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40 MONTEIRO, R. H. e ROCHA, C. (Orgs.). Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2012 ISSN 2316-6479 METAMORFOSES DA PAISAGEM E DO HABITAR EM BRASÍLIA: CASO DA ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS Pedro Henrique Máximo Pereira [email protected] Universidade de Brasília Universidade Estadual de Goiás Universidade Federal de Goiás Resumo Este trabalho discute as relações existentes entre Paisagem e Habitar na cidade de Brasília, sob o conceito de metamorfose, que se funda a partir do momento em que se consideram as temporalidades e espacialidades das interferências humanas. Diante disso, o recorte espacial é a Esplanada dos Ministérios, que apresenta uma tensão existente entre o cotidiano e o monumental, respectivamente representados pela Rodoviária e o Congresso Nacional, na estrutura do lugar que se configura no vazio que os permeia. A problemática suscitada refere-se a uma nova espécie de habitar a paisagem moderna que foi redesenhada a partir desta nova espacialidade. Palavras-chave: Paisagem, Habitar, Brasília Abstract This work discusses the relations existents between Landscape and Dwelling in the Brasília city, under concept of metamorphose, which flows from the moment that consider the temporalities and spatialities of human interferences. Given this, the studies area is the Esplanade of Ministries, which presents a tension between the daily and the monumental, respectively represented by the Congress and the National Road, in the structure of the place that sets up the void that permeates them. The issue raised relates to a new species to dwelling the modern landscape that has been redrawn from this new spatiality. Key-works: Landscape, Dwelling, Brasília 1. O Background da Discussão: do político ao cultural O movimento moderno brasileiro possuiu algumas especificidades se o compararmos às manifestações do mesmo caráter na Europa e Estados Unidos. O que o diferenciou, em termos gerais, foi a sua estreita vinculação à identidade nacional, que buscou na história os fundamentos para a construção de sua brasilidade. O movimento antropofágico de 1928 representou o auge desta relação, que colheu de forma plena os frutos das manifestações ocorridas precedentemente no território nacional, como a exposição de Anita Malfatti em 1917 e a Semana de Arte Moderna de 1922. A década de 1920 foi demasiada importante para este movimento no país, não somente pelos eventos acima citados, mas pelo olhar voltado à cultura nacional e suas manifestações precedentes. Os nomes chaves deste marco

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6479METAMORFOSES DA PAISAGEM E DO HABITAR EM BRASÍLIA: CASO DA

ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS

Pedro Henrique Máximo [email protected]

Universidade de BrasíliaUniversidade Estadual de GoiásUniversidade Federal de Goiás

Resumoeste trabalho discute as relações existentes entre Paisagem e Habitar na cidade de Brasília, sob o conceito de metamorfose, que se funda a partir do momento em que se consideram as temporalidades e espacialidades das interferências humanas. Diante disso, o recorte espacial é a esplanada dos Ministérios, que apresenta uma tensão existente entre o cotidiano e o monumental, respectivamente representados pela rodoviária e o congresso nacional, na estrutura do lugar que se configura no vazio que os permeia. A problemática suscitada refere-se a uma nova espécie de habitar a paisagem moderna que foi redesenhada a partir desta nova espacialidade. Palavras-chave: Paisagem, Habitar, Brasília

Abstractthis work discusses the relations existents between Landscape and Dwelling in the Brasília city, under concept of metamorphose, which flows from the moment that consider the temporalities and spatialities of human interferences. Given this, the studies area is the esplanade of Ministries, which presents a tension between the daily and the monumental, respectively represented by the congress and the national road, in the structure of the place that sets up the void that permeates them. the issue raised relates to a new species to dwelling the modern landscape that has been redrawn from this new spatiality.Key-works: Landscape, Dwelling, Brasília

1. O Background da Discussão: do político ao cultural

O movimento moderno brasileiro possuiu algumas especificidades se o compararmos às manifestações do mesmo caráter na europa e estados Unidos. o que o diferenciou, em termos gerais, foi a sua estreita vinculação à identidade nacional, que buscou na história os fundamentos para a construção de sua brasilidade. o movimento antropofágico de 1928 representou o auge desta relação, que colheu de forma plena os frutos das manifestações ocorridas precedentemente no território nacional, como a exposição de anita Malfatti em 1917 e a Semana de arte Moderna de 1922.

a década de 1920 foi demasiada importante para este movimento no país, não somente pelos eventos acima citados, mas pelo olhar voltado à cultura nacional e suas manifestações precedentes. os nomes chaves deste marco

