano da

depressão sem razão aparente que lhe assombra. Bassanio, por sua vez, revela a Antonio

um problema de outra ordem: um nobre falido, ele necessita de dinheiro para poder fazer a

corte a uma rica herdeira de Belmont chamada Portia. Antonio, cuja fortuna está investida

em sua frota mercante, não tem no momento dinheiro em mãos para emprestar a seu

amigo, mas se propõe a pedir um empréstimo a Shylock, um agiota judeu a quem Antonio

despreza aberta e ruidosamente, oferecendo seus navios como garantia.

Shylock aceita emprestar 3.000 ducados a Antonio mesmo que este se recuse a

pedir desculpas pelas ofensas que costuma dirigir ao judeu. Os termos do empréstimo, no

entanto, são bastante peculiares: Shylock não cobrará juros e também não aceitará os

navios como garantia, mas exigirá que Antonio lhe entregue uma libra de sua própria carne

caso não consiga honrar sua dívida.

De posse do dinheiro, Bassanio parte com seu amigo Graziano para Belmont para

tentar desposar Portia, que já havia sido cortejada por diversos outros pretendentes de

diferentes nacionalidades, entre eles um príncipe marroquino e um príncipe aragonês. O pai

de Portia, antes de morrer, havia determinado que qualquer pretendente à mão e à fortuna

de sua filha deveria se submeter a uma prova: escolher dentre três arcas – uma de ouro, um

de prata e outra de chumbo, cada uma com uma inscrição – aquela que contivesse um

retrato de sua filha.

O príncipe marroquino havia escolhido a arca de ouro, em cuja tampa estava inscrito:

“o que todo homem deseja” (SHAKESPEARE, 1990, II, vii, 5). Ao abri-la encontrou um

crânio. O príncipe aragonês havia escolhido a arca de prata cuja inscrição prometia: “quem

me escolher obterá tudo o que merece” (II, vii, 7). Ao abri-la, encontra a figura de um idiota.

Portia revela a sua amiga Nessida ter ficado aliviada com o fracasso dos pretendentes

1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Narrativa, ministrada pela Profa. Dra. Regina Zilbermann no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2005.2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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anteriores, pois ainda sonhava se casar com um homem que considerasse especial. Ao se

deparar com Bassanio, ela acredita ter encontrado o amor de sua vida, e tenta convencê-lo

a conhecê-la melhor antes de escolher a arca. Bassanio, no entanto, insiste em realizar a

prova imediatamente e escolhe a arca de chumbo, cuja inscrição diz que o pretendente que

a escolher deverá arriscar tudo o que tem. Ao abri-la descobre que será o marido de Portia,

que lhe oferece um anel como símbolo de sua união. Ao darem a notícia para Graziano e

Nessida, Portia e Bassanio descobrem que eles também estão apaixonados, e os quatro

planejam um casamento duplo.

Em Veneza, a filha de Shylock, apaixonada por Lorenzo, rouba dinheiro e jóias de

seu pai e foge com seu amante para Belmont durante a noite. Antes de sua fuga, ela revela

que sonha em abandonar a casa do pai e se converter ao cristianismo. Ao descobrir a fuga

da filha com seu dinheiro, Shylock corre pelas ruas em agonia, gritando: “meus ducados,

minha filha, meus ducados” e acusando Antonio de ter tomado parte no plano da filha.

Em uma cena especialmente curiosa, Shylock descobre que sua filha havia trocado

um anel que ele havia recebido de uma mulher chamada Leah – provavelmente sua esposa

falecida e mãe de Jessica – por um macaco. Nesta cena, Shylock lamenta a perda do objeto

de estima, e não seu valor em dinheiro, o que nos mostra os sentimentos que ele é capaz

de ter. Por outro lado, ao realizar uma troca tão fútil, Jessica evidencia o desprezo que sente

por sua família e sua história.

