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Tiragem: 46102 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 45 Cores: Cor Área: 19,98 x 23,03 cm² Corte: 1 de 1 ID: 42122808 04-06-2012 O mistério inglês e a corrente de ouro M il embarcações eram esperadas ontem para descer o Tamisa, em celebração do Jubileu de diamante da rainha Isabel II. Um milhão de espectadores era a estimativa às 8 horas da manhã de domingo. A essa hora, debaixo de uma chuva miudinha, milhares de pessoas começavam já a garantir os seus lugares nas margens do rio, para um espectáculo que iria começar seis horas mais tarde. Eram de todas as idades, vinham de todos os pontos do país e até de além-mar, ostentavam com orgulho todo o tipo de adereços, com destaque para a bandeira britânica e fotos de Isabel II gravadas em guardas-chuvas e impermeáveis. Dificilmente poderia ser encontrado um melhor exemplo do que Karl Popper me descreveu, em 1987, como “o mistério inglês”. Tinha acabado de conhecer pessoalmente o autor de A Sociedade Aberta e os seus inimigos, cuja leitura uns anos antes mudara literalmente a minha visão do mundo. E ele agora insistia que eu devia ir estudar e viver em Inglaterra, de forma a poder conhecer de perto “o mistério inglês”. Perante a minha surpresa, o velho filósofo anglo- austríaco falou-me com gravidade: “É difícil explicar, e por isso é tão importante vivê-lo. Nós devemos à Inglaterra a sobrevivência da democracia no século XX. Mas, antes disso, já lhe devíamos a mera plausibilidade da hipótese democrática. E ao império inglês devemos a expansão dessa plausibilidade pelos quatro cantos do mundo — aquilo que Winston Churchill chamou de ‘povos de língua inglesa’. É um mistério, podemos chamar-lhe ‘o mistério inglês’.” Contrariamente aos meus planos iniciais, fui de facto estudar para Inglaterra. E, nos 25 anos entretanto decorridos após aquela primeira conversa com Karl Popper, nunca me esqueci do “mistério inglês”. Das “descobertas” entretanto ocorridas, procurei dar conta num livrinho publicado pela Aletheia em 2010, precisamente sob o título O mistério inglês e a corrente de ouro — cujo ponto de partida reside justamente na conversa com Popper em 1987. Esse mistério inglês não era, afinal, apenas do conhecimento de Popper. Desde, pelo menos, o século XVIII, apaixonara os amantes da liberdade no continente europeu. Até à Revolução Francesa de 1789 — essa “doença infecciosa”, como lhe chamou Edmund Burke — o mistério inglês exprimia-se na seguinte interrogação: “Por que é que a Inglaterra tem um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto no continente existem sobretudo monarquias autoritárias e absolutas?” Depois de 1789, a mesma pergunta sofreu uma metamorfose: “Por que é que a Inglaterra mantém um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto na Europa temos agora a paixão pelo despotismo popular e republicano, no lugar antes ocupado pela paixão pelo absolutismo real?” Estas interrogações dominaram a reflexão política de grandes pensadores continentais. Em França, por exemplo, elas estiveram no centro das obras de Montesquieu, Tocqueville, Élie Halévy e Raymond Aron. Talvez tenha sido Halévy quem melhor captou, em breves palavras, o núcleo central desse mistério inglês, ao qual chamou “milagre da Inglaterra moderna”: “O verdadeiro milagre da Inglaterra moderna não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem nunca recorrer à Revolução.” Uma das melhores ilustrações desta versatilidade não revolucionária do “mistério inglês” reside numa passagem de Winston Churchill sobre a filosofia política de seu pai, lorde (Randolph) Churchill, um destacado parlamentar conservador. Disse Churchill sobre seu pai: “Lorde (Randolph) Churchill não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar- se os maiores defensores destas antigas instituições, através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso, esta corrente de ouro (golden chain), nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.” Ontem, ao longo do rio Tamisa, reapareceu a “corrente de ouro” de que falava Winston Churchill, essa misteriosa “união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso”. Sem essa “corrente de ouro”, não será possível sequer começar a entender o “mistério inglês” que apaixonava Karl Popper. E foi esse mistério inglês que permitiu a Inglaterra resistir a Hitler, inicialmente sozinha, e ser a primeira a denunciar a “cortina de ferro” soviética. Professor universitário, IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia. Escreve à segunda-feira Ontem, ao longo do rio Tamisa, reapareceu a “corrente de ouro” de que falava Winston Churchill João Carlos Espada Cartas de Varsóvia

O Mistério Inglês e a Corrente de Ouro

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Page 1: O Mistério Inglês e a Corrente de Ouro

Tiragem: 46102

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 45

Cores: Cor

Área: 19,98 x 23,03 cm²

Corte: 1 de 1ID: 42122808 04-06-2012

O mistério inglês e a corrente de ouro

Mil embarcações eram

esperadas ontem para

descer o Tamisa, em

celebração do Jubileu

de diamante da rainha

Isabel II. Um milhão

de espectadores era a

estimativa às 8 horas da

manhã de domingo. A

essa hora, debaixo de uma

chuva miudinha, milhares de pessoas

começavam já a garantir os seus lugares

nas margens do rio, para um espectáculo

que iria começar seis horas mais tarde.

