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O que pode incomodar mais do que uma mosca? Ninguém sabe de onde vieram e nem para onde vão as moscas, só sabemos que defendemos, feito soldados, a superfície de seja lá o que for para que o nojento inseto nunca pouse em cima. Matar moscas é a coisa mais comum do mundo, todos matam moscas, todos odeiam moscas, no entanto esses bichinhos estão vivos e têm todo o direito à existência, por que não? Então de onde vem tanto ódio? Bem, eu suspeito que o asco que sentimos não é pela mosca em si, mas por não sabermos onde o ‘vil’ inseto colocou suas patas antes de vir pousar em nossa comida. A mosca é uma espécie de emissário do desconhecido, um pequeno diabo, isso nos assusta. Mesmo doenças mais graves podem ter na mosca seu sinistro agente, e isso é intolerável e assustador. No entanto, se criássemos uma mosca de forma segura, sabedores de que nunca pousou em lugares infectos, possivelmente não ligaríamos a mínima se ela passeasse tranquila sobre nosso pão. Pois bem. Em uma Sociedade em que se queira uniformizar a mentalidade das pessoas isso não seria diferente, me parece. Neste livro vamos acompanhar uma mosca, ou melhor, um homem que bem poderia ser uma. A estória que agora começa é sobre um sujeito que acorda de um rápido cochilo no metrô sem lembrar-se de quem é nem de onde e como vive. Seu nome

O MOSCA - Prefácio

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Prefácio do livro O MOSCA

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O que pode incomodar mais do que uma mosca? Ningum sabe de onde vieram e nem para onde vo as moscas, s sabemos que defendemos, feito soldados, a superfcie de seja l o que for para que o nojento inseto nunca pouse em cima. Matar moscas a coisa mais comum do mundo, todos matam moscas, todos odeiam moscas, no entanto esses bichinhos esto vivos e tm todo o direito existncia, por que no? Ento de onde vem tanto dio? Bem, eu suspeito que o asco que sentimos no pela mosca em si, mas por no sabermos onde o vil inseto colocou suas patas antes de vir pousar em nossa comida. A mosca uma espcie de emissrio do desconhecido, um pequeno diabo, isso nos assusta. Mesmo doenas mais graves podem ter na mosca seu sinistro agente, e isso intolervel e assustador. No entanto, se crissemos uma mosca de forma segura, sabedores de que nunca pousou em lugares infectos, possivelmente no ligaramos a mnima se ela passeasse tranquila sobre nosso po. Pois bem. Em uma Sociedade em que se queira uniformizar a mentalidade das pessoas isso no seria diferente, me parece. Neste livro vamos acompanhar uma mosca, ou melhor, um homem que bem poderia ser uma. A estria que agora comea sobre um sujeito que acorda de um rpido cochilo no metr sem lembrar-se de quem nem de onde e como vive. Seu nome Leonardo Daemon. Leonardo, ou simplesmente Lo, quando percebe que est com amnsia, resolve no contar a ningum e decide transformar seu infortnio em uma grande aventura. Porm, vai percebendo que nem tudo foram flores em sua vida pregressa e enquanto vai desvendando sua antiga identidade, vai dando-se conta de que apenas isso: uma identidade, ou se preferir, um nmero, uma estatstica. No bastassem as surpresas que vai encontrando em sua vida particular, aos poucos vai percebendo que vive em um mundo idealizado para que as pessoas apenas circulem crditos e mantenham suas mentes nos entretenimentos. A Arte foi banida e a subjetividade crime. No entanto constata que as pessoas so totalmente indiferentes a uma condio que parece mesmo ter lhes roubado as prprias vidas. Livre para pensar, pois ningum sabe de sua amnsia, Lo vai descobrindo tudo que o cerca e passa a desvendar o admirvel truque que os comandantes do espetculo impetraram como Sociedade perfeita. O problema que todos esperam a volta do Inimigo, que ningum sabe quem , mas que poder botar a perder aquele mundo assptico, porque trar de volta a terrvel, suja e banida subjetividade. Mesmo nos guetos, onde vivem os que ficaram de fora, tudo segue pacfico graas ao profeta oficial do esquema, que promete que os bem comportados iro, depois da morte, para um paraso em que, finalmente, podero consumir de tudo vontade. Tudo perfeito para todos, menos para Leonardo, que comea a abrir os olhos e ver em tudo isso uma grande armadilha. Seria Leonardo Daemon o inimigo?

Longe de querer criar um romance distpico, eu quis apenas contar uma histria de revolta. O Humano tendo de abandonar suas mais altas aspiraes para caber nos interesses de terceiros que o pesam e o calculam por sua utilidade. O corpo congelado e plastificado nos modismos, os instintos arrefecidos, a mente distrada, o pensamento como algo perigoso. Bonecos frios inoculados nas mentes menos criativas para que no pulem os muros que fazem divisa com o Infinito. O prazer das descobertas nos mergulhos mais assustadores, tidos pelos arautos do medo como coisas demonacas. Tudo bobagem. Somos o que pensamos e pensamos porque somos. Sem filosofismos. Aquilo que usado para assustar as mentalidades simples cheira a uma grande picaretagem, so fantasmas assalariados manobrados por tteres inescrupulosos. Qualquer um que descubra que livre para pensar o que quiser o faz sempre demolindo mundos, pois so os cacos desses mundos que so catados pelo cho por figuras fantasmagricas enquanto xingam a impertinncia do pensador. A cada mundo que se espatifa morre um milho de fantasmas. Porm, sempre haver os monstrengos que, feitos lixeiros metafsicos, juntam o que sobrou para montar totens monstruosos visando afastar incautos de caminhos que julgam proibidos. Enganam-se redondamente, pois o criador, por sua bvia condio, cria tambm os caminhos, portanto nunca passa por ali. S os que no tm condies de voar arrastam seus ps ou joelhos - por esses tenebrosos lugares. Pois que nunca cheguemos condio humana miservel que a histria contada neste livro nos remete. Seria ento a morte predominando sobre a vida, uma morte enfeitada, perfumada, colorida, ufanista; to bem engendrada que ningum se daria conta do ardil. S os mais atentos perceberiam estar a servio da prpria escravido, os demais seguiriam felizes e bem entretidos. Voltando mosca, quem sabe s ela, vinda de sinistros e sombrios lugares possa trazer em suas patas sujas o desassossego, o questionamento... a liberdade! Sim, a despeito do horror que causaria aos acomodados, o demonaco emissrio poderia trazer a salvao no exemplo de seu voo, no destemor de seus pousos. A superfcie branca e lisa pela qual ela anda no pode nada, e julga ter a fora justamente em sua imensido e brancura, se me permitem o pequeno delrio. Caramba! Essas coisas parecem to longe de ns que at nos causam certo conforto. Ainda bem que a aventura que est prestes a se descortinar aos olhos do caro leitor[a] nunca aconteceu, ento, por enquanto podemos comemorar: enfim s uma histria, no mesmo? Que bom. Mesmo que de vez em quando algum roar de desespero nos acometa e sintamos uma espcie de agonia pela insuficincia das coisas que nos cercam. Mas v l. Ufa! Pois ... Ainda bem que s fico, ainda bem! Tudo, enfim, no passa de mera semelhana...

Roberto Axe

10 de maro de 2015.