Chegam a Veneza rumores de que os navios de Antonio se perderam no oceano, o

que o privaria de sua fortuna e o impediria de honrar seu empréstimo com Shylock. O judeu

se satisfaz com a perspectiva de finalmente se vingar de Antonio, que tantas vezes havia lhe

ofendido em público e que havia conspirado para unir sua filha a Lorenzo.

Em Belmont, Bassanio recebe uma carta de Antonio em que ele lhe conta que

deverá pagar Shylock com sua própria carne, uma vez que perdeu seus bens. Quando

Bassanio narra a história a Portia, ela lhe instrui para voltar a Veneza com o valor do

empréstimo para livrar Antonio da obrigação com Shylock. Mesmo assim, ela e Nessida

decidem segui-lo, ambas vestidas como homens, para auxiliar Bassanio na defesa de seu

amigo.

Em Veneza, Shylock leva Antonio à corte de justiça presidida pelo Duque da cidade,

que roga ao judeu que reconsidere suas exigências. Quando Shylock se recusa a perdoar a

dívida, alegando que tratará o cristão do mesmo modo como sempre foi tratado por ele, o

Duque anuncia que está à espera de um expert em justiça de Belmont que deverá lhe ajudar

a resolver o impasse. Neste momento, Nessida, vestida como homem, entrega ao Duque

uma carta de um certo Doutor Bellario, de Belmont, anunciando que envia um jovem

advogado em seu lugar. O jovem advogado é Portia disfarçada como Doutor Balthasar, que

informa ao Duque que irá presidir o caso.

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Bassanio oferece o dinheiro para o pagamento da dívida, que Shylock recusa,

insistindo em receber a carne de Antonio. Após examinar cuidadosamente os termos do

contrato de empréstimo, Portia anuncia que ele pode tentar obter a carne, mas não pode

extrair uma gota sequer de sangue, que não consta no documento. Além disso, ela lembra

Shylock que, segundo a lei, ele, um estrangeiro, ao atentar contra a vida de Antonio, um

cidadão veneziano, terá sua fortuna tomada e dividida entre a vítima e a cidade, enquanto a

decisão quanto à sua vida ou sua morte estará nas mãos do Duque. Sem saída, Shylock

decide então aceitar o dinheiro oferecido por Bassanio, mas Portia insiste agora que o

contrato seja seguido à risca.

O Duque decide poupar a vida de Shylock, e ele anuncia que prefere a morte a

perder toda sua fortuna. Antonio pede ao Duque que a metade da fortuna destinada à

cidade seja devolvida a Shylock desde que ele se converta ao cristianismo. Antonio anuncia

também que a metade que lhe cabe será mantida em um fundo para Jéssica e Lorenzo, e

exige que Shylock torne o casal seus herdeiros.

Bassanio agradece “Dr. Balthazar” por ter salvo a vida de seu amigo Antonio,

oferecendo-lhe o que ele desejar. Portia, ainda no papel do advogado, pede a Bassanio o

anel com que havia lhe presenteado. Inicialmente Bassanio lhe nega o presente, mas acaba

cedendo após Antonio lembrá-lo que quase havia dado sua vida pelo amigo.

Portia e Nessida voltam a Belmont, seguidas por Bassanio e Graziano. Lá eles

encontram Jessica e Lorenzo. Portia decide atormentar Bassanio perguntando-lhe pelo anel,

mas o tormento dura pouco, pois ela revela ao amado todo seu plano para salvar Antonio.

A peça termina com o triplo casamento. Shylock e Antonio, porém, não vêem final

feliz. Shylock, tendo perdido sua religião, sua profissão (uma vez que, segundo as leis,

sendo cristão, não poderia mais conceder empréstimos a juros) e boa parte de sua fortuna,

torna-se um excluído. Antonio, por sua vez, apesar de receber a notícia de que seus navios

estão, na verdade, a salvo, continua mergulhado em sua melancolia e perde a única

atividade que parecia lhe oferecer algum prazer, que era ofender Shylock pelas ruas de

Veneza.

É possível destacar quatro temas preponderantes nesta história de Shakespeare,

que são: o conflito entre sentimentos – amor ou amizade – e interesses pessoais, a astúcia

feminina, o ódio e o perdão.