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6479foram Lucio costa1 e tarsila do amaral2 que se atentaram para as cidades

mineiras a fim de observar a arte colonial e encontrar nestas manifestações o cerne de um possível espírito nacional.

as décadas 1930 e 1940 apresentaram ao país importantes nomes de artistas que fizeram este trabalho de pesquisa das manifestações culturais plurais do Brasil. entre Lucio costa e tarsila do amaral estavam oscar niemeyer, oswald de andrade, affonso eduardo reidy, Flávio de carvalho, cândido Portinari entre outros, que consolidaram no país o movimento moderno e tiveram um importante papel de representa-lo nas formas de pintura, escultura, arquitetura, literatura e música.

a segunda república abraçou este grande projeto moderno, primeiro, por sua estreita vinculação à alta burguesia cafeeira paulista, segundo, pela projeção nacional que se vislumbrava a partir das manifestações artísticas. Uma prova disso é o cenário do rio de Janeiro que se transformou com a consolidação da escola carioca de arquitetura que possibilitou importantes intervenções arquitetônicas e urbanas para garantir à até então capital nacional, um status de cidade moderna, como a construção do Ministério da educação e Saúde em 1937, o aeroporto Santos Dumont em 1947 e o Museu de arte Moderna em 1948.

este importante vínculo entre política e arte tiveram em Brasília o apogeu desta relação. tratou-se de unir em um só projeto arte, técnica e ciência. a construção da nova capital federal, tanto no sentido ideológico quanto no sentido projetual, assumiu temporalidades múltiplas e paralelas que se intercruzaram sob a decisão política de Juscelino Kubistchek e nos traços de Lucio costa nos anos de 1950. Brasília, nome pensado por José Bonifácio em 1823, revelou que o desejo de transferência da capital federal data os meados do século XiX. além do percurso histórico que levou à construção de Brasília em 1960 e de seus condicionantes, Lucio costa trouxe no plano da capital uma ebulição teórica que apresentou raízes historiográficas desde a filosofia social, também da primeira metade do século XiX (LeitÃo e FicHer, 2009, p. 20-21).

1 nasceu na França em 1902 e mudou-se para o Brasil aos 14 anos. É conhecido como um dos “intérpretes do Brasil”, pois tem um intenso trabalho de análise e pesquisa quanto a uma identidade nacional. Formou-se pela escola nacional de Belas artes do rio de Janeiro em 1924, da qual foi diretor por nove meses. criou o SPHan em 1937 juntamente com rodrigo de Melo e carlos Drummond de andrade, e revelou ao país o importante arquiteto oscar niemeyer (ScHLee, 2010).

2 nasceu em São Paulo em 1886, na década de 1910 estudou pintura e escultura no país e em 1920 foi à França estudar na academie Julien, e logo retornou ao país, para participar da Semana de arte Moderna de 1922. Foi uma importante artista do movimento antropofágico, e pintou em suas obras os diversos brasis observados em suas pesquisas de campo.

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6479 Fruto, tanto da síntese das reflexões precedentes sobre a cidade moderna,

quanto de um desejo histórico3 de transferência datada desde 1823, Brasília, enquanto narrativa e discurso, assumiu um papel simbólico de cidade total diante da articulação dialética estabelecida entre ordem e poder, cultura e política, arte e ciência, encontrando nos traços e Lucio costa e nas obras de niemeyer que se localizam no eixo monumental, a celebração dos mitos de progresso e das ideologias nacionais (ScHULZ, 2008, p.176 – 177).

2. Das metamorfoses: da paisagem ao habitar

a cidade como obra de arte expõe uma imagem direta do tempo, através de um presente portador não apenas de futuros, mas também de outros passados possíveis. ScHULZ, 2008

“nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.” Foi assim que Lucio costa (2009, p.36) iniciou a descrição do processo de concepção da nova capital Federal do Brasil, em 1957. Freitas (2007), estabelecendo um diálogo entre a transmutação sígnica ocorrida entre a imagem-ideia e a imagem-objeto do processo de concepção e construção de Brasília, diz: “seu desenho, um pássaro, um avião ou um arco-e-flecha, é resultado de imagens construídas por uma geometria tensionada...” (ibid., p. 8) e com isso, “o recurso de Lucio costa à origem da formação da ocupação territorial brasileira, tendo como alicerce o signo cristão fez o primeiro traçado da nova capital...” (ibid., p. 9 – Figura 1). neste sentido, buscou-se como aponta Puls (2006, p. 10), a construção de um mundo artificial, onde seus artefatos existem em função do homem para garantir sua existência.