Eram de todas as idades, vinham de todos

os pontos do país e até de além-mar,

ostentavam com orgulho todo o tipo de

adereços, com destaque para a bandeira

britânica e fotos de Isabel II gravadas em

guardas-chuvas e impermeáveis.

Difi cilmente poderia ser encontrado

um melhor exemplo do que Karl Popper

me descreveu, em 1987, como “o mistério

inglês”. Tinha acabado de conhecer

pessoalmente o autor de A Sociedade

Aberta e os seus inimigos, cuja leitura

uns anos antes mudara literalmente

a minha visão do mundo. E ele agora

insistia que eu devia ir estudar e viver em

Inglaterra, de forma a poder conhecer

de perto “o mistério inglês”. Perante a

minha surpresa, o velho fi lósofo anglo-

austríaco falou-me com gravidade: “É

difícil explicar, e por isso é tão importante

vivê-lo. Nós devemos à Inglaterra a

sobrevivência da democracia no século

XX. Mas, antes disso, já lhe devíamos

a mera plausibilidade da hipótese

democrática. E ao império inglês devemos

a expansão dessa plausibilidade pelos

quatro cantos do mundo — aquilo que

Winston Churchill chamou de ‘povos de

língua inglesa’. É um mistério, podemos

chamar-lhe ‘o mistério inglês’.”

Contrariamente aos meus planos iniciais,

fui de facto estudar para Inglaterra. E,

nos 25 anos entretanto decorridos após

aquela primeira conversa com Karl Popper,

nunca me esqueci do “mistério inglês”.

Das “descobertas” entretanto ocorridas,

procurei dar conta num livrinho publicado

pela Aletheia em 2010, precisamente sob o

título O mistério inglês e a corrente de ouro

— cujo ponto de partida reside justamente

na conversa com Popper em 1987.

Esse mistério inglês não era, afi nal,

apenas do conhecimento de Popper.

Desde, pelo menos, o século XVIII,

apaixonara os amantes da liberdade no

continente europeu. Até à Revolução

Francesa de 1789 — essa “doença

infecciosa”, como lhe chamou Edmund

Burke — o mistério inglês exprimia-se na

seguinte interrogação: “Por que é que a

Inglaterra tem um regime monárquico,

liberal e ordeiro, enquanto no continente

existem sobretudo monarquias autoritárias

e absolutas?” Depois de 1789, a mesma

pergunta sofreu uma metamorfose: “Por

que é que a Inglaterra mantém um regime

monárquico, liberal e ordeiro, enquanto

na Europa temos agora a paixão pelo

despotismo popular e republicano, no

lugar antes ocupado pela paixão pelo

absolutismo real?”

Estas interrogações dominaram a

refl exão política de grandes pensadores

continentais. Em França, por exemplo,

elas estiveram no centro das obras de

Montesquieu, Tocqueville, Élie Halévy e

Raymond Aron. Talvez tenha sido Halévy

quem melhor captou, em breves palavras,

o núcleo central desse mistério inglês,

ao qual chamou “milagre da Inglaterra

moderna”: “O verdadeiro milagre da

Inglaterra moderna não está em ter

sido poupada à revolução, mas em ter

assimilado tantas revoluções — industrial,

económica, social, política, cultural — sem

nunca recorrer à Revolução.”

Uma das melhores ilustrações desta

versatilidade não revolucionária do

“mistério inglês” reside numa passagem de

Winston Churchill sobre a fi losofi a política

de seu pai, lorde (Randolph) Churchill, um

destacado parlamentar conservador. Disse

Churchill sobre seu pai:

“Lorde (Randolph) Churchill não via

razão para que as velhas glórias da Igreja e

do Estado, do rei e do país, não pudessem

ser reconciliadas com a democracia

moderna; ou por que razão as massas do

povo trabalhador não pudessem tornar-

se os maiores defensores destas antigas

instituições, através das quais tinham

adquirido as suas liberdades e o seu

progresso. É esta união entre o passado e

o presente, entre a tradição e o progresso,

esta corrente

de ouro (golden

chain), nunca até

agora quebrada,

porque nenhuma

pressão indevida foi

exercida sobre ela,

que tem constituído

o mérito peculiar

e a qualidade

soberana da vida

nacional inglesa.”

Ontem, ao longo

do rio Tamisa,

reapareceu a

“corrente de

ouro” de que

falava Winston

Churchill, essa

misteriosa “união

entre o passado e

o presente, entre

a tradição e o

progresso”. Sem

essa “corrente de ouro”, não será possível

sequer começar a entender o “mistério

inglês” que apaixonava Karl Popper. E

foi esse mistério inglês que permitiu a

Inglaterra resistir a Hitler, inicialmente

sozinha, e ser a primeira a denunciar a

“cortina de ferro” soviética.

Professor universitário, IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia. Escreve à segunda-feira

Ontem, ao longo do rio Tamisa, reapareceu a “corrente de ouro” de que falava Winston Churchill

João Carlos EspadaCartas de Varsóvia