O conflito entre sentimentos e interesses pessoais aparece já no início da narrativa,

quando Bassanio revela necessitar de dinheiro para cortejar uma rica herdeira. Tendo um

padrão de vida bastante elevado e, havendo gasto sua fortuna, ele escolhe a futura esposa

segundo critérios materiais. Portia, por sua vez, parece sinceramente enamorada de

Bassanio ao conhecê-lo, uma vez que ele nada tem a oferecer a ela a não ser ele mesmo.

A decisão de Antonio de pedir um empréstimo a Shylock para beneficiar o amigo

revela outro conflito. Antonio vive em um constante estado depressivo e, embora não

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expresse claramente o motivo de sua tristeza, parece sofrer de um amor não consumado e

não correspondido por Bassanio. O fato de ele aceitar oferecer uma libra de sua própria

carne como garantia para um empréstimo em favor do amigo é um forte símbolo do

sentimento que carrega. Assim, embora Antonio pareça estar movido apenas por profundos

sentimentos, Bassanio tem grandes interesses em jogo, e aceita a oferta do amigo sem

qualquer prurido, revelando-se, neste momento, interesseiro, inconseqüente e mesmo

inescrupuloso.

O conflito existente entre Shylock e Jessica também é um ponto a destacar. Na única

cena em que aparecem juntos, Shylock demonstra afeição por sua filha. Para fugir com

Lorenzo, porém, ela engana e trai seu pai sem piedade e – aparentemente – sem motivos,

numa demonstração de esperteza, mas também de desprezo e desamor, o que contrasta

fortemente com a obediência e o respeito à memória do pai demonstrados por Portia, o

maior expoente da astúcia feminina na narrativa.

O pai de Portia, antes de morrer, determinou um modo peculiar de selecionar seu

marido: ao ler as inscrições nas arcas, cada homem projetaria nessa leitura suas

características e seus desejos. As incrições nas três arcas, que, de certo modo, garantiriam

ao pai de Portia algum controle sobre a escolha do pretendente da filha após sua morte, se

configuram como um forte elemento simbólico na narrativa.

A obediência de Portia à determinação paterna revela muito sobre seu caráter. Ela

consegue equilibrar a obediência às regras que lhe são impostas com a criatividade e a

determinação. Essa combinação é o que permite que ela livre Antonio do contrato com

Shylock. Para realizar essa tarefa, ela não só se veste como homem, como também está

certa de que será bem sucedida em sua defesa, acreditanto que realizará a defesa melhor

do que qualquer homem o faria: “Eu provarei ser o melhor dos companheiros, e usarei

minha adaga mais com mais graça” (III, iv, 64-65). Em sua defesa, ela se demonstra criativa

e impiedosa, ao encontrar no contrato termos que não só impedem Shylock de obter a libra

de carne, como também o forçam entregar suas riquezas a Antonio e à cidade de Veneza,

além de colocar sua vida em risco. É aqui que, na história, o ódio chega a seu ponto mais

alto.

O ódio, neste trabalho de Shakespeare, é um fenômeno em cadeia e parece estar

baseado unicamente em critérios étnicos. Os pretendentes estrangeiros de Portia são

descritos com desprezo através de características estereotipadas de suas origens: o

napolitano é grosseiro e obcecado por seu cavalo; o palatino não tem qualquer humor; o

francês é um bufão; o inglês não sabe falar qualquer outra língua; o escocês é mesquinho e

avarento; o alemão é um bêbado repulsivo. Já o pretendente marroquino e o aragonês

parecerem estúpidos com suas escolhas e com os resultados delas.

Antonio, um fraco que não encontra a energia necessária para tentar salvar sua

própria vida, em risco devido à cobrança do contrato, demonstra vivacidade nos momentos

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em que se dedica a ofender Shylock publicamente, no que é apoiado por seus amigos. As

ofensas não se dirigem à conduta moral ou ao caráter do judeu, mas ao fato de ser judeu e

de exercer a única profissão permitida a ele, que, impedido de estabelecer negócios na

cidade, empresta dinheiro a juros.