Lucio costa desenhou nas planícies do cerrado brasileiro, no centro do país, o centro do mundo em sua mais subliminar interpretação. assim como nos aponta Mircea eliade (1992), fundado o centro do mundo, o cosmo4 se estabelece por uma hierofania qualquer5. Este, o espaço criado, demarcado e hierarquizado, se estratifica diante do universo identitário que é, ao mesmo tempo, construído

3 Segundo Leitão e Ficher (2009, p. 20-21), a fomentação de transferência da capital Federal ganhou sentido quando de fato houve, durante o transcorrer dos anos, diversos estudos de longo alcance, que vislumbraram um possível sítio para a construção de Brasília após a Proclamação da república. tem-se a destacar o quadrilátero cruls (em 1892, após a proclamação da república, foi nomeada a comissão para a escolha do sítio do Distrito Federal. a comissão estabelecida foi constituída por 22 militares e chefiada pelo astrônomo Luiz Cruls, que percorreu a região por sete meses e constituíram o relatório cruls. como resultado imediato destes trabalhos, demarcou-se o quadrilátero cruls com dimensões de 160x90km, no estado de Goiás), primeira demarcação no território do estado de Goiás, que, pelas “... acuidades de suas informações fez com que seja possível considera-lo também uma primeira aproximação ao projeto da capital...” (ibid 2009, p. 22). esta localidade foi consideravelmente ampliada pelos estudos posteriores, levando-se em consideração os aspectos físico-geográficos do sítio, aspectos estes que fazem parte da paisagem que se erigiu sob as ideias de Lucio costa.

4 Estabelecido o lugar, estabelece-se o Cosmo e o Caos, sendo este segundo, uma “ameaça” à organização estabelecida nas ações hierofânicas e simbólicas.

5 Para Mircea eliade (1992), a hierofania acontece quando o sagrado se manifesta.

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6479pelo fenômeno do habitar. em outras palavras, à medida que se funda o espaço,

funda-se o universo, o cosmo, o lugar do Ser no mundo: “instalar-se num território, construir uma morada pede, conforme vimos, uma decisão vital, tanto para a comunidade como para o indivíduo. trata-se de assumir a criação do “mundo” que se escolheu habitar” (ibid, p. 31).

Figura 1 - croquis de Lucio costa de sua proposta para Brasília no concurso de 1957. as imagens representam o processo de concepção da capital Federal. Fonte: Lucio costa, 2009, p. 36.

a Brasília foi atribuída em 1960, mais que a imagem de uma nova cidade. A imagem de Brasília significou para os brasileiros uma nova geração, moderna, organizada, distinta de suas cidades confusas de origem portuguesa e das emergentes metrópoles em processos de industrialização6 (BrUanD, 2003). contudo, a cidade construída pela novacap não foi exatamente a cidade pensada inicialmente por Lucio costa. assim como considerou argan (2005, p. 73),

...a chamada cidade ideal nada mais é do que um ponto de referência em relação ao qual se medem os problemas da cidade real, a qual, pode, sem dúvida, ser concebida como uma obra de arte que, no decorrer de sua existência, sofreu modificações, alterações, acréscimos, diminuições, deformações, às vezes verdadeiras crises destrutivas. (grifo meu)

este pensamento arganiano pode ser perfeitamente aplicável ao caso de Brasília. De fato, há um distanciamento entre o projeto apresentado por Lucio costa e a cidade executada, fatores estes que alteraram substancialmente a Paisagem. Segundo Milton Braga (2010, p. 227-231), houve um deslocamento para leste da área central que compreende o cruzamento dos eixos estruturantes, aumentando assim, tanto para leste quanto para oeste as dimensões do eixo monumental (Figura 2). além de uma série de espaços “suprimidos”, os edifícios dos ministérios foram diminuídos para fins econômicos, expandindo assim a largura do gramado central, que configura um grande vazio que permite o diálogo entre os edifícios inseridos na esplanada dos Ministérios e a rodoviária.

6 A desconsiderar as duas capitais regionais planejadas precedentemente, Belo Horizonte e Goiânia, que de certo modo, apresentaram sucesso em seus processos de urbanização e incitaram a execução do antigo sonho do país de transferência da capital (BrUanD, 2003, p.353)

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Figura 2 - À esquerda o plano apresentado por Lucio costa à noVacaP em 1957 e à esquerda o plano construído, apresentando as metamorfoses existentes entre o ideal e o construído. Fonte: costa e Lima, 2009, p.50.