Shylock, por sua vez, alega detestar os cristãos por ter experienciado a

discriminação e o ódio toda sua vida. “A vilania que vocês me ensinaram eu vou executar”

(III, i, 37), afirma ele. Embora o personagem seja tratado com antipatia pelos demais –

inclusive por sua própria filha, que se demonstra ansiosa por abandonar a casa e a religião

do pai – Shakespeare nos faz refletir ao colocá-lo em situações ambíguas que demonstram

a complexidade de seu caráter . Ele se mostra vingativo e sanguinário ao exigir a libra de

carne de Antonio, mas clama por um tratamento mais justo e igualitário por parte dos

cristãos: “Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões;

alimentado com a mesma comida, ferido com as mesmas armas, submetido às mesmas

doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e refrescado pelo mesmo inverno e verão

que um cristão?” (III, i, 49-54). Quando Jessica foge com Lorenzo, ele parece estar mais

transtornado com a perda de seus ducados do que com a perda de sua filha. Em uma cena

posterior, porém ele mostra consternação ao saber que Jessica trocou o anel que havia

recebido de Leah por um símio. Nesse momento, sua dor não se deve à perda material

representada pela jóia, mas pelo desprezo da filha em relação a um objeto tão querido e tão

carregado de história.

Em uma leitura mais aprofundada da obra, percebemos que essa ambigüidade – um

traço humano tão característico – não está presente apenas nos sentimentos e no

comportamento de Shylock, mas perpassa as ações e interações dos personagens

principais. Bassanio, que no início da história colocara seus interesses acima da

preocupação com o destino do amigo, mais tarde se esforça para salvar sua vida e se

mostra grato ao advogado representado por Portia. Esta, que inicialmente parece doce,

obediente e apaixonada, se demonstra dura e inflexível no papel de advogada de Antonio. E

Antonio, que odiava Shylock acima de tudo, roga ao Duque pela vida do judeu, na única

demonstração de perdão de toda a narrativa.

Nessa cena, que determina o final da história, Antonio sai de sua inércia e rompe o

círculo de ódio estabelecido desde o início, demonstrando o motivo pelo qual seu nome dá

título ao trabalho. Este é um perdão, porém, que custa caro tanto para Shylock quanto para

Antonio. O primeiro, ao ser desapossado de sua religião, de sua profissão e dos ganhos de

uma vida inteira de trabalho, fica de mãos vazias. O segundo, terminado o julgamento, volta

à sua habitual melancolia, destituído agora até mesmo do único sentimento que podia

expressar abertamente, que era seu ódio pelo judeu. O infeliz destino desses dois

personagens pode ser interpretado como dois tipos diferentes de morte, que maculam a

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celebração do triplo casamento, estendendo o caráter complexo deste trabalho de

Shakespeare até o seu final.

Em Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, Edgar Morin (2002)

menciona Shakespeare como exemplo de um autor que soube expressar a riqueza e a

complexidade da natureza humana em seus trabalhos, através do pensamento, do caráter e

das ações de seus personagens. Morin, ao falar sobre a ética da compreensão, sustenta

que os grandes obstáculos à compreensão entre pessoas são a tendência humana à

redução do outro a suas características mais marcantes e a falta de percepção sobre a

complexidade de nossa própria essência. Ao realizarmos uma leitura cuidadosa de O

Mercador de Veneza, percebemos que Shakespeare é sempre surpreendente em sua

habilidade para nos mostrar as sutilezas, as contradições e as inconsistências humanas em

personagens com quem podemos nos identificar e com quem podemos realizar

aprendizagens.

REFERÊNCIAS:

BOYCE, Charles. The Wordsworth dictionary of Shakespeare. New York: Wordsworth Reference, 1990.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2002.

SHAKESPEARE, William. The merchant of Venice. In: CRAIG, W. J. The complete works of William Shakespeare. London: Henry Pordes, 1990.