ana Medeiros (2007) indica que há uma identidade implícita na Paisagem Cultural que se configurou ao se erigir e se manter por tanto tempo, a relação entre estes edifícios, o horizonte, e os vazios. Uma memória diretamente ligada aos monumentos que rememoram os tempos áureos, não somente da arquitetura e urbanismo brasileiros, mas de uma sociedade sonhadora e idealista. esta imagem identitária ficou ainda mais marcada quando a Rodoviária se consolidou como ponto de encontro e passagem, onde uma ebulição cultural das massas brasileiras advindas de todas as partes do país passava por ela, fazendo Lucio costa, ao observar a apropriação da rodoviária, reconhecer que “eles (as massas) estão com a razão, eu é que estava errado... Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade” (apud MeDeiroS, 2007, p. 5).

o percurso que se estabelece entre a rodoviária e o congresso nacional (2 km) e seus edifícios conjuntamente com a borda dos vazios que os configuram, fundou uma espécie de estrutura Lugar, onde no vazio em específico, se estabelece as tensões fortuitas de um habitar multifacetado. Por um lado o habitar ideal, habitado por um parentesco próximo ao Modulor, que reconhece a especificidade deste espaço e se apropria dele nas temporalidades pensadas a priori por Lucio costa. Por outro lado o habitar real, habitado por um ser de personalidades múltiplas e híbridas, advindo de diversas espacialidades do país e do mundo, de diversas origens socioculturais, e fragmentário por essência.

contrapondo pelas margens o discurso de Medeiros (2007), na defesa de que no espaço se encontram duas modalidades de brechas (objetiva – socioeconômicas – e subjetiva – poética) e nele se “inscrevem” e “realizam”

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6479as diferenças, da menor à extrema, que ana Fani7 (2007, p.13), ao olhar para

a Esplanada dos Ministérios, diz que na morfologia que configura este espaço, os passos do flâneur são “proibidos”8. De fato existe um distanciamento entre apreensão e apropriação, e se o espaço não propicia este segundo, cabe ao habitante reinventar as possibilidades de fazê-lo. Sobre os gramados centrais deste trecho, por exemplo, observa-se “estrias” estabelecidas pelos percursos dos transeuntes nas mais diversas direções e intensidades. não obstante ao percurso estabelecido pelas vias desenhadas por Lucio costa, a completude da percepção e apropriação se dá no centro, quando o percurso se estabelece sobre os gramados e as tensões entre o poder (monumental - representado pelo congresso nacional) e o popular (cotidiano – representado pela rodoviária) se manifestam na mais sublime intensidade: apesar da distância que configura o vazio, estas distintas camadas da sociedade parecem “dar as mãos”.

esse fato nos remete à ilustre colocação de Brandão (2007), perfeitamente aplicável ao caso de Brasília, que diz que “...o monumento surge de nosso modo de habitar o mundo, de nossa experiência ativa dele, de nossos gestos e ações no mundo público” (ibid., p. 54) Sendo assim, o monumento que se comporta como elemento transtemporal – está hoje, rememora um passado e se destina ao futuro e por muitas vezes intangível -, se torna um componente do cotidiano e do habitar, sendo construído como um Lugar no qual “...homem presente habita o real (e não o passado ou o futuro) e nele constrói sua verdade e sua salvação enquanto indivíduo inserido em um mundo público” (ibid., p. 54).

Em sua especificidade, relações temporais se estabelecem no processo de construção e apropriação do espaço, e este, em uma estrutura mais complexa, se transforma em Lugar à medida que uma outra estrutura, a simbólica, sob a forma de uma película tênue se estabelece entre o habitante e o espaço habitado “numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada” (BacHeLarD, 2005, p.27).

7 Ana Fani (2007) define lugar como sendo “a porção do espaço apropriável para a vida”. São pelas diversas maneiras que o homem se apropria do espaço da cidade, seja caminhando, locomovendo, trabalhando, flanando, etc., que os espaços vão ganhando significados pelo uso e apropriação. Fani também destaca o espaço vazio e monumental como sendo detentores do lugar, não somente estabelecem laços com a história de um povo, mas carregam consigo o peso da história da humanidade.

8 A distância entre os edifícios, a priorização do tráfego de carros contribuem para uma “expulsão” do flâneur.

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Figura 3 - A simetria alcançada por Lucio Costa e Niemeyer, o Horizonte e o Vazio.

Fonte: nacaoturismo.com.br.

Permanecendo “intacta” por aproximadamente 47 anos, a Paisagem do trecho rodoviária – congresso nacional (Figura 3), em 2006, recebeu outros importantes edifícios de autoria de niemeyer: a Biblioteca nacional9 e o Museu nacional, na porção Sul do Setor cultural. De grande impacto visual, a simetria conseguida por Lucio Costa ao pensar a disposição das edificações e por Niemeyer ao projetá-los10, se perdeu por edificações que de massa pesada e densa, ofuscaram o diálogo que se estabelecia ao fundo entre a catedral, os Ministérios e o congresso11.

Figura 4 - no primeiro plano da imagem o Museu nacional e ao fundo à direita a Biblioteca nacional, situados no Setor cultura, na esplanada dos Ministérios. Fonte: autor, 2010.

9 Figuerola (2007) diz que a massa da Biblioteca Nacional é sóbria e monumental.

10 Fala-se aqui dos Ministérios, do Congresso Nacional, da Catedral e articulação entre eles por meio do vazio e do horizonte.

11 não se desconsidera a relevância do Palácio itamarati e o Palácio da Justiça. como eles, das visadas da rodoviária para o horizonte, se “escondem” atrás dos ministérios, sob esta perspectiva não se constituem marcos visuais.

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6479Diversas críticas foram feitas às obras, cuja grande maioria se dá pela

grande interferência visual que estes edifícios possuem. claramente, estes edifícios que estão sobre uma mesma plataforma de concreto parecem “dar as costas” a todo o entorno e dialogarem entre si. Santos (2005) critica seu autor de forma incisiva, chama-o de autofágico e acusa-o de devorar seu próprio repertório num certo “espasmo criativo”. Medeiros (2007) por sua vez, em defesa da preservação do silêncio cheio de significados que o vazio liberava, diz que o museu para muitos é um grito que ecoa, e “desrespeita” o vazio. Sem tomar nenhum partido, reflete-se aqui sobre as qualidades apropriativas do espaço do habitar, ou como nos diz Ana Fani (2007, p. 18), o espaço apropriável para a vida. até que ponto a inserção destes edifícios interferiu na receptividade simbólica do trecho? É certo que a qualidade clássica de Brasília conseguida por sua simetria se perdeu com a inserção destes edifícios, mas e a apropriação identitária do trecho, ainda se dá?

trata-se de uma discussão de dupla argumentação. Se Brasília representa o auge do movimento moderno no Brasil e no mundo, deveria ela ser congelada no tempo, e assim como as cidades tradicionais históricas serem resguardadas enquanto patrimônios históricos? olhar para Brasília com olhos tradicionalistas a deixa deslocada dentro do seu próprio discurso. todas as retóricas dos modernistas ortodoxos apregoavam uma abrupta desvinculação de seus produtos com a história e com a tradição. no entanto, olhar para Brasília com por estes vieses lhe conferem um ar tradicionalista de um grande monumento urbano inscrito na história. até que ponto a inserção dos edifícios na explanada dos ministérios se colocam negativamente às expressões do habitar moderno? Não seria estas intervenções a própria afirmação de seu caráter moderno?

3. Colocações finais: habitar a paisagem moderna

Diante do discutido no decorrer deste trabalho, constata-se que as metamorfoses da paisagem urbana de Brasília ocorreram desde sua construção em relação ao plano original, e a inserção dos referidos edifícios no Setor cultual metamorfosearam tanto a paisagem urbana quanto cultural no que se refere ao trecho de estudo. não por acaso estas metamorfoses estiveram circunstanciadas por questões políticas, que buscavam vincular à paisagem moderna sua imagem. contudo, estas obras trouxeram à esplanada dos Ministérios seu caráter moderno de auto renovação. o conceito de metamorfose nos cabe neste contexto mais que o conceito de transformação, visto que o primeiro traz um caráter renovador e reestruturador, muito ligado ao discurso progressista do movimento moderno.

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6479as metamorfoses do habitar, no entanto, se dão por argumentos distintos.

Habitar a paisagem de Brasília se refere a uma postura moderna. a identidade moderna que alvorece desde meados do século XVi solicitou novas espacialidades e novas propostas estéticas. Le corbusier em seu manifesto L’Espirit Nouveu nos apresentou uma emergencial necessidade destas transformações visto o surgimento deste novo habitante do novo mundo, e em Brasília, de fato, materializou-se esta utopia. Observar, analisar e viver a paisagem desta cidade como se observa, analisa e vive a cidade tradicional é de certo modo incoerente, pois se trata de outra espécie de morfologia urbana, de outras leituras do habitar e de novas maneiras de habitar a cidade.

4. Referências Bibliográficas

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Minicurrículo

Pedro Henrique Máximo Pereira é graduado em arquitetura e Urbanismo pela UeG, mestrando em arquitetura e Urbanismo pela UnB, acadêmico de artes Visuais Licenciatura pela UFG e professor de arquitetura e Urbanismo da Universidade estadual de Goiás.